24
V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O mundo empresarial e a questão social Porto Alegre, 2 a 5 de maio de 2006 – PUCRS Mesa Redonda 01: O mundo do trabalho e o empresariado Trabalho, empresa e sociedade: a teoria do reconhecimento de A. Honneth e o teletrabalho (versão preliminar e provisória) Cinara L. Rosenfield (UFRGS) 1 Resumo O objetivo deste estudo é compreender o contexto do trabalho na chamada sociedade da informação e as diferentes formas de trabalho que nela se desenvolvem, em especial o teletrabalho. Diante de um novo paradigma tecnológico característico da era da informação, trata-se de analisar as novas maneiras de trabalhar e as margens de autonomia no trabalho que lhes acompanham. Se a autonomia no trabalho industrial na sociedade pós-fordista é uma autonomia outorgada uma vez que, em seu sentido instrumental, visa a integrar o trabalhador ao processo de trabalho, interessa-nos aqui investigar e analisar a autonomia no trabalho ligado às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Por um lado, estas tecnologias, por referirem-se a atividades de natureza compreensiva e imaterial, traduziriam uma redução da amplitude da divisão do trabalho entre os que concebem e os que executam e um acréscimo na autonomia no trabalho, mas, por outro, a realidade do trabalho ligado às TICs mostra-se complexa e ambígua pois há indícios de uma manutenção da divisão entre trabalhos “inteligentes” e trabalhos controlados e repetitivos (como call centers). Na sociedade da informação vê-se a distância entre aqueles que utilizam as informações para atingir objetivos definidos por eles mesmos – e, portanto, dispõem de autonomia - e aqueles que sofrem os “efeitos” do mercado de trabalho e da avalanche de informações - e que são reduzidos à dependência econômica e cultural. O trabalho imaterial – e mais especificamente o teletrabalho –, produtor e consumidor de conhecimento e de informação, apresenta-se mais como trabalho flexível do que como trabalho autônomo, uma vez que a autonomia verificada diz respeito, sobretudo, a um maior controle sobre o tempo e o local de trabalho, mas subordinado às demandas de flexibilidade seja do mercado seja das organizações econômicas que assalariam ou consomem o trabalho informacional. 1 Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora pela Université Paris IX – Dauphine. A presente pesquisa foi, em parte, realizada durante um estágio pós-doutoral em Portugal, na Universidade Técnica de Lisboa, com bolsa concedida pela CAPES dentro do acordo de cooperação internacional CAPES-GRICES.

V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O mundo empresarial e a questão social

Porto Alegre, 2 a 5 de maio de 2006 – PUCRS

Mesa Redonda 01: O mundo do trabalho e o empresariado

Trabalho, empresa e sociedade: a teoria do reconhecimento de A. Honneth e o teletrabalho

(versão preliminar e provisória)

Cinara L. Rosenfield (UFRGS)1

Resumo

O objetivo deste estudo é compreender o contexto do trabalho na chamada sociedade da informação e as diferentes formas de trabalho que nela se desenvolvem, em especial o teletrabalho. Diante de um novo paradigma tecnológico característico da era da informação, trata-se de analisar as novas maneiras de trabalhar e as margens de autonomia no trabalho que lhes acompanham. Se a autonomia no trabalho industrial na sociedade pós-fordista é uma autonomia outorgada uma vez que, em seu sentido instrumental, visa a integrar o trabalhador ao processo de trabalho, interessa-nos aqui investigar e analisar a autonomia no trabalho ligado às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Por um lado, estas tecnologias, por referirem-se a atividades de natureza compreensiva e imaterial, traduziriam uma redução da amplitude da divisão do trabalho entre os que concebem e os que executam e um acréscimo na autonomia no trabalho, mas, por outro, a realidade do trabalho ligado às TICs mostra-se complexa e ambígua pois há indícios de uma manutenção da divisão entre trabalhos “inteligentes” e trabalhos controlados e repetitivos (como call centers). Na sociedade da informação vê-se a distância entre aqueles que utilizam as informações para atingir objetivos definidos por eles mesmos – e, portanto, dispõem de autonomia - e aqueles que sofrem os “efeitos” do mercado de trabalho e da avalanche de informações - e que são reduzidos à dependência econômica e cultural. O trabalho imaterial – e mais especificamente o teletrabalho –, produtor e consumidor de conhecimento e de informação, apresenta-se mais como trabalho flexível do que como trabalho autônomo, uma vez que a autonomia verificada diz respeito, sobretudo, a um maior controle sobre o tempo e o local de trabalho, mas subordinado às demandas de flexibilidade seja do mercado seja das organizações econômicas que assalariam ou consomem o trabalho informacional.

1 Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora pela Université Paris IX – Dauphine. A presente pesquisa foi, em parte, realizada durante um estágio pós-doutoral em Portugal, na Universidade Técnica de Lisboa, com bolsa concedida pela CAPES dentro do acordo de cooperação internacional CAPES-GRICES.

Page 2: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

2

1- Introdução Um contexto de precarização e flexibilização do emprego associado a mudanças

na organização do trabalho nas sociedades capitalistas impõe um novo padrão de

implicação no trabalho por parte do trabalhador. O trabalho – como padrão, o que não

significa a inexistência de trabalho taylorista, precário, penoso ou embrutecedor –

tornou-se mais variado e mais complexo, o conteúdo e a natureza do trabalho tornaram-

se mais ricos, visto uma maior demanda de investimento subjetivo e de mobilização da

inteligência. O trabalho tornou-se mais instigante e, em muitos casos, imaterial. É

possível, pois, supor que este quadro represente ganhos para os trabalhadores, já que o

trabalho tornou-se mais interessante e flexível. O objetivo deste trabalho é discutir o

significado da autonomia do trabalho imaterial - que supõe a reflexão, a concertação de

saberes e de observações, a troca de informações - ligado às tecnologias de informação

e comunicação (TICs), mais especificamente o teletrabalho. As reflexões aqui presentes

estão associadas a pesquisas empíricas junto a teletrabalhadores, assalariados e/ou por

conta própria – incluindo operadores de call centers, trabalhadores autônomos e

assalariados da área de informática, teletrabalhadores em domicílio –, em Lisboa

(Portugal) e em Porto Alegre (Brasil), num total de 26 entrevistas, em 2004 e 2005. No

presente artigo discute-se o conceito e as implicações da propalada autonomia no

trabalho baseando-nos simultaneamente na literatura e em nossos dados empíricos.

Em estudos anteriores junto a operadores da indústria de produção, pôde-se

constatar mudanças que apontavam para exigências de mobilização subjetiva dos

trabalhadores a fim de atingir a correta execução de suas responsabilidades, o que vem a

constituir um quadro de autonomia outorgada (ROSENFIELD, 2003b) - a autonomia é

outorgada na medida em que ela é “concedida” aos trabalhadores mas se constitui, ao

mesmo tempo, em uma ordem a ser obedecida. A antiga organização do trabalho

taylorista ou fordista viu-se diante da necessidade de renovação a fim de dar respostas a

um outro tipo de exigência: para garantir qualidade e competitividade, agora em escala

inédita, o trabalho do operário industrial deve integrar a compreensão da tarefa, de

maneira a possibilitar um trabalho de concertação e de troca de informações e saberes

não só no momento de concepção mas também no de sua execução. Esta seria a nova

face da dominação do capital: é mister que o trabalhador se identifique pessoalmente,

que se mobilize subjetivamente, que lance mão de suas capacidades psíquicas e

relacionais para bem executar seu trabalho. A estas conclusões, acrescentamos aqui

aquelas relativas à autonomia no trabalho nas ocupações vinculadas às Tecnologias de

Page 3: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

3

Informação e Comunicação (TICs). Diante de um novo paradigma tecnológico

característico da era da informação (também denominada nova economia, capitalismo

cognitivo, sociedade em rede, sociedade informacional, segundo as diferentes

abordagens), trata-se de analisar as novas maneiras de trabalhar e as margens de

autonomia no trabalho que lhes acompanham. Se a autonomia no trabalho industrial é

uma autonomia outorgada uma vez que traduz seu sentido instrumental, ou seja, é

instrumento de coordenação das relações de trabalho e visa atingir um objetivo

econômico de gestão da produção - na busca de inserir no processo de trabalho os

elementos que não podem ser prescritos, como a concertação e a mobilização subjetiva -

, trata-se aqui de confrontá-la à autonomia no trabalho ligado às TICs. Estas tecnologias

a priori exigiriam maior qualificação e competência nas suas tarefas de natureza

“inteligente” e imaterial, o que apontaria para uma redução da divisão do trabalho entre

os que concebem e os que executam o trabalho e a uma maior margem de autonomia no

trabalho. Entendemos aqui que a chamada sociedade da informação remete não somente

e estritamente ao trabalho no setor de informação e telecomunicação, já que a presença

e potencialidades das TICS acabam por transformar as formas de operacionalizar, de

gerir e de trabalhar nas mais diversas atividades. O modelo de empresa em rede nas

mais variadas áreas de atividade, por exemplo, possibilita a inclusão ou exclusão de

novos componentes, em qualquer tempo ou local sem grandes custos; possibilita a

interatividade em tempo real com fornecedores, clientes, subcontratados ou

empregados; favorece uma maior flexibilidade, uma interação descentralizada, de fácil

modificação, e, simultaneamente, maior controle sobre as atividades da empresa; além

de propiciar a personalização da produção e dos serviços, segundo as necessidades de

cada cliente. (Castells, 2004).

2. A sociedade informacional

As mudanças na área das tecnologias de informação e comunicação, da

economia e do trabalho, ocorridas nas últimas duas décadas do século XX, suscitam

diferentes abordagens. São abordagens que se inserem dentro de debates mais amplos

sobre globalização e reestruturação produtiva, e se distinguem quanto à forma como

concebem a natureza dessas mudanças, os seus impactos e seus prováveis

desdobramentos.

Uma primeira abordagem, baseada no conceito de sociedade em rede, gira em

torno da tese de Manuel Castells (1999), segundo a qual uma diferenciação analítica se

Page 4: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

4

faz necessária entre a sociedade da informação – um novo tipo societal – e a

globalização – uma nova revolução capitalista que cria novas polaridades,

desigualdades e formas de exclusão ao nível global. Um novo paradigma de tecnologia

da informação forma a base material da sociedade da informação que se mantém

enquanto sociedade capitalista a despeito da diversidade cultural e institucional destas

sociedades.

Em torno das tecnologias da informação, há uma infinidade de inovações

técnicas que avançam na medida em que se cria uma interface entre os diversos campos

da tecnologia através de uma linguagem digital, na qual a informação é produzida,

acumulada, processada e transmitida. O conceito de paradigma tecnológico cunhado por

Castells auxilia na compreensão da essência da transformação tecnológica atual na

medida em que esta última interage com a sociedade e a economia. Os aspectos centrais

deste paradigma, no conjunto, formam a base material da sociedade da informação: 1) a

informação é a matéria-prima do novo paradigma; 2) como a informação é uma parte

fundamental da atividade humana, os novos meios tecnológicos moldam diretamente a

esfera da existência individual e coletiva; 3) a lógica das redes envolve qualquer tipo de

relações usando as novas tecnologias de informação; 4) o paradigma tecnológico da

informação é baseado na flexibilidade; 5) tendência de convergência de tecnologias

específicas para um sistema altamente integrado.

A revolução tecnológica atual originou-se e difundiu-se, não por acaso, em um

período histórico da reestruturação global do capitalismo, para o qual foi uma

ferramenta básica. Portanto, a nova sociedade emergente é capitalista e também

informacional, embora apresente variação histórica considerável nos diferentes países,

conforme sua história, cultura, instituições e relação específica com o capitalismo global

e a tecnologia informacional.

Para Castells, embora sendo a reestruturação do capitalismo e a difusão do

informacionalismo processos globais, seria impróprio, de certo modo, falar em uma

Sociedade Informacional, pois cada país, cada região esteve e está ligada a esse

processo de forma diferente. Entretanto, poder-se-ia falar em Sociedade Informacional

tal como já se falou em Sociedades Industriais, no sentido de se referir às características

comuns de sistemas sociotécnicos. Mas é preciso levar em consideração duas ressalvas:

“(...) por um lado, as sociedades informacionais, como existem atualmente, são

capitalistas (diferentemente das sociedades industriais, algumas delas eram estatistas);

por outro, devemos acentuar a diversidade cultural e institucional das sociedades

Page 5: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

5

informacionais” (p.38). Assim, não se corre o risco de homegeneizar as peculiaridades

de cada nação, mas, também, não se perde de vista o processo mais amplo a que todas

elas estão submetidas, ou seja, o fato de que todos os países, no futuro, serão cada vez

mais sociedades informacionais.

A segunda abordagem é aquela dos autores reunidos em torno da tese do

capitalismo cognitivo (AZAÏS, CORSANI, DIEUAIDE, 2001; GALVÃO, SILVA,

COCCO, 2003). Para estes, as mudanças ocorridas transformaram a natureza do

capitalismo, cujas bases, antes encontradas na produção industrial, agora estão situadas

na produção de conhecimento e informação.

Os autores reunidos em torno da tese do capitalismo cognitivo afirmam que,

principalmente em função do surgimento e da integração das novas tecnologias de

informação e comunicação (TICs), inaugurou-se uma nova etapa na história da

economia capitalista: o capitalismo cognitivo em oposição ao capitalismo industrial.

Nesse “novo capitalismo”, a origem do valor não estaria mais na produção de bens

homogêneos e reprodutíveis, característicos do modelo fordista de produção; mas,

agora, no modelo pós-fordista, a inovação (a produção do “novo”) se torna o principal

fator de valorização. Não se trata de um determinismo tecnológico, mas de fazer-se

notar que o novo é menos os próprios objetos técnicos do que os motivos, as lógicas de

acumulação e valorização social, no sentido de que toda a sociedade se mobiliza em

direção à inovação e à acumulação de conhecimentos.

As mudanças em curso não se dão no sentido da incorporação de novas

tecnologias nas atividades industriais, mas, sim, uma transformação das formas de

produção, acumulação e organização social abertas pelas TICs. Assim, o que está

surgindo é um novo padrão de acumulação capitalista baseado no trabalho imaterial, no

conhecimento e nos processos de inovação. Nessa direção, os autores do capitalismo

cognitivo ressaltam, entre outras coisas, mudanças na natureza do trabalho,

transformações nas relações entre produção e consumo, e as implicações do fato do

conhecimento ter-se tornado um recurso e um produto per se.

Quando está em jogo a produção de conhecimentos por conhecimentos, como é

o caso do capitalismo cognitivo, a cooperação não pode mais ocorrer nos marcos

fordista-taylorista, ou seja, através da cooperação passiva, estática, garantida pelo

encadeamento seqüencial e pela adição das tarefas elementares e das funções. A

cooperação para produção de conhecimentos é consubstancial à atividade criativa

Page 6: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

6

marcada pela comunicação horizontal não-programada e por um trabalho coletivo,

cooperativo e reticular, para além do controle hierárquico.

Neste sentido, a passagem para o capitalismo cognitivo não representa a

centralidade do conhecimento como força produtiva e, sim, o conhecimento como,

simultaneamente, recurso e produto desincorporado, o que traduz a passagem de um

regime de reprodução a um regime de inovação.

O que faz do conhecimento uma mercadoria diferente das demais? Em primeiro

lugar, a mercadoria conhecimento não se submete à lei dos rendimentos decrescentes,

isto é, os conhecimentos não são escassos. Segundo, utilizar conhecimento não implica

no seu esgotamento e, portanto, o seu “consumo” não é destrutivo. Terceiro, trocar

conhecimentos não implica em perdê-los, a troca é uma metáfora. A quarta

especificidade da mercadoria conhecimento é que ela não possui um valor-utilidade,

este é definido dentro do processo de produção e difusão dos conhecimentos. Quinto, o

conhecimento adquire valor se for trocado e, ao mesmo tempo, socializado. E em último

lugar, o custo do conhecimento é submetido à incerteza do processo de inovação e de

sua validação social. Portanto, essas especificidades fazem com que a valorização do

conhecimento possua leis diferentes daquelas da teoria do valor marxista e da

neoclássica; consequentemente, o capitalismo cognitivo funciona diferentemente do

simples capitalismo. Esta é a tese fundamental do capitalismo cognitivo, que se opõe

relativamente à tese de Castells segundo a qual a sociedade informacional é uma

sociedade capitalista tout court.

Como veremos mais adiante, nossa abordagem apóia-se naquela sustentada por

Castells.

3. O teletrabalho e a autonomia no trabalho informacional

Se a autonomia e a natureza coletiva do trabalho passam a ser intrínsecas à nova

organização do trabalho industrial pós-fordista, a nova ordem é “sejam sujeitos” e

trabalhem em cooperação. A autonomia demandada ao trabalhador implica o

desdobramento das atividades desde o fazer até a compreensão do que é feito. O

conceito de autonomia parece-nos igualmente servir para a análise da sociedade pós-

industrial ou informacional. O trabalho ligado às TICs é tido como de natureza

autônoma e inteligente. A fim de refletirmos sobre esta questão, primeiramente

discutiremos o conceito de autonomia e de autonomia no trabalho, para em seguida

expormos a noção e as implicações do teletrabalho, objeto empírico por nós escolhido

Page 7: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

7

enquanto emblemático do trabalho informacional, para então, finalmente, analisarmos a

autonomia no trabalho informacional.

3.1. Autonomia: o conceito

A autonomia individual, no seu sentido filosófico, pode ser compreendida como

autogovernança, autodeterminação, habilidade de construir seus próprios objetivos e

valores, liberdade de fazer escolhas e planos, e agir em conformidade com estes valores

e objetivos. Isto leva à realização de si, condição para construir uma vida com

significado. A autonomia individual é condição para a concepção do ser humano em

situação de equidade, de igualdade. Sem autonomia indivividual o homem não pode

funcionar como igual na vida moral.

A autonomia associa-se à noção de liberdade enquanto autodeterminação,

enquanto possibilidade de escolha ou ausência de interferência. Mas a liberdade remete

a uma “idéia de responsabilidade diante de si mesmo e da comunidade: ser livre quer

dizer neste caso estar disponível (para fazer algo por si mesmo, para se autodeterminar,

esclareço), mas estar disponível para cumprir certos deveres. Desde o começo, portanto,

a noção de liberdade parece apontar para duas direções: uma, a de um poder fazer; a

outra, a de uma limitação” (FERRATER MORA, 2001, p.1734).

Ora, autonomia não significa liberdade absoluta, pois, remetendo a autonomia ao

campo dos valores – onde justamente integraliza seu sentido já que a busca de

autonomia situa-se dentro de uma lógica de valores e de conquista de sentido -, é

preciso ter claro que a autonomia se insere numa “comunidade de valores”, o que a

torna, sempre e em alguma medida, heterônoma.

A autonomia individual associa-se à idéia de individualismo-emancipação

(SINGLY, 2005) – tendo como seu contrário a de individualismo-fragilização.

Seguindo a argumentação deste autor, o individualismo é normalmente concebido sob a

ótica da ditadura do mercado e da luta de cada um contra cada um, esta ótica aborda o

indivíduo como movido pela racionalidade e esquecido da ética, o indivíduo egoísta e

indiferente em relação ao outro. Mas o individualismo representa também a democracia

representativa e os direitos do homem; está ligado às demandas de direitos,

reconhecimento, justiça, respeito, dignidade, consideração. Neste sentido, o

individualismo não se distancia do social, já que o “individualismo emancipado” é uma

forma de humanismo. Se se supõe um mundo ideal onde todo indivíduo possa se

desenvolver e tornar-se ele mesmo, o indivíduo não poderia estar “destacado” do social,

Page 8: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

8

mas sim com a legitimidade social de decidir, optar e resistir às identidades e trajetórias

que lhe são impostas. O sentido filosófico de indivíduo independente e autônomo

demanda necessariamente o seu sentido político de poder desenvolver um projeto.

Assim, o individualismo é concebido no seu sentido político e social pois autoriza todo

e qualquer indivíduo (independente da raça, pertencimento social, etc.) a ser um

“homem”. Este “eu” só é possível porque o “nós” lhe dá suporte, o que termina, através

das contribuições individuais, por enriquecer o “nós”.

Não se trata, pois, de uma abordagem psicologizante, o homem se constrói na

relação com o outro, trata-se de um percurso individual em um contexto coletivo. O

reconhecimento social, o reconhecimento dos “outros”, é condição para a

individualidade, a autonomia e a capacidade de ter seu próprio mundo. Singly (2005)

refere-se a um individualismo criador, que demanda uma socialização que ensina as

regras de autonomia e de cultura cívica da individualidade. O indivíduo só existe a

partir dos laços sociais e o individualismo não significa seu enfraquecimento. O

indivíduo aceitará alguns limites à sua própria liberdade se estes limites servem de

suporte à sua autonomia.

Seguindo a hipótese desenvolvida por R. Castel em sua entrevista a C. Haroche

(CASTEL, HAROCHE, 2001), o indivíduo para existir enquanto indivíduo deve dispor

do que ele chama de suportes: recursos ou capitais, no sentido de Bourdieu, que

significa dispor de reservas relacionais, culturais, econômicas, etc. que são suportes

sobre os quais o indivíduo pode se apoiar a fim de lançar mão de condições de

possibilidades de desenvolver estratégias individuais. Assim, os suportes são condições

de possibilidade para tornar-se um indivíduo (ou um sujeito, um ator): "existir

positivamente como indivíduo é, parece-me, ter a capacidade de desenvolver estratégias

pessoais, dispor de uma certa liberdade de escolha na condução de sua vida porque não

se está na dependência do outro" (p.48, tradução livre).

A teoria do reconhecimento (Taylor, 1994a; Honneth 2003a, 2003b; Fraser,

2001, 2003b) traz uma importante contribuição à compreensão da dimensão social dos

processos identitários e de construção da autonomia individual. Seguindo a

argumentação de Axel Honneth (2003b) – e restingindo-se a este autor –, seriam três as

esferas do reconhecimento: dedicação emotiva, respeito cognitivo e estima social. Para

os indivíduos poderem dispor de suas autonomias individuais, é preciso que socialmente

sejam reconhecidas suas necessidades, sua igualdade legal e/ou suas contribuições

sociais. O que reverte na possibilidade do sujeito realizar sua autonomia individual ao

Page 9: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

9

desenvolver uma auto-relação marcada, respectivamente, pela auto-confiança, auto-

respeito e auto-estima.

Este processo significa, por um lado, um processo de individualização – porém

seria mais preciso falar em individuação e não de individualização, pois aquele possui

um sentido de constituição do sujeito e não de isolamento ou fragilização, como

usualmente evoca a noção de individualização (Enriquez, 1997); ou ainda poderia ser

substituído pela noção de individualismo-emancipação (Singly, 2005)–, na medida em

que aumentam as chances de expressão, legitimação e reconhecimento de diferentes

facetas da personalidade do sujeito, mas significa igualmente, por outro, um processo de

inclusão social ao inserir o sujeito no círculo igualitário composto de todos os membros

da sociedade. Ambos os processos indicam possibilidades de aumento do

reconhecimento social. A integração social dá-se através de relações de reconhecimento

que confirmam e reconhecem as diversas facetas da personalidade dos sujeitos e estes se

tornam membros da sociedade (inclusão social): “o progresso nas condições de

reconhecimento social surge nas duas dimensões de individualização e inclusão social:

ou novas partes da personalidade são abertas ao reconhecimento mútuo, então surge a

extensão da individualidade social confirmada; ou mais pessoas são incluídas nas

relações existentes de reconhecimento, de forma que o círculo de sujeitos que

reconhecem uns aos outros cresce” (Honneth, 2003b, p. 186, tradução livre).

A auto-realização individual só encontra condições asseguradas socialmente pela

experiência do reconhecimento intersubjetivo da autonomia individual, das

necessidades específicas e das capacidades particulares.

A teoria do reconhecimento social permite alçar os processos identitários a uma

dimensão social, convertem as questões da autonomia individual em questões de

natureza social. Honneth sustenta que aquilo que os sujeitos esperam da sociedade é,

acima de tudo, reconhecimento de suas demandas identitárias. Assim, a experiência de

injustiça social dá-se quando aspectos da personalidade – que se acredita possuírem

direito ao reconhecimento - são desrespeitados. A autonomia individual tem por

“objetivo” a possibilidade de uma “formação identitária”. Assim a igualdade entre os

sujeitos se materializa na formação identitária pessoal que é dependente das relações de

reconhecimento mútuo. As relações sociais de reconhecimento são, assim, o ponto de

referência para a concepção de justiça social. Possibilitar o desenvolvimento individual

e auto-realização dos sujeitos constitui o verdadeiro objetivo (ou demanda) de um

tratamento igualitário entre os sujeitos nas nossas sociedades. O quadro abaixo buscar

Page 10: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

10

sintetizar os elementos propostos por Axel honneth no âmbito da teoria do

reconhecimento.

Teoria do Reconhecimento (A. Honneth)

Padrões de

reconhecimento

subjetivo

Amor Direito Solidariedade

Princípios de

reconhecimento

Necessidades, sentimentos Igualdade legal Contribuições sociais

Formas de desrespeito Maus-tratos e violação Privações de direitos e

exclusão

Degradação e ofensa

Componentes

ameaçados da

Personalidade

Integridade física Integridade Social Dignidade, “honra”

Formas de

reconhecimento

Amor, afeição,

encorajamento, segurança

(relações primárias)

Tratamento como

igual, membro de uma

comunidade,

reconhecimento

universal de direitos e

deveres

Estima social,

comunidade de

valores,valorização das

contribuições particulares,

solidariedade

Auto-relação prática Autoconfiança Auto-respeito Auto-estima

FONTE: adaptado de Carla Heyde (2006), com base em Honneth (2003a, 2003b e 2004), Silva (2005),

Feres Jr. (2002).

3.2. A autonomia no trabalho

A autonomia no trabalho restringe o conceito filosófico de autonomia: como

falar em autogovernança e autodeterminação seja para o trabalho assalariado seja para o

trabalho independente mas subordinado às demandas e ao ritmo do mercado? A

autonomia no trabalho pode significar o controle que têm os trabalhadores sobre a sua

própria situação de trabalho – não o controle exercido por outrem mas por si próprio,

sobre os elementos do trabalho – e a realização do sentido que este controle tem para o

sujeito. A autonomia no trabalho integra, pois: 1) uma dimensão operacional ligada às

exigências funcionais, operacionais, que remetem à organização do trabalho; 2) outra

identitária, marcada pela busca de afirmação de si, de liberdade, de realização, conforme

a idéia já desenvolvida de um individualismo-emancipação, 3) e ainda uma dimensão

social – e para tal nos apoiamos na teoria do reconhecimento de A.Honneth –, uma vez

Page 11: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

11

que o identitário é social, que a individualização e a inclusão social são os dois

componentes dos processos de reconhecimento social.

Em termos concretos, a autonomia no trabalho traduz-se por: autodeterminação

do trabalhador, responsabilidade ou liberdade para determinar os elementos da tarefa, o

método de trabalho, as etapas, procedimentos, programação, critérios, objetivos, o lugar,

a avaliação, as horas, tipo e quantidade de trabalho. Autonomia remete ao controle sobre

estes ou alguns destes elementos.

Em termos teóricos “puros”, a autonomia no trabalho é uma quimera pois ela se

opõe à heteronomia e à necessidade, pois a autonomia de uma atividade marcada pela

necessidade é condenada a permanecer formal. A. Gorz (1988) afirma que são

autônomas as atividades que são, por elas mesmas, seu próprio fim. O sujeito faz,

nessas ações, a experiência de sua soberania e se realiza como pessoa. A autonomia

outorgada no trabalho industrial impõe uma socialização caracterizada pela não-

coïncidência entre o indivíduo-sujeito e seu ser social; e é esta coincidência, a partir de

então impossível, que está na origem da autonomia individual e de toda criação cultural.

O indivíduo é condenado a viver a dualidade de ser ele mesmo (l’être-soi) – porque ele

precisa ser ele mesmo – e, simultaneamente, responder às exigências sociais do trabalho

que demanda “uma maneira de ser ele mesmo” no trabalho (le devoir être). Na

realidade, esta dualidade termina por impedir, em parte, de ser ele mesmo (l’être-soi).

Ora, se o trabalho é sempre subordinado e/ou dependente – seja a um chefe, seja

a uma demanda ou ainda a um mercado – por que indagar-se sobre a autonomia no

trabalho? Primeiro, porque o discurso dominante é o de que as novas formas de

trabalhar (formas inteligentes, autônomas, cooperativas, etc.) representam ganhos para o

trabalhador na medida em que apontam para a superação da tradicional divisão do

trabalho entre aqueles que concebem e aqueles que executam. Segundo, porque o

conceito de autonomia no trabalho permite pensar simultaneamente a dimensão

operacional (controle sobre alguns dos elementos do trabalho); a dimensão identitária (o

trabalho possibilitaria um retorno sobre si mesmo capaz de conferir-lhe um sentido, o

trabalho tem papel importante no processo de elaboração da imagem de si e a

cooperação resultante da integração pelo trabalho engaja o ator no futuro coletivo); a

dimensão social (o desenvolvimento identitário – particularmente aqui através do

trabalho – e o seu reconhecimento social são condições para a inclusão em círculo de

iguais, em uma sociedade moralmente justa; a ação torna-se manifestação da própria

autonomia respeitada pelos outros mediante o reconhecimento de seu aporte). A riqueza

Page 12: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

12

do conceito reside em articular o trabalho ao mundo dos valores, através do qual o

trabalho combina o individual e o coletivo, o operacional e o identitário, o

individualismo-emancipação e o individualismo-fragilização, a individualização (ou

individuação conforme Enriquez) e a inclusão social.

O trabalho informacional, com seu caráter imaterial, condensaria, a priori,

maiores margens de autonomia uma vez que, por tratar-se de uma mobilização de

conhecimentos e concertação de saberes, reduz as possibilidades de controle externo

assim como um maior investimento e liberdade pessoais na execução dos processos

necessários para a construção de um produto imaterial. O teletrabalho e a flexibilidade

que o acompanha parecem ser objetos privilegiados na análise da autonomia no trabalho

informacional.

3.3. O teletrabalho

A EcaTT (Electronic Commerce and Telework Trends: Benchmarking Progress

on New Ways of Working and New Forms of Business across Europe), relatório

referente a dez países da União Européia, liderado pela organização alemã EMPIRICA,

assim define os teletrabalhadores: “teletrabalhadores são aqueles trabalhadores que

trabalham de forma computadorizada (com um computador), distanciados do negócio

de seu empregador ou da pessoa que os contrata e que transmitem os resultados de sua

atividade através de uma ligação de telecomunicação”.2 No entanto, o teletrabalho é

uma categoria de difícil definição. Muitas variáveis e suas combinações abrem em

demasia o leque de definições possíveis. A falta de uma conceituação precisa sobre o

que é e quantos são os teletrabalhadores faz do conceito mais uma construção

ideológica da realidade ou, no máximo, uma tentativa de descrição dos diversos tipos ou

modalidades de teletrabalho existentes. É possível assegurar que todas as diferentes

conceituações estão certas, o que demonstra idéias fortemente contraditórias. Há

pessoas trabalhando em casa com o consentimento do seu empregador para evitar

deslocamentos, há pessoas trabalhando de maneira autônoma seja em casa seja em

telecentros, há mulheres trabalhando a partir de seus computadores porque não têm

como deixar os filhos, há alguns nesta situação que se acham explorados, mal pagos e

sem reconhecimento, outros são altamente qualificados e têm seu trabalho reconhecido,

há teletrabalhadores em instituições públicas e privadas, há pessoas trabalhando em casa

2 http://www.ecatt.com e http://www.sibis-eu.org

Page 13: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

13

que usam “acidentalmente” seus computadores (não é a principal ferramenta), como

arquitetos ou tradutores, e há muitos que trabalham normalmente fora de suas casa e

completam o trabalho em casa, como uma hora-extra. Para completar, fax, celular,

laptop e internet tornam possível trabalhar de quase qualquer lugar. Mas o que interessa

aqui não é sua definição precisa – o que, aliás, não é possível –, mas a dinâmica de suas

interações (HUWS, 1991).

Num sentido restritivo, teletrabalho pode ser definido como trabalho à distância

com utilização de TICs. Num sentido extensivo, utilizado pela Organização

Internacional do Trabalho (OIT)3, o teletrabalho deve ser conceituado quanto a

diferentes variáveis:

a) local/espaço de trabalho;

b) horário/tempo de trabalho (tempo integral ou parcial);

c) tipo de contrato (trabalho assalariado ou independente);

d) competências requeridas (conteúdo do trabalho).

Para nós, será desconsiderado o elemento quantitativo, ou seja, a classificação

do teletrabalho independe no número de horas em uma dada condição, como, por

exemplo, seriam teletrabalhadores em domicílio aqueles que trabalham em casa pelo

menos um dia de trabalho completo por semana.

Combinando todas estas variáveis, é grande a quantidade de modalidades ou

formas que o teletrabalho pode, pelo menos teoricamente, assumir. O que justifica,

plenamente, a qualificação de "flexível“. Podemos, para fins de apoio à conceituação,

identificar seis categorias de teletrabalho: 1) trabalho em domicílio, SOHO (Small

Office Home Office), 2) em escritórios satélites (extensões atomizadas de uma empresa

central), 3) telecentros ou telecottages (estabelecimentos que oferecem postos de

trabalho a empregados de uma ou várias organizações, ou serviços telemáticos a clientes

remotos; normalmente próximos do domicílio ou regionais), 4) trabalho móvel (fora do

domicílio ou do centro principal de trabalho, como viagens de negócios, trabalho de

campo ou nas instalações do cliente), 5) empresas remotas ou off-shore (call centers ou

teleserviços, através dos quais empresas européias e americanas, por exemplo, instalam

os seus escritórios-satélites ou subcontratam empresas de tele-serviços de outras zonas

do globo com mão-de-obra mais barata, pondo em prática o chamado teletrabalho "off-

3 http://www.ilo.org

Page 14: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

14

shore"), 6) informal ou teletrabalho misto (arranjo com o empregador para trabalhar

algumas horas fora da empresa).4

Mas, ainda, muitas combinações no interior destas classificações se mostram

viáveis: o teletrabalho pode ser ocasional e não se traduzir em mudança de contrato

(informal); pode ser uma forma de trabalho alternado (alternar em domicílio e na

empresa); pode ser por transbordamento (conexão às preocupações profissionais

24/24hs e interação com diferentes formas de solicitações como mail, telefone celular,

fax, etc.), existindo ainda outras combinações possíveis, inclusive informal com

assalariado (trabalha na empresa de dia e executa teletrabalho independente fora do

horário de trabalho assalariado, normalmente à noite). Em suma, combinando todas

estas possibilidades (em termos de local, de horário e de situação sócio-profissional)

facilmente vemos o grande espectro de combinações possíveis e a diversidade de formas

que o teletrabalho pode assumir.

Assim, teletrabalho não pode ser conceituado simplesmente como trabalho à

distância, mas sim como um elemento das mudanças organizacionais estratégicas que

apontam para novas formas de trabalho flexível sustentadas por TICs. A flexibilidade

pode ser indicada por vários elementos: tempo, local, contrato, subordinação,

organização funcional. Há uma relação estreita entre o surgimento do teletrabalho e a

propalada flexibilidade exigida e necessária à organização para garantir

competitividade. A flexibilidade para o empregador traduz-se em horários flexíveis,

polivalência, aumento e redução do número de empregados conforme a demanda.

Traduz-se também em várias formas de contrato: subcontratação, meio turno, tempo

determinado, trabalho em domicílio. O teletrabalho é uma destas opções.

O teletrabalho, pois, acaba por se combinar com trabalho atípico, flexível,

podendo ser ou não precário. A autonomia é eventual e está, geralmente, associada com

a flexibilidade quanto ao tempo, ao horário de trabalho. O teletrabalhador tem

autonomia para gerir o tempo, mas, paradoxalmente, não tem controle sobre o seu

tempo de trabalho, pois este é determinado pelos ditames do volume de trabalho, ou

seja, é preciso sempre responder às demandas de trabalho, sem restrição de tempo ou

disponibilidade.

4 Definições disponibilizadas pela EcaTT (Electronic Commerce and Telework Trends: Benchmarking Progress on New Ways of Working and New Forms of Business across Europe), assim como por Serra (1995/96) e adaptadas por nós.

Page 15: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

15

A prática do teletrabalho, por suas características de trabalho à distância e muitas

vezes solitário, poderia indicar formas mais diluídas de controle sobre o processo e o

produto do trabalho. No entanto, esta prática propiciou o desenvolvimento de outras

formas de controle externo sobre o trabalho como o monitoramento eletrônico e por

resultados (exigências e metas atingidas monitoradas através da entrega de relatórios

periódicos), tarefas pré-estruturadas (tarefas de aplicação de parâmetros e ações pré-

estabelecidas) e, em alguns casos, criação dependente (trabalho de equipe, tomada de

decisão final feita pela hierarquia). Este seria o caso “típico” dos call centers.

3.4. A autonomia no trabalho informacional

3.4.1. O teletrabalho

O conceito de autonomia no trabalho, repetimos, lança mão de duas questões: 1)

suas exigências funcionais, operacionais, que remetem à organização do trabalho; 2) a

busca de afirmação de si, de liberdade, de realização e que remete à sua dimensão

identitária e de reconhecimento social. A primeira delas parece relativamente

contemplada no caso do teletrabalho, uma vez que a flexibilidade que lhe é inerente

atende às demandas de maior produtividade e menores custos - a mobilidade do

teletrabalho remete à flexibilidade exigida pelos métodos organizacionais, de maneira a

reagir rapidamente - e, do lado do trabalhador, reverte em maior autonomia referente a

um grande escopo de variação dos arranjos de tempo e de lugar de trabalho. Ao

trabalhar por projetos ou por objetivos, o contratante estipula um prazo-limite (deadline)

ou performances a atingir e não tarefas. Esta é a combinação a que responde o

teletrabalho: maior pressão por flexibilidade na utilização das competências do

trabalhador, de um lado, e arranjos pessoais no tempo e local de trabalho do trabalhador,

de outro. “Este compromisso ou contrato normalmente supõe uma certa autonomia na

organização individual do tempo de trabalho e de mobilidade” (VALENDUC &

VENDRAMIN, 2001, p.251).

A partir daí, colocar-se a questão da autonomia no teletrabalho em suas

dimensões identitária e de reconhecimento social mostra-se bem mais complexo e de

difícil resposta. Vários elementos contribuem neste sentido: 1) é raro de se encontrar o

teletrabalhador “puro” (que só teletrabalha), pois há várias combinações: teletrabalho

com assalariamento tradicional, o que inclui estabilidade combinada com flexibilidade;

ou precariedade em estado puro, como aquele trabalhador que teletrabalha por estar

desempregado e necessitar criar formas alternativas de renda; ou alta qualificação e

Page 16: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

16

teletrabalho independente e instável; 2) mesmo no caso do teletrabalhador “puro”,

quando trata-se de trabalho independente, este precisa garantir trabalho e sustento e

sujeitar-se a muita coisa, inclusive trabalhar a qualquer momento para responder à

demanda, sem possibilidade de conciliar satisfatoriamente trabalho e vida privada - ou

vida remunerada e vida não remunerada (BOLOGNA, 1997 apud AZAIS, 2005); 3) há

variadas formas de monitoramento eletrônico do trabalho, o que restringiria as formas

de autonomia e autodeterminação; 4) muitas tarefas ligadas às TICs são pré-

estruturadas, o que se traduz num trabalho monótono, repetitivo, sem criatividade nem

iniciativa, nos moldes de um “taylorismo informacional” (KOVÁCS, 2002).

3.4.2. O caso específico dos call centers

Os call centers5 seriam exemplares de um trabalho informacional com alto

controle, o que o colocaria entre as esperanças do pós-taylorismo e os temores do neo-

taylorismo. O neo-taylorismo se faria notar por: submissão ao tempo e à estrutura dos

softwares; controle racional do tempo e do trabalho por meio da informática;

produtividade máxima em detrimento das boas condições físicas e psicológicas dos

trabalhadores (ver LER e depressão); seria um trabalho “sem refúgio” (a priori o

trabalho prescrito é o trabalho real e controlado, embora formas de burlar o controle

sejam desenvolvidas como veremos adiante).

É porque antes, entre uma chamada e outra, nós tínhamos um tempo parado. Havia poucos clientes, porque era para uma zona restrita do país. Inicialmente, era quase que uma estação experimental. Entre uma chamada e outra, nós estávamos parados. Tínhamos uma folguinha. Agora não. É um atrás do outro. Sempre, sempre. Às vezes eu estou a falar com um cliente e estou a lembrar do anterior. Nós não conseguimos assistir a alguém, porque não existe uma quebra. É como uma linha de produção, como nos filmes do Chaplin. Na chamada parecemos máquina, sempre a responder a mesma coisa, parecemos máquina ao responder. De chamada para chamada, antigamente havia uma boa paragem ... (...) outra vez, sempre, sempre aquilo, é mesmo uma linha de produção, tudo mecânico já. (operador português)

A organização do trabalho dos call centers poderia se enquadrar nas

características do pós-taylorismo por analogia à injunção paradoxal6, embora haja

5 Call centers não são uniformes, a priori não podemos tratá-los como um conjunto homogêneo, pois além do uso do computador e tecnologias de comunicação, há outras variáveis como tamanho, se integra o setor industrial ou de serviços, a complexidade das ações a serem realizadas, duração média da chamada, a natureza da operação (inbound/receptivo, outbound/ativo, combinada), o estilo do management (BAIN, TAYLOR, 2000, v.15). Como são aqui tratados como formas de teletrabalho de alto controle, assalariado e repetitivo, não nos deteremos nas especificidades dos call centers. 6 Trata-se de uma injunção paradoxal justamente por ser uma ordem impossível de ser obedecida, ou seja, a sua simples obediência acarreta a infração: a autonomia exigida significa a não obrigatoriedade de

Page 17: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

17

mudanças no seu conteúdo - no pós-taylorismo industrial a injunção paradoxal é ser

autônomo e trabalhar dentro das normas, ou seja, em nome de tornar-se sujeito, o

trabalhador é enviado à sua condição histórica de objeto e em nome de maior

liberdade legitima-se um imperativo de mobilização subjetiva (ROSENFIELD,

2003b). Já no pós-taylorismo informacional, e especificamente em call centers, trata-

se de garantir a qualidade e a satisfação do cliente, ser gentil, educado, responder com

bom-humor, em um ritmo acelerado e em bem pouco tempo (o stress é referente à

ausência de meios materiais e pessoais para agir frente aos constrangimentos e

responder a exigências e objetivos fixados de maneira heterônoma).

O trabalho ele não exige só a boa vontade, ele exige que tu seja feliz, assim, realmente, prá tu chegar lá e convencer a pessoa de que ela vai levar uma coisa estragada, e que é bom, e, esse é o trabalho, sabe, insistir no que as pessoas não querem levar, sabe, e tem vezes que... os problemas também que ocorrem, são absurdos por parte do provedor, e aí a gente tem que tomar, claro, as dores do provedor, o lado do provedor, mas tá erradíssimo. Então, é isso, essa reciclagem, assim, energética, de estar lá convencendo a pessoa de que o errado é certo, que é cansativo, é bastante cansativo, né. Eu acredito que pouquíssimas pessoas enfrentem isso diariamente no trabalho. Uma vez ou outra, sim, mas diariamente, assim, é uma ferramenta de trabalho, isso, não. (operador brasileiro A)

O confronto entre uma autonomia real e a autonomia outorgada remete a um

conteúdo distinto daquele presente no pós-taylorismo industrial (ROSENFIELD, 2003ª

e 2003b). A autonomia outorgada – cuja ambigüidade é ao mesmo tempo uma

injunção a participar e se constitui como objeto de uma ordem a ser cumprida, do tipo

que demanda mobilização subjetiva - torna instrumental o pós-taylorismo

informacional: há um script mínimo e rígido (que pressupõe chamar o cliente pelo

nome, ter o “sorriso na voz”, além de fornecer as informações mínimas definidas a

priori ), que deve ser associado a uma margem de autonomia (adaptação ao cliente:

idade, região, escolaridade, humor, interação).

A autonomia real é exercitada na interação com o cliente, na diversidade, na

variabilidade de cada "caso". Tanto a subjetividade e os afetos do cliente quanto do

operador interferem para limitar o “fechamento” dentro de modelos rígidos do tipo

pergunta e resposta. Aliás, a subjetividade e as emoções do operador desempenham um

papel importante na interação com o cliente, tanto que quando destratados pelo cliente

respeito às normas estabelecidas. Tal qual a ordem dada por uma mãe: « você tem o dever de me amar espontaneamente ». Se ama espontaneamente, então não está cumprindo o seu dever. O mesmo se verifica caso não ame, o que acarreta uma situação sem saída. Cf. PALMADE, Jacqueline. "Communication paradoxale et imaginaire consensuel". In Encyclopédie et Dictionnaire critique de la communication, sous dir. SFEZ L., Paris, PUF, 1993.

Page 18: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

18

os operadores se sentem pessoalmente atingidos e torna-se fonte de stress. A interação

com o cliente é a face humana do trabalho, mas o operador é “a empresa” para o

cliente e não um sujeito.

Diante da vivência de um trabalho com alto controle, os operadores

desenvolvem formas de resistência a ele, enquanto exercício de uma autonomia real.

Alguns exemplos: desligar (dito “derrubar”) para diminuir o tempo médio da chamada,

fazer uma pausa para procurar informações sem fazê-lo realmente,

E tem pessoas que são assim, que, ãhh, advogados adoram isso, tipo, de credenciados, de ter uma pessoa credenciada falando a respeito. Aí, é uma coisa super simples, tu pode resolver, aí tu chega e diz: não, só um momento, eu vou verificar com um setor, um momentinho. Aí tu bota numa pausa, e fica olhando pra tela, aí depois tu tira a pausa. Não, verifiquei com um setor, com uma pessoa responsável; me autorizaram extraordinariamente no seu caso, que é um cliente de tantos anos, mora em tal lugar lá. Ele pensa: ele me conhece, ele sabe onde é que eu estou, ele sabe que eu sou importantíssimo. E ficam (com o serviço oferecido). Pessoas que são desaforadíssimas, adoram isso. (operador brasileiro A)

Ou simular vendas para auferir as comissões:

Com o tempo tu começa a descobrir coisas que eles... ou não controlam, ou se controlam é mais demorado pra perceber. Por exemplo assim, ó, como eu tava falando que tu pode vender planos e certos kits juntos: SVAs, que eles chamam. A comissão é dada por coisa vendida. Se até o final do dia que tu vender, a pessoa não cancelou, tipo, comprou de manhã e cancelou de noite, tu não recebe a comissão. Tem que virar uma noite com aquilo ali que no dia seguinte tu recebe. Então, muitas pessoas faziam o quê? Enchiam de kits pro cara, e no dia seguinte iam lá e cancelavam. Ganhavam a comissão e a pessoa nem sabia o que comprou. (operador brasileiro B)

Se em algumas dimensões de análise é possível distinguir claramente

elementos ou do neo-taylorismo ou do pós-taylorismo, em outras os elementos se

confundem, e sua classificação deixa de ser é simples e unívoca: 1- há somente um

parcelamento relativo das tarefas, ou seja, a situação de trabalho é "completa" embora

ela possa ser recortada e seqüenciada, 2- há setores com um trabalho repetitivo

(registros diversos, informações), onde os trabalhadores são facilmente substituíveis;

mas há setores com um trabalho mais autônomo e interativo com o cliente (venda,

retenção), onde as competências são mais valorizadas e os trabalhadores menos

facilmente substituíveis nestes setores; 3- é possível verificar uma supervisão rígida pela

hierarquia, mas combinada com uma tripla relação: assalariado, hierarquia e cliente (ou

usuário), ou seja, de um lado vemos a tradicional relação entre chefe e subordinado e, de

outro, esta relação ganha um outro pólo que pode mesmo se sobrepor à relação entre

Page 19: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

19

chefe e subordinado. Um exemplo disto pode ser visto quando a hierarquia faz “vista

grossa” – finge que não vê – para usurpações das normas, mas que revertem em vendas,

ou mesmo quando estimulam espertezas desonestas com o cliente:

É, às vezes não tanto, porque tinha umas pessoas que... sei lá, dava pra ver, também, pelo tipo de atendimento, que às vezes eram pessoas bem humildes. Tinha pessoas que ligavam pra lá... bom, olha só, um dos motivos de não venda era “não tem computador”. Mas mesmo assim, olha só o que eles diziam, por exemplo, uma, aconteceu uma ou duas vezes, não, aconteceu muito mais, mas uma ou duas vezes até a minha supervisora me falou isso, de alguém dizer: ah moço, mas eu não tenho computador, eu não posso assinar... sabe? E ela disse: não, mas diga pra ela sobre, que hoje em dia ninguém vai mais viver sem informática, que ela vá até uma loja e compre o seu computador, mas que primeiro ela faça o seu cadastro. E eu: tá, mas o que que ela vai fazer com isso? Não, então dá trinta dias de gratuidade pra ela comprar o computador. (operador brasileirto B)

3.4.3. Autonomia no trabalho informacional e no trabalho industrial

Neste sentido, o estudo da autonomia no trabalho informacional aponta para uma

forte similaridade com as discussões no âmbito do pós-fordismo. A sociedade da

informação não cria somente empregos com alta qualificação, mesmo mantendo uma

essência relacional e imaterial, este trabalho pode também ser repetitivo, rotineiro e

automatizado. Nas atividades ligadas às TICs de alto controle explícito – como call

centers –, o controle é simultaneamente de eficácia e de atitude mas em tempo real. As

margens de autonomia diminuem e o controle direto aumenta. Igualmente, quando o

trabalho exige maior qualificação, as margens de autonomia são geralmente maiores.

Trabalho mais qualificado e mais autônomo significa controle indireto e anterior ao

próprio trabalho.

Se é possível vislumbrar um aumento continuado das qualificações exigidas ao

trabalho, não é possível confundi-lo com uma redução da amplitude da divisão do

trabalho entre aqueles que concebem e aqueles que executam, mesmo nas atividades de

serviços ou intelectuais. Mais qualificação e competência não se acompanham

necessariamente de maior responsabilização estratégica e de autonomia no trabalho,

mesmo que o faça tendencialmente. Ainda, se com as TICs há alargamento das tarefas

ou enriquecimento e polivalência, a delegação de responsabilidades tão propagada pelos

“novos organizadores” só ocorre no interior dos procedimentos e dos quadros fixados

unilateralmente pelos managers ou demandantes do trabalho – o que corrobora com a

nossa tese da autonomia outorgada. Se no trabalho industrial verifica-se o quadro de

uma autonomia outorgada e a apropriação desta autonomia de maneira a inserir nas

Page 20: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

20

regras formais a margem de inventividade do trabalhador, nosso argumento é de que o

trabalho das TICs parece reproduzir tendencialmente o modelo industrial: mais

qualificação mais autonomia, menos qualificação menos autonomia. Mas esta tendência

não é capaz de tudo dizer sobre o trabalho informacional. A realidade é bem mais

complexa e ambígua, pois a qualificação não garante trabalhos mais inteligentes e mais

responsáveis. A realidade do trabalho informacional aponta para uma crescente

flexibilização, inclusive quanto à utilização e demanda de qualificações: há diversidade

de situações contratuais, das condições de trabalho e dos horários laborais,

diferenciação e individualização dos trabalhadores e das relações de emprego e

remuneração inclusive dentro da mesma empresa.

Prosseguindo o paralelo com o trabalho industrial pós-fordista, na medida em

que o sujeito passa a ser mobilizado para a execução do trabalho, pode-se a priori supor

que os trabalhadores “ganham” com o enriquecimento do conteúdo e da natureza do seu

trabalho. Este ganho pode transparecer através da liberalização da situação do trabalho

que vem substituir as antigas organizações mais rígidas e autoritárias. No entanto, estas

transformações inscrevem-se integralmente no registro da racionalidade econômica a

despeito do discurso dominante que evoca fins de ordem social e/ou subjetiva. A

autonomia outorgada evidencia a margem de liberdade e de criação da qual o

trabalhador é despojado. A situação mostra-se sob uma dimensão paradoxal: um

processo permanente de busca de autonomia real por parte dos trabalhadores que se

vêem, finalmente, despojados pela outorga de uma autonomia pré-definida. No entanto,

a sua dimensão paradoxal vai ainda mais longe: se a autonomia outorgada é uma

pseudo-liberdade, ela também é um enriquecimento simbólico do trabalho pelo aumento

de autonomia real, de criatividade e iniciativa.

A sociedade da informação transpõe este paradoxo apenas parcialmente.

Apoiando-nos em Castells (1999), nosso argumento é de que, enquanto no taylorismo a

separação se dava entre aqueles que pensam e aqueles que executam, na sociedade da

informação vê-se a distância entre aqueles que utilizam as informações para atingir

objetivos definidos por eles mesmos – e, portanto, dispõem de autonomia - e aqueles

que sofrem os “efeitos” do mercado de trabalho e da avalanche de informações - e que

são reduzidos à dependência econômica e cultural. A ocupação informacional exige um

elevado nível educativo, por parte do trabalhador, que deve ser capaz de tomar

iniciativas. A autonomia é fundamental ao trabalhador da e-economia. Além disso, lhe é

necessário aprender a aprender, ou seja, ter a capacidade de se reciclar continuamente,

Page 21: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

21

aprendendo na internet (e-learning), com os colegas de trabalho, mudando a forma de

pensar e, sobretudo, sabendo o que aprender, como aprender e como aplicar o

conhecimento adquirido às atividades laborais. Tal tipo de trabalho Castells (2004)

denomina como autoprogramável. Não obstante, mesmo a nova economia emprega

também trabalho genérico, que, conforme o autor, trata-se de trabalho rotineiro,

substituível e empobrecido.

O conceito de autonomia no trabalho parece-nos ser capaz de condensar esta

ambigüidade e este paradoxo, com a mesma riqueza que serviu na compreensão da

realidade da sociedade industrial pós-fordista. A realidade do teletrabalho é complexa e

ambígua, pois há indícios de uma manutenção da divisão entre trabalhos “inteligentes” e

trabalhos controlados e repetitivos, com a conseqüente redução de autonomia no

trabalho. Além disso, as formas e os conteúdos de trabalho são os mais variados: vão do

atendente de call-center ao trabalhador em domicílio, do teletrabalho móvel ao trabalho

em empresas remotas ou off-shore (como o call-center de uma matriz francesa operado

por trabalhadores na Tunísia). Pode, ainda, combinar diferentes vínculos de trabalho:

pode ser ocasional, pode ser informal; pode ser uma forma de trabalho alternado

(alternar em domicílio com TICs e na empresa sem); pode haver, ainda, outras

combinações possíveis, inclusive trabalho informal combinado com trabalho

assalariado.

4. Considerações Finais

O trabalho informacional apresenta tal diversidade que impossibilita qualquer

conclusão universal. Há, sim, maior autonomia no trabalho mais qualificado, como em

qualquer trabalho que mobilize mais intensamente as competências, habilidades e

talentos. O trabalho repetitivo e monótono não é apanágio do trabalho produtivo

industrial. Se a autonomia outorgada remete a novas formas de controle, o

monitoramento eletrônico propiciado pelas TICs aumenta a vigilância e também o

controle. Além disso, trabalho imaterial não é sinônimo de trabalho criativo, as TICs

facilitam a utilização de tarefas pré-estruturadas que só necessitam ser “preenchidas”.

São evidentes as limitações de autonomia individual em qualquer situação de

trabalho subordinado. Na situação de emprego, em que o assalariado “alugou-se” ou

vendeu a sua força de trabalho para o empregador a fim de executar tarefas e atingir

objetivos pré-estabelecidos, a autonomia reside mais no significado do trabalho do que

na determinação de seus próprios objetivos (como método), procedimentos e/ou

Page 22: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

22

programação do trabalho. Pode-se acrescentar ainda uma combinação entre objetivos da

organização e objetivos pessoais, como teletrabalho, ações de formação, flexibilidade de

tempo e recursos para atingir os objetivos determinados pela organização. Mesmo o

trabalho informacional independente, por conta própria, a priori sem subordinação,

acaba subordinado às necessidades de sobrevivência e às imposições do mercado. Como

o exemplo de uma revisora/tradutora não assalariada, independente, que reside na zona

rural de Portugal, altamente qualificada, e que precisava responder sempre prontamente

(para não perdê-las para outros tradutores) às demandas de tradução que eram lançadas

pela internet desde os EUA, o que significava uma defasagem horária que a obrigava a

estar disponível, via internet, praticamente 24/24 horas. Não pode ser mais autônomo e

menos autônomo, simultaneamente.

A questão central, no entanto, não pode se diluir nestes paradoxos: a busca de

autonomia situa-se fora da lógica econômica e dentro de uma lógica de valores e de

conquista de sentido, enquanto que a autonomia outorgada ou a autonomia subordinada

à lógica de mercado e de sobrevivência inscreve-se em uma lógica instrumental. A

autonomia puramente operacional, subordinada à lógica instrumental não reverte em

autonomia identitária, enquanto realização de sentido e sob a égide dos valores. O

trabalho imaterial – e mais especificamente o teletrabalho –, produtor e consumidor de

conhecimento e de informação, apresenta-se mais como trabalho flexível do que como

trabalho autônomo, uma vez que a autonomia verificada diz respeito, sobretudo, a um

maior controle sobre o tempo e o local de trabalho, mas subordinado às demandas de

flexibilidade seja do mercado seja das organizações econômicas que assalariam ou

consomem o trabalho informacional. Se, por um lado, um novo paradigma tecnológico,

característico da era da informação possibilitou o desenvolvimento de novas maneiras

de trabalhar - supostamente mais “inteligentes” e qualificadas -, para dar conta de uma

realidade laboral aceleradamente mais dinâmica -, por outro, a constatação de limitação

da autonomia no cerne deste tipo de trabalho, caracterizada como autonomia outorgada,

faz emergir o questionamento quanto ao caráter neo-taylorista do trabalho

informacional. O trabalho informacional em call centers é um trabalho limitado à

execução de tarefas mecanizadas, programadas, repetitivas, com alto controle, mesmo

que em um sentido renovado e mais apurado de taylorismo - que contempla um

“taylorismo da atividade mental”, em consonância à atividade manual, para adequar-se

à realidade do trabalho informacional. Para o entendimento desta questão, o caso dos

call centers é crucial, pois constitui um singular exemplo de trabalho informacional cuja

Page 23: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

23

autonomia é outorgada, bem como representa um segmento de trabalho em constante

crescimento, empregador de numerosa parcela da força de trabalho (pelo mundo afora)

na atualidade.

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. AZAÏS, Christian. Subordinação ou autonomia? A hibridização do mercado de

trabalho -reflexões a partir do caso italiano. ALAS - XXV Congreso de la Asociación Latinoamericana de Sociologia. Porto Alegre, UFRGS, 22-26 agosto 2005.

AZAÏS, Christian. De-Segmentação do mercado de trabalho e autonomia. Caderno de Recursos Humanos, v.17, n.41, Salvador, Mai/Ago 2004.

AZAÏS, C.; CORSANI, A.; DIEUAIDE, P. Vers um capitalisme cognitif; entre mutations du travail et territoires . Paris: L’Harmattan, 2001.

BAIN, P., TAYLOR, P. Entrapped by the ‘electronic panopticon’? Worker resistance in the call centre. New Technology, Work and Employment, n.15-1, 2000. London, Blackwell Publishers.

BREY, PHILIP. Worker autonomy and the drama of digital networks in organizations. Journal of Business Ethics, 22: 15-25, 1999. Kluwer Academic Publishers, Países Baixos.

CASTEL, Robert & HAROCHE, Claudine. Propriété privée, propriété sociale, propriété de soi: entretiens sur la construction de l'individu moderne. Paris: Fayard, 2001.

CASTEL, Robert. Les métamorphoses de la question sociale. Paris: Fayard, 1995. CASTELLS, Manuel. A galáxia internet: reflexões sobre internet, negócios e

sociedade. Lisboa: Fundação Calouste Gulberkian, 2004. CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. Dejours, Christophe. Coopération et construction de lídentité en situation de travail.

Futur Antérieur , n° 16, Paris, L’Harmattan, 1993/2. DURAND, Jean-Pierre. La chaîne invisible. Paris: Seuil, 2004. ENRIQUEZ, Eugène. Une société sans résistance. Revue L’Inactuel, Paris : Circé,

nº4, printemps 2000. ___________. Les jeux du pouvoir et du désir dans l’entreprise. Paris : Desclée de

Brouwer, 1997. FERES JR., João. Contribuição a uma tipologia das formas de desrespeito: para além

do modelo hegeliano-republicano. Revista DADOS, Rio de janeiro: vol. 45, nº 4, 2002, pp. 555 a 576.

FERRATER MORA, J. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2001. FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era

pós-socialista. In: SOUZA, Jessé (org). Democracia hoje; novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UNB, 2001. Pp.245-282.

FRASER, Nancy, HONNETH, Axel. Redistribution or Recognition; a political-philosophical exchange. London/New York: Verso, 2003b.

GALVÃO, A.P.; SILVA, G.; COCCO, G. (orgs.) Capitalismo Cognitivo: trabalho, redes e inovação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

GORZ, André. Métamorphoses du travail et quête de sens. Paris: Galilée, 1988.

Page 24: V WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE O … · Um contexto de precarização e flexibilização do emprego ... num total de 26 entrevistas, em 2004 ... a fim de dar respostas

24

HEYDE, Carla. Reconhecimento on-line + reconhecimento off-line = x; uma análise da auto-realização dos adolescentes através dos jogos pela internet. Projeto de dissertação, PPG Sociologia, UFRGS, março 2006.

HONNETH, Axel. A response to Nancy Fraser. In: Fraser, Nancy; Honneth, Axel. Redistribution or recognition: apolitical-philosophical exchange. London/New York: verso, 2003a.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática social dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003b.

HONNETH, Axel. Recognition and justice: outline of a plural theory of justice. Acta sociologica. Scandinavian Sociological Association and Sage (London, Thousand Oaks, CA and New Delhi), vol 47(4), december, 2004. Pp. 351-364.

HUWS, Ursula. Telework: projections. Futures, vol. 23, nº1, Jan/Feb 1991. Pp. 19-31. KOVÁCS, Ilona. As metamorfoses do emprego; ilusões e problemas da sociedade

da informação. Lisboa: Celta, 2002. LAZZARATO, Maurizio. Le concept de travail immatériel: la grande entreprise.

Futur Antérieur, n° 10, Paris, L’Harmattan, 1992/2. LAZZARATO, Maurizio; NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial: formas de vida e

produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. PALMADE, Jacqueline. Communication paradoxale et imaginaire consensuel. SFEZ,

L. (sous dir.) Encyclopédie et Dictionnaire critique de la communication. Paris : PUF, 1993.

PERRET, Bernard. Fin de la valeur travail?. Esprit , nº1, 1988. ROSENFIELD, Cinara L.. Autonomia outorgada e apropriação do trabalho. In:

Revista Sociologias, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, IFCH/UFRGS, Ano 6, nº12, jul/dez 2004, pp.202-7.

ROSENFIELD, Cinara L. L’autonomie comme norme et le rapport au travail; une étude comparative France-Brésil. Lille: ANRT, 2003a.

ROSENFIELD, Cinara L.. Autonomia outorgada e relação com o trabalho: liberdade e resistência no trabalho na indústria de processo. Revista Sociologias, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, IFCH/UFRGS, ano 5, nº10, jul/dez 2003b. Pp. 350-378.

SERRA, Paulo. O Teletrabalho: conceito e implicações. Universidade da Beira Interior, 1995/96, working paper.

SILVA, Josué P. da. Teoria Crítica na Modernidade Tardia: sobre a relação entre redistribuição e reconhecimento. ANPOCS, 2005.

TAYLOR, Charles. Multiculturalismo . Lisboa: Instituto Piaget, 1994a. TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. Barcelona: Paidós ICE-UAB, 1994b. TAYLOR, Charles. As fontes de self; a construção da identidade moderna. São

Paulo: Loyola, 1997. TERSSAC, Gilbert de. Autonomie dans le travail. Paris: PUF, 1992. SINGLY, François de. L’individualisme est un humanisme. Paris: Aube, 2005. VALENDUC, Gérard & VENDRAMIN, Patricia. Telework: from distance working to

new forms of flexible work organization. TRANSFER; European Review of Labour and Research, vol. 7, n.2, Summer 2001.

ZARIFIAN, P. Sur les centres d'appels (éléments intégrés dans l'introduction du numéro 114 de la revue Réseaux, octobre 2002). http://perso.wanadoo.fr/philippe.zarifian/page52.htm, acessado em 22/04/2006. http://www.ecatt.com http://www.sibis-eu.org http://www.ilo.org