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V SEMINÁRIO NACIONAL DE LICENCIATURAS EM EDUCAÇÃO DO CAMPO

CADERNO DE ESTUDOS

08 a 11 de dezembro de 2015

Laranjeiras do Sul, PR

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Lista de Figuras

Figura 1 – Poder de controle das 50 maiores corporações mundiais.........................................17

Figura 2 – Mapa da produção científica mundial........................................................................19

Figura 3 – As maiores empresas em P&D no mundo e os setores onde são realizados os maiores investimentos...............................................................................................................20

Figura 4 – Estrutura fundiária no Brasil – 2003 e 2012...............................................................24

Lista de Quadros

Quadro 1 – Empresas estrangeiras que monopolizam ou oligopolizam os diversos setores da agricultura no Brasil....................................................................................................................23

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Sumário

Seminário Nacional do Procampo: breve retrospectiva...............................................................5Edson Marcos de Anhaia

MAPA: Localização das Universidades Federais com Licenciaturas em Educação do Campo.....13

IMPERIALISMO, QUESTÃO AGRÁRIA E LUTA DE CLASSES NO CAMPO........................................14Sidemar Presotto Nunes

ORGANIZAÇÃO, ESTRATÉGIA POLÍTICA E O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO..........................31Roberto Leher

OS EMPRESÁRIOS E A POLÍTICA EDUCACIONAL: como o proclamado direito à educação de qualidade é negado na prática pelos reformadores empresariais..............................................69Luiz Carlos de Freitas

SOBRE A ESPECIFICIDADE DA EDUCAÇÃO DO CAMPO E S DESAFIOS DO MOMENTO ATUAL.....85Roseli Salete Caldart

POLÍTICA DE FORMAÇÃO DE EDUCADORES DO CAMPO NO CONTEXTO DA EXPANSÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR..............................................................................................................125Mônica Castagna MolinaSalomão Mufarrej Hage

PILARES FUNDANTES DE UMA NOVA FORMA ESCOLAR...........................................................153Roseli Salete Caldart

MANIFESTO DAS EDUCADORAS E DOS EDUCADORES DA REFORMA AGRÁRIA........................165

FÓRUM NACIONAL DE EDUCAÇÃO DO CAMPO - FONEC - DOCUMENTO FINAL......................173

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Seminário Nacional do Procampo: breveretrospectiva.

Edson Marcos de AnhaiaProfessor do curso de Licenciatura da UFSC

Pretendemos com esse texto trazer presente sucintamente a política do Programa

de Apoio à Formação Superior em Licenciaturas em Educação do Campo (PROCAM-

PO), no sentido de uma breve retrospectiva do surgimento do referido programa e dos

seminários nacionais das licenciaturas em Educação do Campo. Apresentamos o movi-

mento dos trabalhadores do campo na mobilização para garantir políticas públicas para

o campo, o surgimento do Prancampo como fruto desse movimento e sucintamente os

seminários nacionais.

Quando verificamos as políticas públicas implementadas nas diferentes esferas

de governos ao longo da história, percebemos que o meio rural e, portanto, as pessoas

que nele viviam, foram historicamente secundarizadas. Estabeleceu-se uma visão euro-

peia de desenvolvimento que privilegiou os espaços da metrópole/urbanos em detrimen-

to da colônia/rural (CALAZANS,1993).

Com o avanço do sistema capitalista, que também chega ao campo, constitui-se

no imaginário da sociedade, pelas condições objetivas, que este deve ser transformado

em espaço de produção de mercadoria. Tal processo conforma as relações no meio rural

tendo o mercado e as relações econômicas como o central na produção da existência hu-

mana (STÉDILE; FERNANDES, 1999).

Ao excluir milhões de pessoas do acesso aos meios de produção e dos bens soci-

almente produzidos, o sistema capitalista cria os germens para outras maneiras de pro-

duzir as relações sociais, fazendo surgir no seio da sociedade organizações coletivas dos

trabalhadores, que se materializam em movimentos sociais.

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Foi o próprio capital incentivado pelo Estado Militar, que sem desejar, liber-tou o demônio político das lutas camponesas em todas as regiões do país. Pa-ralelamente à expansão do capitalismo no campo houve expansão das lutasdos trabalhadores, a disseminação da luta pela terra, a difusão de concepçãoparalelas e antagônicas do direito vigente e dominante (MARTINS, 1986, p.75).

Quando diversos sujeitos possuem objetivos comuns a serem alcançados e pas-

sam a desenvolver ações conjuntas para realizá-los, podem se transformar em movimen-

tos sociais ou se consolidar como sujeitos de interesses comuns que se articulam em as-

sociações, sindicatos etc. Buscam modificar a realidade, pelo menos em algumas ques-

tões específicas, negando-a e afirmando algo distinto do que existe. Ao se fazerem orga-

nizações, constroem práticas que possibilitam vislumbrar caminhos diferentes para pro-

duzir sua existência. Essa experiência, como nos lembra Thompson (1981) é resultado

de processos de reflexões pelos quais o ser humano passa, espontaneamente ou não, le-

vando-o a compreender o que acontece com cada um e com todos.

A educação do campo é resultado do acúmulo da luta dos trabalhadores do cam-

po, que percebem a importância e a necessidade de ampliá-la para além do acesso à ter-

ra, entendendo que são necessárias mudanças mais radicais na estrutura da sociedade. A

educação vai sendo incorporada, gradativamente, como fundamental nesse processo. O

Movimento Nacional de Educação do Campo coloca na agenda nacional o campo brasi-

leiro em seus diferentes aspectos, com ênfase na educação e na discussão de um projeto

de sociedade, denunciando a precariedade das escolas do campo e a necessidade de for-

mação para os professores que atuam nessas escolas (CALDART, 2008; MOLINA,

2009).

Inúmeros movimentos surgem no campo brasileiro com bandeiras de lutas diver-

sas1 e consolidam práticas que se materializam de muitas formas, sendo uma delas a da

educação, seja ela formal, intervindo nas escolas mantidas pelo Estado, ou no processo

de formação interno ao próprio movimento, fazendo nascer nos mais distintos lugares,

experiências de organização e de escolarização que superam a lógica da educação uni-

1 Cada destacar que nem todos os movimentos travam uma luta de classes, com referência explícita a um projeto desociedade anti-capitalista.

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forme, estruturada nas leis vigentes (MOLINA, 2009).

No que se refere à educação no espaço do campo, o I Encontro Nacional de Edu-

cadores/as da Reforma Agrária (I ENERA)2 foi a materialização desse momento históri-

co, que trouxe à tona para a agenda nacional, mediada pelas práticas educativas, a pro-

blemática vivenciada pelos trabalhadores do campo, imposta pelo modelo econômico

implantado no Brasil principalmente no final dos anos 1980 e início dos anos de 1990, o

neoliberalismo.

O I ENERA por mais restrito ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

(MST) que tenha sido, foi um momento importante na constituição do Movimento Naci-

onal de Educação do Campo, o momento do nascimento, no sentido de tornar visível o

campo brasileiro com toda sua vida, mas também com toda sua problemática e contradi-

ções. Podemos dizer que o I ENERA impulsionou a discussão da educação do campo,

levando os sujeitos do campo a pensar a necessidade de compreender melhor a realidade

rural brasileira e a educação que se faz presente neste espaço. Por essas características,

corroboramos da formulação de Munarim (2008) quando afirma ser o “Manifesto das

Educadoras e Educadores da Reforma Agrária ao Povo Brasileiro”3, resultante desse en-

contro, é a “certidão de nascimento” do Movimento Nacional de Educação do Campo.

Esse movimento articula os sujeitos envolvidos nesse processo e gera a organização de

encontros mais sistemáticos, como por exemplo, a I Conferência Nacional de Educação

Básica do Campo que aconteceu em 1998.

É neste processo que se inaugura o termo Educação do Campo, citado no texto

básico enviado aos estados para subsidiar os debates preparatórios em vista da I Confe-

rência. Nesta, o termo é legitimado, adquirindo um significado para os movimentos so-

ciais, como destaca Kolling:

2 O I ENERA aconteceu no ano de 1997, reunindo educadores e entidades parceiras do MST como Universidade deBrasília – UnB, o Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, a Organização das Nações Unidas para aEducação, Ciência e Cultura – UNESCO e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB). ANHAIA (2010)

3 Documento elaborado no final do I ENERA que estabelece um conjunto de princípio e compromisso que o MSTdefende para a educação do campo

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Utilizar-se-á a expressão campo, e não a mais usual meio rural, com o objeti-vo de incluir no processo da conferência uma reflexão sobre o sentido atualdo trabalho camponês e das lutas sociais e culturais dos grupos que vivemhoje e tentam garantir a sobrevivência desse trabalho. Mas quando se discutea educação do campo se estará tratando da educação que se volta ao conjuntodos trabalhadores e das trabalhadoras do campo, sejam os camponeses, inclu-indo os quilombolas, sejam as nações indígenas, sejam os diversos tipos deassalariados vinculados à vida e ao trabalho no meio rural. (KOLLING, 1999,p.29).

Esse movimento da sociedade civil tenciona o Estado a criar marcos regulatórios

dando amparo legal aos processos vividos no campo. O primeiro documento elaborado

nesse sentido foi as Diretrizes Operacionais para as Escolas do Campo. As Diretrizes

Operacionais, conforme destaca Soares (2010)4, deram “visibilidade à invisibilidade do

direito humano à educação do campo”, os movimentos sociais ao pautar a elaboração

das Diretrizes “retiraram da clandestinidade a educação do campo”, ou seja, buscaram

respaldar as ações relacionadas à educação do campo em marcos legais.

Trazemos presente esse processo da educação do campo para chamar a atenção

ao fato de que existia um conjunto de trabalhadores articulados, buscando garantir o di-

reito à educação no espaço do campo, com a elaboração de proposições concretas para a

formação de professores e estruturação das escolas nesse espaço.

Esse processo se intensifica a partir da II Conferência Nacional Por Uma Educa-

ção do Campo realizada em 2014. Após a Conferência foi instituído um Grupo de Tra-

balho com a responsabilidade de elaborar uma proposta para subsidiar a Secretaria de

Alfabetização Continuada, Diversidade e Inclusão - SECADI, na proposição ao MEC,

de uma proposta de formação de educadores das escolas do campo que considerasse a

especificidades desse espaço e atendesse a demanda de formação inicial para os educa-

dores já em exercícios e ampliasse o acesso à universidade aos sujeitos do campo.

Cabe destaque que o Programa de Educação na Reforma Agrária tive papel funda-

4 Entrevista concedida ao autor no momento da pesquisa que resultou na dissertação de mestrado intitulada: Aconstituição do Movimento Nacional de Educação do campo na luta por políticas públicas de educação (ANHAIA,2010).

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mental para a efetivação das licenciaturas em Educação do Campo. Foi justamente as

experiências vividas na Pedagogia da Terra que deram sustentação e legitimidade às rei-

vindicações e proposições dos movimentos sociais do campo às diferentes instâncias do

MEC.

Em 2006, foi aprovado pelo Ministério da Educação, em acordo com a Secretaria

de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), Secretaria

de Educação Superior (SESU) e Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

(FNDE). O Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do

Campo (Procampo).

O PROCAMPO iniciou por meio do desenvolvimento de um projeto piloto no

ano de 2007 nas universidades federais de Brasília (UNB), Minas Gerais (UFMG), Ser-

gipe (UFS) e Bahia (UFBA). Estas universidades buscaram apresentar proposta pedagó-

gicas, didáticas, teóricas e metodológicas para instaurar cursos atendessem as especifici-

dades dos trabalhadores do campo.

Mesmo sem uma avaliação mais aprofundada de tais projetos pilotos, o MEC lan-

çou edital número 02 de 23 de abril de 2008, realizando chamada pública para a seleção

de projetos de instituições de ensino superior para o PROCAMPO, tendo como um de

seus critérios a habilitação dos docentes por área de conhecimento. Em 2009 o edital foi

relançado, ampliando o número de universidades federais, institutos federais e universi-

dades estaduais ofertando o curso de Licenciatura em Educação do Campo, com recur-

sos provenientes de convênios entre o FNDE e as instituições ofertantes.

Em 2012, por meio do Edital de Seleção n.º 02/2012-

SESU/SETEC/SECADI/MEC, de 31 de agosto de 2012, o MEC solicitou que universi-

dades públicas em diferentes regiões do país encaminhassem projetos político pedagógi-

cos para o desenvolvimento dos cursos de licenciatura.

A implementação dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo vai deman-

dar um conjunto de ações dos trabalhadores do campo e das universidades envolvidas

nesse processo. Destacamos uma das ações que foi a realização de seminários nacionais

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das licenciaturas.

Em 2008 foi realizado, em Brasília, o Seminário Nacional de Apoio ao Programa

de Licenciatura em Educação do Campo- PROCAMPO, com a participação de 27 Uni-

versidades brasileiras participantes do Pronacampo, sendo 4 com experiências-piloto e

23 novas universidades participaram do primeiro edital.

A seguir destacamos os objetivos desse seminário:a) Promover a articulação entre

instituições comprometidas com a execução do Procampo, a fim de fomentar a instituci-

onalização da Rede de Formação de Educação do Campo; b) Expor para as instituições

selecionadas no processo seletivo desencadeado pelo Edital nº 2/2008, o formato e as di-

retrizes estabelecidas pelo Ministério da Educação para o Procampo; c) Intercambiar ex-

periências-piloto desenvolvidas no âmbito das Universidades Federais de Minas Gerais,

Sergipe, Bahia e Universidade de Brasília; d) Esclarecer dúvidas acerca da gestão orça-

mentária do Programa, com a presença de equipes da Secretaria de Educação Continua-

da, alfabetização e Diversidade -SECAD e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da

Educação - FNDE; e) Fomentar a expansão do Programa de forma articulada, visando o

fortalecimento das diretrizes nacionais propostas para os cursos de licenciatura em edu-

cação do campo, a fim de otimizar sua institucionalização junto às universidades e sua

regulamentação pelo Conselho Nacional de Educação(Rede, pesquisas, eventos, publi-

cação);

Um dos grandes desafios apontados pelos participantes do seminário era justa-

mente a consolidação das licenciaturas em Educação do Campo e a organização multi-

disciplinar e a alternância de estudos (tempo universidade e Tempo Comunidade). Esses

dois elementos foram apresentados como diferencial na formação inicial de professores

desse curso.

Os dois seminários seguintes tiveram um caráter mais de apresentação de traba-

lhos com a temática Educação do Campo e relato de experiências dos cursos em anda-

mento, como podemos perceber nos objetivos do seminário:

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O Seminário tem como objetivo geral criar um espaço para apresentação, dis-cussão e partilha de experiências por parte das instituições que estão desen-volvendo o curso visando identificar, analisar e propor encaminhamentos desoluções estruturais a questões comuns concernentes à dinâmica pedagógica,de gestão e de política dos cursos, seja no âmbito das universidades, no âmbi-to das redes estaduais e municipais de ensino, seja no âmbito das instânciassuperiores do Governo da União. (Folder do Seminário).

O IV Seminário Nacional do Programa de Apoio à Formação Superior em Licen-

ciaturas em Educação do Campo acontece em Belém do Pará em dezembro de 2014. Vai

adquirir um caráter de estudo e debate político pedagógico. Uma das razões para esse

fato é justamente a implementação das licenciaturas em Educação do Campo nas univer-

sidades como cursos regulares organizados por área de conhecimento e por alternância

de estudos. O Edital Procampo 2012 transforma o curso em política de Estado com

código de vagas docente e de técnico especifica para atuar no referido curso e recurso fi-

nanceiro na matriz da universidade

O objetivo do IV seminário é “de ampliação e fortalecimento do espaço para dis-

cussão e partilha de experiências visando identificar e analisar o andamento dos cursos

já em funcionamento bem como de construir um espaço para o debate de temas que vem

se constituindo uma estruturante e efetiva consolidação do Curso de Licenciatura em

Educação no Campo, como uma ação concreta para a formação de educadores para atuar

nas escolas do campo”.

É importante termos presente que os cursos de Licenciatura desde de sua imple-

mentação com os projetos pilotos necessitam de lutas diárias para sua plena efetivação

nas universidades e nos sistemas de ensino. A atual conjuntura do campo e do país de-

manda aos cursos avançar nas discussões políticas no sentido de garantir a implementa-

ção e continuidades do Procampo com seus princípios organizativos.

O V Seminário Nacional do Programa de Apoio à Formação Superior em Licen-

ciaturas em Educação do Campo que acontecerá na Universidade Federal da Fronteira

Sul deverá pautar uma mobilização coletiva dos cursos no sentido de materializar as po-

tencialidades e necessidades da formação inicial para os docentes do campo.

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Referências

ANHAIA, Edson M. A constituição do Movimento de Educação do Campo na luta por

políticas públicas de educação. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-

Graduação em Educação. Dissertação de Mestrado. Florianópolis, 2010.

CALAZANS, Maria Julienta Costa. Para compreender a educação do estado no meio

rural: traços de uma trajetória. In: THERRIEN, Jacques; DAMASCENO, Maria Nobre

(coord). Educação e escola no campo. Campinas: Papirus, 1993.

CALDART, Roseli Salete. Educação do Campo: notas para uma análise de percurso.

Texto da exposição feita no minicurso sobre Educação do Campo na 31ª Reunião Anual

da ANPED, programação do Grupo de Trabalho Movimentos Sociais e Educação,

Caxambu 20 e 21 de outubro de 2008.

KOLLING, Edgar J. NERY; Ir., MOLINA, Monica C. Por uma educação do básica do

campo. Articulação Nacional Por uma Educação do Campo: Brasília, 1999.

MARTINS, José de S. A reforma agrária e os limites da democracia na “Nova

República”. São Paulo: Hucitec, 1986.

MUNARIM, Antonio. Movimento Nacional de Educação do Campo: uma trajetória

em construção. 31ª Reunião Anual da ANPED, Caxambu 20 e 21 de outubro de 2008.

MOLINA, Monica C. Educação Popular e movimentos sociais: tensões e desafios para a

América Latina. Sessão especial. ANPED, Caxambu, 04 a07 de outubro de 2009.

SHIROMA, Eneida O.; MORAES, Maria Célia M.; EVANGELISTA, Olinda. Política

educacional. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

STÉDILE, J. P. & FERNANDES, B. M. Brava Gente: a trajetória do MST e a luta pela

terra no Brasil. São Paulo, SP: Fundação Perseu Abramo, 1999.

THOMPSON, Edward. P. A Miséria da Teoria ou um planetário de erros. Rio de

Janeiro: Zahar Editores, 1981.

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MAPA: Localização das Universidades Federaiscom Licenciaturas em Educação do Campo

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IMPERIALISMO, QUESTÃO AGRÁRIA E LUTA DECLASSES NO CAMPO

Sidemar Presotto Nunes1

APRESENTAÇÃO

A questão agrária surge com o marxismo. Marx afirmava que o campo era consti-

tuído por capitalistas, trabalhadores assalariados e proprietários de terra. Com Lenin

(1980) e Kautsky (1998) é que se afirma o termo Questão Agrária, também chamada de

problema agrário, visando a compreensão das especificidades do desenvolvimento capi-

talista no campo, particularmente como nele se desenvolvia a luta de classes e qual era o

papel que cumpria o campesinato na reprodução capitalista e na luta socialista. Entender

a especificidade agrária tinha como objetivo principal pensar no caminho revolucioná-

rio, socialista.

A primeira versão deste artigo foi elaborada a propósito do painel paralelo Ques-

tão Agrária do 58º Congresso Nacional dos Estudantes de Agronomia – Conea, realizado

na cidade de Florianópolis em agosto de 2015. Posteriormente o trabalho foi revisado e

ampliado para compor o caderno de textos do V Seminário Nacional de Licenciaturas

em Educação do Campo, a ser realizado em Laranjeiras do Sul, entre os dias 8 e 11 de

dezembro do corrente ano.

O objetivo do painel no Conea, de acordo com a coordenação do evento, foi a

“discussão a respeito da conjuntura atual em relação à questão agrária, pontuando a im-

portância e os entraves na realização de uma reforma agrária que contribua na constru-

ção de um projeto socialista de sociedade”. A coordenação do Seminário Nacional das

Licenciaturas em Educação do Campo, por sua vez, indicou que o trabalho deveria tratar

da questão agrária e a luta de classes no campo.

1Coordenador do Curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Tecnológica Federal do Paraná –UTFPR, Câmpus Dois Vizinhos. E-mail: [email protected]

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Desta forma analisa-se a questão agrária a partir do conceito de imperialismo. Ini-

cialmente procura-se compreender o desenvolvimento do capitalismo, em seu estágio

monopolista-imperialista. Em seguida, analisa-se a especificidade da questão agrária e a

aliança entre o imperialismo e o latifúndio. Desta forma se pretende contribuir com a

compreensão da natureza da luta de classes no campo no Brasil hoje e fornecer subsí-

dios ao debate acerca das Licenciaturas em Educação do Campo.

O IMPERIALISMO HOJE

Em que a passagem à fase monopolista modificou toda a relação no mundo,que ficou dividido definitivamente em, de um lado, um punhado de países in-dustrialmente desenvolvidos, potências econômicas-militares e de outro, umaimensa maioria de países atrasados, subjugados e dominados pelos primeiros.Ainda mais, que a dinâmica dessa dominação e seu desenvolvimento é umapermanente luta, entre essas potências, pela partilha e repartilha do mundo.Nessas novas condições sua expansão fez engendrar, segundo o estágio decada país atrasado, via a exportação de capitais e a política colonial moderna,um tipo particular de desenvolvimento. Como a base econômica fundamentaldesses países nesse período, é de tipo agrícola, assentadas no latifúndio feu-dal ou semifeudal ou na propriedade comunal indígena, nisto reside a essên-cia da peculiaridade do desenvolvimento desses países de uma forma geral edo desenvolvimento do capitalismo neles em particular, como um capitalismode tipo burocrático (ARRUDA, 2014, p. 14).

O imperialismo como fase superior do capitalismo é representado pelo fim da li-

vre concorrência e o surgimento dos monopólios, que repartem os mercados entre si e

estabelecem preços monopolistas. Nessa nova fase os bancos ocupam papel central. De

meros intermediários do dinheiro passam a controlar as maiores empresas do mundo a

partir de sua rede de participação, definindo a alocação dos investimentos, as fusões en-

tre empresas, as aquisições das empresas menores pelas maiores, o controle das vias de

escoamento de matérias-primas, a exportação de capitais dos países sede para as colô-

nias, o controle das dívidas dos estados etc.

Os monopólios buscam se sustentar ao longo do tempo mediante: a) o controle das

fontes de matérias-primas (produtos agrícolas e minerais) necessárias ao desenvolvi-

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mento da indústria, através da aquisição destas fontes ou em aliança com a classe pro-

prietária local; b) investimentos constantes em pesquisa e desenvolvimento (realizados

nos países-sede e comercializados nos demais países) para redução do custo de produ-

ção das mercadorias; c) a eliminação da concorrência através do controle: das fontes de

matérias-primas, do acesso ao progresso científico e tecnológico, do crédito e baixa tem-

porária dos preços; d) aquisição de empresas concorrentes menores ou fusões etc. A dis-

puta pelo controle dos mercados e fontes de matérias-primas leva a guerras imperialis-

tas, uma constante na história mundial há, pelo menos, um século.

Para Lenin (2012), na fase imperialista do capitalismo, sob a égide do capital fi-

nanceiro, ocorre um gigantesco processo de socialização da produção (embora a apropri-

ação seja privada), inclusive das invenções e dos aperfeiçoamentos técnicos. Com isto,

pode-se fazer um inventário aproximado de todas as fontes de matérias-primas. Mono-

poliza-se a mão de obra especializada; contratam-se os melhores engenheiros; apodera-

se das vias e meios de comunicação, ferrovias e companhias de navegação, que vão pa-

rar na mão dos monopólios. Para o autor, o capital financeiro é produto da fusão do ca-

pital bancário com o capital industrial.

A fusão do grande capital bancário com o grande capital industrial tem cadavez mais impacto na dinâmica capitalista e em todo seu funcionamento. Demeros intermediários do comércio do dinheiro, os grandes bancos passam aser fomentadores das sociedades anônimas (Lenin, 2012, p. 17).

Esta fusão do grande capital bancário com o capital industrial pode ser facilmente

verificada atualmente. De acordo com estudo de Vitalli et al (2011), naquele ano 50 cor-

porações controlavam 39,8% do PIB mundial através de sua rede de participação (socie-

dade-mãe, sociedades-filhas, sociedades-netas,...), das quais cerca de 75% eram bancos.

A grande maioria das corporações está localizada no eixo Estados Unidos-Inglaterra-

Alemanha-Japão, ou seja, no eixo constituído a partir do final da Segunda Guerra Mun-

dial que, sob a liderança do primeiro, passou a exercer o imperialismo no mundo a partir

de então. O banco inglês Barclays liderava a lista respondendo sozinho por 4,05% do

controle, conforme Figura 1.

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Figura 1 – Poder de controle das 50 maiores corporações mundiais

Fonte: Vitalli et all (2011).

As grandes empresas e marcas conhecidas, aquelas que se ouve falar no dia a dia,

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não aparecem na lista das 50 maiores corporações do mundo, já que a maior parte é con-

trolada por bancos. Estes bancos podem ainda possuir ações em empresas concorrentes

e, desta forma, forjar acordos, levando ao monopólio através de cartéis, trustes e sindi-

catos, como afirmava Lenin.

Por este motivo, estas empresas frequentemente se fundem, não somente porque

esta é uma tendência na economia capitalista, mas também porque o controle acionário

pode ser o mesmo, por estar sob o poder dos mesmos bancos. Não raras vezes empresas

são trocadas de mãos sem que quase ninguém perceba, pois se trata apenas de uma ope-

ração financeira, como parte de um acordo maior, definido por um conselho de poucos

acionistas, onde hora se compra e hora se vende.

O capital financeiro, característico desta fase imperialista-monopolista, não é sim-

plesmente capital bancário ou capital especulativo, mas a fusão entre o capital bancário

e o industrial. Por este motivo, bancos, empresas e fundos de investimentos, ao mesmo

tempo em que investem na produção, tomam empréstimos de governos e também com-

pram títulos da dívida pública, ou seja, tentam lucrar a partir dos diversos mecanismos

de que dispõem. Os títulos da dívida pública são um capítulo a parte, já que esta esfera

se desenvolveu muito após o trabalho desenvolvido por Lenin, em 1916, e hoje se cons-

titui em um aspecto importantíssimo para a compreensão do estado capitalista, já que

grande parte dos orçamentos públicos dos países semicoloniais é destinado ao pagamen-

to dos juros da dívida.

A figura abaixo apresenta o mapa da produção científica mundial, demonstrando

que esta se concentra nos países sede das empresas imperialistas.

Figura 2 – Mapa da produção científica mundial2

2 Disponível em: < http://hypescience.com/mapa-mundo-ciencia-producao-cientifica/> . Acesso em: 10 ago. 2015.

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Fonte: HypeScience.

As grandes empresas mundiais, responsáveis pela maior parte da produção de

ciência e tecnologia em seus países sede, desenvolvem no Brasil a inovação (elas

mesmas ou através de outras), adaptando para as condições da realidade nacional ou

reproduzindo o conhecimento já produzido.

Enquanto os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) destas

empresas são grandes nos países sede, mobilizando grandes centros de investigação, no

Brasil e demais países é muito reduzido, localizados normalmente em pequenos centros

de inovação. Em parte este papel de inovação é ocupado pelas universidades, que

recebem algum financiamento para validá-los.

A figura abaixo demonstra o valor gasto com pesquisa e desenvolvimento pelas

principais empresas e também os setores onde se encontram os maiores investimentos

em 2009. Naquele ano a Toyota foi a empresa que mais investiu: 19,2 bilhões de

dólares, praticamente o dobro do que no Brasil investiram juntos todas as empresas

privadas e os governos estaduais e federal e suas estatais.

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Figura 3 – As maiores empresas em P&D no mundo e os setores onde são realizados os maioresinvestimentos3

Além do controle da ciência e tecnologia, que permite exercer o domínio sobre

quem não as possui, para as empresas imperialistas, o controle das fontes de matérias-

primas (agrícolas e minerais) e da força de trabalho barata é fundamental tanto aos pro-

dutos destinados ao mercado externo quanto ao interno, este muito importante no caso

brasileiro, devido ao elevado número de unidades de bens de consumo ou capital que

podem ser comercializados localmente. A indústria automobilística, de maquinário agrí-

cola, e também a do setor de alimentos, com capital e tecnologia estrangeira produzem

em território nacional e destinam seus produtos a este mercado, além de exportar. Estas

indústrias necessitam, por exemplo, estabelecer acordos com as empresas (nacionais ou

estrangeiras) que exploram os minérios de ferro e alumínio que consomem no processo

de produção.

Nessa nova fase do capitalismo, mais importante do que exportar mercadorias é

exportar capital, de forma a garantir o processo de acumulação. Embora não seja o país

sede das principais empresas imperialistas, a China, por exemplo, anunciou recentemen-

3 Disponível em: http://www.senado.gov.br/NOTICIAS/JORNAL/EMDISCUSSAO/upload/201203%20%AD%20setembro/ed12_imgs/ed12_p33_info.jpg . Acesso em: 08 ago. 2015.

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te, em junho de 2015, investimentos da ordem de 160 bilhões de dólares em infraestru-

tura no Brasil e demais países da América do Sul, incluindo a construção da ferrovia que

irá ligar o Brasil ao Pacífico. Estes investimentos permitem baratear o custo com trans-

porte de grãos e minérios, controlar importantes vias de escoamento de matéria-prima e,

ao mesmo tempo, exportar capital e contribuir com o processo de acumulação, benefici-

ando seus bancos, construtoras, além do desenvolvimento de suas tecnologias etc.

O governo brasileiro fez isso (exportação de capital) em pequena escala com a

construção do porto de Mariel, em Cuba, cujo financiamento foi do Banco Nacional de

Desenvolvimento - BNDES direto ao caixa da construtora Odebrecht, a maior interessa-

da nesta obra. Isso ocorreu com o financiamento de outras obras na América do Sul e

África, projetos desenvolvidos com recursos públicos que vieram a viabilizar a acumu-

lação e expansão de mercado das construtoras.

No capitalismo imperialista-monopolista, em que pese todo o desenvolvimento

nos sistemas de transportes, o controle de rotas comerciais continua existindo e tem

peso no custo final das mercadorias, barateando ou encarecendo. Ou seja, faz parte das

práticas imperialistas pelo controle de mercados. É por este motivo que a China, mesmo

que não represente um sistema independente em relação ao imperialismo das empresas

localizadas nos EUA e na Europa, procura construir seus próprios canais interoceânicos

(Nicarágua, por exemplo) e grandes ferrovias que possibilitem o acesso a rotas comerci-

ais alternativas, na tentativa de escapar das rotas controladas pelas empresas norte-ame-

ricanas.

Atualmente o controle da transmissão de dados assume importância extremamente

grande, já que os fluxos de mercadorias e informações se elevaram muito. No caso bra-

sileiro, todas as informações passam por redes localizadas nos Estados Unidos. O siste-

ma de posicionamento global (GPS) também está localizado naquele país, de forma que

recentemente o ministro Mangabeira Unger, do Planejamento Estratégico, afirmou que

se os EUA desligarem o GPS a marinha brasileira voltará a se guiar por cartas. As de-

núncias realizadas por Snowden são reveladoras do poder de controle exercido pelos

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norte-americanos, através de um grupo reduzido de empresas que centralizam e contro-

lam estas informações sobre pessoas e empresas do mundo inteiro.

Além do controle do fluxo de informações, outro aspecto importante do imperia-

lismo é o controle sobre a dívida pública, cujos mecanismos são pouco conhecidos.

Como detentores dos títulos, os grandes bancos têm o poder de definir a taxa básica de

juros, as metas de inflação e superávit primário. No Brasil isto é materializado no Con-

selho de Política Monetária – Copom, onde representantes dos bancos possuem a quase

totalidade dos assentos. Ou seja, além do lucro monopolista, o capital financeiro se be-

neficia também dos ganhos obtidos a partir do controle das dívidas dos Estados e pas-

sam a definir a política econômica e a própria política dos países imperialistas e semico-

loniais.

As potências econômicas também o são em termos militares. Como afirma Arruda

(2014), a buscar pelo controle de mercados e áreas de influência é constante. Esta divi-

são não é feita somente com diplomacia. Por este motivo, as nações imperialistas, sedes

das empresas imperialistas, estão o tempo todo agindo militarmente, de forma aberta ou

velada. Para isso contam com a conivência dos governos locais, onde instalam bases de

apoio militares e os seus “serviços de espionagem”. Além do uso da força, contam tam-

bém com os mecanismos ideológicos de consenso.

O capital financeiro atinge todos os ramos da produção, incluindo a agricultura,

que passa a ficar sob seu controle.

O IMPERIALISMO NO CAMPO

O campo também se encontra sob o domínio do capital financeiro, imperialista. A

genética de aves comerciais, por exemplo, é controlada quase totalmente por apenas

duas empresas no mundo todo – Cobb e Ross, que possuem pesquisas com raças puras

há mais de 50-60 anos, de onde são produzidas as linhagens comerciais. Todas as em-

presas que atuam na produção de frangos no país são dependentes da genética produzida

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por estas empresas.

No setor de sementes comerciais, cinco empresas (Monsanto, Du Pont, Dow, Ni-

dera e Syngenta) controlam praticamente a totalidade do mercado brasileiro das princi-

pais espécies agrícolas (soja, milho, trigo, arroz, feijão, algodão e hortaliças), de acordo

com Londres e Almeida (2009), conforme se demonstra no quadro abaixo, que também

apresenta informações de outros setores da agricultura:

Quadro 1 – Empresas estrangeiras que monopolizam ou oligopolizam os diversos setores daagricultura no Brasil

Setores Empresas

ColheitadeirasAGCO (Massey Ferguson e Valtra), CNH (Case e New

Holland) e John Deere – 100% do mercado em 2014

TratoresAGCO (Massey Ferguson e Valtra), CNH (Case e New

Holland) e John Deere – 93% do mercado em 2014Equipamentos agrícolas,

armazenagem de grãos, alimentação

animal

AGCO (GSI, Agromarau, Integra-Pro), CNH.

FertilizantesBunge, Mosaic e Iara (75% dos fertilizantes são

importados)Sementes Monsanto, Du Pont, Dow, Nidera e SyngentaAgrotóxicos Monsanto, Basf, Syngenta, Bayer, Dow, DuPontGenética de aves Cobb e RossGenética de suínos Agroceres-Pic, Dalland e Seghers.

Genética de bovinosAlta Genetics, Semex, Selected Sires, CRI-Genex, ABS,

CRV Lagoa.

IndustrializaçãoCargill, Bunge, Nestle, Parmalat, Unilever, Sara Lee,

StarBucks, Kraft FoodsExportação de grãos Bunge, Cargill, ADM e Louis DreyfusFinanciamento agrícola AGCO, Cargill, Bunge

Fonte: elaborado pelo autor a partir de Anfavea (2015), Anda (2015), Londres e Almeida (2009) e site dasempresas.

Na agricultura, além de atuarem na industrialização dos alimentos, produção de

máquinas, venda de fertilizantes, controle genético, exportação de grãos e outros, as em-

presas imperialistas também respondem pelo financiamento, principalmente aos grandes

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produtores. Desta forma possuem o controle de todos os ramos da produção. Esse capi-

tal financeiro, que no Brasil se beneficia dos recursos naturais abundantes e força de tra-

balho barata, está intimamente ligado, na forma de aliança, com o latifúndio.

Travestido de agronegócio, o latifúndio continua muito importante no Brasil. Em

2003 eram 22 imóveis com mais de 100 mil hectares e em 2012 já eram 219, de acordo

com o Incra, citado por Girardi (2014). A área que controlavam que era de 8,3 milhões

de hectares em 2003 passou para 72,9 milhões em 2012, crescimento de 767% em ape-

nas nove anos, conforme a Figura 4. A área média destes imóveis é de mais de 330 mil

hectares, equivalente a pequenos 10 municípios, e juntos controlavam uma área equiva-

lente aos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e metade de São Paulo.

Figura 4 – Estrutura fundiária no Brasil – 2003 e 2012

Fonte: Girardi et al (2014).

A rápida elevação da área sob o controle do latifúndio no Brasil deve ser objeto de

pesquisa, mas são duas as causas mais prováveis: o avanço sob áreas de camponeses e

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indígenas, através da expulsão e compra por preços baixos, e a regularização de áreas

griladas. A compra de terras por grandes grupos econômicos, nacionais e estrangeiros,

torna-se apenas mais uma operação financeira, principalmente quando se trata de gran-

des áreas destinadas para a produção agrícola, mineração ou energia.

Se de um lado há os grandes proprietários (latifundiários), por outro há um grande

número de proprietários com pouca terra, áreas inferiores ao módulo fiscal, como pode

se verificar na tabela acima. Em função do processo de regularização fundiária, a área

total dos imóveis de todos os estratos se elevou entre 2003 e 2012, no entanto, o aumen-

to foi muito superior nos estratos maiores, principalmente daqueles com mais de 100

mil hectares (Girardi et al, 2014). Há também no Brasil cerca de 4,6 milhões de traba-

lhadores assalariados rurais, entre temporários e permanentes, uma parte formada por

camponeses com pouca terra que vendem também a força de trabalho aos latifundiários

como forma de melhorar seus ganhos.

É a partir do domínio imperialista e do latifúndio que se desenvolve a luta de clas-

ses no campo.

A LUTA DE CLASSES NO CAMPO

(...) Tais fenômenos são resultantes da passagem do capitalismo à sua fasemonopolista, em que três de suas características essenciais — hegemonia docapital financeiro, exportação de capitais e política colonial — moldam suaação sobre os países atrasados numa relação de dominação; se apóia nessabase de relações pré-capitalistas — escravistas, semiescravistas , feudais, se-mifeudais — e impulsiona os capitais originados destas relações. O que im-plica em manter e aprofundar, tanto aquelas relações arcaicas determinandoum tipo particular de desenvolvimento capitalista, o burocrático, quanto umsubmetimento à sua dominação mais completa, impedindo que a formação danação se complete e que esta se desenvolva de forma independente. Confor-mam-se assim, numa "associação" terrível de três forças reacionárias: imperi-alistas, grandes burgueses e latifundiários, na qual, os dois últimos são con-trolados e servem às primeiras, e juntas oprimem o proletariado, o campesina-to, a pequena e média burguesias (ARRUDA, 2014, p. 12).

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As informações até então apresentadas nos levam a concluir que o Brasil é um

país semicolonial, sob o jugo do imperialismo, em aliança com o latifúndio. É importa-

dor de tecnologias produzidas nos países de capitalismo central, que são adaptadas aqui.

Os valores relativos ao investimento em P&D são bastante elucidativos deste lugar.

Para Arruda (2014), as três forças reacionárias são os imperialistas, grandes bur-

gueses e latifundiários, que juntos oprimem o proletariado, o campesinato e a pequena e

média burguesia, o que define o quadro sob o qual se desenvolve a luta de classes. Para

tanto, as forças reacionárias se valem de relações pré-capitalistas, feudais, semifeudais,

escravistas e semiescravistas. Estas relações impedem o desenvolvimento da nação e

que esta se desenvolva de forma independente.

Além disto, os países semicoloniais estão sujeitos às “perdas internacionais”, tal

como definido por Benayon (2015), resultantes dos mecanismos comerciais internos

destas grandes empresas que se utilizam de diversos mecanismos para o envio de lucros

aos países sede sem o pagamento de impostos, como a exportação e importação por pre-

ços abaixo ou acima do valor real; cobrança por serviços e assessorias da matriz à subsi-

diária por preços mais altos; empréstimos da sede para as empresas subsidiárias por ju-

ros mais altos etc. Estes são mais alguns dos mecanismos utilizados pelo imperialismo

para drenar as riquezas dos países coloniais e semicoloniais, em particular da classe tra-

balhadora e da pequena e média burguesia. Estes mecanismos e as remessas legais de lu-

cro para as sedes das empresas deveriam contribuir para questionar os tais saldos positi-

vos da balança do agronegócio e a aliança imperialismo-latifúndio.

Em um país produtor de matérias-primas, como o Brasil, a terra confere muito po-

der. É por este motivo que a Frente Parlamentar Agropecuária pode chegar a 273 mem-

bros, praticamente metade do Congresso Nacional. No âmbito municipal, quem controla

a terra, os grandes proprietários fundiários, controla também a política, define quem vai

ser o prefeito, o deputado e possui um braço no cartório e outro nos tribunais.

O conceito de agronegócio, embora considere que o agro é um todo imbricado no

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sistema do capital, o que é correto, pode levar a conclusão que o latifúndio teria se mo-

dernizado e hoje concorreria eficazmente no mercado mundial de commodities agríco-

las, sem destacar as consequências negativas da concentração de terras e o seu papel de

controle sobre as esferas políticas e jurídicas. A utilização do conceito de agronegócio

não define, portanto, a centralidade da luta e nenhum grau de importância diferenciado

da luta pela terra.

A luta pela terra é instrumento da luta de classes e da formação da consciência da

classe trabalhadora do campo, além de enfrentamento contra o sistema imperialista-lati-

fundiário. Arruda afirma que o programa agrário deve promover a:

1) Extinção do latifúndio nas áreas de desenvolvimento e consolidação domovimento camponês, com imediata mudança do caráter da propriedade daterra e dos demais meios de produção. Entende-se que a extinção do latifún-dio, como instituição e classe social, leva à extinção das relações semifeudaisno campo, ao menos nas áreas ocupadas pelo movimento camponês.

2) Libertação e desenvolvimento das forças produtivas no campo (do homem,da técnica, dos instrumentos de produção, dos hábitos de trabalho e das tradi-ções de ofício), através da implantação de propriedades individuais de estru-tura coletiva que comportem pequenos lotes, com consequente aumento daprodutividade e produção agrícolas, estabelecendo novas relações de produ-ção, assentadas numa crescente cooperação, que desenvolva do nível inferiorao superior; e

3) Estabelecimento do poder político das massas trabalhadoras nas áreas ondese processa a libertação das forças produtivas, incorporando os camponesespobres, assalariados agrícolas e fazendeiros que se opõem à política latifun-diária, burocrática e imperialista vigente em nosso país (Arruda, 2014, p. 05).

O autor acrescenta ainda que este programa não deve ser destinado a "desenvolver

o capitalismo no campo", nem mesmo a colocar em prática um “suposto socialismo

camponês”, mas “impulsionar e desenvolver plena e crescentemente as forças produti-

vas sob o poder das massas trabalhadoras para conduzir o controle dos meios de produ-

ção e à nacionalização de toda a terra tornada de usufruto social” (Arruda, 2014, p. 06).

Acrescenta ainda que se trata de um papel histórico para preparar as transformações em

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toda a sociedade, para uma nova sociedade. Neste sentido, para o autor, o caminho do

movimento camponês se choca com toda a política do Estado e seus projetos opostos e

excludentes. Choca-se também com os programas reformistas atrelados pelas composi-

ções eleitoreiras em curso no Brasil nos últimos anos, que por forma e conteúdo se pren-

dem ao Estado e, por consequência, a política das classes antagônicas.

REFERÊNCIAS

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José Garcia; VIEIRA FILHO, José Eustáquio Ribeiro; NAVARRO, Zander (orgs).

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ORGANIZAÇÃO, ESTRATÉGIA POLÍTICA E O PLANONACIONAL DE EDUCAÇÃO1

Roberto Leher2

Introdução: a atualidade da luta de classes na análise da

educação do Século XXI

Embora muitos educadores sustentem que a tese de que a luta de classes na educa-

ção está superada, os setores dominantes insistem em não concordar com isso. Em seus

principais centros de pensamento estes últimos dedicam-se a pensar a educação como

uma prática capaz de converter o conhecimento e a formação humana em “capital huma-

no”, formulação altamente legitimada por prêmios Nobel (Friedman,1976; Schultz,

1979; Becker, 1992) e incorporada organicamente pelos intelectuais coletivos do capital

(Banco Mundial, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento

Econômico/OCDE, Fundação Ford,Open Society Foundation), por entidades empresari-

ais (Confederação Nacional da Indústria, a Confederação Nacional da Agricultura, a As-

sociação Brasileira do Agronegócio), por suas fundações e, também, pelas coalizões em-

presariais de organização da classe “para si”(como o Movimento Todos pela

Educação/TPE3). A ação dos setores dominantes nada tem de proclamatória, visto que

lograram convertê-la em política de Estado, por meio de leis nacionais e regionais, assi-

miladas pelos governos como referências de seus programas e políticas.

1 O presente texto tem como base a exposição apresentada no curso de especialização do MST, organizado noColetivo CANDEEIRO e o Centro de Estudo, Pesquisa e Ação em Educação Popular – CEPAEP, Faculdade deEducação da USP, 27/11/2009. A presente versão foi revista e ampliada em outubro de 2014.

2 Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pesquisador do Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e colaborador da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).

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1. A educação que convém ao capital: como os setores

dominantes operam na educação

A elaboração mais sofisticada em prol da educação capitalista foi realizada por au-

tores neoclássicos, reunidos, especialmente, na Universidade de Chicago. Legitimada

politicamente por sucessivos prêmios Nobel (Schultz, Friedman, Becker), a chamada te-

oria do capital humano (TCH) atribui à educação um lugar estratégico capaz de produzir

ganhos adicionais para o capital, desde que a socialização (em sentido durkheimniano)

seja bem orientada e o adestramento profissional seja congruente com as demandas do

capital. Esta formulação chegou ao Brasil por meio da Aliança para o Progresso, como

um antídoto aos movimentos em prol da educação e da cultura popular nos luminosos

anos 1960, abrangendo a criação da Universidade de Brasília, por Anísio Teixeira e

Darcy Ribeiro, os Centros Populares de Cultura apensados à União Nacional dos Estu-

dantes (renovando a poesia – com Ferreira Gullar, o teatro – com Vianinha, o documen-

tário – com Eduardo Coutinho etc.) e, em especial, pela alfabetização como um ato pe-

dagógico de conscientização (Paulo Freire em Angicos, “De Pé no Chão Também se

Aprende a Ler” em Natal).

Com o golpe empresarial-militar,a educação passa a ser temados Chicago-boys,da

Aliança para o Progresso – que passou a enfrentar mais diretamente o “perigo” que re-

presentava o marxismo nas universidades brasileiras – e dos “reformadores” da Agência

3 “Compromisso Todos pela Educação”: movimento lançado em 6 de setembro de 2006, no Museu doIpiranga, em São Paulo. Esse movimento, apresentado como uma iniciativa da sociedade civil e queconclama a participação de todos os setores sociais, foi constituído, de fato, como um aglomerado degrupos empresariais com representantes e patrocínio de entidades como o Grupo Pão de Açúcar, aFundação Itaú-Social (Milú Villela, presidente do Museu de Arte Moderna de São Paulo, do Instituto ItaúCultural, do Faça Parte-Instituto Brasil Voluntário e agora também do Comitê Executivo do“Compromisso Todos Pela Educação”), a Fundação Bradesco, o Instituto Gerdau, o Grupo Gerdau, aFundação Roberto Marinho, a Fundação Educar-DPaschoal, o Instituto Ayrton Senna, a Cia. Suzano, oBanco ABN-Real, o Banco Santander, o Instituto Ethos, entre outros (Ver SAVIANI, D. O Plano deDesenvolvimento da Educação: análise da proposta do MEC, Educ. e Soc., V. 28, n.100, Out. 2007;Evangelista, O. e Leher, R. Todos pela Educação e o episódio Costin no MEC: a pedagogia do capital emação na política educacional brasileira, Revista Trabalho necessário, n.15/ 2012, disponível em:http://www.uff.br/trabalhonecessario/images/TN1519%20Artigo%20Roberto%20Leher%20e%20Olinda%20Evangelista.pdf).

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dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (em inglês, United StatesA-

gency for InternationalDevelopment/USAID) e do Conselho Federal de Educação (ago-

ra fortalecido em virtude de sua aliança com a ditadura). Nesse contexto, a contrarrefor-

ma da educação avançou, produzindo novos marcos para a universidade (Lei 5.540/68)

e para a educação básica (Lei 5.692/71), esta última explicitamente referenciada na for-

mulação do capital humano, chegando a propugnar a profissionalização massiva e com-

pulsória do ensino médio (na época, Segundo Grau). A despolitização da educação foi

encaminhada por meio do tecnicismo educacional importado dos EUA a partir de peda-

gogos e especialistas que realizaram suas pós-graduações neste país (período de ouro

dos supervisores, dos orientadores, dos especialistas em medidas educacionais/avalia-

ção), retirando a educação pública dos embates políticos. Até mesmo a União dos Pro-

fessores Primários do Brasil se somou a esse processo. A expansão de escolas agrotécni-

cas e da assistência técnica rural estiveram organicamente vinculadas à chamada Revo-

lução Verde, auspiciada pelo Banco Mundial em sua ofensiva contrainsurgente.

Nas lutas de resistência à ditadura, outra agenda foi sendo erigida nos espaços de

produção do conhecimento crítico nas universidades e, de modo menos sistemático, nas

organizações associativas que, após a Constituição de 1988, seriam transformadas em

sindicatos, em especial nas Conferências Brasileiras de Educação (CBE) e nas Reuniões

Anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Com a contribui-

ção de intelectuais como Demerval Saviani, a discussão da escola politécnica, da escola

unitária “desinteressada”, referências marxistas e gramscianas ganharam força na pós-

graduação em educação dos anos 1980, em especial no contexto da constituiçãodo Fó-

rum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP) em 1987, objetivando intervir no

processo da constituinte. Com vitórias relativas na Constituição e derrotas relevantes na

Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o FNDEP, agora impulsionado por com-

bativos sindicatos da educação, se tornou o principal articulador das lutas educacionais.

Este movimento foi magnificado com os Congressos Nacionais de Educação (CONED),

convocados a partir de 1996, com o objetivo de elaborar um novo Plano Nacional de

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Educação (PNE).

Em virtude da correlação de forças negativa para os trabalhadores nas duas últi-

mas décadas do século XX, expressa na redução abrupta do número de greves anuais

(que passam de mais de 2,5 mil por ano em 1989 para menos de 500 greves no final da

década), o capital – operando também por meio do Estado – impôs transformações ainda

mais profundas na educação da classe trabalhadora. A perspectiva universalista de que a

escola pública deveria assegurar uma formação geral igualitária a todos os estudantes

por meio da garantia, pelo Estado, da educação pública, gratuita e estruturada em siste-

mas nacionais, foi combatida em prol de políticas focalizadas, referenciadas na pedago-

gia das competências, atributos utilitaristas que objetivam a adaptação das crianças e jo-

vens ao ethos capitalista e, mais precisamente, ao chamado novo espírito do capitalis-

mo4 flexível, fundamentado no trabalho superexplorado e precário.

Nos anos 1990, essas concepções já circulam também nas universidades. Imbuídas

direta ou indiretamente da noção das escolhas racionais (chamadas de teorias das esco-

lhas racionais) difundida por neoliberais como James Buchanan, Gordon Tullock e Man-

curOlson, essa formulação, em virtude do individualismo metodológico, está harmoni-

zada com a ideologia do capital humano. Neste prisma, os agentes educacionais buscam

maximizar os benefícios da educação (e em especial da educação moral), em relação aos

recursos disponíveis. Este benefício tem a ver com o ethos capitalista, daí a ênfase na

socialização por meio de valores e disposições de pensamento. Docentes nas áreas de

economia, da ciência política e da sociologia e, neste rastro, em geral, como cópia, da

educação, ecoam essas noções advindas de centros do pensamento conservador nos

EUA e Inglaterra.

Igualmente em expansão na universidade,a perspectiva pós-moderna, preocupada

com as opressões, é crítica em relação à agenda neoconservadora, mas não enfrenta a

ofensiva do capital, recontextualizando, de distintos modos, a agenda do novo espírito

4. BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. Le nouvele sprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999.

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do capitalismo (flexibilidade, autorregulação e autonomia, individualismo, identidades,

antiestatismo, celebração de uma edulcorada sociedade civil, crítica à história e à pró-

pria teoria), sem tornar pensável o modo de produção capitalista em seus nexos com a

educação. A combinação inusitada, pois não desejada, entre neoliberais e pós-modernos,

afasta a teoria da educação das lutas de classes, combinando capital humano, competên-

cias, “oportunidades educacionais”, “escolhas racionais” com o culturalismo, a identida-

de e o relativismo epistemológico.

Observando retrospectivamente esse período de hegemonia neoliberal, seja em sua

versão original (Carlos Menem, Argentina; Sanchez de Lousada, Bolívia; Andrés Perez,

Venezuela; Alberto Fujimori, Peru; Salinas de Gortari, México etc.), seja em sua feição

social-liberal (com os chamados governos progressistas na Argentina, Brasil, Chile,

Equador, Uruguai), é possível constatar que a expansão da oferta da escola pública nos

países capitalistas dependentes – uma realidade na educação básica e em certas modali-

dades de educação profissional – está sendo acompanhada de drástico esvaziamento de

seu conteúdo científico, histórico-cultural, tecnológico e artístico.

Com efeito, o próprio conhecimento foi relexicalizado pela noção de competência,

uma expressão importada da administração que nada tem de científica, conforme aponta

Helena Hirata5. Entretanto, esta noção foivisceralmente incorporada pelos agentes do ca-

pital (Todos pela Educação, Associação Brasileira do Agronegócio/ABAG, Confedera-

ção Nacional da Indústria/CNI etc.), pelos organismos internacionais (como o Banco

Mundial e a OCDE) ao implementar seu sistema mundial de avaliação padronizada e,

ainda,pelo Projeto Tuning de competências mundiais na educação superior de menor

complexidade e mercantil.

Na educação básica, este processo vem ocorrendo por meio de uma miríade de ini-

ciativas articuladas que pretende erodir os últimos fundamentos públicos da educação

5. HIRATA, Helena, Da polarização das qualificações ao modelo da competência. In: FERRETTI, Celso João,ZIBAS, Dagmar M. L., MADEIRA, Felícia R., FRANCO, Maria Laura P. B. (Org.). Novas tecnologias, trabalho eeducação — um debate multidisciplinar. Petrópolis: Vozes, 1994.

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em prol de uma escola em que o que é dado a ensinar está limitado a livros didáticos e,

cada vez mais, a apostilas elaboradas por corporações que, no lugar de conhecimentos

científicos, veicula os referidos descritores de competências a serem aferidos pelos siste-

mas centralizados de avaliação que dão suporte ao Índice de Desenvolvimento da Edu-

cação Básica (IDEB).

Após um período de perda de credibilidade nos governos e na universidade (em

especial nos anos de fortalecimento das lutas sociais nos anos 1980), a mudança na cor-

relação de forças possibilitou que o Banco Mundial afirmasse a supremacia inconteste

da TCH, em 1994. Com apoio da USAID, da Fundação Ford, entre outras, foi constituí-

do um centro de pensamento reacionário para orientar “corretamente” as reformas edu-

cacionais da América Latina: o Programa de Reforma Educativa da América Latina e

Caribe (PREALC). O eixo geral do Programa era a qualidade da educação, um objetivo

que os professores e a rede pública teriam fracassado, justificando o protagonismo de

uma edulcorada sociedade civil, a rigor, o empresariado. Em 2001, setores industriais

organizaram o Movimento Brasil Competitivo (MBC), liderado por Jorge Gerdau Jo-

hannpeter.

Em conformidade com o MBC, Fernando Henrique Cardoso modificou a forma-

ção profissional com o Decreto 2.208/97, dissociando a formação profissional e a educa-

ção geralpropedêutica. Em aliança com o Banco Mundial criou,inicialmente por meio de

planos-piloto no Nordeste brasileiro,o Fundo de Fortalecimento da Escola/FUNDESCO-

LA, focando não mais as redes, mas as unidades escolares, ressignificando os projetos

políticos pedagógicos como ‘plano de gerenciamento escolar’. Os diretores passaram

então a ser gestores, o léxico da administração invadiu a escola: metas, eficiência, quali-

dade total etc. Coerente com esse novo modelo, instauraram: programas de financia-

mento dirigidos diretamente a escola como o Programa Dinheiro Direto na

Escola/PDDE, um Sistema de Avaliação Básica referenciado no Programa Internacional

de Avaliação de Alunos/PISA (Sistema de Avaliação da Educação Básica/SAEB) e o

FUNDEF, objetivando focalizar a ação do Estado sem ampliar os recursos. A gestão efi-

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caz, nesse prisma, é aquela comprometida com os resultados e, por isso, é aquela que

tem foco na aprendizagem. A dimensão ensino vai sendo apagada e, com ela, o trabalho

docente.

Já no governo Lula da Silva, em 2006, expressando a liderança do setor financeiro

no bloco no poder e no Estado Maior do Capital, os bancos convocaram uma nova coa-

lizão, mais ampla e orgânica, para interferir na educação, o já apresentado TPE. Atuando

na forma de partido, o movimento reuniu e agregou as iniciativas burguesas na educação

até então dispersas, estabeleceu uma agenda na forma de metas e compromissos de to-

dos pela educação (inicialmente 10 Causas e 26 Compromissos, depois sintetizados) e

organizou um robusto aparato de circulação de suas ideias nos grandes meios de comu-

nicação, situação facilitada pela adesão dos mesmos ao TPE6.

Buscando tornar a sua agenda Estado, os bancos, liderados pela holding Itaú-Uni-

banco, convocaram o Conselho de Secretários de Educação, a União dos Dirigentes Mu-

nicipais de Educação e o próprio Ministério da Educação, então liderado por Fernando

Haddad, para o TPE, no que foram prontamente atendidos. Explicitamente, os bancos

sustentam um projeto de nação dita moderna e competitiva.

Uma importante vitória desse movimento foi o convencimento do governo Lula da

Silva de incorporar a sua agenda como política governamental, o que foi efetivado com

o Plano de Desenvolvimento da Educação/PDE (Decreto 6.094/07, Lei 12.695/12, lei

13.005/14) que, não casualmente, foi batizado por Haddad como “PDE: Compromisso

Todos pela Educação”. Uma importante ferramenta de política educacional foi conquis-

tada pelo empresariado: a criação do IDEB. Agora, não apenas o sistema de avaliação

afere se as escolas estão no “caminho certo”, como podem impor metas e, com isso, in-

terferir no próprio planejamento das escolas, agora balizado por índices palpáveis, quan-

titativos, aferíveis pela avaliação centralizada. As escolas e os professores tornaram-se

reféns de índices que esvaziam o sentido público da escola, reduzem o que é dado a pen-

6 Para um excelente histórico do TPE ver Erika Moreira Martins - Movimento Todos pela Educação: um projeto denação para a educação brasileira. Dissertação de Mestrado, Unicamp, 2013.

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sar (competências em português e matemática, desconsiderando as demais dimensões da

formação humana) aprofundando o apartheid educacional entre as classes sociais.

Como assinalado, a adesão ao plano de Metas é obrigatório para que as escolas sejam

cadastradas no módulo do Programa de Ações Articuladas, sem o qual a escola não pode

contar com os programas federais como Escola Ativa (campo), Mais Educação, Progra-

ma Nacional de Tecnologia Educacional/ PROINFO e Programa Nacional de Reestrutu-

ração e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação

Infantil/PROINFANCIA.

A simplificação da formação, na ótica do capital, não é irracional (no sentido

apontado da dita teoria das escolhas racionais). Em virtude do fortalecimento do eixo da

economia intensiva em recursos naturais (Gonçalves, 2003)7, da concentração mono-

pólica em umas poucas corporações localizadas em etapas específicas das fracionadas

cadeias produtivas (a exemplo das Montadoras de automóveis), da expansão desenfrea-

da do setor de serviços de baixa complexidade8 (onde se situa a juventude que compõe o

precariato), do imenso exército industrial de reserva a ser socializado9, os setores domi-

nantes compreendem que as escolas podem ser convertidas em um espaço de educação

minimalista.

De fato, o padrão de acumulação, na ótica dos setores dominantes, prescinde da

formação com maior complexidade científica e cultural da juventude trabalhadora. A

ideia geral é que a grande maioria dos postos de trabalho é constituída por atividades

que requerem modesta escolarização. A educação, focalizando os arranjos produtivos

locais (cuja expressão educional mais relevante é o PRONATEC, sob a direção do Siste-

7 GONÇALVES, R. Desenvolvimento às avessas: verdade, má-fé e ilusão no atual modelo brasileiro dedesenvolvimento. Rio de Janeiro: LTC, 2013.

8 “Não estamos caminhando para uma sociedade homogênea, medianizada, mas para uma sociedade maispolarizada”. Entrevista especial com Márcio Pochmann, Instituto HumanitasUnisinos, Sexta, 27 de junho de 2014,disponível em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/nao-estamos-caminhando-para-uma-sociedade-homogenea-medianizada-mas-para-uma-sociedade-mais-polarizada-entrevista-especial-com-marcio-pochmann/532719-nao-estamos-caminhando-para-uma-sociedade-homogenea-medi#

9 GRANATO NETO, N.N.; GERMER, C.M. A evolução recente do mercado de força de trabalho brasileiro sob aperspectiva do conceito de exército industrial de reserva.Revista Ciências do Trabalho, v.1, n.1, 2013.

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Page 39: V SEMINÁRIO NACIONAL · Pretendemos com esse texto trazer presente sucintamente a política do Programa ... Essa experiência, como nos lembra Thompson (1981) é resultado de processos

ma S.) pode ser menos sofisticada (conformando arranjos educativos locais), asseguran-

do o que a pedagogia hegemônica denomina de competências básicas, vinculadas ao

aprender a aprender analisadas por Newton Duarte10, sem a universalização de conheci-

mentos científicos explicativos dos processos naturais e da sociedade.

Com efeito, a despeito da elevação relativa da escolaridade da População em Ida-

de Adulta/PIA (formalmente 7,6 anos, 2013), 90% dos novos empregos formais da últi-

ma década são postos de trabalho superexplorados cuja remuneração não ultrapassa 2

salários mínimos11. Justamente por manter um grau brutal de exploração do trabalho e

inclementes expropriações (como no campo, processo que levou a reconcentração da

propriedade fundiária, conforme observou Gonçalves, 2013, nota 11), o país foi notabili-

zado como um dos mais notáveis emergentes, cujo produto interno bruto/PIB, impulsio-

nado pelas commodities, chegou a constituir o oitavo PIB mundial. Assim é o capitalis-

mo dependente no qual coexistem o dito moderno com o arcaico, como salientou Flo-

restan Fernandes12.

Esse processo de esvaziamento da formação das crianças e jovens não pode ser

pensado de forma desvinculada da concentração e centralização dos grandes meios de

comunicação que atuam no mesmo sentido da pedagogia da hegemonia13. Além da in-

tensa e densa formação extraescolar, por meio de novelas, noticiários, programas volta-

dos para a juventude, realitiesshows, as corporações atuam de modo sistemático nas es-

colas, vendendo pacotes tecnológicos, como a Fundação Roberto Marinho (tele ensino)

e livros didáticos (grupo Abril) e, com o ingresso de outras corporações do setor editori-

10. DUARTE, Newton. As pedagogias do aprender a aprender e algumas ilusões da assim chamada sociedade doconhecimento. Revista Brasileira de Educação, Set/Out/Nov/Dez 2001 Nº 18, disponível em:http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n18/n18a04

11. Ver nota 12, entrevista Pochmann.

12. FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil. Um ensaio de interpretação sociológica. Rio deJaneiro: Zahar, 1974.

13. Termo de inspiração gramsciana difundido de forma original por Lúcia Maria Wanderley Neves e A.A. S de Meloem A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capitalpara educar o consenso. SP: Xamã, Coletivo de Estudossobre Política Educacional, 2005.

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al, apostilas (Pearson, Positivo etc.) e equipamentos. Cabe assinalar que esses suportes

tecnológicos estão alicerçados pelas competências e muitas vezes contribuem para a me-

lhoria do IDEB, justificando, assim, os pacotes nas escolas, realimentando o ciclo vicio-

so do lucro das corporações com empobrecimento da formação das crianças e jovens da

classe trabalhadora. A presença aberta do capital nas escolas é apenas a ponta do iceberg

da ação do capital na educação brasileira14.

De fato, a formação cultural da grande maioria das crianças e jovens brasileiros é

quase que monopólio dos setores dominantes. Esse processo de controle do aparato edu-

cativo pelo capital é tão naturalizado que já não causa constrangimento ao governo Fe-

deral (no Plano de Desenvolvimento da Educação, no Programa de Ações Articuladas,

no Plano Nacional de Educação/ Lei 13.005/14 e na defesa da direção do Sistema S, di-

rigido pelo patronato, sobre o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Em-

prego/PRONATEC, via-de-regra em cursos de curtíssima duração: 90% de até 150 ho-

ras) e aos governos estaduais e municipais (por meio da assessoria das fundações que

operam o referido movimento empresarial, como Airton Senna, Bradesco, Itaú-Cultural,

Vitor Civita, Roberto Marinho, Santander, Gerdau, entre outros) assumirem que quem

tem real legitimidade para falar sobre a educação são as entidades empresariais, congre-

gando as corporações do agronegócio e do setor mineral, os meios de comunicação e as

empresas de telefonia-internet, a indústria editorial, bem como os bancos e as financei-

ras15.

Se os setores dominantes tomam de assalto a educação pública – não se limitando

ao seu já amplo aparato educativo privado que alcança mais de 75% dos estudantes da

educação superior – é porque, evidentemente, compreendem que imprimir a direção in-

14 PINHEIRO, Daniele Cabral de Freitas Educação sob Controle do Capital Financeiro: o Caso doPrograma Nacional do Livro Didático, Dissertação de Mestrado, PPGE, UFRJ, 2014.

15. EVANGELISTA, O.; LEHER, R. Todos pela Educação e o episódio Costin no MEC: a pedagogia docapital em ação na política educacional brasileira.Revista Trabalho necessário, n.15/ 2012, disponível em:http://www.uff.br/trabalhonecessario/images/TN1519%20Artigo%20Roberto%20Leher%20e%20Olinda%20Evangelista.pdf ).

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telectual e moral é relevante para a reprodução do capital, especialmente na educação

básica, justo onde o Estado ainda mantém grande parte das matrículas (e, evidentemen-

te, em toda a multifacetada malha de organizações públicas e privadas de educação pro-

fissional).

O interesse das entidades empresariais pela educação deve-se também ao fato de

que, para os movimentos anticapitalistas, a educação é parte da estratégia revolucionária

no século XXI. Embora de modo parcial, molecular, as principais lutas antissistêmicas

incorporaram o tema da educação popular como uma prioridade político-estratégica. Os

mais proeminentes movimentos sociais estão tomando para si mesmos as tarefas de for-

mação política de seus militantes e de educar suas crianças e jovens. As experiências

dos zapatistas, com as juntas do bom governo, da Assembleia dos Povos de Oaxaca

(APPO) no México, da CLOC-Via Camponesa, da Coordenação Nacional dos Povos In-

dígenas do Equador (CONAIE) e do Movimento dos Sem Terra (MST) no Brasil estão

inscritas nesses processos. Obviamente, essas iniciativas, ainda que fragmentadas, não

passam despercebidas pelo capital.

Para impedir que os trabalhadores façam da educação pública um espaço de edu-

cadores auto-organizados em conselhos, os setores dominantes não hesitaram em repri-

mir duramente todas as experiências que pudessem avançar nesse sentido, como é possí-

vel depreender da cassação de Paulo Freire em 1964, no Brasil, mas também no comba-

te a Camilo Torres Restreppo, na Colômbia, em 1966, entre tantos outros milhares de

militantes. Nos tempos atuais, em que a repressão não é aberta (o que não quer dizer,

inexistente, como é possível deduzir das perseguições às Escolas Itinerantes no Rio

Grande do Sul, na gestão Yedda Crucius), os setores dominantes têm operado no sentido

da redução do espaço de autonomia real do aparato escolar através (i) de um enorme

aparato de avaliação (da alfabetização à pós-graduação); (ii) do estabelecimento de me-

tas de desempenho obrigatórias, como no cadastro do Programa de Ações

Articuladas/PAR, o mais amplo programa de apoio Federal às escolas do ensino funda-

mental, que exige que o secretário de educação faça a adesão de seu município às metas

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do Todos pela Educação), e (iii) da imposição de materiais pedagógicos (diversos muni-

cípios têm comprado pacotes educacionais que se tornam obrigatórios) objetivando con-

verter a educação em uma ferramenta de produção do ‘consenso sem consentimento’.

O exame apurado e sistemático das principais iniciativas educacionais em curso

no Brasil de hoje, como as sistematizadas no Plano Nacional de Educação (Lei

13.005/14), permite afirmar que a meta dos setores dominantes é educar a massa de cri-

anças e jovens para um conformismo (que nada tem de estático) com a situação social

vigente que pode e deve mudar para que tudo fique como está, lembrando a famosa ex-

pressão do escritor italiano Tomasi diLampedusa (1896-1954) em “O Leopardo”, seu cé-

lebre livro sobre a unificação italiana (1815-1870): “para que as coisas permaneçam

iguais, é preciso que tudo mude”.

2. A classe trabalhadora toma a tarefa educacional em suas

mãos

Para compreender o sentido dos embates de classes no terreno da educação, é preci-

so destacar um aspecto já apontado anteriormente: não são apenas os setores dominantes

que concebem a direção ‘intelectual e moral’ da educação como uma tarefa da própria

classe. Desde a segunda metade do Século XIX a educação compõe a pauta das lutas da

classe trabalhadora. Nas principais manifestações de Marx e Engels sobre a estratégia so-

cialista a temática educacional sempre esteve presente. Podemos encontrar reflexões dos

fundadores do materialismo histórico sobre a educação no Manifesto do Partido Comunis-

ta (1848), no Discurso Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), re-

digido por Marx (1864), nos escritos de Marx sobre a Comuna de Paris (30 de maio de

1871), e na Crítica ao Programa de Gotha (Comentários Marginais ao Programa do Parti-

do Operário Alemão, 1875). Nos debates na AIT, Marx chama atenção para o fato de que

a classe operária tinha um elemento de triunfo, o seu número, mas que o número não pe-

saria na balança “se não estiver unido pela associação e pelo saber”.

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É justamente a preocupação com a “constituição da massa em classe” que motiva-

rá Marx e Engels a inserirem a problemática da educação da classe trabalhadora em seus

escritos políticos. Os fundadores do marxismo pensam a educação da classe trabalhado-

ra não como algo idealizado, em moldes do dever ser, utopia passível de ser realizada

somente com a conquista do socialismo. Os textos não deixam margem a dúvidas de que

a educação é um desafio dos trabalhadores ainda no capitalismo. Ao se referir à educa-

ção do futuro Marx, n’O Capital, afirma que seus germes devem nascer ainda no capita-

lismo, na forma da educação integral.

Também no debate da estratégia para o socialismo em Lenin e Krupskaya pode-

mos encontrar as mesmas preocupações. Nas experiências revolucionárias, a exemplo da

Comuna de Paris (1871)16e da Revolução Russa (1917), a educação sempre foi um tema

importante para o avanço do socialismo pois relacionada com a formação das mulheres

e dos homens de modo integral, objetivando a superação entre os que pensam e os que

executam, os que mandam e os que obedecem.

Na América Latina, Aníbal Norberto Ponce (1898-1938)17 escreveu um livro pio-

neiro sobre o tema:“Educação e luta de classes”18, livro que foi fruto de seu engajamento

nas lutas em prol da reforma universitária em Córdoba (1918). O intelectual cubano Jú-

lio Mella sustentava que a educação emancipatória dependeria da luta contra o imperia-

lismo e, mais amplamente, contra o capitalismo; por isso, sua consideração de que a

educação seria parte da luta de classes, tendo que compor a estratégia política dos traba-

lhadores. Nos autores latino-americanos, em especial, em Mariátegui, em texto de 1928,

a teoria não poderia ser “nem decalque, nem cópia, mas criação heroica”, tendo que ser

16. Sobre a educação na Comuna de Paris: Jane de Almeida produziu uma bela (e completa) tese de doutorado naUnicamp, em 2014: Educação e luta de classes: a educação na Comuna de Paris, 1871.

17. Ponce foi um dos primeiros intelectuais a relacionar educação e luta de classes. Discípulo de um dos principaisintelectuais das lutas da reforma universitária de Córdoba (1918), José Ingenieros (1877-1925), seu pensamentoeducacional socialista ultrapassou as fronteiras de seu país, a Argentina, sendo difundido em diversos países latino-americanos. Editou, com Ingenieros, a Revista de Filosofia que Mariátegui reconhecera como uma das publicaçõesque melhor defendeu a Revolução Russa.

18. No Brasil, já na 22a edição pela Editora Cortez.

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original, crítica ao eurocentrismo, aberta ao diálogo com os camponeses e indígenas,

distinta do marxismo vulgar que os concebia (camponeses e indígenas) como subordina-

dos a um idealizado operariado. Mariátegui argumenta que, na América Latina, o traba-

lhador assalariado possuía características particulares em relação aos seus homólogos

europeus.

No caso brasileiro, o exemplo mais importante de organização vinculada aos tra-

balhadores que tem compreendido a tarefa de que é necessário tomar a educação como

parte da estratégia de luta da classe é o MST, como é possível depreender das motiva-

ções que justificaram a criação da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF)19, bem

como pelas lutas em prol da educação básica nos assentamentos e pelos cursos de gradu-

ação em universidades públicas propostos pelo MST20, lutas que foram sistematizadas

na pedagogia do movimento e na proposta de educação do campo21.

Todos esses escritos e experiências corroboram um conceito de educação pública

que precisa ser diferenciado de seu sentido liberal e burguês. Distintamente dos liberais

e de grande parte da esquerda de sua época, em especial na formulação de Ferdinand

Lassalle, Marx compreende que os trabalhadores não devem confiar ao Estado a educa-

ção das suas crianças e jovens. Na Crítica ao Programa de Gotha, criticando Lassalle,

Marx afirma que conceber o Estado como educador é o mesmo que atribuir aos setores

dominantes a educação dos trabalhadores. Marx trabalha aqui uma tensão fundamental:

a escola deve ser pública, mantida às expensas do Estado, mas a educação deve ser con-

fiada aos educadores e aos conselhos populares, como ocorrera na Comuna de Paris

(certamente, a experiência que influenciou o texto de Marx), assegurando a autonomia

19. LEHER, R. Escola Nacional Florestan Fernandes: um grande acontecimento para a educação. In: Outro Brasil,Educação popular, 15/2/2005. Disponível em: www.lpp-buenosaires.net.

20. Ao longo da história do MST foram conquistadas 2520 escolas nos acampamentos e assentamentos; mais de 4 milprofessores foram formados no movimento e existem parcerias com 50 instituições de ensino superior, 100 turmas decursos formais (MST: Lutas e Desafios, SP: Secretaria Nacional MST, 2a Ed.jan. 2010).

21. CALDART, R. S. Educação do campo. In: Caldart, R.S et.al. (Orgs) Dicionário de Educação do Campo, RJ:EPSJV/Fiocruz, SP: Expressão Popular, 2012a. CALDART, R.S. Pedagogia do Movimento. In: Caldart, R.S et.al.(Orgs) Dicionário de Educação do Campo, RJ: EPSJV/Fiocruz, SP: Expressão Popular, 2012b.

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dos educadores frente ao Estado particularista.

Outro elemento da crítica à educação liberal-burguesa que somente pode ser reali-

zada com a emergência do movimento pelo socialismo é a constatação de que a educa-

ção no capitalismo é inevitavelmente unilateral, pois tem como pressuposto a divisão

social do trabalho que opõe o trabalho intelectual ao trabalho simples. Ao discutir o tra-

balho simples é preciso lembrar que este conceito é histórico, tendo seu conteúdo altera-

do pelo grau do desenvolvimento tecnológico da produção; assim, hodiernamente, um

operador de telemarketing, por exemplo, embora utilize tecnologias avançadas, desem-

penha trabalho simples, conforme apontam Ricardo Antunes e Ruy Braga em seu “Info-

proletariados - degradação real do trabalho virtual” (Boitempo, 2009); o mesmo pode

acontecer com um cientista: cada vez é mais comum que o seu labor esteja inserido em

processos alienados de trabalho, cindidos em etapas que impossibilitam a compreensão

de sua totalidade, conforme aponta Ernest Mandel, em “Os estudantes, os intelectuais e

as lutas de classes”(Lisboa: Edições Antídoto, 1979).

Não pode causar surpresa, portanto, que somente os socialistas podem lutar plena-

mente para que a educação dos trabalhadores possa abranger o conjunto da existência e

das potencialidades humanas: científica, artística, tecnológica, histórico-cultural, filo-

sófica, assegurando a todos os que têm um rosto humano a condição de intelectual e di-

rigente, como queriam os communards da Comuna de Paris. José Carlos Mariátegui22

sustenta, corretamente, que somente os socialistas podem defender a escola unitária.

Mariátegui contribuiu de modo decisivo para a perspectiva de que a educação pública de

fato universalista está necessariamente em confronto com o falso universalismo liberal,

em especial problematizando e enfrentando: o racismo; o apagamento da cosmovisão

dos povos originários; a ressignificação do trabalhador do campo como operariado ur-

bano-industrial, e o sexismo que incide sobre as mulheres. Nesse prisma, o universalis-

mo não pode estar desvinculado da luta em prol de um padrão unitário de qualidade (o

22. MARIÁTEGUI, José Carlos Ensino único e ensino classista. In: MARIÁTEGUI, J.C. Mariáteguisobre Educação. São Paulo: Xamã, 2007.

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cerne da educação socialista, conforme Amauta Mariátegui). São essas iniciativas que

podem abrir brechas para a educação omnilateral dos sujeitos que vivem do próprio tra-

balho e são explorados e que, por isso, são considerados interlocutores centrais do pre-

sente artigo.

Embora já discutido no presente artigo é importante reiterar o caráter relacional

das classes sociais: as experiências revolucionárias nos séculos XIX e XX, associando

educação e socialismo, levaram a burguesia a politizar sua intervenção na esfera educa-

cional. De modo deliberado e consciente, a burguesia construiu uma hegemonia sobre o

conjunto da educação pública, objetivando, com isso, a conformação de um “certo tipo”

de educação para a massa da classe trabalhadora mundial: a educação unilateral que for-

ma recursos humanos para o capital. Paulatinamente, a educação pragmática e utilitaris-

ta da classe trabalhadora passou a ser internalizada como a única educação possível,

sendo assimilada até mesmo por sindicatos e movimentos que, nos períodos de maior

densidade de lutas no século XX, combateram esse modelo educacional referenciado na

dita teoria do capital humano. O exame da pauta dos maiores sindicatos no Brasil (meta-

lúrgicos, bancários etc.) confirma a crescente adesão dos mesmos ao ideário educacional

burguês (Boito Jr., 1999 e Tumolo, 2002)23 conformando um vasto processo transformis-

ta24. Retomar a Gramsci, nessa perspectiva, é decisivo para que o debate estratégico pos-

sa ser adensado na realidade brasileira, em que os aparelhos privados de hegemonia do

capital ganharam complexidade jamais vista no país.

23. BOITO JR., Armando Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. SP: Xamã,1999. TUMOLO, Paulo Sergio Da contestação à conformação: a formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista.Campinas: Ed. Unicamp, 2002.

24 Gramsci compreende o transformismo como um processo histórico em que o bloco de poder dominante torna-semais amplo, por meio da absorção paulatina de forças que gravitam em grupos aliados, mas ainda não orgânicos aobloco de poder e, não menos importante, de grupos outrora adversários, inclusive daqueles que pareciamirreconciliavelmente inimigos. Neste sentido, a direção política se tornou um aspecto da função de domínio, uma vezque a absorção das elites dos grupos inimigos leva à decapitação destes e a sua aniquilação por um períodofreqüentemente muito longo. Ver CHIAROMONTE, Gerardo, Transformismo. http://www.acessa.com/gramsci/?id=661&page=visualizar, acesso em dezembro de 2008.

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2.1. Gramsci, educação e hegemonia

A formação da consciência de classe não é espontânea e tampouco é possível sem

rupturas com as ideologias dominantes. Isso não quer dizer que a consciência seja exter-

na aos trabalhadores, algo a ser inculcado pelos intelectuais. Afirmar que a consciência

não é espontânea é também uma forma de criticar a tese economicista de que as lutas

econômicas, em si mesmas, permitem alcançar o momento ético-político. Gramsci rejei-

tou veementemente essas crenças e, antes dele, Lênin igualmente as combateu. A forma-

ção política demanda um ambiente político que propicie a difusão da cultura proletária,

em especial do marxismo, em sindicatos classistas e autônomos, partidos operários e

movimentos sociais antissistêmicos.

A formação requer, e isso é condição imprescindível, o protagonismo em lutas que

se afirmem como classistas em oposição clara aos capitalistas.

A verdadeira educação das massas jamais poderá separar-se de uma luta po-lítica independente e, sobretudo da luta revolucionária das massas mesmo. Sóa ação educa a classe explorada, só ela lhe dá a medida das suas forças, am-plia seu horizonte, desenvolve suas capacidades, ilumina sua inteligência etempera sua vontade25.

O desafio maior, conforme Gramsci, é tornar os trabalhadores até então envolvi-

dos, sobretudo em lutas econômicas, intelectuais políticos qualificados, dirigentes, orga-

nizadores de todas as atividades e funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de

uma sociedade integral, civil e política.

Por ser um processo que pretende romper com o economicismo e com as concep-

ções liberais e burguesas a formação política requer espaços próprios, auto-organizados

pela classe que vive do próprio trabalho e é explorada, e um tipo específico de relação

entre educadores e educandos. É uma relação que não pode estar limitada apenas ao am-

biente e às questões “escolares”, abrangendo a sociedade em seu conjunto. É, portanto,

enorme a responsabilidade dos intelectuais e dos dirigentes do movimento dos trabalha-

25 Lênin, Relatório sobre 1905 (janeiro de 1917).

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dores na elaboração e na socialização da cultura produzida pelos trabalhadores nas lutas

e nas práticas sociais que objetivam organizar a classe. Se não houver vínculos entre o

espaço da formação e os movimentos reais, concretos, que efetivamente fazem as lutas,

a tendência é a formação dogmática como se fosse um clube literário de burgueses deso-

cupados e diletantes. Nas palavras de Gramsci:

Somos uma organização de lutas e em nossas fileiras se estuda para aumentare afinar as capacidades de luta de cada indivíduo e de toda a organização,para compreender melhor quais são as posições do inimigo e as nossas, parapoder adequar melhor a elas nossa ação de cada dia. Estudo e cultura não sãopara nós outra coisa que consciência teórica de nossos fins imediatos e supre-mos, e do modo como poderemos levá-los à prática26.

No que se refere à relação educador–educando Gramsci nos oferece reflexões im-

portantes ao sustentar que essa relação tem de ser ativa e baseada em relações recípro-

cas, em que todo professor segue sendo um aluno e todo aluno é um professor. O ele-

mento popular “sente”, entretanto nem sempre compreende e sabe; o elemento intelectu-

al “sabe”, porém nem sempre compreende e especialmente sente. O erro do intelectual

consiste em crer que se pode saber sem compreender e especialmente sem sentir e ser

apaixonado. Toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica e se

verifica nas forças que compõem a nação (as lutas de classes no âmbito nacional) e as

relações de forças em nível internacional.

Ao se indagar sobre o porquê da universidade popular27 em Turin (1916-17) ser

um organismo frio, incapaz de formar um público e que, a rigor, não é nem universidade

nem popular, Gramsci reconhece que os problemas organizativos pesam negativamente,

mas seus problemas são mais profundos. Certamente uma melhor organização dos pro-

gramas, ofertando melhores cursos preparados com mais esmero e com focos de interes-

ses que tenham vida, é imprescindível. Mas o problema de fundo é de natureza pedagó-

gica, pedagógica aqui no sentido de forma da construção da hegemonia. Em Turin, afir-

26. “L’OrdineNuovo”, 1 de abril de 1925.

27 «Avanti!», 29 de diciembre de 1916.

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ma Gramsci, seus dirigentes são uns diletantes em termos de organização cultural. O que

os move, segue o autor, é um pálido espírito de benemerência, mas não a vontade genuí-

na, viva e fecunda de contribuir para a elevação espiritual de massa popular através do

ensino. São ofertados cursos que não deixam rastro, não serão seguidos de uma vida

nova, de uma vida diversa.

O público das universidades populares é constituído por trabalhadoras e trabalha-

dores que não puderam seguir os estudos regulares nas instituições de ensino e, por isso,

cabe aos educadores da universidade popular encontrar melhores métodos para fazer

com que os trabalhadores possam se familiarizar com os conhecimentos considerados

estratégicos.

Em geral, os dirigentes da universidade popular copiam os métodos das institui-

ções de ensino tradicionais, piorando-os. Não compreendem que os estudantes das uni-

versidades públicas vivenciaram processos educativos por muitos anos que, se de um

lado, facilitaram a apreensão dos conteúdos mais abstratos e conceituais, de outro, já do-

maram muito da inquietação intelectual dos jovens, tornando muitos desses conheci-

mentos dogmas e verdades absolutas. Isso não acontece com o conjunto dos militantes

que busca a universidade popular: por serem protagonistas das lutas muitos são viva-

mente inquietos, indagam o real, querem respostas sobre os problemas estratégicos, so-

bre as dificuldades das conjunturas, sobre as formas de organizar as lutas etc. Ao repro-

duzirem os métodos tradicionais fazem da universidade popular uma instituição teológi-

ca, jesuítica, em que verdades eternas e absolutas são difundidas. Neste grau, segue

Gramsci, isso não acontece nem nas universidades públicas.

Para o público e os fins da universidade popular é muito mais fecunda uma abor-

dagem histórica dos problemas, recuperando a série de esforços, erros e vitórias através

dos quais os homens têm passado para alcançar o atual conhecimento. Ao discutir os te-

mas historicamente, com seus erros e aproximações, contextualizando as questões que

impulsionaram os problemas científicos, é possível transformar o ensino em um ato de

libertação frente às coerções do capital. Esta forma de relação pedagógica contribui para

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impedir a arrogância intelectual dos que se julgam portadores da única forma correta de

interpretar o que parecem textos sagrados. Essa forma de pensar e fazer a universidade

popular se assemelha muito mais à dos círculos literários deturpando o sentido crítico

das obras do materialismo histórico.

Essa forma jesuítica de pensar a relação entre os supostos intelectuais e os militan-

tes nos remete a outra importante contribuição gramsciana: sua compreensão sobre os

intelectuais. No senso comum, intelectuais são aqueles indivíduos “cultos” que atuam

nas universidades, os literatos, os jornalistas de prestígio, o alto clero da Igreja, os gran-

des juristas etc., como se estes fossem um grupo social independente e autônomo. A

compreensão de Gramsci é distinta. Para tornar pensável a questão dos intelectuais,

Gramsci considera imperativa a análise dos nexos entre o Estado e a sociedade civil. O

Estado não é exclusivamente a sociedade política, mas a hegemonia de um grupo social

sobre toda a sociedade nacional, exercida através das organizações denominadas priva-

das, como a Igreja, os sindicatos, as escolas etc. E é justo no terreno da sociedade civil

que operam os intelectuais do capitalismo tardio. 28

O ponto central da questão é a distinção entre os intelectuais como categoria orgâ-

nica de todo grupo social fundamental, de um lado e, de outro, os intelectuais como ca-

tegoria tradicional. O problema de fundo para o debate sobre a formação da consciência

é compreender quem são os intelectuais orgânicos que organizam mais amplamente a

hegemonia. A este respeito, Gramsci propõe que cada grupo social, ao nascer sobre o

terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria, or-

ganicamente, uma ou várias camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e cons-

ciência da própria função não só no campo econômico, senão também no social e políti-

co.

No capitalismo maduro o empresário capitalista ocupa um lugar central entre os

intelectuais, significando uma elaboração social superior, caracterizada por certa capaci-

28 C, 210, 7 de septiembre de 1931.

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dade dirigente e técnica e, portanto, intelectual. Em suas práticas organizativas, cria o

técnico industrial, o cientista da economia política, uma nova cultura, um novo direito

etc., capaz de mover a massa de homens de modo congruente com o capitalismo. Os al-

tos empresários que fazem parte do coração do bloco histórico, por sua vez, devem pos-

suir a capacidade de organização da sociedade em geral, desde os serviços até o aparato

estatal, objetivando a expansão da própria classe e, para isso, como sublinhado, organi-

zam várias camadas de intelectuais subalternas para operarem a governabilidade.

Cada grupo social “essencial” ao se afirmar historicamente a partir da precedente

estrutura econômica, e como expressão de seu desenvolvimento, tem encontrado catego-

rias intelectuais preexistentes e que aparecem aos olhos guiados pelo senso comum

como representantes de uma continuidade histórica ininterrupta e que sobreviveram às

mais complicadas e radicais transformações econômicas e políticas, como os eclesiásti-

cos, os filósofos e os literatos, os periodistas de prestígio etc. Estes intelectuais tradicio-

nais, embora se vejam como independentes, estão, a rigor, sob a direção intelectual e

moral dos senhores do capital e, por isso, nada têm de autônomos. Pouquíssimos destes

se associam aos intelectuais orgânicos da classe trabalhadora. Em virtude das contradi-

ções e das lutas nas fábricas e em outros espaços do capital, é mais comum a migração

de parte dos “intelectuais de novo tipo” (os técnicos especializados) para o campo dos

trabalhadores do que o deslocamento dos intelectuais tradicionais para as trincheiras dos

que lutam contra o capital.

O novo intelectual que Gramsci pretendia formar com o semanário OrdineNuovo

não pode ser caracterizado pela eloquência da oratória capaz de tocar seus interlocutores

com base no afeto e nas emoções, mas tem a capacidade de se imiscuir ativamente na

vida prática, como construtor, organizador, persuasor permanente. Para tanto, deve ser

capaz de interagir no mundo do trabalho com base na técnica-ciência e na concepção

humanístico-histórica sem a qual permaneceria um especialista sem passar a dirigente,

isto é, especialista + político.

Não é possível compreender o papel dos intelectuais na obra de Gramsci sem pre-

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cisar que, para o autor dos “Cadernos”, “todos os homens são intelectuais, embora nem

todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais”. Essa proposição é o que

justifica a relação pedagógica entre os trabalhadores e os professores como uma relação

dialética. Gramsci especifica que

Todo ser humano desenvolve fora de sua profissão alguma atividade intelec-tual e, por isso, é um ‘filósofo’, um artista, um homem de gosto, participa deuma concepção de mundo, tem uma linha consciente de conduta moral, con-tribui para sustentar e modificar uma concepção de mundo, suscitando novosmodos de pensar.29

3. A disputa pela função social da educação no Brasil:

sindicatos e movimentos em luta

As cronologias dos conflitos sociais do Observatório Social da América Latina

(OSAL) do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO)30, lamentavel-

mente encerradas pelo CLACSO, vêm indicando mudanças profundas nas lutas em de-

fesa da educação pública latino-americana que ainda não foram avaliadas com o rigor e

o alcance necessários. De fato, desde 1998, todas as sínteses do estado das lutas sociais

na Região comprovam que os educadores e a juventude estão entre os setores mais des-

tacados das lutas sociais em curso.

Desde os anos 1990, os sindicatos autônomos que representam os trabalhadores da

educação irromperam a cena política de forma impetuosa, com métodos próprios das lu-

tas da classe trabalhadora, muitas vezes em conjunto com os estudantes, afirmando que

a defesa da educação pública não estava circunscrita aos espaços institucionais, estando

nas ruas, nas escolas e nas universidades, em situações abertamente conflituosas, fora

dos marcos impostos pelos neoliberais que reduziram a problemática da educação ao ge-

renciamento, à eficiência e à eficácia. Também as lutas estudantis foram marcantes. Me-

29Antonio Gramsci - Os Intelectuais e a Organização da Cultura. RJ: Civilização Brasileira, 4a Ed.,1982.

30 Ver http://www.clacso.org.ar/sitio/clacso/areas-de-trabajo/area-academica/osal/produccion-academica/cronologias

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recem destaques a greve da Universidad Nacional Autónoma de México/UNAM (Méxi-

co, 1998), as lutas dos estudantes colombianos e dos países centro-americanos contra os

tratados de livre comércio, as ocupações de reitorias pelos estudantes brasileiros contra

o modelo dos communitycolleges nas universidades públicas, a revolta dos pinguins, o

massivo e original movimento estudantil chileno contra a lei geral da educação pinoche-

tista mantida pelos governos da “concertación” e, em 2009-10, a resistência estudantil

contra o golpe militar em Honduras.

Muitas dessas lutas pela educação contaram com a participação ativa de movimen-

tos sociais antissistêmicos –em geral, camponeses, indígenas e marchas multitudinárias.

Examinando mais de perto a questão é possível afirmar que a problemática da formação

política e da educação em particular vem sendo assumida como parte da estratégia po-

lítica dos movimentos anticapitalistas31.

Raúl Zibechi32 caracteriza as principais tendências dos movimentos sociais que

emergiram do cataclisma neoliberal que transtorna a América Latina desde os anos

1980. Em sua ótica, os movimentos assumem feição distinta tanto do “velho sindicalis-

mo”, como dos movimentos europeus, sendo um amálgama de linhagens como “os mo-

vimentos eclesiais de base, a insurgência indígena portadora de uma cosmovisão distinta

da ocidental e o guevarismo inspirador da militância revolucionária”. São traços mar-

cantes desses movimentos: a sua territorialidade; a autonomia frente aos governos e par-

tidos; a revalorização da cultura e a afirmação da identidade de seus povos e setores so-

ciais, inclusive fortalecendo a participação das mulheres; e, em consonância com a auto-

nomia, a capacidade de formação de seus próprios intelectuais.

No Brasil, existem particularidades a serem consideradas. O balanço da política

educacional da ditadura empresarial-militar e a construção de proposições alternativas a

31. LEHER, Roberto Educação, formação e conflitos sociais: por uma autopedagogia libertária. OutroBrasil, 2004. Disponível em http://www.lpp-uerj.net/outrobrasil/docs/1352005174113_roberto_dezembro_2004.pdf

32. ZIBECHI, Raúl Los movimientos sociales latinoamericanos: tendencias y desafios. Revista do OSAL, n. 9,Bs.As., 2003.

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essas políticas foram realizados no âmbito da Conferência Brasileira de Educação

(CBE), em 1986, constituída basicamente por entidades acadêmicas da área de educa-

ção, por professores e estudantes. Neste espaço, foi constituída uma agenda heterogênea,

composta de proposições liberais republicanas e por proposições em que a agenda repu-

blicana estava mesclada por teses socialistas, como o debate sobre a escola unitária e o

trabalho como princípio pedagógico.

Contudo, o primeiro salto qualitativo somente ocorreu cerca de dez anos depois

com o Congresso Nacional de Educação (CONED). Florestan Fernandes, que infeliz-

mente faleceu antes do I CONED, via nessa construção a possibilidade de um “novo

ponto de partida” capaz de agregar os trabalhadores da educação (já assim compreendi-

dos) e as demais frações das classes trabalhadoras. Esse viés afastou entidades acadêmi-

cas como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação/ANPEd

cuja diretoria, em 1996, chegou a cogitar renunciar se a Assembleia Geral da entidade

aprovasse a sua participação no CONED. A convocatória do Congresso foi realizada

principalmente pelas entidades sindicais que, na época, estavam filiadas à Central Única

dos Trabalhadores/CUT, notadamente Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições

de Ensino Superior/Andes-SN, Confederação Nacional dos Trabalhadores em

Educação/CNTE, Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-Administrativo em

Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil/ FASUBRA eSindicato Nacional dos

Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica/SINASEFE, sindi-

catos que realmente protagonizaram as maiores lutas e enfrentamentos às medidas de

Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, o CONED não se converteu em um congresso

do conjunto da classe trabalhadora engajada na luta pela educação pública. Entre os

principais limites: a persistência de muitos parâmetros liberais-democráticos no FN-

DEP;a concepção econômico-corporativa da maior parte das entidades sindicais; o débil

protagonismo da CUT no processo (cuja direção majoritária estava contra a criação de

um Departamento Nacional dos Trabalhadores da Educação horizontalizado e organiza-

do para possibilitar unidade de ação das entidades da educação e das demais categorias)

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e, também, o relativo afastamento dos sindicatos da educação de movimentos sociais

como o MST, e mesmo de sindicatos de outras categorias.

Isso não significa, contudo, que o Plano Nacional de Educação aprovado no II

CONED (1997) não tenha logrado importantes avanços. A participação da base nos en-

contros foi muito significativa, cerca de cinco mil participantes em cada um dos con-

gressos e, afinal, as proposições aprovadas estavam em aberta oposição à agenda neoli-

beral que se intensificara com Fernando Henrique Cardoso. Por isso, grande parte da es-

querda educacional apoiou e se engajou no CONED.

É preciso salientar que mesmo esses avanços foram estilhaçados a partir da posse

do governo Lula da Silva, em 2003. Ao encaminhar uma agenda educacional em grande

parte antagônica ao PNE – Proposta da Sociedade Brasileira (CONED) –, os conflitos

dos educadores com o governo Lula da Silva não tardaram a tensionar os sindicatos que

permaneceram na CUT. Em função de distintas perspectivas de autonomia frente ao go-

verno as forças majoritárias da CNTE, União Nacional dos Estudantes/UNE e Confede-

ração Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino/Contee declararam,

em janeiro de 2005, por ocasião do Fórum Social Mundial, que não tinham mais con-

senso em relação à pauta do Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública e, por

isso, na prática, esse Fórum deixou de funcionar como espaço aglutinador das lutas edu-

cacionais. No fulcro da discórdia o conflito entre as agendas dos sindicatos autônomos e

as políticas do governo Lula da Silva, em especial: Programa Universidade para

Todos/PROUNI, Lei de Inovação Tecnológica, Exame Nacional de Desempenho de Es-

tudantes/ENADE, Educação a Distância e inúmeros projetos de lei contrários ao PNE:

Proposta da Sociedade Brasileira.

Embora em um contexto mais desfavorável em virtude do menor protagonismo

dos trabalhadores em geral, se comparado aos anos 1980, foram possíveis algumas apro-

ximações relevantes a partir de meados da presente década. É perceptível a aproximação

de lutas universitárias com o MST, muitas vezes por meio de espaços de formação nas

universidades e na Escola Nacional Florestan Fernandes.

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Nesse contexto foi possível encaminhar a Jornada Nacional de Lutas pela Educa-

ção (20 a 24 de agosto de 2007) que reuniu uma vasta gama de entidades33. É preciso re-

gistrar que essa construção, por envolver as direções majoritárias da UNE e de outras

entidades que se colocam na base de apoio do governo, foi marcada por tensões, sobre-

tudo em relação aos termos da agenda de 18 pontos e à imagem pública da luta: de en-

frentamento ao governo federal ou de defesa “genérica” da educação pública. Em virtu-

de desse equilíbrio precário a Campanha acabou perdendo força organizativa, tornando-

se um evento que não assumiu a dimensão de um movimento classista pela educação

pública. Apesar de seus limites a Jornada foi a iniciativa que mais aproximou as lutas

brasileiras das demais lutas latino-americanas, pois reuniu, em um mesmo espaço, os

movimentos da educação e os movimentos antissistêmicos como o MST e outros.

Não surpreende que, a despeito do caráter incipiente dessa jornada, as principais

entidades que vêm protagonizando as lutas contra a ofensiva pró-sistêmica do governo

federal e das entidades empresariais sobre a educação pública estejam sofrendo forte

ataque dos aliados governamentais. Entre estas entidades as mais diretamente combati-

das são o MST e o Andes-SN, ambas concebidas como movimentos a serem criminali-

zados por sua ação política.

O MST, além de forte estrangulamento financeiro, foi alvo de intensa campanha

difamatória pela grande imprensa, liderada pela revista Veja, que elegeu as atividades

educacionais do movimento como um dos principais alvos. As acusações sustentaram

que a educação das crianças nas escolas itinerantes e, mais amplamente, de seus militan-

tes, na Escola Nacional Florestan Fernandes, objetivava formar revolucionários extre-

mistas, em tudo semelhante à caracterização dos terroristas por Bush. Em 2008, Procu-

33. MST/Via Campesina, Andes-SN, Conlute, CMP, CMS, CONLUTAS, CONSULTA POPULAR,CONTRAPONTO, CPT, ABONG, CÍRCULO PALMARINO, DCE/PUC-PR, DCE/UFBA, DCE/UFPR,DCE/UFSE, DCE/UNIBRASIL, DCE/Unicamp, DCE/USP, Educafro, Denem, Enecos, ENEF, ENEFAR,Enen/ Nutrição, Exneto/Terapia Ocupacional, FEAB, FEMEH, GAVIÕES DA FIEL, INTERSINDICAL,JULI-RP, LEVANTE POPULAR, MAB, MAIS-PT, MARCHA MUNDIAL DE MULHERES, MCL,MMC, MMM, MOVIMENTO CORRENTEZA, MOVIMENTO MUDANÇA, MPA, MSU, PJR,REPED, ROMPER O DIA, UBES,UJC, UJR, UJS, UEE, UEE-SP, UNE.

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radores do estado do Rio Grande do Sul denunciaram o MST como entidade criminosa e

terrorista defendendo que o movimento deveria ser colocado na ilegalidade. A partir des-

se posicionamento, o governo do estado do Rio Grande do Sul descredenciou todas as

escolas itinerantes do estado, buscando inviabilizá-las. Posteriormente, a bancada rura-

lista no Congresso Nacional viabilizou a terceira Comissão Parlamentar Mista de In-

quérito para investigar o MST, objetivando torná-lo uma entidade proscrita.

O Andes-SN, por sua vez, também foi sistematicamente atacado por combater a

conversão da educação superior em educação terciária e denunciar as parcerias do go-

verno com o setor empresarial-mercantil que lidera a educação superior brasileira e, no-

tadamente, por seu engajamento na reconstrução de um polo de lutas classista, após a

decisão congressual de desfiliação da CUT. Inicialmente, as ações governamentais obje-

tivaram colocá-lo em uma situação de ilegalidade, por meio da suspensão de seu registro

sindical, medida parcialmente removida após intensa mobilização política da entidade e

de entidades solidárias. Ademais, por meio da CUT, o governo vem incentivando aberta-

mente a criação de uma entidade para-oficial com o fim de ocupar o lugar do Andes-SN

como representação dos docentes das instituições de ensino superior brasileiras. Em to-

das as mesas de interlocução com o Ministério da Educação e com o Ministério do Pla-

nejamento, Orçamento e Gestão a entidade para-oficial é convocada em detrimento do

Andes-SN, apesar dos dirigentes da referida entidade oficialista terem sido sistematica-

mente derrotados nas urnas. Em suma, também nos embates pela educação é possível

verificar a criminalização das lutas sociais.

A experiência das ofensivas do capital, evidente nas lutas pelo PNE, em que enti-

dades corporativas patronais, como a CNI e Confederação Nacional de Agricultura

(CNA), coalizões empresariais, como o Todos pela Educação, fundações estrangeiras

vinculadas ao grande capital rentista, como a Open SocietyFoundations liderada por Ge-

orge Soros, atuaram de modo intenso, possibilitando a visceral incorporação da agenda

do Todos pela Educação e da CNI nas políticas educacionais vigentes no país permitem

concluir que os setores dominantes atuaram organizados como ‘classe para si’ no terreno

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educacional. De outro lado, embora as lutas educacionais protagonizadas pelos trabalha-

dores sejam muito importantes, é forçoso reconhecer que não estão organizadas como

lutas unificadas do conjunto polissêmico da classe trabalhadora.

De fato, as greves da educação básica que eclodiram de modo intenso a partir de

2011 em todos os estados e nos principais municípios; a grande greve das universidades

e dos Institutos Federais de Tecnologia, em 2012; as lutas estudantis e, notadamente, o

clamor da juventude que foi às ruas para afirmar que “educação não é mercadoria”, nas

Jornadas de Junho de 2013, carecem da força da unidade de ação da classe. Essa avalia-

ção levou um conjunto de entidades a sustentar como necessário um novo ponto de par-

tida para as lutas em defesa da educação pública que superasse as iniciativas anteriores,

como o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública. A avaliação compartilhada era de

que seria necessário ampliar o escopo das lutas, incluindo outras organizações da classe

trabalhadora, possibilitando unidade de ação e a construção de uma agenda socialista

para a educação pública: esses são os objetivos do Encontro Nacional de Educação.

Encontro Nacional de Educação: um novo ponto de partida

para as lutas educacionais

Após a realização de mais de uma dezena de encontros regionais o Encontro Naci-

onal de Educação/ENE foi realizado no Rio de Janeiro, nos dias 8, 9 e 10 de agosto de

2014, reunindo aproximadamente 2,3 mil participantes, provenientes de todo o país,

agregando entidades nacionais e internacionais, como a União Nacional dos Educadores

do Equador, SUD Éducation– Solidaires (França), a Rede em Defesa da Educação Pú-

blica das Américas (México) e o Sindicato dos Educadores da Cisjordânia.

Em função da importância do ENE para tornar pensável a luta de classes na educa-

ção brasileira atual, reproduzo a seguir os principais excertos de um artigo de minha au-

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toria publicado no “Correio da Cidadania” com um primeiro balanço do Encontro34.

Cabe observar que a convocatória partiu dos movimentos e organizações que já vi-

nham construindo unidade de ação, embora localizadas, nas grandes greves magisteriais

da presente década.

Estudantes de diversos movimentos, em especial da ANEL e da esquerda daUNE, professores e técnicos administrativos da educação básica (SEPE e di-versos representantes de sindicatos e oposições de sindicatos da educaçãobásica), da rede de educação Técnico e Tecnológica (SINASEFE) e superior(ANDES-SN e representantes da FASUBRA), movimentos sociais (MTST)(que realizou saudação na Marcha do dia 8/8), centrais (em especial a CSP-Conlutas e, com menor presença, a Intersindical), partidos de esquerda(PSOL, PSTU, PCR, PCB), todos atuaram na convocatória para o Encontromotivados por um objetivo comum: construir as bases para consolidar a exis-tência de um espaço comum de todos os que lutam pela educação pública, ob-jetivando garantir unidade de ação para unificar greves, jornadas de lutas, di-agnósticos sobre a situação da educação, iniciativas editoriais e de organiza-ção de uma agenda que expresse os fundamentos da educação pública naperspectiva da classe trabalhadora, objetivando assegurar um real universalis-mo no direito à educação.

No que se refere à educação foi o maior encontro desde os Congressos Nacionais

de Educação, realizados entre 1996 e 2005. O Encontro teve representatividade relevan-

te, em especial em decorrência do fato de ter sido realizado poucos meses antes de uma

eleição de grande envergadura (em outubro de 2014) que definiria a composição do par-

lamento, dos governos estaduais e da presidência da república (período em que muitos

militantes estão empenhados no fortalecimento de seus coletivos no processo eleitoral).

Entretanto, é necessário reconhecer que muitas outras organizações e movimentos pode-

riam ter sido convidadas a compor esse movimento, a exemplo do MST.

O ENE logrou debater pontos axiais das lutas do presente:

34 LEHER, R. Encontro Nacional de Educação: um acontecimento para mudar as lutas em defesa da educaçãopública. Correio da Cidadania, 15/08/2014, disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9942:submanchete150814&catid=72:imagens-rolantes

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Em grupos de trabalho, os participantes debateram os grandes temas estrutu-rantes do futuro da educação pública, como: financiamento, privatização emercantilização, assistência estudantil/ passe livre, precarização do trabalho,avaliações produtivistas, acesso e permanência, buscando sínteses e consen-sos nas análises.

O Encontro não perdeu de vista a necessidade de enfrentar os setores dominantes

entrincheirados na sociedade civil:

Por meio de coalizões entre as frações burguesas dominantes, como o ‘Todospela Educação’, no Brasil, e ‘Mexicanos, Primeiro’, no México, os respecti-vos blocos no poder buscam reconfigurar a educação básica e profissional demodo a garantir uma socialização das crianças e jovens compatível com o es-pírito do capitalismo (...).

E, sobretudo, que, no caso brasileiro, é preciso enfrentar o modo como a agenda

do capital “se faz Estado”, incorporando na legislação educacional do país, como se fos-

sem públicas, as proposições do capital para a educação:

(i) os eixos gerais do Todos pela Educação (avaliações produtivistas, estabe-lecimento de metas, expropriação do trabalho docente, financiamento a partirdo número de indivíduos, associado ao desempenho das escolas); (ii) as de-mandas particulares das entidades que o constitui, como a CNI (Senai), aCNC (Senac) e a CNA (SNAR), respectivamente pelo PRONATEC e PRO-NACAMPO e, (iii) no que se refere à educação superior, incorpora integral-mente as reivindicações do setor privado-mercantil, ampliando e instituciona-lizando as isenções tributárias para as corporações com fins lucrativos (ProU-ni), subsidiando a compra de vagas na graduação e na pós-graduação brasilei-ra (FIES) e, no plano internacional, adquirindo vagas temporárias em institui-ções de ensino superior estrangeiras, também com verbas públicas (CiênciaSem Fronteiras).

O ENE destacou a aprovação do PNE (Lei 13.005/2014), colocando em relevo os

seus principais problemas:

Não apenas a meta dos 10% do PIB para a educação foi remetida para longos10 anos, para 2024, como, desastrosamente, o Art.5, §4 da referida Lei possi-

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bilita contabilizar como se fosse público os gastos com as corporações inter-nacionais, os bancos e os fundos de investimentos que vendem educação téc-nica e superior no Brasil e no exterior (Ciência Sem Fronteiras), assim comoos gastos com bolsas para o setor privado, as isenções tributárias e toda sortede parcerias público-privadas, o novo léxico da privatização em curso. Com onovo PNE, está aberto o caminho para a reconfiguração da educação públicapor meio da conversão das escolas públicas estatais em escolas charter, finan-ciadas com verbas públicas, mas administradas e dirigidas pedagogicamentepor grupos econômicos, assim como para a generalização dos vouchers, talcomo no Chile, no período Pinochet, nos termos dos modelos elaborados pelaEscola de Chicago: as famílias recebem o cheque (voucher) e escolhem “li-vremente” o tipo de escola em que seus filhos irão estudar. Os mais pobres,terão de se contentar com escolas que somente vivem dos referidos vouchers,os que possuem melhor condição econômica poderão “escolher” complemen-tar o valor dos seus cheques e matricular seus filhos nas escolas privadas. Nãoresta dúvida de que a agenda do Todos pela Educação e, por isso, a agenda dopróprio governo Federal, com o PNE, caminha nessa direção.

Considerando a nova composição do Congresso Nacional eleito em 2014, a agen-

da educacional que orientou o debate dos dois candidatos que se enfrentaram no segun-

do turno (PRONATEC, defesa da influência do Sistema S na formação, meritocracia) e

o aprofundamento da crise estrutural em 2015, os conflitos pela escola pública serão,

certamente, mais ásperos e acirrados, em virtude dos cortes orçamentários, objetivando

a elevação do superávit primário. O aparato de formação profissional, com o PRONA-

TEC à frente (mas também nas universidades), incidirá muito intensamente sobre a for-

mação do Exército Industrial de Reserva para fazer despencar os modestos ganhos sala-

riais obtidos por várias categorias no ciclo expansivo do capital. As corporações educa-

cionais, sob controle dos fundos de investimentos, por sua vez, seguirão ávidas por mais

recursos públicos. Como assinalado pelo referido texto de avaliação: “Diante dessas

ofensivas, haverá uma compressão temporal que não pode ser desconsiderada pelo ENE,

sob risco de perder o acúmulo político conquistado”.

O que o ENE sinaliza de novo nas lutas pela educação pública é que os movimen-

tos, sindicatos e demais protagonistas não poderão se limitar a reagir diante da ofensiva

dos governos e do capital, mas, antes, lutar contra essas ofensivas, afirmando uma nova

agenda para a educação pública:

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A urgência de um Congresso é justificada também pela necessidade de deline-ar uma outra perspectiva educacional para a educação pública. Houve umasevera descontinuidade temporal provocada pela repressão da ditadura em-presarial-militar que pretendeu silenciar as contribuições da educação popularde Freire, em especial os nexos entre educação e conscientização, entre edu-cação e práxis política, notadamente a partir dos seus trabalhos de 1965, as-sim como interditar as proposições de Florestan Fernandes sobre a educaçãopública e sua formulação sobre a educação para e no socialismo. (...) As pro-postas do Plano Nacional de Educação: Proposta da Sociedade Brasileira fo-ram avançadas e justas para a conjuntura do período (1996, objetivando miti-gar a derrota da LDB), focalizando uma agenda liberal-democrática que, emvirtude da ofensiva mercantil, já não responde às necessidades atuais da lutaantimercantil, como, aliás, o MST já havia sinalizado com a sua Pedagogia doMovimento. As lutas em curso não lograram forjar uma outra perspectivapara a educação pública e essa é uma tarefa que terá de ser edificada pelospróprios protagonistas das lutas pela educação pública. Sem isso, a agendaeconômico-corporativa seguirá servindo como um centro de gravidade quenão possibilita outros caminhos.

A ampliação do Encontro, por meio de um Congresso, é necessária para que acele-

ração da formação de um novo arco de forças seja rápida e objetiva.

Se um objetivo estratégico é construir uma nova perspectiva para a educaçãopública, o trabalho político com o MST é de crucial importância. Diria, deimportância decisiva. O nexo que une o passado da educação popular com opresente foi revitalizado pelos movimentos sociais que mantiveram a chamaacesa da pedagogia política. Ademais, a luta do MST contra o fechamento demais de 38 mil escolas na última década é necessariamente uma luta da classetrabalhadora.

Uma frente crucial: o financiamento da educação pública

A reorganização dos setores que lutam pela educação pública é imperiosa para fa-

zer o enfrentamento do financiamento, objetivando suprimir o referido inciso que per-

mite o uso de recursos públicos com o setor privado. Além dos aspectos já apontados no

ENE, outros aportes são necessários para enfrentar o problema do financiamento públi-

co da educação. Inicialmente, cabe salientar que sequer os 10% serão uma realidade no

decênio, pois, admitindo a hipótese otimista de que todos os anos haverá um acréscimo

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de 0,5% do PIB, e no último ano de 9% para 10% do PIB, a média de gastos no período

seria de 7,3% do PIB, protelando, novamente, o cumprimento da meta para o próximo

PNE, no período 2025-2035.

Outro problema é o Custo Aluno Qualidade Inicial. A despeito de seu objetivo de

aperfeiçoar o precário financiamento da educação pelo Fundo de Manutenção e Desen-

volvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação/ FUN-

DEB, a estratégia do custo-aluno é desastrosa para as escolas do campo, tendo em vista

que, obviamente, as mesmas possuem número reduzido de estudantes: poucos alunos

corresponde a poucos per capita e, portanto, a poucos recursos. O financiamento por

meio de fundos (FUNDEF, depois FUNDEB)explica, em parte, o fechamento de mais

de 38 mil escolas no último decênio. Com efeito, a lógica de financiamento pelo número

de indivíduos matriculados retira da agenda o financiamento global das unidades escola-

res, pois focaliza os per capita. A despeito do fato de que os estados e municípios são os

entes que possuem rede de educação básica, sequer são mencionados na discussão do

valor Custo Aluno Qualidade Inicial35.

Outro aspecto a ser examinado por sua repercussão na organização da educação é

o objetivo da Estratégia 20.1136 de instituir a Lei de Responsabilidade Educacional. No

35 (Meta 20.6) no prazo de 2 (dois) anos da vigência deste PNE, será implantado o Custo Aluno-Qualidade Inicial – CAQi referenciado no conjunto de padrões mínimos estabelecidos na legislaçãoeducacional e cujo financiamento será calculado com base nos respectivos insumos indispensáveis aoprocesso de ensino-aprendizagem e será progressivamente reajustado até a implementação plena do CustoAluno Qualidade- CAQ; 20.7) implementar o Custo Aluno Qualidade – CAQ como parâmetro para ofinanciamento da educação de todas etapas e modalidades da educação básica, a partir do cálculo e doacompanhamento regular dos indicadores de gastos educacionais com investimentos em qualificação eremuneração do pessoal docente e dos demais profissionais da educação pública, em aquisição,manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino e emaquisição de material didático-escolar, alimentação e transporte escolar;(Meta 20.8) O CAQ será definido no prazo de 3 (três) anos e será continuamente ajustado, com base emmetodologia formulada pelo Ministério da Educação - MEC, e acompanhado pelo Fórum Nacional deEducação - FNE, pelo Conselho Nacional de Educação - CNE e pelas Comissões de Educação e Culturada Câmara dos Deputados e de Educação, Cultura e Esportes do Senado Federal;

36 (Meta 20.11) aprovar, no prazo de 1 (um) ano, Lei de Responsabilidade Educacional, assegurandopadrão de qualidade na educação básica, em cada sistema e rede de ensino, aferida pelo processo de metasde qualidade aferidas por institutos oficiais de avaliação educacionais.

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lugar da responsabilidade do ente federativo em assegurar as condições materiais, por

meio de financiamento, carreira, gestão democrática, infraestrutura em geral, o PNE vin-

cula a responsabilidade ao cumprimento de metas do IDEB, uma medida desastrosa,

pois interdita qualquer possibilidade de um município ou estado apostar na qualidade

social, considerando a situação concreta dos estudantes; ao contrário, a referida lei obje-

tiva pressionar os gestores municipais e estaduais a ajustar as suas escolas aos descrito-

res de competências do IDEB, tornando a subordinação das redes ao TPE ainda mais es-

trutural sob pena de serem sancionados negativamente. O eixo não é o direito à educa-

ção, mas a distribuição das oportunidades educacionais, nos termos da agenda neolibe-

ral.

Ainda em relação ao financiamento, os movimentos e o ENE em especial, estão

desafiados a enfrentar a falta de meios objetivos para assegurar os 10% do PIB para a

educação pública. Além da revogação do referido §4 (do Art.5, Lei 13.005/14), da rede-

finição da metodologia de financiamento a partir de per capita, e da luta contra os obje-

tivos da Lei de Responsabilidade Educacional, é necessário denunciar que a Lei não pre-

vê fontes orçamentárias que viabilizem os 10% do PIB, aumento imprescindível para

elevação das verbas educacionais de modo que o gasto por aluno/ano, atualmente equi-

valente a 1/3 da média dos países da OCDE, possa ser ampliado de modo efetivo.

Embora o uso do PIB como parâmetro de investimentos educacionais seja proble-

mático, pois o objetivo estratégico das lutas sociais não é elevar o PIB, índice que incor-

pora a lógica capitalista destrutiva, o seu uso se justifica como medida tática, pois per-

mite comparações internacionais e define uma ordem de grandeza para os gastos educa-

cionais.

Em 2013, o PIB brasileiro foi de R$ 4,8 trilhões; 10% deste montante totalizam

R$ 480 bilhões. Admitindo que atualmente os recursos públicos para educação equiva-

lham a 5% do PIB, a Lei deveria indicar como obter receitas equivalentes a R$ 240 bi-

lhões. Necessariamente, os recursos adicionais teriam de ser alocados pela União, visto

que dos 5% do PIB, a União somente é responsável por 1% do PIB, embora detenha

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mais de 65% das receitas tributárias. Cabe lembrar que somente 40% das receitas da

União provêm de impostos (a base de cálculo para os 18% das receitas liquidas de im-

postos definidas pelo Art. 212 da Constituição), enquanto nos estados os impostos cor-

respondem a 85% e, nos municípios, a 93%. A previsão de que a receita dos royalties do

petróleo poderá cobrir a diferença não se sustenta, pois o modelo de concessão restringe

a base de cálculo a meros 15% do petróleo extraído e, por isso, em 2013, conforme a

Agência Nacional do Petróleo, o total de royalties foi de R$ 33 bilhões. Considerando

que 75% destes devem estar destinados a educação, teremos receitas de R$ 25 bilhões

(0,5% do PIB). Nada é dito sobre os outros 4,5% do PIB que serão necessários. A se

confirmar as promessas de ajustes nos gastos públicos em 2015, objetivando ampliar o

superávit primário, está claro que somente com luta política “a quente”e fundamentada

será possível alterar o quadro de degradação do setor educacional público.

Conclusões preliminares

No presente artigo foi argumentado que os setores dominantes possuem vivo inte-

resse na educação da massa dos trabalhadores. Mas por serem dependentes e associadas

ao núcleo imperialista as frações no bloco de poder não podem levar adiante um projeto

para a nação e, mais especificamente, um projeto para a educação pública brasileira. Por

conseguinte, o futuro da educação pública está nas mãos da classe que vive de seu pró-

prio trabalho. Por serem inaceitáveis para o bloco no poder, as reformas educacionais

desejadas pelos trabalhadores precisam se dar nos marcos da “revolução dentro da or-

dem”, como parte da estratégia da “revolução fora da ordem”, nos termos de Florestan

Fernandes37.

O verdadeiro assalto das entidades empresariais ao aparato educacional do Estado,

ofensiva que conta com o apoio do governo federal por meio do Plano de Desenvolvi-

mento da Educação, objetiva criar um horizonte pró-sistêmico para a educação brasilei-

37. FERNANDES, F. O que é revolução? São Paulo, Brasiliense, 1981.

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ra. Desde a forma de diagnosticar os problemas educacionais, a partir de sistemas ditos

científicos de avaliação centralizada, até as reformas curriculares, formação de professo-

res e estratégias de gestão da escola, todas essas medidas estão inscritas na agenda do

movimento liderado pelas corporações, conforme já assinalado. Hoje, mais do que em

qualquer outro período, não é possível reverter esse quadro apenas com as lutas estrita-

mente educacionais, levadas a cabo por trabalhadores da educação e estudantes. Somen-

te no contexto das grandes jornadas antissistêmicas essas lutas podem ter efetividade,

daí a atualidade de Florestan Fernandes quando propugnava ser necessário um novo

ponto de partida para as lutas educacionais.

O estudo e o diálogo com os movimentos sociais que têm realizado as lutas mais

importantes permitem constatar que estes têm se empenhado na produção autônoma de

conhecimento original, capaz de criticar os fundamentos da vida capitalista e apontar al-

ternativas para além da sociedade do capital. Um traço comum entre muitos desses mo-

vimentos é a definição de que, em função da gritante assimetria de forças e de meios

operativos entre os setores populares e os dominantes, a prioridade é que cada militante

possa ser um organizador da atividade política, potencializando as ações diretas, a de-

mocracia direta e o debate estratégico.

Entretanto, para fortalecer a formação política do conjunto da classe trabalhadora

é preciso que as instituições educacionais possam ser forjadas como espaços para diag-

nosticar e solucionar os grandes problemas nacionais. Por isso, também os movimentos

disputam a educação. Mas não basta garantir o acesso à escola pública. Urge uma revi-

são profunda das formas de pesquisar e de produzir o conhecimento. Sem uma crítica

radical ao eurocentrismo e à sua forma atual – o pensamento único – a educação serve

de arma a favor dos setores dominantes. A crítica ao capitalismo dependente somente

será possível fora das teias das ideologias dominantes atuais. Esse é um desafio teórico

que não será resolvido nos espaços intramuros da universidade requerendo, obrigatoria-

mente, novos diálogos da universidade com os protagonistas das lutas, diálogos que ser-

vem de base para novas práxis emancipatórias.

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No caso brasileiro, muito ainda está por ser feito para que os milhões de insubor-

dinados e insatisfeitos com a ordem social que empurra a humanidade para a barbárie

possam ter essas oportunidades de autoconstrução de espaços formativos originais, den-

sos teoricamente, ousados no enfrentamento dos problemas. Os desafios são políticos,

teóricos, organizativos e pedagógicos. Mas, como lembra Marx, os humanos se colocam

problemas que, potencialmente, podem ser resolvidos. Em tempos de crise, ocorre uma

aceleração do tempo, muitas das fortalezas do capital apresentam fraturas e, pelo vigor

demonstrado pelos movimentos nos distintos espaços de formação política, brechas es-

tão sendo anunciadas. Todo empenho na construção unitária da formação e de grandes

jornadas em prol da educação pública são imprescindíveis!

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OS EMPRESÁRIOS E A POLÍTICA EDUCACIONAL:como o proclamado direito à educação de

qualidade é negado na prática pelosreformadores empresariais

Luiz Carlos de Freitas1

Em vários países os empresários aparecem no cenário da educação local como

promotores de reformas educacionais. Diane Ravitch os chama, nos Estados Unidos, de

reformadores empresariais da educação (corporatereformers).2

A despeito de que os empresários sempre estiveram tentando interferir com os

processos educacionais desde os tempos da teoria do capital humano, o que pode estar

havendo de novo que esteja motivando um redobrado interesse do empresariado pela

educação? É possível que modificações no processo de desenvolvimento econômico-

social dos países, ou as próprias crises do capital, estejam mobilizando os empresários?

Acreditamos que sim. O atual interesse dos empresários tem aspectos específicos

que merecem ser examinados. Não é recomendável que acreditemos que “a história está

se repetindo”. Tal linearidade de análise nos desarmaria para o enfrentamento local das

contradições que estão postas por esta nova escalada do capital sobre a educação.

É fato notório que as corporações estão vagando pelo mundo procurando por mão

de obra barata. Países populosos como China, Rússia, Índia e Brasil estão na mira dos

processos de intensificação da exploração da força de trabalho, pois ainda possuem tais

bolsões.

No caso do Brasil, as corporações fizeram uso da exploração de bolsões de mão de

1 Professor Titular da Faculdade de Educação da UNICAMP. Texto escrito em 2014.

2 Ravitch, D. (2011) The death and life of the great American school system. 2. Ed. Rev. amp. New York: BrasicBooks.

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obra barata como a população do campo e as força de trabalho feminina, entre outros.

Nesta fase, os empresários não necessitaram de uma boa estrutura educacional. Hoje, no

entanto, tais bolsões já não dão conta de abastecer as necessidades de mão de obra. Te-

mos somente 15% aproximadamente da população no campo e 56,1% da mão de obra

feminina já está incorporada ao mercado de trabalho contra 71,5% dos homens3.

Quando tais bolsões diminuem, continua-se a necessitar de mais mão de obra. En-

tram em cena os estrangeiros desocupados em seus países. Chegam, só em São Paulo,

30 por dia4. A contínua necessidade de mão de obra pode fazer com que a renda média

paga aos trabalhadores de setores inteiros da economia comece a crescer. Salários pagos

são um componente fundamental na definição do lucro. Usualmente, os processos de fa-

bricação também tendem a se sofisticar para intensificar a força de trabalho, exigindo

tais processos mais educação. No caso da área de serviços a dependência da mão de

obra “educada” é ainda maior. Há ainda mudanças globais na divisão internacional do

trabalho fruto da própria mobilidade do capital pelo mundo.

Quando um país aumenta o salário médio de sua força de trabalho sem ampliar

sua produtividade5, os empresários ficam “desestimulados” pela queda de rentabilidade

em seus investimentos. Se há uma ampliação da renda média isso começa a derrubar o

lucro. Daí o termo “armadilha”.

Ocorre que o aumento da produtividade é dependente de fatores importantes e que

sofrem o efeito de passivos históricos: é o caso da educação. Portanto, não são de fácil e

rápida solução. Mas para os empresários, os quais só agora se interessaram pela qualida-

de da educação, isso não conta. É preciso resolver de imediato o problema educacional

para puxar o aumento de produtividade de imediato. Sem isso, dizem, perde-se competi-

tividade internacional – ou seja, os lucros não são os esperados. O argumento é oportu-

3 Cf. em http://www.oeconomista.com.br/cresce-numero-de-mulheres-no-mercado-de-trabalho-diz-dieese/

4 Cf. em http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2013/08/1324745-aumenta-o-registro-de-trabalhadores-imigrantes-em-sp.shtml

5 Cf. em http://economia.estadao.com.br/noticias/economia-geral,produtividade-do-brasil-tem-queda-dramatica-diz-estudo,144537,0.htm

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nista pois eles bem sabem que o aumento da produtividade não depende apenas da edu-

cação.

O conflito que aparece entre educadores profissionais e os empresários diz respei-

to ao que se entende por uma boa educação: para os empresários é saber ler, escrever,

contar e algumas competências mais que estão sendo esperadas na porta da fábrica, me-

didas em um teste padronizado. Se as notas aumentam, então houve melhoria. Se há

mais formandos, houve melhoria. Para os educadores, isso é apenas uma pequena parte

da tarefa. Nota alta não é sinônimo de boa educação6.

O conflito se amplia porque para os empresários – à imagem e semelhança de sua

empresa – tudo é uma questão de gerenciamento e competição. Portanto, se os educado-

res não dão conta de “seu pedaço” (leia-se atender às necessidades das empresas) é por-

que não sabem gerenciar os recursos que são dados. E se as empresas já desenvolveram

métodos de administração bem sucedidos para elas, porque não transplantá-los para as

escolas e redes de ensino? Se eles têm a solução, os governos é claro agradecem. Eles

também precisam mostrar à população que as escolas estão melhorando.

Esta urgência, que é assumida também pelos governos, ocorre porque um país que

pague renda média menor a seus trabalhadores pode produzir bens e serviços mais bara-

tos e permitir maiores lucros aos empresários: melhora a competitividade. Sem educa-

ção de “qualidade” não se amplia o número de formandos e com poucos formandos o

salário médio sobe ao invés de descer. Lei da oferta e procura. A armadilha da renda mé-

dia consiste no aumento do salário médio dos trabalhadores sem que se consiga alterar

fatores de infraestrutura como educação, responsáveis pelo aumento da produtividade e

simultaneamente, dispor de uma maior quantidade de formandos que reduza pressões

salariais.7

Esta questão é tratada abaixo:

6Ravitch, D. (2010). Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,nota-mais-alta-nao-e-educacao-melhor,589143,0.htm

7Cf. em http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/ensino-medio-brasileiro-era-ruim-e-esta-pior

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“Se não se colhe o bônus neste momento, não se colhe nunca mais. Se não seenriquece o país neste momento, é muito difícil enriquecê-lo depois. Para co-lher o bônus é preciso ter emprego e educação de qualidade. Os europeus,EUA, Japão, Cingapura, Coreia, China, Taiwan, todos esses países aproveita-ram. O Brasil precisaria crescer ao menos 4%. Se o PIB fica abaixo de 2%,não é possível. Além do que deixamos a desejar em educação. Estamos presosà armadilha da renda média.”8

Neste quadro, os empresários estão se organizando para atacar estas questões de

infraestrutura que afetam o aumento da produtividade. Vários movimentos estão se or-

ganizando há algum tempo: LIDE9, Movimento Todos pela Educação10 e seus adjacen-

tes, disfarçados de “especialistas em educação” organizados em ONGs e empresas de

assessoramento educacional. Há um grupo mais ideológico e há outro mais operacional,

o pessoal do faturamento.11 Não acreditam na escola pública e querem sua privatização –

seja por concessão12, seja por vouchers13. Na verdade ganham bem para desqualificara

escola pública – mesmo sem evidência de que suas receitas são melhores14.

Há, portanto, uma disputa pelo conceito de educação e pelos métodos de formação

da juventude. Os empresários e seus apoiadores defendem uma versão instrumentalizada

de educação a qual disfarçam muito bem com bandeiras como “primeiro o básico”, “os

8 Cf. em http://oglobo.globo.com/economia/se-nao-for-neste-momento-nao-se-colhe-mais-diz-demografo-9465694#ixzz2bfVgxFjS

9 Cf. http://www.lidebr.com.br/

10 Cf. http://www.todospelaeducacao.org.br/

11 Cf. http://avaliacaoeducacional.com/2013/08/10/quem-ganha-com-a-responsabilizacao/

12 Sistema em que empresas privadas de gestão assumem a escola e a administram recebendo financiamento públicopara tal.

13 Sistema em que os pais recebem um cheque que cobre as despesas escolares de seus filhos e escolhem a escolaque quiserem para educar seus filhos.

14 Cf. http://avaliacaoeducacional.com/2013/08/08/charters-significativamente-insignificantes/ ; e CREDO. (2010)Charter School Performance in New York City. Acesso em 28 de janeiro de 2011, disponível emhttp://credo.stanford.edu/reports/NYC%202009%20_CREDO.pdf; e Marsh, J., Springer, M. G., McCaffrey, D. F., &et all. (2011). Fonte: A big apple for educators: New York City´s Experiment with Schoolwide Performance Bonuses:http://www.rand.org/pubs/monographs/MG1114.html .

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direitos da criança têm que vir primeiro”, etc. Coisas com as quais nós até podemos con-

cordar, mas sob outra concepção. Os educadores querem uma educação de qualidade so-

cial, voltada para os valores, para a formação humana ampla e entendem que a educação

não é matéria para ser privatizada, pois é um bem público. Como tal, não pode ser entre-

gue ao controle de um setor da sociedade, os empresários. Isso não é democrático –

mesmo no quadro de dificuldades pelas quais passa a escola pública.

Neste quadro, as pressões sobre a área da educação partem agora de entidades or-

ganizadas pelos empresários com esta finalidade, como indicamos antes, e também de

ações organizadaspor estas junto aos governos e junto ao Congresso Nacional.

O caminho seguido é o mesmo que os empresários americanos seguiram nos últi-

mos 30 anos: 1. Enfatizar a crise da educação e a necessidade de reformar a política edu-

cacional; 2. Uma ênfase no direito à aprendizagem com dupla limitação: a) fala-se de di-

reito à aprendizagem e não de direito à formação humana, à educação; b) e restrita ao

ambiente da escola, portanto isolada de importantes ligações com a vida.

Neste particular, é importante assinalar que a própria forma escolar atual já foi

concebida com o intuito de isolar as crianças da vida, vale dizer das contradições soci-

ais. A proximidade com estas, levaria a juventude a pensar sobre a nossa forma de orga-

nização social e seus limites, ensejando desejos de mudança ou revolta. Isolados no inte-

rior das salas de aulas, restritos à aprendizagem do básico, lhes é prometido um dia, che-

gar aos níveis mais avançados e complexos de educação, que de fato nunca chegarão a

ver. Historicamente, a escola sempre sonegou seu conteúdo para a classe trabalhadora.

Com o discurso do direito restrito à aprendizagem do básico, perpetua-se por um

lado a exclusão dos processos de formação humana e ao mesmo tempo libera-se a conta

gota o conhecimento necessário para que a juventude dê conta de atender às demandas

das novas formas de organização da produção. Acesso a um pouco mais de letramento,

leitura e matemática.

O estreitamento curricular impede que outras áreas de desenvolvimento da criança

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sejam exercitadas (artística, criativa, afetiva, corporal). Com a escola focada em portu-

guês e matemática, as demais disciplinas são abordadas em “projetos interdisciplinares”

que conduzem à banalização do conteúdo destas.

O apelo ao básico é visto como politicamente correto, pois tem um sabor de distri-

buição do conhecimento básico a todos, dando a impressão de uma política de garantia

de direitos para todos. Porém, ao se examinar os sistemas voltados para a aprendizagem

do básico proposto pelos reformadores empresariais, o que se verifica é que tal política

não garante a aprendizagem de todos e de cada um. A escola tem a sua roupagem atuali-

zada, mas as suas funções sociais são mantidas intactas: exclusão e subordinação.

Novas formas de exclusão são adicionadas como a especialização de escolas que

assumem a função de receber uma população que sabidamente não aprenderá, liberando

as outras para a tarefa de tentar ensinar o básico; a criação de trilhas diferenciadas de

progressão (às vezes em salas exclusivamente destinadas à recuperação do aluno, segre-

gadas) que são destinadas a garantir a passagem do tempo até a exclusão do aluno ao fi-

nal de algum ciclo ou período de tempo; o deslocamento do aluno para formas de aten-

dimento alternativas como a Educação de Jovens e Adultos, onde são certificados preca-

riamente à margem do sistema.

As formas de organização do trabalho no interior da escola não são alteradas, pelo

contrário, a ordem e a obediência são reforçadas com o apelo às famílias para que aju-

dem a controlar seus filhos, às vezes com contratos escritos que responsabilizam a famí-

lias. O conservadorismo – inclusive moral – amplia-se. A disciplina fica cada vez mais

rígida, cada vez mais voltada para instalar processos de subordinação.

As estatísticas mostram que não há avanço no fechamento das brechas que distan-

ciam a aprendizagem de ricos e pobres, brancos e negros e a população que necessita de

atendimento especial é submetida à segregação em escolas ou em ambientes dentro das

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escolas1516.A pobreza vai sendo confinada nas escolas públicas, a classe média vai sendo

retirada para escolas administradas por concessão ou por meio de vouchers e os mais ri-

cos continuam em suas escolas próprias, privadas de alto nível17. Dessa forma, abre-se

uma linha de acesso ao ensino para a classe média emergente e os mais ricos ficam pro-

tegidos do convívio com os mais pobres.

As práticas de avaliação que já dominavam a escola devido a seu isolamento em

relação à vida tomam o controle de todo o processo. Mais tempo para a avaliação e tes-

tes frequentes roubam tempo da aprendizagem do aluno.

A política educacional dos reformadores é produzida para articular a necessidade

de se qualificar para as novas formas de organização do trabalho produtivo, ao mesmo

tempo que preserva e amplifica as funções sociais clássicas da escola: exclusão e subor-

dinação.

Está em jogo o controle político e ideológico da escola, em um momento em que

algum grau a mais de acesso ao conhecimento é exigido pelas novas formas de organiza-

ção do trabalho produtivo, novas exigências de consumo do próprio sistema capitalista e

novas pressões políticas por ascensão social via educação.

A matriz de controle mundial das políticas educacionais é hoje a OCDE18, um or-

ganismo internacional destinado à cooperação e desenvolvimento econômico das nações

desenvolvidas, que associa-se às estruturas anteriormente existentes de Bancos de finan-

ciamento (Banco Mundial, BIRD). Ela é responsável pela avaliação em nível mundial

15 Cf. Freitas, L. C. (2012) Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruiçãodo sistema público de educação. Educação e Sociedade, Vol. 33 (119), p. 379-404.

16 Cf. Guisbond, L.; Neill, M. e Schaeffer, B. A década de progresso educativo perdida sob a NCLB: que lições tirardesse fracasso político? Educação e Sociedade, Vol. 33 (119), p. 405-430.

17 Cf. http://dianeravitch.net/2013/08/12/chile-the-most-pro-market-school-system-in-the-world-part-1/

18 A OCDE é uma organização com sede na Europa nascida depois da segunda guerra mundial, tendo como pano defundo o Plano Marshall de reconstrução da Europa. Passou por várias reformulações e tem hoje a função demonitorar as condições de operação dos países considerados ricos (cerca de 35) e indicar ações de cooperaçãoeconômica entre eles. No caso da realização de avaliações internacionais aceita que participe alguns países mesmonão sendo considerados do clube dos ricos.

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da qualidade da educação dos países ricos nas disciplinas de leitura, matemática e ciên-

cias pelo exame do PISA.Somam-se ainda a estes, uma plêiade de fundações e bilioná-

rios que resolveram “doar recursos para a educação”. Uma parte deles está voltada para

a criação de estruturas de controle ideológico e influência em governos e legislativos;

outra, está mais interessada em abrir mercado que até agora esteve sob controle do esta-

do – p. ex. a educação – e faturar. Têm forte apoio da mídia. No caso brasileiro, a orga-

nização que mais cumpre esta função é o Movimento Todos pela Educação.

Neste quadro, as avaliações de larga escala nacionais e internacionais emergem

como um instrumento político de promoção da internacionalização da política educacio-

nal. O padrão de qualidade é o padrão PISA – um programa internacional de avaliação

de estudantes promovido pela OCDE.19

Sua ação de controle passa por várias formulações que podem ser utilizadas em

conjunto ou separadamente: conscientes da importância do professor o foco de controle

dos reformadores empresariais é o professor. Centram sua ação na pessoa do professor

propondo que deixem de ter estabilidade no emprego, tenham salario variável cujo com-

ponente está ligado aos resultados dos testes dos alunos; procuram estabelecer processos

de avaliação personalizados dos professores e, com isso, controlar as ênfases de forma-

ção que desejam,além de controlar igualmente as agências formadoras; querem controlar

a formação do professor difundindoque ela é muito teórica e precisa ser mais prática co-

locando a formação numa perspectiva pragmatista; apostilam as redes de forma a con-

trolar o conteúdo que é passado para os estudantes, bem como a sua forma; enfatizam a

formação do gestor de forma a torná-lo um controlador dos profissionais da educação no

interior da escola responsabilizando-o pelos resultados esperados nos testes; favorecem

processos de privatização de forma a abrir mercado e a colocar a educação diretamente

sob controle do empresariado que atua no mercado educacional (gestão por concessão e

vouchers); provocam o sentimento de que a educação está em crise e que o direito à

aprendizagem está em jogo como forma de sensibilizar a população, através da mídia,

19 O Plano Nacional de Educação no Brasil tem incorporado nele as metas do PISA.

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para suas soluções miraculosas; centram a concepção da qualidade da educação nas no-

tas altas, estabelecendo uma identidade entre notas altas (às vezes em uma ou duas dis-

ciplinas que mais lhe interessam) e qualidade da educação; reduzem a formação da ju-

ventude à ideia de direito á aprendizagem, estreitando a concepção de educação e redu-

zindo-a à aprendizagem no interior da escola; fortalecem os processos de aprendizagem

que isolam a criança da vida e, portanto, das contradições sociais existentes na vida, di-

fundindo a meritocracia como base explicativa do funcionamento social; exercitam pro-

cessos meritocráticos com alunos, professores e gestores que ajudam a fixar a meritocra-

cia como forma de progredir na vida via empreendedorismo; desmoralizam o magistério

como forma de fragilizar a sua articulação política e apresentam os sindicatos como res-

ponsáveis pelo atraso da educação, defensores dos direitos dos professores e não defen-

sores do direito de aprender do aluno; desenvolvem processos de avaliação em larga es-

cala censitários com a finalidade de alavancar processos de responsabilização da escola

ignorando os fatores sociais que dificultam a ação da escola; propõe e influenciam a ela-

boração de leis que responsabilizem as escolas e os gestores; financiam fortemente as

suas ideias via fundações e iniciativa privada; ampliam o tempo escolar destinado a en-

sino à distância online nas escolas como forma de melhor estabelecer controle sobre o

ensino.

Reunimos esta longa lista de ações mais recentes do capital no campo da educação

porque alguns incrédulos das novas configurações de controle sobre a escola argumen-

tam que isso não seria uma novidade já que os empresários sempre tiveram interesse no

controle político e ideológico da escola, desde os tempos da teoria do capital humano.

É verdade. Entretanto mudaram a forma e o empenho. Agora, a questão educacio-

nal tem outra posição no quadro das condições que são responsáveis pela valorização do

capital, como resumidamente no início. Depende também dela o aumento da produtivi-

dade.

No entanto, cumpram-se ou não as expectativas de desenvolvimento econômico

formuladas pelo capital, a educação será sempre responsabilizada – independentemente

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dos resultados. Se forem positivos, a educação será cobrada por aumentar a qualidade

para elevar a produtividade, se forem negativos, será responsabilizada por não ter produ-

zido a elevação da qualidade, travado o avanço da produtividade e ter derrubado a com-

petitividade internacional do pais.

Vale lembrar que há outras funções esperadas da escola e da educação: aumento

de formandos nas profissões como forma de reduzir a pressão por salário que venha a

elevar a renda média acima do que já avançou.

Trata-se do fenômeno já observado tanto nos Estados Unidos como no Brasil e

que diz respeito à queda do salário médio pago à medida que a “eficiência” do setor

educacional gera mais profissionais e os coloca no mercado. Tal situação faz com que

havendo uma oferta maior de profissionais, se reduza o salário pago: lei da oferta e pro-

cura.

Enfim, seja para derrubar o salário médio por superpopulação de formandos, seja

para aumentar a produtividade, seja ainda para promover o controle ideológico e politi-

co de uma instituição pela qual passa toda a juventude, seja para qualificar de acordo

com as suas necessidades de produção, seja por todos estes motivos, os reformadores

empresariais resolveram - em escala mundial – controlar mais de perto o que ocorre na

educação garantindo um relativo aumento de qualificação da força de trabalho ao mes-

mo tempo em que não perdem e ampliam o controle político e ideológico da escola e ga-

rantem as suas funções clássicas: exclusão e subordinação.

Focando no direito à aprendizagem tenta-se apagar a importância de outros direi-

tos que são fundamentais para o exercício do direito à educação: o direito à alimentação,

o direito à habitação, ao trabalho, à moradia, à renda, etc. Não há como defender um di-

reito isolado dos outros, pois um depende do outro como mostram os estudos que corre-

lacionam desempenho na escola e nível socioeconômico. Os testes não medem só apren-

dizagem, medem simultaneamente nível socioeconômico.

Com isso, causas sociais são camufladas em causas escolares via avaliações de

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larga escala baseadas em testes. A sociedade menos avisada, pelo menos a princípio,

acredita. Há quem proponha que placas com o IDEB devem ser levantadas nas portas

das escolas para denunciar a falta de qualidade e a identificação dos culpados: os profes-

sores.

O proclamado direito à educação vira direito à aprendizagem e nos limites da es-

cola, para em seguida virar direito ao básico, limitado à aprendizagem de leitura e mate-

mática. Transmutado em direito à aprendizagem, ficam igualmente de fora todas as ou-

tras dimensões da formação que não seja a cognitiva, privilegiadamente leitura e mate-

mática, e as demais disciplinas e áreas de formação assumem formas aligeiradas (p. ex.

projetos, áreas) onde o conteúdo é secundarizado para que o aluno possa focar na apren-

dizagem de leitura e matemática, ou seja, as disciplinas que caem nas provas.

As práticas escolares não valorizam as artes, a afetividade, o desenvolvimento do

corpo, da criatividade entre outros aspectos que favorecem exatamente os processos de

criação que são básicos para a implementação de inovações. Como advertem os estudos,

são estas as características que devem ser fortalecidas se queremos ser competitivos in-

ternacionalmente, já que a capacidade de inovar, de criar é que define a posição dos paí-

ses no cenário internacional.

Como afirma Levin (2012)20:

“Em todo o mundo ouvimos falar bastante sobre a criação de escolas de clas-se mundial. Normalmente, o termo refere-se a escolas cujos alunos recebempontuações muito elevadas em comparações internacionais de desempenho deestudantes como o PISA ou o TIMSS. A prática de restringir o significado deescolas modelos ao critério estreito de pontuação de desempenho é normal-mente premissa da visão de que os resultados dos testes estão intimamente li-gados à formação de uma força de trabalho capaz e a uma economia competi-tiva. Na verdade, as relações entre os resultados medidos em testes e os ga-nhos de produtividade são modestos e explicam uma parcela relativamentepequena da maior ligação entre nível educacional e os resultados econômicos.O que é omitido em tais avaliações estreitas são os efeitos que a educação temsobre o desenvolvimento das capacidades e habilidades interpessoais e intra-pessoais e que afetam a qualidade e a produtividade da força de trabalho (...)

20Cf. em http://roundtheinkwell.files.wordpress.com/2012/09/more-than-just-test-scores-sept2012-2.pdf

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a busca por escolas de classe mundial deve abranger uma série de característi-cas do desenvolvimento humano que se estendem muito além de resultadosdos testes.”

As consequências desta pressão sobre o sistema escolar baseada em responsabili-

zação (accountability) estão bastante documentadas na literatura internacional. 21

1. Estreitamento curricular. Avaliações geram tradições. Dirigem o olhar de pro-

fessores, administradores e estudantes. Se o que é valorizado em um exame são leitura e

matemática, a isso eles dedicarão sua atenção privilegiada, deixando os outros aspectos

formativos de fora.22

2. Competição entre profissionais. A colocação dos profissionais de educação

em processos de competição entre si e entre escolas levará à diminuição da possibilida-

de de colaboração entre estes. A educação, entretanto, tem que ser uma atividade colabo-

rativa. A ação de um professor, não se esgota apenas no tempo em que ele passa com o

aluno. Afeta outros professores, pois o aluno é o mesmo. Se um deles destrói a autoesti-

ma do aluno, todos serão atingidos por este fato.

3. Pressão sobre o desempenho dos alunos e preparação para os testes. Premi-

dos pela necessidade de assegurar um salário variável na forma de bônus, os professores

pressionarão seus alunos aumentando a tensão entre estes. Premidos pela necessidade de

apresentar sua escola como uma boa escola à comunidade, reproduzirão práticas que

tenderão a afastar de suas salas e de suas escolas alunos com dificuldades para a apren-

dizagem. Além disso, proliferam os simulados e a utilização do tempo escolar para pre-

parar o aluno para os testes.23

4. Fraudes. Por esta mesma linha de pressão, chega-se à fraude. As variáveis que

21 Este resumo também apareceu na Revista Educação e Sociedade no. 119 e é atualizado com novas pesquisas quevão sendo disponibilizadas.

22 Cf. Au, W. (2007) High-stakes testing and curricular control: a qualitative metasynthesis. Educational Research,pp. 258-267 e Au, W. (2009) Unequal by design: high-stakes testing and the standardization of inequality. New York:Routledge.

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afetam a aprendizagem do aluno não estão todas sobre controle do professor e nem as

mais relevantes podem estar sob seu controle. Esta realidade produz um sentimento de

impotência que associada à necessidade de sobreviver tem levado à fraude. Multipli-

cam-se os casos de ajuda do próprio professor durante a realização de exames, quando

não a simples alteração da nota obtida pelo aluno em exames.24

5. Aumento da segregação socioeconômica no território. Estudo do CENPEC

mostra que com a pressão por desempenho, as escolas podem especializar-se em deter-

minadas clientelas de estudantes, sendo deixadas no conjunto do território para a desti-

nação de alunos de baixo desempenho25. As escolas vão travando a entrada de alunos de

risco e dirigindo-as a outras escolas.

6. Aumento da segregação socioeconômica dentro da escola. Não é diferente

dentro das escolas. Estas serão levadas a fazer turmas de estudantes que se destaquem

no desempenho para que “segurem” a média da escola e o acesso a benefícios. Os alu-

nos com dificuldades vão ser segregados em turmas separadas. A experiência americana

não revela que houve uma maior equidade, por exemplo, entre os desempenhos médios

dos negros e brancos.26

7. Precarização da formação do professor. O apostilamento das redes contribui

23 Cf. Nichols, S. L., & Berliner, D. C. (2007) Collateral Damage: how high-stakes testing corrupts America'sschools. Cambridge: Harvard Educational Press e Braun, H., Chudowsky, N., & Koenig, J. (2010) Getting Value Outof Value-Added: Report of a Workshop. Acesso em 7 de janeiro de 2011, disponível emhttp://www.nap.edu/catalog/12820.html .

24 Tucker, C. (agosto de 2010) Beverly Hall needs to retire. Acesso em 29 de janeiro de 2011, disponível emhttp://blogs.ajc.com/cynthia-tucker/2010/08/26/beverly-hall-needs-to-retire/; Georgia, G. d. (Julho de 2011) AtlantaPublicSchools: investigativereport Vo. 1-3. Fonte: http://www.calameo.com/books/0001070442388e8a1b081 ;Leung, R. (22 de agosto de 2004) The "Texas Miracle". Acessoem 22 de fevereiro de 2011,disponívelemhttp://www.cbsnews.com/stories/2004/01/06/60II/main591676.shtml ; e Ravitch, D. (2010b) New Yorkeducation officials are lying to the state's schoolkids. Acesso em 20 de julho de 2010, disponível emhttp://www.nydailynews.com/opinions/2010/03/31/2010-03-31_new_york_state_education_officials_are_lying_to_schoolkids.html#ixzz0npXGNIgU .

25 Ernica, M., & Batista, A. A. (2011) Educação em territórios de alta vulnerabilidade social na metrópole: um casona periferia de SãoPaulo. . São Paulo: CENPEC, Informe de Pesquisa No. 3.

26 Rothstein, R. (7 de abril de 2008) A Nation at Risk” Twenty-Five Years Later. Acessoem25 dejaneiro de 2011,disponívelemhttp://www.cato-unbound.org/2008/04/07/richard-rothstein/a-nation-at-risk-twenty-five-years-later/ ; eFrankenberg, E., Siegel-Hawley, G. S., & Wang, J. (2011) Choice without equity: charter school segregation.Education Policy Analysis Archives, 19, pp. 1-96.

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para que o professor fique dependente de materiais didáticos estruturados retirando dele

a qualificação necessária para fazer a adequação metodológica segundo requer cada alu-

no27. Além disso, uma visão pragmatista cada vez mais se instala nas agências formado-

ras do professor, diminuindo sua formação aos aspectos práticos das metodologias.

ONGs como a Teach For América, nos Estados Unidos, formam professores em cinco

semanas. O braço internacional desta organização faz ensaios no Rio de Janeiro.28

8. Destruição moral do professor e do aluno. As pressões sobre o professor ter-

minam obrigando-o a segregar os alunos que estão nas pontas dos desempenhos (mais

altos e mais baixos) e concentrar-se no centro, em especial naqueles que estão próximos

da média, para não caírem abaixo dela e para subirem acima dela. Esta concentração em

torno da média penaliza seriamente os mais necessitados29. As pressões também vão se-

gregando os professores.30

Estas conseqüências resultam em um ataque frontal ao protagonismo dos profes-

sores na sala de aula, nas escolas e na própria condução da escola pública. O magistério

é submetido a um controle refinado.

Estas são as consequências mais recorrentes das políticas educacionais dos refor-

madores empresariais. Evitando o debate qualitativo e a análise mais profunda elas ten-

tam se legitimar pela apresentação de uma grande quantidade de “números”.

Para Quintero, há um desejo insaciável dos políticos por dados. Ela escreve:

27Adrião, T. et all. (2009). Uma modalidade peculiar de privatização da educação pública: a aquisição de sistemas deensino por municípios paulistas. Educação e Sociedade, 30 (108) pp. 799-818.

28Ensina! (20 de abril de 2012). No mundo. Fonte: http://www.ensina.org.br/ensina/no-mundo/ .

29Neal, D., &Schanzenbach, D. W. (2010) Left Behind by Design: proficiency counts and test-based accountability.Review of Economics and Statistics, 263-283.

30Setubal, M. A. (26 de abril de 2012) Os melhores professores para as piores escolas. Folha de São Paulo, pp.Caderno 1, pg. 3; e Zastrow, C. v. (29 de setembro de 2008) In Teachers We Trust: An Interview with FinnishEducation Expert ReijoLaukkanen. Fonte: Learning First Alliance: http://www.learningfirst.org/teachers-we-trust-interview-finnish-education-expert-reijo-laukkanen .

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"Em um nível básico, [os dados] parecem sinalizar uma orientação geral paraa tomada de decisões com base na melhor informação que temos, o que é umacoisa muito boa. Mas há dois problemas aqui. Primeiro, tendem a ter uma vi-são extremamente estreita da informação que é relevante, isto é, [focam] da-dos que podem ser quantificados facilmente; e segundo lugar, parece que es-tamos operando sob a ilusão de que os dados, em si mesmos, podem contarhistórias e revelar a verdade" (p. 1).

Ela conclui que os exames e avaliações institucionalizaram:

"... não apenas como lidamos com dados, mas também, e mais importante, oque conta como dado. A lei [NCLB31] exige que as escolas dependam de basecientífica, de investigação, mas, como se vê, estudos de caso, etnografias, en-trevistas e outras formas de pesquisa qualitativa parecem cair fora desta defi-nição - e, portanto, são considerados inaceitáveis, como base para a tomadade decisões.” (...) “Nossa fé cega em números acabou causado empobreci-mento em como (e quais) informações são usadas para ajudar a resolver pro-blemas do mundo real. Nós agora aparentemente acreditamos que os númerosnão são apenas necessários, mas suficientes para as decisões baseadas empesquisa” (p. 1). 32

As consequências destas políticas estão claras na literatura internacional, a pressa

dos empresários em resolver seus problemas de rentabilidade poderá nos levar a uma

década perdida na educação brasileira.

31 Lei de responsabilidade educacional americana.

32 Quintero, E. (22 de October de 2012). The data-driven education movement. Fonte: Shanker Blog:http://shankerblog.org/?p=7015 .

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SOBRE A ESPECIFICIDADE DA EDUCAÇÃO DOCAMPO E S DESAFIOS DO MOMENTO ATUAL

Roseli Salete Caldart1

“... a emancipação das classes trabalhadoras tem de ser conquistada pelas própriasclasses trabalhadoras...” Karl Marx e Friedrich Engels2

“Só se destroi realmente aquilo que se substitui.” Baudelaire.

Hoje no Brasil muitos falam em nome da Educação do Campo, nem sempre desde

os mesmos fundamentos e objetivos, resultado contraditório de seu percurso real nestas

quase duas décadas de existência3. É importante notar que embora seja um fenômeno re-

cente na história brasileira, o acúmulo de luta e construção da Educação do Campo já

precisa ser considerado para pensar a realidade educacional do campo, em particular da

educação pública, principalmente quando se quer entender esta realidade desde o ponto

de vista dos próprios trabalhadores do campo e suas organizações. Talvez seja por isso

que começa a acontecer uma disputa do conceito por diferentes grupos, até mesmo pelos

representantes do polo do capital (empresários do agronegócio e seus intelectuais orgâ-

nicos, governos,...), que tentam hoje associar esse nome a uma visão “modernizada” da

“educação rural”, historicamente associada ao atraso do latifúndio.

Há também quem pense que é necessário “salvar” a Educação do Campo das con-

tradições que a envolvem e que se relacionam às contradições da realidade material de

sua atuação. E que isso pode ser feito pela apropriação privada ou corporativa dela por

determinadas linhas de pensamento, deslocando a de suas finalidades e da materialidade

que a produziu como este novo e importante fenômeno da educação brasileira. Este des-

1 Do setor de educação do MST

2 Normas Gerais da Associação Internacional dos Trabalhadores. Apud Musto, Marcello (org.).Trabalhadores, univos! Antologia Política da I Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 291.

3 O batismo “Educação do Campo” completa 17 anos em julho de 2015.

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locamento, digase, mesmo que movido por intenções “críticas”, tira o sentido da exis-

tência da Educação do Campo. Pode matála.

Não pretendemos neste texto dar conta dos diferentes debates sobre a Educação do

Campo que se desenvolvem hoje nessa direção ou noutra, mas apenas participar das dis-

cussões, desde o que nos parecem ser as necessidades mais urgentes do momento atual.

Nosso objetivo aqui é contribuir com a discussão de duas questões. A primeira é de reto-

mada/reafirmação da compreensão sobre a especificidade da Educação do Campo, na re-

lação com a realidade material que a constitui historicamente e com a diversidade de

seus sujeitos. E a segunda questão é identificar o papel da Educação do Campo em rela-

ção a confrontos que emergem com força neste período, e os desafios político organiza-

tivos que esta realidade nos impõe para continuarmos o percurso feito até aqui, firmando

nossa atuação específica como parte do projeto histórico da classe trabalhadora. Nas

duas questões o objetivo de contribuir com a análise do que construímos e o que é fun-

damental continuar construindo como objeto concreto expresso pelo nome/conceito de

“Educação do Campo”, e que justifica sua presença na realidade educacional brasileira.

Especificidade da Educação do Campo

A Educação do Campo (EdoC) se constituiu, no final da década de 1990, como

uma articulação nacional das lutas dos trabalhadores do campo pelo direito à educação,

materializando ações de disputa pela formulação de políticas públicas no interior da

política educacional brasileira , que atendam aos interesses sociais dos trabalhadores do

campo, em especial, dos camponeses ou das famílias e comunidades vinculadas ao tra-

balho de base camponesa4. Luta por políticas ou medidas específicas em função de uma

desigualdade histórica no atendimento aos direitos sociais da população trabalhadora do

4Cf verbetes Agricultura Camponesa e Campesinato, escritos por Horacio Martins de Carvalho eFrancisco de Assis Costa. In: CALDART, R. S., PEREIRA, I. B., ALENTEJANO, P. e FRIGOTTO, G.(orgs.). Dicionário da Educação doCampo. Rio de Janeiro/São Paulo: EPSJV/Expressão Popular, 2012,respectivamente, p. 2632 e p. 11320.

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campo (camponeses, assalariados rurais, “povos tradicionais”,...).

A perspectiva de lutas comuns no plano do direito humano à educação trouxe jun-

to uma necessidade/possibilidade de comunicação e cooperação entre práticas educati-

vas diferenciadas que também se colocam no plano do direito: direito de desenvolver es-

tas práticas e de que sejam respeitadas e reconhecidas na sua diversidade.

Luta e construção comuns, vão constituindo, não linearmente, mas nas tensões en-

tre seus diferentes sujeitos, uma base de análise comum da realidade e elementos funda-

mentais de concepção (de educação, de campo, de sociedade) que servem de parâmetro

para orientar a continuidade das ações e identificar o que, afinal, é/pode vir a ser, a

EdoC.

A EdoC surgiu com este objetivo principal, de associar lutas de diferentes sujeitos

particulares com interesses sociais comuns, no movimento entre a luta por direitos feita

diretamente por quem se percebe excluído deles, e a luta comum entre diferentes sujei-

tos, inclusive aqueles que já têm atendido esse direito, por políticas que garantam o

acesso e a qualidade social da educação para todos. As lutas identificadas como EdoC se

colocam, então, em um patamar mais geral, ainda que específico em relação à realidade

mais ampla, do que as lutas feitas por cada grupo ou organização que a compõe. Mas es-

tas lutas particulares são a sustentação material da luta específica geral, ao mesmo tem-

po em que esta legitima e fortalece cada luta particular5.

Ela nasceu protagonizada pelos trabalhadores do campo e suas organizações, em

um movimento coletivo de pensar a educação/formação dos trabalhadores e não para

eles, lutar por políticas públicas que garantam as condições para que estas práticas sejam

construídas desde seus interesses sociais, políticos, humanos. Esta é a grande novidade

histórica da EdoC, e que não podemos deixar se perder: criada pelos trabalhadores do

campo como ferramenta para disputar políticas que lhes garantam condições objetivas

5Esta configuração assumida pela Educação do Campo foi fruto das circunstâncias concretas da formaçãoeconômico social brasileira. Ainda não chegamos a aprofundar suficientemente esta análise de porquechegamos nesta construção e não noutra. Fica como desafio aos pesquisadores da história da educação.

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de construir e gerir, pela sua associação coletiva, a educação de que precisam para “con-

quistar sua própria emancipação”. Tem um foco prioritário (não exclusivo) na luta por

políticas de escolarização formal, pela histórica negação desse acesso aos trabalhadores

e pela importância que a escola tem na construção do seu projeto educativo, especial-

mente na sua tarefa específica em relação ao conhecimento. E assumindo a contradição

de disputar junto ao Estado, “o colaborador mais disposto” do capital6, políticas que

possibilitem atender exigências formativas do polo do trabalho.

Entendemos que nessa novidade histórica está a definição principal da especifici-

dade da EdoC e, ao mesmo tempo, sua associação às lutas históricas do conjunto das

classes trabalhadoras do país, de todo mundo.

Sujeitos da Educação do Campo

Quem são, afinal, os sujeitos da EdoC? É importante retornar a esta questão por-

que se multiplicam as tentativas de obscurecer esta identidade.

Parece-nos que ajuda relembrar o que dissemos no documento base da I Conferên-

cia Por Uma Educação Básica do Campo de1998, sua atividade de “batismo”: “Decidi-

mos utilizar a expressão campo e não a mais usual, meio rural, com o objetivo de incluir

no processo da Conferência uma reflexão sobre o sentido atual do trabalho camponês e

das lutas sociais e culturais dos grupos que hoje tentam garantir a sobrevivência deste

trabalho. Mas quando discutimos a educação do campo estamos tratando da educação

que se volta ao conjunto dos trabalhadores e das trabalhadoras do campo, sejam os cam-

poneses, incluindo os quilombolas, sejam as nações indígenas, sejam os diversos tipos

de assalariados vinculados à vida e ao trabalho no meio rural. Embora com esta preocu-

pação mais ampla, temos uma preocupação especial com o resgate do conceito de cam-

ponês. Um conceito histórico e político. Seu significado é extraordinariamente genérico

e representa uma diversidade de sujeitos (...). Essas palavras [que identificam os diferen-

6MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 23.

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tes tipos de camponeses] denominam, antes de mais nada, o homem, a mulher, a família

que trabalha na terra. São trabalhadores. Seus significados

jamais são confundidos com outros personagens do campo; fazendeiros, latifun-

diários, seringalistas, senhores de engenhos, coronéis, estancieiros... As palavras expri-

mem as diferentes classes sociais.

Possuem significado histórico e político que perpassam as principais lutas de re-

sistência camponesa do Brasil, como Canudos, Contestado, Porecatu, Trombas e Formo-

so, Ligas Camponesas e MST...”.

Esta é uma sutileza a realçar porque nem sempre é entendida e é apenas aparente-

mente contraditória.

A EdoC tem como sujeitos concretos todos os trabalhadores do campo, em sua

diversidade , mas sua base de constituição se vincula aos camponeses, à especificidade

do trabalho camponês (familiar e associado ou cooperativo entre agricultores campone-

ses), ao modo de vida das comunidades camponesas, também na diversidade que os

constitui. A atuação desde a EdoC precisa ser pensada considerando os diferentes traba-

lhadores do campo, em sua diversidade econômica, política, cultural, étnica. Um desa-

fio, talvez maior, pela aparente contradição com a afirmação do trabalho camponês, é

pensar a atuação específica com os trabalhadores assalariados do campo, e especialmen-

te aqueles dispersos e sem vínculos organizativos consolidados, seja com sindicatos ou

outras formas de organização de classe.

No Dicionário da Educação do Campo, afirmamos compreender “que o conceito

de ‘camponês’, construído desde o confronto principal [de projetos de campo], pode re-

presentar o sujeito (coletivo) da EdoC, ainda que no concreto real os sujeitos trabalha-

dores do campo sejam diversos e nem todos caibam no conceito estrito de trabalhadores

camponeses”7. E por que a base da EdoC é o trabalho camponês, a perspectiva dos cam-

poneses, da agricultura camponesa? Por se entender que é fundamental a unidade do

7Op. cit., p. 15.

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polo do trabalho no embate específico entre projetos (lógicas) de agricultura, contradi-

ção em torno da qual a EdoC se move/precisa se mover na atualidade, e pelo seu hori-

zonte de superação da lógica do trabalho assalariado, base da exploração do trabalho na

sociedade capitalista. E é essa posição que acaba definindo parâmetros para os conteú-

dos das lutas, tanto por políticas públicas quanto para o reconhecimento social de práti-

cas específicas.

Mas há outro elemento a considerar na composição dos sujeitos da EdoC. Desde o

início participam das ações identificadas como EdoC outros sujeitos que não apenas os

trabalhadores do campo e suas organizações: entidades educacionais, profissionais da

educação básica e hoje, especialmente das instituições de educação superior e, contradi-

toriamente, também setores de governos que se identificam com o princípio do direito

humano universal à educação e mesmo defendem a agricultura camponesa. Esta partici-

pação acabou reforçando a dimensão das práticas e os debates de concepção.

A falta de clareza histórica sobre essa composição de princípio tem levado, nos

parece, a algumas manifestações ou compreensões equivocadas. Há quem esteja afir-

mando que a EdoC é das universidades ou que é “coisa do governo”. Ou que é um ideá-

rio abstrato, de autores, a ser seguido ou criticado. Precisamos ajudar a quem vai entran-

do nas ações identificadas por esse nome, para que entenda as várias dimensões dessa

dialética de constituição da EdoC. Pela densidade do fenômeno da realidade que identi-

fica, a EdoC se forjou como um conceito, que já de início demarcou um confronto às

políticas de “educação rural” e às relações sociais que a configuraram historicamente.

Como conceito pode ser apropriado (e também subvertido ou recriado), como todos os

conceitos, por qualquer pessoa em qualquer lugar de atuação8.

O fato de que hoje muita gente usa a expressão “Educação do Campo”, escreve ou

pesquisa sobre ela, faz seminários sobre esse tema, nos indica a importância política e

8 É assim que se pode entender, por exemplo, que secretarias de estado da educação tenham coordenaçõesou departamentos com esse nome, por vezes com objetivos contraditórios. Isso reafirma historicamente oconceito e, ao mesmo tempo, o insere na disputa ideológica entre as classes: vida real!

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teórica da construção ou da base material do conceito, mas não pode ser confundido

com a própria EdoC, especialmente se ela for entendida, em essência, como uma associ-

ação de luta dos trabalhadores , de suas organizações, seus intelectuais orgânicos. Isso

não quer dizer que as diferentes ideias sobre EdoC, e principalmente as críticas feitas

com densidade política e rigor teórico, não devam ser consideradas, visando as sempre

necessárias “depurações” no movimento real que a constitui.

É desafio dos seus sujeitos efetivos, evitar que a EdoC se torne um conceito mera-

mente formal, sem correspondência ao seu objeto, ou mesmo que passe a identificar ou-

tro objeto, com outra referência de classe, um desafio que somente pode ser superado

pelo seu movimento real, de luta e construção.

O conceito de EdoC está hoje em disputa porque há uma diferença muito impor-

tante entre o momento histórico atual e o momento em que a EdoC foi instituída, entre

lutar para que o rural voltasse à agenda do país e o rural (via agronegócio) como pilar do

modelo de desenvolvimento econômico neoliberal assumido pelo Brasil. E porque essa

opção trouxe a educação rural de volta à agenda do Estado, com fortes traços de educa-

ção corporativa (aquela feita por empresas privadas com recursos públicos e que mais

recentemente buscam incidir na educação pública)9, acompanhando as tendências gerais

da política educacional brasileira cada vez mais marcadamente neoliberal e dependente.

Construção de uma base teórica de análise

Objetivos e sujeitos coletivos que deram origem à EdoC exigiram, desde o início,

uma visão de totalidade, vinculada a uma base de análise previamente construída por es-

tes sujeitos: não é possível tratar da política educacional descolada das questões do tra-

balho, da cultura, do embate de projetos de campo, e hoje, de modelos ou lógicas de

agricultura, que têm implicações sobre projeto de país, de sociedade e sobre concepções

9Cf. o verbete Educação Corporativa no Dicionário da Educação do Campo, p. 24550, escrito porAparecida Tiradentes.

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de política pública, de educação, de formação humana. E na visão dos seus movimentos

sociais camponeses originários, a luta que constitui essencialmente a EdoC, precisa ser

parte de uma totalidade ainda mais ampla: a luta de uma classe pela instauração de uma

forma social que tenha como pressupostos vinculados entre si, a “igualdade material e

culturalmente substantiva, não meramente formal”10 e o respeito à diversidade (na socie-

dade como na natureza).

Esta visão, que se constitui pela própria natureza das lutas das diferentes organiza-

ções envolvidas, deixa mais perceptíveis aos diferentes sujeitos algumas exigências em

relação a objetivos da educação. Por isso a luta não pode ser pelo acesso a qualquer edu-

cação e é isso que tensiona conteúdo e forma das políticas públicas que se disputa, e que

por sua vez gera discussões de concepção de educação e de matriz formativa entre os

próprios sujeitos da EdoC. São, pois, os vínculos constitutivos da EdoC que alargam a

visão sobre o papel formativo da escola e acabam exigindo que a luta não seja por qual-

quer escola.

E para os trabalhadores do campo, pela realidade em que vivem, não fica difícil

entender (como parece selo para tantos gestores da política educacional) porque não é

possível tratar da desigualdade educacional desvinculada da desigualdade social e seus

fundamentos.

Também é essa visão mais ampla que permite firmar como necessidade o pensar e

agir sobre

relações, porque sem isso as práticas educativas de movimentos sociais particula-

res, assim como as que se articulam como EdoC, podem tornar-se ou ser trabalhadas

como “guetos”, que do ponto de vista de uma transformação social mais radical acabam

sendo conservadores ou mesmo reacionários, porque sempre remetidos ao que já foi ou

porque presos à aparência dos problemas que buscam enfrentar.

O esforço inicial de análise da realidade para melhor entender e organizar sua luta

10MÉSZÁROS, op. cit., p. 31.

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específica foi desenhando a EdoC como uma categoria de análise do próprio fenômeno

empírico que expressa. No percurso da EdoC identificamos/abstraímos três “esferas”

para melhor compreender sua constituição como fenômeno concreto. Temos afirmado

que a EdoC não se compreende (ou não pode ser pensada) fora da tríade: campo – edu-

cação – política pública , nas suas relações e implicações mútuas. Aos poucos estas es-

feras foram se firmando como chaves para compreender a realidade educacional do

campo e para organizar a atuação dos diferentes sujeitos coletivos da EdoC sobre esta

realidade, e sempre tendo presente que compreender as relações de determinação entre

as esferas é o que efetivamente nos importa e o que constitui a base de análise da EdoC

. Desde nosso referencial teórico, tratar da especificidade não é isolar ou pensar no fenô-

meno em si mesmo, mas sim compreender as conexões que o constituem11.

A base de análise que temos construído exige, pois, que não se pense a EdoC fora

da contradição fundamental entre capital e trabalho e, pela nossa opção de classe, sem o

objetivo de superação das leis fundamentais de funcionamento da lógica de produção

que move o capitalismo: exploração do trabalho e exploração da natureza. Isso nos situa

no terreno da luta de classes que coloca, como em toda sociedade capitalista moderna,

em essência, num polo os trabalhadores (do campo e da cidade e em suas diferentes for-

mas de relação com o capital) e no outro os burgueses e os proprietários fundiários (que

no momento atual às vezes se confundem). É o mesmo referencial que nos permite en-

tender que não podemos pensar o destino da educação fora do destino histórico do traba-

lho. Na especificidade do campo, este referencial nos permite afirmar hoje, com ainda

mais convicção do que no início do percurso, que o destino histórico da EdoC se define

fundamentalmente no âmbito da questão agrária, entendida no sentido do estudo da na-

tureza dos problemas das sociedades em geral relacionados ao uso, à posse e à proprie-

dade da terra, o que envolve o próprio embate entre lógicas de agricultura12.

1111 O Dicionário da Educação do Campo publicado em 2012 é um exemplo de esforço coletivo paraorganizar e entrelaçar conceitos fundamentais para compor uma base de análise nessa perspectiva.

12Cf. verbete Questão Agrária do Dicionário da Educação do Campo, p. 63944, escrito por João PedroStedile.

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E para organização de nossas lutas e de nossa atuação no período atual, desde os

objetivos e

interesses sociais do polo do trabalho e nas várias esferas, é fundamental com-

preender que, embora estejamos no velho capitalismo de sempre, são novas as contradi-

ções postas pelo ciclo atual de crise estrutural de reprodução/expansão do capital. Mas

também é nova e mais forte a forma de organização das classes dominantes e sua inves-

tida ideológica para que todos acreditem que “não há alternativas”. Estas “novidades”

têm implicado muito mais insanidade e perversidade (a barbárie real cujo contraponto

real desde o polo do trabalho é o socialismo) como marcas de um tipo de racionalidade

supostamente necessária para sair da crise. Se de um lado as contradições explosivas são

potenciais para transformações desde o polo do trabalho, de outro, se desta vez não fo-

rem superadas na direção de outras relações sociais, seu desenlace pode ser desastroso

(dizendo o mínimo) para o futuro da humanidade, do planeta. Pensando desde a agricul-

tura e desde a educação, os dois temas necessariamente interligados na EdoC, gerações

inteiras estão em risco. E o risco se agrava pela situação político organizativa frágil dos

trabalhadores, exatamente uma das marcas da vitória ideológica do capital até aqui.

É a lógica geral (da contradição fundamental entre capital e trabalho) que precisa

ser estudada e combatida; mas essa análise, para chegar ao conhecimento efetivo da rea-

lidade, precisa que se compreenda a especificidade do seu funcionamento em cada esfe-

ra; e especialmente quando se trata (e deve se tratar) de fazer proposições ou de cons-

truir alternativas de contraponto é necessário, sem perder as relações, fazer a análise e a

construção específica em cada esfera: o capitalismo não será destruído se não for

“substituído” (para usar os termos do poeta Baudelaire) e essa substituição/superação

não será “em tese”, mas como luta e construção em cada uma de suas expressões con-

cretas. O tamanho dessa tarefa histórica que é, afinal, de superação do modo de produ-

ção capitalista, nos dá os parâmetros estratégicos das lutas a travar pelas definições de

“qualidade da educação”, como de “qualidade da agricultura”, que se referem a um con-

fronto de matrizes produtivas tanto quanto formativas.

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Questão da diversidade

A composição da EdoC, seja entre as diferentes organizações de trabalhadores,

seja entre os demais sujeitos, e o desafio de manter o protagonismo e a identidade dos

trabalhadores do campo remete ao desafio específico de como tratar a questão da diver-

sidade com o rigor dialético que o momento histórico exige, assumindo como pressu-

posto a relação necessária entre particular e universal, específico e geral.

A diversidade é um bem da natureza e é própria das relações entre seres humanos.

Já se disse que a diversidade (natureza e cultura) é civilizatória e a humanidade precisa

se rebelar contra (pretensos) universalismos imperiais. As diferenças entre países, entre

culturas, entre campo e cidade, entre organizações, gênero, etnias, não precisam ser mo-

tivos de exclusão e desigualdades, mas sim podem ser motivos de enriquecimento da

convivência humana. O modelo de estandartização, de compressão à uniformidade, de

padronização forçada, de ideologia única, de sistema eterno, é parte essencial do proces-

so de opressão próprio do formato capitalista de sociedade e, portanto, do projeto ideo-

lógico ou da pedagogia do capital . Esse modelo precisa ser combatido e em todas as di-

mensões da vida humana. O conceito de biodiversidade, e principalmente o de agrobio-

diversidade, emergem como demarcatórios de outra lógica de agricultura, que confronta

a agricultura industrial empresarial capitalista, apresentada como modelo único de agri-

cultura moderna. E essa é uma questão que tem correspondência na dimensão da cultu-

ra, da educação, da saúde,..., enfim, das várias esferas.

A defesa da diversidade é patrimônio político e pedagógico da EdoC.

É real, no entanto, que a afirmação da diversidade, na forma de sociedade que ain-

da temos, nos coloca em um fio de navalha que nos exige especial discernimento teórico

e político: respeitar a diversidade não é o mesmo que fechar-se no gueto do “diverso”

que não nos fará avançar nos objetivos de transformação da realidade social. O debate

da agricultura, que se relaciona à produção de alimentos, precisa envolver a todos, do

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campo e da cidade, ou não conseguiremos alterar o modelo de agricultura. Da mesma

forma, na esfera da política pública de educação, a dívida histórica que a sociedade bra-

sileira tem com os trabalhadores do campo em relação ao seu acesso à educação, como a

outros direitos sociais, ainda não foi paga e este é um debate do conjunto da sociedade.

Na base da EdoC não está o “elogio às diferenças”, como se elas fossem um bem

em si e pudessem ser pensadas fora das relações sociais, fora da história, e necessaria-

mente como confrontadoras da ordem dominante. O chamado “respeito às diferenças”

pode ser funcional ao sistema, como uma espécie de amenização contraditória à lógica

da padronização e vinculada ideologicamente ao individualismo ou ao corporativismo,

como se não houvesse necessidade de encontrar pontos comuns entre os diferentes a não

ser os implícitos de subordinação à ordem social dominante. E no momento atual, a di-

versidade também pode ser abordada de maneira cínica, a exemplo do documento do

programa “Pátria Educadora” do governo federal no qual a proposição de “organizar a

diversidade”, subentende “colocar cada um no seu lugar”, justificando, uma vez mais na

história brasileira, um sistema dual e desigual (Freitas, 201513).

Buscamos a universalidade histórica de uma forma social que tenha o respeito à

diversidade como pressuposto vinculado ao da igualdade substantiva entre todos os se-

res humanos. Para isso, a luta da classe que pode construir esse futuro que buscamos,

precisa ser unitária. Inclusive a luta contra a padronização. E a educação e a escola pre-

cisam ser unitárias para poderem trabalhar com a diversidade, desde estes parâmetros

que estamos aqui discutindo. As lutas da EdoC se inserem no desafio histórico da classe

trabalhadora de construção da escola unitária, que respeite as particularidades tanto do

campo como da cidade. E hoje, não temos como avançar ou radicalizar (ir à raiz) essa

luta comum, sem enfrentar a avalanche capitalista neoliberal sobre a política educacio-

13Estamos nos referindo ao documento da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência daRepública, “Pátria Educadora: a qualificação do ensino básico como obra de construção nacional”, deabril 2015, e à análise feita por Luiz Carlos de Freitas desse documento, nessa afirmação em post de seublog no dia 27/04/2015. O documento da SAE é exemplar na explicitação despudorada de como pensaruma política educacional para os trabalhadores com a cabeça do capital. Voltaremos a isso neste texto.

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nal brasileira, toda ela.

A questão da diversidade na EdoC nos remete também à questão da pluralidade de

referenciais teóricos e políticos entre aqueles que hoje se colocam como parte ou falam

em seu nome, e os reiterados debates que estão sendo feitos, especialmente no âmbito

das universidades, sobre os riscos que isso pode trazer ao futuro político da EdoC. En-

tendemos que este debate é muito importante, mas é necessário vinculá-lo, uma vez

mais, à constituição originária da EdoC.

À medida que a EdoC junta, articula, grupos particulares diferentes, sujeitos indi-

viduais e coletivos com diferentes origens e percursos de práticas e de elaboração teóri-

ca, é “natural” que os referenciais não sejam exatamente os mesmos e que haja tensões

no plano programático. A EdoC não nasceu como um “programa doutrinário” ou um

ideário cujo credo é condição prévia de participação. Seu objetivo principal foi/deve

continuar sendo o de organizar as diferentes lutas e práticas que se colocam a favor dos

camponeses, do conjunto dos trabalhadores do campo.

No entanto, é certo que lutas e ações em comum, e as discussões e disputas que

envolvem em seu percurso, produzem/devem buscar produzir um referencial teórico co-

mum, especialmente no que se refere ao método de análise da realidade sobre a qual se

atua e às concepções de fundo sobre projeto societário, projeto de campo/de agricultura

e projeto educativo. Isto não quer dizer dogmatizar um programa para todos os grupos

ou todas as práticas envolvidas, nem entender que essa unidade teórica passe a ser uma

exigência prévia a ações conjuntas. Sendo o diálogo uma de nossas marcas, essa unida-

de será sempre um desafio de construção da caminhada comum. Mas os parâmetros do

nosso diálogo se relacionam às circunstâncias do momento atual, e que são de acirra-

mento do antagonismo de classes, em função da crise estrutural de expansão do capital.

O momento nos exige firmeza de posições políticas, exatamente uma condição para or-

ganização das lutas sociais comuns. Voltaremos a esta discussão no tópico final deste

texto.

V SEMINÁRIO NACIONAL DE LICENCIATURAS EM EDUCAÇÃO DO CAMPO - CADERNO DE ESTUDOS | 93

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Objeto da Educação do Campo: luta e construção

Como fenômeno concreto da realidade brasileira atual, a EdoC se refere a duas

questões fortes e de natureza diferente, mas relacionadas. Entender a distinção e as rela-

ções entre elas ajuda a melhor identificar a dialética dos desafios que temos pela frente.

Uma questão específica à realidade brasileira é a de que há no Brasil uma desi-

gualdade substantiva, histórica, no atendimento aos direitos humanos e sociais da popu-

lação trabalhadora do campo (camponeses, assalariados rurais, povos tradicionais, qui-

lombolas e indígenas,...) e, particularmente, no acesso à educação pública (escolarização

básica, técnica, superior), em relação ao conjunto da população. Temos, portanto, como

Nação uma dívida histórica, e ainda não resolvida, com os trabalhadores do campo em

relação ao seu acesso à educação e especialmente à educação escolar.

E o tratamento a esta questão, como luta política e na esfera da política pública

precisa seguir o antigo princípio: para restabelecer uma igualdade roubada, são necessá-

rias medidas desiguais, tratamento diferenciado, ou, na expressão de Marx, “direitos de-

siguais”14. É dessa questão que tem se ocupado a EdoC.

Esta questão específica acabou levando a outra questão, mais geral, de interesse da

humanidade, uma ferida aberta pelo capitalismo e que possivelmente só seja fechada em

outro modo de produção: ao mexer com a desigualdade de direitos, encontrou-se um an-

tagonismo entre cidade e campo, próprio a esse modo de produção, e que está na base

dessa desigualdade. Desde a EdoC, esta contradição precisa ser resolvida sem a vitória

(dissolução da especificidade) de nenhum dos polos. Mas na lógica do capitalismo trata-

se de eliminar a especificidade do campo. No momento atual esta questão se expressa

no confronto de lógicas de agricultura: entre buscar diluir a especificidade da produção

14 Em sua formulação na “Crítica do Programa de Gotta” em uma discussão sobre os direitos dostrabalhadores (São Paulo: Boitempo, 2012, p. 31): “... A fim de evitar todas (...) distorções, o direito teriade ser não igual, mas antes desigual.”

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agrícola, pela sua subordinação absoluta à indústria fabril capitalista, visando a expan-

são do capital, ou desenvolver a agricultura respeitando a relação ser humano e natureza

própria a essa indústria específica, visando fundamentalmente o desenvolvimento pleno

da vida humana e caracterizando a diversidade dos processos produtivos e culturais que

dele decorre15.

A primeira questão nos puxa para a especificidade. A segunda nos remete ao geral,

mas em

ambas visando o universal sem desconsiderar o específico.

A questão específica da dívida histórica com os trabalhadores do campo em rela-

ção ao seu acesso à educação, e especialmente à educação escolar, nos remete a uma

questão nacional: entender as razões históricas de porque a formação econômico social

brasileira pode prescindir da universalização do acesso à educação básica (direito repu-

blicano, capitalista), e particularmente, porque pode prescindir, de forma mais drastica-

mente desigual, da escolarização básica dos trabalhadores do campo.

Já a questão mais geral do confronto de lógicas, nos leva/deve levar a uma pers-

pectiva (de luta e construção) necessariamente internacionalista: o confronto de lógicas

de agricultura, e mesmo as tendências, exacerbadamente mercantilistas, da política edu-

cacional brasileira, não são fenômenos brasileiros nem se resolverão no seu estrito âm-

bito. Mas nas duas dimensões há uma “universalização perversa”16 que precisa ser supe-

rada com luta coletivamente organizada.

Entendemos que é necessário compreender com rigor o conteúdo e as relações en-

tre essas duas grandes questões para poder hoje constituir/reconstituir o objeto concreto

da EdoC.

15 Já Marx chamava a atenção em seu tempo que esse antagonismo compõe no capitalismo umacontradição fundamental na lógica de produção que rompe a relação metabólica necessária entre serhumano e natureza que o capitalismo não tem condições de resolver sem se autodestruir. Essa é, pois, umaquestão, uma luta que vai bem além do campo e bem além da educação.

16 Expressão de MÉSZÁROS, op. cit., p. 43.

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As opções econômico-sociais do Brasil, seu “modelo de desenvolvimento” não

exigiram ao longo da história um empenho político efetivo para universalização (real)

do acesso à educação básica e uma ampliação mais significativa do acesso ao ensino

técnico e à educação superior. Se houvesse essa exigência certamente os dados da esco-

larização no campo seriam diferentes. Mas, também é fato, que nessas opções historica-

mente feitas dentro de um modelo de desenvolvimento capitalista, o lugar do campo e a

forma de produção agrícola que o integram, explicam, por sua vez, porque ainda não foi

necessário universalizar sequer o acesso à educação básica para o conjunto da população

brasileira. A tradição (econômica, política e cultura l) escravocrata, latifundista e agro-

exportadora do nosso país não precisa dela. É a mesma tradição que coloca o Brasil en-

tre os países com os maiores índices de desigualdade social e de concentração da propri-

edade da terra do mundo. Índices cujas políticas mais recentes de combate à pobreza

muito pouco alteraram. Alteram-se dados de garantia de alguns direitos sociais, mas não

a desigualdade incrustada na estrutura da sociedade.

Os 17 anos de EdoC, somados a todo percurso anterior de lutas pelo direito à edu-

cação dos

trabalhadores do campo, e sempre considerando a forma de sociedade capitalista

em que estas lutas acontecem, nos permitem afirmar que: 1º) a pressão social/coletiva

por medidas e políticas específicas (mesmo por programas pontuais) no âmbito da edu-

cação, da política educacional, pode sim fazer diferença na ampliação das possibilidades

de acesso à escola pública de qualidade; 2º) já uma mudança mais substantiva na desi-

gualdade requer medidas estruturais que implicam pelo menos inflexões nas opções de

modelo produtivo: menos apoio ao agronegócio e mais incentivo à construção de outras

formas de produção agrícola; assim como precisam de inflexões na lógica da política

educacional: menos subserviência aos ditames do “mercado” ou da formação do

“exército industrial de reserva”, e mais respeito ao princípio (republicano) da educação

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como um direito humano universal17.

E a relação entre o primeiro e o segundo movimento depende de um processo edu-

cativo mais amplo (bem além da escolarização rasa e precariamente concebida) dos tra-

balhadores para que a ampliação das oportunidades de acesso (vivenciada objetivamente

pelas pessoas) se construa como consciência política coletiva de direitos, da noção do

público, das contradições sociais em que essas lutas específicas se inserem, e não apenas

como conquista pessoal de um “bem de consumo”, que é como está sendo tratado este

acesso pela própria população trabalhadora brasileira hoje.

Isso quer dizer que a realização da tarefa originária imediata da EdoC, vinculada à

superação das desigualdades educacionais entre campo e cidade, nas relações de deter-

minação que as constituem historicamente, requer trabalhar sobre dois confrontos que

ao mesmo tempo expressam e ajudam a produzir a contradição fundamental entre capi-

tal e trabalho na dinâmica da sociedade atual. Estamos nos referindo ao confronto (anta-

gônico) entre agronegócio e agricultura camponesa, e entre políticas neoliberais em-

presariais de educação e exigências formativas dos trabalhadores, e o direito de todo

povo, a uma educação ampla, integral e permanente.

O conteúdo destes confrontos vai muito além da esfera da educação e do direito à

escola, mas os inclui e incide sobre eles. E as relações entre estes enfrentamentos na rea-

lidade concreta precisam ser estudadas e cada vez mais discutidas pelos trabalhadores,

do campo e da cidade. Em nosso entender, essas relações constituem/reconstituem o ob-

jeto concreto de trabalho da EdoC.

A EdoC e o confronto entre agronegócio e agricultura

camponesa

O que está em confronto é a lógica de desenvolvimento da agricultura em seus ob-

17 Tendo presente que a superação efetiva das desigualdades e a instauração de uma igualdade socialsubstantiva supõem a construção de uma nova ordem social.

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jetivos e em seus pilares/conceitos fundamentais. Para o agronegócio o objetivo é o “ne-

gócio”: produzir mais-valia através da agricultura. E os conceitos que sustentam este

modo (capitalista) de fazer agricultura, são basicamente os seguintes: concentração da

propriedade da terra (que acompanha a concentração e centralização de capitais no

mundo); propriedade privada dos recursos naturais (lembremos, por exemplo, que o

agronegócio é também “hidronegócio”) monoculturas, insumos sintéticos, uso de agro-

tóxicos, padronização alimentar, dependência da política de créditos , trabalho assala-

riado (no caso do agronegócio brasileiro, trabalho superexplorado), superexploração da

natureza.

O agronegócio combina trabalho assalariado com busca de atrelamento de todos

os agricultores, inclusive os pequenos, agricultores familiares, a esta lógica de depen-

dência do mercado de insumos sintéticos industriais. Sua lógica de produção leva à re-

dução do “mercado de trabalho assalariado rural”18, mantém os dados da baixa escolari-

dade19, assim como a baixa remuneração do trabalho dos assalariados; simplifica o tra-

balho e reduz as exigências de qualificação para a maioria dos trabalhadores, além de

levá-los a problemas de saúde ainda mais graves do que na cidade pela exposição aos

agrotóxicos e pelas condições precárias; leva à expulsão dos camponeses de suas terras

e à destruição de comunidades rurais inteiras, com a concentração da propriedade fun-

diária pelas próprias empresas do agro, cujos donos não moram no campo; leva assim ao

fechamento cada vez mais acelerado de escolas no campo.

A agricultura camponesa, que faz o contraponto ao agronegócio, também busca

18 Segundo dados do DIEESE, o mercado de trabalho rural tem apresentado contínua e forte redução eem todas as ocupações. No período de 2004 a 2013 (antes de 2004 a PNAD/IBGE não era realizada emtoda a área rural do Brasil), passou de 4,9 milhões para 4,0 milhões de trabalhadores (18,2% em menos dedez anos).

19 Segundo dados recentes do DIEESE, 39,3% dos trabalhadores assalariados rurais não têm nenhum outêm, no máximo, três anos de escolarização, o que soma 1,6 milhão de assalariados em situação deanalfabetismo ou com baixíssima escolaridade. E são 2,1% entre os empregados com carteira assinada e0,9% daqueles sem carteira assinada, que chegam a 15 anos de estudo. E segundo o INEP foram fechadasnos últimos dez anos 32 mil escolas públicas no meio rural. Pelo censo escolar de 2014, foram 4084escolas do campo fechadas ao longo deste ano.

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desenvolver as forças produtivas da agricultura, mas em outra lógica, que implica resta-

belecer a relação metabólica ser humano e natureza e que reconhece como principal

função da agricultura a de produzir alimentos, saudáveis e ambientalmente sustentá-

veis, para o conjunto da população e dinamizando o território onde são produzidos.

Outras funções somente devem ser desenvolvidas depois da função principal ter sido re-

alizada. E alimentos não devem ser tratados como mercadorias, mas como direito huma-

no fundamental, de todas as pessoas em todo o mundo e a qualquer tempo. São concei-

tos/pilares fundamentais dessa lógica: soberania alimentar, diversificação de culturas

agrícolas, despadronização alimentar, agrobiodiversidade (conceito chave da matriz

tecnológica)20, reforma agrária ou democratização do acesso à terra e ao conjunto dos

recursos naturais , agroecologia, cooperação ou trabalho camponês, familiar e associ-

ado, agroindústrias geridas pelos trabalhadores associados.

Esta lógica complexifica e eleva o patamar das exigências formativas aos trabalha-

dores, exigências que não se resolvem na escola, mas não podem prescindir da amplia-

ção e da qualidade da escolarização dos camponeses, a começar pela universalização

(real) da educação básica. O confronto de lógicas produtivas traz junto um confronto de

matrizes formativas que incide tanto nas necessidades de acesso à escola quanto na con-

cepção de “qualidade” da educação.

É bem importante frisar que a novidade deste momento histórico, não é o agrone-

gócio (embora a ressignificação teórica e política do conceito o seja), mas sim a explici-

tação material do confronto (este é nosso objeto de trabalho educativo). A contradição

entre capital e trabalho é geral ao capitalismo e o capital incide na agricultura desde o

seu início (isso integra sua constituição), embora em diferentes movimentos e intensida-

de em cada período, em cada novo ciclo de reprodução do capital. A novidade, que foi

20 Importante ler o verbete Agrobiodiversidade, escrito por Luiz Carlos Pinheiro Machado, Dicionário daEducação do Campo, p. 4651. O autor nos chama atenção de que a diversidade é um componenteessencial de todos os sistemas vivos para alcançarem a sua estabilidade instável. E da instabilidadedinâmica cria-se a estabilidade. É nesse movimento dialético que se apoia a sustentabilidade. Não existesustentabilidade na natureza sem biodiversidade (p. 49). Discussão correspondente pode ser encontradatambém no verbete Agroecossistemas, escrito por Denis Monteiro, p. 6571.

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captada por primeiro pelos movimentos sociais camponeses é que a dinâmica dessa rea-

lidade, e pela própria reconfiguração das classes envolvidas na questão agrária hoje, ao

acelerar o avanço da lógica capitalista de agricultura nesse ciclo de crise estrutural do

capitalismo, acirra e revela mais nitidamente as contradições dessa lógica e explicita, na

resistência aos efeitos dela, que existe um confronto de lógicas, ou seja, que a forma ca-

pitalista de agricultura não é (nem pode ser) toda a agricultura e não será a forma domi-

nante (do ponto de vista produtivo, tecnológico, de relações sociais) quando superado o

capitalismo. Existe uma alternativa em construção e ela acontece de forma “exterior”,

mas em confronto, à lógica de reprodução do capital21.

A EdoC nasceu/segue vinculada às contradições do processo de desenvolvimento

do campo em uma formação econômico-social onde o modo de produção capitalista é o

dominante e o modo capitalista de pensar é hegemônico, em todas as atividades huma-

nas, das econômicas às culturais e políticas. Ela é fruto, de um lado, dos efeitos sociais

(“desigualdade substantiva”) do avanço do modelo capitalista de agricultura e da hege-

monia ideológica do agronegócio na sociedade brasileira. De outro lado, a EdoC tam-

bém é fruto da existência contraditória de outra lógica, outro modelo, identificado hoje

como “agricultura camponesa”, que já foi visto como “residual” apenas, mas que cada

vez mais é analisado como uma alternativa a ser desenvolvida para o futuro da agricul-

tura, em uma nova forma dominante de relações sociais de produção. Análise que tem a

ver com o desenvolvimento prático do modelo da agricultura empresarial capitalista e

seus efeitos estruturais sobre o trabalho humano, sobre a vida humana e a natureza. E

cuja construção coloca necessidades educativas qualitativamente diferentes daquelas do

projeto do capital para a agricultura. Em outras palavras, se o modelo do agronegócio

21 Desenvolvo um pouco mais a compreensão desse confronto entre lógicas de agricultura e entre asmatrizes formativas que lhes correspondem nos textos: “Desafios do vínculo entre trabalho e educação naluta e construção da Reforma Agrária Popular”. In: CALDART, R.S, STEDILE, M. e DAROS, D.(org).Caminhos para transformação da escola 2 . São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 177219. E “ReformaAgrária Popular e pesquisa: desafios de conteúdo e forma da produção científica”. In: CALDART, R. S. eALENTEJANO, P. (org.) MST, Universidade e Pesquisa . São Paulo: Expressão Popular, 2014, p.137169.

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fosse o único (na realidade e não no discurso ideológico) não haveria EdoC. Ela é fruto

do confronto de modelos, de projetos de campo.

Mas a EdoC precisa trabalhar para que mais gente entenda como funcionam e

como se confrontam estes modelos de campo, estas lógicas de agricultura e, principal-

mente, as contradições que envolvem, e ajudar a formar os trabalhadores camponeses

para que potencializem ou desenvolvam ao máximo a lógica de agricultura e o modo de

vida de que são historicamente sujeitos, resistindo à expropriação de que são vítimas.

Do contrário, o risco é de que as contradições eclodirão em formas cada vez mais des-

trutivas do ser humano e da natureza, e não fará sentido pensar em EdoC. O cenário de

domínio pleno (econômico, político e ideológico) do agronegócio tira o sentido de exis-

tência da EdoC, a não ser como ironia de novo batismo para as exigências de uma edu-

cação rural modernizada, que se coloca contra os trabalhadores e contra a realização da

especificidade da educação como um direito humano universal e em uma perspectiva

emancipatória. E este é um dos embates fundamentais também no plano da disputa por

políticas públicas ou por recursos públicos a serviço das necessidades sociais dos traba-

lhadores.

O enfrentamento ao agronegócio que a EdoC pode ajudar a fazer inclui, pois, dois

esforços

articulados, mas específicos. Um deles é o de contribuir para aprofundar e sociali-

zar mais

amplamente uma análise sobre o avanço do capitalismo no campo ou do modo de

produção

capitalista na agricultura feita desde o polo do trabalho ou da ótica dos trabalhado-

res: suas

contradições fundamentais, a situação em cada região específica, as implicações

sociais e humanas, incluindo as questões de saúde e ambiente. É preciso entender a eco-

nomia política do confronto.

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O outro esforço é de participar desde a educação da construção já em curso deste

novo paradigma (nova lógica, novo modelo) de produção agrícola. Inclui lutas contra

amarras neoliberais e mercantilizantes que prendem os esforços de pesquisa, de exten-

são, de educação profissional, de assistência técnica à direção exclusiva de aperfeiçoa-

mento da agricultura de lógica capitalista, dificultando ao máximo o acesso a recursos

públicos que possam apoiar a construção de alternativas.

A EdoC e o confronto entre política educacional atual e

exigências formativas dos trabalhadores

Aqui também o confronto é de objetivos e de lógica, e fica mais explícito hoje

pela entrada direta dos empresários no debate sobre as reformas “necessárias” na educa-

ção pública. A contradição de objetivos, que não costumam ser apresentados, assim

como na agricultura, é basicamente a seguinte: do lado do capital, o objetivo é organizar

acesso, conteúdo e forma da educação pública (a privada pode ter um pouco mais de li-

berdade) para atender as necessidades (oscilantes) da preparação dos trabalhadores

(“mão de obra”), de modo a adquirirem competências (cognitivas e comportamentais ou

agora “sócio-emocionais”) adequadas a cada momento, visando o aumento dos lucros

das empresas, e compondo o velho conhecido “exército industrial de reserva”. Do lado

do trabalho, ou das pessoas, em contraponto, o objetivo é organizar a política de educa-

ção visando atender o direito humano, portanto, de todos, a uma formação que ajude seu

desenvolvimento mais pleno, formação que seja ampla e diversificada, e que trabalhe to-

das as dimensões da vida.

Este confronto de objetivos não é novo (tem a idade do capitalismo), mas é novo o

ciclo e as exigências do capital em relação à educação, buscando que sua lógica seja ab-

soluta (a meta parece ser agora não apenas ser dominante, mas eliminar o contraditório)

e para isso aperfeiçoando e formulando conceitos que incidam diretamente no cotidiano

da escola, e excluam qualquer espaço de construção alternativa que vise o fortalecimen-

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to do polo do trabalho.

A lógica dos chamados “reformadores empresariais da educação” da atualidade

(que é cada vez mais internacionalizada), tem os seguintes pilares: avaliações externas

em escala , que passam a incidir sobre objetivos e avaliações de cada escola; padroniza-

ção (que é estreitamento) curricular a partir das exigências dos testes (é o que hoje se

busca fazer estabelecendo uma “base nacional comum”); meritocracia, incluindo remu-

neração dos professores vinculada aos resultados dos testes dos estudantes; flexibiliza-

ção (precarização) do trabalho dos profissionais da educação (para que possam ser de-

mitidos mais facilmente caso saiam do padrão exigido); gestão empresarial das escolas,

de preferência feita pelas próprias empresas, através de parcerias público-privadas, o

que é uma forma de privatização da educação pública . A articulação destes conceitos e

os mecanismos estabelecidos para sua operacionalidade exacerbam o controle ideológi-

co sobre toda a estrutura educacional (Freitas, 2014; Leher, 201422).

Aqui a novidade, perversa, é dupla: 1ª) o fortalecimento da organização das clas-

ses dominantes e seus intelectuais orgânicos em torno da questão da educação, confor-

mando essa nova coalizão (internacional) que passa a ser identificada como “reformado-

res empresariais”23 e atua por dentro do Estado, que se assume ostensivamente como

“educador do povo”24 ; 2ª) o objetivo ambicioso assumido pelas reformas (talvez na pro-

porção da gravidade da crise estrutural de reprodução do capital no mundo): os empresá-

22 FREITAS, Luiz Carlos. Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle doprocesso pedagógico na escola. Educação & Sociedade. Campinas, v. 35, n. 129, p. 10851114, outdez,2014. E LEHER, Roberto. Organização, estratégia política e Plano Nacional de Educação. Boletim daEducação n. 12 . São Paulo: MST, dez 2014, p. 7190. Nestes textos um aprofundamento necessário deanálise, que aqui não faremos, sobre as reformas empresariais da educação, suas determinações históricase suas implicações.

23 No texto de FREITAS, ( op. cit., nota 3, p. 1109) encontramos o conceito de “reformadoresempresariais da educação”, termo criado nos EUA, que é importante ter presente aqui, inclusive parapensar a similitude com a composição do “agronegócio”: “reflete uma coalizão entre políticos, mídia,empresários, empresas educacionais, institutos e fundações privadas e pesquisadores alinhados com aideia de que o mercado e o modo de organizar a iniciativa privada é uma proposta mais adequada para‘consertar’ a educação americana, do que as propostas feitas pelos educadores profissionais”. – No Brasil,essa coalizão é conhecida como “Movimento todos pela educação” (cf. Leher, op. cit.).

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rios ao mesmo tempo abrem uma “nova frente de negócios” (testes, apostilas, consulto-

rias, gestão de escolas,...), e com recursos públicos (!), incidem diretamente no conteúdo

e na forma de preparação da “mão de obra” (seja para o trabalho assalariado típico ou já

para suas variações “empreendedoras”) e colocam em ação uma ofensiva de trabalho

ideológico sobre as novas gerações, talvez sem precedentes na história do capitalismo:

seu lema poderia ser sintetizado como “mais capitalismo ou barbárie” porque “não há

alternativas!”

Mas não é assim. Na educação, como na agricultura, sim, há alternativas, e o con-

fronto continua, especialmente quando a “classe trabalhadora toma a tarefa educacional

em suas mãos” (Leher, op. cit., p. 77). Por isso mesmo essa tentativa ostensiva de “orga-

nizar a diversidade” para que o capital não perca seu controle. Na lógica das múltiplas

experiências dos trabalhadores, e suas reflexões teóricas (mais radicais ou menos), está a

noção de educação como um direito humano e em algumas como tarefa de formação de

lutadores e construtores de uma nova ordem social (estas as que mais assustam e geram

a ofensiva dos reformadores empresariais). São conceitos fundamentais nessa lógica: es-

cola unitária; igualdade e diversidade, dialeticamente combinadas; educação integral

de perspectiva omnilateral e universalista; conhecimento das bases das ciências e das ar-

tes; práxis; trabalho coletivo; auto-organização de estudantes e de educadores ; vínculo

da escola com seu entorno social; educação politécnica; avaliação participativa; defesa

da educação pública.

A EdoC tem um vínculo de origem com a tradição de uma educação emancipató-

ria e construída desde os interesses sociais do polo do trabalho. Por isso mesmo assume

o enfrentamento aos rumos atuais (decisões e tendências) da política educacional brasi-

24 Usamos esta expressão pensando na formulação de Marx na “Crítica do Programa de Gotha” escritoem 1875 (São Paulo: Boitempo, 2012, p. 46). Na análise de Leher deste texto ( op. cit ., p. 78), paraMarx, “conceber o Estado como educador é o mesmo que atribuir aos setores dominantes a educação dostrabalhadores. Marx trabalha aqui uma tensão fundamental: a escola deve ser pública, mantida às expensasdo Estado, mas a educação deve ser confiada aos educadores e aos conselhos populares, como ocorrera naComuna de Paris (certamente, a experiência que influenciou o texto de Marx), assegurando a autonomiados educadores frente ao Estado particularista”. – Quanta atualidade!

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leira.

Do ponto de vista da própria tarefa específica da EdoC, estes rumos passam a ser

um novo obstáculo para que se avance na superação das desigualdades de acesso à esco-

larização, entre os diferentes estratos da classe trabalhadora. Vincular o acesso e a defi-

nição de parâmetros de qualidade da educação diretamente às exigências do “mercado

do trabalho assalariado”, e buscando eliminar as possibilidades de explicitação das con-

tradições entre as exigências do polo do trabalho e do capital, pela entrega dessa defini-

ção e a própria gestão do sistema diretamente às empresas, e em um país com as caracte-

rísticas do nosso, é simplesmente abandonar o objetivo primeiro da universalização do

acesso à educação, cuja base sempre foi o princípio da educação como direito humano e

as necessidades de desenvolvimento do ser humano. Na especificidade do campo é esta

lógica que leva a se considerar um programa como o PRONATEC (Programa Nacional

de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego ), por exemplo, como o máximo de forma-

ção a que um trabalhador do campo (que saiba se colocar no seu lugar!) pode aspirar.

É a mesma lógica que tem facilitado a entrada descarada das empresas do agrone-

gócio nas escolas, para garantir “qualidade” às escolas do campo enquanto ainda não

são fechadas, o que na prática quer dizer promover uma ofensiva ideológica, a favor da

lógica da agricultura empresarial capitalista, tanto mais forte quanto mais as contradi-

ções aparecem (mesma lógica, modernizada, da educação rural no período da chamada

“revolução verde”, que continua sob outros termos, agora com objetivos mais audacio-

sos e inovações tecnológicas ainda mais destrutivas). A política educacional atual torna

muito mais difícil fazer o enfrentamento à pedagogia do capital em nossas práticas edu-

cativas porque tira a autonomia das escolas e legitima a atuação das empresas no siste-

ma educacional, ao mesmo tempo em que precariza o sistema público.

Mas confrontar a política educacional em geral não significa secundarizar a luta

especifica da EdoC, embora não baste (nunca bastou!) ficar nela. A dialética a ser com-

preendida é a seguinte: sem combater o rumo neoliberal da política educacional brasilei-

ra (que não é só do nosso país, e aqui assume o caráter dependente) não há mais como

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avançar nas conquistas específicas da EdoC.

Tivemos no último período conquistas significativas, mas agora, mantida a ten-

dência dominante da lógica, “batemos no teto”, no sentido de avançar no acesso e pode-

mos retroceder muito do ponto de vista da qualidade social pela ofensiva da educação

rural como educação corporativa e pela eliminação de experiências alternativas que fi-

quem fora do padrão estabelecido pela gestão empresarial do sistema. Por outro lado,

continuar esta luta específica, pressionando o sistema com as demandas dos trabalhado-

res super-explorados e os que tendem a uma maior marginalização da política pública,

ajuda no combate geral à medida que mostra mais escancaradamente as contradições da

lógica e os efeitos das opções que estão sendo feitas pelos governos atuais.

Ainda no plano da análise, nos parece muito importante entender a correspondên-

cia de lógicas (ou do confronto de lógicas), que está hoje na agricultura, como está na

cultura e como se tenta (isso é mais recente, inovação do capitalismo em crise) imple-

mentar na educação, porque esta compreensão nos ajuda na conexão de lutas e esforços

coletivos25.

A lógica da chamada “modernização capitalista da agricultura” foi desencadeada

pelo acionamento da indústria fabril para desenvolver e aumentar a produção agrícola,

pela mediação do vínculo direto entre ciência e produção (próprio da produção capitalis-

ta como um todo). O que se analisa hoje é que a expansão do desenvolvimento capitalis-

ta da agricultura, que ocorre justamente na fase regressivo-destrutiva do capital, acelera

ou exacerba sua lógica produtiva, deixando cada vez menos espaço a outras lógicas,

mesmo que subordinadas, e isso agrava a escala das conseqüências do modelo. Por isso

25 Em seu blog, (www.avaliacaoeducacional.com.br) o prof. Luiz Carlos de Freitas, da Unicamp,mencionou em um post recente (4/06/15) sua preocupação com o que chamou de tentativas de“industrializar a profissão de professor”, que passa pela própria criação de fórmulas matemáticas eestatísticas para medir seu desempenho, na relação com medidas igualmente formalizadas de desempenhodos estudantes, etc. e como isso desloca o que deve ser o objetivo principal da atuação do professor,relacionado ao desenvolvimento humano mais pleno de seus educandos. Esta pode ser uma chave decompreensão importante para a EdoC: a relação entre a industrialização fabril capitalista da agricultura eda educação.

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já está ficando mais explícita sua irracionalidade, especialmente pela inversão que agora

bloqueia o próprio desenvolvimento da ciência: não se trata de acionar a indústria fabril

para o avanço da produção agrícola, mas, dominantemente, de colocar a agricultura a

serviço do aumento de lucros das fábricas de insumos, de agrotóxicos, de grandes ma-

quinários, de sementes geneticamente modificadas, pondo em risco grave a saúde huma-

na e a reprodução da biodiversidade, condição de reprodução da natureza, da vida em

todas as espécies.

O modelo tecnológico consiste em buscar ostensivamente “inovações” que permi-

tam aos donos das terras a diminuição dos riscos de seu “negócio” e isso quer dizer “li-

vrar-se” dos condicionantes naturais (inevitáveis) da produção agrícola, como fertilidade

de solo, condições climáticas, produção de sementes, etc., de modo que ela aconteça

com o mesmo padrão e lógica da indústria fabril, de automóveis, de roupas, etc. Do pon-

to de vista de longo prazo essa lógica, que parecia inevitável para aumentar a produção e

alimentar a maioria da população vivendo nas cidades, produziu (e agora chega a limites

quase insuportáveis) a chamada “falha irreparável” na interação metabólica entre ser hu-

mano e a terra, a natureza, o que já foi indicado por Marx, em seus estudos preliminares

sobre agricultura e questão agrária, ainda no século XIX! Só piorou, desde a lógica do-

minante. Mas, como vimos, já há alternativas importantes em construção.

Como desenvolvemos em outros textos, e citando Bartra (2011)26, do ponto de vis-

ta de lógica de produção, uma das maiores tensões do grande capital é em relação à con-

tradição entre a uniformização tecnológica, econômica e social que demanda a ordem de

mercado absoluto e a inevitável diversidade biológica, produtiva e social, consubstancial

à natureza e ao ser humano. Esse é o grande confronto de lógicas de agricultura da atua-

lidade: entre seguir com a lógica que já se mostra estruturalmente destrutiva e avançar

em outro caminho, que já existe, mas que é impedido de se desenvolver na escala que

possa efetivamente “substituir” a outra lógica e que se refere a desenvolver as forças

26 BARTRA, Armando. Os novos camponeses. São Paulo: Cultura Acadêmica; Cátedra Unesco deEducação do Campo e Desenvolvimento Rural, 2011, P. 97.

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produtivas da agricultura respeitando a interação metabólica entre ser humano e nature-

za, que é a base da construção da matriz tecnológica da agroecologia.

Essa lógica tem correspondência na característica da “indústria cultural capitalis-

ta” que tem como eixo orientador o princípio de estandartização. Trata-se e uma dimen-

são essencial do processo de opressão próprio do formato capitalista de sociedade para o

qual nem sempre damos a atenção devida. Para termos bem presente a relação apenas

em um exemplo, o modelo de agricultura do agronegócio precisa do trabalho ideoló-

gico-cultural que leve à padronização alimentar ou, como alguns já chamam, à “monoto-

nia alimentar”27 como ideal de consumo e, mais perverso ainda inclusive daqueles que

produzem alimentos diversificados, os camponeses. – Na mesma lógica geral do capita-

lismo que precisa do “cultivo canceroso do consumismo” (Mészáros, op. cit. , p. 47)

para garantir a expansão do capital.

Não é difícil associar a essa lógica os conceitos e princípios fundamentais das re-

formas empresariais que estão sendo preconizadas para “salvação do ensino público”,

especialmente quando elas aparecem de um jeito tão “honesto” como no documento re-

cente da SAE sobre a (pobre) “Pátria Educadora”. Trata-se do Estado assumindo a lógi-

ca pura da expansão/reprodução do capital para a educação e já novamente invertendo

sua possível missão “civilizatória” de ligação entre indústria e ciência: não se trata de

buscar apoio na ciência e nos avanços tecnológicos para melhor realizar os objetivos da

educação, mas de utilizar as “inovações” de modo a colocar a educação a serviço do au-

mento dos lucros das empresas dos testes, das apostilas, dos procedimentos de gestão

padronizados e de definir o quantum e a forma de conhecimento a ser acessado aos tra-

balhadores através da escola, na medida matematicamente calculada para que o aumento

da produtividade do trabalho se combine com rebaixamento de salários, etc.

E se antes o modelo de referência para a escola formar o perfil necessário ao traba-

27 Já existem pesquisas associando problemas de alergias a determinados alimentos, algo mais recorrentenos tempos atuais, com a chamada “monotonia alimentar”, ou seja, o consumo contínuo e intensivo depoucos alimentos, justamente pelas investidas mercantis de padronização (cultural) alimentar.

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lhador assalariado (de modo que “colabore” mais com o processo de extração da mais-

valia) estava em instituições como a Igreja e o Exército, hoje o modelo posto é o da pró-

pria empresa: se é para elas que os estudantes devem ser preparados (seja para entrar ou

apenas aspirar a entrar ou para que tenha “seu próprio negócio”), nada melhor que as es-

colas básicas passem a funcionar como uma empresa, uma fábrica. E como estamos fa-

lando de escolas públicas, que são majoritariamente freqüentadas por filhos de trabalha-

dores, podem ser fábricas de modelo taylorista e fordista, a exemplo das agroindústrias

do moderno agronegócio brasileiro!

A EdoC se move, precisa se mover, se compreender, nessas circunstâncias históri-

cas, e precisa processá-las no âmbito da educação e da política pública, contribuindo na

análise pela sua relação constitutiva das três esferas, ajudando o povo trabalhador a en-

tender como os fenômenos se vinculam. É preciso que muito mais gente entenda que a

lógica assumida pelo Estado em relação à produção agrícola é a mesma lógica assumida

para exacerbar a mercantilização da educação; que o mesmo Estado com o qual disputa-

mos políticas públicas de educação para os trabalhadores do campo é o que está garan-

tindo volumosos recursos públicos para fortalecer o modelo agrícola do agronegócio,

mesmo sabendo que esse modelo reduz drasticamente o número de trabalhadores no

campo. Hoje há grandes empresas capitalistas transnacionais dominando “os negócios

da agricultura”, em diferentes países, do mesmo modo que há grandes empresas dispu-

tando o mercado da educação “pública”. Em alguns casos, podem ser as mesmas empre-

sas.

E na educação como na agricultura o que se defende ideologicamente, ostensiva-

mente, é que “não há alternativas”: sem agronegócio haverá mais fome no mundo; sem

as reformas empresariais na educação será a falência geral do ensino básico no país: am-

bos como a “salvação” da “Pátria Educadora”! Não fossem as contradições da realidade,

da vida real, a vitória do polo do capital seria absoluta, como às vezes nos parece mes-

mo ser.

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Desafios político-organizativos

Hoje, já com alguma retrovisão histórica do percurso da EdoC, e considerando es-

tes confrontos fortes do período, precisamos trabalhar alguns desafios, especialmente de

ordem político-organizativa, e que também são desafios teóricos, de concepção sobre

por onde ou por qual caminho continuar nosso percurso para dar conta das tarefas que o

momento atual nos coloca.

Como linha geral, nos parece necessário assumir como concepção organizativa e

política da EdoC a própria dialética de sua constituição originária , atualizada pela

análise dos movimentos da realidade atual e buscando maior intencionalidade na politi-

zação da luta específica. E realizar ações em comum ou desde cada sujeito coletivo que

integra a EdoC, que expressem tomada de posição política nos confrontos principais,

sem perder o foco e o objeto de sua especificidade. Destacamos para nosso debate cole-

tivo alguns desafios que a nosso ver são prioritários:

(1º) Reafirmar e fortalecer a EdoC como uma associação de trabalhadores para

lutas comuns e cooperação entre práticas, aperfeiçoando, através de ações coletivas,

sua forma organizativa nessa direção.

As lutas da EdoC não podem substituir as lutas de cada organização ou grupo e

nem podem prescindir delas (perderiam seu significado ou sua base real). Da mesma

forma que o esforço coletivo de intencionalizar a comunicação e a cooperação entre

práticas educativas das diferentes organizações envolvidas na EdoC não visa superar a

diversidade de práticas, mas sim fortalecer seu desenvolvimento, ao mesmo tempo que

inserir cada prática particular no horizonte mais geral da construção de um projeto edu-

cativo da classe trabalhadora.

É preciso superar, pois, a armadilha de considerar a EdoC como uma entidade ou

mesmo uma organização ou um movimento social em si mesma, uma espécie de estágio

superior a que deve chegar cada grupo particular que nela se associa e, pior ainda, con-

fundi-la ou tentar convertê-la em um ideário (formal, abstrato) a que se pode simples-

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mente seguir (ou querer combater ou alterar), descolando-a do seu sentido material ori-

ginário de associação de lutas e de práticas. Porque isso tira justamente a parte principal

de sua novidade histórica, à medida que a desloca dos sujeitos coletivos das lutas con-

cretas que a constituem como é.

A EdoC não tem como concentrar em si, nem deve fazê-lo, a diversidade de lutas

e de práticas dos sujeitos que se associam sob esse nome. Radicalizando, talvez se possa

afirmar que ninguém deveria ser identificado apenas como sendo “da EdoC”; assim

como ninguém deve deixar de ser quilombola, indígena, pescador, atingido por barra-

gens, mulher camponesa, agricultor familiar ou sem terra para “ser da EdoC”. Por sua

vez, se for uma associação real de organizações ou grupos, a EdoC poderá sim levar à

transformação de seus sujeitos, de modo que o conjunto possa dar passos qualitativos de

superação no rumo dos objetivos sociais mais amplos como classe trabalhadora. Tam-

bém é fato, que integra este mesmo movimento dialético, que práticas desenvolvidas

desde os vínculos da EdoC, podem motivar trabalhadores sem participação anterior em

organizações coletivas a constituírem outras organizações ou a se inserir nas atualmente

existentes. Da mesma forma que se pode pensar na EdoC como uma possibilidade de ar-

ticulação específica entre os trabalhadores da educação das escolas do campo, geralmen-

te pouco contemplados em suas questões profissionais pelas organizações de sua catego-

ria, e mesmo pelos movimentos sociais a que se vinculam. Assim como hoje se discu-

tem iniciativas de articulação ou pelo menos de intercâmbio entre os estudantes dos di-

ferentes cursos que se associam desde as lutas da EdoC. O parâmetro para estas novas

possibilidades estaria no desafio enunciado. E avançar nessa direção organizativa supõe

o óbvio que precisa sempre ser repetido, autonomia em relação ao Estado (estrito sen-

so). E exige esforço coletivo de educação política, especialmente tendo em vista as rela-

ções com governos, necessárias na disputa de políticas públicas, de recursos públicos,

mas sempre “perigosas” para objetivos de transformação mais radical do “atual estado

de coisas”. É necessário combater politicamente entre nós, tanto as posições reformistas

como as doutrinário-imobilistas: ambas nos distanciam de nossos objetivos maiores.

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(2º) Defender e garantir com intransigência o protagonismo efetivo das organiza-

ções de trabalhadores do campo na condução da EdoC.

A radicalidade política que justifica a existência da EdoC na realidade brasileira se

define pelos vínculos, de conteúdo e forma, com seus sujeitos originários. Quando esse

protagonismo é retirado, sequestrado, e se continua falando em EdoC, só pode ser como

farsa ou como ironia. Isto é o que vem acontecendo hoje na esfera da política pública,

no discurso de representantes de empresas do agronegócio (nesse caso como perversida-

de ideológica pura!), mas também, em alguns casos, no âmbito de instituições de educa-

ção e pesquisa que trabalham com a EdoC.

Defender este protagonismo não significa secundarizar ou menosprezar a partici-

pação dos intelectuais ou de outros trabalhadores que não sejam vinculados diretamente

ao campo. Ao contrário, é essa composição diversa que traz ainda mais potencialidades

à EdoC, no sentido de afastá-la de lutas excessivamente corporativas ou particularistas,

de ampliar os horizontes de interesse dos trabalhadores do campo e inserir suas lutas es-

pecíficas na luta de classes mais ampla. Mas é fato, que é esse protagonismo das organi-

zações camponesas o que pode garantir hoje a radicalidade política da EdoC, sem que

perca sua especificidade, pelos vínculos com lutas essenciais da classe trabalhadora e

com processos educativos enraizados nessas lutas que trabalham com necessidades for-

mativas de mais longo prazo.

Este desafio inclui a necessidade de pensar adequações de forma organizativa e

método formativo de atuação desde a EdoC com a diversidade dos trabalhadores do

campo: camponeses, assalariados rurais, povos tradicionais. E na perspectiva de que as

contradições da realidade atual se transformem em lutas que produzam consciência po-

lítica sobre a necessidade de mudanças radicais na ordem social dominante. Precisamos

mais trabalhadores construindo um projeto que seja de “vôo longo” na direção de supe-

ração das relações sociais capitalistas.

(3º) Continuar e fortalecer, desde lutas e práticas coletivas, a construção de uma

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base teórica comum de análise da realidade, em vista da unidade política entre os dife-

rentes sujeitos da EdoC .

Unidade política quer dizer condução das lutas e das atividades para objetivos co-

muns e desde interesses sociais e políticos comuns. É preciso um esforço rigoroso e pa-

ciente para evitar que confusões teóricas nos levem a uma desorientação estratégica. E o

esforço principal se refere a uma base comum de análise crítica da realidade (específica

e geral) e do momento histórico presente. Para isso, os referenciais teórico-metodológi-

cos desde os quais nos posicionamos como organizações coletivas devem ser explicita-

dos, e não tomados como dados ou como dogmas, nem discutidos em si mesmos, no

plano do confronto de ideias pelas ideias, ou da crítica pela crítica. Tudo que não preci-

samos neste momento é de debates teóricos que nos imobilizem (nossos inimigos de

classe, de projeto, estão fortes demais para que arrisquemos avançar por inércia!) ou que

nos façam recuar nos movimentos de transformação da realidade que é nosso objeto.

Já dissemos que a EdoC não é uma doutrina cujo aceite é condição de participa-

ção. Mas isso não quer dizer que se possa assumir uma posição eclética ou fazer conces-

sões teóricas em relação à base metodológica de análise construída em seu percurso.

Este referencial não se negocia porque ele é a sustentação da estratégia de luta e constru-

ção. Abrir mão dele pode levar a desvios do caminho. E os parâmetros de sua formula-

ção foram/devem continuar sendo dados pelos sujeitos coletivos de sua constituição ori-

ginária: as organizações de trabalhadores camponeses, que se assumem como intelectu-

ais orgânicos coletivos da classe trabalhadora.

A luta é também teórica. Está em questão uma compreensão da realidade e de

como e em que direção deve ser transformada. Não tem como fazer lutas conseqüentes

contra o agronegócio sem entender cientificamente qual a lógica produtiva a combater.

Da mesma forma em relação aos fundamentos do que se está propondo como “refor-

mas” ou “inovações” na questão da política de educação, é necessário identificar qual o

confronto essencial. E é preciso ter presente que a disputa fundamental na EdoC hoje é

entre manter o vínculo com os interesses sociais do polo do trabalho ou perverter-se à

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modernização do capital para a educação rural. E desde a primeira escolha fundamental,

vincular-se a um projeto de transformação radical da sociedade, inserindo lutas e cons-

truções particulares na luta de classes.

E é desafio específico intencionalizar a socialização com o maior número possível

de trabalhadores, e especialmente os do campo, essa análise e a chave teórico-metodoló-

gica que lhe corresponde, exatamente para que participem da construção desta unidade

política. Evidentemente este é um movimento permeado por contradições e a construção

acaba sendo objeto de disputa, internamente à EdoC, ou com aqueles que por algum mo-

tivo querem falar em nome dela, desde fora de suas lutas concretas e sem assumir seus

vínculos originários.

(4º) Organizar ações coletivas de combate ideológico ao agronegócio.

Primeiro há uma necessária tomada de posição, que ainda não pode ser considera-

da óbvia. Para nós não pode haver meio termo nem titubeios de posição: ou se está ao

lado do capital ou ao lado do trabalho; ou se está do lado do agronegócio ou da agricul-

tura camponesa. Seus projetos são inconciliáveis e as classes que os representam estão

em luta. A EdoC nasceu desde o polo do trabalho, dos camponeses, de um projeto de

campo que represente o futuro da humanidade: isso é inegociável! Não há reformas ou

aperfeiçoamento a defender no modelo do agronegócio ou do capital para a agricultura:

é o modelo, sua lógica, que precisa ser superada, “substituída”. Nisso precisamos ser ra-

dicais, ir à raiz, o que nada tem a ver com dogmatismo, fundamentalismo ou desrespeito

à diversidade. E ir à raiz aqui quer dizer, fazer o enfrentamento ao agronegócio como

parte dos esforços da classe trabalhadora (luta e construção) de superação do modo de

produção capitalista.

Nossas ações de combate precisam ajudar a superar um mito, que foi ideologica-

mente construído e que ainda influencia o pensamento de muitos, inclusive de pessoas

críticas às iniqüidades do sistema capitalista. Mito de que o agronegócio, ao representar

o “avanço das forças produtivas no campo”, a modernização da agricultura, seja um

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avanço em relação ao desenvolvimento da classe trabalhadora e seu acesso a direitos so-

ciais, entre eles o avanço da escolarização, enquanto que a sobrevivência do trabalho de

base camponesa representa o atraso, não exigindo qualificação e elevação da escolarida-

de dos trabalhadores. A realidade nos mostra o contrário, mas a ofensiva ideológica

tenta mascará-la.

Temos muitos camaradas de luta que ainda não entenderam o confronto de lógicas

de agricultura como parte da luta de classes hoje e porque combatemos o agronegócio. E

isso fica ainda mais grave pela ofensiva do agronegócio nas escolas públicas para conti-

nuar com a hegemonia ideológica sobre as novas gerações, mesmo diante das contradi-

ções explosivas do modelo da agricultura empresarial capitalista. Precisamos enfrentar

essa ofensiva porque ela mascara a lógica destrutiva desse modelo e subordina educado-

res e estudantes, com discursos aparentemente inovadores.

É muito importante denunciar que o avanço do agronegócio reduz drasticamente

as possibilidades de superação da desigualdade entre campo e cidade no acesso à “esco-

la pública de qualidade”. É o avanço do seu contraponto, ou seja, da chamada “agricul-

tura camponesa do século XXI”, o que já vem fazendo e poderá fazer muita diferença na

superação da desigualdade e na construção de um projeto educativo que vise uma for-

mação humana emancipatória. É, pois, do polo do trabalho e não do capital que vem

hoje a pressão (material, objetiva) mais forte pela ampliação da escolarização dos cam-

poneses.

Nosso esforço educativo inclui intencionalidades para que a sociedade, a começar

pelas famílias das comunidades do campo, discuta e se posicione sobre algumas ques-

tões fundamentais ao futuro do ser humano: que tipo de alimentos queremos consumir?

Como devem ser produzidos esses alimentos? Como garantir que todas as pessoas (em

qualquer lugar do mundo, em cada região, em cada local) tenham acesso aos alimentos

de que precisam para viver com saúde? Qual a principal finalidade da agricultura (pro-

duzir alimentos ou produzir commodities)? Qual o uso que devemos dar à terra, à água,

ao conjunto dos recursos naturais? O que deixaremos como herança para nossos filhos e

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netos? Quem deve controlar a produção agrícola de um país?

As escolas do campo devem ser envolvidas nessas tarefas de combate e de cons-

trução. E os cursos de formação de educadores, como do conjunto dos profissionais que

atuam no campo, não podem ficar alheios a estes embates e seus desafios formativos de

longo prazo.

(5º) Associar-se às ações de denúncia e resistência ideológica às reformas empre-

sariais da educação em curso no Brasil.

Também aqui a posição ainda não pode ser tomada como óbvia entre nós. O que

especialmente devemos ajudar a denunciar/enfrentar é a ingerência dos empresários na

política educacional, que no caso brasileiro acontece pela atuação institucionalizada do

chamado “Movimento Todos pela Educação” e suas implicações principais. As denún-

cias políticas principais que precisamos assumir coletivamente hoje se referem aos pila-

res fundamentais das reformas em andamento, antes identificadas. Denúncias que se

combinem com lutas massivas pelo acesso universal à educação de qualidade social (pa-

râmetro de necessidades humanas de aprendizagem), por medidas desiguais para corrigir

desigualdades, pelo respeito à diversidade que se combina com igualdade substantiva,

luta pela escola unitária,... Luta em defesa (intransigente!) da escola pública, efetiva-

mente pública!

E luta que também é pelo direito de construção, pela prática e pela colaboração

(trabalho coletivo) entre professores, estudantes, comunidades, e com autonomia em re-

lação ao “Estado educador”!

Pátria Educadora para nós deve ser igual a Povo/trabalho educador e não

Estado/capital/mercado educador! Mais do que nunca vale a afirmação de Marx e En-

gels (nas Teses sobre Feuerbach) de que, nesse caso, é o [pretenso] educador que precisa

ser educado. Luta pela possibilidade de construção de projetos educativos emancipató-

rios, que preparem e insiram desde já as novas gerações de trabalhadores nesses e nou-

tros combates: pela desalienação e desmercantilização da vida! E é preciso pressionar

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recursos públicos e ou políticas públicas que possibilitem esta construção autônoma pe-

los trabalhadores, no âmbito da produção, da educação, da cultura e comunicação,...

Este desafio implica construção de formas organizativas próprias ao nosso tempo, coo-

peração entre práticas, entre grupos, entre escolas, auto-organização de estudantes, expe-

riências de educação politécnica, no campo e na cidade,... na direção da luta maior pela

construção de novas relações sociais, de caráter socialista, que não virão senão por uma

ação contínua, persistente e estrategicamente orientada de sua construção pelos trabalha-

dores em todas as esferas.

Em tempos de preparação profissional rebaixada, pautemos a educação politécni-

ca! Em tempos de dualidade, pautemos a escola unitária! E ajudemos na superação

prática da concepção que prevê uma pequena elite de trabalhadores com qualificação

mais sofisticada e a imensa maioria com qualificação mínima para empregos precários,

com exacerbação da cisão entre trabalho manual e intelectual, prática e teoria.

(6º) Radicalizar as lutas coletivas pelo acesso das famílias trabalhadoras do

campo à educação escolar pública (e de gestão pública).

Afirmar o direito dos trabalhadores do campo à educação foi sem dúvida uma con-

quista em um país como o nosso que ainda não conseguiu atingir esse patamar republi-

cano. – O próprio fato de que agora temos dados de pesquisa sobre essa realidade é uma

conquista da última década. Mas é preciso tomar cuidado com a falácia de considerar

que esse direito já foi atendido. Houve avanços significativos nos últimos anos, mas ain-

da há muitas crianças do campo fora da escola em idade correspondente ao ensino fun-

damental, justamente a faixa em que se diz que o acesso foi “universalizado”. As esco-

las não param de fechar e o número de analfabetos adultos não retrocede significativa-

mente.

Programas e políticas que têm sido identificadas como “Educação do Campo”,

como o PRONACAMPO (Programa Nacional de Educação do Campo, lançado pelo go-

verno federal em 2012), por exemplo, são fruto de lutas, mas têm assumido a concepção

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da “educação rural”, adequada às tendências do desenvolvimento capitalista neoliberal,

agora também para o campo. Estão muito longe do que deveria ser a garantia pelo Esta-

do de um sistema público e universal de educação para a população trabalhadora do

campo. O agronegócio cada vez mais incide nas escolas existentes, aproveitando a aber-

tura geral da política à entrada das empresas na educação pública, através de materiais

didáticos e paradidáticos, projetos de formação de professores, atividades diretas com os

estudantes28. Mas sua lógica produtiva não precisa da universalização da educação bási-

ca, muito menos que o Estado invista em um sistema público de educação no campo e

supere a precariedade física da maioria das escolas ainda existentes. Isto precisa ser de-

nunciado com veemência!

Precisamos denunciar e discutir com os trabalhadores a ilusão de considerar que o

vínculo da escola com o mercado de trabalho (precário), na lógica de relação, por exem-

plo, entre educação básica e cursos do PRONATEC, ou na linha de retorno à “educação

profissional” precoce (e precária) represente um avanço para a educação dos trabalhado-

res na perspectiva da construção de alternativas à exploração do trabalho pelo capital.

Ao contrário, programas como estes demonstram a visão que os governos atuais têm de

campo e o reducionismo dos objetivos de educação e de formação para o trabalho.

E tenhamos presente que as famílias podem ser um importante foco de resistência

às reformas, à medida que compreendam os malefícios que uma formação reducionista e

uma avaliação baseada em testes padronizados podem trazer para o pleno desenvolvi-

mento humano de nossas crianças e jovens.

Nosso enfrentamento implica principalmente realizar lutas coletivas, massivas

pelo acesso dos trabalhadores do campo à educação pública e no próprio campo. Isso é

estrutural e na lógica atual de expulsão das famílias do campo pela agricultura capitalis-

ta parece até que é “exigir o impossível”, por isso deve ser prioridade. Nessa perspectiva

28 Cf. dados de pesquisa e análise sobre esta questão em: LAMOSA, Rodrigo A. C. Estado, classe social e educaçãono Brasil: uma análise crítica da hegemonia da Associação Brasileira do Agronegócio. Tese de Doutorado. Programade Pós Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.

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uma luta emblemática é contra o fechamento de escolas: precisamos assumir entre as di-

ferentes organizações que compõem a EdoC a campanha “fechar escola é crime!”, inici-

ada pelo MST e mobilizar-se pela agilização e desburocratização da construção de novas

escolas no campo. Da mesma forma que devemos disputar políticas ou mesmo progra-

mas que pressionem o sistema na direção do acesso dos camponeses à escola em todos

os níveis, com atenção especial à dívida histórica que temos com a alfabetização de jo-

vens e adultos.

E precisamos continuar denunciando a precariedade da estrutura física, dos contra-

tos precários de trabalho dos professores e sua conseqüente rotatividade, a insalubridade

do transporte escolar, que continuam como características predominantes no meio rural

e tendem a piorar se as reformas empresariais tiverem sucesso e chegarem ao campo.

(7º) Fortalecer a cooperação entre práticas que explicitem o confronto de matriz

formativa na especificidade do campo.

Estamos muito tímidos nesse esforço e ainda que as condições atuais sejam espe-

cialmente adversas para a construção de práticas educativas de confronto à matriz hege-

mônica, é preciso firmar entre nós este desafio de “tomar a tarefa educacional em nossas

mãos”, como classe trabalhadora, multiplicando práticas educativas que se desenvolvam

na direção de formar lutadores e construtores da nova ordem social, e de intercâmbio e

colaboração entre diferentes grupos e organizações nessa direção.

Parece-nos necessário definir áreas prioritárias para formulações pedagógicas co-

muns entre os sujeitos coletivos da EdoC. Algumas questões emergem nas discussões

como estando mais maduras para aprofundamento entre nós, seja pelo acúmulo das dife-

rentes organizações seja pelas necessidades mais urgentes. Entre elas destacamos para

nosso debate: caminhos para transformação das escolas de educação básica, conteúdo e

forma na direção de objetivos formativos dos trabalhadores, de longo prazo; formação

de educadores das escolas nessa perspectiva (e particularmente como potencializar para

nosso projeto a conquista que tivemos com a implantação da Licenciatura em EdoC), e

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também como formar educadores para a tarefa urgente de educação política dos traba-

lhadores do campo; formulação dos pilares (conceitos básicos) de uma educação profis-

sional de perspectiva politécnica para formação dos trabalhadores camponeses. Enfim, o

desafio é tomar em nossas mãos este debate de formulação político-pedagógica, como

educadores do campo e como intelectuais ou profissionais vinculados organicamente a

este projeto.

Tenhamos presente, ao finalizar este texto, mas não a discussão, que nossa incapa-

cidade de tratar adequadamente as contradições do momento atual, potencialmente ex-

plosivas, pode trazer conseqüências desastrosas para o futuro dos trabalhadores, da hu-

manidade inteira. Os desafios de luta e construção, em que estamos envolvidos como

classe trabalhadora, vão muito além da educação, mas importa muito para seu desenlace

a forma como serão enfrentados nesse âmbito, porque se trata de formar as novas gera-

ções que precisam assumi-los.

Desde sua especificidade, a EdoC tem muito a fazer sobre isso, desde que assuma

estes desafios e firme sua forma de constituição e de atuação nos vínculos que a fizeram

surgir.

E nos preparemos para um combate de tempo longo! Afinal, para quem se coloca

“como objetivo a transformação radical das condições de vida da humanidade”, seria

imperdoável assustar-se com o trabalho prolongado29.

Porto Alegre, julho 2015.

29 LENIN, V. I. Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento. 2ª ed., São Paulo: ExpressãoPopular, 2015, p. 245, nota 156.

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POLÍTICA DE FORMAÇÃO DE EDUCADORES DOCAMPO NO CONTEXTO DA EXPANSÃO DA

EDUCAÇÃO SUPERIOR1

Mônica Castagna Molina2

Salomão Mufarrej Hage3

Resumo

O artigo analisa a política de formação de professores no contexto da expansão daeducação superior do campo, focando as tensões entre a matriz demandada pelosmovimentos sociais camponeses e a política hegemônica assentada nas orientações dosorganismos internacionais, para ajustar a formação profissional às mudanças atuais nosistema produtivo. Ele resulta de pesquisa bibliográfica e documental que analisoulegislações e programas relacionados à política oficial de formação de professores e oProcampo − Programa de Apoio às Licenciaturas em Educação do Campo, concebidoenquanto política que contribui para uma formação crítica de educadores formuladores edisseminadores da contra hegemonia.Palavras-chave: Ensino superior. Formação de professores. Educação do campo.

Formation policy of countryside teachers in the context of

expansion of higher education

Abstract

The article analyzes the teacher training policy in the context of the expansion of highereducation in the countryside, focusing the tensions between the demanded matrix bypeasants’ social movements and the hegemonic policy defined as a requirement ofinternational organizations to adjust the training to current changes in the productionsystem. The text results from bibliographic and documentary research that analyzedlegislation and programs that address the official policy of teacher training and theProcampo, Support Program Degrees in Rural Education, understood as a policy that

1 Artigo publicado na Revista Educação em Questão, Natal, v. 51, n. 37, p. 121-146, jan./abr. 2015

2 Universidade de Brasília

3 Universidade Federal do Pará

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contributes to a critical training of formulator and disseminator teachers of the counter-hegemony. Keywords: Higher education. Teachers’ formation. Rural education.

Política de formación docente en el campo en el contexto de

expansión de la educación superior

Resumen

El artículo analiza la política de formación docente en el contexto de la expansión de laeducación superior en el campo, centrándose en las tensiones entre la matriz demandadapor los movimientos sociales campesinos y la política hegemónica sentada en lasdirectrices de las organizaciones internacionales, para ajustar la formación a los cambiosactuales en sistema de producción. El artículo el resultado de la investigaciónbibliográfica y documental que examina las leyes y programas relacionados con lapolítica oficial de la formación del profesorado y los Procampo, Grados Programa deApoyo a la Educación Rural, entendida como una política que contribuya a formacióncrítica de educadores fabricantes y divulgadores de contra-hegemonía.Palabras-clave: Educación superior. Formación del profesorado. Educación del campo.

Introdução

Este artigo, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior (Capes), integra a pesquisa “Políticas da Expansão da Educação Superior no

Brasil”, realizada a partir do Observatório da Educação Superior, desenvolvida por sete

subprojetos e executada por pesquisadores de diversas Instituições de Ensino Superior

(IES) no País.

O objetivo geral da referida pesquisa é analisar as políticas da expansão da Educa-

ção Superior no Brasil, a partir de 1995, considerando as mudanças econômicas, políti-

cas e sociais em curso e as reformas institucionais advindas da Reforma do Estado brasi-

leiro. Um dos sete subprojetos tem como foco a análise da expansão da Educação Supe-

rior do Campo e de suas contribuições para o desenvolvimento rural e para a sociedade

brasileira.

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Uma das frentes da expansão da Educação Superior do Campo tem se dado no

âmbito da formação de educadores, com a implementação de 42 cursos em Instituições

de Educação Superior brasileiras de uma nova modalidade de graduação, concebida a

partir da demanda dos movimentos sociais, intitulada “Licenciatura em Educação do

Campo.”

Em função dos pressupostos teóricos que orientam o Movimento da Educação do

Campo, é questionável se haveria alguma possibilidade de essa política de formação de

educadores, conquistada pelos movimentos sociais camponeses e seus aliados, significar

um espaço de acúmulo de forças e de desenvolvimento de experiências, que possam re-

cuperar e ampliar os espaços de práticas de formação de educadores como sujeitos his-

tóricos sociais, capazes de formar novas gerações de jovens e adultos a partir de uma

perspectiva humanista e crítica. Os cursos de Licenciatura em Educação do Campo (LE-

DOC), dada sua vinculação material de origem, poderiam enfrentar a hegemonia das

atuais políticas de formação no Brasil, orientadas predominantemente pela chamada

“Epistemologia da Prática”?

Na primeira parte deste artigo, buscando refletir acerca das questões explicitadas,

a partir das leituras que se tem feito no âmbito da pesquisa citada, apresentamos uma

síntese das principais políticas que têm materializado essa concepção hegemônica, cujos

principais fundamentos relacionam-se à concepção da relação teoria e prática na forma-

ção dos educadores. Na segunda parte, buscando explicitar a diferença dessa mesma re-

lação − a começar da compreensão do Movimento da Educação do Campo, o qual teve

forte incidência na elaboração da matriz formativa das Licenciaturas em Educação do

Campo −, apresentamos a compreensão da relação teoria e prática que consideramos

constituir a matriz que orientou a elaboração da política de formação de educadores do

campo, materializada no Programa de Apoio às Licenciaturas em Educação do Campo

(Procampo).

A partir dessa compreensão, indagamos: pode-se considerar o território conquista-

do para ampliação desses 42 novos cursos como espaço de acúmulo de forças para ele-

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vação da consciência das classes trabalhadoras do campo?

Considerando a tese defendida por Neves (2013) e fundamentada no pensamento

gramsciano, que considera os professores intelectuais estratégicos na disseminação da

nova pedagogia da hegemonia, este artigo pretende reunir e organizar argumentos para

subsidiar a hipótese segundo a qual, apesar dos riscos da expansão, dados os princípios

originários do Movimento da Educação do Campo e de sua intrínseca vinculação com a

luta de classes, há elementos presentes na concepção dessa política que podem contri-

buir para promover uma formação crítica e transformadora, que, ao invés de formar edu-

cadores do campo como intelectuais da disseminação da nova pedagogia da hegemonia,

forme educadores formuladores e disseminadores da contra--hegemonia, capazes de

compreender e promover a necessária articulação das lutas entre as escolas do campo e

as lutas para superação dos pilares que sustentam a estrutura da sociedade capitalista.

Para fundamentar essa reflexão, tomamos, como referência, os trabalhos de Hele-

na Freitas (1999, 2002, 2003, 2007); Silva (2012); Freitas (2011), os quais fazem a críti-

ca aos processos formativos centrados na “Epistemologia da Prática”, assim como tam-

bém recuperamos os elementos críticos acerca das atuais políticas de formação docente

de Neves (2005, 2013), cuja ênfase reflexiva tem se desenvolvido a partir da tese que

considera a atuação dos professores como intelectuais orgânicos da nova Pedagogia da

Hegemonia. A partir do diálogo com as ideias expostas por esses autores, reunimos ele-

mentos que apresentam a hipótese da principal potencialidade que consideramos haver

na política de formação de educadores do campo, qual seja, o potencial contra- hege-

mônico dessa política frente às atuais políticas de formação docente.

A política hegemônica de formação de professores no Brasil

frente às mudanças atuais no sistema produtivo

Conforme explicitam autores como Frigotto (2010); Mancebo (2010); Freitas

(2011); Neves (2005, 2013), a crise estrutural do capital tem rebatimentos diretos na

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educação. A necessidade de criação de nichos de acumulação, como também as mudan-

ças requeridas no perfil dos trabalhadores − em função da intensa incorporação de novas

tecnologias nos processos produtivos, visando à redução dos custos de produção das

mercadorias −, faz com que a educação torne-se um dos grandes focos de interesse das

classes dominantes no atual período histórico.

Como demanda do próprio capital, visando à recuperação e à manutenção das ta-

xas de lucro, as intensas transformações foram se operando nas últimas décadas nos pro-

cessos produtivos, as quais foram desenhando a superação do padrão taylorista/fordista

de produção, para um padrão no qual se requer um trabalhador com habilidades bem

maiores, que não podem ser apreendidas somente nas fábricas e que requerem um perío-

do mais longo de formação da classe trabalhadora. Para que ela possa desenvolver as ha-

bilidades requeridas a esses novos processos produtivos − que exigem sujeitos com mai-

or capacidade de decisão, de compreensão, de flexibilidade, de adaptabilidade às trans-

formações que continuamente se processam nas ilhas de produção –, é imprescindível

garantir a elevação dos níveis de escolaridade dos trabalhadores (FREITAS, 2011).

A necessidade das classes dominantes de ampliar o acesso à educação para as clas-

ses trabalhadoras, em função do novo perfil de trabalhador, capaz de se adequar e dar

respostas às novas estratégias produtivas requeridas para manutenção das taxas de lucro

do capital nessa fase de crise estrutural, incide direta e indiretamente nas disputas em

torno das concepções que orientam as políticas de formação de educadores, dado o

imenso peso que tem essa categoria na formação da visão de mundo dos jovens e crian-

ças das novas gerações, de todos aqueles que passam pela escola (FREITAS, 2011; NE-

VES, 2005, 2013).

Além dos aspectos já descritos na teoria educacional acerca da relevância desse

papel, mais um fator tem se somado a esse debate: a dimensão do número de profissio-

nais atuando na educação no Brasil, transformando-os em uma das maiores categorias

profissionais do País: 378 mil docentes na educação superior e 2 milhões de docentes na

educação básica (NEVES, 2013).

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A importância do papel desses profissionais, na formação da visão de mundo das

novas gerações que passam pela escola, aliada ao tamanho dessa categoria, coloca, de

acordo com Neves, as políticas de formação de educadores como parte relevante das

disputas

[...] para construção e consolidação de qualquer projeto político--social naatualidade brasileira, quer seja pelo seu expressivo contingente, quer seja pelainfluência que exercem na conformação técnica e ético-política das novas ge-rações (NEVES, 2013, p. 2).

A citada autora indica que os professores têm um papel e uma função social extre-

mamente relevante, porque possuem o potencial de atuar como intelectuais orgânicos,

seja da hegemonia ou da contra-hegemonia. Baseada no pensamento gramsciano, que

entende que todos os homens são intelectuais, exercendo, porém, em diferentes intensi-

dades esse papel na sociedade em função das oportunidades de formação e dos locais

que ocupam nesta mesma sociedade, Neves (2013) nos apresenta a hipótese de que, no

momento atual, os professores, de maneira geral, estariam sendo preparados para atuar

como intelectuais orgânicos da nova pedagogia da hegemonia, sendo submetidos a pro-

cessos aligeirados de formação, incapazes de oportunizar tempo e espaço para uma for-

mação omnilateral, sendo essa perspectiva substituída por uma formação fragmentada,

excessivamente focada na prática, desprovida de uma adequada fundamentação teórica

e, pior, apartada da necessária formação de valores que devem integrar a formação do-

cente.

Essa lógica de formação docente acaba por encontrar o caminho da superação da

contradição vivenciada pelos capitalistas de, ao mesmo tempo, ter que elevar os níveis

de escolaridade dos trabalhadores, sem, porém, aumentar os níveis de consciência e

compreensão deles, sobre os injustos processos de trabalho aos quais são submetidos,

sob o modo de produção capitalista (FREITAS, 2011).

A referida formação docente, aligeirada, precarizada, sem a devida fundamentação

teórica, dissociadora da teoria e da prática, realizada sem a presença e a participação do

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futuro educador na vida escolar, e também ainda sem a necessária garantia do acesso aos

conteúdos específicos da área de formação para o qual se titula esse docente, tem sido

objeto de intensa pesquisa e reflexão na área de formação de educadores, expondo, de

maneira flagrante, os imensos prejuízos à qualidade da educação no País.

O estudo realizado por Ferreira (2011) indica que, para compreender, na atualida-

de, a política hegemônica de formação de professores, faz-se necessária uma incursão

pelas legislações educacionais brasileiras promulgadas a partir da década de 1990 no

contexto das reformas educacionais em curso, e orientadas pela forte presença dos orga-

nismos internacionais.

Essas reformas se fundamentaram num modelo de administração pautado pela efi-

ciência, eficácia, produtividade e gerência racional dos recursos humanos e sociais, e fo-

ram orientadas por organismos internacionais, como Banco Mundial; Fundo Monetário

Internacional; Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura; Or-

ganização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, entre outros, a partir da com-

preensão de que a promoção da escolarização mínima para a população estimularia o de-

senvolvimento do País, garantindo a entrada no mercado, de maneira mais competitiva e

forte. A título de exemplo, o Banco Mundial em suas prescrições indica ser

[...] a educação um importante instrumento de promoção de crescimento eco-nômico e da redução da pobreza. [...] A educação pode ajudar a reduzir a de-sigualdade, proporcionar novas oportunidades aos pobres e, conseqüentemen-te, aumentar a mobilidade social (BANCO MUNDIAL, 1995, p. 18).

Entre as legislações educacionais brasileiras, segundo Ferreira (2011), que mais

diretamente interferem na definição das políticas de formação inicial e continuada de

professores e estabelecem os parâmetros para a definição do perfil e do trabalho docente

encontram-se: o Plano Decenal de Educação de 1993 (BRASIL, 2003) − que destaca a

importância e estabelece diretrizes para a formação docente; a Lei de Diretrizes e Bases

da Educação Nacional (LDB − Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) − que dedica

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um capítulo específico a esse tema; os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN − 1997)

− que inclui a formação docente como objeto de estudo privilegiado na formação conti-

nuada, nas escolas brasileiras; os Sistemas Nacionais de Avaliação − Sistema de Avalia-

ção da Educação Básica (SAEB − BRASIL, 2005) e Exame Nacional de Ensino Médio

(ENEM) − que impõem mudanças na condução da formação e trabalho docente no coti-

diano escolar; o Plano Nacional de Educação (PNE − Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de

2001, Seção IV/Magistério da Educação Básica, subseção 10/Formação e valorização do

magistério); o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE − 2007) − que aponta a

formação docente como um dos principais instrumentos para a melhoria da qualidade da

educação básica; o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação (Decreto n.

6.094, de 24 de abril de 2007 − BRASIL, 2007) − que estabelece como um dos pontos

básicos a formação docente; a Política Nacional de Formação de Profissionais do Ma-

gistério da Educação Básica (Decreto nº 6.755, de 29 de janeiro de 2009 − Portaria Nor-

mativa nº 9, de 30 de junho de 2009) − que institui o Plano Nacional de Formação dos

Professores da Educação Básica no âmbito do Ministério da Educação; a criação da

“Nova CAPES” (Lei nº 11.502, de 11 de julho de 2007 − BRASIL, 2007a) − que passa a

ser a agência reguladora da formação docente da educação básica pela via do Departa-

mento de Educação Básica.

Essas legislações, no conjunto, determinam referências e parâmetros que direcio-

nam as políticas e o trabalho docente em sua natureza e função, vinculando diretamente

os professores e sua formação como responsáveis pelos graves problemas educacionais

vivenciados no Brasil, e, ao mesmo tempo, estabelecendo, como solução para essa pro-

blemática, a promoção de mudanças substantivas na qualificação técnico-profissional

dos docentes, bem como nos métodos e organização dos sistemas e das unidades escola-

res, em duas dimensões: reestruturação da formação inicial dos profissionais; e revisão,

sistematização e expansão da formação continuada dos profissionais da educação bási-

ca.

A maioria das legislações mencionadas anunciam a importância da articulação en-

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tre teoria e prática na formação dos professores, entretanto, estabelecem que os proces-

sos formativos devem ser efetivados enquanto capacitação em serviço, ou seja, no exer-

cício da profissão docente, para assegurar aos professores a qualificação mínima exigida

pela LDB, e devem ainda considerar os saberes e experiências anteriores dos docentes.

A capacitação em serviço fortalece a ideia de praticidade, compreendida como for-

mação de “executores” do ensino, desprestigiando a sólida fundamentação teórica ao

priorizar o ativismo nas atividades em sala de aula, o que tem sido destacado por Freitas

(2002) quando chama a atenção para a ênfase que as reformas educativas vêm atribuin-

do ao que acontece na sala de aula, em detrimento do que acontece, globalmente, na es-

cola, retornando à concepção tecnicista de “Educação com uma nova roupagem.”

A utilização da educação a distância na formação inicial e continuada dos profes-

sores também se constitui como indicação muito presente nessas legislações, o que, em

grande medida, também dificulta a concretização da articulação entre teoria e prática,

desconsiderando as dificuldades que se enfrenta para a promoção dessa intencionalidade

nos cursos presenciais, tornando-se, na modalidade a distância, essa articulação ainda

muito mais problemática.

Freitas (2007), em suas análises a respeito da política de formação docente, em

face do caráter prioritário dado à Educação à Distância (EAD), especialmente a partir do

surgimento da Universidade Aberta do Brasil (UAB), também chama atenção para a se-

cundarização do conhecimento teórico, a negação dos fundamentos epistemológicos, e a

valorização da Epistemologia da Prática e da lógica das competências, que permeia os

programas e cursos de EAD. Na visão da autora, essas iniciativas, massificadas por in-

termédio da UAB, cumprem as metas estatísticas e conformam os professores a uma

concepção de caráter subordinado, meramente instrumental, em contraposição à concep-

ção do educador de caráter sócio-histórico, dos professores como profissionais da edu-

cação, intelectuais essenciais para a construção de um projeto social emancipador que

ofereça novas possibilidades à educação da infância e da juventude (FREITAS, 2007).

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Na visão da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação −

Anfope (2002), os cursos de formação inicial e continuada de professores sob a modali-

dade da EAD são efetivados como uma política compensatória, que visa suprir a ausên-

cia de oferta de cursos permanentes dirigidos a segmentos populacionais historicamente

afastados da rede pública de educação superior, como os professores leigos, levando o

Ministério da Educação a propor ações articuladas com as secretarias de educação esta-

duais e municipais para promover a formação dos professores nessa modalidade.

Essas orientações reforçam a atividade docente como um ofício predominante-

mente técnico, induzindo os professores a se tornar “consumidores” de cursos de forma-

ção a fim de adquirirem competências para o ingresso e permanência no mercado de tra-

balho; situação essa que se coaduna com as afirmações de Maués (2005), quando afirma

que a adoção da pedagogia das competências na formação docente tem aproximado a es-

cola da lógica do mercado, oferecendo uma formação que atende às exigências do mun-

do empresarial em detrimento de uma formação geral e crítica; e deve formar um pro-

fessor “[...] capaz de seguir a flexibilização do mercado, que seja polivalente e que tenha

a sua subjetividade trabalhada para incorporar essa nova fase do capitalismo como algo

normal e inevitável” (MAUÉS, 2005, p. 94-95).

Nessa mesma perspectiva, a pesquisa tem sido destacada como elemento impor-

tante nos cursos de formação inicial e continuada de professores, entretanto, o foco tem

sido predominantemente o processo de ensino e aprendizagem, no sentido de que os

professores devem dispor de conhecimentos e mobilizá-los para a ação docente (BRA-

SIL, 2002).

Todas essas estratégias terminam por convergir com a ênfase que tem sido dada à

formação e valorização dos professores como determinante para melhoria da qualidade

da educação, referendada pelas legislações educacionais vigentes e pelo discurso dos

gestores públicos educacionais em todas as esferas de governo, quando estabelecem

como foco da formação dos professores a aprendizagem dos alunos aferida por meio de

resultados concretos a serem atingidos; quando vinculam a formação dos professores à

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alfabetização em tempos predeterminados, com acompanhamento dos alunos individual-

mente mediante registro de seu desempenho por meio de exames periódicos específicos;

quando instituem programas de formação inicial e continuada de formação de professo-

res em regime de colaboração articulados à implantação do plano de carreira, cargos e

salários para os profissionais da educação, privilegiando a promoção por mérito e a ava-

liação de desempenho.

De fato, a partir da implementação do “Plano de Metas Compromisso Todos pela

Educação”, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) − idealizado a par-

tir de experiências da Organização para Cooperação e o Desenvolvimento Econômico,

com o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) (BRASIL, 2010) −, se tor-

nou instrumento de regulação da política de formação docente na atualidade e indicador

oficial de qualidade da educação pública brasileira.

Essa visão de qualidade tem sido apontada como limitada e reducionista pelo con-

junto de entidades que atuam diretamente com a formação dos educadores em nível na-

cional: Associação Nacional de Pesquisa e Pós- Graduação em Educação (ANPEd),

Centro de Estudos Educação & Sociedade (Cedes), Associação Nacional de Política e

Administração da Educação (Anpae), Associação Nacional pela Formação dos Profissi-

onais da Educação (Anfope), Fórum Nacional de Diretores de Faculdades e Centros de

Educação (Forumdir) e Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação

(CNTE).

Essas instituições apontam que essa concepção de qualidade é extremamente per-

versa quando passa a ser utilizada como referência para a avaliação do desempenho dos

próprios professores em seu trabalho docente, especialmente quando priorizam o desem-

penho satisfatório dos professores em exames nacionais; domínio de conhecimentos, ha-

bilidades e competências estabelecidas previamente; emprego de tecnologias avançadas

com fim em si mesmas; supervalorização da competitividade e da produtividade; novos

métodos de gerenciar sistemas e instituições educacionais sob a ótica empresarial; pro-

cedimentos integrados e flexíveis no trabalho pedagógico que restrinjam a atuação dos

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profissionais da educação (ANFOPE; ANPAE; ANPEd; CEDES; CNTE; FORUNDIR,

2011).

Estabelece-se, assim, de maneira bastante articulada, a relação entre formação, va-

lorização, trabalho docente e autonomia no quadro em que se estabelecem as políticas

educacionais e os mecanismos de regulação que passam a envolver o trabalho docente.

O estudo de Reis (2014) nos ajuda a compreender melhor a articulação referida ao

afirmar que, com a implementação das políticas de formação de professores em curso, a

autonomia está perdendo espaço para a responsabilização do trabalho docente, uma vez

que os discursos da competência na formação e trabalho docente, por elas evidenciado,

mascaram a face da autonomia visto que o controle exercido pelos programas de forma-

ção continuada, pelos modelos estandardizados de avaliação e os materiais pedagógicos

utilizados como padrão de aplicabilidade para os alunos de maneira uniforme, deixa

margem à afirmativa de que a autonomia, na fase atual do trabalho docente é, no míni-

mo, questionável.

Peroni (2010), em seus estudos, colabora com essa discussão acerca da autonomia

dos professores quando destaca que uma das estratégias comumente utilizada para forta-

lecer o processo de regulação em curso do trabalho decente, com a utilização de ações

intensivas de formação dos professores, são as parcerias entre a esfera pública e a priva-

da, implementadas para a melhoria da qualidade do ensino. Sob a ótica da racionalidade

técnica no intuito de atender às recomendações do Banco Mundial, Programas como

“Gestão Nota 10” e “Escola Campeã” entre outros, implantados nas redes de ensino por

meio de parcerias com o Instituto Ayrton Senna e o Grupo de Estudos sobre Educação,

Metodologia de Pesquisa e Ação (Gempa), por exemplo, diminuem a autonomia dos do-

centes, mediante utilização de materiais didáticos que os professores recebem prontos, e

com um supervisor que verifica a aplicação do material, envolvendo o desempenho cog-

nitivo dos alunos e os fluxos de aprovação, reprovação e evasão, associado à premiação

por desempenho.

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Essas iniciativas todas, no conjunto, fortalecem o argumento de Contreras (2002)

ao afirmar que a autonomia na atual conjuntura de modificações da docência tornou-se

ambígua, pois se, de um lado, solicita dos trabalhadores docentes iniciativa e criativida-

de, de outro, cria estratégias de controle desse trabalho. Elas se afastam das demandas

dos movimentos sociais populares do campo que se inserem no movimento contra-hege-

mônico de transformação das políticas públicas de educação no Brasil, a fim de romper

com as limitações impostas pela formação profissional que visam responder às deman-

das atuais do sistema produtivo.

A perversidade da lógica de avaliação implementada, de acordo com Neves (2005,

2013) e Freitas (2012), está absolutamente interligada às maiores intencionalidades des-

se sistema: estimular a competição, o individualismo, o egoísmo. A estratégia de ranque-

amento entre as escolas, a lógica de premiação de docentes, os bônus salariais, enfim, os

vários elementos que integram a política que promovem a competição entre os próprios

docentes de uma mesma escola, e pior, entre as escolas, desconstruindo, cada vez mais,

a ideia de uma rede escolar e um sistema de ensino, produzem nefastas consequências.

Além de desestimular o trabalho coletivo entre os docentes e abortar possibilidades de

articulação entre as escolas, acaba por cultivar, nos professores, os valores competitivos,

antissolidários, o que acaba levando-os à reprodução desses valores com os educandos

que convivem. Por isso, Neves (2013) os colocam como intelectuais orgânicos da hege-

monia: porque estariam reproduzindo os valores da sociedade capitalista.

Uma das principais marcas da chamada “Epistemologia da Prática” refere-se exa-

tamente à ideia de que a resolução dos graves problemas educacionais, enfrentados pelo

sistema público de ensino do País, adviria do aumento da capacidade do próprio educa-

dor de refletir sobre sua própria prática docente e de promover transformações em seus

processos de ensino e aprendizagem que, ao serem efetuadas por si só, resolveriam os

problemas educacionais do Brasil, ignorando e desconsiderando todos os demais fatores

externos e estruturais que integram os dilemas educacionais do País.

Ao contrário dessa concepção, a estratégia formativa que subjaz à política de for-

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mação de educadores do campo desenhada na matriz das Licenciaturas em Educação do

Campo, concebida a partir da pressão dos movimentos sociais, revela uma concepção

que não adere aos propósitos das políticas neoliberais, de responsabilização e individua-

lização do docente sobre o êxito ou fracasso do aluno, sem considerar todas as condi-

ções socioeconômicas e culturais que envolvem os processos de aprendizagem (FREI-

TAS, 1999; 2003). E, ao mesmo tempo, não desresponsabiliza o educador da condução

dos processos didáticos, dando-lhe, porém, condições de compreender, criticamente, sua

própria prática, qualificando-o, cada vez mais, à luz de maior compreensão e complexi-

ficação das teorias que têm orientado sua ação pedagógica.

Essa é exatamente a cilada da perspectiva neoliberal das políticas de formação, ao

colocar somente sobre o docente a responsabilidade da transformação dos problemas

educacionais, portanto, como destaca Silva, se a questão da relação teoria prática no

processo de formação docente for colocada sobre esses parâmetros,

[...] haverá dificuldades de estabelecer unidade entre as duas atividades hu-manas: teórica e prática, pois em tais circunstâncias a unidade refere-se ao fa-zer, não questionando a direção, o sentido e a política da ação (SILVA, 2012,p. 269).

Numa perspectiva contrária, as reivindicações dos movimentos sociais quanto às

políticas e práticas de formação docente priorizam a formação humana dos educadores

do campo, a fim de se colocar como agente participativo na construção de um novo pro-

jeto de desenvolvimento para o País, que afirme o lugar do campo nesse novo projeto.

E, a partir de intensas lutas por direitos, que tem como elementos centrais o direito à ter-

ra e à educação, o Movimento da Educação do Campo conquista uma política específica

de formação de educadores, porém sem descolar essa política do conjunto das tensões e

contradições nas quais serão executados os processos de formação que ficarão sob a res-

ponsabilidade desses educadores.

A política de formação de educadores do campo compreende a necessidade de

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construir estratégias formativas que sejam capazes de oportunizar ao docente em forma-

ção a superação dessa visão restrita dos limites e potenciais de sua ação, ofertando-lhes,

durante o percurso formativo, os fundamentos filosóficos, sociológicos, políticos, eco-

nômicos, antropológicos capazes de lhes dar elementos para ir localizando os efeitos e

resultados de sua ação educativa a partir de um contexto bem mais amplo que a contém,

especialmente as tensões e contradições que permeiam as relações sociais no território

rural contemporaneamente, com ênfase nos desafios impostos à permanência dos sujei-

tos camponeses nesse território a partir do avanço cada vez mais desenfreado do agrone-

gócio, que promove uma fagocitose não só das escolas rurais, mas também das próprias

comunidades que aí vivem (MOLINA, 2014).

Com base nas próprias concepções originárias do Movimento da Educação do

Campo, não há sentido formar um educador do campo que não seja capaz de compreen-

der as contradições e os processos de acumulação de capital no campo. A formação pro-

posta pela Licenciatura em Educação do Campo, que, em seu Projeto-Político Pedagógi-

co, enfatiza exatamente os componentes curriculares que pouco aparecem ou são ausen-

tes nos cursos tradicionais de formação de educadores, como: economia política, histó-

ria, filosofia, sociologia, entre outros, que tem por intencionalidade oportunizar forma-

ção crítica dos educadores.

Contextos de criação e expansão do Programa de Apoio às

Licenciaturas em Educação do Campo

Um dos diferenciais das políticas públicas de Educação Campo pautadas pelos

movimentos sociais refere-se ao seu protagonismo, durante a primeira década da história

desse Movimento, na concepção e elaboração das principais políticas educacionais para

os camponeses: o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, o Programa Re-

sidência Agrária e o Programa Saberes da Terra, por exemplo.

Todavia, esse protagonismo tem sido ameaçado e se transformado em mera repre-

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sentação formal, sem uma efetiva participação na concepção e no modus operandi das

políticas públicas, à medida que foram se intensificando as mudanças do modelo de de-

senvolvimento no campo, a partir da consolidação do agronegócio no País, e que a cor-

relação de forças foi se transformando, a começar da configuração da nova aliança de

classes em função dos novos interesses econômicos no campo e do aumento das estraté-

gias de criminalização dos movimentos sociais na mesma época.

Conforme análise do próprio Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC),

o período inicial do Movimento da Educação do Campo coincide com o período de tran-

sição que tem sido compreendido como da crise do latifúndio à consolidação do Agro-

negócio. Foi, aliás, esse período, de certa fragilidade da aliança das classes dominantes,

que possibilitou o crescimento e avanço das lutas pelos direitos no campo.

O documento do referido Fórum reconhece que o crescimento da Educação do

Campo, àquela época, foi possível em função de determinada correlação de forças exis-

tentes no período: é possível afirmar que ocupamos um “vácuo” de transição de mode-

los (ajustes no modelo macroeconômico brasileiro, capitalista, neoliberal)

[...] entre a crise do latifúndio e a emergência do agronegócio os movimentossociais de luta pela terra e pela Reforma Agrária ganharam ímpeto, conquista-mos o PRONERA e constituímos a Educação do Campo (FONEC, 2012, p.4).

Como parte daquela conjuntura, o Procampo é uma política de formação de educa-

dores, conquistada a partir da pressão e das demandas apresentadas ao Estado pelos mo-

vimentos sociais. Pautada desde a primeira Conferência Nacional por Uma Educação

Básica do Campo (CNEC), realizada em 1998, a exigência de uma Política Pública es-

pecífica para garantir a formação de educadores do campo vai se consolidar também

como uma das prioridades requeridas ao término da II CNEC, realizada em 2004, cujo

lema era exatamente “Por Um Sistema Público de Educação do Campo.”

A partir da intensa cobrança dos movimentos sociais que seguiam pressionando

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para o atendimento das pautas da II CNEC, é instituído um Grupo de Trabalho que fica

responsável pela elaboração da proposta que deveria subsidiar a Secretaria de Educação

Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão − Secadi, na proposição ao MEC, de

um plano de formação de educadores campo.

Os movimentos demandam e logram nesse período a conquista de um processo de

elaboração bastante articulado com suas representações.

Após os encontros específicos do Grupo de Trabalho, para imprimir forma ao pri-

meiro desenho dessa política de formação, foram realizadas também com suas represen-

tações alguns encontros nos quais se submeteu ao debate a proposta elaborada, a fim de

se chegar à versão a ser apresentada às instâncias do Ministério da Educação (MEC),

responsáveis pela implementação do Programa, que aprovou o desenho das Licenciatu-

ras em Educação do Campo (MOLINA, 2014).

A implantação dessa política se inicia por meio de uma experiência piloto, com a

construção de quatro cursos que foram realizados com base em convites efetuados pelo

MEC a partir de indicações de IES pelos movimentos sociais, ligadas à Educação do

Campo (UFMG, UnB, UFBA e UFS). Com essas experiências piloto ainda em execu-

ção, a começar da imensa demanda de formação de educadores do campo e da pressão

dos movimentos sociais, o MEC lança editais em 2008 e 2009 para que novas institui-

ções pudessem ofertar a Licenciatura em Educação do Campo. Porém, sem nenhuma ga-

rantia de sua continuidade e permanência, uma vez que a oferta por meio desses Editais

fez-se mediante aprovação de projetos especiais, tramitados e autorizados somente para

uma turma.

Esse foi um dos pontos que teve intenso questionamento dos movimentos.

A demanda para a formação de educadores do campo, além de ter que ser capaz de

suprir o enorme passivo existente, deveria ser permanente para garantir o direito à edu-

cação aos sujeitos do campo, desde as suas especificidades.

A conquista pelos movimentos sociais, da assinatura do Decreto n. 7352, de 4 de

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novembro de 2010, o qual instituiu a Política Nacional de Educação do Campo, exigiu a

elaboração do Pronacampo, e para dar materialidade às ações previstas no referido De-

creto, institui-se, em 2012, outro Grupo de Trabalho, para conceber as ações que integra-

riam o citado Programa.

Embora aquém da demanda existente, o Pronacampo estabelece meta ambiciosa

para três anos: a formação de 45 mil educadores do campo − quantitativo que deveria

ser distribuído entre três estratégias de formação que ocorreriam simultaneamente, isto

é, os próprios cursos do Procampo −, os cursos desenvolvidos por meio da Plataforma

Freire via Parfor (CAPES, 2011), e a terceira via mais problemática, por meio da Educa-

ção a Distância, via UAB. Alvo de profundas e pertinentes críticas do Movimento da

Educação do Campo, esta última estratégia não foi ainda iniciada, não sendo, porém, o

caso da oferta da formação de educadores do campo via Parfor, cujo crescimento tem

sido expressivo. Já existem pesquisas (BRITO, 2013) que analisam a inadequação des-

ses cursos aos educadores do campo, não sendo incorporadas, em seu currículo, as espe-

cificidades da formação dos educadores do campo (MOLINA, 2014).

Especificidades que configuram a Licenciatura em Educação

do Campo

Os cursos de Licenciatura em Educação do Campo têm por objeto a escola de

Educação Básica, com ênfase na construção da Organização Escolar e do Trabalho Pe-

dagógico para os anos finais do ensino fundamental e do ensino médio. Esses cursos ob-

jetivam preparar educadores para, além da docência, atuar na gestão de processos educa-

tivos escolares e na gestão de processos educativos comunitários.

A organização curricular dessa graduação prevê etapas presenciais (equivalentes a

semestres de cursos regulares), ofertadas em regime de alternância entre Tempo Escola e

Tempo Comunidade, tendo em vista a articulação intrínseca entre educação e a realidade

específica das populações do campo.

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Essa metodologia de oferta intenciona também evitar que o ingresso de jovens e

adultos na educação superior reforce a alternativa de deixar de viver no campo, bem

como objetiva facilitar o acesso e a permanência no curso dos professores em exercício

nas escolas do campo (MOLINA; SÁ, 2011).

A matriz curricular proposta desenvolve uma estratégia multidisciplinar de traba-

lho docente, organizando os componentes curriculares a partir de quatro áreas do conhe-

cimento: Artes, Literatura e Linguagens; Ciências Humanas e Sociais; Ciências da Natu-

reza e Matemática; e Ciências Agrárias.

A habilitação de docentes por área de conhecimento tem como um dos seus objeti-

vos ampliar as possibilidades de oferta da educação básica no campo, especialmente no

que diz respeito ao ensino médio, mas a intencionalidade maior é a de contribuir com a

construção de processos capazes de desencadear mudanças na lógica de utilização e de

produção de conhecimento no campo, desenvolvendo processos formativos que contri-

buam com a maior compreensão dos sujeitos do campo da totalidade dos processos soci-

ais nos quais estão inseridos (MOLINA; SÁ, 2011).

Ao construir como perfil de habilitação da Licenciatura em Educação do Campo

simultaneamente as três dimensões (docência por área de conhecimento; gestão de pro-

cessos educativos escolares; e gestão de processos educativos comunitários), idealizou-

se a perspectiva de promover e cultivar determinado processo formativo que oportunize

aos futuros educadores, ao mesmo tempo, formação teórica sólida, que proporcionasse o

domínio dos conteúdos da área de habilitação para o qual se titula o docente em questão,

extremamente articulada ao domínio dos conhecimentos sobre as lógicas do funciona-

mento e da função social da escola e das relações que esta estabelece com a comunidade

do seu entorno (MOLINA, 2014).

A formação por áreas de conhecimento deve desenvolver-se tendo como intencio-

nalidade promover estratégias que contribuam para superar a fragmentação do conheci-

mento, criando e promovendo ações docentes articuladas interdisciplinarmente, associ-

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adas intrinsecamente às transformações no funcionamento da escola e articuladas, ainda,

às demandas da comunidade rural na qual se insere a escola. A proposta e o desafio é re-

almente materializar práticas formativas durante o percurso da Licenciatura em Educa-

ção do Campo que sejam capazes de ir desenvolvendo e promovendo nos futuros educa-

dores as habilidades necessárias para contribuir com a consolidação do ideal de escola

edificado por esse movimento educacional protagonizado pelos movimentos sociais nos

últimos 15 anos: uma Escola do Campo (MOLINA; SÁ, 2012).

Apostando na compreensão gramsciana da escola como importante lócus de pro-

dução de contra-hegemonia aos valores da sociedade capitalista, o Movimento da Edu-

cação do Campo trabalha com a perspectiva de formar educadores camponeses que pos-

sam atuar nessas escolas como intelectuais orgânicos da classe trabalhadora (GRAMS-

CI, 1991) contribuindo, por sua vez, com a formação crítica dos educandos que passem

por essas unidades escolares, dando-lhes condições de compreender os modelos de de-

senvolvimento do campo em disputa, como parte integrante da totalidade de projetos so-

cietários distintos, entre a classe trabalhadora e a capitalista (MOLINA, 2014).

O pano de fundo desse debate, tão central à compreensão e reflexão a respeito das

políticas de formação de educadores, diz respeito ao tipo de trabalho desenvolvido por

esses profissionais: se teria ele um caráter material ou imaterial. Os professores, ao tra-

balharem com seus educandos, agem sobre o pensamento e sobre a visão de mundo des-

ses sujeitos. E possui um papel de extrema relevância na conformação do tipo de ação

que eles podem vir a desenvolver, ressalvando-se, necessariamente, o espaço de autono-

mia de cada indivíduo na eleição da leitura de mundo que orientará sua ação. Em rela-

ção a esse debate, Trojan afirma que

[...] a essência da atividade docente profissional, ou seja, o processo de ensi-no e aprendizagem envolve conhecimentos teóricos e práticos porque é umaatividade intencional que exige conhecimentos, estabelecimento de objetivos,planejamento, intervenção e avaliação para atingir sua finalidade. Por essa ra-zão, deve ser cientifica e sistemática e não espontânea e casual, pois envolveum processo de transformação da realidade, cujo resultado deve ser a apren-dizagem dos elementos necessários para a formação humana em determinado

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Page 143: V SEMINÁRIO NACIONAL · Pretendemos com esse texto trazer presente sucintamente a política do Programa ... Essa experiência, como nos lembra Thompson (1981) é resultado de processos

contexto social. Esta atividade cognitiva e teleológica, enquanto atividade daconsciência é teórica, não se materializa, mas é fundamental para guiar a açãopropriamente dita [...] Na atividade prática realiza-se o projeto idealizado teo-ricamente. Na atividade prática 'o sujeito age sobre uma matéria que existe in-dependente de sua consciência', cujo processo e resultado não é uma meraaplicação da teoria, mas um conjunto de ações que implicam em vencer a re-sistência do objeto, que implica em interação, que exige realimentação parasuperar imprevistos. Isso significa que a relação teoria–prática é um processoindissociável e incessante, no entanto, não dissolve uma dimensão na outra(TROJAN, 2008, p. 37).

Assim, a matriz formativa proposta pelas Licenciaturas em Educação do Campo

revela que a sua concepção formativa não acata o engodo das políticas neoliberais, de

responsabilização e individualização do docente sobre o êxito ou fracasso do aluno, tal

como propõe a Epistemologia da Prática, sem considerar todas as condições socioeconô-

micas e culturais que envolvem os processos de aprendizagem (FREITAS, 1999, 2003).

E, ao mesmo tempo, não desresponsabiliza o educador da condução dos processos di-

dáticos, dando-lhe, porém, condições de compreender, criticamente, sua própria prática,

qualificando-o, cada vez mais, à luz de maior compreensão e complexificação das teori-

as que têm orientado sua ação pedagógica.

A diferença de concepção e estratégia do processo formativo proposto pela LE-

DOC, no tocante a esse ponto tão nevrálgico da formação de educadores, reside no fato

de que sua concepção de prática não se restringe a uma “[...] perspectiva pragmática, em

que o critério de verdade e associação da teoria/prática é o êxito, a eficácia da ação, en-

tendida como prática individual” (SILVA, 2012, p. 278).

A política de formação docente proposta pela Educação do Campo, ao que se pode

constatar na matriz formativa construída pelos movimentos sociais que estiveram pre-

sentes na elaboração do desenho do Procampo, tem profunda compreensão da necessi-

dade de construir estratégias formativas que sejam capazes de oportunizar ao docente

em formação a superação da visão restrita dos limites e potenciais de sua ação, ofer-

tando-lhes, durante o percurso formativo, os fundamentos teóricos necessários para o

educador ir localizando os efeitos e resultados de sua ação educativa a partir de um con-

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texto bem mais amplo que a contém.

Com a intencionalidade de formar educadores capazes de compreender a totalida-

de dos processos sociais em que estão inseridos os educandos do campo − com os quais

docentes em formação irão trabalhar −, a referida Licenciatura tem buscado promover

práticas educativas que sejam capazes de criar condições necessárias para a compreen-

são dos processos sociais de ensino-aprendizagem nessa dimensão. O que tem requerido

que, nessa graduação, se façam presentes componentes curriculares que trabalhem com

os conteúdos da Economia Política, da História, da Sociologia, da Filosofia, da Antropo-

logia, entre outros tantos que, articuladamente, a partir de um intenso trabalho interdis-

ciplinar, vão contribuindo para ampliar e alargar a visão de mundo desses educadores

em formação (MOLINA, 2014).

Portanto, a compreensão da totalidade dos processos envolvidos na relação en-

sino-aprendizagem se dá desde a construção de uma leitura integral dos processos soci-

ais, econômicos, políticos, culturais envolvidos na relação educador-educando para um

posterior refazimento do peso de cada um desses elementos nos resultados dos educan-

dos, compreendidos, porém, como parte de uma totalidade com determinações exterio-

res a ela e ao que acontece em cada sala de aula, não sendo este o espaço único e central

de resolução de todos os problemas dos processos de ensino-aprendizagem.

Essa relação é conflituosa para os educandos e para os professores universitários,

porque exige que a matriz curricular dos cursos seja reorganizada em função das contra-

dições que esses educandos trazem para os períodos de Tempo Escola, principalmente

pela sua forte inserção na luta pela terra e pelos grandes tensionamentos pelos quais pas-

sa a Escola do Campo atualmente.

Exige-se, nesses processos formativos, que não se descole a formação docente das

lutas e proposições para melhorar a qualidade dos cursos de acordo com as exigências

da Reforma Agrária e dos seus sujeitos.

Dessa forma, trata-se de colocar a realidade como centro em torno do qual as ciên-

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cias e outras formas de conhecimento se articulam, para que a realidade possa ser não

apenas compreendida e analisada, mas também transformada. Há exigências concretas

de um trabalho pedagógico que se centra no princípio da práxis, como modo de conheci-

mento que articula, em um mesmo movimento, teoria e prática, conhecimento e realida-

de. Assim, o trabalho pedagógico deve contribuir com a perspectiva de que os educan-

dos desenvolvam a capacidade de articular a leitura de suas realidades, valendo-se do

conhecimento científico, aprofundando desde as releituras e análises que vão se tornan-

do complexas à medida que os educandos vão avançando em sua escolarização, no de-

correr da alternância dos tempos e espaços educativos, qualificando, assim, as interven-

ções em suas comunidades.

Muito além de compreensões restritivas, essa experiência tem buscado orientar a

formação dos educadores do campo, transitando entre aparência e essência e promoven-

do uma formação integral que lhes possibilita internalizar os instrumentos, métodos, téc-

nicas e teorias para conhecer, ler, interpretar e intervir na realidade onde atuam/atuarão,

considerando as várias dimensões que a compõem: a própria sala de aula, a comunidade

escolar, a inserção da escola num território do campo, as contradições e disputas presen-

tes neste território, a inserção desse território nas contradições regionais e nacionais das

lógicas de acumulação de capital no campo.

Portanto, a matriz formativa desenvolvida pela Licenciatura em Educação do

Campo apresenta a intencionalidade pedagógica de formar um educador capaz de com-

preender a totalidade dos processos sociais nos quais se inserem sua ação educativa.

Nessa matriz, a Alternância é compreendida tanto como metodologia, quanto também

como pedagogia, materializando e oportunizando novas estratégias de produção de co-

nhecimento que buscam verdadeiramente incorporar os saberes dos sujeitos campone-

ses. Em resumo, a contra-hegemonia na formação docente revela-se na articulação entre

aparência e essência, a partir da qual se busca desenvolver uma formação em nível supe-

rior com qualidade social, com capacidade de formação de sujeitos camponeses educa-

dores, com criticidade suficiente que lhes permita olhar para a realidade na qual estão

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inseridos, o que inclui uma compreensão concreta das determinações que fazem com

que essa realidade apareça tal qual ela está constituída, dando, porém, um passo além

disso, sendo capazes de construir estratégias para intervir e transformar essa realidade.

Para tanto, a Alternância apresenta-se como ferramenta fundamental, pois possibilita

aproximar a universidade dos processos de produção de conhecimento e das contradi-

ções reais nas quais os sujeitos do campo estão inseridos durante o processo contínuo de

materialização e construção da vida deles.

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PILARES FUNDANTES DE UMA NOVA FORMAESCOLAR

Roseli Salete Caldart

Nos dias de hoje quase todos falam em mudar a escola: trabalhadores e empresá-

rios, camponeses e fazendeiros do agronegócio, pessoas “de direita” ou “de esquerda”.

Mas será que todos pensam nas mesmas mudanças? Entendemos que não. E a diferença

fundamental está nos objetivos, no para que mudar a escola. Compreender isso é muito

importante: falar em mudanças já não basta para distinguir posições e identificar compa-

nheiros de projeto.

E o para que mudar não se responde olhando apenas para dentro da escola. Como

instituição da sociedade, que está sempre se modificando, a escola ou a educação que

acontece dentro e através dela, ou muda para ajudar a manter (reproduzir, “aperfeiçoar”)

a sociedade no seu funcionamento atual, ou muda para ajudar a transformar a forma da

sociedade – o que sempre é mais demorado e difícil! Não tem meio termo: dizendo ou

não, sabendo ou não, cada educador trabalha para um objetivo ou outro.

Mas quando falamos em manter ou mudar a sociedade do que estamos tratando es-

sencialmente? O ponto fundamental é o seguinte: vivemos em uma sociedade capitalis-

ta, cujo funcionamento é sustentado por duas leis gerais: a da exploração entre os seres

humanos, pela relação entre capital e trabalho (exploração da mais valia pela lógica da

propriedade privada dos meios de produção e do trabalho assalariado), e a lei da explo-

ração da natureza (produção que destroi, degenera em vez de interagir com os bens na-

turais, necessários à vida humana, porque o objetivo do lucro, do negócio é colocado

acima de tudo). A sociedade capitalista cria instituições e pedagogias baseadas no pres-

suposto (que se torna um objetivo) de que essas leis são eternas e inevitáveis, não his-

tóricas, e de que nossa tarefa como educadores deve ser a de preparar as pessoas para in-

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serção nessa lógica (e se formos “bonzinhos”, que isso seja feito com o “menor sofri-

mento possível”). Mudanças podem e devem acontecer desde que não se altere a lógica

fundamental de funcionamento da ordem social capitalista.

Para aquelas pessoas que consideram a sociedade capitalista a melhor que pode-

mos ter e que a exploração é “natural” (sempre houve e sempre haverá), falar de mudan-

ças na educação e na escola é “uma coisa”. Para quem pensa que as leis de funciona-

mento do capitalismo são uma construção histórica e devem ser “revogadas”, tratar de

mudanças na escola é “outra coisa”...

No campo, quem considerar que o agronegócio, que é o nome dado hoje para a

agricultura subordinada à lógica de reprodução do capital, é a melhor ou a única forma

de produzir na agricultura, vai pensar em um tipo de necessidade de mudança para a es-

cola – isso se pensar na escola, porque é dessa lógica a visão de que também é “natural”

e inevitável que as escolas do campo sejam fechadas... Mas quem, por outro lado, está

atento às várias denúncias sobre os efeitos nefastos da agricultura capitalista para a vida

humana e a natureza, e busca conhecer as alternativas que vêm sendo construídas pelos

trabalhadores camponeses para desenvolver outra lógica de agricultura, e considera

importante que muita gente se engaje nessa construção, enxerga outras necessidades de

mudança da escola.

Sobre isso um parêntesis para pensarmos: podemos considerar “natural” e “inevi-

tável” que se coma venenos em vez de alimentos, que a agricultura seja colocada a ser-

viço do lucro das indústrias de venenos, fertilizantes artificiais e sementes transgênicas?

Que as abelhas estejam em risco de extinção em muitos lugares do mundo, pelo uso dos

agrotóxicos nas plantas, sendo que a morte das abelhas levará a uma diminuição drástica

da produção diversificada de alimentos? Que crianças de escolas do campo (aquelas ain-

da existentes), tenham que fugir dos ataques de venenos dos aviões que fazem pulveri-

zações em plantações (monoculturas) próximas? Que seus pais sejam explorados e ex-

postos a condições de trabalho que diminuem seu tempo de vida? E que as escolas se-

jam fechadas uma a uma porque as comunidades são expulsas do campo pela ausência

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de alternativas de trabalho?... É importante perceber que há muitas contradições dessa

realidade aparecendo mais explicitamente hoje, em especial no plano da relação com a

natureza, da saúde humana e animal, talvez porque seus efeitos afetem a todos, não so-

mente aos trabalhadores do campo, e isso começa a gerar reações, resistência. Há cada

vez mais gente se interrogando sobre o ônus à humanidade de se transformar tudo em

mercadoria e se, de fato, não há alternativas. Porque responder que “não há alternativas”

significa admitir um decreto de morte, das pessoas, da natureza, da humanidade, do pla-

neta. Detalhe que nos deve preocupar: ainda não é comum que essas interrogações se-

jam feitas ou aprendidas na escola – e esse já é um bom motivo para pensar que ela pre-

cisa ser transformada...

Alguém ainda pode estar se perguntando sobre aquela ideia inicial: também se

muda pra deixar tudo como está. Por que precisa mudar se não é para mudar? Essa é

uma característica especialmente forte da sociedade capitalista e tem sua base na produ-

ção. A união entre a ciência e a produção que o capitalismo promoveu, determina modi-

ficações aceleradas nas chamadas forças produtivas, que vão exigindo e fazendo modifi-

cações em outras esferas. No início do capitalismo isso significou um desenvolvimento

das potencialidades produtivas da sociedade sem precedentes na história. Mas hoje, há

mudanças que acontecem com o objetivo exclusivo de manter o capitalismo funcionan-

do, o capital se reproduzindo e convertem as forças produtivas em forças destrutivas da

própria existência humana. Esse tipo de mudança é chamado em nossa época de inova-

ção: sempre se precisa criar algo novo, um produto novo, uma nova tecnologia, uma

nova forma de produzir, para que a produção aumente, o consumo aumente e o lucro se

multiplique, sem se pensar nas consequências humanas, sociais e ambientais desse cir-

cuito. O que não muda, só se exacerba, é a lógica geral do modo de produção dominan-

te, justamente as leis de que falamos antes. E para manter as leis em funcionamento, al-

gumas relações sociais também não podem mudar, embora isso não se diga.

É importante compreender que a escola que conhecemos foi configurada desde a

matriz de instituições pré-capitalistas, mas que se considerou que poderiam servir ao ca-

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pitalismo: a igreja e o exército. A matriz formativa originária da escola de massas (essa

que em tese todos têm direito de entrar) é a da subordinação, das relações hierárquicas e

do acesso ao conhecimento em doses controladas e visando a preparação para uma in-

serção subordinada (cumprir tarefas) nas relações de trabalho. As inovações propostas

hoje desde o polo do capital, pelos empresários que o representam, apontam para tomar

diretamente as empresas capitalistas como modelo: de gestão, de relações, de controle

do trabalho, de subordinação ativa e não burra (passividade demais pode atrapalhar o

aumento da exploração). Do que mais se fala é de adaptar a escola às mudanças do

“mercado de trabalho” (como se ele fosse um “ente” com vida própria!). E ainda que o

modelo a ser seguido seja o do trabalho assalariado (sem o qual não há capitalismo),

agora também se fala em “educar para a iniciativa empresarial” ou para o chamado “em-

preendedorismo”, como uma saída para os tempos de crise, onde a ideia do “auto-

emprego” pode ser um bom escamoteio de contradições explosivas: não há empregos

para todos que “desejam” ser explorados.

Porque é fácil se confundir com tanto apelo ideológico em defesa da inovação, fa-

zer transformações que mudem efetivamente o sistema social é cada vez mais comple-

xo, e nos exige pensar também naquilo que deve ser conservado, mantido, para que mu-

danças mais radicais aconteçam. Essa é outra ideia importante: nem tudo precisa mudar

para que o principal mude! Certos valores humanos, por exemplo, deveriam ser perenes

e não flexíveis a cada momento ou em função de determinados interesses.

Mas prestemos muita atenção: algo que nem sequer se inova no capitalismo são as

relações de poder. Por isso é permanente a tarefa dada à escola de que ensine as novas

gerações a obedecer – se não for a pessoas, a regras e a padrões estandardizados, imutá-

veis. Os testes padronizados a que cada vez mais todos os estudantes têm que se subme-

ter é um bom exemplo de como essa lógica pode se tornar insana... Por isso é tão difícil

mexer com as relações sociais na escola.

Não se trata de pensar que mudando a escola se muda a sociedade. Longe disso

porque a base da mudança está em outro lugar: nas relações sociais de produção (ali as

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leis fundamentais que mencionamos foram criadas e ali é que precisam ser revogadas).

Mas se conseguirmos fazer transformações efetivas na educação e na escola, estaremos:

1º) ajudando no processo de desalienação das novas gerações, condição de preparação

de lutadores pela causa das transformações mais radicais (que cheguem à raiz dos pro-

blemas); 2º) desencadeando processos que nos permitem ir exercitando, ensaiando o que

será, poderá ser, a escola do futuro, a escola de uma sociedade dos trabalhadores ou de

uma república socialista do trabalho. Estaremos mostrando na prática que sim, há alter-

nativas! E se não vivermos até que uma nova ordem social se instaure, teremos deixado

nossa contribuição à história. Mas para que cheguemos a isso temos que ter outra matriz

de referência: uma sociedade de produtores livremente associados, onde o trabalho

como valor de uso seja direito fundamental de todas as pessoas, no que essa sociedade já

pode ser pensada hoje desde a experiência das organizações de trabalhadores pautadas

por interesses coletivos da classe portadora de futuro.

Saber disso e se associar com outras agências educativas que tenham os mesmos

objetivos já é um primeiro passo de mudança: de modo geral uma escola não muda sozi-

nha, por sua conta e isolada de outros processos de luta e trabalho. Mas o que funda-

mentalmente precisa mudar na escola para que ela trabalhe por estes objetivos emanci-

patórios que vão além dela? Essa deve ser uma interrogação permanente porque não há

respostas prontas e definitivas. Mas desde uma determinada visão de mundo e concep-

ção de educação nos é possível identificar os pilares centrais de sustentação do trabalho

da escola e, portanto, aqueles que não podem deixar de ser mexidos: todos ou um de

cada vez, de modo mais lento ou mais acelerado, para mudanças mais radicais ou me-

nos, a depender das condições existentes em cada lugar.

São pilares fundamentais que nos têm orientado a trilhar os caminhos da transfor-

mação da escola, a nosso ver necessária para que conteúdos de ensino possam ser ou se

vincular a conhecimentos vivos, que façam sentido na vida dos estudantes e de suas fa-

mílias, como também dos próprios educadores. Essa é uma construção em que estamos

envolvidos, enquanto MST, há 30 anos.

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Um primeiro pilar é então o nosso pressuposto: queremos transformar radical-

mente a sociedade (instaurar a hegemonia de outro modo de produção e chegar a uma

ordem social socialista). Não aceitamos apenas reformar o capitalismo porque ele nunca

vai deixar de ter uma lógica exploradora e desigual. E não aceitamos que não haja alter-

nativas ao capitalismo: na produção, na educação, na ciência, na escola,... há alternati-

vas, porque há contradições a serem potencializadas na sua construção.

Um segundo pilar é o objetivo pelo qual trabalhamos: para haver alternativas é

preciso criá-las; é preciso formar seres humanos cada vez mais plenos, que sejam luta-

dores e construtores de outro modo de produção da vida e de outra forma de relações

sociais que permitam construí-lo.

Um terceiro pilar é de compreensão: a formação do ser humano, a formação de

lutadores e construtores vai muito além da escola. Formação humana é mais do que

educação; educação é mais do que escola. Mas a escola, como lugar de educação, pre-

cisa ser convocada a ajudar nessa formação de lutadores e construtores. Entretanto, a

escola somente dará conta dessa tarefa de ajudar a construir uma nova ordem social, se

ela mesma for transformada: em seus conteúdos e em sua forma, fundamentalmente nas

relações sociais, nos tempos e espaços que a constituem, ou que constituem o modo ca-

pitalista de fazer escola que precisa ser superado. Porque essa forma de escola (que é a

que mais conhecemos, porque hegemônica), foi montada para ajudar a reproduzir a lógi-

ca da sociedade capitalista: no caso dos filhos de trabalhadores, prepará-los para que se

tornem objetos de exploração da mais-valia. De um jeito mais tosco e explícito ou mais

sofisticado e sutil, todos precisam entrar nas relações de exploração e convictos de que

“não existem alternativas”. E apenas com a apropriação de conhecimentos que seja ins-

trumental a esse lugar subordinado na sociedade.

Afirmamos que a transformação da escola que buscamos é de conteúdo e forma

porque nossos objetivos exigem que trabalhemos com determinados conteúdos formati-

vos que não “cabem” na escola formatada pelo capitalismo. O confronto principal é de

matriz formativa e nela forma e conteúdo se implicam mutuamente. Entendemos que é

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necessário transformar a forma escolar, exatamente para desenvolver na escola os conte-

údos formativos requeridos pelos trabalhadores na direção de transformar a forma (que é

conteúdo) de sociedade que temos. Mas não é simples mudar a forma escolar, porque ela

foi cristalizada e aparece à maioria como algo dado e que existe independente dos conte-

údos.

Se as relações sociais são as mais difíceis de mudar é exatamente porque elas têm

encarnadas em si conteúdos formativos que a sociedade capitalista, ou as classes domi-

nantes nessa sociedade, não abrem mão1. Por isso que sem mudar as relações sociais não

tem como realizar nossos objetivos educativos de desalienação para formação de lutado-

res e construtores. Mas sabemos que na escola uma mudança de forma pela forma tam-

bém não se sustenta: é necessário trabalhar conteúdos que exijam e permitam a mudan-

ça.

E um quarto pilar, desdobrado dos anteriores, é o que identifica os aspectos fun-

damentais (que sustentam a nova construção) da transformação de forma escolar pre-

tendida. Um primeiro aspecto diz respeito ao lugar dos estudantes na escola: de alunos

subordinados e passivos (ou somente “mal comportados”) a sujeitos ativos, coletiva-

mente organizados para participar da condução da escola, do seu processo educativo. E

estamos falando de participação direta e de auto-organização dos estudantes e não de

falsos ensaios de “democracia representativa” muitas vezes apresentada como verdadei-

ra mudança. Essa transformação implica em alterações profundas nas relações hierárqui-

cas e autoritárias que compõem a lógica escolar predominante.

Mas mudar o lugar dos estudantes implica em mudar também o lugar dos educa-

dores na escola: na lógica capitalista de escola, especialmente os professores são os que

mandam nos estudantes e são mandados pela direção, pela secretaria de educação, pelas

1 Como disse um professor de uma escola dos Estados Unidos ao receber o prêmio de “professor doano”: nem sei porque estou sendo premiado: na verdade as escolas não ensinam nada mais do que aobedecer ordens e a pensar que se é impotente para mudar nossa situação e a se comportar de maneira anão gerar discrepâncias. A lógica da instituição anula as contribuições individuais noutra direção... (apudLevine, Bruce. 8 razones por las que la juventude norteamericana no responde: como se há aplastado laresistencia juvenil em Estados Unidos. Artigo veiculado pela internet em 6 de julho 2014).

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regras, pelo sistema. A transformação que visamos é a que permita e exija de educadores

e educandos, em conjunto e em diálogo com a comunidade, estabelecendo tarefas pró-

prias a cada sujeito, que assumam o comando coletivo da escola e a condução do pro-

cesso educativo que ali se desenvolve. Isso requer a organização dos educadores em co-

letivos fortes (com unidade de ação), sem a qual dificilmente se consegue avançar nos

processos de auto-organização dos estudantes, exatamente pela força da tradição institu-

cional da escola noutra direção.

E nesse plano as inovações que estão sendo impostas hoje às escolas nem disfar-

çam o contraponto: os educadores estão sendo cada vez mais colocados no papel de exe-

cutores de programas, operadores de cartilhas e aplicadores de testes padronizados; de-

vem abandonar sua condição de intelectuais do processo e em vez de organização coleti-

va o que lhes é exigido é concorrência individual em vista do bônus, de prêmios ou de

não ser demitido: a lógica do trabalho assalariado alienado e precarizado está sendo exa-

cerbada pela privatização disfarçada da escola pública. Isso é muito sério: sem uma re-

sistência coletiva urgente a vida nas escolas ficará cada vez mais dura, possivelmente in-

suportável, para quem ainda conserve alguma sanidade mental e um senso ético humano

de trabalho.

Um segundo aspecto da mudança da forma escolar se refere à relação da escola

com o trabalho, que é o modo de fazer o vínculo com a vida, nas suas várias dimensões,

sua complexidade e, principalmente, nas contradições que a movem. O trabalho é a pró-

pria vida humana na sua relação com a natureza, na construção do mundo e de si mes-

ma. Por isso se afirma que o trabalho, entendido em seu conceito geral de atividade hu-

mana criativa, está na base da constituição do ser humano e a educação não acontece

plenamente sem potencializar esse vínculo. Mas as condições de exploração e alienação

a que são submetidos os trabalhadores na forma de sociedade que temos leva à naturali-

zação de uma visão negativa do trabalho que se não for superada, impedirá que as novas

gerações vejam sentido em lutar por uma ordem social baseada no trabalho como condi-

ção de vida plena para todos.

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A forma escolar capitalista supõe a relação da escola com o trabalho explorado,

assumindo a tarefa de preparar mão-de-obra para ampliar o chamado “exército industrial

de reserva” (quanto maior o “exército”, menores podem ser os salários) e fazendo as

inovações de conteúdo e método necessárias ao mercado do trabalho assalariado, incluí-

das as próprias variações do chamado “auto-emprego”. A transformação que buscamos é

uma relação humanizadora, portanto, não de exploração, dos estudantes com o trabalho.

Para isso é preciso que aprendam como funciona o trabalho assalariado, a extração de

mais-valia, e entendam que há outras formas de trabalho e que ele tem um sentido muito

mais amplo do que se tornar uma mercadoria, como é próprio da sociedade capitalista.

Para os objetivos de desalienação das novas gerações é desafio encontrar ou cons-

truir em nossas comunidades espaços reais de exercício vivo do trabalho como valor de

uso, organizado coletivamente entre trabalhadores livremente associados, sem patrões.

E que se firme a compreensão de que a base do trabalho é o trabalho socialmente produ-

tivo (produção das condições materiais de existência), mas ele não esgota o sentido do

trabalho como atividade humana criativa.

Temos discutido desde a Pedagogia do Movimento que uma forma de objetivar o

vínculo da escola com o trabalho nessa concepção é tomar as diferentes matrizes forma-

tivas do ser humano em que ele é materializado, o trabalho socialmente produtivo, a

luta social, a organização coletiva, a cultura e a história, como princípio organizador do

ambiente educativo da escola, na relação com os objetivos formativos que temos, com a

especificidade da tarefa educativa da escola no trabalho com o conhecimento e com as

questões da realidade colocadas para nossa compreensão em cada momento histórico.

Podemos pensar nos conteúdos formativos que dizem respeito à atualidade do campo

hoje: o que significa uma escola assumir junto com a comunidade o desafio de ajudar a

construir a agricultura camponesa do século XXI? Detalhes fundamentais: - essa relação

com o trabalho que visamos implica em derrubar as cercas (ou os muros) que separam a

escola da vida real, com as contradições de cada local e de cada tempo que devem ser

examinadas pelos estudantes; - implica também descentrar a escola da sala de aula e es-

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Page 160: V SEMINÁRIO NACIONAL · Pretendemos com esse texto trazer presente sucintamente a política do Programa ... Essa experiência, como nos lembra Thompson (1981) é resultado de processos

tabelecer diferentes espaços e tempos educativos.

Um terceiro aspecto, que na verdade desdobra o aspecto anterior, se refere à con-

cepção de conhecimento a ser assumida pela escola. Na concepção de conhecimento que

nos orienta, que é a do materialismo histórico-dialético, a relação entre teoria e prática é

inerente ao ato de conhecer. E não tem como se apropriar verdadeiramente dos conteú-

dos das ciências e das artes sem essa relação. O ensino de conteúdos, em si mesmos, não

é conhecimento, que precisa da referência dos fenômenos reais que são seu objeto. Mas

não se trata de separar mecanicamente: um momento para ensinar conteúdos e outro

para tratar da realidade, como às vezes se faz nas escolas. O desafio é de construir um

método pedagógico que vincule os conteúdos à compreensão dos fenômenos da realida-

de, que coloque os estudantes em contato com os problemas da vida, defrontando-se

com as contradições sociais e com as relações entre ser humano e natureza como objeto

de conhecimento. No processo educativo não podemos perder nem a prática nem o co-

nhecimento teórico.

A forma de escola que temos não é própria para trabalhar o conhecimento nessa

concepção porque em sua base há outra visão (positivista) de conhecimento. As inova-

ções em curso falam bastante da necessidade de os alunos terem acesso à ciência e à tec-

nologia e que o ensino deve ser atraente para que todos aprendam. Mas como o objetivo

é apenas atender às exigências da produção capitalista, o acesso ao conhecimento até

precisa ser ampliado, mas em doses controladas e fora de um ambiente educativo que

possa permitir que a ciência e a arte sejam trabalhadas em sua dimensão emancipatória.

Note-se que essa é uma contradição sutil que deveríamos entender e potencializar:

o capitalismo precisa que os trabalhadores tenham mais acesso a elementos científicos e

técnicos, mas não pode permitir que se junte quem pensa e quem faz, quem manda e

quem obedece. Para nossos objetivos, então, é isso mesmo que temos que tentar fazer:

juntar em um mesmo processo (no mesmo lugar, mesmas pessoas, mesma classe), inser-

ção no trabalho, juventude auto-organizada e protagonista e estudo científico sério: ao

compreender as contradições sociais a juventude pode escolher se organizar para en-

V SEMINÁRIO NACIONAL DE LICENCIATURAS EM EDUCAÇÃO DO CAMPO - CADERNO DE ESTUDOS | 158

Page 161: V SEMINÁRIO NACIONAL · Pretendemos com esse texto trazer presente sucintamente a política do Programa ... Essa experiência, como nos lembra Thompson (1981) é resultado de processos

frentá-las e não apenas se subordinar ao que já parecer determinado a ela. Jovens con-

formados e conservadores representam uma “água fria” no avanço das lutas dos traba-

lhadores, por isso as classes dominantes prestam cada vez mais atenção à educação das

novas gerações...

Nossa escola precisa ter a pulsação da vida e isso orientar o trabalho com o conhe-

cimento, mas com o rigor e a profundidade teórica que nosso projeto exige. Como fazer

isso é desafio pedagógico, construção coletiva já iniciada em muitas de nossas práticas,

mas que precisamos cotejar com uma discussão rigorosa sobre concepção de conheci-

mento e um correspondente alargamento da noção tradicional de “currículo”. Baratear

ou simplificar o ensino, o estudo, está a serviço de manter estudantes e professores su-

bordinados e alienados.

A mudança da forma escolar é um problema prático e teórico de fundo, mas que se

refere a fatos empíricos bem simples do nosso cotidiano: quem já se deu conta que para

trabalhar os conteúdos na perspectiva de ferramentas do conhecimento é necessário não

ficar preso à sala de aula e ter momentos de trabalho de campo, por exemplo, já perce-

beu como a grade rígida de horários fragmentados precisa ser quebrada pra que esse tipo

de aula aconteça; e já experimentou a estranheza de colegas e dos pais diante de iniciati-

vas de aproximação da escola a questões da vida real. E quando se tenta fazer mudanças

que envolvem a participação dos estudantes no trabalho e na gestão da escola, quantos

obstáculos, a começar com o desconforto da alteração da lógica e da organização do tra-

balho dos educadores: como assim que a tarefa do professor não é mais só dar aulas? E

como assim que é preciso ter momentos de planejamento coletivo e ainda mais, que jun-

te professores, bibliotecário, merendeiras, pessoal da limpeza, coordenadores pedagógi-

cos...: mas então o que importa na escola não é só a sala de aula e esse não é território

de comando individual do professor?

E para finalizar sem concluir, porque a discussão deve continuar, firmemos mais

uma ideia importante: precisamos “partir de onde nos encontramos”. Em cada local é

preciso ter um plano de mudança, fundamentado em uma análise da realidade e sem

V SEMINÁRIO NACIONAL DE LICENCIATURAS EM EDUCAÇÃO DO CAMPO - CADERNO DE ESTUDOS | 159

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aventuras que possam prejudicar os estudantes, a nós todos. Não há receitas sobre pas-

sos concretos e procedimentos para a construção da nova forma escolar: ela é obra de

cada escola, nas relações que estabelece com seu entorno e tendo firmeza dos objetivos

mais amplos do trabalho educativo que o coletivo se propõe a realizar. Por sua vez, o

avanço da compreensão desses objetivos e da concepção de educação que permite traba-

lhar por eles, bem como a construção de um método de análise das contradições de cada

realidade não devem ser tarefas de cada escola sozinha, mas exigem uma associação

(que é outra construção coletiva) entre escolas com objetivos e vínculos sociais comuns.

Síntese elaborada para exposições em atividades de formação de educadores.

Porto Alegre, Novembro 2014.

V SEMINÁRIO NACIONAL DE LICENCIATURAS EM EDUCAÇÃO DO CAMPO - CADERNO DE ESTUDOS | 160

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II ENCONTRO NACIONAL DE EDUCADORAS E EDUCADORES DA

REFORMA AGRÁRIA

Luziânia, GO, 21 a 25 de Setembro de 2015.

MANIFESTO DAS EDUCADORAS E DOSEDUCADORES DA REFORMA AGRÁRIA

Somos educadoras e educadores de crianças, jovens, adultos e idosos de acampa-

mentos e assentamentos de Reforma Agrária de todo o Brasil. Vinculamos nosso traba-

lho ao MST, uma organização de trabalhadores camponeses que há 31 anos luta pela ter-

ra, pela Reforma Agrária e por transformações na sociedade brasileira. Em fevereiro de

2014, o MST realizou seu VI Congresso Nacional, reafirmando seus compromissos his-

tóricos: a Reforma Agrária Popular continua a luta pela democratização da terra, a par-

tir de um debate com a sociedade sobre o projeto de agricultura que defendemos para

nosso país e para o mundo.

Desde o início de nossa organização incluímos como prioridade a luta pela univer-

salização do direito à escola pública de qualidade social, da educação infantil à universi-

dade, entendendo que o acesso e permanência é fundamental para inserir toda nossa

base social na construção de um novo projeto de campo e nas lutas pelas transformações

socialistas. Temos buscado construir coletivamente um conjunto de práticas educativas

na direção de um projeto social emancipatório, protagonizado pelos trabalhadores.

Como participantes do II Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Re-

forma Agrária, nos associamos a outras organizações de trabalhadores na seguinte análi-

se da realidade atual:

1. Vivemos numa sociedade capitalista cada vez mais desigual, que produz rique-

zas para poucos e miséria para muitos. O capitalismo mundial é agora comandado pelo

capital financeiro e pelas grandes empresas privadas transnacionais, que dominam e

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controlam a produção e circulação das mercadorias em todos os países. Neste contexto,

tudo vira negócio: a produção de alimentos, a saúde, a educação, o lazer, e cada vez

mais o espaço público é subordinado aos interesses das classes detentoras do capital,

pondo em perigo a vida humana e a natureza.

2. Como o objetivo principal é o lucro das empresas, as condições de vida dos tra-

balhadores e

trabalhadoras e os direitos sociais duramente conquistados, estão sempre em peri-

go. No Brasil, estamos perdendo algumas conquistas dos últimos anos e se agravam pro-

blemas como transporte público, moradia, empregos e o acesso à saúde e à educação pú-

blica em todos os níveis e modalidades.

3. Este modelo econômico é o mesmo que organiza e controla a produção como

um negócio capitalista, o agronegócio, e sua apropriação privada dos recursos naturais,

água, minerais e biodiversidade. Esta lógica de agricultura está baseada em monocultu-

ras que permitem produção em larga escala, mas destroem a biodiversidade e precisam

cada vez mais de insumos artificiais que desequilibram os processos de reprodução da

vida na natureza. O avanço do agronegócio é amparado por leis e mantido por financia-

mentos públicos que garantem sua expansão, expropriando a terra e os territórios de

camponeses, indígenas, quilombolas... No Brasil, a ausência de uma política de Reforma

Agrária é um dos indicativos da aposta equivocada dos governos no modelo do agrone-

gócio, que esconde suas graves contradições, já discutidas em todo o mundo.

4. É possível desenvolver a agricultura de outra forma, tendo por objetivo princi-

pal a produção de alimentos saudáveis para o conjunto da população, e já existem mui-

tas práticas buscando uma produção que respeite a saúde humana e a natureza. Mas o

desenvolvimento dessa agricultura em larga escala requer novas pesquisas, produção de

ciência e políticas que estimulem a recuperação dos caminhos já percorridos pelos cam-

poneses e pelas camponesas em sua resistência ao longo da história da humanidade. Mas

não tem sido essa a opção dos que decidem o uso dos recursos públicos.

5. É esta mesma lógica perversa de colocar tudo a serviço da reprodução do capi-

V SEMINÁRIO NACIONAL DE LICENCIATURAS EM EDUCAÇÃO DO CAMPO - CADERNO DE ESTUDOS | 162

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tal, que coloca a educação na mira dos empresários. Além do histórico objetivo de ga-

rantir a formação dos trabalhadores e trabalhadoras a serviço do lucro das empresas,

agora fazem da educação um ramo de seus negócios e buscam assumir o controle políti-

co e pedagógico das escolas.

6. Grandes grupos empresariais intervêm cada vez mais na política educacional,

por meio de propostas que têm sido assumidas pelos governos com o falso objetivo de

melhorar a qualidade das escolas públicas. Na prática, estas propostas representam um

processo acelerado de mercantilização da educação em todos os níveis. Primeiro, bus-

cam demonstrar que a escola pública está em crise, que educandos e educandas não

aprendem, professores e professoras não sabem ensinar e o sistema educacional não fun-

ciona. Depois, apresentam como alternativa que as escolas passem a funcionar de acor-

do com a lógica de trabalho e de gestão das empresas capitalistas. Isso significa o esta-

belecimento de metas a serem atingidas, controle externo do processo pedagógico, perda

de autonomia do trabalho dos educadores e das educadoras, responsabilização individu-

al pela aprendizagem dos educandos e educandas sob qualquer condição e currículos de-

terminados em função da avaliação em larga escala.

Defendem, que para maior eficiência do modelo, as próprias empresas assumam a

gestão das escolas, recebendo recursos públicos para esta tarefa. No Brasil esses grandes

grupos empresariais se organizam no “Movimento Todos pela Educação”.

7. Do lado dos trabalhadores e das trabalhadoras há muitas organizações, educado-

res e educadoras, educandos e educandas e comunidades que, desde seus locais de traba-

lho buscam pensar e fazer mudanças necessárias na escola pública, mas com outros ob-

jetivos. É preciso, sim, transformar a escola para voltar seu trabalho educativo ao desen-

volvimento mais pleno de todas as pessoas, visando uma formação humana emancipató-

ria de longo prazo. Há ricas práticas educativas sendo desenvolvidas nessa direção.

8. Mas estes projetos estão em condições desiguais de disputa, porque cada vez

mais o Estado assume o lado das reformas empresariais da educação, da mesma forma

que na agricultura assume o lado do agronegócio. Por isso, as escolas públicas estão

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hoje em grave risco. Elas estão cada vez menos públicas, menos democráticas, menos

inclusivas e mais instrumentais. E os trabalhadores e as trabalhadoras cada vez menos

autônomos para desenvolver suas práticas educativas.

9. No Brasil, o direito à educação de trabalhadores e trabalhadoras ainda não foi

resolvido. O projeto escravocrata, latifundista e agroexportador do país, explica porque

sequer chegamos à universalização da educação básica e porque existem 14 milhões de

jovens e adultos ainda não alfabetizados. Este projeto é responsável pela desigualdade

histórica no atendimento dos direitos de trabalhadores e trabalhadoras do campo.

10. Mesmo com todas as lutas dos sujeitos coletivos do campo, ainda se tem

20,8% de analfabetos e a população camponesa tem, em média, 4,4 anos de estudo. Aí

está o maior contingente de crianças fora da escola, os menores índices de atendimento à

educação infantil, a maior precariedade física das escolas, as piores condições profissio-

nais de trabalho dos docentes, os contratos de trabalho mais precários, o maior número

de educadores e educadoras que atuam sem formação inicial.

11. A agricultura capitalista, que expulsa as famílias do seu território, somada à ló-

gica privatista das políticas educacionais, tem acelerado o fechamento de escolas públi-

cas no campo e dificultado a construção de escolas que atendam às diferentes etapas da

educação básica, negando às populações o direito de estudar no lugar onde vivem e tra-

balham. Entre os anos de 2003 e 2014, foram fechadas mais de 37 mil escolas no cam-

po. A política do transporte escolar afasta as crianças das escolas, seja pelo tempo gasto

em péssimas estradas seja pelos meios de transporte precários.

12. As reformas empresariais em curso fazem com que as escolas que ainda resis-

tem no campo sofram uma investida cada vez mais forte das empresas do agronegócio,

através de cartilhas e projetos pedagógicos que fazem propaganda de seu projeto e dos

interesses de classe que representam, além de ser parte da investida de privatização dis-

farçada da escola pública.

Diante desta realidade e buscando honrar a história de que somos parte, manifesta-

mos nossos

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COMPROMISSOS de LUTA e CONSTRUÇÃO:

1. Seguir lutando por uma sociedade justa, democrática e igualitária, sem explora-

ção do trabalho e da natureza, com Reforma Agrária, com um projeto popular de agri-

cultura e com saúde, cultura e educação de qualidade social para o conjunto dos traba-

lhadores e das trabalhadoras.

2. Lutar contra qualquer tipo de reforma neoliberal que reduza os direitos dos tra-

balhadores e das trabalhadoras e comprometa a democracia e a soberania do nosso país.

3. Combater o modelo do agronegócio que representa doenças, morte e destruição

da natureza e dos povos do campo, das florestas e das águas, especialmente dos povos

indígenas e quilombolas. E resistir à ofensiva das empresas do agronegócio nas escolas

do campo, que tenta subordinar educadores e educadoras, educandos e educandas à sua

lógica destrutiva, com falsos discursos inovadores.

4. Construir a Reforma Agrária Popular, com distribuição de terras a quem nela

vive e trabalha e com avanço da agricultura camponesa que tem como principal objetivo

a produção de alimentos saudáveis e ambientalmente sustentáveis para o conjunto da so-

ciedade.

5. Trabalhar pela agroecologia como matriz tecnológica, produção de conheci-

mento e desenvolvimento de uma agricultura a partir dos princípios da agrobiodiversi-

dade e da soberania alimentar dos territórios.

6. Combater a privatização da educação pública em todas as suas formas, seguir

na defesa de uma educação pública desde a educação infantil até a universidade e atuar

contra as reformas empresariais defendidas no Brasil pelo Movimento Todos pela Edu-

cação, que buscam subordinar as escolas às exigências do mercado, reduzem as dimen-

sões formativas, roubam o tempo da aprendizagem, instalam uma competição doentia e

ampliam a exclusão.

7. Defender a destinação de verba pública exclusivamente para a educação públi-

ca.

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8. Combater a indústria cultural capitalista que produz um modo de vida consu-

mista e individualista.

9. Seguir denunciando que FECHAR ESCOLA É CRIME! E lutar contra a desi-

gualdade educacional em nosso país e pela construção de mais escolas públicas no cam-

po, com infra-estrutura adequada, de acordo com a realidade do campo.

10. Trabalhar pela alfabetização e políticas públicas de EJA e exigir políticas que

garantam o direito à elevação da escolaridade de todo povo brasileiro.

11. Defender para todos os trabalhadores e as trabalhadoras do campo e da cidade,

uma educação emancipatória que vise o desenvolvimento do ser humano em todas as di-

mensões da vida, que alargue a visão de mundo das novas gerações e permita vivenciar

relações sociais baseadas em valores como a justiça, a solidariedade, o trabalho coletivo

e o internacionalismo.

12. Seguir na construção de uma escola ligada à vida das pessoas, que tome o tra-

balho socialmente produtivo, a luta social, a organização coletiva, a cultura e a história

como matrizes organizadoras do ambiente educativo da escola, com participação da co-

munidade e auto-organização de educandos e educandas, e de educadores e educadoras.

13. Lutar contra todo tipo de violência e preconceitos étnicos e raciais, glbtfóbicos

e de gênero.

14. Participar das lutas dos trabalhadores e das trabalhadoras da educação por con-

dições dignas de trabalho, valorização profissional e formação adequada.

15. Seguir trabalhando pela Pedagogia do Movimento e pela Educação do Campo,

na construção da Pedagogia Socialista para o conjunto dos trabalhadores e das trabalha-

doras.

Prestamos nossa homenagem a Florestan Fernandes, uma grande liderança da luta

pelo direito à educação e pela escola pública no Brasil, que colocou seu trabalho a servi-

ço das causas do povo. Que seu legado siga inspirando nossa organização: não se deixar

cooptar, não se deixar esmagar. Lutar sempre!

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Conclamamos nossos e nossas camaradas de luta e de projeto para juntos transfor-

marmos as graves contradições deste momento histórico em lutas coletivas na direção

das transformações necessárias para construção da futura república socialista do traba-

lho.

Lutar, Construir Reforma Agrária Popular!

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FÓRUM NACIONAL DE EDUCAÇÃO DO CAMPO -FONEC - DOCUMENTO FINAL

III Seminário Nacional

Brasília, DF, 26, 27 e 28 de agosto de 2015.

A história nunca se fecha por si mesma e nunca sefecha para sempre. São os homens, em grupos, e

confrontando-se como classes em conflito, que“fecham” ou “abrem” os circuitos da história.

(Fernandes, F. Circuito Fechado. 2010, p.11)

O Fórum Nacional de Educação do Campo – FONEC realizou, nos dias 26, 27 e

28 de agosto de 2015, em Brasília, o III Seminário Nacional.

Participaram 114 pessoas, representando os movimentos sociais e sindicais do

campo, os Centros Familiares de Formação por Alternância – CEFFA’s, as Pastorais So-

ciais, os Centros Acadêmicos dos Cursos de Licenciatura em Educação do Campo, pro-

fessores e professoras representando um conjunto de universidades, que assinam o pre-

sente Documento.

O Seminário teve como objetivos: analisar o contexto da Educação do Campo na

relação com os determinantes sociais fundamentais da conjuntura nacional atual e a po-

lítica educacional em curso; realizar um balanço da situação da Educação do Campo nas

regiões, destacando-se os limites e potencialidades de mobilização e organização dos fó-

runs estaduais; identificar e analisar os principais desafios para construção de uma po-

lítica pública de Educação do Campo nas regiões; e discutir o papel do FONEC na atua-

lidade, projetando sua atuação em âmbito nacional e estadual.

Afirmamos o FONEC como espaço de articulação das lutas dos trabalhadores do

campo pelo direito à educação de qualidade social, materializando ações de disputa de

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formulação de políticas públicas que participem da composição da política educacional

brasileira.

1. O contexto atual

O momento atual de crise econômica nos faz recordar que as crises são comuns e

da natureza do capitalismo. Essa condição impõe uma leitura em perspectiva histórica,

para compreender a maneira como o sistema político é peculiar em cada momento, para

compreender as tarefas políticas do presente.

Vivemos, de 2002 a 2014, um pacto exitoso de poder em que a estratégia adotada

pelo Governo, no campo da economia, foi de manter de pé o nacional-desenvolvimentis-

mo ancorado nas exportações primárias, investindo fortemente em crédito e infra-estru-

tura para o agronegócio (incluindo a mineração), e no plano social, ancorado na amplia-

ção dos direitos sociais e no aumento da massa salarial e do consumo.

O começo do ano 2015 começou a indicar um novo arranjo, com mudanças abrup-

tas na política econômica, conhecido como ajuste fiscal.

Este ajuste, compreendido como “socialização de perdas” para compensar os lu-

cros de quem está no topo da pirâmide social, se expressa em cortes em setores funda-

mentais da economia, anunciando-se ainda um ajuste estrutural para cortar recursos dos

fundos de financiamento dos direitos sociais de quem está na base da pirâmide, tais

como previdência social, saúde, incluindo os fundos de financiamento da educação bási-

ca, por meio de obrigatoriedades e condicionalidades para transferências de recursos, a

sistemas de avaliação com base em produtividade do sistema educacional público.

Tais anúncios, se confirmados, aprofundarão ainda mais os já graves problemas da

educação dos/as camponeses/as.

Ocorre que “a história é um campo aberto de possibilidades” (Mészáros, 2005, p.

13) e as crises abrem espaços para mudanças. Se o modelo em crise é aquele que abriu

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as frentes para a expansão do agronegócio com todas as suas mazelas, esta crise interes-

sa aos trabalhadores e aos camponeses que lutam contra o projeto hegemônico do capi-

tal na agricultura, pois a crise desorganizou o pacto de poder que permitiu tal hegemo-

nia.

Os avanços construídos no período devem desafiar as organizações dos/as traba-

lhadores/as para construir e avançar sobre a consciência dos direitos, politizando os di-

reitos sociais e organizando a luta no plano da consciência sobre a ameaça da mercanti-

lização dos direitos sociais conquistados.

2. A Educação no contexto atual

A mudança no conceito de desenvolvimento que se operou nos últimos 12 anos,

no Brasil, alavancado pelo consumo, provocou um processo de espiral crescente e posi-

tiva na economia, trazendo o debate do grande empresariado sobre a produtividade do

trabalho, com implicações para a educação, por tratar-se de um dos fatores a impactar a

alavancagem do aumento da produtividade.

O desenvolvimento dos trabalhadores do ponto de vista educativo é um compo-

nente relevante no cálculo da produtividade e esse sempre foi tema em torno do qual os

empresários estiveram atentos.

No contexto da última década, atentaram-se para a necessidade de mexer no pro-

cesso educativo como componente dos processos de elevação da produtividade e, por

razões ideológicas ou práticas, os empresários decidiram que a educação não pode ser

deixada para os educadores. Para esses, a educação também é um mercado. E uma mer-

cadoria.

O empresariado quer acesso à verba pública. Para eles, não é apenas uma questão

de redução dos gastos, desde que o Estado tenha assegurados os fundos para seus negó-

cios e deixe de gastar com educação pública, transferindo o fundo público para as inicia-

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tivas privadas de educação. O fenômeno do pré-sal acirra essa pressão.

Esse movimento do capital em torno da educação é um fenômeno internacional, e

internamente ao Brasil, a organização que coordena essa ofensiva é o movimento Todos

pela Educação.

Do ponto de vista prático, existe a cooptação no campo acadêmico e a articulação

de um corpo técnico, também repercutido pela mídia, mostrando a fragilidade do setor

público.

Estamos entre dois caminhos: o primeiro, orientado pela agenda dos reformadores

educacionais que pressionam pela aplicação das reformas empresariais às escolas, orga-

nizando-as com base em metas e controle do processo produtivo, com procedimentos

bem definidos de maneira a conduzir o resultado, já expresso no Plano Nacional de Edu-

cação – PNE. O segundo, que representa os/as trabalhadores, incluindo os/as campone-

ses, aposta na formação humana situada num quadro econômico e social e, portanto,

deve ser pensada no conjunto da sociedade e não como uma ação específica numa esco-

la reformada segundo a lógica empresarial.

A disputa atual se estabelece na elaboração, pelo Ministério da Educação da Base

Nacional Comum Curricular e do Sistema Nacional de Educação, como parte do projeto

“Pátria Educadora” sem discussão com as organizações da sociedade que representam

os interesses dos estudantes e educadores.

O “Pátria Educadora” se referencia na lógica empresarial para a educação, cujo

efeito perverso será a destruição da escola pública, permitindo o acesso dos sistemas pri-

vados de ensino, aos fundos públicos, em nome da qualidade na educação. Alguns esta-

dos como Goiás e Pará já realizam estes experimentos por dentro da rede estadual de en-

sino.

O PRONATEC constitui-se em experimento emergencial deste conceito de educa-

ção associada aos interesses diretos do capital.

No campo, já se experimentam arranjos desta nova política, pela abertura a Pro-

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Page 174: V SEMINÁRIO NACIONAL · Pretendemos com esse texto trazer presente sucintamente a política do Programa ... Essa experiência, como nos lembra Thompson (1981) é resultado de processos

gramas executados pelos setores do Agronegócio (Souza Cruz, Syngenta, Monsanto en-

tre outros), muitos deles denominados “Educação do Campo” e utilizando-se de seus

conceitos para afirmar-se junto às escolas, aos educadores e às comunidades.

3. Balanço da Educação do Campo

Na Educação do Campo, consideramos que esta última década constituiu-se num

período exitoso no que se refere à legitimação e à institucionalização do direito à educa-

ção dos camponeses, tais como o Decreto da Educação do Campo; o Procampo-Licenci-

atura em Educação do Campo e o Pronacampo. Ademais destes programas, o Pronera e

seus resultados demonstram que vivemos uma década de avanços.

Por outro lado, a persistência de um índice de 20,8 % de pessoas adultas analfabe-

tas e uma escolaridade de apenas 4,4 anos de estudos, em média, agravada pelo fecha-

mento ininterrupto e crescente de escolas, turmas e turnos no campo (nos últimos 11

anos, 37 mil escolas tiveram suas atividades encerradas) indicam que a agenda de avan-

ços institucionais encontrou seus limites no enfrentamento a esses temas e exige a revi-

são dos mecanismos até agora utilizados.

Assim mesmo, vivemos importantes momentos de mobilização em torno da Edu-

cação do Campo no contexto atual, como a realização do II Encontro Nacional de Edu-

cadoras e Educadores da Reforma Agrária – II ENERA, o Encontro das Licenciaturas

em Educação do Campo, estando nas mãos dos protagonistas de tais mobilizações – mo-

vimentos sociais, professores/as e universidades, potencializar esses esforços em meca-

nismo de pressão, em movimento contra-hegemônico.

Nossa luta deve ser por educação pública, mas afirmando o campo e a luta pelo

acesso à terra e pelas condições de permanência nela, porque o direito à educação so-

mente lá chegou pela luta dos/as camponeses/as. Mas chegou precário e o que chegou

está em processo de desmonte. O panorama da Educação do Campo no Brasil indica que

o modelo de agricultura e o modelo cultural que o agronegócio carrega consigo, se uni-

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versalizaram e se temos problemas semelhantes, nossa causa é única. O momento de

turbulência, de crise, indica possibilidade de mudanças.

O Fórum Nacional de Educação do Campo – FONEC deve ser um espaço de ela-

boração e direção política sobre a atuação em todos os espaços e territórios conquistados

e a conquistar.

Em 2004 e 2005, fizemos uma rodada pelo País, constituindo os comitês e fóruns

de Educação do Campo, mas passado esse período, em que pese algumas conquistas no

campo institucional, assistimos a um processo de desmonte dos espaços a duras penas e

contradições construídos, comprometendo nossa força coletiva, o que implica na neces-

sidade de uma formulação superior acerca da relação com o Estado, pois “o monstro é

grande e pisa forte”.

O Pronacampo e o sistema de acesso às políticas via Programa de Ações Articula-

das – PAR, que obriga os municípios e estados assumirem os compromissos do “Todos

pela Educação”, aparta e imobiliza a ação dos movimentos sociais, das comunidades e

suas iniciativas.

Concluímos pela necessidade de uma estratégia articulada de enfrentamento ao ca-

pital, que avança de forma intensiva, vem desmontando a educação pública por meio de

iniciativas parlamentares, Ministério Público, Judiciário, entre outras de caráter admi-

nistrativo, executadas pelos estados e municípios.

Em muitos estados há diversas iniciativas e ações em Educação do Campo, mas

não chegaram ainda a constituir-se em uma força coletiva unificada, porque estão desar-

ticuladas.

O capital se apropria das terras e do conhecimento. Cabe aos movimentos a gran-

de aliança, para fortalecer-nos em torno da Educação do Campo como defesa da edu-

cação pública.

Desta forma, assumimos nacionalmente o compromisso com um conjunto de de-

safios e proposições que devem instituir-se em cada região, estado e município.

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DESAFIOS/PROPOSIÇÕES

1. Apoiar e fortalecer os fóruns e comitês estaduais e municipais, organizando a

articulação das ações existentes, com protagonismo dos movimentos sociais – locais, es-

taduais e nacionais.

2. Construir unidade na análise de conjuntura – sociedade, desenvolvimento, cam-

po e políticas educacionais e apresentá-la em outros espaços que debatem o tema da

educação, como o Fórum Nacional de Educação.

3. Organizar uma agenda unificada, com posição clara sobre o Pátria Educadora,

mecanismos de empresariamento da educação, sistemas de avaliação, fechamento de es-

colas, EJA, PNAE, reconhecimento dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo

nos concursos para o magistério, entre outros.

4. Realizar um mapeamento da realidade educacional no Brasil na forma de um

diagnóstico analítico e propositivo – cada estado fazer o seu – mapas, vídeos, fotografi-

as dos territórios com/sem escola, mas também com experiências exitosas e experiên-

cias exitosas interrompidas.

5. Articular as lutas da Educação do Campo com as lutas gerais da classe trabalha-

dora e outros fóruns e espaços de participação e proposição de políticas públicas – agro-

ecologia, economia solidária, soberania alimentar, defesa da escola pública.

6. Elaborar Nota Técnica com posicionamento acerca do fechamento das escolas

do campo (com proposta concreta para viabilizar a construção de escolas no campo),

aprofundar realidade da EJA e enfrentar o tema da multissérie como precarização e dis-

cutir a Base Nacional Comum Curricular.

7. Construir maior organicidade e ações articuladas voltadas para o fortalecimento

dos cursos de Licenciatura em EdoC, a Pedagogia da Alternância, envolvendo os estu-

dantes e licenciados; acompanhar como estão e onde estão os egressos.

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8. Realizar lutas em defesa da educação pública.

9. Defender o PRONERA, com aumento dos recursos e desburocratização, man-

tendo o protagonismo dos movimentos sociais.

10. Realizar Audiências Públicas para discutir fechamento/construção de escolas.

Articular as frentes parlamentares em Educação do Campo nos estados, além dos órgãos

do Ministério Público e orientar as comunidades sobre como proceder mediante a amea-

ça de fechamento de escolas.

11. Realizar a III Conferência Nacional de Educação do Campo.

EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIREITO NOSSO, DEVER DO ESTADO!

Assinam :

• CPT

• ARCAFAR

• APP Sindicato

• CONTAG

• MST

• RESAB

• ACEFAS

• RESAB

• EFAORI Goiás

• AGEFA

• UNEFAB

• EFA Marabá

• SINTEPE

• AEFARO

• RACCEFFAES

• MEPES

• AMEFA- MG

• AECOFABA

• AGEFA – RS

• UAEFAMA

• REFAISA-BA

• MOC

• COMITÊ DE

EDUCAÇÃO DO

CAMPO – ES

• UFPA

• UFT

• UFSC

• UFPE

• UnB

• UFRGS

• UFV

• UFRB

• UNIFESSPA

• UFAM

• UNIMONTES

• IFRN

• UFCG

• UNICAMP/FEEC

• UFRR

• IFMA

• UFPR

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• UERGS

• UNEB

• IFPA

• UNICENTRO

• UNICAMP/UPT

• UEFS

• SEDUC –Pará

• SED-SC

• SED-AM

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