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VALADARES EM FAMíLIA: EXPERIêNCIAS ETNOGRáFICAS E DESLOCAMENTOS IGOR JOSé DE RENó MACHADO (ORG.)

Valadares em Família: experiências etnográficas e família

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Livro sobre a migração a partir de Governador Valadares

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  • Valadares em famlia:

    experincias etnogrficas

    e deslocamentos

    Igor Jos de ren Machado (org.)

  • 2www.abant.org.br

    Universidade de Braslia. campus Universitrio darcy ribeiro - asa norte. prdio multiuso ii (instituto de cincias sociais) trreo - sala Bt-61/8.

    Braslia-df cep: 70.904-970. telefax: 61 3307-3754.

    COMISSO DE PROJETO EDITORIAL

    Coordenador

    antnio motta (Ufpe)

    cornelia eckert (Ufrgs)

    peter fry (UfrJ)

    igor Jos de ren machado (Ufscar)

    Coordenador da coleo de e-books

    igor Jos de ren machado

    Conselho Editorial

    alfredo Wagner B. de almeida (Ufam)

    antonio augusto arantes (Unicamp)

    Bela feldman-Bianco (Unicamp)

    carmen rial (Ufsc)

    cristiana Bastos (ics/Universidade de lisboa)

    cynthia sarti (Unifesp)

    gilberto Velho (UfrJ) - in memoriam

    gilton mendes (Ufam)

    Joo pacheco de oliveira (museu nacional/UfrJ)

    Julie cavignac (Ufrn)

    laura graziela gomes (Uff)

    llian schwarcz (Usp)

    luiz fernando dias duarte (UfrJ)

    ruben oliven (Ufrgs)

    Wilson trajano (UnB)

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA

    Diretoria

    Presidente

    carmen silvia rial (Ufsc)

    Vice-Presidente

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    Secretrio Geral

    renato monteiro athias (Ufpe)

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    Tesoureira Geral

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    Tesoureira Adjunta

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    Diretor

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    Diretora

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    Diretora

    Heloisa Buarque de almeida (Usp)

    Diretor

    carlos alberto steil (Ufrgs)

    Diagramao e produo de e-book

    mauro roberto fernandes

    Revisopaula sayuri Yanagiwara

  • 3Valadares em famlia:experincias etnogrficas e deslocamentos Igor Jos de ren Machado (org.)

  • M1491v

    Machado, Igor Jos de RenIgor Jos de Ren Machado (Org.). Valadares em famlia: experincias etnogrficas e deslocamentos; Braslia - DF: ABA, 2014.

    1 MB ; pdf

    ISBN 978-85-87942-31-9

    1. Cincias Sociais. 2.Antropologia. 3.Migrao. 4. Governador Valadares. I. Ttulo.

    CDU 304CDD 300

    M1491v

    Machado, Igor Jos de RenIgor Jos de Ren Machado (Org.). Valadares em famlia: experincias etnogrficas e deslocamentos; Braslia - DF: ABA, 2014.

    1 MB ; epub

    ISBN 978-85-87942-31-9

    1. Cincias Sociais. 2.Antropologia. 3.Migrao. 4. Governador Valadares. I. Ttulo.

    CDU 304CDD 300

    M1491v

    Machado, Igor Jos de RenIgor Jos de Ren Machado (Org.). Valadares em famlia: experincias etnogrficas e deslocamentos; Braslia - DF: ABA, 2014.

    2 MB ; mobi

    ISBN 978-85-87942-31-9

    1. Cincias Sociais. 2.Antropologia. 3.Migrao. 4. Governador Valadares. I. Ttulo.

    CDU 304CDD 300

  • 5sumrioprefcio ................................................................................7

    Carmen Rial

    apresentao .....................................................................10

    Igor Jos de Ren Machado

    Breve explicao sobre a migrao em Valadares ............... 14

    Igor Jos de Ren Machado, Ellem Saraiva Reis,

    Roberta Morais Mazer, Flora Guimares Serra,

    Alexandra C. Gomes Almeida, Tassiana Barreto, Fbio Stabelini,

    Amanda Fernandes Guerreiro

    captulo 1 reordenaes da casa no contexto migratrio de governador Valadares, Brasil ....................... 30

    Igor Jos de Ren Machado

    captulo 2 interao das fronteiras e o ponto de vista etnogrfico: dinmicas migratrias recentes em governador Valadares ...................................................72

    Igor Jos de Ren Machado

    captulo 3 a migrao para quem fica: perspectivas das famlias de emigrantes internacionais valadarenses (Brasil) ......................................................... 92

    Igor Jos de Ren Machado, Alexandra C. Gomes Almeida,

    Ellem Saraiva Reis

    captulo 4 os filhos da migrao transnacional ............. 132

    Amanda Fernandes Guerreiro, Alexandra C. Gomes Almeida,

    Igor Jos de Ren Machado

    captulo 5 a sade e a emigrao em Valadares: a viso das instituies e dos emigrantes e familiares ....................................................................... 194

    Flora Guimares Serra, Tassiana Barreto,

    Roberta Morais Mazer, Igor Jos de Ren Machado

    concluso a miopia do parentesco: o ponto de vista nativo e os poderes formais ............................................. 244

    Igor Jos de Ren Machado

  • 7prefcioCarmen Rial

    mais um livro sobre migraes? se fosse somente o caso,

    j seria muito importante, pois a literatura nas cincias hu-

    manas e sociais no Brasil ainda se ressente de livros que deem

    conta desse fenmeno que, se no novidade no pas, cresceu

    consideravelmente e teve o sentido da mobilidade alterado a

    partir dos anos 1980 e por isso carece de mais reflexes.

    afinal, a mobilidade (UrrY, 2007; cressWell, 2009), as redes

    (castells, 1996), os fluxos (appadUrai, 2000) so bem mais

    do que palavras-chave frequentes em artigos de antropolo-

    gia: so conceitos centrais para entendermos as condies

    do capitalismo global atual. alguns desses conceitos (e seus

    autores) enfatizam lugares de trnsito tecnologias virtuais,

    estradas (clifford, 2000) , outros, seus pontos de sada e

    chegada (sassen, 1991). o livro que igor machado nos apre-

    senta se inclui neste segundo caso, abordando mais precisa-

    mente uma cidade: Valadares.

    Valadares era quase desconhecida dos brasileiros fora

    de minas antes dos anos 1980. entrou no mapa mundial por

    conta de um motivo bem particular: o grande nmero de seus

    habitantes que partiam para os estados-Unidos, geralmente

  • 8para a regio de Boston, para fazer a amrica, como diziam.

    por que Valadares se tornou esse polo exportador de pessoas?

    os autores explicam-nos as origens da relao com a am-

    rica j nas primeiras pginas, mostrando que a presena

    de norte-americanos no interior de minas antiga, embora

    desconhecida de muitos. ela poderia parecer inusitada se no

    soubssemos que local e global se relacionaram em tramas

    que muitas vezes escapam s grandes narrativas nacionais.

    por conta da emigrao, Valadares tornou-se a cidade-

    -smbolo de um Brasil que estava mudando, deixando de ser

    um pas de acolhida para se tornar um pas que tambm en-

    viava migrantes ao exterior. eram essas sadas prova de um

    fracasso econmico? sim e no. mesmo que a crise econ-

    mica estivesse na origem das primeiras emigraes, os tex-

    tos a seguir mostram-nos que o fluxo permanece para alm

    dessas crises. de fato, as emigraes motivadas pela busca de

    melhores condies de trabalho so presenas importantes

    no total de migraes, mas esto longe de serem as nicas.

    sabe-se que os deslocamentos provocados por catstrofes

    naturais ou por conflitos armados superam numericamen-

    te os economicamente motivados. e h muitas outras razes

    para as migraes, as quais esto presentes tambm em

    pases com economias bem-sucedidas, como a alemanha,

    que conta com mais de trs milhes de expatriados em 2014.

    migraes, deslocamentos, mobilidades so caractersticas

    centrais do sistema-mundo atual.

  • 9as cidades, por seu lado, tornam-se conhecidas, por dife-

    rentes razes, as mais comuns ligadas ao seu protagonismo

    econmico, poltico ou cultural. Valadares ficou famosa como

    lugar de sada de brasileiros inicialmente para os estados

    Unidos, mais recentemente, o livro nos mostra, para portugal.

    ela foi o laboratrio dos textos a seguir. o livro organizado por

    igor machado apresenta-nos como novidade o fato de tra-

    tar o fenmeno dessa emigrao particular no s a partir do

    ponto de vista dos que saem, mas tambm dos que ficam, e

    o faz com foco bem-delineado no parentesco (nas conectivi-

    dades/relatedness). Boa leitura.

    carmen rial

    REfERNCIAS

    appadUrai, a. Modernity at large. minneapolis: minnesota University press,

    2000.

    castells, m. The rise of the network society. oxford: Blackwell, 1996.

    clifford, J. Culturas viajantes: o espao da diferena. campinas: papirus,

    2000.

    cressWell, t. seis temas na produo das mobilidades. in: carmo, r. et al.

    A produo das Mobilidades. lisboa: ics, 2009. p. 25-40.

    sassen, s. The Global City: new York, london, tokyo. princeton: princeton Uni-

    versity press, 1991.

    UrrY, J. Mobilities. oxford: polity, 2007.

  • 10

    apresentaoIgor Jos de Ren Machado

    entre 2004 e 2011 coordenei um grande projeto sobre a

    emigrao valadarense, voltado especialmente s famlias

    que permanecem no Brasil enquanto alguns de seus mem-

    bros partem para a aventura migratria. esse projeto, que

    contou com financiamentos do cnpq e da fapesp, gerou ini-

    ciaes cientficas e dissertaes de mestrado, alm de vrios

    artigos publicados em peridicos nacionais e internacionais.

    com o encerramento do projeto, consideramos fundamen-

    tal a reunio de suas principais concluses neste livro que

    apresentamos, pois, entre republicaes de artigos e apre-

    sentao de dados inditos, seria importante compartilhar o

    panorama do conjunto de questes que nos preocuparam ao

    longo desses sete anos.

    Valadares foi nosso laboratrio de pesquisa e de forma-

    o de pesquisadores, e, como tal, este um livro coletivo. as

    pesquisas que geraram os textos, apresentados aqui em cap-

    tulos, foram feitas por alunos e jovens pesquisadores, sempre

    referenciados como coautores dos trabalhos, os quais muitas

    vezes se originaram de relatrios de iniciao cientfica.

  • 11

    muito j se escreveu sobre a migrao valadarense,1 em v-

    rios aspectos, em bibliografia facilmente disponvel. dada a di-

    menso conhecida da migrao valadarense em seus aspectos

    macrossociolgicos e mesmo etnogrficos, decidimos traba-

    lhar sobre uma dimenso menos explorada, focando no pa-

    rentesco, nas relaes com portugal, nas crianas e na sa-

    de das mulheres. a partir desses temas, esperamos contribuir

    com novos dados e reflexes para um fenmeno vastamente

    conhecido, mas ainda com muito a ser explorado.

    as questes que tomamos giram em torno da pergunta

    sobre como aqueles que no partiram vivem a migrao. Vi-

    mos que todo o fenmeno migratrio se construiu em torno

    de projetos familiares, que aqui investigamos sob a tica do

    parentesco, e, como tal, as pessoas que ficam tm tanta im-

    portncia como as pessoas que partem. tratamos de projetos

    de migrao que so familiares, que pressupem pessoas que

    partem e pessoas que ficam, visando uma futura reunio em

    melhores condies de vida. nem sempre isso acontece, o

    que nos levou a considerar a migrao como um risco pr-

    pria famlia. essas relaes entre parentesco e migrao em

    Valadares ocupam os primeiros trs captulos.

    investigando as famlias em Valadares, procuramos dar

    conta de uma movimentao que se dirigia a portugal, que

    aparecia, poca da pesquisa, como alternativa aos peri-

    1 Ver, por exemplo, os trabalhos de glucia assis, suely siqueira,

    Wilson fusco, Valria scudeler, entre muitos outros.

  • 12

    gos da migrao clandestina para os eUa. o nosso interesse

    voltou-se para explicar como o parentesco em Valadares de

    alguma forma moldava a produo de diferencialidades (ma-

    cHado, 2010) brasileiras imigrantes em portugal. ou seja, a

    forma de organizar a vida em portugal s poderia ser enten-

    dida a partir de uma reflexo sobre os projetos familiares que

    produziram essa movimentao. o terceiro captulo se pre-

    ocupa em dar conta dessa relao entre portugal, migrao

    valadarense e produo de diferencialidades.2

    por fim, no ltimo captulo, apresentamos uma discusso

    sobre dois temas muito importantes para aqueles que parti-

    cipam dos projetos migratrios e permanecem em Valada-

    res: a questo das crianas e a questo da sade. as crianas,

    os filhos que se veem longe de um ou dos dois pais, exigem

    uma ateno especial da nossa reflexo, por serem uma es-

    pcie de ponto de inflexo do projeto migratrio: para eles

    constitudo um projeto de melhoria de vida, mas sobre eles

    recai grande carga emocional, dada pelos longos perodos de

    separao. a questo da sade a outra ponta do problema

    2 as diferencialidades so formas alternativas de pensar a produo

    de diferenas. evitamos o uso da categoria identidade, que acaba

    sempre remetendo a uma imaginao reificada de um grupo social. o

    conceito de diferencialidades prope a multiplicidade das experincias

    vividas em conjunto como o motor de produo de cdigos e

    moralidades em comum, sempre sujeitas aos imponderveis da vida

    social. as diferencialidades so emaranhados de experincias, que

    acabam sendo autorreferentes, de alguma maneira.

  • 13

    migratrio, j que tratamos principalmente da sade das mu-

    lheres (esposas cujos maridos migraram). constantemente

    tida como um problema do ponto de vista das estruturas de

    poder local, tentaremos aqui acrescentar o ponto de vista das

    famlias sobre esse cenrio.

    os textos foram reescritos por mim, a partir de determi-

    nadas perspectivas que ficaro claras ao longo do texto. o li-

    vro aparece, portanto, como o resultado efetivo de uma troca

    entre as experincias de campo e inquietaes dos pesquisa-

    dores e as minhas perspectivas como orientador de todas as

    pesquisas, olhando para o conjunto dos textos numa posio

    privilegiada. apresentamos, assim, um conjunto de descri-

    es que pode ajudar a pensar o perodo da emigrao brasi-

    leira que vai de meados dos anos 1980 at a primeira dcada

    dos anos 2000.

    RefeRncias

    macHado, i. J. r. reordenaes da casa no contexto migratrio de governador

    Valadares, Brasil. Etnogrfica, lisboa, v. 14, p. 5-26, 2010.

  • 14

    Breve explicao sobre a migrao em ValadaresIgor Jos de Ren Machado, Ellem Saraiva Reis,

    Roberta Morais Mazer, Flora Guimares Serra,

    Alexandra C. Gomes Almeida, Tassiana Barreto, Fbio Stabelini,

    Amanda Fernandes Guerreiro

    a cidade mineira de governador Valadares possui aproxi-

    madamente 260.396 habitantes.3 localiza-se a 320 km da

    capital do estado, Belo Horizonte, na mesorregio do Vale

    do rio doce. governador Valadares formada, desde sua

    fundao em janeiro de 1938, por pessoas de diversos lugares

    do pas e do mundo. essas pessoas foram cidade impulsio-

    nadas, principalmente, pela extrao de pedras e minrios

    que a regio oferecia. essa extrao atraiu no apenas brasi-

    leiros de diversas regies, mas tambm pessoas de diferentes

    pases do globo. assim se teceram os primeiros contatos en-

    tre valadarenses e gringos.

    seu passado de atrao de grandes empresas norte-

    -americanas e indstrias extrativistas (florestais e mine-

    rais) possibilitou populao valadarense um contato com

    o exterior e a circulao de dlares na cidade, dinamizando a

    3 fonte: iBge. dados de 2007.

  • 15

    economia local e, assim, criando um imaginrio social sobre

    esse estrangeiro e a terra de origem desse fluxo de pessoas

    e dinheiro. nos anos 1940, durante o pice da extrao de

    mica, a cidade contava com mais ou menos 25 mil habitan-

    tes (assis, 1999).

    a cidade esteve, assim, em contato com diversos lugares

    do mundo, principalmente com os eUa. seus primeiros habi-

    tantes compuseram um todo heterogneo, que ali chegavam

    em busca de uma prosperidade impulsionada pela possibi-

    lidade de extrao de diversos minrios e pedras preciosas.

    segundo o historiador Haruf salmen espindola (1998), muitos

    estrangeiros saram de pases como Japo, eUa e alemanha e

    vieram para a cidade com o intuito de explorar a mica, minrio

    utilizado na indstria blica da poca. com a ii guerra mun-

    dial, os alemes e japoneses foram embora uma vez que o

    Brasil tambm entrou no conflito e declarou guerra aos dois

    pases , mas os norte-americanos ficaram. e continuaram

    chegando em maiores nmeros, principalmente com a cons-

    truo da estrada de ferro da Vale do rio doce realizada por

    uma empresa de Boston, fortalecendo, a cada dia, a relao

    entre a cidade e a amrica, como dizem os valadarenses.

    em 1940 foi fundado o rotary club pelo engenheiro-chefe

    da obra, mr. simpson , e, com isso, deram-se as primeiras

    emigraes de valadarenses com destino aos eUa, influencia-

    dos pelo programa de intercmbios culturais realizado pela

  • 16

    instituio.4 assim, sabe-se que as primeiras levas de emi-

    grantes foram constitudas por representantes da elite local

    e, mais frente, nos anos 1970 e 1980, o fenmeno passou a

    atingir a classe mdia, e na dcada de 1990, com o advento

    dos coiotes,5 que as classes mais baixas da populao vala-

    darense comearam a emigrar.

    nos anos 1980 e 1990 acontece o chamado boom migra-

    trio, impulsionado pela crise econmica que se iniciou ainda

    no fim do regime militar e se radicalizou com o plano collor em

    1991. os chamados exilados da crise (assis, 1999) so, em

    grande nmero, valadarenses no por acaso: a rede de co-

    nexo governador Valadares-estados Unidos comeara a ser

    tecida ainda em meados das dcadas de 1940 e 1950. as re-

    des que conectam Valadares a outros lugares do mundo se

    estabeleceram a princpio entre a cidade e os eUa; no entan-

    to, esse boom migratrio de brasileiros (e outros habitantes

    de pases perifricos, como mxico, pases do caribe e da fri-

    ca, etc.) foi combatido pelo governo norte-americano com o

    endurecimento das regras de imigrao os valadarenses,

    ento, criaram novas estratgias de emigrao, que vo des-

    de o advento das travessias pelo deserto na fronteira entre

    4 para mais informaes sobre o incio da migrao valadarense, ver

    assis e siqueira (2009).

    5 coiotes so profissionais que auxiliam os emigrantes na travessia

    entre mxico e eUa. so atravessadores e guias que auxiliam nas

    travessias. (macHado; reis, 2007).

  • 17

    mxico e eUa, facilitadas pelos coiotes, at o desenvolvi-

    mento de novas rotas migratrias, que incluem outros pases,

    sobretudo portugal (macHado; reis, 2007).

    com os primeiros valadarenses j em solo americano, reali-

    zando o sonho que se caracterizava como um fazer a amrica,

    ou seja, ganhar dlares e, consequentemente, melhorar de vida,

    uma espcie de rede de contatos foi-se formando. essas redes,

    juntamente com os relatos de sucesso que os familiares dos pri-

    meiros imigrantes traziam cidade, auxiliaram na ida de outros

    valadarenses, marcando o que assis (1999) identificou como o

    terceiro e definitivo contato e estabelecimento de laos entre

    Valadares e eUa. as redes sociais de valadarenses no exterior os

    fortaleciam frente sociedade americana e transmitiam aos

    futuros imigrantes mais segurana e conforto. finalmente, em

    meados dos anos 1980, a cidade ficou conhecida como o polo

    brasileiro exportador de mo de obra. em propores maiores, o

    Brasil tambm passava da condio de receptor de mo de obra

    para se tornar um pas de emigrao (feldman-Bianco, 2001).

    destinos

    emigrar um verbo comum aos valadarenses, seja qual

    das condies pontuadas por Weber soares6 a experin-

    6 Weber soares (1999) pontua quatro condies definidas pelos

    prprios emigrantes valadarenses. so elas: definitivos, pendulares

    (que vivem em contnuo deslocamento Valadares-eUa, sempre

    indo e vindo), temporrios e retornados.

  • 18

    cia migratria assuma. um acontecimento que permeia toda

    a sociedade valadarense. ao longo de sua histria e das inmeras

    emigraes, sobretudo para os eUa, a migrao tornou-se mais

    que uma possibilidade de sucesso financeiro; tornou-se

    um mito que povoa seu imaginrio popular. assis (1999) re-

    toma uma afirmao jocosa que foi comum ouvir durante

    o trabalho de campo: todo valadarense tem duas bicicletas e

    um amigo ou parente nos eUa, discorrendo sobre a realidade

    da cidade, que plana, e tem uma ampla rede de ciclovias e

    15% de sua populao fora do pas. alm disso, as pessoas

    referem-se aos eUa, ou ainda portugal, como l: fulano foi

    para l, por exemplo.

    no entanto, devido s dificuldades atuais de imigraes

    em solo estadunidense as polticas migratrias desse pas e

    o controle da fronteira mxico-estados Unidos , novos luga-

    res tambm se transformaram em destinos para essas pes-

    soas. assim, na busca por maiores facilidades de imigrao

    e por melhores oportunidades de vida, portugal passou a ser

    visto tambm como um local atrativo mo de obra valada-

    rense, pelos reduzidos custos da viagem, pela facilidade da

    lngua e pela no necessidade de visto.

    e, embora haja relatos de valadarenses na inglaterra, na su-

    a, na espanha e em outros pases, deve-se observar que esse

    imaginrio popular no mitifica apenas o ato de emigrar, mas,

    principalmente, os eUa em si pas que inaugura a tradio

    emigratria valadarense. esse fato bem exemplificado pela

  • 19

    fala de r., uma de nossas entrevistadas:7 ela foi para portugal

    simplesmente por questes logsticas, sua vontade era ir para

    os eUa, e o que a impulsionou a emigrar no foram questes

    puramente econmicas:

    assim... eu queria ir para os estados Unidos. a minha vontade era ir para os estados Unidos mesmo. s que o pes-soal [seus familiares] falou que era melhor eu ir para Portugal porque se eu no me desse bem eu voltaria mais rpido. [...] eu fui, para ser bem sincera com voc, porque eu estava com vontade, assim, de sair um pouco do Brasil. Ir ver l fora como que era. [...] Todo mundo aqui vai, a pensei, eu tambm vou! [...] eu fui l mesmo porque eu queria ir (relato de r.).

    esse mito se reproduz em Valadares atravs de diversos

    relatos, quase dirios, que se tm sobre os conterrneos que

    esto no exterior; a todo momento se ouvem histrias de su-

    cesso e fracasso em experincias migratrias. sobre isso, assis

    afirma que discursos sobre a prosperidade da vida na amrica

    que perfazem toda a histria da cidade serviram como mola

    propulsora do avano das emigraes de valadarenses:

    esses relatos so significativos para evidenciar a constru-o de um imaginrio que naturaliza a presena americana em Valadares, da mesma forma que recria certo mito da iden-tidade valadarense internacionalizada. a presena americana na cidade, portanto, embora temporria, deixa na lembrana

    7 ao longo de sete anos de pesquisas, coletamos mais de 100 entre-

    vistas, que sero referidas sempre de forma a preservar o entrevis-

    tado ou entrevistada. no especificaremos idade, data da entrevista

    nem qualquer informao que possa identificar o entrevistado.

  • 20

    dos moradores a ideia de modernidade, de progresso (assIs, 1999, p. 129).

    a viso dos eUa como terra de oportunidades, como o me-

    lhor lugar para se viver bem financeiramente e com direitos

    garantidos, mostrava-se constantemente durante os traba-

    lhos de campo, sobretudo nas falas de pessoas mais antigas

    da cidade, que emigraram ainda nos anos 1980 e que viveram

    o pice desse fenmeno. Quando conversamos com uma se-

    nhora que mora nos eUa h 20 anos, percebemos muito bem

    isso: ela sempre ressaltava a possibilidade de adquirir o carro

    do ano e as caractersticas imponentes das casas de seus

    filhos (diversos quartos, salas de jogos, etc.).

    a amrica foi, ento, idealizada como um local de pro-

    gresso e modernidade (assis, 1999) dessa forma, quando, na

    dcada de 1980, ocorreu a estagnao econmica brasilei-

    ra, e a regio tornou-se, nas palavras de Weber soares, um

    dos bolses evidentes de pobreza e tenso social (soares,

    1999, p. 169), grande parte de sua populao passou a ver na

    emigrao uma forma de obter recursos financeiros para a

    sada da situao brasileira de misria.

    a partir desse contexto que governador Valadares se

    torna o polo brasileiro exportador de mo de obra. assim,

    durante esses quase 30 anos, diversas pessoas deixaram suas

    famlias em solo brasileiro, aventurando-se em terras es-

    trangeiras em busca de recursos financeiros para o sustento

    familiar. muitos, aps conseguirem tais recursos, retornaram

  • 21

    ao Brasil e, aqui, construram casas, adquiriram bens e in-

    centivaram, com seu sucesso, outras pessoas a tambm mi-

    grarem; outros nunca mais retornaram, mas suas histrias,

    tambm de sucesso, chegaram cidade mineira e contribu-

    ram para fortalecer a ideia de prosperidade da imigrao nos

    estados Unidos. muitos, porm, no tiveram a mesma sorte,

    como veremos neste livro.

    como demonstra reis (2006), o mito inicial de pro-

    gresso, modernidade e facilidade no estrangeiro o que

    impulsionava as emigraes, por criar um imaginrio popu-

    lar que as estimulam atravs de histrias sobre emigrantes

    bem-sucedidos, ou seja, com sucesso financeiro. no entan-

    to, atravs dos estudos j produzidos, podemos afirmar que a

    experincia prtica atual dos emigrantes demonstra que

    estes passaram por grandes dificuldades no exterior, como

    precariedade do trabalho, ilegalidade, solido, e poucos re-

    tornaram bem de vida.

    antes da crise econmica mundial de 2008, mesmo com

    os relatos frequentes de fracasso, a populao continuava

    a emigrar, submetendo-se a diversos perigos como na

    passagem da fronteira do mxico com os estados Unidos,

    onde no h nenhuma garantia de segurana ou ainda

    possibilidade de perder o dinheiro investido, em caso de

    ser preso pela sua situao irregular. a populao valada-

    rense continuava se expondo a tais incertezas e se privando

    da convivncia com sua famlia e amigos para melhorar de

  • 22

    vida. aps a crise, nossas pesquisas indicaram uma dimi-

    nuio gradual da migrao e um aumento tambm gradual

    do retorno, evidenciando uma reverso do fluxo migratrio

    em Valadares. pessoas continuavam a partir para o exterior,

    mas agora o nmero parece ser bem menor.8

    a recente crise econmica mundial que pudemos obser-

    var causou mudanas na cidade mineira, e no apenas nela.

    no primeiro trimestre de 2009, o volume de dinheiro enviado

    dos trabalhadores no exterior teve a maior queda da histria:

    31,5% em relao ao primeiro trimestre de 2008.9 logo no

    primeiro trimestre de 2008, cerca de 3 mil pessoas voltaram

    do exterior10 para Valadares. em pesquisa em julho de 2009,

    muitas pessoas comentaram que como a crise est muito

    ruim, ir para l no est compensando... e que agora com

    essa crise est difcil conseguir emprego, mas continuavam

    a deixar o pas como sempre fizeram.

    8 devido ao carter essencialmente qualitativo de nossas pesqui-

    sas, falamos aqui apenas de impresses, a serem corroboradas

    ainda por pesquisas de cunho quantitativo. para outras informa-

    es sobre o retorno, ver siqueira, assis e dias (2010).

    9 informaes obtidas em: . acesso em: 22 maio

    2009.

    10 informaes obtidas em: . acesso em:

    13 fev. 2009.

  • 23

    cotidiano

    apesar de as crises nacionais terem impulsionado o pro-

    cesso emigratrio, na cidade de governador Valadares esse

    um processo que se estendeu para alm delas. a emigra-

    o continuava sendo vista como uma chance de se ganhar

    dinheiro e ascender socialmente, uma chance de procurar

    futuro, como disse uma das entrevistadas.

    com isso, podemos perceber que o projeto de emigrar um

    projeto familiar: ele envolve aquele que parte para um outro

    pas em busca de um projeto, mas tambm envolve aqueles

    que ficam para trs cuidando da famlia e da possvel admi-

    nistrao dos bens e do dinheiro enviados. a maior parte da-

    queles que partem o faz com o objetivo de comprar uma casa

    independente do restante da famlia, carro, moto ou, ainda,

    abrir um negcio. alguns ou todos esses objetivos podem ser

    atingidos ou se mostram como um motivo para que as pessoas

    emigrem mais de uma vez, por no saberem administrar o di-

    nheiro ou por serem lesados por algum; outras vezes esses

    objetivos sofrem mudanas pelo prprio processo migratrio,

    e, em alguns desses casos, a famlia passa a morar no exterior.

    se h, de fato, uma realidade transnacional que construda

    diariamente pelos transmigrantes, ela est muito bem exempli-

    ficada em governador Valadares: em todos os lugares, no centro,

    nos bairros, nos restaurantes, possvel encontrar seus indcios.

    as experincias migratrias valadarenses so, em sua grande

  • 24

    maioria, de carter no documentado,11 e, talvez por isso, essa

    condio j dada a priori pelos entrevistados: ningum diz que

    foi ilegalmente, pois essa informao j est subentendida.

    no caso de governador Valadares, as famlias da cidade se

    conectam e tecem suas reestruturaes atravs dos pases

    de destino dos emigrantes (portugal e eUa, em sua maioria):

    em grande parte dos casos, o pai quem se ausenta do lcus

    das relaes familiares que compreende a casa; em outros,

    so ambos os pais que partem para o exterior, podendo os

    filhos ficar com os avs (na maioria das vezes), tios, amigos

    dos pais e at, em poucos casos, terceiros contratados para

    cuid-los, ou ficam sozinhos, quando j tm idade para isso;

    por fim, existem os casos em que somente a me parte, e

    os filhos ficam morando com o pai, que conta com a ajuda

    de suas mes ou at de babs para ajud-los na criao dos

    filhos.12 essas reestruturaes familiares so recorrentes e

    11 as pessoas saem de Valadares, vo at o mxico, de onde atra-

    vessam a fronteira pelo deserto, ajudadas por atravessadores, os

    conhecidos coiotes; quando chegam aos eUa, passam anos em

    situao irregular, so os chamados imigrantes indocumentados.

    12 evidentemente, h solteiros e casais sem filhos que emigram. no

    caso dos primeiros, muitos o fazem para conseguir recursos para o

    casamento; no caso dos segundos, a migrao um esforo con-

    junto para minimizar o tempo no exterior, a fim de constituir a fa-

    mlia (e ter filhos) no Brasil. os migrantes solteiros so os mais su-

    jeitos a se desligarem das redes valadarenses, o que acontece com

    frequncia, mas tambm comum que procurem seus parceiros

    amorosos na cidade de Valadares ou entre valadarenses no exterior.

  • 25

    vistas como um lugar comum nas experincias migratrias

    da populao valadarense, salvo em casos em que os filhos

    ficam com babs ou sozinhos o que raro e muito malvisto

    pela populao local, pois, segundo diversos informantes, tal

    fato facilitaria o desvio desses filhos, que podem adentrar o

    mundo das drogas e da prostituio. H, ainda, jovens que

    emigram para encontrar seus parentes ou amigos no exterior.

    talvez haja um consenso geral na cidade de que a emi-

    grao do pai (o chefe da famlia nuclear) acontece para o

    bem comum da famlia, pois garante ascenso financeira,

    compra da casa prpria, abertura de um negcio qualquer e

    outros bens diversos, sendo a busca pela casa prpria algo

    visto como uma justificativa legtima e bastante evocada nas

    histrias das emigraes valadarenses. neste contexto, para

    machado (2010), a posse da casa viabiliza a centralizao das

    relaes da famlia e uma independncia frente s famlias de

    outrem (pais, sogros, tios, etc.); assim, mesmo que a deciso

    de emigrar force os migrantes a abdicar do convvio presen-

    cial, cossubstancial, da famlia por um tempo determinado,

    tambm possibilita a aquisio da casa e a posterior reunio

    familiar. esses migrantes aceitam os riscos de toda reestru-

    turao da famlia, ocasionada pela ausncia de familiares

    especficos e inseridos no nus dessa empreitada, apoiados

    no objetivo legtimo de consolidar sua casa.

    H na cidade uma estrutura social que facilita a emigrao

    atravs de obteno de recursos financeiros, vistos falsos,

  • 26

    locomoo, entre outros. alm dessa facilidade econmica,

    h tambm recursos sociais que permitem a mobilidade de

    um pas para o outro, como a existncia de parentes e/ou

    amigos, nesses pases, que se dispem a receber os novatos

    e ajud-los assim que chegarem. em geral, antes de sarem

    do Brasil, os emigrantes j possuem a garantia de um lu-

    gar para se estabelecer mesmo que temporariamente e

    contatos para conseguir emprego.

    em uma entrevista com er., que viveu por quatro anos

    nos eUa, foi relatado que s foi possvel sua emigrao atra-

    vs de um emprstimo conseguido com um vizinho e pela

    existncia de um irmo que j vivia l por dois anos, o que

    garantiu uma estabilidade assim que ela chegou no pas es-

    tranho.

    eu j queria ir antes mesmo do meu irmo, mas na poca no tive como. a, quando deu mesmo para ir, estava com muita vontade e pude contar com ele, sabe? encontramo-nos e ele me ajudou muito, mas no fiquei muito tempo para-da, logo me arranjei. Quem quer trabalhar consegue! Por um tempo fiquei com dois, trs trabalhos de uma vez, um de dia, outro noite, e outro nos dias de folga. Fazia assim para es-quecer as saudades da minha menina (relato de er).

    a migrao tem uma importncia econmica latente na

    cidade, que pode ser organizada em dois pontos principais:

    (a) com recursos atravs das remessas de dinheiro e o in-

    vestimento do montante na cidade e (b) pela circulao de

    dinheiro atravs de estruturas legais e ilegais que permitem

  • 27

    a migrao. essa estrutura social que facilita a migrao per-

    meia toda a cidade e cotidiana; h grupos sociais que sobre-

    vivem atravs dessas atividades. essa importncia econmi-

    ca evidencia-se no discurso oficial que reconhece os custos

    sociais da emigrao, os quais discutiremos melhor mais

    adiante, e ainda assim cria polticas pblicas para melhor

    usufruto das condies materiais propiciadas pela emigrao.

    importante destacar que a emigrao que ocorre atual-

    mente na cidade realizada por pessoas das camadas popu-

    lares de governador Valadares, ou seja, pertencentes classe

    mdia baixa e classe baixa. alm disso, apesar de poder ser

    considerada um ato pessoal, a emigrao no caso estudado

    deve ser entendida como um projeto no individual, que en-

    volve no s aquele que emigra, mas tambm outras pessoas

    prximas principalmente familiares , um projeto que a bi-

    bliografia especializada intitula como familiar.

    RefeRncias

    assis, g. o. estar aqui..., estar l...: uma cartografia da emigrao valadarense

    para os eUa. in: reis, r. r.; sales, t. (org.). Cenas do Brasil migrante. so paulo:

    Boitempo, 1999.

    assis, g. o.; siQUeira, s. mulheres emigrantes e a configurao de redes

    sociais: construindo conexes entre o Brasil e os estados Unidos. REMHU,

    Braslia, v. 16, p. 25-46, 2009.

    espindola, H. s. a histria de uma formao scio-econmica urbana:

    governador Valadares. Varia Histria, Belo Horizonte, v. 19, p. 148-162, 1998.

    feldman-Bianco, B. Brazilians in portugal, portuguese in Brazil: cultural

  • 28

    constructions of sameness and difference. Identities: global studies in culture

    and power, v. 8, n. 4, p. 607-650, 2001.

    macHado, i. J. r. reordenaes da casa no contexto migratrio de governador

    Valadares, Brasil. Etnogrfica, lisboa, v. 14, p. 5-26, 2010.

    macHado, i. J. r.; reis, e. s. algumas concluses acerca do fluxo de valadarenses

    para portugal. Teoria & pesquisa, so carlos, v. 16, n. 1, 2007.

    siQUeira, s.; assis, g. o.; dias, c. a. as mltiplas faces do retorno terra natal.

    Caderno de Debates Refgio, Migraes e Cidadania, Braslia, v. 5, p. 61-79,

    2010.

    soares, W. emigrao e (i)mobilidade residencial: momentos de ruptura na

    reproduo/continuidade da segregao social no espao urbano. in: reis, r.

    r.; sales, t. (org.). Cenas do Brasil migrante. so paulo: Boitempo, 1999.

  • 30

    captulo 1 reordenaes da

    casa no contexto migratrio de

    governador Valadares, Brasil13

    Igor Jos de Ren Machado

    recentemente, Janet carsten (2004) resumiu os ca-

    minhos alternativos para a reflexo sobre o parentesco,

    construdos aps a crtica feroz de schneider (1984). con-

    siderando as perspectivas reunidas por carsten, este cap-

    tulo procura explorar esses caminhos alternativos em torno

    da noo de relatedness,14 termo escolhido para substituir

    parentesco, e sua relao com contextos migratrios.

    schneider criticou duramente os estudos de parentesco,

    por serem etnocntricos e baseados em noes ocidentais

    de consanguinidade, talvez impossveis de serem transpos-

    tas para outras sociedades. carsten demonstra o impacto

    13 Uma verso inicial e simplificada deste texto foi apresentada na

    25 reunio da aBa (associao Brasileira de antropologia), em

    goinia, no ano de 2006, sendo posteriormente publicado como

    machado (2010).

    14 fonseca (2007) traduz o termo por conectividades. manterei

    aqui o termo original.

  • 31

    da crtica e como a noo de relatedness foi desenvolvida

    para dar conta de universos de prtica e significao simila-

    res aos que na nossa sociedade chamamos de parentesco.

    essa noo foi inspirada nos trabalhos de m. strathern e tem

    como alvo das investidas tericas a produo de relaes

    entre pessoas. a avenida aberta por esses trabalhos leva a

    uma mo dupla inesperada: encontramos em sociedades

    ocidentais15 universos de relatedness relacionveis aos de

    sociedades no ocidentais, que acabam por expandir a nos-

    sa prpria noo de parentesco. assim que a autora lida

    com o caso de filhos adotados e a relao com as famlias

    consanguneas, por exemplo.

    o universo que pretendo explorar nesse contexto o das

    migraes transnacionais, justamente por forar uma re-

    ordenao das noes nativas de parentesco/relatedness,

    incluindo perspectivas mais amplas. o processo migratrio

    constitui tipos peculiares de famlia,16 muitas delas divididas

    entre espaos amplos, entre estatutos de legalidade e ilegali-

    dade, entre saudades e preconceitos. assim, analiso algumas

    15 ocidente uma categoria usada pela autora, assim como eu-

    ro-americano uma categoria usada por strathern. ambas so

    amplamente vagas e questionveis. elas parecem se referir eu-

    ropa (menos a do sul) e aos eUa. sempre resta a dvida, de um

    ponto de vista sul-americano, se os pases da europa do sul e suas

    ex-colnias fazem ou no parte desse macrocontexto.

    16 a noo de famlia usada no sentido nativo, que veremos incluir

    tanto um modelo ideal como um modelo transitrio.

  • 32

    novas formas de relao e de construo de projetos fami-

    liares num contexto de contnua ausncia fsica. o emigrante

    parte e deixa, em geral, famlias que dependero, em alguma

    medida, do seu trabalho. como se estrutura a continuidade

    da relao, as formas de expressar os sentimentos, as conse-

    quncias da ausncia prolongada de um familiar, os proces-

    sos sociais disparados pela existncia de famlias constante-

    mente incompletas? estas so algumas das questes que

    interessam analisar nesse contexto migratrio.

    partindo do pressuposto de que as pessoas remodelam

    suas formas de relao, que os sentimentos so intensos,

    que os projetos de imigrao envolvem o desejo contradi-

    trio de consolidao de ncleos familiares, pretendemos

    investigar os novos padres de relatedness construdos no

    contexto migratrio. o lugar escolhido para tal empreen-

    dimento a regio brasileira de governador Valadares, re-

    conhecido centro de emigrao internacional. Valadares,

    cidade situada no leste do estado de minas gerais, o prin-

    cipal polo de emigrao internacional no Brasil. a cidade

    mais importante do leste e nordeste de minas gerais e ba-

    nhada pelo rio doce, situando-se a 324 km da capital do

    estado, Belo Horizonte. desde meados do sculo passado,

    teve incio uma lenta montagem de redes migratrias que,

    na dcada de 1980, transformaram a cidade no mais intenso

    corredor de sada do pas. as redes eram e so direciona-

    das principalmente aos eUa, embora os destinos tenham se

  • 33

    diversificado ao longo da dcada de 1990. H vasta litera-

    tura sobre Valadares. Ver, entre outros, assis (1999), soares

    (1999), fusco (2001) e machado e reis (2007).

    figura 1 - localizao do municpio de governador Valadares.17

    a escolha no aleatria e segue de interesses anterio-

    res de pesquisa: desde 2004 venho desenvolvendo e coor-

    denando pesquisas sobre a migrao de valadarenses para

    portugal, e, nesse contexto, temos nos deparado com formas

    alternativas de vida familiar e de relatedness. interessa en-

    17 imagem feita por raphael lorenzeto de abreu, disponvel na

    Wikipedia em: .

    acesso em: 05 set. 2014.

  • 34

    tender como se reconstroem as relaes durante a ausncia

    dos migrantes atravs de trs eixos fundamentais: 1) o projeto

    de produo da Casa, o envio de remessas e a constituio de

    outras formas de cossubstancialidade; 2) o cuidado com os

    filhos que permanecem no Brasil e a circulao de crianas

    no espao transnacional; e, por fim, 3) a relao com as/os

    companheiras/os permeada pela distncia.

    soBre famlia e migrao

    os estudos de migrao internacional sempre lidaram

    com a questo da organizao da famlia migrante. mas o fi-

    zeram seguindo as suas duas linhas gerais de anlise. nos es-

    tudos focados no processo de assimilao, a famlia migrante

    era uma organizao fadada a assumir as feies das famlias

    dos pases para onde se migrou, e isso em questo de poucas

    geraes (ver, por exemplo, park (1922); para uma anlise da

    escola de chicago, ver Valladares (2005)). J os estudos foca-

    dos na manuteno das fronteiras tnicas indicavam a per-

    sistncia da famlia migrante como possibilidade, embora no

    estivessem de fato preocupados com os contedos da dife-

    rena. o foco esteve sempre na existncia contnua de gru-

    pos tnicos independentemente de como estes constituam

    suas prticas culturais (glaZer; moYniHan, 1963). ou como

    artefato em extino ou como dado sem muita importncia

    para a manuteno dos grupos tnicos, as distintas formas de

    organizao das famlias migrantes ficaram fora de evidncia.

  • 35

    os estudos transnacionais (glicK-scHiller; BascH;

    Blanc-sZanton, 1992) trouxeram a necessidade de se pen-

    sar a famlia como um dos elementos estruturantes da trans-

    nacionalidade. como perceberam as autoras (glicK-scHil-

    ler; BascH; Blanc-sZanton, 1995), a globalizao altera a

    dinmica entre espao e tempo, devido aos avanos tecnol-

    gicos em meios de transporte e nas comunicaes. isso afe-

    tou a experincia da migrao, pois muitos migrantes, longe

    de se incorporarem sociedade receptora escolhida, criavam

    laos extensos, no apenas com algumas instncias da socie-

    dade para a qual migraram, como tambm com a sociedade

    de origem, nos fazendo pensar, portanto, em transmigran-

    tes: transmigrantes so migrantes cujas vidas cotidianas

    dependem de mltiplas e constantes interconexes que cru-

    zam fronteiras internacionais e cujas identidades pblicas so

    configuradas em relacionamento com mais de um estado-

    -nao (glicK-scHiller; BascH; Blanc-sZanton, 1995,

    p. 48)18 ou seja, criam vnculos culturais, sociais, polticos e

    at mesmo econmicos tanto com a nao receptora quanto

    com a nao de origem.

    apesar de o transnacionalismo primar pela anlise das

    implicaes sociais, polticas e culturais dos movimentos mi-

    gratrios e do surgimento de inmeros choques culturais,

    essa perspectiva ampla das migraes ainda no seria capaz,

    18 traduo livre do original em ingls. o mesmo vlido para as

    demais referncias em ingls citadas aqui em portugus.

  • 36

    na viso de vrios autores, de dar conta da famlia transna-

    cional, grupos familiares distendidos em vrios pontos do

    globo e que no necessariamente perdem os vnculos fami-

    liares quando colocados em novos contextos sociais. so as

    famlias que organizam, planejam e executam o fluxo entre

    dois ou mais lugares. porm, mesmo esses estudos no en-

    caram a produo da famlia de um ponto de vista antropol-

    gico, mas como uma espcie de dado natural.

    para Bryceson e Vuorela (2002) as famlias transnacionais

    so definidas como famlias cujos membros vivem em parte

    ou na maior parte do tempo separados uns dos outros, po-

    rm mantidos juntos por criarem algum tipo de sentimento

    de bem-estar coletivo e unidade, mesmo quando atravessam

    fronteiras nacionais (BrYceson; VUorela, 2002, p. 3), pos-

    suindo a capacidade de elaborar e reelaborar vrios sensos de

    identificao que no so inteiramente apreendidas nos estu-

    dos transnacionais ou de migrao tpicos. se no ocidente a

    ideia de famlia pode estar atrelada casa, ao ambiente familiar

    (BrYceson; VUorela, 2002, p. 28), ou seja, o viver em fam-

    lia cotidianamente, como entender o sentimento de unidade

    dessas famlias cujos membros so, em boa parte do tempo,

    ausentes, famlias em que os pais, filhos ou outros parentes

    migram para garantir a renda familiar em outro pas?

    percebe-se, portanto, a necessidade de nos voltarmos

    para estudos das micropolticas e prticas sociais (YeoH;

    HUang; lam, 2005, p. 307), agora no mbito da casa e da

  • 37

    famlia, para compreender os processos de reproduo social

    que, embora influenciados pelos processos macrossociolgi-

    cos, polticos e econmicos da globalizao, no so total-

    mente perceptveis no que concerne organizao familiar

    e sua vida cotidiana. desse modo, possvel identificar uma

    morfologia social19 e sua reproduo dentro do transnacio-

    nalismo atravs da famlia transnacional at ento no per-

    cebidas. morfologia, porm, mutvel e que pode adquirir as

    mais variadas formas de acordo com outras variveis, como o

    envio de remessas, estratgias especficas, etc.

    como apontam chamberlain e leydesdorff (2004, p. 228),

    os migrantes [...] so feitos por suas memrias do seu local de

    nascimento, sua terra natal, aqueles deixados para trs inter-

    rupes em suas narrativas de vida que requerem ressequen-

    ciamento, remodelagem e reinterpretao, na medida em que

    encaram o processo migratrio. Vemos, dessa forma, o esfor-

    o de criao e recriao de subjetividades especficas desses

    transmigrantes relacionadas ao seu deslocamento entre fron-

    teiras nacionais que criam sentimentos de pertencimento e de

    unidade da famlia transnacional. como percebem Yeoh, Hang

    e lam (2005), Bryceson e Vuorela (2002) e Baldassar (2007),

    esses processos hoje so muito influenciados pelas novas tec-

    nologias de comunicao e transportes, que permitem famlia

    transnacional estar interligada graas internet, aos e-mails,

    19 o termo usado pelos autores.

  • 38

    telefonemas, faxes, visitas peridicas aos parentes em reunies

    familiares, mecanismos que de acordo com Baldassar (2007, p.

    400) permitem o contato e o suporte emocional entre mem-

    bros distantes, garantindo assim o fazer famlia mesmo dentro

    desses fluxos migratrios transnacionais.

    como observa canales (2005), o envio de remessas est

    fortemente atrelado aos fluxos migratrios: as pessoas migram

    e reorganizam as suas vidas e famlias muitas vezes com base

    na busca de melhores condies econmico-financeiras, so-

    ciais e polticas, deixando para trs vrios membros familiares

    e muitas vezes mantendo o seu vnculo com a famlia agora

    transnacional atravs do envio de remessas. o vnculo que

    mantm essas pessoas unidas em uma famlia e comunidade

    transnacional se d, alm das questes econmicas, por uma

    srie de smbolos culturais que so trocados no contato entre

    as duas naes, voltados prpria reproduo familiar, como

    os valores de reciprocidade, solidariedade e responsabilida-

    de desses membros que partem para outro pas sem se des-

    prenderem da famlia, enviando remessas nessa confluncia

    de ordem econmica e simblica: com o envio de remessas

    no apenas dinheiro e mercadorias circulam como tambm se

    permite a reproduo de relaes culturais, identidades sim-

    blicas e coletivas (canales, 2005, p. 21).

    proponho aqui uma anlise da famlia imigrante trans-

    nacional a partir das atuais discusses sobre relatedness,

    ou seja, a partir da ideia de que a produo das relaes e

  • 39

    noes de pertencimento so complexas, dinmicas e distin-

    tas. pretende-se um olhar sobre a produo do parentesco

    como uma prtica nativa qualquer, buscando o ponto de

    vista dos sujeitos na prpria montagem que fazem de suas

    relaes e no a partir de modelos preestabelecidos.20

    o parentesco e a CASA HoJe

    Janet carsten (2004, p. 7) afirma que alguns fenmenos

    da vida moderna, como os tratamentos de fertilidade, os tes-

    tes genticos, concepo pstuma, clonagem, o mapeamen-

    to do genoma humano, carregam consigo a possibilidade de

    colocar em xeque alguns pressupostos fundamentais sobre a

    construo das famlias no ocidente. esses fenmenos co-

    locam em questo o mundo privado das famlias, evidencian-

    do as relaes com o estado, o aparato legislativo, os projetos

    de nao e levantam questes sobre a construo da pessoa,

    gnero e substncias corporais.

    esses questionamentos levam a reflexes sobre a natureza

    do parentesco. a tradicional distino entre o que natural e

    o que cultural no parentesco est em risco, e esses fenme-

    nos tendem a embaralhar as percepes tradicionais. nesse

    ambiente, nossas concepes mais familiares de parentesco

    esto mudando, pois prticas antes no investigadas como

    20 parte da discusso apresentada nesta sesso foi retirada de ma-

    chado, silva e Kebbe (2008).

  • 40

    parte dos estudos tradicionais do parentesco comearam a

    ser analisadas com ateno. Uma nova preocupao com a

    experincia cotidiana levou a um novo projeto para os es-

    tudos de parentesco, agora vistos como referentes a uma

    rea da vida na qual as pessoas investem suas emoes, sua

    energia criativa e suas novas imaginaes. essa perspectiva

    ope-se viso tradicional dos estudos de parentesco que

    indicam que este tem um papel menor na organizao social

    ocidental. Vrias so as dimenses para esses novos estudos

    de parentesco: a casa, gnero, personalidade, substncia e

    tcnicas reprodutivas.

    no que tange a este captulo, o estudo da Casa como

    elemento central na constituio das relaes de parentes-

    co e o estudo das consideraes locais sobre o que produz

    a cossubstancialidade dos parentes so fundamentais, pois

    esses fenmenos se entrelaam com os projetos migratrios

    de formas inesperadas: as pessoas imigram para construir

    suas casas e constituir novas centralidades nas suas rela-

    es; estando longe, o que produz a cossubstancialidade no

    mais a convivncia e o sangue, mas o envio de remessas.

    perceberemos que um tipo de organizao da vida familiar

    em estado de migrao mais flexvel do que aquela que se

    vive normalmente em Valadares, bastante centrada na con-

    vivncia e sangue. de certa forma, essa organizao flexvel

    vista como uma forma permissvel enquanto se d a migrao

    e como uma forma de se chegar, aps a migrao, quela vida

  • 41

    que se v como mais correta. assim, temos novas perspec-

    tivas de anlise no cruzamento das migraes internacionais

    e as novas possibilidades da teoria do parentesco.

    em 1984, lvi-strauss promovia uma reflexo sobre as

    sociedades de casa (socit a maison), indicando parale-

    los entre a valorizao do cognatismo em seu interior, uma

    desvalorizao do idioma do parentesco e um fortaleci-

    mento das esferas polticas e econmicas. a casa aparece

    como uma pessoa moral, no seio da qual se desenvolvem os

    principais aspectos da vida social. autores contemporneos,

    como a mesma carsten (carsten; HUgH-Jones, 1995),

    tm caminhado para uma ampliao das ideias de lvi-

    -strauss, levando essas consideraes para uma revigora-

    o dos estudos de parentesco. no que se refere a essa au-

    tora, vemos que o interesse recai no sobre a ideia da casa

    como uma pessoa moral (ideia da qual ela se afasta), mas

    sobre a casa como um universo de construo das relaes

    mais fundamentais da vida de pessoas ao redor do globo.

    apoiada nos trabalhos de strathern, que enfatizam como

    sujeitos so frutos de relaes que constroem e descons-

    troem ao longo da vida, carsten elabora anlises sobre as

    relaes que se constroem no interior da casa, preocupada

    basicamente com a noo complexa de substncia. segun-

    do a autora, a comensalidade se relacionaria cossubstan-

    cialidade, estimulando relaes variadas (desde proibies

    de incesto at regras de etiqueta).

  • 42

    ao reelaborar uma anlise sobre a Casa, carsten recorre

    a noes como corpo, pessoa, gnero, substncia e paren-

    tesco. analisar essas dimenses do vivido na Casa obser-

    var outras relaes de parentesco, que no so consan-

    guneas, mas so construdas atravs da moradia em co-

    mum. Habitar com outros insere os sujeitos em sistemas de

    trocas que relacionam e/ou criam parentes. para a autora,

    adotar essa perspectiva sobre a Casa permite escapar s

    formas para lidar com substncias, permitindo uma postura

    processual. assim, podemos perceber, em diferentes con-

    textos etnogrficos, o modo como o parentesco feito em

    oposio a um parentesco dado. a casa aparece como a

    produtora do parentesco, visto como conjunto de relaes,

    livres do imprio do cdigo versus o imprio da nature-

    za, na concepo de schneider (1968).21 como afirmei no

    comeo do texto, importa aqui trazer algumas dessas re-

    flexes para dentro da sociedade onde a regra da natureza

    (a hereditariedade, a inevitabilidade dos laos sanguneos,

    etc.) supostamente impera.

    21 note-se que essa perspectiva de carsten muito influenciada pela

    crtica de schneider, de 1984, em livro que ele pouco cita lvi-

    -strauss. e quando cita para trat-lo como um funcionalista,

    em consonncia a crticas que ele conduzira em 1974, junto com

    James Boon (scHneider; Boon, 1974). autores mais cuidadosos

    com o trabalho de lvi-strauss poderiam argumentar que a teoria

    da aliana s pode ser sobre a fabricao do parentesco, em oposi-

    o ao parentesco como um dado a priori.

  • 43

    a perspectiva desenvolvida por carsten sobre a casa ob-

    viamente devedora da discusso corrente sobre famlia no me-

    diterrneo, desenvolvida pela antropologia europeia desde os

    anos 1960. o captulo que se refere especificamente ao tema,

    no livro de 2004 da autora, por exemplo, parte principalmente

    da etnografia de pina-cabral (1986). nesse sentido, percebe-

    -se a pertinncia do tema ao tratar da emigrao valadarense,

    onde, no fim das contas, estamos em um terreno de influncia

    portuguesa. assim, as discusses sobre a composio e fun-

    cionamento da famlia no alto minho ou no porto, desenvolvi-

    das pelo autor (pina-caBral, 1991), so amplamente compa-

    rveis s relaes que descreverei mais adiante.

    o tema da casa tambm tem sido elaborado de forma sis-

    temtica em etnografias desenvolvidas no Brasil, como as de

    Viegas (2007), entre os tupinamb do sul da Bahia, ou marcelin

    (1999), sobre os negros do recncavo baiano. curiosamente,

    o tema da casa mais explorado no terreno das alteridades

    tnicas (como populaes indgenas e negras) do que nas al-

    teridades de classe. os estudos brasileiros clssicos sobre as

    classes trabalhadoras/grupos populares de luiz fernando dias

    duarte (1986), cynthia sarti (1996), cludia fonseca (2004),

    simoni guedes e michelle lima (2006), por exemplo, no lidam

    com essa perspectiva. o mesmo se pode dizer dos estudos de

    gilberto Velho (1986, 2001) sobre as famlias de classe mdia.

    se o parentesco nas sociedades ocidentais era pensado

    como marcado por uma forte separao entre a ordem da natu-

    reza e a ordem da lei, o parentesco no ocidental foi geralmen-

    te considerado, em contraste, como uma mistura da natureza

  • 44

    e cultura ou como uma transformao de um em outro. estu-

    dos como os de strathern (1992), Weismantel (1995) e carsten

    (2004) indicam que em contextos ocidentais essas distines

    no so to claras. claramente o caso das migraes interna-

    cionais, em que os processos de produo da Casa e de cossubs-

    tancialidade esto deslocados do eixo natureza, indicando novas

    e promissoras anlises sobre a constituio desses fenmenos.

    a CASA em Valadares

    passemos agora analise dos dados, primeiramente tra-

    tando da importncia, relevncia e necessidade imperiosa da

    Casa (prpria) entre as famlias transnacionais de governador

    Valadares.22 tentarei demonstrar, atravs do relato recorren-

    te, como a Casa um valor moral, mais que um desejo mate-

    rial. no decorrer do captulo tecerei interpretaes sobre esse

    valor, com base nos dados.

    ***

    22 os dados referem-se a dois trabalhos de campos: o primeiro rea-

    lizado em julho de 2005, por ellem saraiva reis e lara rezende, e

    o segundo realizado em fevereiro de 2006, por ellem saraiva reis

    e alexandra c. gomes almeida, a quem agradeo pela dedicao e

    competncia. foram realizadas cerca de 50 entrevistas semiestru-

    turadas nesses dois momentos. os entrevistados so moradores de

    bairros pobres da cidade, marcados pela grande emigrao inter-

    nacional. os relatos aqui aparecem, constantemente, em terceira

    pessoa: o/a entrevistado/a conta histrias de parentes, conhecidos,

    amigos ou de ouvir falar. evidentemente, no interessa a veracida-

    de dessas histrias, mas a sua verossimilhana para os sujeitos que

    a contam. os entrevistados so indicados por nomes fictcios, sem

    referncia idade ou qualquer informao que os possa identificar.

  • 45

    corrente em Valadares a constatao da importncia da

    casa.23 Um entrevistado, funcionrio da polcia federal, afir-

    mava: o mercado em governador Valadares est inflaciona-

    do porque o emigrante paga por uma casa mais do que o seu

    real valor. a importncia da casa manifesta nas situaes

    mais variadas de migrao: casos de migrao para pagar d-

    vidas com agiotas, feitas para comprar a casa prpria, mi-

    graes com o objetivo especfico de comprar uma casa. Um

    dos entrevistados, Val, tambm est convencido de que as

    pessoas migram para ter uma casa e um carro, mesmo que

    isso signifique ficar distante dos filhos. ele cita o caso de seu

    primo, que foi em busca desse sonho.

    todos os entrevistados tm uma histria que relaciona

    emigrao e casa. Vejamos uma sucesso de rpidos exem-

    plos retirados das narrativas dos entrevistados. J tinha o so-

    nho de construir uma casa e, por isso, foi-se a portugal. Um

    dos filhos de outra entrevistada, fia, foi para portugal, ficou

    quatro anos e depois seguiu para os eUa. ele quer voltar para

    o Brasil, mas apenas quando construir uma casa. o noivo de

    tatiana foi trabalhar em portugal para adquirir um carro e a

    sonhada casa, e, quando voltar, eles se casaro. a irm de

    rosa est h dois anos em portugal e foi apenas para termi-

    23 entendo casa (em minsculas) como a habitao que d suporte a

    uma casa, entendida como uma entidade centralizadora de rela-

    es de um casal. uma apropriao do conceito de lvi-strauss

    e ser discutida ao longo do texto.

  • 46

    nar de pagar a casa que havia comprado. o marido de car-

    mem tambm foi em busca da casa prpria, e, enquanto ele

    est fora, sua esposa e filhos moram na casa de um irmo do

    marido, localizada no terreno dos sogros, que tambm emi-

    grou, mas com a esposa. roslia tambm tem o marido em

    portugal, em busca da casa prpria. enquanto ele persegue o

    objetivo, ela mora numa casinha no quintal do sogro.

    o caso nos bairros pobres de Valadares, de onde saem os

    migrantes na sua maioria, indica a centralidade do casal na

    estruturao das relaes de parentesco, mas o antagonismo

    que a composio de novas Casas implica ainda mais acen-

    tuado, pois no h inteno de se manter a subordinao s

    famlias originais. esse aspecto, entretanto, no significa falta

    de continuidade das Casas, mas apenas em hierarquizao

    sucessiva e contnua entre Casas. Um mesmo conjunto de

    pessoas que se ligam por parentesco convive com vrias Ca-

    sas com nveis distintos de capacidade de aglomerar relaes

    e pessoas. trata-se, por assim dizer, de uma segmentao

    rpida.24

    cada Casa, na prtica, dura apenas a vida do casal. morar

    numa habitao no terreno dos pais ainda participar da Casa

    dos pais, subordinadamente. temos uma casa lvi-strauss

    em grande medida, pela sua centralidade na organizao da

    estrutura social local, por sua relevncia na organizao do

    24 esse argumento foi sugerido por marcos lanna, em comunicao

    pessoal.

  • 47

    parentesco e da posse territorial e, claro, por dar impulso mi-

    grao internacional, como um atalho rpido para a centralida-

    de.25 essa ideia da Casa valadarense (das camadas pobres da

    populao) depende de uma perspectiva dinmica a respeito da

    montagem e desmontagem de relaes: uma espcie de Casa

    relacional, mais ligada a cada casal como centro de si mesmo.

    aqui, portanto, convm distinguir a casa (habitao) da

    Casa (centralidade de relaes do casal), pois a segunda am-

    para a estrutura social e influencia a movimentao interna-

    cional. J a primeira uma necessidade para a existncia da

    segunda, com a condio de ser descolada da casa (habita-

    o) dos pais. os emigrantes partem para construir Casas e,

    para isso, precisam de recursos para construir uma casa (ha-

    bitao) que d condies e sustentabilidade para aquelas.

    tambm devemos matizar esse descolamento da Casa dos

    pais, j que no se trata, necessariamente, de pais biolgicos:

    a Casa com a qual se rompe para formar a prpria pode ser

    capitaneada por pais, tios e at no parentes. rompe-se com

    a Casa na qual se inseria anteriormente. em alguns casos de

    desamparo social, nem preciso romper: no se estava re-

    lacionado a nenhuma Casa, e a migrao uma tentativa de

    superar esse dilema com uma nova Casa prpria. em Valada-

    res, a Casa no chega a durar nem uma gerao, tamanha a

    dissoluo promovida pelo atalho da migrao.

    25 para uma discusso sobre o conceito de centralidade aplicado

    s relaes sociais, ver machado (2003).

  • 48

    entre os nossos entrevistados, podemos destacar o caso

    de Joo. ele mora numa casa de seu pai, e isso foi o suficiente

    para que ele buscasse a prpria Casa, num exemplo de como

    a importncia da Casa muito maior do que seu espao e

    segurana: uma questo de autonomia em relao a ou-

    trem, s relaes de outrem. mesmo tendo um teto asse-

    gurado, Joo preferiu buscar um teto distante do terreno de

    seu pai (mas no conseguiu). recorrentemente, nas entre-

    vistas, percebemos a mesma situao de Joo: relativamente

    bem instalados em casas dos prprios pais ou sogros, dentro

    do terreno da Casa destes, os entrevistados no se sentiam

    donos de uma Casa. estar dentro da Casa dos pais significa

    tambm estar, de certa forma, preso s relaes dos pais (ou

    equivalentes), serem subordinados a essas relaes. o desejo

    da Casa prpria, num terreno diferente do dos pais, significa

    um desejo de se desprender das relaes que os pais cons-

    tituram para construir a prpria Casa, centralizadas no novo

    casal e filhos.

    a famlia de irani tambm ilustra o processo de busca da

    Casa e de descolamento das relaes e bens dos prprios

    pais: sua irm mora numa casa conjugada Casa dos pais

    dela. a prpria irani viu seu marido partir para os eUa e fi-

    car l por quatro anos, a fim de comprar a casa prpria para

    que eles pudessem sair da Casa onde moravam, situada sob

    a casa dos pais, no andar de baixo de um sobrado. o caso de

    isabel tambm exemplar: de famlia de classe mdia alta,

  • 49

    casou-se com um homem de classe mdia baixa. moravam

    numa casa que ficava no mesmo terreno da Casa dos pais

    dela, e, por conta disso, ela o incentivou a emigrar para tentar

    uma vida melhor e comprar uma casa prpria. o desfecho foi

    desastroso para a famlia, resultou na separao e, segundo

    ela, na instabilidade emocional de suas filhas. a importncia

    da Casa nos planos emigratrios tanta que a associao de

    parentes de emigrantes da regio leste de minas gerais (em

    processo de formao) tem como objetivo principal auxiliar

    as famlias no desenvolvimento de projetos de construo de

    casas, para evitar o superfaturamento na compra dos mate-

    riais de construo.

    contraditoriamente, um dos entrevistados, ciro, destacou

    que vrias pessoas vendem ou hipotecam suas casas para reali-

    zar suas viagens. mas esse ato sempre o dos outros, nenhum

    de nossos entrevistados vendeu ou hipotecou a prpria casa

    para financiar a viagem. a nica exceo o de conceio, pois

    ela e o marido venderam a casa em que moravam para o ma-

    rido emigrar e juntar dinheiro para comprar uma casa melhor.

    diga-se que a casa onde moravam era muito pequena e no

    comportava a famlia (nem a constituio de uma Casa). H

    casos de viagens de pessoas que j tm casa prpria, e nesses

    casos, em geral, apenas um membro da famlia nuclear est

    ausente, e o resto da famlia mora na casa j possuda.

    mas h um discurso moral, entre os entrevistados, que clara-

    mente condena esses casos. Ksia, uma das nossas entrevista-

  • 50

    das, conclui que quem tem casa prpria e um carro no deveria

    tentar a vida fora do pas, pois o risco e o prejuzo para a famlia

    podem ser grandes. carmem, outra entrevistada, tambm emite

    julgamentos morais sobre a emigrao: no considera correto

    uma pessoa que j possui casa e carro emigrar, devido ao risco

    que isso coloca manuteno da estrutura familiar. seja como

    desejo principal, ou como crtica aberta a quem ameaa a fa-

    mlia com a migrao, apesar de j possuir a Casa, os entrevis-

    tados estabelecem uma relao entre a Casa, a emigrao e o

    perigo que esta impe ao projeto familiar.

    a contradio desse processo que, durante a ausncia

    de um ou de ambos os membros, a casa (habitao ainda

    no prpria), nas quais as suas relaes vinham sendo cons-

    trudas, resulta incompleta: um marido ausente significa a

    ausncia da produo cotidiana do parentesco, da cossubs-

    tancialidade, das relaes. contra essa incompletude paira o

    risco constante de esfacelamento e dessubstancializao, e o

    elemento crucial desse risco o smen alheio (como veremos

    na parte que discute a fofoca) ou a hiperproduo de subs-

    tncia (filhos fora do casamento).

    esse risco no novidade, nem inconsciente: todos que

    se arriscam na aventura migratria tm plena conscincia

    desse perigo. todos sabem que as relaes sero colocadas

    em risco. isso apenas atesta o valor que a Casa prpria, como

    um lugar de reconstruo de centralidades nas relaes, tem

    para os sujeitos. importa estar livre das relaes dos prprios

  • 51

    pais: sair da Casa dos pais, s vezes da casa que pertence aos

    pais. esse desrelacionamento a nica possibilidade de as-

    sumir um lugar central nas relaes que se pretende estabe-

    lecer, principalmente em relao aos prprios filhos. Basica-

    mente, os aventureiros do projeto migratrio familiar querem

    reproduzir a centralidade de relaes que seus pais parecem

    ter, isso em relao aos prprios filhos.

    filHos26

    os filhos so para seus pais um grande dilema, fruto de

    angstias e sofrimentos. o fato que muitos pais e mes tm

    que conviver com a ausncia de seus filhos, quando partem

    para o exterior. e os filhos convivem com a ausncia de um ou

    ambos os pais durante longos perodos de tempo, e s vezes a

    separao definitiva. organizar a vida dos filhos na ausncia

    dos pais ou de um deles um problema muito srio. Quem

    tomar conta dos filhos? eles sero bem tratados? Haver re-

    cursos para enviar e sustentar as crianas? devem-se levar

    os filhos? devem-se levar todos os filhos?

    narrarei alguns casos relativos a essas escolhas, a ttulo

    de exemplo. Uma amiga da entrevistada Joelma voltar aos

    26 trato aqui apenas de famlias no comeo do ciclo familiar, como

    define fortes (1974), e de emigrao de casados, solteiros com fi-

    lhos ou divorciados com filhos. H, obviamente, muitos que emi-

    gram solteiros, para os quais esta anlise que proponho deve ser

    reavaliada e ponderada.

  • 52

    eUa levando apenas uma das filhas, enquanto a outra ficar

    com a av materna, que mora no mesmo bairro. H um cer-

    to conformismo gradual com a distncia, e, como nos disse

    Joelma, os filhos j no sentem tanto a falta. cludio, por sua

    vez, em entrevista nos contou de seu pequeno primo, cujo

    pai est em portugal: o menino no conhecia o pai e sempre

    perguntava por ele, s o via pelas fotos. outra entrevistada,

    lucimar, tem um filho do primeiro casamento, que mora com

    a av paterna: a criana foi criada pela av e visitava a me

    em alguns finais de semana. o atual marido, este em portugal

    havia trs anos, planejava migrar definitivamente para por-

    tugal e pretendia levar o enteado. segundo lucimar, isso era

    muito bom, pois lugar de filho junto ao pai.

    so mais comuns os casos em que o pai est ausente no

    exterior, seguido do caso no qual ambos os pais esto fora. os

    casos de me ausente so mais raros, e nessa situao pre-

    ponderam os casos em que a separao do casal aconteceu

    anteriormente migrao. H uma lgica, portanto, na orga-

    nizao do parentesco que dita o abandono mais ou menos

    temporrio dos filhos: a ausncia do marido a mais tolera-

    da, seguida da ausncia do casal e da ausncia da me, mas

    apenas quando ela j est separada. em nossas entrevistas,

    encontramos apenas uma histria sobre me ausente com

    marido e filhos no Brasil. assim, h uma determinao do lu-

    gar da me que muito forte, pois ela em geral substituda

    por uma me segunda (no caso, alguma das avs) quando da

  • 53

    migrao do casal. mas a essa importncia do lugar da me

    est relacionada uma discriminao latente em relao

    mulher do marido ausente: passam a ser tratadas como es-

    pcies de vivas de maridos vivos e, portanto, potencial-

    mente perigosas. o lugar de viva de marido vivo uma

    ameaa s demais mulheres casadas e honra do marido

    ausente. elas so submetidas intensa vigilncia, portanto.

    os casos em que os filhos no ficam com os avs pare-

    cem inspirar pena nos entrevistados, como uma alterao

    da ordem natural das coisas e como uma situao de poten-

    cial desajuste. mas h outros vrios ajustes, em relao aos

    filhos. Um exemplo o caso da tia da entrevistada sabrina:

    ela e o marido migraram, e os trs filhos ficaram no Brasil,

    morando sozinhos (j tinham mais idade). esses arranjos so

    temerrios, do ponto de vista dos entrevistados, e acabam

    sempre em problemas de comportamento dos filhos, vistos

    como abandonados. Um dos primos de sabrina, filho dessa

    tia, comeou a se envolver com drogas, e o casal decidiu

    levar os filhos para portugal: primeiro o mais novo, depois os

    dois mais velhos.

    as histrias que se contam desses arranjos alternativos em

    geral tm um tom trgico: outra amiga de sabrina, j me de

    uma filha adolescente, casou-se novamente e teve outra filha.

    depois se separou e decidiu migrar para portugal, deixando a

    segunda filha com o pai e a primeira morando sozinha. o des-

    fecho tambm foi preocupante: mediante os comentrios de

  • 54

    que a menina se envolvia com prostituio, a amiga de sabrina

    voltou para busc-la. esses dois exemplos indicam histrias

    moralizantes, que so quase pedaggicas, pois tendem a de-

    sestimular arranjos alternativos para deixar os filhos. deixar fi-

    lhos sozinhos um problema que levar ao envolvimento des-

    tes com ambientes recriminveis. os pais devero, no fim das

    contas, necessariamente resgat-los e estabelecer a ordem

    moral de que o lugar dos filhos junto aos pais.

    outro arranjo alternativo foi o de marilia, que, por conta

    das fofocas de que estaria traindo o marido, decidiu segui-lo na

    emigrao, tendo que deixar os filhos. primeiramente, deixou-

    -os aos cuidados de uma moa, que foi paga para isso, mas

    os filhos teriam sido muito maltratados. depois foram mo-

    rar com a av materna, e tambm no deu certo, por motivos

    que a entrevistada no quis esclarecer. agora, marilia prepara

    os filhos para morar com uma sua amiga, de quem os filhos,

    duas meninas e um menino, gostam muito. marilia resigna-

    -se ao fato de ficar longe dos filhos, pois acredita que estes

    j se acostumaram distncia. o caso de marilia tambm

    exemplar por demonstrar um pouco da dinmica da fofoca e

    do lugar da viva de marido vivo, que a esposa do migrante

    ausente. sob estrita vigilncia, partiu para a migrao com o

    marido, para no ver o casamento acabar. mas deixou os filhos

    em situaes consideradas arriscadas para fazer isso.

    seu Joaquim, por sua vez, ilustra dois casos em relao

    s crianas e migrao. seu filho emigrou aps se separar

  • 55

    e deixou no Brasil uma filha, que sofreu muito no princpio,

    ficando nervosa. mas agora, acostumada, j no sente mais

    falta. Uma ex-namorada de seu Joaquim tambm migrou,

    deixando com a me trs filhos. o fato contado em tom

    de desaprovao, mas a ressalva que ela nunca deixou de

    mandar o dinheiro para sustentar as crianas, o que signi-

    fica que ela tem tido o cuidado de manter ativos os laos e

    as relaes com os filhos e com a sua me, que toma conta

    dos pequenos. tambm esse exemplo ilustra outra dinmica

    comum: quando a me (ou o casal) pensa em levar os filhos,

    em geral no pode levar todos, se tem mais de um. a esco-

    lha, ento, recai geralmente no mais novo, aquele que vis-

    to como o mais vulnervel dentre os filhos. por isso que a

    ex-namorada de seu Joaquim voltar logo, para levar a filha

    mais nova (ento com sete anos) para portugal.

    Quando as famlias, de antemo, esto estruturadas de for-

    mas distintas daquela considerada moralmente adequada pelos

    nossos entrevistados, a migrao aparece como uma opo pe-

    rigosa. o caso de tatiana, que embora queira muito emigrar,

    no o pretende fazer. separada e com uma filha pequena, no

    teria como lev-la. teria que deix-la com a prpria me, av da

    menina. mas isso abriria ao ex-marido a possibilidade de pedir

    a guarda da criana, o que tatiana teme muito. assim, para no

    correr o risco, decidiu no emigrar e ficar perto da filha.

    mas mesmo o arranjo dos filhos que ficam com avs pa-

    ternos ou maternos no to bem recebido assim. Um dos

  • 56

    assistentes sociais, integrante do conselho tutelar da cidade,

    disse-nos que, quando os avs tm idade avanada, estes

    no conseguem controlar e educar os netos, podendo oca-

    sionar situaes de prostituio e consumo de drogas, os

    dois cenrios mais temidos. o caso da sobrinha de sebas-

    tiana, que migrou para portugal e deixou sua filha com a me

    (av materna). mas a irm de sebastiana (a av materna da

    menina) no deu conta de cuidar da menina, que estava

    dando muito trabalho. a me, ento, decidiu levar a filha

    para portugal tambm. por outro lado, o caso contrrio pode

    acontecer: uma amiga de paulo foi para portugal e deixou o

    filho com a sua me. em portugal teve outro filho com um

    portugus e no pensa em voltar ao Brasil ou em levar o pri-

    meiro filho para portugal: de toda maneira, segundo paulo, a

    av no permitiria, pois o menino como se fosse filho dela

    e estava com a av desde pequenino. aqui temos o caso em

    que a migrao levou a rupturas definitivas nas relaes: a

    av passou me, e a me aceitou o fato.

    os casos que chegam ao conselho tutelar relacionados

    imigrao so muitos e, em geral, tratam de denncias de

    maus tratos s crianas de pais ausentes, ou de mes que

    no cuidam direito dos filhos enquanto o marido est au-

    sente. muitas vezes as denncias so feitas pelos prprios

    pais que esto no exterior. o processo da migrao, segundo

    esse assistente social, acarreta tambm muitas disputas pela

    posse das crianas. Quando o conselho tutelar, por exemplo,

  • 57

    constata que determinadas crianas so bem criadas tanto

    pelos avs maternos quanto pelos avs paternos, a dispu-

    ta pela guarda chega justia. H tambm o caso de pessoas

    que disputam a posse das crianas apenas pelos recursos que

    so enviados pelos pais para o seu sustento. em geral, isso

    acontece quando se trata de pessoas mais distantes, como

    babs, amigos ou parentes distantes. com avs, mais fre-

    quentemente, isso no acontece.

    aqui temos a evidncia de uma lgica relacional no tra-

    to com as crianas: elas esto bem se se mantiverem dentro

    daquelas relaes originais das quais os pais pretendem au-

    tonomia com a Casa nova (aquela dos avs). mas essas rela-

    es so vistas como as que naturalmente acolhero bem as

    crianas, mesmo com o risco de que, com a idade avanada,

    os avs no consigam educar os netos. mas os outros arranjos

    que fogem a essa lgica so condenados nas duas dimenses:

    podem levar os filhos para os dois caminhos mais temidos (a

    droga e a prostituio) e tambm sujeitam os filhos gann-

    cia e aos maus tratos de quem foi pago para cuidar deles. a

    constatao que podemos fazer que cuidar dos filhos no

    algo que deve ser pago, ou seja, as relaes prescrevem

    um dever de cuidar dessas crianas. o dinheiro enviado

    no para pagar quem cuida, mas para sustentar os filhos e

    manter a relao. o dinheiro entra como fluxo de substn-

    cia a distncia, produzindo o bem-estar material dos filhos

    (alimentao, roupas, escola, brinquedos, etc.) e amarrando

  • 58

    as relaes na ausncia fsica dos pais, que se fazem sempre

    presentes atravs do dinheiro.

    a contradio desse processo de emigrar para constituir

    a prpria centralidade do casal na migrao que, para fazer

    isso, muitos acabam por acentuar a centralidade daquelas re-

    laes que pretendem abolir: o caso dos casais que migram

    e deixam os filhos sob a guarda de uma das avs. so muitos

    os exemplos em que a migrao feita em dupla, simultanea-

    mente ou no (em geral o marido migra primeiro e depois leva

    a mulher). Quando isso acontece, via de regra, os filhos do ca-

    sal (quando existem) so criados pela av. como demonstrou

    fonseca (2004), a prpria ideia de criao uma fabricao

    de parentesco por vias no necessariamente consangune-

    as. no caso das avs, alm das formas de criao, ou seja,

    a convivialidade cotidiana, a comensalidade e o cuidado, as

    relaes so intensificadas pelos laos consanguneos. nesse

    caso, os filhos do casal ficam mais e mais ligados s relaes

    dos avs, aquelas das quais os pais pretendem se distanciar

    para constituir a prpria centralidade. ou seja, o projeto dos

    pais, de construir a Casa, pode submeter a prpria famlia a uma

    acentuao daquelas relaes das quais pretendiam se afastar.

    a vontade do casal que migra junto, em geral, acentuar

    a capacidade de obter recursos e voltar antes, alm de pre-

    servar a prpria relao dos riscos da separao (o marido ou

    esposa ausente). nesses planos no cabem os filhos, num pri-

    meiro momento. isso os leva a uma dependncia em relao

  • 59

    queles que vo cuidar dos filhos na ausncia do casal. o des-

    fecho dessas situaes um retorno que pode se prolongar,

    e, nesse caso, os filhos vo passando cada vez mais para os

    avs: ou seja, a cossubstancialidade amplia-se num grau que

    j se torna quase irreversvel. mesmo quando o casal volta e

    constri a Casa, h casos em que os filhos continuam mo-

    rando com os avs. ou acontece tudo conforme o planejado,

    e os pais voltam logo, com os planos realizados e conseguem

    conquistar a Casa prpria, to almejada. outra sada tambm

    frequente a constatao de que os planos no sero facil-

    mente atingidos ou que, enfim, a vida no exterior pode ser

    melhor que a vida em Valadares: nesses casos, os planos da

    Casa prpria so transferidos para o exterior, como novo lu-

    gar de construo das relaes centralizadas to importantes

    s pessoas. nessas situaes, a primeira atitude dos casais

    levar os filhos para o exterior, processo que vai alimentar

    um mercado paralelo de transportadores de crianas, que

    podem ser desde parentes at pessoas pagas para realizar tal

    travessia. H, claro, solues intermedirias e casos variados:

    famlias que se estruturam permanentemente a distncia,

    casais que levam apenas alguns dos filhos para o exterior, etc.

    fofoca

    Uma questo importante relaciona-se ausncia dos

    maridos no cotidiano de suas esposas que permaneceram

    no Brasil: as entrevistas demonstram como h uma suspei-

  • 60

    o permanente sobre as mulheres, em geral capitaneada

    pela famlia do marido ausente. o mesmo no se pode dizer

    quando o marido quem fica, pois tivemos acesso a apenas

    uma histria com esse teor. Quando o casal que muda, ob-

    viamente, no acontece nada disso, embora muitas vezes a

    mulher emigre posteriormente, para juntar-se ao marido,

    justamente para se livrar das fofocas que essa situao gera.

    a Casa como centro das relaes de um ncleo familiar s

    funciona se for, na percepo dos entrevistados, completa,

    isto , tem que ter o marido, seno vista como suspeita,

    ameaadora, e, assim, os arranjos alternativos que ocorrem

    durante a migrao so tambm vistos como perigosos. as

    mulheres nessa situao tm como alternativa uma reorde-

    nao da moradia: trazem as prprias mes para morar com

    elas. de certa forma, a me substitui a figura do marido, dan-

    do confiabilidade quela casa. a entrevistada Joelma nos

    conta, por exemplo, como algum, que ela imagina ser da

    famlia do marido, denunciou-a ao conselho tutelar, porque

    no cuidaria bem dos filhos. a visita do conselho nada pde

    provar, mas ela ficou em alerta redobrado contra as fofocas

    que a sua situao de viva de marido vivo desperta.

    a maior fonte de fofoca, como se pode imaginar, o com-

    portamento sexual da esposa do migrante ausente: suspeitas

    de traio podem acabar com o relacionamento, fim que

    consumado com a interrupo das remessas de dinheiro. r-

    nio conta-nos que a respeito de sua mulher nunca surgiram

  • 61

    comentrios, pois ela preferiu morar com a prpria me, evi-

    tando ficar sozinha com os filhos. aconteceu com rnio o

    contrrio, tambm muito frequente: as fofocas diziam que ele

    havia arrumado outra famlia em portugal. aqui temos, ape-

    nas na aparncia, uma situao similar e inversa traio fe-

    minina: a traio masculina no ameaa tanto o casamento,

    contanto que o dinheiro da remessa continue fluindo. ou seja,

    a capacidade de produzir substncia que alimente e construa

    as relaes eminentemente masculina, no cabendo mu-

    lher muito que fazer quando recebe denncias. ela no pode

    ter certeza, e enquanto o marido envia o dinheiro h a evi-

    dncia de que o casamento e os planos originais continuam

    a existir. o desnvel das relaes entre homem e mulher fica

    evidente no peso da traio de cada um: se a mulher trai, o

    casamento tem grandes chances de acabar; se o homem trai,

    o casamento no acaba necessariamente. e, acima de tudo,

    o fim das remessas que sinaliza o fim das relaes, que fica,

    portanto, por conta da iniciativa do homem.

    em outro caso, a mulher do tio de gildsio trouxe a irm

    para morar com ela quando o marido emigrou: ficar s em

    uma casa com os filhos parece altamente reprovvel numa

    lgica moral nativa. s vezes, mesmo morando com outras

    pessoas, a fofoca ameaa casamentos: foi o caso do irmo

    mais velho de sabrina, cuja esposa foi morar com a me,

    mas mesmo assim foi alvo de suspeitas. marilia lembra que,

    quando seu marido foi para portugal, colocaram at homem

  • 62

    na minha cama. o sentimento de falta de proteo foi to

    grande que ela preferiu emigrar e deixar os filhos, para salvar

    o casamento. a vigilncia tambm implica em discriminaes

    s amizades das esposas. Joelma conta-nos que teve de abrir

    mo de uma amizade com uma mulher cujo marido estava

    no exterior, j que ela tinha fama de tra-lo, e a famlia do

    esposo de Joelma no via com bons olhos essa amizade, que

    poderia, de certa forma, contamin-la. creuza contou-nos

    sobre seu casamento, que ruiu devido fofoca de vizinhos,

    atingindo a honra do marido. embora jurasse inocncia, o ma-

    rido no aceitou suas argumentaes, e o casamento acabou.

    Waldeci tambm nos relatou sobre o enorme preconceito

    que atinge as mulheres