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V10 n2 jul_dez_1997

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  • O 1998 by Arquivo Nacional Rua Azeredo Coutinho, 77 CEP 20230-170 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

    Presidente da R e p b l i c a Fernando Henrique Cardoso

    Ministro da J u s t i a J o s Renan Vasconcelos Calheiros

    Dlretor-Geral do Arquivo Nacional Jaime Antunes da Silva

    Edi tora

    Maria do Carmo T. Rainho

    Conse lho Edi tor ia l Ingrid Beck. J o s Ivan Calou Filho, Maria do Carmo T. Rainho, Maria Isabel Falco, Maria Izabel de Oliveira, Nilda Sampaio Barbosa, Slvia Ninita de Moura Estevo , Verone G o n a l v e s Cauville Conse lho Consult ivo Ana Maria Camargo, Angela Maria de Castro Gomes, Boris Kossoy, Cl ia Maria Leite Costa, Elizabeth Carvalho, Francisco Falcon, Francisco Iglesias, Helena Ferrez, Helena Corra Machado, He lo sa Liberalli Belotto, limar Rohloff de Mattos, Jaime Spinelli, Joaquim Marcai Ferreira de Andrade, J o s Carlos Avelar, J o s S e b a s t i o Witter, La de Aquino, Lena Vnia Pinheiro, Margarida de Souza Neves, Maria Inez Turazzi, Marilena Leite Paes, Regina Maria M. P. Wanderley, Solange Zniga

    Projeto G r f i c o Andr Villas Boas

    E d i t o r a o E l e t r n i c a , Capa e I l u s t r a o Qisele Teixeira de Souza

    R e v i s o Alba Gisele Qouget, J o s Cludio da Silveira Mattar, J o s Ivan Calou Filho e Tnia Maria Cuba Bittencourt

    Resumos Carlos Peixoto de Castro, Flvia Roncarati Gomes e J o s Cludio da Silveira Mattar ( v e r s o em ing l s ) e Flvia Roncarati Gomes e La Porto de Abreu Novaes ( v e r s o em francs )

    R e p r o d u o F o t o g r f i c a Agnaldo Neves Santos, Ccero Bispo, Flavio Ferreira Lopes e Marcello Lago

    Secretaria Jeane D'Arc Cordeiro

    Acervo: revista do Arquivo nacional. v. 10, n. 2 (jul./dez. 1997). Rio de Janeiro: Arquivo nacional. 1998. v.; 26 cm

    Semestral Cada nmero possui um tema distinto ISSn 0102-700-X

    1. Imigrao - Brasil - I. Arquivo nacional

    CDD 323-1

  • Ministrio da Just ia

    Arquivo Nacional

    ACERVO R E V I S T A D O A R Q U I V O N A C I O N A L

    RIO DE JANEIRO, V.10, NMERO 02, JULHO/DEZEMBRO 1997

  • S U M R I O

    01

    A p r e s e n t a o

    03 Bastidores U m outro olhar sobre a imigrao no Rio de Janeiro

    Len Medeiros de Menezes

    17 Camisas-Verdes O integralismo no Sul do Brasil

    Carla Brandalise

    37

    O Universo do Trabalho do Imigrante em Itu - S P ( 1 8 7 6 - 1 9 3 0 )

    Maria Antonieta de Toledo Ribeiro Bastos

    53

    "Proverbial Hospitalidade"? A Revista Jc Imigrao e Colonizao c o discurso oficial sobre o imigrante (1945-

    1955)

    Elena Pjaro Peres

    71 "Inimigos Mascarados com o T t u l o de C i d a d o s " A v ig i lncia c o controle sobre os portugueses no Rio de Janeiro do Primeiro Reinado

    Qladys Sabina Ribeiro

    97

    I m i g r a o Portuguesa e Movimento O p e r r i o no B r a s i l

    Fontes c arquivos de Lisboa

    Fernando Teixeira da Silva

    109

    Portugueses no B r a s i l

    Imaginr io social c t t i cas cotidianas (1880-1895)

    Maria Manuela R. de Sousa Silva

  • 119

    A o n a n o s e M a d eirenses no S u l do B r a s i l

    Walter F. Piazza

    129

    A C r i a o do Estranhamento e a C o n s t r u o do E s p a o P b l i c o

    Os japoneses no Estado Novo

    Adriano Luiz Duarte

    147

    Li tera tura de I m i g r a o

    M e m r i a s dc uma dispora

    Maria Luiza Tucci Carneiro

    165

    I m i g r a o A l e m e C o n s t r u o do Estado N a c i o n a l Brasi le iro

    Rio Grande do Sul, sculo

    Helga Iracema Landgraf Piccolo

    179

    Breves R e f l e x e s Sohre o Prohlema da I m i g r a o U r b a n a

    O caso dos espanhis no Rio dc Janeiro (1880-1914)

    Lcia Maria Paschoal Quimares

    199

    Mult ipl ic idade t nica no l \ io de Janeiro

    U m estudo sobre o 'Saara'

    Paula Ribeiro

    213

    Perfi l Institucional

    M e m o r i a l do Imigrante

    Marco Antnio Xavier 219 Perfi l Institucional M u seu e A r q u i v o H i s t r i c o M u n i c i p a l de Caxias do S u l Juventino Dal B

    223

    Fontes para Estudos da E n t r a d a de Estrangeiros e de Imigrantes no B r a s i l

    229

    Bibliografia

  • A P R E S E N T A O

    Como afirma Boris Fausto, a imigrao

    tardou a constituir um campo especfico

    da pesquisa acadmica . Durante muito

    tempo podemos dizer, at meados da

    dcada de 1960 era objeto apenas de

    grandes i n t e r p r e t a e s s o c i o l g i c a s ,

    destacando-se as obras de Roger Bastide

    e Florestan Fernandes.

    A partir dos trabalhos dos brazilianistas

    que, ainda segundo Fausto, se relacionam

    com o desenvolvimento de estudos sobre

    etnias nos Estados Unidos, o tema da

    imigrao passa a constituir-se em objeto

    de anlise no subordinado.

    Dentre os estudos desenvolvidos por

    pesquisadores b ras i l e i ros , chama a

    a teno o de Jos de Souza Martins que,

    a partir da d c a d a de 1970, toma a

    i m i g r a o como objeto cent ra l ,

    analisando no apenas as re laes de

    produo ps-escravistas, como tambm

    os o b s t c u l o s e imposs ib i l idades de

    ascenso social dos imigrantes pobres.

    Atua lmente , a i m i g r a o tema

    recorrente nos trabalhos de historiadores,

    ant roplogos e socilogos, que ampliam

    o espao geogrfico enfocado o qual

    centrou-se, por muito tempo, em So

    Paulo, Rio de Janeiro e Rio Qrande do Sul

    , e incorporam novas abordagens como

    as n o e s de etnicidade e pluralismo

    cultural.

    Tentando contribuir para divulgar o que

    vem sendo produzido nas universidades

    e centros de pesquisa sobre imigrao,

    esse nmero da Acervo traz 13 artigos,

    alm de dedicar a seo Perfil Institucional

    a entidades que se destacam pela riqueza

    de seus acervos como o Memorial do

    Imigrante e o Museu e Arquivo Histrico

    Municipal de Caxias do Sul. Para finalizar,

    apresenta um roteiro dos n c l e o s

    documentais custodiados pelo Arquivo

    nacional, de interesse para o tema.

    Abre esse nmero, o texto da professora

    Len Medeiros de Menezes que utiliza os

    processos de expulso de imigrantes para

    estudar as formas de i m p o s i o da

    disciplina no espao urbano do Rio de

    Janeiro, durante a Primeira Repblica.

    A seguir, Car la Brandal ise ana l i sa a

    insero do movimento integralista no Rio

    Qrande do Sul na dcada de 1930 e a sua

    atuao nas reas ocupadas por colonos

    a lemes e italianos.

    O artigo da gegrafa Maria Antonieta de

    Toledo Ribeiro Bastos traa um perfil dos

    trabalhadores imigrantes em Itu, entre

    1876 e 1930, em particular os italianos

    que dedicaram-se, em grande parte, ao

    trabalho agrcola.

    Elena P ja ro Peres ana l i sa a

    r e g u l a m e n t a o do movimento

  • imigratrio no Brasil, a partir da Revista

    de Imigrao e Colonizao que circulou

    entre 1940 e 1955 e visava esboar as

    caracterst icas do imigrante desejvel. y

    Trs ar t igos enfocam os imigrantes

    portugueses no Brasil: o de Qladys Sabina

    Ribeiro analisa a vigilncia e o controle

    que sofreram durante o Primeiro Reinado;

    o texto de Fernando Teixeira da Silva

    aponta as possibilidades de pesquisa

    sobre a relao entre movimento operrio

    e i m i g r a o por tuguesa , nas t r s

    primeiras d c a d a s do s c u l o XX, em

    Santos; e, finalmente, o artigo de Maria

    Manuela R. de Sousa e Silva aborda as

    t e n s e s existentes na r e l a o entre

    brasileiros e portugueses a partir de

    enfrentamentos cotidianos ocorridos no

    Rio de Janeiro, no final do sculo XIX.

    Walter Piazza trabalha a histria da vinda

    de imigrantes aor ianos e madeirenses

    para o sul do Brasil no sculo XVIII, suas

    bases sociais e polticas, e os resultados

    desse movimento migratrio.

    Os imigrantes japoneses durante o Estado

    Movo so o objeto do texto de Adriano Luiz

    Duarte. Esses imigrantes, com o fim da

    Segunda Guerra, dividiram-se em dois

    grupos: aqueles que no acreditavam na

    derrota japonesa e os que, conformados

    com a situao, desejavam esquec-la .

    interessante destacar os dados que o

    autor apresenta sobre a Shind-Remmei, o r g a n i z a o que t inha por objetivo

    e l iminar f is icamente os chamados

    'derrotistas'.

    A literatura de imigrao, especialmente

    aquela produzida por imigrantes judeus

    que se refugiaram do nazismo no Brasil,

    nas dcadas de 1930 e 1940, o tema da

    professora Maria Luiza Tucci Carneiro que

    analisa o contedo dessas obras e o perfil

    dos seus autores.

    O processo de imigrao alem para o Rio

    Qrande do Sul durante o sculo XIX o

    tema de tlelga Iracema Landgraf Piccolo,

    onde se destaca o pequeno proprietrio

    imigrante como fiel da balana, na relao

    entre o governo imperial e os grandes

    senhores de terra, muitos deles escravistas.

    Os espanhis no foram esquecidos pela

    Acervo e es to presentes no artigo de

    Lcia Maria Paschoal G u i m a r e s que,

    tendo como espao o Rio de Janeiro na

    virada do sculo XIX, pretende demonstrar

    que a emigrao urbana se constituiu num

    fator concorrente da m o - d e - o b r a

    nacional, especialmente aquela que fora

    liberada pela abolio.

    Fecha este n m e r o o texto de Paula

    Ribei ro que parte dos relatos dos

    imigrantes s r ios e libaneses c r i s t os ,

    judeus sefaradim e seus descendentes, para traar um perfil desses homens que,

    desde fins do sculo XIX, tm-se dedicado

    ao comrcio de armarinhos e de gneros

    alimentcios.

    Maria do Carmo T. Rainho Editora

  • Len Medeiros de Menezes Professora Adjunta

    do Departamento de Histria da UERJ. Doutora em Histria Social.

    . . B a s t i d o r e s

    U m o u t r o o U i a r s o t r e a i m i g r a o n o

    R i o cie J a n e i r o

    Aps residir 38 anos na cidade do Rio de Janei-ro, Manuel Real, portu-gus , analfabeto, solteiro, padeiro

    por profisso, mas sem residncia fixa, foi

    expulso do Brasil como mendigo incorri-

    gvel, regressando terra natal, com 64

    anos, apenas com a roupa do corpo. Mui-

    to mais brasileiro que portugus, foi obri-

    gado a voltar Europa, de onde sara com

    a idade de 26 anos, para enterrar, em

    outro solo que no o brasileiro, a faln-

    cia de seus sonhos, expectativas e espe-

    ranas . 1

    Histria de vida como a de Manuel Real

    no foi um caso isolado na capital brasi-

    leira, ao longo de seu to aclamado pro-

    cesso civilizatrio. Alm do discurso so-

    bre a defesa da ordem e da segu-

    rana nacional, a prtica da expul-

    V so representou uma das faces da

    excludncia implantada pelo regi-

    me republicano: aquela que atingia os es-

    trangeiros pobres, transformados em al-

    vos das polticas de higiene social en to

    desenvolvidas, numa cidade que conhe-

    cia um tempo de mudanas visveis no ser,

    no fazer, no sentir e no estar. Tempo mar-

    cado por luzes e sombras, fugas e bus-

    cas, por distanciamentos profundos en-

    tre o discurso legal, que contemplava pos-

    tulados liberais, e as prticas polticas au-

    toritrias do cotidiano, enraizadas numa

    mental idade escravis ta e l a t i f u n d i -

    r ia .

    lio processo de imigrao em massa que

    Acervo, Rio de Janeiro , v. 10, n 2, pp. 03-16, Jul/dez 1997 - p g . 3

  • marcou a virada do sculo, a proclama-

    o e a consolidao da repblica brasi-

    leira corresponderam terceira^ onda dos

    movimentos migra tr ios que do Velho

    Mundo atingiram a Amrica. Esta onda,

    diferente das anteriores, caracterizou-se

    pelo xodo em massa das reas agrcolas

    da Europa mediterrnea, que ento co-

    nhecia a acelerada deses t ru tu rao da

    comunidade camponesa tradicional, fia

    cidade do Rio de Janeiro, ela represen-

    tou o afluxo predominante de indivduos

    pobres provenientes dos campos do nor-

    te e noroeste de Portugal, com destaque

    para o Minho, Douro e Trs-os-Montes, se-

    guindo-se as reas rurais da Espanha,

    principalmente da Qaliza, e as provncias

    mer id iona i s de Cozenza , Sa lerno e

    Potenza, na Itlia.

    De acordo com os registros existentes, o

    imigrante pobre que chegou ao Rio de Ja-

    neiro, pobre tendeu a permanecer, afas-

    tado, em muito, da representao ideali-

    zada de mo-de-obra superior, promoto-

    ra do progresso, que compunha os dis-

    cursos imigrantistas na poca imperial.

    Com pouco conhecimento dos cdigos ur-

    banos, precria qualificao profissional

    e ausncia de laos familiares na nova ter-

    ra, muitos desses estrangeiros compuse-

    ram um proletariado miservel, fornecen-

    do grandes contingentes ao lumpesinato

    existente na cidade.

    Sobras do arranjo social2 nos pases de

    origem, grande parte deles permaneceu

    margem dos benefcios trazidos pelo

    progresso, numa cidade que conhecia a

    carestia, o dficit habitacional e um mer-

    cado de trabalho magmt ico , marcado

    pela superexplorao, baixos salrios, lon-

    gas jornadas e desemprego recorrente. Essa

    conjugao perversa tornou-os objetos pri-

    vilegiados da ao disciplinar conduzida

    pelas elites; alvos destacados da vigilncia

    Manuel Real em 1928. Fotografias Integrantes do seu processo de expulso. Arquivo Nacional.

    p g . A, j u l / d e z 1997

  • V o

    policial e das leis de expulso.

    Como em outras cidades do mundo influ-

    enciadas pela Europa, a histria do Rio

    de Janeiro, dbut de sicle, foi marcada pela importao de produtos e bens, ho-

    mens e mulheres, usos e costumes, faze-

    res e lazeres, crimes e contravenes ,

    valores e vises de mundo.

    Civilizar a cidade, neste contexto de mu-

    dana, foi um processo que caminhou em

    dois sentidos principais. Em primeiro lu-

    gar, no da criao de um espao moder-

    no, racional e funcional, em que os ne-

    gcios encontraram um lugar especializa-

    do e privilegiado para florescer, distanci-

    ado dos becos e ruelas tradicionais. Em

    segundo lugar, no sentido d

    desencadeamento de uma proposta de

    a d a p t a o da p o p u l a o urbana aos

    cnones de um novo viver, atravs de sua

    submisso a um cdigo legal que, con-

    traposto ao popular, criminalizou compor-

    tamentos tradicionais, atingindo forte-

    mente os estrangeiros, num modelo- de

    r e p b l i c a que passou a ut i l izar a

    alteridade como instrumento de constru-

    o artificial da identidade nacional, prin-

    cipalmente nos anos que precederam e

    se seguiram Primeira Querra Mundial.

    Vrias histrias de vida contadas nos pro-

    cessos de expulso exemplificam bem as

    dificuldades encontradas por centenas de

    imigrantes pobres no Rio de Janeiro, ao

    tempo da Belle poque, como as que compem os processos de H. Benanan,

    A. Cardoso, A. Santos e J . M. Melo:

    F rancs de Tnis , H. Benanan ou A.

    Benaneti tinha 62 anos quando foi expul-

    so em 1929 como vadio. Era solteiro,

    analfabeto, carroceiro e havia entrado no

    pas em 1922, j com idade avanada.

    Segundo o depoimento por ele prestado,

    chegara ao Rio de Janeiro vindo de San-

    tos, onde um acidente, ocorrido em 1925,

    o impossibilitara de continuar trabalhan-

    do, razo pela qual, sozinho e sem alter-

    nativas de trabalho, lanou-se mendi-

    cncia. 3

    natural de uma pequena freguesia do dis-

    trito de Braga, A. Cardoso tinha 25 anos

    quando foi obrigado a voltar para Portu-

    gal, 12 anos depois de chegar ao Brasil,

    aos 13 anos de idade, junto com os pais.

    Recm-chegado, empregou-se em uma

    fbrica de louas no bairro de So Crist-

    vo, onde trabalhou por algum tempo,

    sendo colocado na rua logo depois da fa-

    mlia ter retornado a Portugal. S e de-

    samparado, viu-se numa "situao finan-

    ceira deplorvel", segundo as declaraes

    que prestou, no ano de 1922, com 17

    anos, preso e processado, acusado de fe-

    rir um companheiro em arruaas de rua,

    foi recolhido Casa de Deteno. Influ-

    enciado pelos nouos amigos que l co-nheceu, no mais procurou emprego ao

    deixar a priso, passando a viver exclusi-

    vamente do produto dos furtos que prati-

    cava. Processado vrias outras vezes, foi

    condenado a dois anos em c o l n i a

    correcional situada no interior do estado.

    Preso novamente, ao passar o conto-do-uigrio em um patrcio, de quem furtou setecentos mil ris em moeda brasileira

    e oitocentos escudos portugueses, aca-

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 10. n 2. pp. 03-16. jul/dez 1997 - p g . 5

  • A C

    bou expulso como vadio incorrigvel no

    ano de 1930. 4

    nascido na aldeia de Travanca, conselho

    de Vinhes, na provncia de Trs-os-Mon-

    tes, seu conterrneo A. Santos contava 26

    anos quando vislumbrou, pela ltima vez,

    os contornos majestosos dos morros que

    abraam a cidade do Rio de Janeiro. Era

    solteiro, alfabetizado, e havia chegado ao

    pas com 12 anos. Segundo suas declara-

    es , to logo desembarcou na capital

    brasileira, foi residir com um tio, com

    quem permaneceu por cerca de dois anos.

    Em 1917, com 14 anos, s na vida, "deu-

    se vadiagem". Preso por ter furtado vinte

    mil ris de um alfaiate estabelecido no

    centro da cidade e recolhido, pela pol-

    cia, a um patronato, ali ficou a t princpi-

    os de 1920, sendo desligado aps ter con-

    cludo o curso de arado e de agricultura

    oferecido pela i n s t i t u i o . Fora do

    patronato, empregou-se por cerca de qua-

    tro meses. Posto em liberdade, mergulhou

    no jogo por "considerar-se fraco para o

    trabalho braal" e ter verdadeira fascina-

    o pelo jogo, "pelos lucros fceis que

    este proporcionava, lucros que lhe per-

    mitiam luxos e prazeres" interditados s

    classes trabalhadoras, iniciando-se outra

    srie de de tenes e uma nova estada na

    colnia Dois Rios Em 1926, foi remetido

    para Clevelndia, situada em zona de

    fronteira. Voltando cidade, e preso no-

    vamente, foi Finalmente expulso. Corria o

    ano de 1929. 5

    Portugus de Figueira, J . M. Melo era sol-

    teiro, alfabetizado e padeiro por profis-

    so. Foi expulso com a idade de 27 anos,

    acusado de ser um dos responsveis pela

    onda de exploses ocorrida no ano de

    1920. Segundo o depoimento por ele

    prestado, to logo chegou ao Brasil em-

    pregou-se numa fbrica de tecidos, e,

    depois, em padarias, tendo-se filiado

    Sociedade dos Padeiros. Acusado de ter

    colocado uma bomba numa padaria situ-

    ada na rua Voluntr ios da Ptr ia , em

    Botafogo, foi preso em maio de 1920,

    passando a integrar a lista negra dos agi-

    tadores que circulava entre os emprega-

    dores, no conseguindo mais nenhum

    tipo de emprego. Desesperado com a si-

    tuao, "pois no ganhava para comer",

    1 no querendo mais "ter fama sem pro-

    veito", resolveu vingar-se dos pa t res ,

    passando a fabricar bombas e a coloc-

    las em lugares considerados estratgicos.

    A primeira bomba, fabricada com massa

    de vidro, dinamite e pregos, no explo-

    diu por defeito de fabricao. Com a se-

    gunda, conseguiu seu intento, causando

    vrios prejuzos numa padaria do bairro

    de Vila Isabel. A terceira, finalmente, de-

    positada na residncia do gerente da f-

    brica de tecidos Minerva, na Tijuca, va-

    leu-lhe a expulso, efetuada no ano de

    1920. Megando ser anarquista, J . M. Melo

    definiu-se como um sindicalista revolta-

    do com as condies de vida dos traba-

    lhadores. 6

    Parte significativa das sobras de um ar-ranjo social tecido por pactos de elites,

    homens como Benanan, Cardoso, Santos

    e Melo compunham o grupo dos indese-

    jveis, ou seja, dos estrangeiros que, de

    p g . e . Ju l /dez 1997

  • R V O

    alguma forma, contestavam a ordem

    estabelecida. Muma vertente deste pro-

    cesso, a da contestao poltica, alinha-

    vam-se trabalhadores envolvidos com a

    constituio do operariado enquanto clas-

    se, com destaque aos anarquistas que, de

    posse de um discurso e uma prtica re-

    volucionrias, constituram-se em perigo

    permanente para o regime.

    Ma outra dimenso, a do crime e da con-

    traveno, somavam-se vadios, mendigos,

    ladres, gatunos, vigaristas, bbados , jo-

    gadores e cftens. Com exceo dos lti-

    mos, agentes do crime internacional or-

    ganizado, os indesejveis , regra geral,

    eram indivduos pobres que, perdidos

    seus sonhos de uma vida melhor ou de

    retorno vitorioso terra natal, voltavam-

    se, de vrias formas, contra as condies

    de vida que lhes eram oferecidas, afas-

    tando-se, com sua atitude de desafio or-

    dem, do prottipo de imigrante deseja-

    do: paciente, obediente, ordeiro e resignado.

    lios delitos que guardavam vnculos mais

    estreitos com a pobreza vivida na cidade,

    os portugueses destacaram-se do conjun-

    to dos indesejveis, reproduzindo as ten-

    dncias gerais da imigrao para a cidade.7

    Os anarquistas consti turam-se a princi-

    pal base da militncia de origem estran-

    geira, principalmente no ramo das pada-

    rias e da construo civil, em que mais

    fortemente enraizou-se o sindicalismo re-

    volucionrio. A presena marcante dos

    portugueses nos sindicatos, que encami-

    nhavam o discurso revolucionrio, distan-

    ciou a capital de outras cidades do pas.

    onde outros estrangeiros, com destaque

    para os italianos e espanhis , colocaram-

    se frente do processo de organizao

    operria.

    Comparadas vrias histrias de vida nar-

    radas nos processos de expulso, algu-

    mas recorrncias sobressaem significati-

    vamente no conjunto, proporcionando um

    exerccio prosopogrfico que, a t ravs de

    casos exemplares, mergulhados em som-

    bras e trevas, permite a reconstruo dos

    bastidores da imigrao.

    Em primeiro lugar, a pobreza mostrava-

    se companheira inseparvel em suas vi-

    das. Os processados, geralmente, nada

    mais eram que homens pobres que che-

    gados ao pas na pobreza mantiveram-

    se ao longo da vida, posicionados como

    mo-de-obra barata em servios antes

    realizados por escravos. Todos haviam

    emigrado buscando o paraso do outro

    lado do Atlntico. Muito raramente eram

    criminosos ou anarquistas radicais. Casos

    como o de J . Monteiro, que entrou no Bra-

    sil em 1911, fugido de Portugal por seu

    ativismo poltico, ou de L. Arena, que no

    ato da expulso j registrava pr ises por

    furto em Buenos Aires, so absoluta ex-

    ceo no conjunto dos indesejveis que

    deixaram o registro de sua passagem pela

    capital federal."

    Quanto procedncia, a maior parte dos

    processados havia nascido nos campos

    europeus. Mesta perspectiva, os proces-

    sos de expulso refletem, com exatido,

    as tendncias globais da imigrao para

    a cidade, no final do sculo XIX e nas pri-

    Acervo. Rio de Janeiro, v. 10, n 2. pp. 03-16. Ju l /de i 1997 - p g . 7

  • meiras dcadas do sculo XX, onde os

    portugueses, seguidos por italianos e es-

    panhis provenientes das reas rurais,

    constituam a maioria dos que se desti-

    navam ao Rio de Janeiro. A conjugao

    de condicionantes estruturais relativas

    posse e div iso da terra com fatores

    conjunturais e com o exemplo dado pe-

    los 'brasileiros' de torna-viagem, envol-

    vidos no manto dos sucessos obtidos no

    alm-mar , principalmente em Portugal,

    pressionaram ou incentivaram a popula-

    o rural a emigrar.

    Distribuio dos Estrangeiros por Nacionalidade

    Fonte Brasil Ministrio da Agricultura. Indstria e Comero Diretoria Geral de Estatstica Recenseamento de 1920

    Com relao idade dos imigrantes, gran-

    de parte dos processados havia entrado

    no pas durante a adolescncia ou a in-

    fncia. Este dado significativo, registrado

    no conjunto da documentao, encon-

    trado, tambm, nos recenseamentos rea-

    lizados entre 1872 e 1920, que registram

    um enorme contingente de jovens na fai-

    xa dos 12 aos 18 anos no grupo dos es-

    trangeiros. Eram os caixeirinhos portu-

    gueses ou galegos desta faixa etria que

    chegavam ao Brasil, ao chamado de al-

    gum parente ou conhecido, ou mesmo

    num esprito de total aventura. Sem as

    sanes familiares ou qualquer padro

    referencial da vida urbana, eles tornaram-

    se uma importante d imenso da imigra-

    o urbana. Verdadeiros agregados urba-

    nos, dormiam e faziam suas refeies nos

    locais de trabalho, cumprindo longas e

    duras jornadas, que chegavam a se es-

    tender por 16 horas no comrcio a vare-

    jo. Mo raras vezes, optavam por fugir

    devido s duras condies de vida, ou en-

    to eram despedidos e, privados de teto

    e comida, passavam a vagar pelas ruas,

    alternando perodos de recluso em es-

    tabelecimentos penais com intervalos de

    liberdade, num circuito contnuo de rein-

    cidncia.

    A grande presena de jovens desocupa-

    dos nas ruas, a maioria constituda por

    estrangeiros, marcou a histria da Belle

    poque carioca. Personagens constantes

    nas crnicas sobre a capital, os jovens

    abandonados prpria sorte tornaram-se

    alvo das preocupaes policiais, devido

    facilidade com que tendiam a ingressar

    no mundo do crime ou a aquecer os mo-

    tins e os quebra-quebras recorrentes. 9

    Tomado o universo profissional como ob-

    jeto central de anlise, finalmente, mere-

    ce destaque a pequena qualificao para

    o trabalho registrada nas fontes, ao que

    se acrescenta a alta incidncia de analfa-

    betos, mais de 20% do to ta l . Este

    despreparo para o mercado de trabalho

    tinha como conseqncia imediata a ab-

    soro dos estrangeiros pobres nas ativi-

    dades desvalorizadas, com tendncia

    p g . 8 . Ju l /dez 1 997

  • R V O

    superexplorao e pouca fixao no em-

    prego, em atendimento a demandas cir-

    cunstanciais do mercado de trabalho.

    bastante f r e q e n t e na d o c u m e n t a o

    pesquisada, por exemplo, o registro de pro-

    fisses sem quaisquer relaes intrnsecas,

    desenvolvidas por um mesmo indivduo ao

    longo da vida. J . S. Querra foi jardineiro e

    gerente de hotel; 1 0 outros foram sapatei-

    ros e pintores, ou condutores de bondes e

    trabalhadores em pedreiras, alternando,

    freqentemente, empregos ocasionais com

    perodos de desemprego.

    A pouca ou nenhuma qualificao profissio-

    nal de grande parte dos imigrantes encon-

    tra-se apontada, t ambm, nos recensea-

    mentos realizados no perodo. O de 1906

    totaliza 39.707 indivduos sem qualificao,

    e o de 1920 aponta a cifra de 13.619 com

    profisso mal definida, 10.951 sem profis-

    so declarada e 57.030 sem profisso,

    to ta l izando 81.600 est rangeiros

    desqualificados para as ocupaes urbanas,

    o que representa cerca de 35% do univer-

    so dos imigrantes residentes na cidade.

    O desemprego recorrente e as pss imas

    c o n d i e s de trabalho num mercado

    magmtico, no qual a oferta suplantava a

    demanda, tenderam a aquecer os movi-

    mentos contestatrios na cidade e a em-

    purrar muitos indivduos para as atividades

    ilcitas e a mendicncia.

    O comrcio, a construo civil, as docas, as pedreiras e os transportes foram os se-

    tores formais do mercado de trabalho que

    registraram a maior absoro da mo-de-

    obra estrangeira. Justamente nestes espa-

    os os salrios eram baixos, os aciden-

    tes de trabalho muito comuns e o de-

    semprego uma possibilidade sempre

    presente, tornando enormes as possi-

    bilidades do ingresso do imigrante no

    mundo marginal do no-trabalho, como

    registra A noite no ano de 1914:

    Trata-se de um dos mais s r i o s pro-

    blemas do nosso proletariado. Vo de

    m a n h cedo aos logradouros pbl i -

    cos, correm o Passeio, a praa XV de

    liovembro, os diversos cais, o merca-

    do velho e novo, a praia de Santa Lu-

    zia, e depois dizem que dolorosa im-

    p r e s s o trouxeram de l. Ms vimos e

    contamos cem o p e r r i o s que dormi-

    am ao relento. Conversamos com

    muitos deles. Todos contam a mesma

    histria: a fbrica, o trabalho, espe-

    rana de arranjar s e r v i o para o futu-

    ro [...] Mo se trata, [sic] absolutamen-

    te, de vagabundos, trata-se [sic] de

    o p e r r i o s . "

    A descrio da lamentvel s i tuao fei-

    ta pelo peridico encontra correspon-

    dncia direta em vrias histrias de vida

    narradas nos processos analisados,

    como no de A. Sarmento, espanhol de

    40 anos, residente h 13 anos no pas

    no momento de sua expulso, que de-

    clarou, em seu depoimento, que fora

    sempre um trabalhador, no lhe caben-

    do culpa por estar desempregado no

    momento de sua pr iso . 1 2

    Consideradas as ques tes destacadas,

    impe-se como concluso que qualquer

    estudo sobre a imigrao estar incom-

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 10, n 2. pp. 03-16, Jul/dez 1997 - pag.9

  • pleto se contemplar apenas a histria vis-

    ta de cima, ou seja, a histria dos suces-

    sos escritos sob as luzes da modernidade.

    Alm das vitrias cantadas em prosa e

    verso pelos que voltaram ricos terra

    natal, ou pelos que fixaram-se na nova

    terra como propr ie tr ios , necessr io

    que, virado o processo pelo avesso, seja

    contemplada uma histria vista de baixo,

    capaz de dar visibilidade pobreza dos

    bastidores, mergulhados nas sombras do

    silncio e do esquecimento.

    Muitos foram os condutores de bondes,

    padeiros, calceteiros, pedreiros, caixeiros

    e trabalhadores afeitos ao trabalho bra-

    al que amargaram difceis condies de

    existncia, em sua luta permanente con-

    tra a carestia, trgica em algumas con-

    junturas, morando na periferia pobre ou

    dormindo ao relento, quando, desempre-

    gados ou sub-empregados, no podiam

    arcar com os custos dos aluguis , como

    narra com grande sensibilidade o Correio

    da Manh:

    Grande parte dessa gente, trabalhado-

    res e o p e r r i o s , sem casa, sem nenhum

    abrigo, sem p o e sem e s p e r a n a s , dor-

    me ao relento sob a relva da avenida

    do Mangue ou fazendo cama com as er-

    vas que crescem livremente nos terre-

    nos devolutos, ou pernoita nos portais

    das casas desabitadas, se n o se lhes

    depara mais confortve l retiro nas ru-

    nas de qualquer casa que o fogo ou o

    tempo d e s t r u r a m . 1 3

    Porm, muitos imigrantes, apesar das

    condies adversas, continuaram traba-

    lhando duro, tecendo condies de vida

    mais amenas para seus descendentes.

    Outros buscaram, pela via revolucionria,

    alterar de imediato as condies adver-

    sas, influenciados pelo iderio anarquis-

    \ S. i

    0 '

    Embarque de emigrantes italianos para o Brasil. Reproduo de A Ilustrao brasileira, 15 de fevereiro de 1910.

    p g . 10. Ju l /dez 1997

  • R V O

    ta que apontava a revoluo como nica

    possibilidade de redeno. A violncia

    adotada por muitos expressava, de algu-

    ma forma, as frustraes acumuladas ao

    longo da vida, e o desejo de alcanar o

    paraso na terra, ainda que fosse pela di-

    namite.

    Os vnculos existentes entre condies de

    vida e radical izao ideolgica encon-

    tram-se presentes em alguns processos

    de expulso, principalmente naqueles mo-

    vidos contra os padeiros, sujeitos a lon-

    gas jornadas noturnas e a duras condi-

    es de trabalho, seguindo-se operrios

    no qualificados da construo civil. En-

    tre os padeiros, significativa a meno

    a uma sociedade secreta de nome

    Carbonria Padeiral, que aparece no pro-

    cesso contra A. R. Santos, acusado de ser

    um dos dinamitadores por ocas io da

    onda de exploses em padarias, cujos

    panfletos s o de extrema revol ta ,

    explicitando muito do vale-tudo desespe-

    rado assumido por imigrantes no jogo da

    mudana revolucionria. 1*

    Considerada a outra vertente da desor-

    dem urbana, a das atividades, ilcitas, do

    crime e da vadiagem, o comportamento

    desviante podia apresentar-se como de-

    corrncia de uma primeira priso, por

    arruaas de rua, com a conseqente pas-

    sagem pela verdadeira 'escola' que se

    constitua a Casa de Deteno, quanto por

    motivos involuntrios ou circunstanciais

    como desemprego, acidentes de trabalho,

    doenas , velhice e embriaguez. Muitos fo-

    ram os que romperam a fronteira da

    marginalidade por motivos alheios a sua

    vontade, como R. V. Castro: casado, alfa-

    betizado e sem residncia, o por tugus

    R. V. Castro tinha 26 anos quando foi pre-

    so e expulso. Segundo suas declaraes,

    chegara ao Brasil com um tio, aos oito

    anos de idade, tendo trabalhado no co-

    mrcio at a idade adulta, quando, ento,

    desempregado, caiu na marginalidade,

    terminando por ser expulso por vadiagem

    e furto.1 5

    Se em alguns casos a expulso tinha jus-

    tificativas, em outros ela definia-se como

    um ato extremamente a r b i t r r i o e

    inconst i tucional . 1 6 Mo conjunto dos es-

    trangeiros que acabaram sendo expulsos,

    muitos sofreram perseguio sem trguas

    por sua misria ou luta contra as injustas

    condies de trabalho e de vida, ou, ain-

    da, por enganos ou perseguies circuns-

    tanciais, embora estas ltimas represen-

    tassem uma afronta violenta aos postula-

    dos do direito internacional. Veja-se o

    relato de J . Madeira, encaminhado ao

    deputado Maurcio de Lacerda que depois

    o enviou Mesa da Cmara de Deputados:

    Envolvido na onda migratr ia que em

    1912 se efetuava de Portugal para o

    Brasil, embarquei a 17 de fevereiro des-

    se mesmo ano no porto de Lisboa e de-

    sembarquei no Rio a 2 de m a r o , inici-

    ando uma vida de trabalho e economia

    (...). Depois de pouco mais de dois

    anos, a crise de trabalho que se deu

    nessa cidade e em toda a parte veio

    roubar-me as i l u s e s antes sonhadas

    (...). Compareci a alguns c o m c i o s p -

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 10, n 2. pp. 03-16, Jul/dez 1997 - p g . 1 1

  • A C

    blicos e, no dia 11 de maio, estando

    para assistir a um comcio em Vila Isa-

    bel, vi prender trs operrios que sou-

    be serem os oradores que iam falar

    nesse comcio: chegada a hora do in-

    cio do mesmo, dispus-me a explicar aos

    operrios o motivo por que no se rea-

    lizava o comcio (...)

    Desta data em diante passei a ser um

    dos chamados 'oradores operrios' (...)"

    Transformado em "orador improvisado', J .

    Madeira tornou-se alvo da vigilncia per-

    manente das autoridades policiais, termi-

    nando por ser expulso no ano de 1920.

    Anarquista "por fora das circunstncias",

    se considerarmos verdadeiro o teor de sua

    carta, ou anarquista por convico, J .

    Madeira, independente de sua opo ideo-

    lgica, era um trabalhador humilde dis-

    posto a lutar por um lugar ao sol. Muitos

    como ele, a partir da suspeio e de uma

    primeira priso, no raras vezes aciden-

    tal, tornaram-se personagens cativos das

    dil igncias policiais, transformados em

    anarquistas profissionais por fora do dis-

    curso repressivo.

    A compreenso ampla do que se configu-

    rava como (des)ordem permitiu que, no

    mesmo grupo dos indesejveis, ao lado

    dos militantes operr ios , fossem englo-

    bados c r iminosos comuns e

    contraventores variados. Todos eles so-

    freram uma represso ininterrupta no pro-

    cesso de estabelecimento de disciplina

    sobre o mundo do trabalho e as ruas, con-

    templados nas leis que regulamentavam

    a entrada e a permanncia dos estrangei-

    ros em territrio nacional. Estas traziam

    enumeradas como motivos explcitos para

    a expulso, alm daqueles concernentes

    ao que se pudesse constituir em ameaa

    para o regime, a condenao por tribu-

    nais brasileiros de crimes ou delitos de

    natureza comum, como a vagabundagem,

    a mendicidade e o lenocnio competen-

    temente verificados, sendo relevante res-

    saltar o fato do homicdio no se consti-

    tuir em motivo de expulso, por ser um

    crime de alcance individual que no ame-

    aava a ordem urbana. 1 8

    Anarquistas, militantes operrios , vadios,

    ladres, gatunos, vigaristas, jogadores,

    brios, mendigos e cftens eram vistos

    pelo discurso oficial, com o respaldo do

    discurso cientfico da poca, como hs-

    pedes perigosos, vrus contaminados do

    tecido social, principais responsveis pela

    desordem urbana. Dentre todos, os anar-

    quistas mereceram uma a teno especial

    por parte das autoridades constitudas de-

    vido sua extrema perlculosidade,

    advinda do fato de serem definidos como

    corruptores de naes inteiras, reprodu-

    zindo, no cotidiano da prtica poltica, as

    teorizaes feitas por Lombroso acerca do

    crime polt ico. 1 9

    Considerado o conjunto dos imigrantes

    que foram alvo das leis de expulso, al-

    guns podiam ser de fato nocivos e peri-

    gosos, tomados os valores em processo

    de sedimentao como referenciais. Ou-

    tros foram objeto dos desmandos produ-

    zidos por um regime que priorizava a or-

    dem em vez da lei. A maior parte, porm.

    p i g . 12. Ju l /dez 1997

  • K V O

    era fruto direto das condies adversas

    no Rio de Janeiro.

    Messe contexto, a expulso definiu-se,

    a l m de um processo de s e l e o a

    posteriori, como uma estratgia privile-giada de limpeza urbana'. Conjugada

    depor t ao , 2 0 ela possibilitou um melhor

    controle social, atravs do processo de

    eliminao de todo aquele que, conside-

    rado sobra do arranjo social, pudesse ser

    definido como elemento perigoso or-

    dem poltica, social ou moral. O ideal de

    c o n s t r u o de uma cidade disciplinar

    norteou prticas autoritrias, destinadas

    ao esvaziamento poltico da capital, que

    atingiram tanto o mundo do trabalho

    quanto o do no-trabalho, separados por

    fronteiras fluidas e mveis que tendiam a

    desaparecer nos momentos de contesta-

    o ampla, marcados por quebra-quebras

    generalizados, nos quais os excludos

    demonstravam toda a sua revolta e des-

    contentamento.

    O medo de um levante global dos exclu-

    dos, ensaiado em 1904 2 1 e alimentado

    pelo i d e r i o anarquista , que via no

    lumpesinato uma fora revolucionria,

    tornou-se um fantasma permanente a

    povoar a mente das elites. Esvaziar a ca-

    pital, portanto, livrando-a dos 'elementos'

    desordeiros, dentre os quais sobressa-

    ram-se os estrangeiros, era uma necessi-

    dade a um s tempo repressiva e

    profiltica, que visava transformar o Rio

    de Janeiro no carto de visitas do Brasil.

    certo que o Rio de Janeiro sofria a atu-

    ao de criminosos internacionais, prin-

    cipalmente em relao ao caftismo, que

    transformara a cidade em um dos pontos

    de chegada das rotas internacionais do

    trfico de brancas. 2 2 Tambm era verda-

    deira a verso de que as idias revolucio-

    nrias que seduziam a classe operria em

    formao eram importadas, com destaque

    para o c o m u n i s m o - a n r q u i c o de

    Kropotkin.

    Mo correspondia realidade, entretan-

    to, a explicao oficial de que a desordem

    reinante no Rio de Janeiro devia-se sim-

    ples importao de indivduos viciosos e

    anarquistas profissionais; aues de arriba-o chegadas na vasa da imigrao, ver-so que mascarava as contradies inter-

    nas existentes que apanhavam os estran-

    geiros pobres em suas malhas.

    A anl i se dos processos de expu l so ,

    excetuados aqueles movidos aos cftens,

    no corrobora a consagrada tese da con-

    taminao por agentes exgenos. A mai-oria dos cidados processados, principal-

    mente os portugueses, tinha uma longa

    residncia no pas. Sua opo ideolgica

    ou ingresso na marginalidade eram, em

    ltima instncia, uma decorrncia das di-

    ficuldades e embates travados na prpria

    cidade; a expulso, uma interveno ci-rrgica capaz de eliminar parasitas e er-vas daninhas.

    Messe contexto de excludncia, o perodo

    que vai de 1907 a 1930 marca, no plano

    das relaes intersocietais, um captulo

    de violncia da nossa histria. Aos ho-

    mens que, expulsos, voltavam Europa,

    depois de anos vividos no Brasil, restava

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 10, n 2, pp. 03-16, jul /dez 1997 - p g . 13

  • A C

    a pobreza, a fadiga e o desalento. Pobre-

    za que com eles cruzava, mais uma vez,

    o oceano. Fadiga e desalento por muitos

    anos de frustraes e derrotas, j que, em

    sua grande maioria, os estrangeiros que

    retornavam como indesejveis no havi-

    am cruzado a estreita entrada da baa da

    Guanabara como desordeiros ou crimino-

    sos. Mo momento de sua chegada, eram

    to somente camponeses pobres que, na

    conjuntura de encurtamento das distn-

    cias possibilitada pelo avano tcnico,

    transformaram os portos num ponto de

    passagem no processo de busca de suas

    utopias no alm-mar. Dificuldades de v-

    rios matizes permitiram sua ro tu lao

    como nocivos e/ou perigosos, colocados

    barra a fora como indesejveis, mesmo

    que a maior parte de suas vidas tivesse

    sido passada no Brasil, na maioria dos

    casos, haviam cruzado os mares embala-

    dos pelo sonho de uma vida melhor, su-

    portando, com resignao, as dificulda-

    des da travessia ocenica. Muito diferen-

    te era a viagem de volta, sem utopias ou

    sonhos para o futuro, embarcados para

    pa s e s que j no podiam considerar

    como ptrias, sem a certeza sequer de

    que poderiam desembarcar do outro lado

    do Atlntico."

    N O T A s 1. Arquivo Nacional. SPJ. Mdulo 101, pacotilha IJJ7 169.

    2. Este conceito era utilizado pelos chefes de polcia, na poca estudada, para caracterizar os que se posicionavam margem da sociedade organizada, cujos limites colocavam-se na fron-

    p g . 14, Ju l /dez 1997

  • R V O

    teira entre o trabalho e o no- traba lho . Meste mesmo aspecto, caracter s t ica a p r e o c u p a o constante das elites po l t i cas e de parte significativa da elite intelectual em apartar os anar-quistas, qualificados como agitadores profissionais infiltrados no conjunto da classe trabalha-dora.

    3. Arquivo nacional. SPJ. Mdulo 101, pacotilha IJJ 7 156.

    4. Idem. Pacotilha IJJ 7 132.

    5. Idem. Pacotilha IJJ 7 136.

    6. Idem. Pacotilha IJJ 7 163.

    7. Esta quant i f i cao e s t baseada em s e l e o feita na d o c u m e n t a o que c o m p e o m d u l o 101 do Arquivo nacional relativa a estrangeiros processados e residentes na capital, que totaliza 531 ind iv duos . Esta amostra foi a base principal de tese de doutoramento defendida na USP acerca dos i n d e s e j v e i s , d i s tr ibudos em vadios, mendigos, vigaristas, l a d r e s e gatunos, por n s englobados na categoria freqentadores assduos dos crceres (248), c f t e n s (194) e anar-quistas e/ou comunistas (79), demonstrando que a e x p u l s o na capital brasileira posicionou-se como instrumento global de limpeza social e n o simplesmente como pol t ica direcionada para a p e r s e g u i o p o l t i c o - i d e o l g i c a como tradicionalmente se supunha, neste conjunto, os portugueses representam 45,9% do primeiro grupo; 11,3% do segundo e 59% do terceiro. Ver Len Medeiros de Menezes, Indesejveis desclassificados da modernidade: protesto, crime e e x p u l s o na capital federal (1890-1930), Rio de Janeiro, ESDUERJ, 1997.

    8. Arquivo nacional. SPJ. Mdulo 101, pacotilha IJJ 7 163.

    9. Lima Barreto, Recordaes do escrivo /saias Caminha. S o Paulo, Brasiliense, 1976, p. 166.

    10. Arquivo nacional. SPJ. Mdulo 101, pacotilha IJJ7163.

    11. A noite, 2 de maio de 1914.

    12. Arquivo nacional. SPJ. Mdulo 101, pacotilha IJJ 7 129.

    13. Correio da Manh. 18 de fevereiro de 1917.

    14. Cf. Arquivo nacional. SPJ. Mdulo 101, pacotilha IJJ 7 168.

    15. Idem. Pacotilha IJJ 7 151.

    16. A C o n s t i t u i o Federal, em seu artigo 72, garantia igualdade de direitos a nacionais e estran-geiros residentes.

    17. Brasil, Anais da Cmara dos Deputados de 1920, s e s s o de 12 de agosto. Rio de Janeiro, Imprensa nacional, 1921, p. 504.

    18. Decreto n 1.641, de 7 de janeiro de 1907. Brasil. C o l e o das Leis da Repbl ica , Rio de Janei-ro, Imprensa nacional, 1908.

    19. Sobre o tema, ver Cesare Lombroso e R. Laschi. Crime politique et les revoluttons. Paris, Librairie Flix Alcan, 1892.

    20. Havia uma d i f erenc iao entre e x p u l s o e d e p o r t a o . A primeira atingia os estrangeiros; a segunda, os nacionais enviados para c o l n i a s penais situadas em zonas de fronteira. Ambas conjugaram-se, p o r m , como e s t r a t g i a s c irrgicas complementares no processo de limpeza urbana que acompanhou as reformas urbanas a partir da virada republicana e, mais especifi-camente, depois da a d m i n i s t r a o de Pereira Passos (1902-1906).

    21. A refernc ia a revolta popular contra o decreto de v a c i n a o obr igatr ia ocorrida naquele ano. Sobre o tema, ver, entre outras obras, nicolau Sevcenko, A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes, S o Paulo, Brasiliense, 1984. [Tudo Histria, 89].

    22. Sobre o trfico de brancas no Rio de Janeiro, ver Len M. de Menezes, Os estrangeiros e o comrcio do prazer nas ruas do Rio. Rio de Janeiro, Arquivo nacional, 1992, P r m i o Arquivo nacional de Pesquisa, 2.

    23. Com r e l a o aos relatos acerca de todo o processual da e x p u l s o , ver Everardo Dias, "Mem-rias de um exilado". E p i s d i o s da d e p o r t a o de Everardo Dias contados por ele mesmo Voz do Povo, 20-24 de fevereiro de 1920.

    Acervo. Rio de Janeiro, v. 10, n 2. pp. 03-16, Jul/dez 1997 - p g . 1 5

  • Carla Brandalise Professora do Departamento de Histria

    da Universidade Federal do Rio Qrande do Sul.

    Camisas~\er

  • A C E

    sociais mdios partilhavam um sentimen-

    to de frustrao poltica ensejada ora pela

    percepo da marginalizao poltico-par-

    tidria, ora pela viso do fracasso e de-

    cadncia dos partidos oligrquicos. Em

    termos discursivos, a AIB pretendia orga-

    nizar-se no estado como uma alternativa

    poltico-ideolgica ao tentar objetar as

    formas partidrias vigentes em favor de

    um modo de part icipao radicalmente

    novo. A a tuao dos indivduos no seria

    mais mediada por polticos profissionais

    e influncias oligrquicas. Pelo contrrio,

    iria constituir-se atravs do compromis-

    so e dedicao total ao movimento, por-

    que a p r t i c a po l t i c a t r ad ic iona l

    obstaculizava a expresso do verdadeiro

    interesse do povo, e o voto ocasional e

    secreto impl icava no reduzido

    envolvimento com o destino da nao.

    A partir de Porto Alegre, a AIB expande-

    se pelo interior do estado. Porm, o mo-

    vimento assume um carter estacionrio,

    salvo nas zonas de imigrao italiana e

    a l e m . A i n s e r o do movimento

    integralista no Rio Qrande do Sul, com

    grande ace i t ao em algumas r ea s e

    quase nenhuma em outras, encontra suas

    origens no processo interno de formao

    sociopolt ico. A ocupao territorial do

    estado fez surgir dois tipos bsicos de

    sociedade, os quais, por muito tempo,

    conviveram lado a lado sem maiores

    interaes econmicas e culturais. 2

    A primeira formao social desenvolveu-

    se na regio Sul, na denominada 'zona da

    Campanha', sendo condicionada em seus

    primrdios pelos litgios fronteirios en-

    tre Espanha e Portugal. Tais lutas cons-

    tantes geraram uma soc iedade

    militarizada e autocrt ica, medida pela

    hierarquia da fora. Ao mesmo tempo, foi

    possvel a esta populao aproveitar eco-

    nomicamente o gado se lvagem que

    disseminara-se em larga escala na rea.

    Desta c o m b i n a o caracterizou-se na

    Campanha a figura do 'militar-estanciei-

    ro', que dominava as at ividades eco-

    n m i c a s g a c h a s sob o r eg ime da

    grande propriedade.

    A segunda formao social, de origem mais tardia, estabe-.leceu-se sem a aprovao dos estancieiros locais e por del iberao do

    centro do pas. A partir do incio do scu-

    lo XIX, foram introduzidos no estado os

    imigrantes a lemes e italianos. Eles cons-

    tituram uma sociedade baseada nas pe-

    quenas e mdias propriedades, na pro-

    duo agropastoril diversificada e no tra-

    balho famil iar . A c o l o n i z a o t a l o -

    germnica expandiu-se nas serras do Su-

    deste e na Depresso Central. Entre as

    duas formaes sociais houve, desde o

    incio, um certo antagonismo. Os estan-

    cieiros no apenas constrangiam a fixa-

    o dos colonos europeus em terras im-

    prprias prtica da pecuria extensiva,

    como tambm procuravam desacelerar ou

    mesmo impedir o movimento migratrio.

    Os imigrantes, por sua vez, manifestavam

    uma tendncia ao isolamento, circuns-

    crio a sua prpria cultura, preservando

    os valores da ptria de origem.

    p g . 1 8. Ju l /dez 1 997

  • A C

    mobilizao constante, sua retrica anti-

    ol igrquica e condena t r i a do sistema

    partidrio republicano, encontra nesses

    indivduos campo frtil a sua expanso.

    Apesar das condies socioeconmicas

    favorveis, o interesse pela AIB nas zo-

    nas coloniais no pode ser explicado sem

    a varivel tnico-cultural, sob o risco de

    descaracterizar a complexidade do pro-

    blema. Se o contexto conjuntural da re-

    gio propiciou certos requisitos bsicos

    ao fomento do integralismo, a ques to

    tnica sobredeterminou a sua aceitao.

    Tal especificidade deve ser analisada a

    partir da mo uao que levou estes se-

    tores intermedirios a aderir AIB.

    Quanto aos simpatizantes de origem ita-

    liana e a l em , o movimento no lhes

    atraa enquanto uma forma de resistn-

    cia integrao em sua nova ptria. Pelo

    contrrio, o integralismo aparecia como

    a forma mais vivel de se tornarem 'bra-

    sileiros de fato' atravs da participao na

    vida poltica do pas. A ques to por eles

    reconhecida de que a AIB apresentava

    semelhanas visveis com os movimentos

    fascistas da 'ptr ia-me ' reforava sobre-

    maneira o interesse por esta fora polti-

    ca que se introduzia no estado. Ma sua

    concepo, as realizaes tidas como be-

    nficas do fascismo italiano e do nazismo

    alemo, amplamente divulgadas por pe-

    ridicos especializados, evidenciavam a

    viabilidade da construo de uma nova or-

    dem mundial. O integralismo deveria con-

    cretizar no pas esta ordem, no atravs

    da reproduo pura e simples dos princ-

    E

    pios europeus ou por meio do domnio

    direto da Alemanha ou Itlia sobre o Bra-

    sil , mas pela valorizao au tnoma das

    potencialidades e caracters t icas nacio-

    nais. Os integralistas de descendncia ale-

    m ou italiana admiravam os movimen-

    tos considerados como correlatos em

    seus pases de origem, porm a nao

    brasileira deveria engendrar a sua 'rege-

    nerao ' e ' t ransformao' de modo in-

    dependente, com a exaltao das tradi-

    es e costumes do pas. Mo havia, as-

    sim, a princpio, contradio entre o dis-

    curso nacionalista da AIB e a descendn-

    cia tnica desses adeptos. Messe sentido,

    as lideranas do integralismo no Rio Qran-

    de do Sul prezavam de forma pblica e

    aberta os movimentos europeus, contra-

    riando a cpula nacional que procurava

    geralmente n o incorrer numa asso-

    c i ao direta.

    O conjunto desses fatores revela-se nos

    depoimentos prestados pelos adeptos do

    integralismo. Para o caso da zona a lem'

    so representativas as reflexes do chefe

    municipal da AIB da cidade de Qramado,

    Alcides Arendt, para quem:

    O integralismo teve r e c e p o fcil na

    zona de c o l o n i z a o a l e m porque a

    Alemanha naquela p o c a tinha o nazis-

    mo. Durante o integralismo eu via com

    simpatia o Hitler em muitas coisas, n o

    que q u e r a m o s imitar, o nosso movi-

    mento surgiu como um movimento in-

    d g e n a , o objetivo de Pl n io Salgado

    nunca foi imitar. A luta do integralismo

    era de formar, educar a juventude. O

    p g . 20 . Ju l /dez 1 997

  • V o

    Hitler fez coisas boas, levantou a Ale-

    manha organizando o trabalho.*

    Oprojeto, de acordo com Arendt, era introduzir os pontos altos do nazismo, como o corporativismo, a valorizao da autori-

    dade e do trabalho, o combate ao libera-

    lismo e ao comunismo, sem a interfern-

    cia da Alemanha. Outros militantes cre-

    ditavam confiabilidade AIB pela identi-

    ficao direta que faziam entre o movi-

    mento e o nazismo, reconhecendo a au-

    tonomia do integralismo. Este o caso

    do professor Maximiliano Hahan, da cida-

    de de Canela, que revela:

    ... falando a verdade, eu entrei na AIB

    por causa do nazismo. O integralismo

    era da mesma ordem, a disciplina, as

    mi l c ias , o corporativismo. E Hitler sal-

    vou a Alemanha do caos. Hitler era ver-

    dadeiramente um grande homem, mas

    eu preferia o Plnio. O Hitler era muito

    violento. As id ia s do Plnio eram mui-

    to superiores ao nazismo. O

    integralismo queria justamente o patri-

    otismo. 5

    Ao mesmo tempo, o visvel crescimento

    da AIB nas reas coloniais chama a aten-

    o das autoridades pblicas que logo

    desencadeiam uma onda de represso ao

    movimento. Flores da Cunha, e n t o

    interventor do estado e lder do partido

    governista, o Partido Republicano Liberal

    (PRL), n o pretendia renunciar ao

    enquadramento e ao rgido controle das

    suas bases eleitorais nesta zona, cada vez

    mais indispensveis na disputa poltica

    intra-oligrquica. Um dos momentos cul-

    minantes da prtica coercitiva ocorreu em

    fevereiro de 1935 por ocasio de um gran-

    de encontro estadual de integralistas na

    cidade de So Sebastio do Cai, regio

    de imigrao alem. Durante uma passe-

    ata, que contou com mais de trezentas

    pessoas, houve um tumulto, com troca de

    tiros entre a polcia e os militantes. O sal-

    do foi a morte de dois policiais e de um

    ativista. O prefeito do Cai, Morais Forte

    (PRL), denunciou os integralistas por tu-

    multuar a cidade e provocar o incidente,

    pois teriam comparecido ao desfile forte-

    mente armados. Argumentava tratar-se de

    agitadores dirigidos por elementos es-

    trangeiros, representando uma ameaa na

    medida em que atacavam o governo, o

    Exrcito e as instituies republicanas, rio

    seu relato a Flores da Cunha, o prefeito

    revela que prendera mais de cinqenta

    pessoas, porque "... a concentrao aqui

    realizada tinha por fim menosprezar as

    autoridades locais devido a uma repres-

    so feita no interior do municpio num

    ncleo integralista que estava atentando

    contra a ordem". 6 O chefe municipal da

    AIB, o mdico Metzler, confirma em parte

    o objetivo da passeata. Ha sua verso,

    pretendia-se prestar solidariedade pac-

    fica aos integralistas da vila de liova

    Petrpolis, pois estes teriam sofrido vio-

    lncia injustificada por parte das autori-

    dades:

    Devido ao incremento tomado pelas

    nossas i d i a s , o prefeito do m u n i c p i o

    c o m e o u a perseguir todos os

    integralistas de Mova Petrpol is . Em vis-

    Acervo. Rio de Janeiro, v. 10. n 2. pp. 17-36. jul /dez 1997 - p g . 2 1

  • ta disso, a chefia provincial resolveu

    fazer um grande desfile no Cai para dar

    uma demonstrao de apoio moral aos

    perseguidos.7

    Apesar dos esforos do chefe nacional,

    Plnio Salgado, para que fosse mantida no

    Rio Qrande do Sul a liberdade de expres-

    so, o interventor Flores da Cunha decla-

    ra ser a AIB perniciosa segurana inter-

    na do estado. Probe, desta maneira, o uso

    da camisa-verde' (smbolo do movimen-

    to), as passeatas, os comcios e as mani-

    festaes em lugares pblicos. Pela reso-

    luo, as reunies ficavam limitadas s

    sedes integralistas. Isto restringia a pro-

    paganda da AIB, que utilizava teatros e

    cinemas para congregar o maior nmero

    de pessoas. Sem a evoluo das milcias

    organizadas, com seus tambores e hinos,

    tirava-se do integralismo o apelo visual,

    to importante na divulgao da doutrina.

    lia perspectiva da acirrada compet io

    pelo espao poltico na zona colonial que

    se estabeleceu entre a AIB e o PRL, o caso

    de Nova Petrpolis revela-se interessan-

    te. O subdistrito da cidade do Cai, uma

    pequena comunidade de imigrao ale-

    m voltada basicamente para a produo

    rural, apresentava um elevado ndice de

    adeso ao integralismo. Dados oficiais do

    movimento contabilizavam 320 inscritos

    no subncleo local, resultado este obtido

    pelos esforos do professor Straatman,

    que propagava o integralismo enquanto

    ensinava p o r t u g u s aos agricultores.

    Como elemento a incentivar o interesse

    pelo novo partido, estava o fato de os co-

    lonos visualizarem a possibilidade de

    romper com a exigncia das autoridades

    estaduais quanto ao voto compulsrio no

    partido situacionista, no caso, o PRL. Em

    poca de eleio garantia-se o voto do pe-

    Plnlo Salgado |centro| e Integralistas. Petrpolis (RJ), maro de 1935. Correio da M a n h , Arquivo Nac iona l .

    p g . 22 . Ju l /dez 1997

  • V o

    queno agricultor com prticas compensa-

    trias ou repressivas. Aps a votao, era

    oferecido o 'churrasco eleitoral', como des-

    creve Felipe Stahl, "quando a gente chega-

    va ao local de votao, recebia-se as cha-

    pas... Elas j estavam prontas. Havia fis-

    cais mas tudo j estava combinado. A gen-

    te votava e da podia comer o churrasco".8

    Caso fosse descoberta uma ao contrria,

    as autoridades policiais no tardavam a

    desencadear a represso, como atesta o

    depoimento de Irmgard Schuch:

    A urna ficava num canto fechado com um

    pano, a pessoa ia l (...) em cima do s-

    to fizeram um furo e o cara deitado ali

    com o olho no furo, ele olhava que chapa

    o cara botava no envelope, se botava a

    chapa certa, ele saa, se o cara botava a

    chapa errada, deixava cair um pouco de

    farinha no chapu ou na camisa, e a

    quando o cara chegava na rua e tinha fa-

    rinha de trigo, ele entrava no lao.'

    Tal estado de coisas, vigente na Repblica

    Velha, permaneceu como regra na dcada

    de 1930. Com a chegada da AIB, ensaiou-

    se uma resistncia, onde as 'chapas pron-

    tas' eram discretamente trocadas pela cha-

    pa dos in tegral is tas . A e x i s t n c i a do

    integralismo, no entanto, estava longe de

    ser um consenso entre esta mesma popu-

    lao seja pelo assim considerado carter

    de fana t i smo, seja pe la a s s o c i a o

    com o movimento nazista. Straatman

    era acusado de o rgan iza r a m i l c i a

    integralista nos moldes da fora de cho-

    que do nazismo a l e m o e de cultuar a

    imagem de Hitler. E, ainda, de acordo

    com relato de Elisabeth K. Evers:

    Quando algum no queria mais

    acompanhar, sua ficha e sua camisa-

    verde eram queimadas sob maldio.

    Os que saam eram evitados pelos

    outros. Os integralistas no pagavam

    imposto algum, nem contribuio

    para comunidade, nem taxas escola-

    res. Mas festas mais simples ou nos

    cultos dominicais apareciam os cha-

    mados camisas-verdes, fechados, em

    uniformes, eles marchavam para den-

    tro e ficavam l (...) notava-se clara-

    mente como o partido aumentava em

    nmero aqui em nosso municpio e

    estavam conscientes de sua fora.1 0

    Para efeito de comparao, observa-se

    que este quadro conjuntural se manifes-

    ta em outra importante zona de imigra-

    o alem, no estado de Santa Catarina.

    Em relatrios enviados a Roma, 1 1 o en-

    t o embaixador i ta l iano no Bras i l ,

    Roberto Cantalupo, descreve o "parti-

    cular desenvolvimento" do integralismo

    naquele estado, onde nas eleies de

    1935 o movimento teria vencido em oito

    municpios sobre 11, contando em suas

    fileiras com maioria absoluta de descen-

    dentes de a lemes . Segundo Cantalupo,

    vrios eram os fatores que explicavam

    esta rpida expanso, entre eles o de-

    sejo desses militantes em implantar um

    sistema social baseado na ordem, justi-

    a e honestidade; o medo do comunis-

    mo que poderia fazer sua violenta

    irrupo no pas e a questo racial, onde

    "no seria uma questo de raa, mas an-

    Acervo. Rio de Janeiro, v. 10. n 2. pp. 17-36. Jul/dez 1997 - p g . 2 3

  • A , C E

    tes uma questo de mentalidade com uma

    natural simpatia pelos regimes fascista e

    nacional-socialista". Segundo sua anli-

    se, os integrantes da AIB poderiam sem-

    pre contar com o clero "que faz constan-

    te e metdica obra de propaganda em

    favor do integralismo, protegendo os va-

    lores da religio". For todas essas razes,

    a ses so catarinense da AIB representa-

    ria "uma reserva moral" na influncia dos

    outros estados.

    A nfase tnica e a identificao com o

    nazi-fascismo dada pelo embaixador con-

    firma-se no depoimento dos militantes de

    Santa Catarina. Segundo o secretrio de

    imprensa da AIB, Enrico Muller:

    Havia em Blumenau certa t e n d n c i a de

    aceitar o integralismo pela semelhan-

    a com o nazismo. Quando um c i d a d o

    descende de uma outra raa , de um

    outro pais, ele, se uma pessoa de

    acordo, de exata c o n s c i n c i a , tem sim-

    patia (...) a maioria tinha simpatia pela

    Alemanha, pelo Hitler, era natural."

    Todavia, t ambm para Muller, a AIB era

    um movimento singular e au tnomo j

    que a doutrina integralista seria "... pu-

    ramente brasileira, com origens na nos-

    sa histria, adaptada ao povo brasileiro,

    lio era um movimento estrangeiro, ns

    pregvamos justamente a integrao, en-

    s invamos aos operr ios e aos colonos o

    hino nacional". As mesmas concepes

    aparecem no depoimento de Jos Ferreira

    da Silva, en to secretrio de Educao e

    Cultura da AIB em Blumenau:

    O clima aqui era de simpatia com os

    movimentos europeus. lio p r i n c p i o

    parecia uma s a l v a o . Hitler tinha pres-

    t g io no mundo inteiro, n s aqui s e n t -

    amos esta inf lunc ia . A c h v a m o s que

    um regime que era bom para um p a s

    que j contava com mil anos de exis-

    t n c i a , t a m b m seria bom aqui. Mas

    n o se pode falar em simbiose entre

    integralismo e nazismo. Havia certas

    afinidades. 1 3

    C omo c a r a c t e r s t i c a s comuns Ferreira da Silva aponta a ten-d n c i a an t i - semi ta , o corporativismo, a representao classista,

    a estrutura organizativa, o antiliberalismo,

    a indumentria, a estrutura paramilitar e,

    principalmente, afirma que "o nazismo e

    o integralismo eram espiritualistas".

    Deixando Santa Catarina e dirigindo o

    foco de anlise para as zonas de coloni-

    zao italiana do Rio Qrande do Sul,

    possvel, mais uma vez, constatar uma co-

    incidncia de valores quanto s motiva-

    es de adeso AIB. Em relao ao ca-

    rter de participao poltica alternativa

    oferecido pelo integralismo, um artigo do

    militante Lus Compagnoni, publicado em

    fevereiro de 1935 no jornal do movimen-

    to, O Bandeirante, em Caxias do Sul, re-

    vela o desagrado com a onipotncia dos

    partidos tradicionais. Estes s se interes-

    sariam em quantificar votos em pocas

    eleitorais, menosprezando os problemas

    da comunidade aps a vitria nas urnas.

    A AIB, inversamente, permitiria a repre-

    sentao direta das demandas locais. Isto

    porque a organizao interna e os assun-

    p g . 2 4 . Ju l /dez 1997

  • V o

    tos prioritrios para o movimento depen-

    deriam, antes, do consenso e da partici-

    pao de todos os seus membros e no

    apenas de alguns poucos l de r e s . O

    integralismo, por fim, representaria a

    t ranscendncia da simples politicagem

    regional:

    n s representamos muito mais que a

    i m p l a n t a o de um regime pol t ico . Um

    camisa-verde que passa uma consci-

    n c i a reta e pura que serve de conde-

    n a o imoralidade, c o r r u p o . O

    povo v em n s o restabelecimento do

    equi l br io e da harmonia na vida mo-

    ral, e c o n m i c a e cultural. O povo sabe

    que n o estamos neste movimento para

    obter vantagem material (...) no atual

    regime n i n g u m deposita conf iana _e

    dos homens que dele fazem parte pou-

    cos se salvam. a n s , exclusivamente

    a n s , que cabe a tarefa de expurgar,

    de varrer, de demolir, de construir, de

    aprovar e de desaprovar."

    Da mesma forma, a aproximao entre

    integralismo e fascismo justifica-se pelas

    conquistas j empreendidas pelos movi-

    mentos europeus. Segundo o depoimen-

    to de um ativo militante local, Oswaldino

    rtico:

    O integralismo parecido com o fas-

    cismo. Aqui todo mundo achava, as idi-

    as, o uniforme, a o r g a n i z a o do movi-

    mento. Mussolini fez muita coisa pela

    Itlia, tornou o pa s moderno, tirou da

    misr ia o povo italiano, antes eles ti-

    nham que sair do pa s , ir embora; de-

    pois tinha trabalho e riqueza para to-

    dos. O integralismo poderia ter feito o

    mesmo pelo Brasil, tirar o povo da mi-

    sr ia , dar trabalho para todo mundo,

    naquela p o c a o fascismo e o nazismo

    estavam em grande xito no mundo, por

    isso n o havia argumento contra n s .

    nossos a d v e r s r i o s eram obrigados a

    ver isto. 1 5

    O processo de organizao oficial da Ao

    Integralista na rea de imigrao italiana

    efetuou-se a partir da principal cidade da

    regio Caxias do Sul, propagando-se

    rapidamente pela zona rural. Essa rea

    concentrou o maior nmero de adeptos

    no estado e foi a base do movimento po-

    ltico de oposio por excelncia devido,

    entre outras coisas, ausncia de outro

    partido oposicionis ta com represen-

    tat ividade. A grande e x p a n s o do

    integralismo entre os pequenos produto-

    res rurais dependeu no somente de uma

    atitude centrpeta maior em relao cul-

    tura originria italiana, mas tambm da

    influncia decisiva do clero catlico, em

    part icular da C o n g r e g a o dos

    Capuchinhos.

    O assentamento dos colonos italianos no

    Sul do p a s , in ic iado em 1875 e

    direcionado encosta superior do nordes-

    te, rea de difcil acesso e coberta de in-

    tensa vegetao, bem como o descaso das

    autoridades governamentais concorreram

    para confinar os imigrantes a um quase

    total isolamento, condio esta reforada

    pela heterogeneidade do grupo. Vindos de

    diferentes regies da Itlia, com costu-

    mes e dialetos prprios, os colonos nem

    Acervo. Rio de Janeiro, v. 10. n 2. pp. 17-36, Jul/dez 1997 - p g . 2 5

  • A C E

    mesmo associavam-se entre si com faci-

    lidade. Assim, foi a religio comum, o

    catolicismo, que acabou desempenhando

    o elo preponderante na interao socio-

    cultural. Tal papel, obviamente, conferiu

    Igreja um poder ainda maior de persu-

    aso sobre seus fiis. O desenvolvimento

    da regio colonial, com a abertura de es-

    tradas e o crescimento da indstria e do

    comrcio, fez com que esta influncia di-

    minusse consideravelmente o fluxo de

    novos contatos culturais nos centros ur-

    banos, lia rea rural, no entanto, a insti-

    tuio mantm a sua importncia origi-

    nria, sendo os freis capuchinhos os mais

    atuantes. Alm de manter ncleos de ins-

    t ruo religiosa, voltados basicamente

    para os filhos dos pequenos agricultores,

    a Ordem possua um destacado rgo de

    imprensa, o per idico Stafetta

    Riograndense, publicado em italiano. O

    j o r n a l , segundo depoimento de frei

    Alberto,

    (...) era oporta-voz da c o l n i a . O

    jornal va-

    m c i o .

    e n t r e

    lia mais do que um co-

    liavia naquela p o c a

    15 mil a 20 mil assi-

    naturas, mas o n -

    mero de

    leitores era muito maior. Os que sabi-

    am ler, liam para os que n o sabiam

    ou contavam as n o t c i a s . O jornal era

    distr ibudo a t por o c a s i o da missa do-

    minical, era levado a t a igreja. 1 8

    Influenciados pela adeso manifesta do

    clero da Itlia ao regime de Mussolini, os

    capuchinhos no s acolheram este sis-

    tema poltico, como associaram-no ao

    integralismo, o qual representava, para os

    freis da Ordem, o fascismo brasileiro. A

    AIB pretenderia defender os mesmos prin-

    cpios, ou seja, lutar pela grandeza da

    ptria e da famlia, e estruturar-se de

    acordo com as leis de Deus. Em janeiro

    de 1934, o Stafetta apresenta o novo mo-

    vimento:

    A Ao Integralista Brasileira tem suas

    primeiras m a n i f e s t a e s no estado,

    com a r e a l i z a o de um primeiro en-

    contro em Porto Alegre (...) o

    integralismo fascismo, mas um fas-

    cismo com carter nacional. O progra-

    ma do partido n o apenas d um lugar

    de honra re l ig io , mas nela que se

    inspira. 1 7

    Pelo testemunho de Carlos Fabris, pode-

    se observar que os pequenos produtores

    rurais endossaram.

    -jil-jil

    Porto Alegre em agosto de 1935. Correio da M a n h a , Arquivo Nacional .

    p g . 2 6 . Ju l /dez 1997

  • R V

    Eu era fascista (...) andava de camisa

    preta, pregava no meu povoado em

    C o n c e i o . Mas, e n t o veio o

    integralismo e n s p e n s v a m o s que era

    a mesma coisa e fomos para o

    integralismo, nosso, brasileiro e n t o ,

    com o Plnio Salgado. 1 8

    Ou ainda, a associao entre os dois mo-

    vimentos evidenciada no relato de frei

    Veronese:

    A AIB foi muito aceita na zona italiana,

    com facilidade o colono recebeu o

    integralismo, pois havia o exemplo do

    fascismo italiano. Mussolini, enquanto

    n o desbordou de seu sentido, tinha

    belas i d i a s , fez muito pela Itlia, de-

    senvolveu a agricultura, o trigo. Depois

    desbordou... Havia muita simpatia por

    Mussolini na zona italiana. 1 9

    O apoio dado ao integralismo pela Ordem

    dos Capuchinhos e, de resto, por mem-

    bros de todo o clero brasileiro deveu-se

    no s simpatia com o fascismo italia-

    no, mas tambm a uma convergncia de

    idias. A anlise da realidade brasileira e

    das possveis so lues aos problemas

    nacionais eram semelhantes. Da mesma

    forma que a AIB, a Igreja catlica consi-

    derava serem responsveis pela situao

    crtica do pas o enfraquecimento do prin-

    cpio de autoridade, a carncia de leis

    constitucionais, a fraqueza da hierarquia

    e da ordem e a infiltrao comunista. So-

    bretudo esse ltimo fator, o suposto pe-

    rigo iminente do comunismo, alterava a

    classe sacerdotal. Medidas urgentes de-

    veriam ser tomadas para evitar a propa-

    gao daquela ideologia. Ma viso da Igre-

    ja , o comunismo avanava sem t rguas e

    para destru-lo no bastava reprimir as

    suas manifestaes. Era preciso eliminar

    quaquer foco que pudesse favorec-lo,

    como a injustia social e econmica. As

    disposies gerais do integralismo eram

    apontadas como a grande esperana de

    transformao nacional. Tratava-se de um

    movimento que obedeceria o ideal da ver-

    dade, da liberdade, da disciplina e do

    nacionalismo. Num mundo subordinado

    aos problemas de ordem material, onde

    as correntes polticas agiam luz de pro-

    blemas imediatistas e os princpios mo-

    rais eram relegados a segundo plano, os

    postulados cristos integralistas poderi-

    am reconduzir a humanidade a seus al-

    tos destinos, afastando-a, portanto, do

    atesmo comunista. Combater as maze-

    las sociais, nessa perspectiva, significava

    tambm incentivar a populao a exercer

    seu poder de voto:

    O lugar dos c a t l i c o s e de todos os bra-

    sileiros que ainda amam a integridade

    da ptria na batalha das urnas em

    defesa da nossa t rad io . . . A re l i g io

    n o impede nem i m p e a a d e s o dos

    c a t l i c o s ao integralismo (...) mas pode

    ser de grande alcance ao futuro do Bra-

    sil que ingressem no movimento os

    c a t l i c o s leigos que tenham v o c a o

    p o l t i c a . 2 0

    Aos que acusassem os rel igiosos de

    extrapolar suas funes ao imiscuir-se em

    atividades polticas, os freis capuchinhos

    alegavam que o estgio a que chegara o

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 10. n 2, pp. 17-36, jul /dez 1997 - p g . 2 7

  • A C E

    fascismo italiano fora alcanado principal-

    mente com a ajuda do clero. Este traba-

    lhara junto ao povo, incentivando-o a

    melhorar seu sistema de cultura, instru-

    indo-o e dando o exemplo direto. O go-

    verno nacional deveria, portanto, seguir

    o exemplo e aproveitar a vlida coopera-

    o dos padres. Por fim, o integralismo

    encampava uma defesa cara Igreja ca-

    tlica, a defesa do sistema corporativo, o

    qual era considerado o modo ideal de

    organizao poltica. As corporaes es-

    tabeleceriam a paz e a just ia, diminuin-

    do os conflitos entre patres e emprega-

    dos; objetivando a composio orgnica

    da sociedade, eliminariam as lutas de

    classe. Frente a tal comunho de interes-

    ses, a AIB aparecia como uma alternativa

    vivel na resoluo dos impasses nacio-

    nais, como demonstra o depoimento de

    frei Alberto:

    Quando surgiu o integralismo houve

    grande receptividade... no clero secu-

    lar a maior ia era s i m p t i c a ao

    integralismo, devido ao lema 'Deus,

    Ptria e Faml ia' . Atravs do Stafetta

    e n d o s s v a m o s com grande e s p e r a n a

    as i d i a s do integralismo, pois acredi-

    t v a m o s que seriam capazes de endi-

    reitar o Brasil, e n t o em crise. Isto n o

    era s exprimido em palavras, havia

    t a m b m um certo ar de ufanismo. Ha-

    via a c o n v i c o , aqui no Rio Grande do

    Sul, de que o integralismo iria triunfar.21

    lieste quadro favorvel, os 'camisas-ver-

    des' da cidade empenhavam-se em refor-

    a r a propaganda j feita pelos

    p g . 28 . Ju l /dez 1997

    capuchinhos na zona rural. Quando os

    integralistas da sede chegavam para alar-

    dear a nova causa, encontravam invaria-

    velmente grupos de pessoas predispos-

    tas converso imediata. Tratava-se, en-

    to, de oficializar o trabalho de divulga-

    o feito pelo clero. Referindo-se a essa

    fase, o integralista cidadino Oswaldino

    rtico comenta:

    Ns p a s s v a m o s os domingos envolvi-

    dos com isto. a m o s todos depois da

    missa falar e distribuir folhetos. De ix-

    vamos l i d e r a n a s locais encarregadas

    de organizar o movimento. a m o s em

    dois ou trs c a m i n h e s cheios de 'ca-

    misas-verdes'. Era um movimento ca-

    t l ico e aqui r a m o s todos c a t l i c o s . A

    Igreja nos recebia muito bem, r a m o s

    um b a t a l h o de frente da Igreja. As idi-

    as nos empolgavam, a linguagem era

    diferente, falava-se em modernidade,

    civismo... Em Garibaldi, o movimento

    n o estava organizado , eu e o

    Compagnoni fomos l fazer propagan-

    da, depois da missa d i s t r i b u m o s folhe-

    tos. Mas j estavam todos esperando

    por n s , pelo movimento. 2 2

    A relao estabelecida entre o fascismo

    italiano e o 'fascismo nacional' ajudou o

    integralismo na canalizao das hostilida-

    des latentes destes colonos a muitas d -

    cadas de descaso das autoridades muni-

    cipais e estaduais. A AIB aparecia como o

    movimento poltico que lhes proporcio-

    naria melhores c o n d i e s de v ida ,

    ensejando, para tanto, a participao nas

    atividades partidrias da regio. Os colo-

  • V o

    nos acreditavam ter encontrado na AIB

    uma forma de manifestao de seus di-

    reitos frente aos partidos tradicionais.

    Com dificuldades nas tcnicas de plantio,

    problemas de escoamento da produo

    conjugados com os baixos preos dos pro-

    dutos agrcolas, os pequenos agriculto-

    res desconfiavam da assim denominada

    'poltica dos brasileiros' que pouco con-

    tribua para a soluo de seus problemas.

    A desa teno e a represso por parte das

    autoridades governamentais diminura o

    interesse poltico dos colonos. Sem fide-

    lidades partidrias enraizadas e mesmo

    avessos aos partidos regionais, constitu-

    am-se num pblico em disponibilidade

    poltica, lias palavras de frei Dionsio

    Veronese:

    lio interior, na zona rural, n o havia

    partido. O colono n o se ligava a ne-

    nhum partido. Mo tinha interesse na

    pol t ica do p a s . Sua vida era cuidar da

    faml ia, do trabalho. Para eles a polt i -

    ca era c o n f u s o , n o queriam se meter

    em c o n f u s o . O pouco contato que ti-

    nham com a pol t ica nacional s decep-

    cionava os colonos. O fato era que o

    colono sentia-se muito prejudicado pela

    falta de c o n d i e s , de transportes, de

    conhecimentos. As melhorias n o che-

    gavam na c o l n i a . A polt ica partidria

    em nada adiantava para o colono, fo-

    ram muito mal tratados. Se tinham que

    votar, votavam e pronto. Havia muita

    r e p r e s s o , perseguiam e matavam."

    Por sua vez, entre o pequeno grupo urba-

    no responsvel pela organizao local da

    AIB, a doutrina e o sentido poltico do

    novo movimento eram objeto de anima-

    do debate. Tais lderes, em geral empre-

    gados especializados do comrcio e da in-

    dstria, acreditavam que o integralismo

    prosseguia os ideais da Revoluo de

    1930, dando ao episdio o seu verdadei-

    ro significado. Decepcionados com os ru-

    mos da poltica nacional na conjuntura do

    ps-1930, classificavam uma outra revo-

    luo, a Constitucionalista de 1932, como

    o momento revelador da ca rnc ia de

    substrato ideolgico das elites dirigentes

    do pas. Essas visualizariam na prtica

    partidria apenas a obteno de vanta-

    gens e proveitos pessoais. Em meio a

    busca de alguma manifestao poltica

    que lhes atrasse, haviam, inclusive, fler-

    tado com o comunismo, julgado pelo gru-

    po, em ltima anlise, como por demais

    violento e materialista. J as concepes

    e os partidos liberais apareciam como 'an-

    tigos', 'ultrapassados', desti tudos de va-

    lor com seus 'polticos profissionais'. Sen-

    do esses ltimos responsveis por todas

    as mazelas e entraves nacionais, no

    mereceriam confiana. Ao invs disso, o

    integralismo, conhecido atravs dos jor-

    nais, expressaria uma 'mudana de men-

    talidade', um 'partido dotado de unidade

    de idias' e, acima de tudo, o primeiro

    partido que surgia no mundo fundamen-

    tado numa 'filosofia espiritualista'. Em

    contraposio ao agnosticismo comunis-

    ta, defendia a crena em Deus. Da mes-

    ma forma, o grupo era receptivo quanto

    identificao entre a AIB e os movimen-

    tos europeus.

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 10, n 2. pp. 17-36. Jul/dez 1997 - p g . 2 9

  • A C E

    Para Arthur Rech, militante do grupo, as

    ligaes entre o integralismo e o fascis-

    mo eram evidentes e positivas, pois mos-

    travam a universalidade de uma idia, de

    uma doutrina que deveria vingar no mundo:

    Mesmo sendo os movimentos da mes-

    ma ordem, n o q u e r a m o s uma identi-

    f icao direta, nossa m i s s o era com o

    Brasil. O verde simbolizava a terra bra-

    s i le ira . Q u e r a m o s ser pessoas

    marcadas na sociedade pelo exemplo:

    virtude, religiosidade, disciplina, amor

    pelo trabalho, isto o integralismo pre-

    gava. Q u e r a m o s tudo nativo, r a m o s

    brasileiros e n o italianos. Os imigran-

    tes passaram a aderir camisa-verde,

    deixaram de usar a camisa-parda. O

    nosso movimento era melhor, era mais

    d e m o c r t i c o . "

    O ponto focai de interesse do grupo re-

    pousava antes no que era percebido como

    um apurado sentido nacionalista da AIB,

    preocupada com assuntos de toda a na-

    o e concebendo a idia de partido na-

    cional ' , longe, portanto, das ambies

    restritivas e dos imediatismos dos parti-

    dos regionais. O comunismo, mais uma

    vez, ia de encontro a esses princpios,

    mostrando-se 'internacionalista'. Assim,

    dentro do quadro poltico da poca, a AIB

    teria se mostrado ao grupo como a op-

    o mais promissora.

    entusiasmados com a numerosa adeso

    ao movimento na zona rural, com o apoio

    de uma parcela do clero e com a sempre

    crescente insero na prpria zona urba-

    na, os integralistas articulam-se para as

    eleies municipais de 1935. Como ban-

    deira eleitoral, a moralidade e o controle

    dos gastos pblicos: combatiam o aumen-

    to de impostos, a criao de novas tribu-

    taes e a proliferao de funcionrios;

    defendiam a no sobrecarga de impostos

    aos colonos agricultores e a poltica do

    equilbrio oramentrio, com a compres-

    so de todos os gastos. Para um partido

    que havia se organizado em apenas um

    ano na regio, os resultados do pleito

    eleitoral foram extremamentes favorveis,

    sendo os melhores que o partido obteve

    no estado. A AIB elegeu em Caxias do Sul

    trs vereadores, Arthur Rech (represen-

    tante comercial), Humberto Bassanesi

    (empregado do comrcio) e Emlio Pezzi

    (comerciante), contra quatro vereadores

    do partido situacionista, o PRL, equipa-

    rando praticamente o pblico de eleito-

    res. Ha votao geral, os vereadores do

    PRL receberam 1.470 votos enquanto os

    vereadores da AIB obtiveram 1.218. 2 5

    A partir desse resultado e da atuao sem-

    pre contrastante dos vereadores

    integralistas na cmara municipal, a hos-

    tilidade do partido governista, a t en to

    relativamente contida em funo da pre-

    sena do clero nas fileiras da AIB, tornou-

    se ostensiva. As rivalidades latentes tor-

    naram-se e x p l c i t a s e o movimento

    integralista passou a ser alvo de ataques

    constantes que visavam desacredi t- lo ,

    pondo em dvida suas atitudes e seu ca-

    rter. O PRL procurava identificar a AIB

    ao comunismo, explicando que, em am-

    bos os movimentos, o governo deixava de

    ser uma expresso da vontade da maio-

    p g . 3 0 . j u l / d e z 1997

  • R V O

    ria. Passava, antes, a representar apenas

    os interesses de uma oligarquia, que im-

    punha o seu poder atravs da violncia e

    da fora. Da mesma forma, a AIB acu-

    sada de servir aos propsitos do fascis-

    mo italiano, preparando as condies

    i n f i l t r a o es t rangeira no p a s . Os

    integralistas seriam apenas verses mal

    acabadas dos fascistas europeus, condu-

    zidos por um mitomanaco disfarado de

    salvador: Plnio Salgado, lia verdade, de-

    nunciavam, a AIB teria se afirmado com-

    batendo os operrios, os negros, os ju -

    deus, a democracia, a liberdade e a inte-

    ligncia. Era, portanto, um movimento

    perigoso, destitudo de respeitabilidade e

    motivado por intenes escusas. Parecia,

    assim, incompreensvel o apoio que a

    Igreja oferecia AIB. O jornal oficial do

    PRL colocava nesses termos a considera-

    da ingenuidade do clero:

    A Igreja aconselha a i m p l a n t a o do

    integralismo no Brasil. Que s igni f icar

    a palavra Deus na p r t i c a do

    integralismo o dia em que ele estiver

    no poder? Por ventura, Mussolini j n o

    a m e a o u a Igreja? Os regimes

    m i n o r i t r i o s jamais p o d e r o tolerar

    uma Igreja prestigiosa e popular, lia de-

    mocracia nada tem a Igreja a temer. A

    legenda integralista 'Deus, Ptria e Fa-

    mlia' mais um engodo. 2 8

    Em editorial, O Momento aponta quais ser iam as r a z e s de a d e s o ao

    integralismo. De acordo com sua viso,

    muitas pessoas eram atradas ingenua-

    mente em funo da novidade poltica, da

    oportunidade de aparecer, da falcia dos

    postulados morais. Porm, as l ideranas

    Exposio anti-Integralista no Teatro Municipal . Rio de Janeiro, outubro de 1957. Correio da M a n h , Arquivo Nacional .

    Acervo. Rio de Janeiro, v. 10. n 2, pp. 17-36. Jul/dez 1997 - p g . 3 1

  • A C E

    que difundiram o movimento na regio

    seriam indivduos condenados ao ostra-

    cismo por evidente falta d