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cultural Entrevistas | Reportagens | Livros | Cinema | Gastronomia | Artes plásticas | Viagem A trajetória das artes plásticas no Amazonas 18-35 Diário de viagem entre a China e a Alemanha 56-63 Índios do rio Negro em ação interétnica 72-81 www.valercultural.com.br Ano I n.º 3 dezembro/2012 R$ 9,90 Amazônia exige nova geografia Bertha Becker

Valer Cultural 3

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Revista de cultura da Editora Valer

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cultural

Entrevistas | Reportagens | Livros | Cinema | Gastronomia | Artes plásticas | Viagem

A trajetória das artes plásticas no Amazonas18-35

Diário de viagem entre a China e a Alemanha56-63

Índios do rio Negro em ação interétnica72-81

www.valercultural.com.br

Ano I n.º 3

dezembro/2012

R$ 9,90

Amazônia exige nova geografia

Bertha Becker

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cultural

Diretor ExecutivoIsaac Maciel

Conselho EditorialMárcio SouzaRenan Freitas PintoIvânia VieiraTenório Telles

Diretor de redaçãoWilson Nogueira MTB/AM 365

Editora executiva Suelen ReisMTB/AM 235

Assistente de Edição Maria do Rosário R. NogueiraMTB/AM 148

INVCInstituto Nacional Valer de Cultura

Av. Joaquim Nabuco, 1.605 – CentroCEP 69020-03

Manaus-AMTel. 92.3234-9830

www.valercultural.com.br

[email protected]

editorial

Nunca a Amazônia mobilizou tantas

preocupações como atualmente.

Não poderia ser diferente. Não se

trata mais de um país ou de um gru-

po de países a querer tê-la sob seu controle para,

por meio do usufruto dos seus recursos naturais,

resolver problemas econômicos cíclicos. O mun-

do vive hoje uma crise ambiental planetária, cuja

persistência poderá até levar a terra a um colapso

total. O mais preocupante é que essa “ameaça de

morte” vem dos seres humanos. Com enorme di-

versidade biológica e social, a Amazônia energiza

os debates sobre os rumos do planeta.

Razão, paixão, imaginação, criatividade e ex-

periência de vida se chocam e se imbricam no

emaranhado de vozes que dão vazão aos dese-

jos de dominá-la, libertá-la ou tê-la em simbio-

se com as necessidades do sistema-vida. Afinal,

a Amazônia é um mundo entremeado de outros

mundos socioambientais: florestas, rios, minerais,

bichos, lugarejos, aldeias, cidades e metrópoles.

Mundos que precisam ser compreendidos em suas

particularidades e universalidades, para que o fio

da esperança se engrosse e impeça as ações que

tendem a transformá-las num deserto.

Do alto dos seus mais de quarenta anos de

pesquisa, dedicados à Amazônia, a doutora em

Geografia Bertha Becker, 82, acredita que é pos-

sível, sim, transformar recursos naturais em rique-

za sem, necessariamente, destruir suas reservas.

Mas nada se fará nessa direção, segundo ela, sem

medidas que se orientem pela associação do co-

nhecimento científico com os saberes tradicionais

da região. E muito menos sem o devido respeito

ao patrimônio cultural e material dos povos indí-

genas, como reclamam as etnias do alto rio Ne-

gro, cujos minérios, florestas, peixes, caças e terras

continuam sendo subtraídos pelo poder econômi-

co. Cidades e aldeias se entrechocam e se comple-

mentam ao mesmo tempo na busca de soluções

para os seus dilemas: seja na reivindicação de um

posto de saúde, com médico ou remédio alopático,

seja nos chás do curador ou na reza ao santo de

devoção.

É assim a Amazônia. É assim que ela permeia

estas páginas.

Boa leitura.

Isaac Maciel Diretor-executivo

Design e Direção de Arte Heitor Costa

Designer assistente Bruno Raphael

Foto da capa Wilson Nogueira

Revisão Núcleo de Editoração Valer

Assinatura e publicidadeDarliane Michele – [email protected]

Colaboradores desta edição:Alfredo Cordiviola, Ana Goreth Antony, Antonio Lima, Barbara Nascimento, Emiliana Teirxeira, Jony Clay Borges, Lane Lima, Leandro Curi, Marcus Stoyanovith, Mário Geraldo Fonseca, Neiza Teixeira, Renata Paula, Thaís Brianezi.

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Uma história de arte no Amazonas

A medicina que vem da floresta

18 38

cultural

7 Amazônia segundo Bertha Becker46 Vera Cruz é aqui!84 Banquete gelado

De Xangai a Berlim, de perto nada é normal

56

Karl Marx em memória

88

94 Um filme de autor ou um autor de filmes100 Quixote ou as virtudes da ambiguidade

Índios em movimento

Frauta de barro – Uma rapsódia da memória

72

106

Esporte: o novo alvo do mercado literário

64

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Na avenida Atlântica, em Copacabana, mora uma

senhora cientista que, desde a década de 1970,

enfrenta sol e chuva para acompanhar, por meio

de investigação científica, a expansão das fren-

tes econômicas sobre a Amazônia. Ela é Bertha Becker, 82,

doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio

de Janeiro (UFRJ). Seus livros e estudos geram reflexões e

sugestões em favor do uso sustentável da Amazônia. Ela

defende que é possível transformar recursos naturais em

riqueza sem os destruir, basta, segundo ela, que o poder

público defina o manejo dos vários ecossistemas amazôni-

cos com base em marcos regulatórios compartilhados por

princípios sociais, ambientais e econômicos. [...] “Ninguém

pode conhecer tudo da Amazônia, mas tenho uma visão de

conjunto muito maior”, assinala a pesquisadora, para res-

ponder aos que lhe criticam pelo fato de não morar na

Amazônia. Bertha Becker atuou, como consultora

para a Amazônia, no então Ministério de

Assuntos Estratégicos do Governo

A Amazônia segundo Bertha Becker

entrevista | Bertha Becker

Wilson Nogueira e Suelen Reis | jornalistas enviados ao Rio de Janeiro

Foto

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6 valercultural

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Page 8: Valer Cultural 3

Lula, dirigido pelo polêmico cientis-

ta Mangabeira Unger. Antes, ela foi

professora do Instituto Rio Branco e

formando diplomatas desenvolveu

a convicção de que geografia é,

também, ciência política. Ela reve-

lou que pretende fazer um levanta-

mento quantitativo da aplicação das

suas propostas. “Muitas das minhas

propostas foram realizadas, mas

não me foram dado crédito”, recla-

ma. Entre as propostas que ela gos-

taria de ver sair do papel estão a da

transformação de Manaus em cida-

de mundial de serviços. Uma ideia,

por sinal, que lhe custa caro, porque

não agrada aos políticos nem aos

pesquisadores dos demais Estados

amazônicos. Confira a entrevista

que ela concedeu à VC, na manhã

do dia 22 de agosto, quando Co-

pacabana vestia-se de uma névoa

cinzenta e o Atlântico se insinuava

marrento para os surfistas.

SUELEN – Qual seria o maior desafio

do país para implantar uma política

de preservação?

BERTHA – Não acho que a gente

deva sair por meio da preservação.

Com a preservação não mexeria

em nada. A gente não pode ficar

nesse luxo de não usar, mas tem

que ser um uso mais consciente. Aí

que está a [necessidade] de inova-

ção. Temos muita coisa para inovar.

Como utilizar sem destruir. Esse é o

nosso desafio. Para mim, o grande

desafio da Amazônia é esse: inovar.

SUELEN – Aí dependeria de quê? De

pesquisa, incentivo do Governo...

BERTHA – De muita pesquisa, in-

clusive do conhecimento tradicio-

nal. Para mim, pesquisa tem que

envolver todos os tipos de saberes:

conhecimento tradicional, pesquisa

avançada, pesquisa de classificação.

O pessoal muitas vezes olha com

desprezo [para a pesquisa tradicio-

nal], que era a pesquisa que domi-

nava na Amazônia. Não era a clas-

sificatória que dominava. Aí chega-

ram os grandes projetos trazendo a

pesquisa avançada. Não chega ser P

& D, mas avançada. Os projetos do

LBA, projeto Geoma, PPG7, quando

vieram, introduziram na Amazô-

nia – e muito depressa, inclusive –

uma nova forma moderna de fazer

pesquisa. Isso se chocou com a in-

vestigação tradicional que se fazia.

Museu Goeldi e Inpa faziam pes-

quisa classificatória – a pesquisa de

conhecer todos aqueles elementos

da floresta e classificar os vegetais,

os animais.

NOGUEIRA – Agora essa pesquisa

de larga escala tem um comando.

Veio de fora para dentro...

BERTHA – Veio de fora pra dentro?

Bom, o Goeldi?

NOGUEIRA – Digo, essas novas...

BERTHA – Ah, certamente! Aliás, na

Amazônia quase tudo veio de fora,

não é? A não ser os índios e os re-

cursos naturais. O resto veio tudo

de fora (risos). Então, no livro que

estou fazendo agora, sigo uma te-

oria de Jane Jacobs que diz que as

cidades comandam as expansões

econômicas. Não são as economias

nacionais, não. São as cidades. E

para que elas se dinamizem e di-

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namizem a economia têm que ter

trabalho novo. É a inovação no tra-

balho. Mas o trabalho novo se fun-

damenta nos parentes antigos, no

trabalho velho.

Aí fiquei: meu Deus do céu! Quan-

do começaram a fazer núcleos na

Amazônia, onde estava o trabalho

velho? Núcleos! Só vieram os portu-

gueses, franceses, ingleses, holan-

deses. Todo mundo querendo tomar

conta do pedaço. E qual era o tra-

balho velho sobre o qual o trabalho

novo pudesse se sedimentar? Era o

trabalho dos índios.

NOGUEIRA – Os índios sequer tive-

ram a oportunidade de apresentar

suas experiências...

BERTHA – Mas eles [os colonizado-

res] se apropriaram do trabalho ve-

lho. O que o pessoal fez? O trabalho

novo foi fundamental em que senti-

do? No conhecimento que os índios

tinham dos produtos, dos recursos

naturais; no conhecimento que os

índios tinham das trilhas, dos ca-

minhos pra chegar às espécies e ao

uso delas. Usavam o cacau como

“moeda de troca”, eles usavam a

borracha, os utensílios domésticos

de borracha. Utilizaram o trabalho

velho dos índios. Isso é interessan-

te. Foi isso que deu origem aos pri-

meiros núcleos na Amazônia: a caça

ao índio e domínio de território. Os

índios é que deram para eles...

NOGUEIRA – Falando em território, a

senhora defende uma ideia de que

a Amazônia é um território contido

de vários outros territórios.

BERTHA – Ela não é homogênea, ela

não é igualzinha.

NOGUEIRA – Como é que estão es-

ses territórios agora? Pela sua tese,

eles se constroem, se reinventam...

SUELEN – A senhora podia falar so-

bre as diferenças entre eles e sobre

o conjunto...

NOGUEIRA – Com o tempo, décadas

de 1970, 1980, 1990, e passado o

milênio – e a senhora também es-

creve sobre o novo milênio –, como

é que se encontram esses territó-

rios?

BERTHA – Nossa senhora! Vou fa-

lar o atual. O que fiz mais recente,

mais atual, porque pensando no

desenvolvimento da Amazônia Le-

gal... Estou pensando, por que ela

tem tantas ligações hoje que fica

difícil separar, né? Então, fiz três

grandes unidades diferenciadas

dentro da Amazônia. E as unidades

são baseadas em quê? Na vegeta-

ção e no modo pelo qual essa ve-

getação, esse território foi utilizado,

foi apropriado e utilizado.

Por que eu cheguei a essa visão de

três grandes unidades? Por causa

de uma coisa extremamente im-

portante. Estávamos vendo a ques-

tão do desmatamento e cheguei à

conclusão que chamo de “coração

florestal”, que ainda está bastante

conservado. A mata densa. Isso tem

“ Na Amazônia quase tudo veio de fora, não é? A não ser os índios e os recursos naturais”

Pesquisadora afirma que a caça aos índios deu origem aos primeiros núcleos da Amazônia

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que considerar uma estratégia es-

pecífica pra gente salvar a Amazô-

nia. Foi por isso que vi agora essas

unidades diferenciadas, três delas.

A primeira, de baixo pra cima, do Sul

para o Norte seria o cerrado. O cer-

rado é uma unidade muito caracte-

rística pela vegetação e pela forma

como foi apropriada. Não fico pen-

sando só no passado: o que foi. Fico

pensando o que pode se fazer ali.

O que seria bom fazer no cerrado?

Como é que se pode salvar? Então,

acho que no cerrado se deve fazer

um reflorestamento de muitas áre-

as, porque ele já foi 40% devastado.

Teria que fazer uma coisa que falo

e ninguém gosta muito, não: teria

que fazer a industrialização daquele

complexo produtor de soja, algo-

dão e milho, porque todo mundo

fala agroindústria do cerrado. Não

há agroindústria nenhuma, aquilo

não é agroindústria, é agronegó-

cio. Não tem indústria nenhuma.

Tá entendendo? Então eles teriam

que avançar e fazer a agroindústria

daquela área. Não é acabar com

aquilo não, porque afinal de contas

aquilo é uma coisa que foi constru-

ída, é uma riqueza. Mas é isso para

avançar, para trazer emprego. Tem

que beneficiar. Agregar valor. Acho

que isso é fundamental.

O Governo devia ir em cima para

aquele agronegócio se transformar

efetivamente numa agroindústria.

Reflorestamento e criação de áre-

as. Mudar a reforma agrária é uma

das coisas fundamentais – para

mim – que tem que acontecer na

Amazônia. Aquilo que se faz lá não

é uma reforma agrária. Então, tem

que criar núcleos: cinquenta colonos

mais ou menos, próximos a estra-

das e próximos a cidades, para que

eles tenham mercado. Não adianta

jogar a turma no meio da mata sem

estradas, sem cidades, porque os

colonos não têm nem como esco-

ar a produção, nem mercado para

comprá-la.

NOGUEIRA – Vai abrir para a explo-

ração de madeira, não é? Como tem

acontecido.

BERTHA – Exatamente. Então o que

eles fazem? Exploram a madeira.

Em vez de soltar a turma na mata,

“ Todo mundo fala de agroindústria do cerrado. Aquilo não é agroindústria, é agronegócio”

Moradores podem contribuir para o desenvolvimento da região

Foto

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man

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Page 11: Valer Cultural 3

no meio da vegetação do cerrado,

sem aceso à estrada e à cidade,

tem que colocar núcleos de uns cin-

quenta colonos perto de estradas e

de uma cidade que seja mercado.

Aí eles podem fazer uma produ-

ção em escala. Cada um teria seu

lote, mas seria uma produção, todo

mundo fazendo a mesma produção,

digamos assim... E aí você tem uma

produção em escala maior.

NOGUEIRA – Mais competitiva...

BERTHA – Mais competitiva e inclu-

sive com frutos, com legumes para

abastecer as cidades. É o que está

precisando na Amazônia.

Depois do cerrado, indo pro Norte,

você tem o que se chama a mata

aberta, floresta ombrófila, aberta.

Essa floresta já foi derrubada em

50%. O cerrado em 40%, a ombrófi-

la em 50%. E realmente você vai de

avião em direção ao Acre, passa por

Rondônia já quase sem mata. Coisa

horrível. Então o que fazer na mata

aberta derrubada? Reflorestamento,

também.

Acho que a mata aberta é a área

privilegiada para madeira. Madeira

manejada e controlada. Refloresta-

da, manejada, porque sou contra as

concessões na mata densa, aque-

la que vem lá de cima. Acho que

isso tudo das concessões devia se

concentrar na mata aberta, que já

está derrubada em 50%, que tem

madeiras ótimas, tem gente pra

manejar, tem estradas. Tem estra-

das porque a mata aberta tem as

grandes capitais: Rio Branco, Porto

Velho, agora aquilo está virando um

polo logístico para a América do Sul,

depois tem o Norte do Mato Gros-

so, um pedaço; tem um pedaço do

Pará. Essa mata que já foi derrubada

e que tem madeiras boas e tem es-

tradas e cidades e gente. Já tá meio

caminho andado. Então tinha que

fazer uma exploração da madeira

decente, que é ridículo a Amazônia,

aquela floresta toda não ter uma

economia madeireira. Então, eco-

nomia madeireira decente, digna.

Inclusive, podendo até levar a fazer

derivados. Tem-se usado a madeira

(conglomerados já é café pequeno),

tecnologias novas, inclusive etanol

de segunda geração. Já estão fazen-

do de terceira em outros lugares e

“ É ridículo na Amazônia aquela floresta toda não ter uma economia madeireira”

Bertha afirma que a mata aberta é área privilegiada para o manejo controlado de madeira

e critica a agroindústria do cerrado

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aqui nem se aproveita madeira ain-

da, nem faz os aglomerados.

E, finalmente, ao Norte desta mata

aberta tem a mata densa. Flores-

ta andrófila densa. Aí com árvores

milenares, grossas, antigas. E onde

as cidades são cidades paradas no

tempo, onde não tem estradas. As

estradas, num modo geral, pararam

no contato entre a mata aberta e

a mata densa. Agora é que estão

avançando pra cima da mata densa

com aquela rodovia, a BR-319, que

querem fazer de Porto Velho pra

Manaus. Aquela vai ser em cima da

mata densa, mas até agora, mesmo

a Transamazônica, está no contato

da mata aberta com a densa. E por

que esse contato? Aí nesse contato

é a linha de cachoeiras, das corre-

deiras. Onde acaba a rocha dura e

começa a planície amazônica, a

planície sedimentar da Amazônia.

Há cachoeira com energia até para

aproveitamento. A partir daí, há

navegação fluvial disponível. Isso

tudo é a mata densa. Muita madei-

ra, muita navegação fluvial, e ainda

uma economia ribeirinha e extrati-

vista, na beira do rio, cidades fan-

tasmas, e Manaus como o grande

centro da mata densa.

Acho que aí tem que inovar muito

nessa mata densa. Vejo aí o apro-

veitamento do desenvolvimento

tecnológico para o aproveitamento

da biodiversidade. Por exemplo:

fármacos. Produzir fármacos, pro-

duzir aproveitando essa biodiversi-

dade fantástica da Amazônia. Daí

o pessoal diz: “Ah!, a gente não

pode competir com os laboratórios

internacionais”. Mas nós podemos

sim, porque podemos fazer isso

para consumo interno. Temos uma

população enorme que carece de

remédios, com problemas de saúde

terríveis. E a gente pode fazer isso

voltado para o mercado domésti-

co. Não tem que fazer para a ex-

portação e ficar competindo com

os estrangeiros. Existem algumas

empresas, como o laboratório Aché,

que faz produtos com plantas daqui,

para o mercado interno.

Você já imaginou se usasse isso para

fazer fármacos... Ia atender à saúde

da população brasileira utilizando a

biodiversidade da mata fechada!

NOGUEIRA – A sua voz tem sido ou-

vida no Governo? Como a senhora

se sente?

BERTHA – Boa pergunta a sua. Sabe

que acabei de pedir um projeto do

CNPq para fazer esse levantamen-

to. Engraçado! Se a minha voz tem

sido ouvida? Acho que até tem, em

algumas coisas. Às vezes, escuto

no discurso de alguns umas ideias,

algumas coisas que são minhas,

que já falei antes e que eles usam.

Mas isso só não resolve. O negócio

é ver o que é que se faz. Eu vejo,

por exemplo, uma coisa que sei

que aconteceu. Eu havia sugerido

“ Vejo o desenvolvimento tecnológico para o aproveitamento da biodiversidade. Produzir fármacos aproveitando a biodiversidade fantástica da Amazônia”

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cadeias da biodiversidade. Criaram

uma lei. A lei de formar cadeias da

sociobiodiversidade.

SUELEN – E a senhora foi ouvida

nesse momento?

BERTHA – Não. Ninguém veio me

perguntar, mas eu tinha feito um

trabalho para o Ministério da Ciên-

cia e Tecnologia sugerindo isso. E

foi criado. Alguém ouviu e criou. Sei

que o MCT ouviu.

SUELEN – Sem dar o crédito, mas...

BERTHA – Pois é, não deram o cré-

dito. Se dessem o crédito era fácil

de fazer esse levantamento. Mas

ninguém dá crédito não, minha

filha.

A lei foi feita, mas se você disser

que ela funciona muito, a ação não

é consolidada de acordo. Então, às

vezes é ouvido, mas fica mais no

discurso que na prática. Diria isso:

sim, a minha voz, às vezes, é ouvi-

da, mas é muito mais absorvida no

discurso do que na prática.

SUELEN – E sobre as cidades mun-

diais? A senhora fala que Manaus

seria a única no mundo com poten-

cial para ser uma cidade mundial..

BERTHA – Mas falo isso para com-

pletar a mata densa. O que poderia

ser feito? Fármacos seria uma coisa

ótima. Pode organizar o mercado

não só de carbono, porque acho

isso perigosíssimo, sou contra o tal

do RED [Diretivas de Energias Reno-

váveis], mas sou a favor do merca-

do de serviços ambientais. Se for

bem organizado, sem corrupção, a

coisa digna, aí seria o caso de fazer

isso na mata densa. Para conservar.

O que quero na mata densa é que

ela seja defendida não por meio de

ficar isolada e parada sem nada. A

defesa seja por meio de uma pro-

dução adequada. É isso que se deve

fazer. Não é ficar sem nada, é fazer

sem destruir.

Dentro da mata densa, outra pos-

sibilidade é exatamente essa.

Transformar Manaus numa cidade

mundial. Existem algumas cidades

mundiais hoje. Acho que Londres é

maior que Nova York, depois vem

Nova York, depois vem Hong Kong.

Não pensem que é Berlim ou Paris

porque não é, é Hong Kong. Tal-

vez agora Xangai já seja a quarta,

porque a coisa na Ásia não está de

brincadeira. Mas não se trata do ta-

manho da cidade. A cidade mundial

é aquela que tem na concentração

de serviços de alto valor e únicos.

Concentração de serviços altamente

valorizados.

Esses serviços passam a ter escritó-

rios em outras cidades do mundo.

“ A minha voz, às vezes, é ouvida, mas é muito mais absorvida no discurso do que na prática”

Bertha afirma que Manaus é a única capital brasileira com possibilidade de ser uma

cidade mundial

Foto

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Page 14: Valer Cultural 3

Elas têm as matrizes dos serviços

mais avançados e aí elas contro-

lam a economia mundial. Serviços

financeiros, serviços de pesquisa,

serviços de marketing, propaganda,

uma bolada de serviços. Financeiro

é fundamental, marketing é fun-

damental, security (seguridade).

Pesquisa nem se fala. Todos esses

serviços importantes é que domi-

nam hoje a economia. E quando se

concentram em algumas cidades,

essas cidades passam a controlar a

economia mundial.

Manaus poderia se transformar

numa cidade mundial a partir da

prestação de serviços ambientais,

que nenhuma outra cidade do mun-

do possui. Estou considerando ser-

viços ambientais como serviços de

valores altíssimos, que não estão

à disposição em outras cidades do

mundo. Elas têm serviços financei-

ros, mas ambientais não têm.

E por que Manaus? Porque o pes-

soal de Belém (insinua um ciúme

da capital paraense, em relação a

Manaus). Porque Manaus tem uma

posição estratégica em relação a

toda a Amazônia. Tudo isso que es-

tou falando está na mata aberta e

na mata densa. É a borda da grande

floresta amazônica sul-americana.

É a borda daqui que termina lá no

Amapá, no Norte de Goiás. Aquela

faixa de floresta. Ela está em uma

posição de frente para esta flores-

ta amazônica sul-americana. Onde

não tem uma cidade no nível de

Manaus. Aí no meio da floresta não

tem. É ela. E ela tem uma posição

estratégica também em relação

à drenagem da Amazônia porque

passa toda a drenagem lá do Acre,

dos afluentes da margem sul e da

margem norte por Manaus. E tem

ainda essa presença da grande flo-

resta não destruída. Então, Manaus

está nessa posição que lhe dá con-

dição de poder prestar serviços am-

bientais. Para que isso aconteça, ela

tem que se planejar. Ela teria que

ter muito mais pesquisa adequada

para isso, teria que ter um merca-

do. Sugeri, inclusive, uma bolsa de

valores.

Teria que desenvolver como valo-

rizar o carbono, a biodiversidade,

a água, porque tudo isso são, na

verdade, serviços que a natureza

presta, serviços ambientais. Esse é

o grande desafio.

NOGUEIRA – A senhora já falava

também, em um dos seus textos,

que Manaus não tem mais aquela

característica de economia de en-

clave. Que ela também já expande

as suas especialidades.

BERTHA – É. Não, ela já tem cone-

xão com outras cidades. Ela pode

“ Manaus poderia se transformar numa cidade mundial a partir da prestação de serviços ambientais que nenhuma outra cidade do mundo possui”

Apesar de vários projetos de pesquisa, para ser cidade mundial, Belém teria que fazer

um planejamento mais específico

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Page 15: Valer Cultural 3

montar uma rede envolta dela, mas

logo depois não existe nada. Mui-

to pouco, Itacoatiara. Mas é que a

cidade só se desenvolve quando

ela consegue formar a sua região.

Através da rede. Se conectar com

outras cidades e há, inclusive, com-

plementaridade. E o grande proble-

ma na Amazônia é que os núcleos

cresceram. Às vezes, tiveram surtos

e declinaram, não fizeram regiões à

sua volta. Não organizaram regiões

ao seu entorno. Então, Manaus e

Belém, de acordo com a teoria, se-

riam, talvez, as únicas cidades, com

esse nome de cidade na Amazônia.

São lugares centrais.

SUELEN – Aí entra aquela eterna bri-

ga entre as duas capitais...

BERTHA – Exato. Há briga. Quando

falei que Manaus era a única (com

potencial para ser cidade mundial),

eles perguntaram: “Por que não Be-

lém?”. Por causa disso, porque ela

tem essa posição privilegiada. Então

acho que é ela. E ela já tem uma

base de pesquisa inicial, projetos,

se bem que da parte de pesquisa

Belém tem mais. Mas teria que fa-

zer um planejamento se quisesse

se transformar.

Acho que isso é muito importante.

Por quê? Porque hoje em dia é pos-

sível promover desenvolvimento

através de indústria criativa. Coisas

excepcionais que ficam num lugar,

aproveitando determinadas con-

dições, e que são completamen-

te diferentes. Essas até não têm

redes, não têm tantas redes, não

criam tantas regiões. Elas são as-

sim. Emergem alí como uma coisa

especial, que é feita naquela região.

NOGUEIRA – A senhora estaria fa-

lando, por exemplo, de Nova Déli

como especialista em programas de

computador...

BERTHA – Estou falando de

Hollywood. Indústria de cinema na

Ásia. Houve um filme aí, no Globo

Repórter, mostrou a Eslovênia e, no

meio da floresta, uma fabricação

de queijos tão especiais caríssimos

que, para lá, vai gente do mundo

inteiro comprar os queijos. Uma

coisa nucleada no meio da floresta,

mas de alto valor. Então, no caso, o

que estou falando de Manaus é um

pouco isso. Ela ser uma cidade que

presta serviços ambientais no meio

da mata.

NOGUEIRA – Em relação ao novo có-

digo florestal, qual é a sua opinião.

BERTHA – Não tenho grandes opini-

ões. Acho, pelo que os meus cole-

gas dizem, foi muito ruim. Fizeram

um negócio que eu já até cheguei a

falar numa entrevista e num artigo

que é mais um código da agricultu-

ra que florestal. Regulando, dando

muito mais margem pra agricultura

e limitando a floresta. A preocupa-

ção não foi mais com a floresta, a

preocupação foi limitar a floresta.

No momento o que acho é isso: não

posso ir mais fundo porque estou

entusiasmada com minhas cidades.

NOGUEIRA – A senhora sempre fala

em seus livros em relação às fontes

de energia, no caso, as energias re-

nováveis na Amazônia. As hidrelé-

tricas. Esse é um problema também

que mexe com as cidades, com as

populações.

BERTHA – Acho que nós vamos ter

que fazer uma ou outra hidrelétrica.

Não pode jogar fora esse potencial

enorme de energia, essa linha de

cachoeiras, que falei para vocês,

“ (O novo código florestal) é mais da agricultura que florestal. Regulando, dando muito mais margem para a agricultura e limitando a floresta”

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a passagem do cristalino para se-

dimentado, um volume de água

enorme que a gente não pode dis-

pensar. Uma fonte de energia que

é limpa. A não ser quando se faz

sem planejamento, que tem uma

migração horrível, com refloresta-

mento. Aí ela deixa de ser limpa.

Mas a fonte em si é limpa. A água.

A Europa está querendo mudar al-

ternativas e uma das coisas que ela

está fazendo é hidrelétrica. Porque

antes era tudo na base do carvão

nuclear. Então, para ela, a energia

hidrelétrica é limpa e para nós não

é? Qual é, cara-pálida? Acho que a

energia hidrelétrica para nós é ex-

tremamente importante. Contando

que ela seja planejada para não

deixar vir aquele monte de popula-

ção, gente se apropriando da terra,

desmatando. Isso é que não pode.

Um descontrole total.

NOGUEIRA – A senhora está traba-

lhando com cidades. Já ouvi pes-

quisadores da área da geografia

preocupados com a expansão das

cidades da Amazônia, porque elas

seriam responsáveis pelo desmata-

mento. Como a senhora observa a

expansão das cidades na Amazônia?

BERTHA – Acho que quando elas

crescem sem emprego, sem servi-

ço adequado elas ficam inchadas,

como em qualquer lugar, não só na

Amazônia. Em qualquer lugar, se

a cidade cresce, há o êxodo rural,

mas se não tem o serviço, não tem

a habitação, não tem nada, não fica

inchada? Isso ocorre em qualquer

lugar... Não é só na Amazônia. Mas

acho que a cidade, ela é que pode

dinamizar a Amazônia, a economia

da Amazônia, sem derrubar a mata,

inclusive, como falei, até hoje, são

cidades sem região. Não quero

que elas continuem assim. Que-

ro que elas organizem o território,

mas de uma maneira que não seja

destrutiva. Isso é uma coisa que

ainda vou ter que pensar. Como?

Não sei. Até agora o que a história

“ Até agora o que a história mostrou é que essas cidades pontuais da Amazônia não destruíram a floresta”

16 valercultural

Page 17: Valer Cultural 3

mostrou é que essas cidades pon-

tuais da Amazônia não destruíram

a floresta historicamente. Não fize-

ram regiões, não desbravaram. Elas

são pontuais. Mas por quê? Porque

permaneceram como cidades cen-

trais. Inclusive, algumas sedes de

municípios, sustentadas pelo Esta-

do. Não têm economia nenhuma.

Quem mantém esses municípios? É

a transferência de renda do Estado.

NOGUEIRA – Rondônia por muito

tempo, Roraima, Amapá...

BERTHA – Muitos municípios por

aí na Amazônia. O próprio Pará. E,

provavelmente, no Amazonas. Quer

dizer, por um lado foi ruim porque

não houve economia, mas por ou-

tro lado foi bom porque são cidades

que se instalaram na floresta, mas

não derrubaram a floresta. Então o

grande desafio é saber como é que

podemos manter isso, essas cidades

pontuais se relacionando entre si,

porque muitas não se relacionam,

criando uma economia que não

destrua a floresta. Esse é o grande

desafio. Por isso que acho que se-

riam os serviços ambientais. Essas

cidades estariam ligadas a Manaus

como grande cidade mundial, atra-

vés de comunicação, telecomunica-

ção, que se tem tecnologia da co-

municação, organizando uma base

econômica com base nos serviços

ambientais, que não necessitaria...

SUELEN – Faria um polo?

BERTHA – Pequenos polos articula-

dos pelos TICs (Tecnologias de In-

formação e Comunicação), não por

estradas. Que a estrada arrebenta a

mata. Articulação, porque tem que

ter a rede para as cidades se desen-

volverem. A rede seria articulada

por telecomunicação. Computador,

por satélite. E que base econômi-

ca? Penso nos serviços ambientais

e nos fármacos porque eles são coi-

sas que se podem fazer sem derru-

bar a floresta.

NOGUEIRA – E replantando às ve-

zes...

BERTHA – Isso, replantando. Isso é

mais ou menos minha cabeça. Mi-

nhas ideias a respeito.

SUELEN – Além da valorização do

local, das pessoas que têm o co-

nhecimento...

BERTHA – Sem dúvida. Quando falo

em pesquisa, inclui tudo. Classifica-

ção, conhecimento tradicional.

SUELEN – A gente sabe que já exis-

tem as de cosméticos. Por exemplo,

a Natura...

BERTHA – Muito pouca coisa. Mas

tem que ser muito maior. Eles

usam muito pequena quantidade.

De qualquer maneira, já acho que

é uma iniciativa legal da Natura.

Se ela puder fortalecer, isso é le-

gal. Vai fazer uma fábrica, um polo

industrial.

NOGUEIRA – Seria um ponto para o

CBA, não é?

BERTHA – É isso que perguntei.

Como vai ser? O que vocês vão fa-

zer com esse CBA? Ninguém sabe.

Mas tinha que resolver. Se for fazer

esse plano de levar a questão da

biodiversidade avante, tudo isso,

tem que resolver a questão do CBA.

Um elefante branco.

Amazônia

Autora: Bertha Becker

Editora: Ática

Ano: 1998

Geografia e meio ambiente

no Brasil

Autores: Bertha Becker, F Davidovich

e Antonio Christofoletti

Editora: Hucitec Editora

Ano: 2002

Território, territórios

Organizadores: Bertha Becker e

Milton Santos

Editora: DP&A Editora

Ano: 2006

Dimensões humanas da biodi-

versidade – O desafio de novas

relações sociais

Autores: Bertha Becker e Irene Garay

Editora: Vozes

Ano: 2006

Dimensões humanas da

biosfera-atmosfera

Organizadores: Bertha Becker,

Diógenes Salas Alves e Wanderley

Messias da Costa

Editora: EDUSP

Ano: 2007

Dilemas e desafios do

desenvolvimento sustentável

Autores: Bertha Becker, Cristovam

Buarque e Ignacy Sachs

Editora: Garamond

Ano: 2007

Amazônia – Geopolítica na

virada do III Milênio

Autora: Bertha Becker

Editora: Garamond

Ano: 2007

Um futuro para a Amazônia

Autores: Bertha Becker e

Claudio Stenner

Editora: Oficina de textos

Ano: 2008

Brasil – Uma nova potência

regional na economia – Mundo

Autores: Bertha Becker e A.G.

Cláudio Egler

Editora: Bertrand Brasil

Ano: 2010

Livros de Bertha Becker

17valercultural

Page 18: Valer Cultural 3

e março a maio deste ano, o público de Ma-

naus teve acesso a um interessante panora-

ma das artes plásticas no Estado por meio

da exposição “Dos lápis de Di ao festim das

barrancas”, eixo central da Pré-Bienal de Artes do Ama-

zonas. A mostra foi, de certa forma, uma oportunidade

de conhecer um pouco da história recente das artes lo-

cais, reunindo obras de mais de 20 artistas do cenário

amazonense, desde telas famosas do homenageado

Hahnemann Bacelar (1948-1971) até criações inéditas

– pinturas, ambientes, instalações e processos – assina-

das por nomes em atividade nos dias atuais, novatos e

artistas de extenso currículo lado a lado.

Mas a trajetória das artes plásticas – como as conhe-

cemos hoje – no Amazonas remonta a um período bem

anterior àquele em que Hahnemann criou suas obras,

e revela um percurso com altos e baixos. As primeiras

expressões artísticas visuais produzidas no Estado surgi-

ram entre meados e final do século 19, coincidindo com

as enormes transformações culturais e sociais advindas

da riqueza da borracha, e segue desde lá alternando

períodos de pouca agitação ou novidade com outros de

grande efervescência.

Primórdios

A próspera classe social que se transferiu para Ma-

naus por conta da exploração da borracha, formada por

seringalistas, banqueiros e outros, trouxe também para

cá seu modo de vida, sua cultura e também um pouco

Jony Clay Borges | jornalista

18 valercultural

Page 19: Valer Cultural 3

Imagens: Reproduções dos livros A

rtes plásticas no Am

azonas de Luciane Páscoa e Teatro Am

azonas de Mário Ypiranga M

onteiro / Editora Valer

Page 20: Valer Cultural 3

Na década seguinte, foi a vez do Te-

atro Amazonas, onde os artistas dei-

xaram seu maior legado, incluindo

a “Glorificação das Bellas-Artes no

Amazonas”, assinada por De Angelis

no teto do Salão Nobre, e vários pai-

néis monumentais de cunho natura-

lista – um deles inspirado na ópera

“O Guarany”, de Carlos Gomes.

Outros nomes que deixaram sua

marca por aqui ainda no século 19

foram o pernambucano Crispim do

Amaral, que retratou o encontro das

águas dos rios Negro e Solimões

no pano de boca do Teatro Amazo-

nas; e Enrico Quatrini, a quem são

atribuídas esculturas em gesso pre-

sentes na casa de espetáculos. E há

ainda Arturo Luciani, que na mesma

época trabalhou na pintura e deco-

ração de outras casas e prédios de

Manaus.

Na transição para o século 20,

a capital amazonense já conta com

um cenário cultural razoavelmente

movimentado. Artistas de passagem

para produzir obras sob encomenda

também aproveitam para realizar

exposições de sua arte. Um exem-

plo é Aurélio de Figueiredo, irmão do

célebre pintor Pedro Américo: autor

da “Redenção do Amazonas”, pintu-

ra de quase 8 metros que adorna a

Biblioteca Pública. Ele expôs em Ma-

naus em 1888, 1907 e 1909.

Também estiveram por aqui o

niteroiense Antônio Parreiras e o

carioca Fernandes Machado, que

deixaram obras como “Quarta-feira

de Cinzas” (1904) e “O primeiro voo

de Santos Dumont” (1906), respec-

tivamente. Um inventário do perío-

do registraria, na cidade, obras de

estilos que passavam pelo barroco,

Primeira acima “Encontro das águas” de Crispim Amaral; segunda “Quarta-feira de cinzas” de Antônio Parreiras; Abaixo “O 1.º voo de Santos Dumont“ de Fernandes Machado; “Imortalidade“ de Branco e Silva.

de suas paisagens. A partir do final

do século 19, a capital ganhou ruas

de traçado geométrico, ladeadas por

edifícios imponentes e palacetes,

com bondes e luzes elétricas dese-

nhando o cenário de uma metró-

pole. Novos espaços como o Teatro

Amazonas ou a Biblioteca Pública

exigiam ornamentos à altura e, para

dar conta dessa necessidade, foram

recrutados vários artistas, brasileiros

e estrangeiros.

A lista inclui nomes como os ita-

lianos Domenico De Angelis e seu

assistente Giovanni Capranesi que,

depois de remodelar a Catedral de

Belém, foram chamados para dar

conta de projetos similares em Ma-

naus. No final da década de 1880, o

ateliê dos artistas na cidade estava

encarregado de trabalhar na Igreja

de São Sebastião, ao lado do arqui-

teto e conterrâneo Silvio Centofanti.

20 valercultural

Page 21: Valer Cultural 3

mitologias”, aponta o artista plástico

e curador Cristóvão Coutinho.

Formação

Os artistas que passaram por

Manaus também deram sua contri-

buição às artes plásticas locais cum-

prindo um papel de formação, prin-

cipalmente na Academia Amazo-

nense de Belas-Artes, que já existia

desde o final do século 19. Luciani,

Centofanti e, possivelmente, Aurélio

de Figueiredo foram alguns dos que

lecionaram no local. “Eles ficavam

meses fazendo obras, e acabavam

se envolvendo na vida cultural da

cidade”, comenta Luciane Páscoa,

pesquisadora e professora de Histó-

ria da Arte da Universidade do Esta-

do do Amazonas. A academia, ela

acresce, foi importante. “Ela reunia

também música, literatura. Havia

aulas de Filosofia da Arte. Era um

modelo de academia diferente do

que entendemos hoje”.

“O Curupira“ de Manoel Santiago.

“ Eles ficavam meses fazendo obras, e acabavam se envolvendo na vida cultural da cidade”

neoclassicismo, romantismo e natu-

ralismo.

Por essa época, o primeiro pin-

tor amazonense a ser reconhecido

no cenário nacional iniciava seus

estudos de desenho e pintura. Ma-

noel Santiago nasceu em Manaus

em 1897, e viveu por alguns anos

na cidade antes de se mudar para

Belém do Pará e, depois, Rio de Ja-

neiro. Décadas após, ele voltaria à

terra natal e legaria ao Estado di-

versas obras com temática regional,

entre elas representações de lendas

amazônicas e de cenas da natureza.

Os temas regionais, aliás, pre-

dominavam na pintura da nascente

metrópole da borracha, dos painéis

do Salão Nobre do Teatro Amazonas

às obras de Santiago e àquelas de

outros artistas que viriam mais tarde.

“Os primeiros artistas a produzir aqui

são os italianos, e é interessante

observar que eles têm uma técnica

específica, mas já tratam dos ele-

mentos de nossa região, de nossas

21valercultural

Page 22: Valer Cultural 3

Contratempos

Entre os anos 1910 e 1920, Ma-

naus e outras prósperas cidades

construídas com a riqueza da bor-

racha sofreram um duro revés com

o fim do monopólio amazônico do

produto, situação agravada pelo de-

sinteresse do Governo Imperial em

resolver o impasse e pelo início da

Primeira Guerra Mundial. Isso se re-

flete no fato de que quase não há

notícias da movimentação cultural

na cidade até por volta dos anos

1930 e 1940 – o que Luciane cre-

dita não à ausência de agitação,

mas à pura falta de registros. “Uma

cidade que viveu o furor da época

da borracha, mesmo ficando pobre,

não perderia de todo sua movimen-

tação cultural”, opina.

O primeiro nome a emergir des-

se lamentável vazio é Branco e Sil-

va. Nascido em Manaus em 1896,

ele estudou no Liceu de Artes e

Ofícios de Lisboa e herdou dali uma

pintura de caráter acadêmico, ao

qual ele acrescentou, na visão de

Luciane, notas de “realismo mági-

co”. “É um academicismo que fler-

ta com o surrealismo. Ele tem um

Membros do Clube da Madrugada na praça da Polícia, acervo fotográfico de Van Pereira.

Detalhe da III Feira de Artes Plásticas, acervo de Aluísio Sampaio, 1966.

desejo de estabelecer uma relação

vanguardista, mas é algo bem tê-

nue”, destaca a pesquisadora.

O autodidata Moacir Andrade

teria mais sorte em fazer a transi-

ção. Despontando na cena local em

1941, com uma exposição no Liceu

Industrial, ele irá transitar do natu-

ralismo a experimentações mais

abstratas ao longo das décadas

seguintes, mas sem deixar de lado

o caráter figurativo e sempre liga-

do a temáticas regionais. O talento

do pintor autodidata logo o levaria

a alçar longos voos: considerado

o grande nome do Amazonas nas

artes plásticas, ele irá representar o

Estado em exibições no Brasil (co-

meçando com individuais em Brasí-

lia e São Paulo em 1958) e interna-

cional (série de individuais em cida-

des dos Estados Unidos em 1968).

Também nos anos 1940 surge

Anísio Mello, que desenvolveu sua

arte com incentivo da mãe, Esther.

(Bem depois, em 1985, ele a ho-

menageou fundando um Liceu de

Artes com seu nome). Tanto Moa-

cir quanto Anísio viriam a se tornar

“O Nu“, Moacir Andrade.

Sem título, Anísio Melo.

22 valercultural

Page 23: Valer Cultural 3

Anísio Melo

figuras de destaque no movimento

que balançou o cenário cultural de

Manaus a partir dos anos 1950: o

Clube da Madrugada.

Literatura e muito mais

Resultado de uma agitação ar-

tística que vinha se consolidando

algum tempo antes em reuniões de

intelectuais, o Clube da Madrugada

foi fundado oficialmente em 1954

com a proposta de levar as artes do

Amazonas um passo à frente, bus-

cando uma renovação principalmen-

te na Literatura, mas que também se

estendia a outros segmentos.

“Todos os movimentos moder-

nos têm um viés literário no século

20. Dá para perceber isso no Clube:

além da linguagem da Literatura,

eles também buscavam uma reno-

vação nas Artes Visuais, em relação

à edição de periódicos a cinema”,

afirma Luciane, que é autora do

livro “As Artes Plásticas no Ama-

zonas – O Clube da Madrugada”,

lançado há um ano. “Primeiro eles

se reuniam para ler obras e mostrar

uns aos outros poemas e contos. E

começaram a chegar aqueles que

vinham mostrar seus quadros. E

quando eles fundaram, em 1961, o

suplemento ‘Madrugada’ no jornal,

começou a se ter uma colaboração

frequente em gravura e ilustração”.

Além de Moacir e Anísio, o

Madrugada também tinha como

integrante Afrânio de Castro, que

Cristóvão Coutinho aponta como o

artista mais ousado em sua época.

“Ele não vai ter preocupação especí-

fica com a paisagem regional; pelo

contrário, ele é experimental. Já nos

anos 1950/60, ele agrega esponja

a uma pintura, numa fuga da bi-

dimensionalidade, o que era uma

noção incomum mesmo naquele

tempo”, avalia o curador.

“ A arte amazonense é uma arte bastante engajada com as questões sociais, especialmente nos anos 1960. Uma coisa que une esses artistas é uma preocupação social: pensar a cidade em questões urbanas, a vida na Amazônia”

Luciane Páscoa

23valercultural

Page 24: Valer Cultural 3

“ Eles não estavam preocupados em atender a expectativas do que se discutia no Rio, São Paulo. Estavam preocupados em se expressar”

1. “Cabocla“, Manuel Borges; 2. “Cafuné”, Hahnemann Bacelar; 3. “Paisagem com palafita“, Álvaro Páscoa; 4. “Macumba”, Moacir Andrade; 5. Foto da série “Amazônia erótica“, Normandy Litaiff; 6. “O reflexo“, Anísio Mello

1

2

3 4

5 6

24 valercultural

Page 25: Valer Cultural 3

Abrindo portas e plantando sementes

Entre os anos 1950 e 1960, o

Clube do Madrugada revela uma

verdadeira geração de novos artis-

tas. Nesse período, o movimento

promove exposições individuais e

coletivas de Afrânio, Álvaro Páscoa,

Horácio Elena, Getúlio Alho, Moacir,

Marcos Vila, Gualter Batista, Óscar

Ramos, Paulo D’Astuto, Jair Jacq-

mont, José Maciel, Marianne Over-

beck e Paolo Ricci, segundo informa

um estudo de Luciane.

Na pintura desse período, é pos-

sível reconhecer tendências que

incluem não só uma tradição mais

acadêmica (caso do retratista Ma-

noel Borges ou de Anísio Mello),

como também o expressionismo

(Getúlio Alho, Álvaro Páscoa e algo

de Moacir), o fauvismo (Gualter Ba-

tista) e o abstrato (algo de Afrânio).

Ampliando o campo para as artes

visuais, encontram-se novas expe-

riências com o cinema, de nomes

como o fotógrafo Normandy Litaiff,

diretor de “Carniça” (1966), dentre

outros que seguem os passos do

pioneiro Silvino Santos.

Enquanto abriam as portas para

os artistas emergentes, integrantes

do Clube da Madrugada começaram

a investir na formação de futuros

talentos. Em 1965, por sugestão de

Moacir Andrade, o governador Ar-

thur Cézar Ferreira Reis criou a Pina-

coteca do Estado, numa ala do pré-

dio da Biblioteca Pública do Estado.

Ali, o artista plástico começou a dar

aulas de pintura, acompanhado ain-

da de Álvaro Páscoa (xilogravura) e

Manoel Borges (desenho).

Dentre aqueles que participa-

ram dos cursos oferecidos na Pina-

coteca sairiam alguns talentos que

até hoje sobressaem no cenário das

artes visuais no Amazonas. Aí se in-

cluem, entre outros, Jair Jacqmont,

Zéca Nazaré, Otoni Mesquita, Van

Pereira e Thyrso Muñoz, além do

saudoso Hahnemann Bacelar.

Nós e os outros

As aulas na Biblioteca Pública

incentivaram um iniciante Otoni,

por exemplo, a diversificar sua pa-

leta temática no desenho, a partir

de 1975. “O Borges nos fazia re-

produzir desenhos, pinturas, e foi

o grande estímulo para eu sair de

algo que chamo de ‘síndrome de

caras e bocas’: eu fazia muito rosto

feminino, muito cabelo, cara pinta-

da, com cabelo arrepiado ou sem...

Enfim, todas as maneiras de ver

uma modelo”, comenta o artista,

que dizia ter uma tendência margi-

nal para o psicodélico, manifestada

“nas beiradas dos cadernos”. “Com

a valorização do Borges, pude co-

locar no centro do papel o que era

beirada”, diz.

Jair Jacqmont lembra que as pai-

sagens e questões regionais eram

enfatizadas nas aulas promovidas

por Moacir e os demais professores

da Pinacoteca. “Eles tinham o con-

ceito do amazônida, do amazonen-

se. Na literatura era a mesma coisa.

Isso é bom, porque é um conceito

moderno, o de retratar a nossa al-

deia”, avalia. “O Moacir nos levava

para o São Raimundo e nos dizia,

‘Vamos desenhar aqui’”, recorda

ele.

Talvez por valorizar a identida-

de amazônica, os artistas do Clube

da Madrugada viraram um tanto as

costas para as mudanças no cenário

das artes no resto do país, em es-

pecial nos anos 1950. “Não vamos

ter uma preocupação, por parte dos

artistas, com o movimento contem-

porâneo. ‘Ah, o que está se fazendo

no Rio de Janeiro, em São Paulo?’.

Não. Temos uma obra predominan-

temente figurativa”, afirma Luciane.

A pesquisadora menciona o mo-

vimento concretista, que iniciou no

Sudeste pouco antes da fundação

do Clube, mas não teve influência

alguma no cenário local. Movimen-

tos e propostas à parte, o fato é que

os artistas daqui estavam mais in-

teressados em demarcar uma posi-

ção própria do que em procurar um

lugar na cena nacional. “Eles não

estavam preocupados em atender

a expectativas do que se discutia

no Rio, São Paulo. Estavam preocu-

pados em se expressar. É algo que

deixa o Amazonas numa posição

particular”, opina Luciane.

Busca pelo contemporâneo

É a partir dos anos 1970 que se

verifica uma mudança de sensibi-

lidade nas artes plásticas do Ama-

zonas, numa transição do moderno

para o contemporâneo. Se antes a

preocupação principal estava nos

aspectos temático e acadêmico,

Obra de Otoni Mesquita

25valercultural

Page 26: Valer Cultural 3

também no Rio, utilizou técnicas

de xilogravura, litogravura e outras

como expressão. Otoni, que pas-

sou por Belas-Artes, MAM e Parque

Lage, viria mais tarde a investir na

instalação, entre outras expressões.

Rita levou as temáticas indígena e

amazônica ao se mudar para o Rio,

onde começou a trabalhar em pin-

turas de viés naïf. Sergio Cardoso,

autodidata, inspira-se no espaço e

na geografia em telas que propõem

jogos visuais. Garcez, a partir do fi-

nal dos anos 1970, vai explorar téc-

nicas e materiais antes de se dedi-

car ao expressionismo.

Evangelista, que começou no

Teatro antes de enveredar pelas

Artes Visuais, começa a explorar

as possibilidades da arte conceitual

ainda no final dos anos 1960. Com

o vídeo experimental “Mater Dolo-

rosa In Memoriam II – Da criação e

sobrevivência das formas” (1972),

conquistou projeção nacional para

seu trabalho. Tal como ele, entre os

anos 1970 e 1980 muitos artistas

cruzariam as fronteiras do Amazo-

nas com sua arte e ganharam des-

taque na cena brasileira.

Acontecendo lá fora

Além de viajar para estudar nos

grandes centros da produção visual

brasileira à época, o Rio de Janeiro

principalmente, os artistas locais co-

meçam a se fazer notar em mostras

e exposições de arte nesses locais.

“Começamos a acontecer em ex-

posições nacionais”, comenta Oto-

ni Mesquita, evocando um cenário

que remonta aos primeiros anos da

década de 1980. “O Evangelista já

frequentava o Salão Nacional, em

1984 já estavam lá o Sergio, o Jair

buscando consolidar uma identida-

de amazônica, o foco dos artistas

nesse período começa a se voltar

ao aspecto formal da arte, no sen-

tido de se explorar novas possibi-

lidades e desenvolver linguagens

particulares.

Entre alguns representantes

dessa nova sensibilidade estavam

egressos da Pinacoteca, como Jair

Jacqmont e Otoni Mesquita, e tam-

bém outros nomes como Auxilia-

dora Zuazo, Arnaldo Garcez, Sergio

Cardoso, Bernadete Andrade, Rita

Loureiro e Roberto Evangelista, cada

qual trazendo diferentes bagagens

e diferentes propostas artísticas.

Jacqmont, que fez cursos no Mu-

seu de Arte Moderna (MAM) e no

Parque Lage, no Rio de Janeiro, deu

novo enfoque a sua representação

da natureza. Zuazo, que estudou

na Escola Nacional de Belas-Artes,

Otoni Mesquita

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ima

26 valercultural

Page 27: Valer Cultural 3

e eu, em 1985 também. Participei

do Arte Pará em 1985 e 1986, e nos

dois anos ganhei prêmios aquisi-

ção”, enumera Otoni.

Os primeiros a se destacarem

foram Óscar Ramos e Roberto Evan-

gelista. O primeiro, que desde mea-

dos dos anos 1960 estava radicado

no Rio de Janeiro, estudando com

nomes como Ivan Serpa, participou

da Bienal Internacional de São Paulo

em 1969 e 1971. Mais tarde, graças

ao reconhecimento obtido em pre-

miações, continuaria sua formação

na Espanha. Evangelista também

participou de uma Bienal nacional,

em 1976, e duas internacionais, a

primeira em 1977. De lá, veio a par-

ticipar de exposições na Inglaterra,

Estados Unidos, Áustria, Espanha e

Japão ao longo dos anos 1990, sen-

do o artista amazonense com maior

penetração no circuito internacional

de arte contemporânea.

Ainda nos anos 1980, Cardoso,

Jacqmont e Otoni também partici-

param de outros eventos de desta-

que no país, como o Salão Nacional

de Arte Contemporânea de Belo

Horizonte – caso de Cardoso, em

1982, e de Jacqmont, em 1984 – ou

a Panorama da Arte Atual Brasileira

de São Paulo – Jacqmont e Otoni, no

mesmo ano. Ainda em 1984, Jacq-

mont integrou a histórica “Como vai

você, Geração 80?”, no Parque Lage.

“Foi a mais importante do período,

o grande start da transição do final

do Modernismo e o início do Con-

temporâneo”, destaca ele.

Enquanto isso, havia mostras

de artistas amazonenses e partici-

pações em exposições em diver-

sos outros cenários, como Brasília,

Recife e Fortaleza, além de Belém

– com a qual se chegou a forjar

certa conexão, com artistas ama-

zonenses expondo lá e paraenses

expondo aqui – e nomes de peso

dos segmentos crítico e curatorial

passavam por Manaus. “Os curado-

res iam atrás da gente. O (Paulo)

Herkenhoff e outros nomes impor-

tantes no cenário da arte iam bater

na porta do meu quarto para ver

trabalhos”, lembra Otoni.

Nova efervescência

Esse cenário de intensa circula-

ção e intercâmbio da arte no Brasil,

incluindo aí o Amazonas, era re-

sultado de um momento de efer-

vescência das artes no país, e que

possivelmente tinha a ver com o

otimismo de uma nação que saía

de uma ditadura militar e iniciava

um processo de democratização.

“É preciso se atualizar, mas não pode acontecer um processo de substituição, e sim de acúmulo, acréscimo. Isso acontece na História da Arte (...) Sonhos, história, memória, são parte de nossa produção. Ideal seria mesclar o nostálgico e o contemporâneo. Mas isso vem naturalmente, não há como forçar”

27valercultural

Page 28: Valer Cultural 3

Tal efervescência também coloriu a

paisagem das artes visuais em Ma-

naus, com o surgimento de novos

artistas e o estímulo à exploração

de novos conceitos e linguagens em

exposições de cunho temático.

O centro desse cenário fervi-

lhante era inicialmente a Galeria

Afrânio de Castro, no prédio da atual

Academia Amazonense de Letras,

e mais tarde a Pinacoteca do Esta-

do. Sob a direção de Jacqmont, que

voltara há pouco do Rio de Janeiro,

a Galeria passou a promover exibi-

ções com temas que incitavam a

especulação de novos territórios e

questões artísticas. “Fazíamos uma

movimentação com exposições co-

letivas e temáticas. Fizemos, entre

outros, exposições com temas como

‘Madeira’, depois ‘Terra’, ‘Fogo’,

‘Ar’, ‘Paisagem’”, recorda o diretor,

lembrando que os artistas de teatro

também tinham seu papel na agita-

ção cultural. ‘Eles entravam nas ga-

lerias fazendo performances”.

“Foi lá (na Galeria) que aconte-

ceram as primeiras exposições de

instalações. Fizemos várias só de

instalações, com temáticas específi-

cas. Havia desenhos, pinturas, várias

pequenas coisas. Era algo pequeno

considerando o contexto brasileiro,

mas no local era significativo”, afir-

ma Otoni, que resume o espírito ge-

ral da época: “Nunca tivemos outro

período tão animado de circulação,

muita produção alternativa, muita

experimentação”.

Dessas águas agitadas emergiu

um grupo de artistas decididos a ex-

plorar novos terrenos nas artes visu-

ais, representado por nomes como

Turenko Beça, Helen Rossy, Buy

Chaves, Jáder Resende, Mário de

Paula, Sebastião Alves e Cristóvão

Coutinho. “É uma geração capitane-

ada pelo Jair”, sintetiza este último.

“Ele percebeu que havia novas pes-

“Sempre houve uma preocupação de falar do lugar, da paisagem e dos elementos de nossa cultura. Vai talvez de sermos uma sociedade nova, como civilização, como cidade. Por sermos um lugar distante, a ser visto, nossa preocupação em nos firmarmos como povo se manifestou muito na expressão dos artistas amazonenses”

Cristóvão Coutinho

28 valercultural

Page 29: Valer Cultural 3

período houve ali mais de 50 expo-

sições, praticamente uma por mês”,

lembra Sergio Cardoso, curador da

iniciativa, mantida pela antiga Secre-

taria de Estado de Educação e Cultura

e pela Superintendência de Teatros

do Amazonas. Entre outros, houve ali

exposições de Otoni Mesquita (“Fru-

to proibido” e outras) e Rita (“Ma-

cunaíma”), além de coletivas como

“Iché cunhã (Eu mulher)”, com obras

de artistas femininas do Estado.

Ainda em meio ao furor do pe-

ríodo acontece a fundação da As-

sociação Amazonense de Artistas

Plásticos (Amap), em 1981. A par-

tir daí – e até os dias de hoje – a

entidade de classe passaria a agre-

gar outros artistas, autodidatas ou

egressos de liceus e outros cursos,

não tanto interessados na investiga-

ção das questões contemporâneas,

mas em produzir arte – em grande

parte, adeptos da pintura, marcada

pela figuração com elementos ama-

zônicos e/ou pela filiação a estilos e

técnicas modernas, como o impres-

sionismo e o abstrato.

Em torno da Amap, que também

cumpria um papel de difusão com

a realização de eventos, como o

Salão Curupira, viriam a gravitar no-

mes de associados como Francimar

Barbosa, Homero Amazonas, Nona-

to Cruz, Ivana de Lima, José Stenio,

Paulo Cesar, Raimundo Noleto, Lígia

Barros e Elizabeth Grubinger, para

mencionar alguns.

Longe da Galeria, da Pinacoteca

ou da Amap, outros nomes segui-

rão um caminho autônomo, sem

compromisso com movimentos ou

filiação a grupos. O principal exem-

plo é Rui Machado, que realizou sua

primeira mostra individual em 1982,

também no Projeto Hahnemann.

Depois da tempestade

Como se os ventos que agita-

ram a cena artística nos anos 1980

começassem a perder a força, a

soas trabalhando não só com a tela,

saindo da parede, fazendo objetos,

instalação, ambientes, e com outro

discurso da própria obra”.

Coutinho lembra ainda que não

havia espaços formais de educação

nas artes, mas um grande desejo de

criação por parte dos artistas de en-

tão. “Não havia formação universi-

tária em Artes. O que vai determinar

a produção é o imaginário de cada

um, as informações de seu ambien-

te, seu inconsciente. Começa-se a

fazer instalação, mais objetos, e a

pintura fica encarregada do aspec-

to desconstrutivo. E a maneira de

apresentar questões regionais não

é mais tão formal. A questão estéti-

ca não é mais a do belo, terá outros

elementos constitutivos”, analisa.

Falando de espaços, vale citar

ainda o Projeto Hahnemann, que de

1979 a 1982 abriu o hall do Teatro

Amazonas para artistas consagrados

e iniciantes. “Foi um espaço agluti-

nador de plateias e público. Nesse

Quadros de Jair Jacmont

29valercultural

Page 30: Valer Cultural 3

efervescência anterior dará lugar

a um cenário de perigosa calma-

ria nos anos 1990. Com o passar

da década, a participação dos ar-

tistas amazonenses no cenário da

arte brasileira vai diminuindo. Laços

estabelecidos antes com críticos e

curadores dos centros nacionais vão

se enfraquecendo. “Vivemos retira-

dos”, reconhece Jacqmont.

Sintomaticamente, poucos ta-

lentos novos viriam a se manifes-

tar nesse período. Entre os poucos

que se pode destacar estão Manaus

(hoje conhecido como Manaus-

macaco), cujas criações dialogam

com a comunicação de massa da

publicidade e dos quadrinhos; Sér-

gio Andrade, que chega a expor

objetos de arte no Palácio Rio Ne-

gro, então tornado centro cultural,

antes de enveredar pelo caminho

do audiovisual; e Adroaldo Pereira,

que explora relações visuais a partir

de colagem, fotografia, videoarte e,

mais tarde, moda.

Aos poucos, as conquistas da

década anterior pa-

recem se perder num movimento

geral de retração, talvez reflexo de

um momento econômico e social

de mudanças. O que aconteceu?

Otoni aponta algumas pistas: “Nos

anos 1990 não diminuiu a produção

artística, mas os espaços de expo-

sição, o interesse do público. Foi

algo nacional, houve uma retração.

Artistas da gravura deixaram de

viver. E a questão da massificação

se intensificou, a animação artística

caiu. Outros segmentos até resis-

tiram. Aqui, a Secretaria de Cultu-

ra investiu muito na música, com

a criação de orquestras. Mas não

houve um investimento bom nas

Artes Plásticas”.

Ventania e vácuo

Apesar do escasso investimento

mencionado por Otoni, destacam-se

na segunda metade da década duas

iniciativas promovidas pelo poder

público. Uma delas foi a criação do

Centro Cultural Claudio Santoro, em

Jair Jacqmont foi diretor da Galeria Afrânio de Castro

que funcionou no prédio da atual Academia Amazonense de Letras

30 valercultural

Page 31: Valer Cultural 3

Apesar da relevância, o even-

to não teve continuidade nos anos

seguintes, sem motivos aparentes,

deixando um lamentável vácuo no

lugar do que poderia ter sido um

enorme avanço no segmento das

artes plásticas no Estado. É o que

aponta Cristóvão Coutinho: “Foi um

erro o Salão Plástica ter sido des-

continuado. Isso que vimos agora

na Pré-Bienal, poderíamos estar

vendo em outro patamar”.

Procurada pela reportagem,

a Secretaria de Estado de Cultura

(SEC) não respondeu que motivo

levou à descontinuidade do evento.

Pedra na lagoa

A combinação da falta de um

programa sério de estímulo com a

tendência de retração da cena ar-

tística nos anos 1990 – em termos

de mercado, público, interesse e

outros – estendeu o quadro de cri-

se também aos primeiros anos do

século 21. Se o cenário não ficou de

todo estagnado, isso se deve em

boa medida à iniciativa de Cristóvão

Coutinho: como curador da Galeria

do Centro de Artes Hahnemann Ba-

celar da Universidade Federal do

Amazonas (Caua/Ufam), de 2003

a 2011, ele cumpriu um necessá-

rio papel de estimular a cultura e a

criação de artes visuais dentro das

questões contemporâneas.

Nesse período, a Galeria do

Caua promoveu algumas dezenas

de exposições – individuais, cole-

tivas e internacionais –, com apoio

financeiro (limitado) do banco pri-

vado Unibanco e um insistente

trabalho de curadoria calcado em

Pinacoteca do Estado do Amazonas

Obras de nomes importantes

das Artes Plásticas no Amazonas

do século 20 compõem o grosso do

acervo do espaço, que desde 2009

tem como lar o Palacete Provincial,

na praça Heliodoro Balbi (praça da

Polícia), no centro de Manaus.

Galeria do Largo – Centro de Artes Visuais

Situada no largo de São Sebas-

tião, é o principal espaço de referên-

cia da arte contemporânea mantido

pela Secretaria de Cultura. Cumpre

papel de valorização e resgate das

artes visuais, promovendo exposi-

ções de artistas que representam a

memória das artes no Amazonas.

Centro Cultural Palácio da Justiça

Tornado espaço cultural em

2006, abriga exposições permanen-

tes e temporárias nos salões que já

foram sede principal do Judiciário no

Amazonas. Fica na avenida Eduardo

Ribeiro, 833, Centro.

Museu da Imagem e do Som do Amazonas

Reúne um acervo de imagens,

áudio e vídeo relativos à Amazônia,

com cerca de 245 mil peças. Criado

em 2000, hoje está instalado no Pa-

lacete Provincial.

Galeria do Caua

Localizado no Centro de Artes

Hahnemann Bacelar da Universi-

dade Federal do Amazonas (Caua/

Ufam), na esquina das ruas Monse-

nhor Coutinho e Tapajós, no Centro,

promove exposições temáticas e

mostras de acervo de caráter tem-

porário.

Casa das Artes

Também no largo de São Sebas-

tião, oferece em algumas de suas

salas exposições temáticas e tem-

porárias.

1997, que funciona hoje como Liceu

de Artes e Ofícios. Outra foi o Salão

Plástica Amazônia, que teve duas

edições, em 1997 e 1998, respec-

tivamente na Usina Chaminé e no

Palácio Rio Negro. Reunindo criações

de artistas do Amazonas, do Pará e

de outros Estados, sob curadoria de

uma equipe formada por Jacqmont e

convidados nacionais, as duas mos-

tras foram um sopro de vida num

cenário sem muitas perspectivas.

“A última exposição foi muito

bonita. O Evangelista fez a ‘Sala dos

clamores’, enchendo uma sala só

com garrafas vazias. O Buy fez um

altar de isopor”, recorda Jacqmont.

“Foram dois salões importantíssi-

mos, a meu ver, embora sem a re-

percussão necessária na memória.

Eles mobilizaram muitos artistas

jovens”, comenta Cardoso.

31valercultural

Page 32: Valer Cultural 3

“diálogos com os artistas, discussão

da obra e ocupação do espaço de

uma maneira consciente para apro-

ximações com o sistema de arte

contemporânea no mundo vigente”

– como Coutinho explica no texto

de seu “Memorial de Artes Visuais

2003/2011”, balanço de seu traba-

lho à frente do espaço.

Entre as exibições promovidas

pela galeria estavam desde tra-

balhos inéditos de nomes como

Roberto Evangelista (“Leituras es-

catológicas”, 2005) e Óscar Ramos

(“comoemitacoatiara”, 2010) até

exercícios de

alunos de Artes

Plásticas (“Pin-

tura/Exercícios”, 2004) e coletivas

com talentos promissores (“Trans-

posições”, 2007, e outras). Alguns

eventos do espaço foram pioneiros

em explorar novos temas e terrenos,

como a arte urbana – caso de “Pixo”

(2006), que pela primeira vez na ci-

dade levou o grafite das ruas para

as paredes de uma galeria de arte

(apenas em 2011 a Galeria do Largo

realizaria uma operação similar, com

sua “Volts”).

Retrospectivas e panoramas

também passaram pela Galeria do

Caua, sendo digna de nota a “Re-

serva de Artes” de 2005. Talvez a

mais abrangente mostra da produ-

ção contemporânea e moderna do

Amazonas fora da Pinacoteca e an-

tes da Pré-Bienal, a exibição compi-

lou 40 anos de artes no Estado em

30 obras. A lista trazia, entre outros,

Moacir, Bernadete, Zuazo, Óscar,

Hahnemann, Jandr, Cardoso, Otoni,

Evangelista, Rui, Jacqmont, Manaus,

Adroaldo e Helen Rossy, além de

incluir a fotografia de nomes como

Andreia Mayumi.

Nas exposições da Galeria do

Caua foram revelados e destacados

nomes como Paulo Trindade, Priscila

Pinto, Naia Arruda, Pollyana D’Avila,

Marcos Romano, Denise Rodrigues,

Monik Ventilari, Sandro Marandueira

e Olivença, para citar apenas alguns.

Em conjunto, eles desenvolveram

uma obra que abrange diferentes

técnicas e suportes – da tradicional

pintura à instalação e ao audiovisu-

al –, investindo na linguagem con-

ceitual e buscando estabelecer um

discurso artístico permeado pelos

questionamentos contemporâneos.

Ainda a crise

Exceto por alguns que deixaram

o cenário local, os nomes citados

“Mulheres”, Hahnneman Bacelar

32 valercultural

Page 33: Valer Cultural 3

anteriormente podem ser arregi-

mentados como representantes de

uma atual geração das Artes Visuais

no Amazonas. E, todavia, é uma ge-

ração que ainda enfrenta dificulda-

des em se firmar à frente do cená-

rio. Além de contar, até pouco tem-

po atrás e ainda um tanto hoje, com

pouco ou nenhum incentivo das es-

feras municipal, estadual ou federal,

sua produção pode ser considerada

irregular e de volume reduzido.

“Nos anos 2000, poucos artistas

apareceram. E frutos da Universida-

de, quem são? Paulo Trindade, Naia

Arruda, Pollyana D’Avila... São pou-

cos. Da Universidade deveria ha-

ver muito mais frutos. E produz-se

pouco – houve exposições no Clau-

dio Santoro, no Icbeu. Mas o pouco

estímulo, a pouca informação, isso

tudo contribui para estarmos ainda

patinando nas Artes Visuais”, afirma

Coutinho.

Ele aponta ainda um ‘silêncio’

das gerações anteriores que teria

privado os nomes da geração atual

de um contato com o que se fizera

até então. Aqui, ele cita uma análise

feita pelo curador Paulo Herkenhoff

no catálogo da exposição “Amazô-

nia, a arte” (2010): “O Paulo afirma

que, após uma aproximação com o

resto do país nos anos 1980, alguns

artistas foram trabalhar no Estado,

e de uma forma ou outra impedi-

ram outras gerações de tomar co-

nhecimento (de até onde se havia

chegado)”.

Evangelista observa que os artis-

tas de sua geração até hoje ocupam

o centro da paisagem das Artes Vi-

suais no Amazonas. “Minha geração

continua tendo papel predominan-

te, o que é lamentável”, afirma

ele, apontando a ausência de “uma

política cultural mais ousada, com

promoção de intercâmbio de artis-

tas, encontros, oficinas” pela estag-

nação da cena e pela decorrente

pequena expressão dos artistas da

geração atual.

“Em alguns momentos tivemos

vislumbres do que poderia acon-

tecer se se levasse mais adiante a

coisa, mas empacou na ausência de

uma vontade política. As artes no

Amazonas estão mais em torno de

festivais, mas menos em torno de

Artes Plásticas. É algo mais voltado

para o que considero ‘festivo’. Não

temos até hoje, não sei se existe

uma faculdade que promova tão

somente as artes. Continuamos de-

fasados”, lamenta.

Coutinho observa também que o

atual cenário decorre de um sistema

de arte “capenga” no Estado. “Ain-

da não foi estabilizado o processo

de construção de um circuito – com

escolas, galerias de arte, o Estado

participando de maneira conscien-

te, a iniciativa privada cooperando.

O Estado trabalha politicamente, a

iniciativa privada não acredita em

quem não aparece. E há uma escola

de arte com grade atrasada, aquém,

acadêmica, formal”, critica ele.

Para Otoni, a falta de espaços

de formação não justifica o relati-

vo vazio geracional (“Isso não foi

problema nos anos 1970/80”),

mas acredita que ele pode refletir o

contexto de uma sociedade que se

volta mais e mais ao mundo virtual

enquanto dá menos valor à educa-

ção. “Não é preciso mais ir à gale-

ria: o contato das mídias preenche

“Meninos com pipa”, Afrânio de Castro

“Paisagem”, Van Pereira

33valercultural

Page 34: Valer Cultural 3

temporariamente o indivíduo (...)

As pessoas produzem e leem cada

vez menos, estão cada vez mais es-

vaziadas. É como se fosse uma bar-

bárie”, conclui.

Novas perspectivas

É em meio a esse estado de

coisas que acontece a Pré-Bienal

de Artes do Amazonas. O evento,

que pareceu responder às queixas

dos artistas locais quanto ao relati-

vo “abandono” do segmento pelo

poder público, chamou a atenção

da sociedade para o cenário das Ar-

tes Visuais no Estado e abriu uma

perspectiva de mudança, com a ex-

pectativa de maiores investimentos

para a área, de valorização da arte e

dos artistas e de abertura de um ca-

nal de diálogo com a cena artística

nacional e internacional com a futu-

ra 1.ª Bienal de Artes do Amazonas.

Realizada no Centro Cultural Po-

vos da Amazônia, a exposição “Dos

lápis de Di ao festim das barrancas”

reuniu mais de 200 criações de ar-

tistas locais, além de prestar home-

nagem a Di Cavalcanti (1897-1976),

um dos idealizadores da Semana de

Arte Moderna de 1922, ao pintor e

paisagista Burle Marx (1909-1994)

e a Hahnemann Bacelar.

Faziam parte da lista de artistas

locais na mostra Arnaldo Garcez,

Turenko Beça, Buy Chaves, Ma-

nausmacaco, Cristóvão Coutinho,

Eli Bacelar, Evanil Maciel, Francimar

Barbosa, Helen Rossy, Jair Jacqmont,

Jandr Reis, Mário de Paula, Moacir

Andrade, Nelson Falcão, Noleto,

Otoni Mesquita, Rui Machado, Se-

bastião Alves, Sergio Cardoso, Zeca

Nazaré, Lígia Barros, Paulo Cesar,

Olivença e Erre Nascimento, além

dos grafiteiros Arab, Box, Caos, Isy,

Raiz e Áudio.

“Temos aqui artistas de Parin-

tins, Coari e São Paulo de Olivença, é

um marco para as artes plásticas no

Amazonas. Por meio da Pré-Bienal e,

posteriormente, da Bienal de Artes

Visuais ‘Amazônica 01’, em 2013,

promovemos o incentivo à produ-

ção e à valorização do segmento”,

declarou à imprensa a curadora Cleia

Viana, à época da exposição.

Otoni, que participou da Pré-Bie-

nal com um “ambiente em proces-

so” – a pintura foi feita ao longo do

período da exposição –, considera

que o evento “valeu a pena”. “So-

bretudo para mim que fiquei pro-

34 valercultural

Page 35: Valer Cultural 3

duzindo um trabalho em constante

movimento, transformação, e tive a

possibilidade de conversar com as

pessoas. Foi enriquecedor em vários

pontos”, afirma o artista plástico.

“Sempre elogio qualquer iniciativa

que exiba o trabalho da gente”.

Por outro lado, os artistas locais

ainda mantêm certa reserva com

relação à futura Bienal, pelo fato de,

como ocorreu na Pré-Bienal, não es-

tarem tendo participação na elabo-

ração ou produção do evento. Otoni

manifesta preocupação de se ter

uma equipe capaz de dar conta de

um evento de tal porte: “Um evento

como esse requer um aprofundamen-

to de questões, leituras e um conheci-

mento específico da produção artísti-

ca (...) Não se trata simplesmente de

fazer uma exposição, ter um curador

e montar um cenário”.

Evangelista soma a essa a pre-

ocupação com a continuidade do

evento. “Acho interessante que pos-

sa perdurar, tendo uma linha volta-

da para a Amazônia. Mas é preciso

ter uma curadoria muito séria e ca-

paz, que separasse a arte clássica,

hispânica, contemporânea – enfim,

que pudesse estar revelando a van-

guarda das artes na América Latina,

ou Amazônia, melhor dizendo. Mas

temo que essas coisas aconteçam

de forma esporádica, dentro de uma

conjuntura de ideias e pensamen-

tos, e terminem ali”, declara ele.

Jacqmont, por sua vez, espera

que a futura mostra abra espaço

para a arte local e para o diálogo.

“Pode vir a ser muito bom, mas po-

demos também vir a ficar de fora.

Seria preciso ter uma ala para nos-

sos questionamentos, nossa visibi-

lidade. Somos daqui, temos nossa

cultura. Somos do Amazonas e que-

remos ver nossa voz, nosso visual

sendo discutido, colocado, analisa-

do. O conceito da Bienal tem de ter

isso”, propõe.

Coutinho manifesta otimismo,

enxergando a possibilidade de Ma-

naus se inserir num circuito de arte

nacional, com o restabelecimento

do diálogo com outros centros, per-

dido nos anos 1990. “A Pré-Bienal e

a Bienal ajudam no sentido de dar

visibilidade aos artistas locais, e da

possibilidade de abrirmos relações

e termos contatos mais próximos

com outros artistas, outras curado-

rias. Arte contemporânea é isso:

uma transitoriedade grande, um

trânsito permanente de pessoas e

de produção”, assevera ele.

Reservas à parte, o secretário

de Cultura do Estado, Robério Bra-

ga, não hesita em elevar as expec-

tativas no que se refere ao futuro

evento de Artes Visuais no Estado:

“Será uma grande surpresa, um

processo de criação coletiva e um

divisor de águas na linguagem de

artes visuais que vamos ter antes e

depois da Bienal”.

Quanto a nós, leitores e especta-

dores, resta esperar para conferir os

novos capítulos dessa história.

35valercultural

Page 36: Valer Cultural 3
Page 37: Valer Cultural 3
Page 38: Valer Cultural 3

A medicina que vem da floresta

Foto

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38 valercultural

Page 39: Valer Cultural 3

Emiliana Teixeira | jornalista

O dom de curar é, também, um conhecimento que se

desenvolve desde as primeiras sociedades humanas.

Os curadores – ou curandeiros – salvam vidas nos lu-

gares onde as crenças e as experiências tradicionais

prevalecem ou se combinam com a medicina científica oficial. Na

Amazônia, que abriga a maior floresta tropical do mundo, os pra-

ticantes da medicina tradicional gozam de prestígio e admiração

em comunidades rurais e urbanas.

Quem, nessa região, nunca ouviu falar da fama de um curan-

deiro? Generalizam-se, nesse personagem, várias especialida-

des da medicina dos povos da floresta. O curandeiro exerce, nas

comunidades tradicionais, papéis análogos aos dos profissionais

das ciências da saúde e dos religiosos, porque, além dos ma-

les patológicos, também cuida da alma do paciente. “Eles [os

curandeiros] são respeitados porque possuem grande sabedoria

que ajuda o povo a manter uma relação saudável com a natu-

reza, onde encontram os recursos para solucionar os problemas

dos pacientes”, afirma a pesquisadora Fátima Guedes, que atua

na revitalização dessas práticas no município de Parintins, no

Amazonas.

Nas comunidades distantes do acesso às políticas de saúde

do governo, a assistência à saúde coletiva depende do trabalho

das parteiras, dos pegadores de ossos, dos puxadores de des-

mentiduras, dos costuradores de rasgaduras, dos curadores, dos

A medicina que vem da floresta

tradição

Na Amazônia os praticantes da medicina

tradicional têm prestígio e admiração

em comunidades rurais e urbanas

39valercultural

Page 40: Valer Cultural 3

sacacas (pessoa que manifesta o

dom de curar ainda no ventre) e

das benzedeiras. No geral, são to-

dos excelentes manipulares das

ervas medicinais. Há, todavia, uma

postura intolerante da Medicina ofi-

cial com as curas não reconhecidas

pelos laboratórios científicos. Profis-

sionais das ciências da saúde, como

médicos, enfermeiros e odontólo-

gos, desqualificam a medicina tra-

dicional e prejudicam a formação

de novos curandeiros.

A aprendizagem consiste, ge-

ralmente, na observação direta da

atividade da pessoa experimentada

no ofício de curar ou no desenvol-

vimento de uma dádiva espiritual.

No caso da Amazônia, ressalta-se

a harmonia das práticas dessa cul-

tura com a natureza e suas forças

mágicas. Usa-se a natureza como

inspiração ou como recurso para

curar doenças e nunca para explorá-

-la sem quaisquer sentidos que não

sejam os da preservação da vida.

Algumas terapias utilizam medi-

cação à base de ervas, partes de ani-

mais ou minerais, e com frequência

a água, a terra, o metal. As plantas

medicinais servem para corrigir o

mau funcionamento de algum ór-

gão do corpo. A bênção juntamente

com o remédio visa salvar o doente

como um todo. É o caso da oração

sobre uma rasgadura (hérnia) com

o auxílio de uma erva medicinal, da

semente do mamão dada à criança

para prevenir verminoses, do chá de

boldo para curar uma dor de estô-

mago, da copaíba como creme para

pegador de ossos.

Na medicina dos povos da flo-

resta encontram-se chás de raízes,

folhas, flores, cascas, sementes;

banhos preparados com plantas

aromáticas; banhas de jiboia, car-

neiro, galinha; uso tópico da folha

de fumo na barriga contra a dor ou

da metade de uma laranja-da-ter-

ra, esquentada na chapa do fogão,

para curar caxumba. Trata-se do

conhecimento empírico-intuitivo,

no qual se aguçam os sentidos em

socorro ao bem-estar do corpo e da

alma do paciente.

Parteira por acaso

Leonilza Gadelha de Souza, 66,

a tia Leó, perdeu as contas de quan-

tos partos já realizou em toda sua

vida. Em 1970, aos 24 anos, grávida

do quinto filho, teve que se cuidar

sozinha ao sentir as dores do parto,

no meio da madrugada. Seu mari-

do estava doente e os filhos ainda

eram muito pequenos. Ela, então,

fez o próprio parto. Meses depois,

uma jovem senhora lhe pedia ajuda

na hora de dar à luz. Com o conhe-

cimento adquirido nos partos dos

cinco filhos, ela atendeu ao pedido

e, desde então, assumiu o ofício de

parteira.

Além fazer os partos, ela acom-

panhava algumas mães no proces-

so de gravidez. Apenas com alguns

toques e massagens na barriga da

mãe, ela sabia exatamente qual era

o sexo e a posição do bebê. Ela se

orgulha de sempre ter tido suces-

so nos partos que realizou. Nunca

me enganei no sexo, nem nunca

aconteceu nada de ruim a alguma

mãe ou criança que eu colocasse no

mundo, sempre ajudei porque me

pediam e descobri que era um dom

e que eu precisava ajudar as pes-

soas, não podia me negar”, conta.

E continua: “Hoje há muito conflito

com os médicos, os profissionais

que passam pela universidade para

fazer isso, e eu prefiro não ter con-

flito com eles, sempre que posso,

aconselho às mulheres para busca-

rem um médico”.

“ Eu prefiro não ter conflito com eles (os médicos), sempre que posso, aconselho às mulheres para buscarem um médico”

Tia Leó já perdeu as contas de quantos partos já realizou

Foto

: Em

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a Te

ixei

ra

40 valercultural

Page 41: Valer Cultural 3

Tia Leó se tornou referência

fazendo partos de mulheres em

Parintins que ganhou uma home-

nagem, uma Unidade Básica de

Saúde que leva o seu nome, a Po-

liclínica Tia Leó, localizada no bairro

Dejard Vieira, onde a parteira mora.

Ela acredita que, apesar de todo

recurso disponibilizado hoje pela

medicina moderna, a figura da par-

teira é fundamental em determi-

nadas comunidades. “Antes existia

apenas a parteira, e todos nasciam

desse jeito, não havia complicação,

era natural, por que então que isso

não pode continuar? Tem gente que

não tem onde recorrer, ou tem, mas

prefere a parteira, então acho que é

preciso sim dar valor a esse traba-

lho, que é colocar uma pessoa no

mundo, é uma coisa mágica, que

requer muito amor e muito cuida-

do”, diz.

A atividade de parteira ainda

é muito comum nas comunidades

rurais da Amazônia, mas, de igual

modo, há a compreensão de que a

Foto: Renars Jurkovskis

41valercultural

Page 42: Valer Cultural 3

preferência do diagnóstico, assistência e acompanhamento dos

pacientes é do médico. Cada vez mais, mães da zona rural se

deslocam de suas comunidades para dar à luz seus filhos nas

cidades, na maternidade. Viagens que, às vezes, duram horas e

põem a mãe e o bebê em risco.

De pai para filho

O mecânico Roberto Paulo Malcher chegou à casa do curador

Valdemar Nascimento, 58, quase sem poder movimentar os bra-

ços e o tronco, andava arqueado, resultado de um acidente. Pas-

sou pelo hospital e, apesar de sair de lá com a certeza do médico

de que estava tudo bem, ainda sentia dores no lado direito no

braço, acima do ombro. Uma massagem no ombro, com um gel à

base de ervas, e uma oração silenciosa afastaram-lhe a dor. “Fico

muito emocionado. O coração não aguenta de emoção porque

isso é um dom de Deus”, disse em meio a lágrimas.

O problema de Roberto, segundo Valdemar, era um osso que

estava deslocado, o que provocava a dor. Questionado sobre

como ele resolveu o problema em menos de um minuto, ele

respondeu: “A gente sabe. Parte vem de Deus que deu esse dom,

parte é da prática de muitos anos, e parte é dos conhecimentos

técnicos que adquiri por aí”.

O curador se refere a um curso de noções sobre o funciona-

mento do corpo humano, feito em Brasília, e de Botânica, feito

no Rio de Janeiro. Valdemar disse que, nas suas viagens pelo

Brasil, também conheceu e trabalhou com curadores famosos e

com o espírita Chico Xavier, com quem teve grandes ensinamen-

Valdemar Nascimento fez curso de noções sobre o funcionamento do corpo humano. Abaixo, em ação, uma massagem com gel à base de ervas e uma oração

Foto

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Teix

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42 valercultural

Page 43: Valer Cultural 3

tos espirituais. Plantas medicinais,

ornamentais, frutíferas e madeira

de lei estão espalhadas no quintal

do curador.

Pelo trabalho ele não cobra

nada nem aceita dinheiro. Asse-

gura que o seu objetivo é apenas

promover o bem-estar de quem o

procura. Filho de curador, Valdemar,

também erveiro, descobriu o dom

aos 14 anos, quando deslocou o jo-

elho de um amigo, numa partida de

futebol. Com o material que tinha

em casa, álcool e algumas ervas,

colocou a perna do amigo entre as

suas, fez uma massagem, rezou e o

joelho voltou para o lugar.

Apesar da resistência, aos 17

anos resolveu que iria dar continui-

dade ao legado do pai, tios e avós,

seria curador. Tendo uma vida sim-

ples, sem filhos ou esposa, Valde-

mar diz que sua prática é espiritual

e que Deus utiliza-se dele e da na-

tureza para curar as pessoas. A ele

chegam situações como quebranto,

Para não deixar essa cultura se perder ao

longo do tempo, projetos e mobilizações ain-

da pequenas, mas significativas, em todo o

país tentam resgatar e valorizar esses sabe-

res. A maioria das iniciativas busca um reco-

nhecimento dessas práticas pelo Sistema de

Saúde dos Estados e, assim, diminuir a dis-

criminação existente contra esses curadores.

O Ministério da Saúde, no âmbito do Sis-

tema Único de Saúde (SUS), inclui a Política

Nacional de Saúde Integral das Populações do

Campo e da Floresta. A Portaria n.º 2.866, de

2 de dezembro de 2011, no seu artigo 3.º,

inciso V, diz que é preciso “reconhecer e va-

lorizar os saberes e as práticas tradicionais de

saúde das populações do campo e da flores-

ta, respeitando suas especificida-

des”, porém os praticantes da

medicina tradicional – ou po-

pular – ainda são discrimi-

nados e desvalorizados. A

partir disso, iniciativas mu-

nicipais e estaduais vêm

ocorrendo, visando a incor-

poração no SUS de práticas

das Medicinas Tradicionais,

Homeopatia e Práticas de saúde

Integrativas ou Complementares.

No Estado do Amazonas merece destaque

o Movimento pela revitalização dos saberes

e práticas tradicionais em saúde, que bus-

ca valorizar essas práticas na região do baixo

rasgadura, desmentidura, desloca-

mento de osso, frio no corpo, dores

e inflamações. “A cura é um dom

de Deus, e eu aliei isso aos conheci-

mentos do corpo humano, das plan-

tas pra poder ajudar ainda mais as

pessoas. À noite eu só tenho que

agradecer a Deus, Ele que faz tudo,

Ele que cura”, diz.

O curador divide seu tempo en-

tre o trabalho como jardineiro no

Centro de Estudos Superiores de Pa-

rintins, da Universidade do Estado

do Amazonas (UEA), e o auxílio às

pessoas que o procuram para curar

um mal, mas teme que essa prática

desapareça com o passar do tempo.

“Hoje somos poucos e temos que

continuar, tem muita gente que

tem esse dom e prefere usá-lo para

o mal ou para obter dinheiro.

Mas isso é um dom, não é

um trabalho. Não pode-

mos deixar acabar essa

prática de curar e ajudar

quem nos procura”, acrescenta.

Revitalização das práticas tradicionais de saúde

43valercultural

Page 44: Valer Cultural 3

“Temos consciência que, a partir do

momento que esses conhecimen-

tos forem incluídos numa política

pública de saúde, a qualidade de

vida da população vai melhorar,

porque significa o retorno do diálo-

go entre ser humano e os recursos

naturais”, disse a pesquisadora.

Os avanços, segundo ela, são

mínimos porque o movimento está

na contramão dos projetos do Esta-

do que mercantiliza tudo, incluindo

a própria vida. “A exclusão desses

grupos só não ocorrerá se eles ad-

quirirem consciência da sua impor-

tância para a vida humana”, explica

Fátima Guedes.

Muitas das práticas de saúde tra-

dicionais impulsionaram a ciência a

se debruçar sobre os benefícios que

elas trazem à saúde, porém alguns

desses cuidados não são aceitos

pela medicina moderna e por seus

profissionais, desconhecedores do

trabalho dessas pessoas. Che-

gam a rechaçar muitas práti-

cas e seus praticantes. Ou-

tros, dotados de ignorância,

discriminam e subjugam

esses saberes, os referen-

ciando como “macumba”,

“feitiçaria”, “mandinga”.

Por conta disso e pela pre-

sença crescente de técnicas de

saúde oficiais nas comunidades pe-

quenas, é que muitas dessas práti-

cas estão desparecendo. “Há muita

discriminação desses profissionais

de saúde e a gente considera isso

um retrocesso nesse momento que

o mundo clama por vida, por inclu-

são, por novos olhares em relação

à saúde. Dentro das comunidades

há um respeito pelos curadores,

mas isso tem diminuído por conta

dos bombardeios ideológicos que

esses povos já sofreram por conta

do mercado da saúde que diz que

é preciso comprar um remédio X

enquanto que na prática essas po-

pulações sempre tiveram modos de

prevenção às doenças e promoção

da saúde”, diz a professora Fátima

Guedes. Amazonas, onde realiza palestras,

rodas de curadores, demonstração

de experiências, seminários, troca

de informações e exposições de

ervas medicinais. Curadores de di-

versas comunidades rurais do baixo

Amazonas estão articulados com

outros movimentos sociais.

O objetivo é gerar um diálogo

maior entre o SUS e esses saberes

e práticas, de forma a melhorar a

qualidade de vida da população por

meio da valorização dos conheci-

mentos dos mais antigos. Esse tra-

balho se realiza desde 2008, em Pa-

rintins (AM), com apoio da profes-

sora e pesquisadora Fátima Guedes.

“ Há muita discriminação desses profissionais da saúde e a gente considera um retrocesso”

A Organização Mundial de Saúde (OMS) de-

fine a medicina tradicional como conhecimento

técnico e procedimentos baseados nas teorias,

crenças e nas experiências de diferentes cultu-

ras, sejam ou não explicáveis pela ciência ofi-

cial. Suas práticas são reconhecidas, em alguns

países, como medicina complementar, alterna-

tiva (é o caso da acupuntura, por exemplo). No

Brasil, porém, só há ainda ensaios de reconhe-

cimento dessas práticas.

Saiba mais

44 valercultural

Page 45: Valer Cultural 3

Alfabeto das Plantas

O interesse em resgatar os saberes e práticas populares tradicionais de

saúde levou uma professora do interior da Gleba Vila Amazônia a motivar

seus alunos para a pesquisa em torno das ervas comuns na floresta da

região. O resultado foi a criação do Alfabeto das Plantas Medicinais (com

uma espécie para cada letra) por alunos das escolas São José do Laguinho

e Santa Luzia do Murituba, assentamento Planalto Mamuru, oeste do Pará.

A iniciativa da professora Sílvia Valeriano, que assumiu a luta pela inclu-

são das práticas populares tradicionais de saúde ao sistema oficial, mostra

que o compromisso com a realidade dos povos amazônicos provoca trans-

formações e valoriza os saberes e as práticas ancestrais. Motivados pela

professora Sílvia, alunos do Ensino Fundamental e da Educação de Jovens

e Adultos passaram a estudar as ervas medicinais, a conhecer o trabalho

realizado pelos antepassados e, a partir disso, criaram o alfabeto das plan-

tas medicinais.

“No primeiro momento, eles vieram observar o canteiro, o local, e ago-

ra eles já estão produzindo, colocando em prática, procurando saber para

que serve cada tipo de planta. Estamos avançando muito, principalmente

dentro da sala de aula. Com isso, as plantas medicinais nos dão um grande

leque, contextualizando de várias formas em sala de aula”, conta Valeriano,

afirmando ainda: “agora, que estamos colocando em público com a pro-

posta do plano de ação da escola, vamos levar para outras escolas vizinhas,

porque a proposta é implantar um canteiro de plantas medicinais em cada

escola”. O resultado desse trabalho já foi apresentado em eventos oficiais

nas comunidades.

Iniciativas pequenas, que aos poucos ganham adeptos em toda a re-

gião, entre líderes de movimentos sociais, professores, médicos, pesqui-

sadores. O trabalho é difícil, conflita com a discriminação, à falta de apoio

político e de reconhecimento nas comunidades. Mas a esperança é que

essa realidade mude. “Temos muita vontade e parceiros que nos possibili-

tam estar em constante avanço. É uma caminhada longa, mas acreditamos

que logo teremos muitas vitórias, porque é justo, é merecedor, é digno que

essas pessoas e práticas, que fizeram e ainda fazem o bem pra sociedade,

sejam reconhecidas e respeitadas”, conclui a professora Fátima Guedes.

Professora Silvia Valeriano lutou pela inclusão das práticas populares tradicionais de saúde ao sistema oficial

Aluno apresenta

trabalho sobre ervas medicinais, que resultou no alfabeto das

plantas medicinais

Livros sobre o tema

Crenças que promovem

a saúde...

Autor: Elvira Eliza França

Editora Valer

Medicina & religião...

Autor: João Bosco Botelho

Editora Valer

Flora médica brasiliense

Autor: Alfredo da Matta

Editora Valer

45valercultural

Page 46: Valer Cultural 3

turismo cultural

Todo o encantamento da

comunidade ribeirinha localizada no

município de Maués

Mario Geraldo Fonseca | jornalista

Foto

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46 valercultural

Page 47: Valer Cultural 3

qui vamos falar de uma ilha

encantada. Mais uma, en-

tre tantas que, a despeito

de todo o desencanto que

toma conta do mundo (vide Max Weber),

resiste como um lugar onde é possível o ho-

mem se relacionar de maneira encantadora

com a natureza. Mas é bom que se diga logo,

que aqui também se fará um esforço que,

a princípio, poderá aparecer em movimento

contrário do que se falou anteriormente em

relação ao adjetivo “encantado”.

47valercultural

Page 48: Valer Cultural 3

“A indústria do turismo apenas lança mão de um imaginário sobre a região”

O esforço com duas molduras de

fundo. A primeira é de escapar da

maneira como a palavra (“encan-

to”) e suas variantes (“encantador”,

“encantado” etc) são usadas, por

exemplo, por certa indústria do tu-

rismo, que vende uma imagem pa-

radisíaca da Amazônia como uma

espécie de remédio para os males

da sociedade urbana contemporâ-

nea. Mas, sabemos, que a indústria

do turismo apenas lança mão de

um imaginário sobre a região, que

veio se formando no momento em

que os europeus aqui chegaram,

perfeitamente consolidado e cômo-

do para a construção de imagens

sobre a maior floresta do mundo.

Por ser assim, podemos formular

uma expressão para orientar o que

temos chamado de “imaginário

amazônico” na sua forma estereoti-

pada, baseado na percepção de que

a Amazônia é “só natureza”, como

se o uso da palavra “natureza” não

acarretasse no fato de que tal ex-

pressão é, na verdade, um conceito

no qual o seu outro lado suposto –

a cultura – não tivesse totalmente

implicado. Logo, o encanto do qual

aqui se vai tratar nada mais é do

que uma maneira particular que

possuem alguns homens da Ama-

zônia, na sua faina diária com a na-

tureza, de “fazer cultura”.

Foto

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“Barco de rabeta” é a embarcação mais usada pelos ribeirinhos de Maués

48 valercultural

Page 49: Valer Cultural 3

“ Cultura é uma atividade particular que nasce da relação deles com o lugar no qual vivem, do qual tiram sustento e sentido para as suas vidas”

Uma ilha vera

Por isso, vamos logo ao lugar

que motiva este relato. Chama-se

Ilha de Vera Cruz, fica na frente da

sede do município de Maués, no

interior do Amazonas. Só uma olha-

dela no nome, já indica a primeira

pista que pode nos fazer entender

a fama que atribui a este lugar algo

que chama a um comportamento

como aquele que tomou conta dos

primeiros europeus que aqui che-

garam, nesta nossa Terra de Santa

Cruz, como foram batizadas as ter-

ras brasilis pelos homens da frota

de Pedro Álvares Cabral.

Sim, quem chega à Ilha de Vera

Cruz vai também logo se defrontar

com uma grande cruz de madeira,

diante de uma graciosa igrejinha,

por onde a comunidade começou,

por isso, teve-se a ideia de batizar

o lugar em referência ao símbolo

cristão – uma cruz “vera”, autênti-

ca. Mas, ao visitante descuidado, é

preciso lembrar que o nome, assim

como foi a primeira imagem para os

portugueses que chegaram no Bra-

sil, tem que ser encarado apenas

como um nome, ou seja, uma cons-

trução cultural que, por sinal, não

fazia menor esforço para esconder

a expectativa que os colonizadores

tinham para as terras recém “desco-

bertas”, de que eram uma espécie

de página em branco, na qual eles

poderiam escrever o que quises-

sem, e assim foram logo batizando

um lugar com nomes europeus e

cristãos sem ao menos se darem

conta de que o autêntico encanto

ainda estava por vir.

É desse equívoco que estamos

tomando o cuidado de dispensar

aquele que se aventure em ir à Ilha

de Vera Cruz. Como se disse, o lugar

tem tudo para ser encarado como

algo da ordem do encantamento. É

uma comunidade ribeirinha, onde

vivem cerca de 100 famílias, muitas

das quais com práticas extrativistas,

que sabem que precisam cuidar da

terra, pois dela é que tiram seu sus-

tento. Na frente das suas casas, na

vazante amazônica, descortina-se

uma praia de dimensões colossais,

banhadas por um rio cristalino, o

Maués-Açu, que amanhece azul e

anoitece amarelo, devido ao efeito

muito marcante que o nascer e o

pôr do sol deixa no seu leito.

Isso, porém, que poderia ser en-

carado somente como uma “dádiva

da natureza”, alguma coisa que o

espírito cristão poderia apenas atri-

buir à generosidade do Criador, é

também, na verdade, uma constru-

ção que nasce da labuta incansável

dos moradores de fazerem do lugar

algo que é mais do que “só-nature-

za”: é também cultura. Ou melhor,

é um conceito de cultura que só

existe em relação com o seu outro

lado, como se disse anteriormen-

te. Para esses moradores, cultura é

uma atividade particular que nasce

da relação deles com o lugar no

qual vivem, do qual tiram sustento

e sentido para as suas vidas.

49valercultural

Page 50: Valer Cultural 3

mente ligado) a um conceito bio-

logizante de natureza, como foi o

caso de muitos viajantes que pela

região passaram no século 19, não

é de todo dispensado. Isso porque

existe, sim, um movimento que

pode ser visto como passos que

marcam a direção de um novo en-

cantamento com a região mais ver-

de do Planeta, mas agora incluindo

também a natureza no seu sentido

antropológico.

Logo, não é descabido falar que

o acontecimento do qual se está

tratando, a inauguração de uma

Eco-Trilha na Ilha de Vera Cruz, se

inclui perfeitamente no que alguns

estudiosos da Amazônia, chamam

de “flo- restas culturais”. Ou seja,

uma floresta que não é

só floresta, ou melhor, não

é “só-natureza”, uma flores-

ta que só é floresta porque o

homem tornou-se um colabo-

rador fundamental para fazer

dela uma floresta, uma floresta

que, para existir, precisou, sim, da

ação humana, como defende o

sociólogo Renan Freitas Pinto, da

Universidade Federal do Amazonas.

Ora, tais homens, sabendo que a

floresta era mais do que um “meio”

para (sobre)viverem, mas a própria

vida deles, e que não podiam pen-

sá-la como se ela fosse natureza e

eles como fizessem parte do outro

lado, a que se pode chamar cultura,

começaram a ter mais consciência

e a moldar as suas ações pelo que

sempre souberam: que a floresta é

cultura, ou seja, é eles próprios.

Nesse sentido, abundam indí-

cios de que, aquela que o visitan-

te vai ver, ao se interessar em co-

nhecer a Eco-Trilha da Ilha de Vera

Cruz, em Maués, são as pegadas do

“ Uma floresta que não é só floresta, ou melhor, não é “só-natureza”, uma floresta que só é floresta porque o homem tornou-se um colaborador fundamental para fazer dela uma floresta”

Floresta é cultura

Assim, tecido o preâmbulo que

faz da natureza/cultura um par

de relações afetivas, mais do que

apenas conceitos para pensar a

existência humana em terras ainda

desconhecidas (e, portanto, encara-

das como misteriosas) como as da

Amazônia, podemos ir mais veloz-

mente ao objeto propriamente dito

que motivou esta matéria. Falou-se

da ilha encantada de Vera Cruz devi-

do a um interessante acontecimen-

to que fez parte das comemorações

de 179 anos da cidade de Maués,

ocorrida em maio deste ano.

Um acontecimento que, por um

lado, serve muito bem para mostrar

que, ao se falar de encantamento,

agora se está em outro marco que

não aquele de quem viu a Amazô-

nia como “só-natureza”. Mas, por

outro lado, só pelo fato de que,

nesta nossa perspectiva, os ele-

mentos que formaram a men-

talidade encantada daqueles

que contribuíram para fazer

do imaginário amazôni-

co algo estritamente

ligado (ou só estrita-

50 valercultural

Page 51: Valer Cultural 3

homem amazônico na sua relação

íntima com aquele elemento que

é a sua vida, a floresta. Ali estão,

por exemplo, uma barraquinha com

uma mesa cheia de objetos que,

para quem olha de longe, parece

um amontoado de terra amarela,

daquelas que se formam nos bei-

radões da região. Na verdade, são

“obras”, como bem lembrou o an-

tropólogo Ademir Ramos, da Uni-

versidade Federal do Amazonas, na

visita inaugural da trilha, em maio

passado. Ele, ao se aproximar ain-

da mais da mesa com os objetos,

viu logo que não só se tratava de

uma “obra”, mas também de uma

“obra de arte” que, no entanto, exi-

gia um olhar treinado pelos estudos

e para sair dos preconceitos contra

o que ficou conhecido como “arte

primitiva”. Sim, porque o visitante

que quisesse aplicar os parâme-

tros ocidentalizantes, como o do

belo ideal grego, formas perfeitas

e simétricas, iria ficar decepcionado

com as “deusas” provavelmente in-

ventadas pelos índios sateré-mawe

que habitaram a ilha em tempos

remotos.

Digo “deusa” porque foi o nome

que o antropólogo usou para definir

uma figura de mulher, com vastos

seios e traseiro ainda mais vasto,

não muito diferente do tipo que o

mesmo visitante poderia encon-

trar na própria ilha ou percorrendo

qualquer lugar deste imenso Brasil,

de modo particular a sua porção

amazônica. Mas, dispensando qual-

quer aproximação apressada entre

a deusa indígena e a mulher ama-

zônica/brasileira, o antropólogo foi

logo indicando que a abundância no

formato, além de uma forma bem

precisa do fazer artístico ameríndio,

tinha também uma função precisa

nesta forma: a de indicar um tipo

Fragmentos de cerâmica revelam presença de civilizações ancestrais

51valercultural

Page 52: Valer Cultural 3

de sociedade que a arqueologia aos

poucos vem comprovando ter exis-

tido poderosamente na Amazônia,

aquela nas quais eram as mulheres

que estavam no seu centro orga-

nizativo e político. Eis, então, nas

mãos do antropólogo e na vista de

quem o acompanhava, um exemplo

claro da existência do Matriarcado

de Pindorama, para lembrar as pa-

lavras proféticas de Oswald de An-

drade.

Obra viva

Depois da rápida aula de antro-

pologia/arqueologia amazônica, a

comitiva de inauguração da trilha

entrou no que ela tinha de mais

vivo, por estar ali se movimentan-

do diante dos olhos dos passantes,

mirando-o, como que dizendo que

ao seu olhar, às vezes um tanto per-

plexo pela exuberância da mata, a

criatura que ele olhava tinha tam-

bém a capacidade de devolver-lhe

um olhar. E esse olhar das criaturas

era de todos os modos. Alguns se

manifestavam por meio de pala-

vras, por exemplo. À medida que

o visitante entrava na floresta, en-

contrava indícios claros da cultura

letrada, que via aos pés das árvo-

res, indicando que elas, assim como

os humanos, também possuíam um

nome. A lista, como a própria flores-

ta, era imensa, variada e complexa.

Aqui vão alguns nomes: envira, cipó

gogó-de-guariba, piquiarana, cupi-

úba, caju-aço, taxi, abacaba, trento,

língua-de-onça, seringa, guaraná,

apuí, tarauacá, piquiá-marfim, ingá,

muruci, tucumã e outros.

Observe-se que, só por uma

leitura rápida dos nomes, o cruza-

mento de olhar que via acontecer

diante dos olhos do visitante, já se

constituía um dos tantos indicativos

52 valercultural

Page 53: Valer Cultural 3

de que ali não se estava diante de

uma floresta “só-natureza”, mas

também diante de um encontro en-

tre as coisas da natureza que tinha a

cultura (o homem) como mediador.

As criaturas da floresta encontra-

vam-se nos nomes que os homens

deram para elas próprias, as criatu-

ras. Veja, por exemplo, este: cipó

gogó-de-guariba; os reinos vegetal

(cipó), humano (gogó) e animal

(guariba) estão presentes em um

simples nome que podia ser lido

muito bem como uma indicação

metodológica para treinar um olhar

mais vasto sobre a Amazônia: a de

que não basta olhar os elementos

como se fossem peças isoladas

em um imenso tabuleiro, mas vê-

-los como agentes que vivem uma

vida afetiva, que se encontram,

que se chocam, que vivem desses

encontros e choques, que morrem

por isso e que renascem para que o

encontro volte de novo a acontecer.

Uma obra viva, portanto.

Troca de olhares

Disse que na trilha haviam olhos

tão vivos, espertos e afetivos como

aqueles com os quais os humanos

se esforçavam para aprender a

olhar o que estava se movimentan-

do diante dos seus olhos. Então, eis

que, de repente, alguém se espanta

com um toque sorrateiro: era o tatu

que devolvia o olhar que ele sabia

dar, rápido, desconfiado e um tanto

quanto temeroso. Mais adiante, ou-

tro olhar, também um tanto quanto

perplexo, por que apenas se deixa-

va ver por aquilo que não se con-

seguia ver, porque já havia levan-Cultura e natureza se entrelaçam nas

trilhas que ensinam sobre a vida

53valercultural

Page 54: Valer Cultural 3

tado voo. “Olha só um ninho”, disse

alguém. Era a presença da rolinha

que foi reconhecida pelo que dela

havia ficado ao olhar: dois ovinhos

que, de tão brancos, ficavam quase

só luz ao contato com o sol.

Bem, o sol, como não podia dei-

xar de ser, foi notado como perso-

nagem dos mais criativos que mar-

cou o primeiro percurso oficial da

trilha de Vera Cruz. Bastava ver seus

fios que, heroicamente, furavam os

furos que encontrava na mata. A

quem, seguindo o risco, se dirigia

o olhar para tentar ver o próprio

astro-rei, este só se podia deixar

ver, por outras entidades majesto-

sas na trilha, algumas castanheiras

e samaumeiras. Assim, até chegar à

copa, depois de percorrer o fio solar,

o visitante via apenas folhas, mas

de um tipo bem particular, comple-

tamente salpicadas por listas luzen-

tes que podiam muito bem compor

uma obra de arte que só o olhar

humano, na sua relação afetiva com

natureza, é capaz de ver.

Depois de cerca de dois qui-

lômetros mata adentro, agora era

a vez de entrar no elemento por

onde, na verdade, se entrou para

começar a percorrer a trilha. Ali

estava ele, tão majestoso quanto

o sol e a árvores da floresta, o rio

que, como o seu nome sustenta, é

realmente “açu”. Sabe-se que essa

palavra (“açu”), de origem tupi, é

algo que não pode ser traduzido

como apenas “grande”, como mui-

tos fazem. Ao terminar a trilha com

um banho no rio, aqueles que fo-

ram para dar oportunidade ao pró-

prio olhar a uma ampliação condi-

zente com o objeto que ele havia

sido chamado a ver, mergulhavam

em outra oportunidade para lavar o

olhar nas águas açu do rio Maués.

Ora, oportunidade de ver que açu,

mais do que o tamanho do próprio

rio no qual o corpo se banhava, ou

das árvores que o visitante havia

encontrado na trilha, era perceber

e banhar–se em um encontro, pali-

damente descrito, por exemplo, ao

contato da castanheira com o sol, o

nome das árvores que havia desco-

berto no percurso: que ali o açu é o

próprio encontro – grandioso – das

criaturas com elas mesmas e com

essa criatura um tanto quanto es-

pecial que se chama “homem”,

ao qual o visitante era chamado a

se identificar vendo-se através do

olhar dos outros seres que ele viu e

encontrou na trilha.

54 valercultural

Page 55: Valer Cultural 3
Page 56: Valer Cultural 3

E eis que estou no aeroporto de Guarulhos, no dia 14

de abril de 2012, rumo a Xangai e a Berlim. Dois con-

tinentes, em apenas dez dias de viagem. Como fui

parar na China e na Alemanha, de uma só vez? Eu

brinco que, por pura sorte, desempenhei com satisfação a missão

de substituta de luxo.

A fundação alemã Friedrich Ebert Stiftung (FES) convidou o

professor Marcos Sorrentino, meu orientador no doutorado em Ci-

diário de viagem

Jornalista relata a inesperada

visita a dois continentes, em

apenas dez dias

De Xangai a Berlimde perto, nada é normal

Thaís Brianezi | jornalista

Foto

: Zhu

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ng

56 valercultural

Page 57: Valer Cultural 3

De Xangai a Berlim

ência Ambiental na Universidade de

São Paulo, a apresentar a perspecti-

va brasileira sobre a economia ver-

de, em um seminário internacional

sobre perspectivas para a Rio+20,

a Conferência das Nações Unidas

sobre Desenvolvimento Sustentá-

vel. O evento seria em Xangai e ele

teria que fazer uma apresentação

em inglês – idioma no qual não se

sente confortável. O Marcos, então,

indicou-me para ir em seu lugar e

juntos preparamos a apresentação.

Berlim entrou nessa história

de maneira ainda mais inespera-

da. Acho que foi obra do elefante

de madeira que fica na estante da

minha sala, com o rabo virado para

a porta. Dizem que dá sorte, né?

Na sexta-feira anterior à viagem,

passei o dia sem internet; o servi-

dor estava fora do ar. Já no fim da

tarde, perto das 17h30, resolvi ir a

uma lan house checar e-mails – e

de perto, nada é normal Foto: Heitor Costa

57valercultural

Page 58: Valer Cultural 3

“ Xangai é conhecida como a cidade mais cosmopolita da China

férias lá, visitando a avó, tios e pri-

mos dele em Cantão, no sul do país.

O Paulo é brasileiro, mas tem puro

sangue chinês: seus pais migra-

ram ainda crianças para São Paulo,

fugindo da pobreza e da fome du-

rante o governo Mao. Minha sogra,

In Fan (que aqui virou Silvana), saiu

de lá com nove anos, em 1964, e

cruzou os oceanos Índico e Atlânti-

co durante 54 dias. No meio do ca-

minho, o navio parou durante uma

semana na África no Sul: havia ru-

mores de uma “revolução” no Brasil

e eles aguardavam mais notícias

para seguir viagem. Meu sogro, Le-

ong, veio dois anos depois, também

criança – e aqui as famílias amigas

se reencontraram.

Desde 2010, tenho sobrenome

chinês: Thaís Brianezi Ng. Em can-

tonês, pronuncia-se “huuummm”,

ou algo parecido, mas no Brasil fi-

cou “enegê”. Isso mesmo: Ng, “ene

maiúsculo e g minúsculo”, como o

Paulo me ensinou. Bem que ele me

alertou sobre a estranheza que o

novo sobrenome causaria nas pes-

soas. E tive prova dela quando fui

renovar meus documentos, depois

do casamento: a funcionária da Se-

cretaria de Segurança Pública achou

Ng tão engraçado que chamou vá-

rios colegas para verem minha car-

teira de identidade.

“Então por que você mudou o

sobrenome?”, vocês devem estar

encontrei uma mensagem urgente

da FES, perguntando se eu toparia ir

de Xangai a Berlim, para participar

também da MacPlanet.com (uma

espécie de Fórum Social Mundial

europeu, com foco ambiental). O

professor uruguaio que iria falar lá

sobre as visões da economia verde

na América Latina teve um impre-

visto e eu o substituiria. Claro que

peguei imediatamente o celular

e telefonei para dizer que toparia,

sim. E corri para casa para colocar

mais umas roupas na mala, que já

estava pronta.

A China, na verdade, estava em

meus planos. Mas no plano do “um

dia”: meu marido e eu planejáva-

mos juntar dinheiro e passar umas

No Instituto de Xangai para estudos internacionais até para tirar foto

oficial os lugares dos palestrantes estavam marcados

Foto

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58 valercultural

Page 59: Valer Cultural 3

se perguntando. Eu não iria mu-

dar. Thaís Brianezi, apenas, é como

sempre assinei matérias jornalísti-

cas e artigos acadêmicos. E é como

continuo assinando ainda hoje.

Brianezi, aliás, é a única coisa que

permaneceu do pai biológico, que

se separou da minha mãe quando

eu tinha três anos e nunca mais nos

procurou. Além disso, sou feminista:

no ano em que casei, caminhei por

dez dias de Campinas a São Pau-

lo, com outras duas mil militantes

de todo o Brasil. Contando os des-

vios, percorremos 110 quilômetros,

em uma manifestação da Marcha

Mundial das Mulheres. Acontece

que, apesar de todas essas prer-

rogativas, a tradição chinesa me

conquistou: decidi incorporar o so-

brenome do marido quando minha

sogra contou que iriam plantar uma

árvore em Cantão em meu nome,

no jardim da família.

À primeira vista

Conhecer o jardim dos Ng con-

tinua no plano do desejo. Xangai,

porém, agora faz parte da história

vivida. Dizem que a primeira im-

pressão é a que fica. De Xangai, mi-

nha primeira lembrança é o trajeto

do aeroporto até o hotel, mais de

uma hora de puro engarrafamento,

em que o motorista conversava co-

migo em mandarim. Ele sabia que

eu não estava entendendo uma só

palavra, mas seguia falando sem

parar, gesticulando, mostrando-me

os pontos turísticos do caminho. E

eu, para interagir de alguma forma,

a cada prédio, parque ou ponte que

ele apontava, sacava a câmera e ti-

rava uma fotografia.

Xangai é conhecida como a ci-

dade mais cosmopolita da China. É

também a mais populosa, com cerca

Foto: Claudio Zaccherini

No engarrafamento em Xangai, motorista insistia numa “conversa” em mandarim

59valercultural

Page 60: Valer Cultural 3

de 20 milhões de habitantes. Graças

à posição privilegiada na costa leste

do país, ela se consolidou como o

grande centro financeiro e comercial

da China continental. Uma de suas

atrações turísticas, o Bund, revela

bem essa pujança: de um lado do

rio Huangpu está o centro financeiro

antigo, com arquitetura inglesa im-

ponente; do outro, o centro novo,

repleto de arranha-céus. O colega

que me levou lá, à noite, chama-se

Tony. Na verdade, ele é Tang Weiqi,

mas os chineses costumam adotar

um nome ocidental para interagir

conosco, sabendo que é inútil ten-

tar nos ensinar a pronúncia correta

de seus nomes de batismo. Pois

bem, Tang Weiqi Tony desculpou-se

porque a vista do Bund não era tão

bonita quanto ele se lembrava, já

que a política de eficiência energé-

tica do governo chinês obrigara os

prédios a reduzirem sua iluminação.

Tomei um susto: para mim, já esta-

va lindo e superiluminado daquele

jeito; eu só havia visto tanto néon

assim no Japão.

Aliás, muita coisa em Xangai me

lembrou o Japão: as construções

futuristas, as ruas cheias de gente,

a convivência entre o moderno e o

tradicional (maravilhosos jardins do

período imperial e templos budis-

tas destoando da agitação urbana).

Havia, também, certa formalidade

comum: no Instituto de Xangai para

Estudos Internacionais, onde acon-

teceu o seminário sobre a Rio+20,

por exemplo, o lugar de cada pales-

trante estava previamente assinala-

do até na hora de tirar a foto oficial

do evento.

Mas em vários outros aspectos,

senti os chineses mais parecidos

com os brasileiros do que com os

japoneses. As pessoas em Xangai

pareciam mais despachadas, falan-

tes, principalmente fora do ambien-

te de trabalho. Tendo me conhecido

há poucos minutos, convidaram-me

para tomar cerveja, queriam me

mostrar a cidade e, principalmente,

fazer várias perguntas sobre o Brasil.

Nossa economia vai superbem,

não é mesmo? Temos mesmo uma

democracia sólida, aberta à partici-

pação popular? E a Copa do Mundo

de 2014? E as Olimpíadas de 2016?

E eu, de minha parte, queria saber

principalmente como eles vivencia-

vam tantas mudanças recentes na

Foto

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“ Descobri, triste, que o sistema educacional chinês não é a maravilha que os rankings mundiais apontam”

Muita coisa em Xangai lembra o Japão: as construções futuristas, as ruas cheias de gente, a convivência entre o moderno e o tradicional

Foto

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60 valercultural

Page 61: Valer Cultural 3

China e o que pensavam do gover-

no ditatorial.

Em geral, essas conversas re-

velavam quanto a imagem que tí-

nhamos um do outro era baseada

em propaganda ou em estereótipos

reforçados pelas agências de notí-

cias norte-americanas e europeias.

Descobri, triste, que o sistema edu-

cacional chinês não é a maravilha

que os rankings mundiais de ha-

bilidades em leitura e matemática

me faziam crer. E eles também se

decepcionaram ao saber que a po-

breza no Brasil tem diminuído, mas

que as desigualdades entre ricos e

pobres se mantêm.

Claro que nem tudo o que eu

havia escutado aqui sobre a China

era mentira. A navegação na web,

de fato, é censurada. Os jovens de

lá não podem acessar ao Facebook,

por exemplo. Como consolo, o go-

verno criou uma rede social seme-

lhante, só para chineses.

Descontadas as 24 horas de

avião para chegar a Xangai e as

12 horas até Berlim, passei menos

de quatro dias na Ásia. O suficiente

para dar uma entrevista, em inglês,

para a Rádio Internacional da Chi-

na, estatal, como quase tudo por

lá. Mas não o bastante para matar

minha curiosidade sobre o país – ou

para conseguir escrever sobre ele

algo além dessas impressões tão

subjetivas.

Berlim impactante

Em Berlim passei quase o mesmo período:

pouco mais de quatro dias. A diferença é que

lá tive dois dias livres – e aproveitei para co-

nhecer pontos turísticos que dão testemunho

dos principais acontecimentos do século 20. O

nosso breve e intenso século 20, como diria

a historiador Eric Hobsbawn. Está tudo lá, de

construções nazistas que nos lembram o hor-

ror da Segunda Guerra Mundial aos vestígios

do muro que contam a tensão da Guerra Fria.

Foto: Heitor Costa

A moderna Berlim, em primeiro

plano, edifício da Deutsche Bahn em

Potsdamer Platz

61valercultural

Page 62: Valer Cultural 3

O passeio mais impactante que

fiz foi a Sachsenhausen. Se é que

se pode chamar de passeio a ida a

um antigo campo de concentração.

Logo no portão de entrada, os dize-

res “Arbeit macht frei”, ou seja, “o

trabalho liberta”. Para lá foram en-

viadas, aproximadamente, 200 mil

pessoas perseguidas pelo regime

nazista. Oficialmente, elas estavam

presas até cumprir a pena de traba-

lho forçado em uma das fábricas ao

redor do campo. Há inclusive uma

placa que destaca quem se benefi-

ciou dessa mão de obra escrava, na

qual aparecem nomes conhecidos

como Siemens, BMW, Daimler-Benz

e Volkswagen. Na prática, os prisio-

neiros trabalhavam até morrer. E o

tempo de vida em Sachsenhausen,

com frio, fome e outros maus-tratos,

“ A visita ao que restou do muro de Berlim também foi marcante”

era curto: na fábrica de ladrilhos, a

mais pesada, sobrevivia-se, em

média, 17 dias.

A visita ao que restou do muro

de Berlim também foi marcante. A

explicação dada pelo guia do porquê

o muro foi construído parece ficção,

realismo fantástico. Inicialmente

uma barreira de arames farpados,

depois um obstáculo duplo de ti-

jolos, o muro não dividia a cidade

em dois, como eu havia aprendido

na escola. Ele simplesmente cerca-

va toda a Berlim ocidental, isolan-

do a República Democrática Alemã

(comunista) dessa verdadeira ilha

do livre mercado. O objetivo maior

era evitar que os moradores da Ale-

manha Oriental migrassem para a

República Federal Alemã e, de lá, a

outros países capitalistas. Da noite

para o dia, na madrugada de 13 de

agosto de 1961, muitas famílias de

Berlim foram simplesmente sepa-

radas pelo que os alemães chama-

vam de “muro da vergonha”.

Quando o muro foi derrubado,

em 1989, imaginou-se que o ideário

liberal havia triunfado para sempre:

era o fim da história. Mas a própria

Berlim provou que essa teoria esta-

va errada, com o caso emblemático

da praça Potsdamer. Outrora uma

região central da cidade, durante a

Foto

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Foto: Heitor Costa

62 valercultural

Page 63: Valer Cultural 3

Guerra Fria a Postdamer virou um espa-

ço fantasma, comprimido entre as duas

paredes do muro de Berlim. Quando a

Alemanha foi reunificada, tentou-se fa-

zer da praça um símbolo do capitalismo

vencedor e grandes empresas ganharam

incentivos para erguer prédios sofistica-

dos, como o Sony Center. Uma constru-

ção antiga permaneceu em pé, porém,

sem que a prefeitura conseguisse inte-

ressados em reformá-la. Então, para que

a homenagem não acabasse virando

piada, a solução encontrada foi cobrir

esse edifício com uma espécie de papel

de parede externo, imitando a fachada

de um prédio moderno, cheio de lojas.

Se você passa por lá distraído, nem per-

cebe a maquiagem, jura que são lojas de

verdade. Mas, de perto, tanto em Berlim

quanto em Xangai, as coisas não são tão

normais.

Foto

: Hei

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Cost

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63valercultural

Page 64: Valer Cultural 3

literatura

64 valercultural

Page 65: Valer Cultural 3

Copa do Mundo de 2014 e as Olim-

píadas de 2016 fizeram o mundo

voltar os olhos para o Brasil. Seja a

Fifa, o COL, o COI, a imprensa inter-

nacional, os turistas, muita gente está de olho

neste país emergente que em uma tacada só

conseguiu o direito de sediar em um curto

espaço de tempo as duas principais compe-

tições esportivas do universo. Nessa mesma

onda, as editoras de livros estão surfando em

busca de novos lançamentos. Futebolísticos

ou olímpicos. Não importa.

É mais comum, claro, o interesse do leitor

por biografias de grandes esportistas. E elas,

Com a proximidade da Copa

do Mundo e das Olimpíadas

no Brasil, livros sobre o

tema ganham mais espaço

e atenção nas editoras

Bárbara Lima e Leandro Curi | jornalistas

65valercultural

Page 66: Valer Cultural 3

de uma maneira geral, não atingem apenas o nicho es-

portivo. Vão além. Não só porque os atletas dignos de

um livro assim são também personalidades do mundo,

mas principalmente porque os textos não se limitam

apenas ao esporte, mas se aprofundam na vida do pro-

tagonista. Vai fundo na história de cada um, desde a

infância até o auge, passando por todos os desafios da

vida de um vencedor.

Só que o desafio agora é outro. Às vésperas da Copa

do Mundo e das Olimpíadas no Brasil, as editoras estão

em busca de novos lançamentos esportivos. A maioria

delas vê agora uma oportunidade de alavancar o seg-

mento no país. Muito embora o esporte seja um dos

fatores que mais aproxima o brasileiro da literatura.

Para Ruy Castro, autor da bíblia das biografias espor-

tivas, o livro Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado

Garrincha, o boom do tema esporte no mercado editorial

começou há pelos menos 15 anos. O livro, lançado em

1995 pela Companhia das Letras, recebeu em 1996 o

Prêmio Jabuti na categoria “Livro do Ano de Não Ficção”.

“As editoras já não têm mais medo de publicar li-

vros do gênero. Até 1994 ou 1995, eles eram tabu”,

afirma o jornalista, colecionador de dezenas de títulos

sobre o Flamengo e que acaba de contribuir com mais

um deles: a terceira e definitiva edição de O Vermelho

e o Negro – Pequena Grande História do Flamengo,

publicado pela Companhia das Letras.

Novos selos

Se antes era tabu, hoje o potencial do mercado é

enorme devido à proximidade de eventos como Copa

do Mundo e os Jogos Olímpicos nos próximos quatro

anos. Por conta disso, várias editoras que não possuem

o DNA esportivo estão desenvolvendo novos selos para

atender a esse mercado específico.

A página principal da loja virtual da Cia. dos Livros,

por exemplo, tem dois destaques que levam o usuário

diretamente para uma seleção de livros e curiosidades

sobre futebol e esportes olímpicos. A editora é responsá-

vel por duas das biografias preferidas entre os amantes

do esporte: Diamante Negro (que conta a trajetória de

Leônidas da Silva) e Fio de Esperança (sobre Telê Santa-

na), ambas escritas por André Ribeiro.

Outra editora, a Magma, já tem quatro títulos espor-

tivos em sua bibliografia. Um livro sobre o centenário

do Corinthians (100 Anos de Paixão), outro sobre Pelé

e dois a respeito do Santos (100 Anos de Futebol Arte e

Biografias de craques do esporte que você não pode deixar de ler

Primeiro Tempo – O início da trajetória de

Pelé com comentários e depoimentos inéditos

Organização: Luiz Felipe Heide Aranha Moura

Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha

Autor: Ruy Castro

Agassi – Autobiografia

Autor: Andre Agassi

66 valercultural

Page 67: Valer Cultural 3

“ Às vésperas da Copa do mundo e das Olimpíadas no Brasil, as editoras estão em busca de novos lançamentos esportivos

Considerado o rei do futebol, Pelé também tem livros sobre sua trajetória

3 x Tri). Outros três títulos estão em produção

ou prestes a serem lançados: o Almanaque

do Santos Futebol Clubes, Corinthians, Paixão

Eterna e a biografia de Marcelinho Carioca.

Essa aposta sobre clubes brasileiros ou ído-

los que remetam diretamente a algum time,

como no caso de Marcelinho Carioca com o Co-

rinthians, é uma espécie de moda nesse mer-

cado. Como a maioria dos “leitores esportivos”

67valercultural

Page 68: Valer Cultural 3

não se interessa por outros gêneros (isso não é regra,

mas sim tendência), buscá-lo por meio da paixão pelo

esporte é um caminho muitas vezes mais curto.

“Os livros com temas esportivos atraem um público

que não lê, necessariamente, outros títulos. Os ligados

ao futebol, por exemplo, cativam um público com pai-

xão clubística e cada vez mais transformam esses pro-

dutos editoriais em coleções históricas”, comenta Marco

Piovan, editor da Magma Cultural.

Essas coleções históricas, normalmente, vêm segui-

das de títulos e têm como base os registros fotográficos

das conquistas. Por exemplo, o Corinthians, campeão

pela primeira vez da Libertadores em 2012, vai lançar

em breve um livro fotográfico com o nome de Liberta-

dos. E o Palmeiras, campeão da Copa do Brasil, tam-

bém prepara algo nessa mesma linha.

Crescimento econômico

De acordo com Piovan, não são apenas as conquis-

tas que alavancam o mercado de livros esportivos no

Brasil. Segundo ele, o crescimento econômico do país

ajuda (e muito!) no interesse do brasileiro por literatu-

ra. Seja ela esportiva, romancista, biográfica...

“O crescimento da economia e a ascensão da po-

pulação base da pirâmide para a Classe C revelam, em

parte, o acesso desse público ao mercado editorial”,

disse.

É evidente, no entanto, que com a proximidade

da Copa do Mundo e das Olimpíadas no Brasil, haja

um crescimento maior no nicho esportivo. E se há de-

manda, nada melhor do que as editoras pensarem em

como ofertar.

“O crescimento nas vendas dos títulos esportivos,

especificamente, se deve à fomentação de novos tí-

tulos nessa área. O mercado editorial descobriu esse

nicho e com o apoio da mídia especializada conseguiu

atingir uma grande parcela da população que consome

livros”, finaliza o editor.

Ainda restam pouco menos de dois anos para a

Copa do Mundo e pouco menos de quatro para as Olim-

píadas no Rio de Janeiro. Tempo suficiente para que o

mercado de literatura esportiva marque um golaço e

conquiste muitas medalhas no Brasil.

Diamante Negro (Biografia de Leônidas da Silva)

Autor: André Ribeiro

Ayrton Senna: Uma Lenda a Toda Velocidade

Autor: Christopher Hilton

A Luta de Lance Armstrong

Autor: Daniel Coyle

Tradução: Selma Ziedas

68 valercultural

Page 69: Valer Cultural 3

Também de olho nesse mercado, a Valer

Editora acaba de lançar a série Educação Fí-

sica, em parceria com a Universidade Fede-

ral do Amazonas (Ufam). São 12 obras no

total. Algumas já foram lançadas: Handebol

– Reflexões didático-pedagógicas e técnicas;

Futebol de Campo; Novos olhares no futsal;

Natação; Ginástica Rítmica e Voleibol: Funda-

mentos e Metodologia. Entre as outras moda-

lidades que também ganharão livros estão o

atletismo e o tênis de mesa, ambos em pro-

cesso de finalização.

“Esse é o momento do esporte no Brasil. O

país vive essa expectativa com a aproximação

da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas

de 2016”, comenta Rita Puga, uma das coor-

denadoras da série de livros esportivos, que

garante: “Fomos além da técnica, queremos

mostrar o lado mais humanista do esporte”,

pontua.

A Valer também já publicou outros livros

esportivos que são sucesso: Baú Velho, de

Carlos Zamith, que resgata a memória dos jo-

gadores e clubes amazonenses, e Pepeta: Pá-

ginas de Vida e História, de Carmen Nóvoa e

Silva, sobre o ex-jogador amazonense Pepeta.

Ufam lança série Educação Física

69valercultural

Page 70: Valer Cultural 3

Cite algumas biografias importantes, na sua opinião.

Vou dizer cinco grandes livros que têm a

ver com grandes personagens: A Luta – Nor-

man Mailer (a histórica vitória de Muham-

mad Ali sobre George Foreman, no Zaire, em

1974); Estrela Solitária – Ruy Castro (sobre

Garrincha); Fio de Esperança – André Ribeiro

(sobre Telê Santana); Gracias Vieja (autobio-

grafia de Di Stéfano – não tem no Brasil) e

Diamante Negro – André Ribeiro (sobre Leô-

nidas da Silva).

Certamente a sua paixão pelo espor-te te aproximou da leitura. Quanto ela foi fundamental nesse processo?

Todo dia é. Digo isso porque a cada vez

que você lê, ou relê, descobre uma história

Michael Jordan: a História de um Campeão e o Mundo Que Ele Criou

Autor: David Halberstam

Fio de Esperança (Biografia de Telê

Santana)

Autor: André Ribeiro

Transformando Suor em Ouro

Autor: Bernardinho

Jornalista desde os 18 anos.

Foi repórter da revista PLACAR,

repórter, editor e colunista do jornal

O Estado de S.Paulo e desde 2000

é comentarista dos canais ESPN.

Cobriu as Copas de 1994, 1998,

2006 e 2010.

Entrevista com

Paulo Vinícius Coelho

70 valercultural

Page 71: Valer Cultural 3

nova. Agora, por exemplo, estou

lendo a biografia do Marcelo Bielsa.

É esquisito, porque o cara está vivo,

em plena carreira. Chama-se Último

Romântico e é ótimo. Conta, por

exemplo, as razões pelas quais ele

mudou o time inteiro da Argentina

(meio time, na verdade), antes do

jogo contra a Suécia, responsável

pela eliminação na primeira fase da

Copa do Mundo de 2002, na primei-

ra fase.

Cada dia há mais publicações de livros sobre esporte. Você acha que com a proximidade da Copa e das Olimpíadas no Brasil isso vai aumentar?

O Brasil não está tão atrás as-

sim. Se você visita livrarias na Itá-

lia, percebe isso. Na Inglaterra, é

diferente. Tem muita coisa! Muita

mesmo. Só que tem livros de clu-

bes aos montes. Tem muita coisa

ruim também. A questão é o mer-

cado editorial estar aberto para

publicar tudo o que for bom. Está

mais disponível, mas não totalmen-

te. Agora, não adianta publicar uma

biografia do Neymar aos 20 anos e

outra aos 25.

Fala um pouco sobre as suas publicações. Quais são até aqui? Pretende lançar outros projetos? Quais?

Tem seis livros: Jornalismo Es-

portivo, Futebol Passo a Passo

(para o Lance!), Os 50 maiores jo-

gos das copas, Os 55 maiores jo-

gadores das Copas, Os 100 maio-

res jogadores do futebol brasileiro

e Bola Fora. Eu gosto mesmo é do

Bola Fora. É a história do êxodo do

futebol brasileiro e, embora não

seja um documento definitivo, con-

ta e desmistifica muita coisa. E devo

lançar até o final do ano Marcas

de São Marcos – A história do maior

goleiro da história do Palmeiras.

Mas estou cru, ainda.

Foto: Joel Silva/Folhapress

71valercultural

Page 72: Valer Cultural 3

política indigenista

72 valercultural

Page 73: Valer Cultural 3

Cicatrizes da violência física e ideoló-

gica do passado estão na memória

dos indígenas do rio Negro-AM. As

lembranças – às vezes pesadelos –

transformam-se em exemplos de resistência

e compreensão de fatos e acontecimentos

que os ajudam nas lutas do presente. Lutas

que lhes garantiram, na Constituição de 1988,

o direito à terra e de serem tratados como

índios e portadores de culturas diferenciadas.

Conquistaram também, na Carta Magna, o re-

conhecimento político das suas instituições

reivindicatórias.

Assim se movimentam fortalecidos na

batalha contra o preconceito de que seriam

povos sem alma, sujos, preguiçosos e incapa-

zes. Com apoio da Igreja progressista, setores

republicanos do Estado e ONGs, mantêm-se

em movimento, para que essas vitórias trans-

bordem do papel para políticas públicas de

Um panorama da relação atual das tribos

do rio Negro com a Sociedade Nacional

Marcus Stoyanovith | jornalista

Estado. No alto rio Negro, os indígenas pas-

saram a protagonizar, nos últimos 40 anos,

a sua própria história e destino na relação

com o Estado e com os demais segmentos da

sociedade nacional. Por isso, se sentem mais

fortes como “índios em movimento” do que

como “movimento indígena”.

E em movimento está o gigante rio Ne-

gro, o maior afluente do rio Amazonas. Suas

águas, ao longo do seu curso de 1.700 qui-

lômetros, desenham os contornos das terras

que abrigam 100 mil índios de 23 etnias.

Cada qual com a sua tradição e maneira de

agir, pensar, viver e conviver. Mas, para eles,

ser diferente não significa ser fragmentado.

A multietnicidade nessa região é considerada

uma força coletiva no enfrentamento dos de-

safios que move a todos, independentemen-

te de serem Tukano, Tariana, Baniwa, Baré,

Yanomami, Dessana, Maku ou mesmo povos

Fotos: Marcus Stoyanovith / W

ilson Nogueira

73valercultural

Page 74: Valer Cultural 3

de outros territórios. Eles se unem

na diferença e, em qualquer lugar

do mundo, se reconhecem e que-

rem ser reconhecidos como uma

grande família, como parentes.

E como parentes se movimen-

tam para se manter fortes contra o

poder econômico, para avançar na

demarcação e regulamentação das

suas terras e assegurar participação

na sociedade nacional sem negar

suas tradições (mitos, ritos, crenças

e cultura). Feita conforme o mode-

lo da organização social indígena, a

Federação das Organizações Indí-

genas do Rio Negro (Foirn), criada

em 1987, com sede em São Gabriel

da Cachoeira, abriga 90 associações

que se relacionam como mais de 35

mil índios de 23 etnias, a maioria

fixada em aldeias, sítios e comuni-

dades. Há aldeias que se localizam

até 17 horas, em viagem de voa-

deira, das cidades de São Gabriel da

Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos.

A sobrevivência da Foirn está

no arco de parceiras com entida-

des como a Organização das Na-

ções Unidas (ONU), Coiab, Instituto

Socioambiental (ISA) e instituições

governamentais. A federação e as

associações funcionam como uma

ponte política entre o Estado e ins-

tituições não índias com as aldeias,

cujas lideranças são os caciques, ca-

pitães e pajés. “Somos interlocuto-

res dos líderes das aldeias, sítios e

comunidades”, explica o índio Tuka-

no Maximiliano Corrêa Menezes, 51,

dirigente da Foirn. Ele sublinha que

esse comportamento político é a

essência da organização que existe

para manter viva a tradição. E essa

expressão vem gerando um conflito

que está se fortalecendo na medi-

da em que os indígenas avançam

em suas organizações. É que para

a sociedade branca, ou nacional, o

índio é aquele que vive na aldeia,

julgando como não índios aqueles

que estão na cidade, sem pintura

no rosto e vestidos.

Não por serem exóticos

“Não é o estar nu e com a cara

pintada que define um ser índio ou

não. O que nos identifica como ín-

“Não é o estar nu e com a cara pintada que define um ser índio ou não. O que nos identifica como índio é a nossa alma, a nossa crença, a nossa cultura”

74 valercultural

Page 75: Valer Cultural 3

“Onde o branco vê uma montanha, nós vemos a casa das árvores, das plantas e do iaçá (quelônio da terra); onde ele vê um rio, nós vemos a casa dos peixes. E nós fomos ensinados a cuidar da nossa terra com essa natureza”

dio é a nossa alma, a nossa crença,

a nossa cultura”, corrige André Ba-

niwa, 43, vice-prefeito de São Ga-

briel da Cachoeira. Para ele, vê-los

por esse lado exótico, fortalece os

defensores da tese de que o índio

fora da aldeia não precisa de tanta

terra. Esse discurso, segundo ele, fa-

vorece o projeto de redução dos ter-

ritórios indígenas, inclusive, os já de-

marcados. Mas, explica André, a ter-

ra é tão sagrada para o índio quanto

o cosmos que guia as suas crenças,

alimentação e cultura. “Onde o bran-

co vê uma montanha, nós vemos a

casa das árvores, das plantas e do

iaçá (quelônio da terra); onde ele vê

um rio, nós vemos a casa dos peixes.

E nós fomos ensinados a cuidar da

nossa terra com essa natureza”, ex-

plica o Tukano Maximiliano.

Ele diz que, ao se utilizar da

tecnologia e dos modelos de Eco-

nomia, Educação e Saúde da Socie-

dade Nacional, o índio está no seu

direito constitucional e não deixa

de ser índio por isso. Para ele, essa

é uma maneira de conviver com o

“branco” e que tal comportamen-

to só fortalece a luta pela tradição,

facilitando o acesso à informação

e a comunicação entre os mais ve-

lhos e os jovens. Aliás, Maximiliano

ressalta que os mais velhos são re-

sistentes a essa teoria, ao contrário

dos mais jovens. André Baniwa é

um pouco mais cauteloso, porém é

de acordo que essa forma de vida

fortalece a manutenção da tradição.

“Mas temos que manter viva a cul-

tura e, isso só é possível, ensinan-

do aos mais jovens, nossas crenças

e nossos costumes. Tudo isso, por

meio de uma Educação diferenciada

que tenha nossa ciência, tecnologia

e nossas tradições”, observa André.

75valercultural

Page 76: Valer Cultural 3

Tutela nunca mais

Maximiliano diz que os índios

não entendiam porque eram con-

siderados incapazes. Não en-

tendiam, reforça Max, porque

não sabiam o que o homem

branco dizia sobre eles no

passado. “Hoje também

falamos o português

e podemos dizer

que não aceitamos

esse julgamento.

Mas até a Funai ain-

da hoje nos trata

como tutelados”,

assegura o Tuka-

no Maximiliano. “A Constituição de

1988 nos garante autonomia e en-

tendemos que o Estado foi criado

para proteger todos os seus cida-

dãos. Então todos deveriam ser tu-

telados”, questiona André, respon-

dendo que não. “Somos cidadãos.

Somos diferentes. Somos brasilei-

ros, e é assim que desejamos ser

respeitados”, diz o líder Baré.

Gersen dos Santos Luciano Ba-

niwa, em seu estudo sobre O que

é preciso saber do índio brasileiro

no Brasil de hoje escreve que as

crenças, os valores e a tecnologia

“Até a Funai ainda hoje nos trata como tutelados”

provêm de um conhecimento prá-

tico e profundo, gerado a partir de

milhares de anos de observações e

experiências empíricas que sempre

foram compartilhadas para garantir

um modo de vida específico. E ele

afirma que isso descontrói a tese

de que os índios são incapazes de

gerar sua sobrevivência, precisando

dos brancos para ensiná-los a viver.

“Se existem índios que passaram a

sobreviver sob a tutela do Estado

é porque foram empurrados pelos

colonizadores para tal condição”,

escreve Gersen Baniwa.

Quando citou a Fundação Na-

cional do Índio (Funai), Maximilia-

no lembrou a origem da instituição

com o nome de Serviço de Proteção

ao Índio-SPI, forjada para decidir

sobre tudo o que dizia respeito aos

índios sem que esses tivessem o

A comunicação via radiofonia

A Foirn é a captadora das diferentes demandas das

filiadas instaladas em São Gabriel da Cachoeira, alto rio

Negro, Santa Isabel e Barcelos, médio rio Negro. Cada

cidade, distante mais de 100 quilômetros entre si, onde

o transporte preponderante são os barcos e canoas. A

comunicação com as mais de 90 Associações se dá em

reuniões mensais, semestrais e anuais e no dia a dia,

por meio de atendimentos via radiofonia, a única tec-

nologia de comunicação disponível. Com operadores

que falam mais de uma língua indígena, as lideranças

das comunidades recebem ou enviam contatos diá-

rios para solução de

problemas de saúde,

de abastecimento de

produtos, ou mesmo

para agendar en-

contros.

São 700 comunidades entre os municípios de Bar-

celos, Santa Isabel e São Gabriel da Cachoeira e ne-

nhuma com menos de doze horas de distância (ida e

volta) de suas sedes municipais. “Por meio da radiofo-

nia, são providenciados resgates de índios com picadas

de cobra, acometidos de malária, diarreia e tuberculose

e são informados os calendários de vacinas”, explica

Maximiliano.

Se a radiofonia ajuda a salvar centenas de vidas,

a rádio de Ondas Médias, operada na sede da Foirn,

em São Gabriel da Cachoeira, leva notícias, orientações

e cultura para as comunidades. O programa Vozes do

rio Negro, comandado pelo índio Baré Nivaldo da Sil-

va Cordeiro, é transmitido às terças-feiras, das 6 às 7h.

“Essa é uma forma de nos fazermos mais presentes e

atualizados com os acontecimentos”, diz Maximiliano,

que registra o envolvimento das comunidades entre si

em razão do programa.

76 valercultural

Page 77: Valer Cultural 3

suas próprias vidas, uma contradi-

ção com o que determina a Cons-

tituição.

Retratos locais

Em São Gabriel da Cachoeira,

um dos desafios é a Saúde da Mu-

lher Indígena, segundo a professo-

ra aposentada e atual dirigente da

Associação dos Artesãos Indígenas

(Assai), criada em 1999, a índia pira-

tapuia Cecilia Barbosa Albuquerque.

“A mulher indígena obteve alguns

avanços e hoje já pode viajar sem o

marido para os encontros ou semi-

nários; ela é, cada vez mais, cons-

ciente de que precisa fazer exames

preventivos, mas ainda não conse-

“A mulher indígena obteve alguns avanços e hoje já pode viajar sem o marido para os encontros ou seminários; ela é, cada vez mais, consciente de que precisa fazer exames preventivos, mas ainda não consegue planejar a gravidez”

gue planejar a gravidez”, diz Cecí-

lia. O assunto deve entrar na pauta

de todas as instituições envolvidas,

principalmente com programas de

orientação para os conselhos locais.

“A população pode crescer, mas

sem ser ruim para a mulher”, se

preocupa a piratapuia.

O município foi pioneiro ao ele-

ger duas lideranças indígenas que

formaram chapa para a prefeitura,

em 2008: Pedro Garcia, da etnia

Tariana, prefeito; e André Baniwa,

vice-prefeito. No final do mandato

da dupla, uma certeza é latente:

ainda há muito que amadurecer

nessa área da política pública. Mas,

a cidade vive um feito inédito em

todo o Brasil: em razão da aprova-

ção da Lei Municipal que dá às lín-

guas Tukano, Nheengatu e Baniwa,

o status de línguas co-oficiais que,

juntas à oficial língua Portuguesa,

devem constar no currículo das es-

colas do município e ser oferecidas

em atendimentos de quaisquer ser-

viços públicos.

Em Santa Isabel, o amadure-

cimento político, para o líder Baré

Marivelto Rodrigues Barroso, che-

gou cedo. Desde os 16 anos, no

movimento indígena, aos 21 anos,

As lideranças das

comunidades de Barcelos estão

preocupadas também com o

crescente trabalho semiescravo

da colheita da piaçava,

matéria-prima usada no

artesanato indígena da região.

Além da exploração da mão

de obra indígena, a piaçava já

está em falta na cidade, o que

torna o trabalho dos artesãos e

artesãs cada vez mais difícil.

direito “nem de abrir a boca”. Ma-

ximiliano afirma que essa atitude

foi a responsável pelos movimen-

tos coletivos, a partir dos anos de

1970. A pressão foi tamanha que

obrigou o Governo a uma opção ca-

maleônica, transformando o SPI em

Funai. Os movimentos continuaram

e, atualmente, Maximiliano come-

mora o esvaziamento da Funai, com

a descentralização dos serviços de

saúde para a Funasa, educação para

o Ministério da Educação e meio

ambiente para o Ministério homôni-

mo. Essa conquista possibilitou uma

maior participação dos indígenas e

um caminho para o fim da tutela.

André informa que o caráter de tu-

telados tira o direito de planejarem

77valercultural

Page 78: Valer Cultural 3

“ Temos terra, temos gente para produzir com potencial para comercialização, mas não temos como escoar nem para quem vender o excedente da produção. O comércio local não compra nossa produção”

já preside a Associação das Comuni-

dades Indígenas do Médio Rio Ne-

gro (ACIMRN), criada em 1996, com

atuação em 13 localidades com as

mesmas etnias do alto rio Negro, e

conta com a parceria do trabalho do

Serviço e Cooperação com o Povo

Yanomami (Secoya), uma ONG que

atua em nove comunidades Yano-

mami e atende cerca de 500 índios

na área de educação e saúde. Ma-

rivelto diz que a participação deve

se dar com representações na po-

lítica estadual e nacional, porque,

segundo ele, os problemas são lo-

cais, mas a solução é externa. Ele

cita como exemplo a necessidade

de continuidade das soluções para

a educação indígena, saúde e agri-

cultura familiar.

As pescas comercial, esportiva

e ornamental, praticadas de forma

predatória, são os principais proble-

mas da região. Elas se estendem,

cada vez mais, para dentro das co-

munidades indígenas. Isso afeta a

sobrevivência de várias famílias que

têm o peixe como alimento principal.

“Existem os postos de acesso, mas

depois de pagarem uma pequena

tarifa, não há mais fiscalização”, in-

forma Marivelto, deixando claro que

os indígenas não são contra a pesca

esportiva, desde que praticadas com

regras que não prejudiquem os ín-

dios e demais moradores da região.

As lideranças estão em movi-

mento para fazer valer o ordena-

mento pesqueiro. O objetivo é um

controle da pesca, pois as dificulda-

des de se encontrar peixe estão au-

mentando e o exemplo é a invasão

das comunidades por pescadores

de fora da região. O líder indígena

lembra que a agricultura familiar

também está na pauta. “Temos ter-

ra, temos gente para produzir com

potencial para comercialização, mas

não temos como escoar nem para

quem vender o excedente da pro-

dução. O comércio local não compra

nossa produção. Estamos esperando

uma posição da Caixa Econômica

para dar prosseguimento aos proje-

tos de Bases de Serviços de Comer-

cialização (BSC)” .

Na área ambiental, um proble-

ma grave afeta os três municípios,

mas em Santa Isabel se apresenta

com maior gravidade. Trata-se da

extração de seixo do leito dos rios.

Essa atividade é danosa ao meio

ambiente porque o seixo serve de

produção primária para do fitoplânc-

ton (microrganismos aquáticos que

possuem capacidade fotossintéti-

78 valercultural

Page 79: Valer Cultural 3

ca), base alimentar de toda a fauna

dos rios. A situação já é do conhe-

cimento dos órgãos dos governos

estadual e federal e as lideranças

indígenas lutam para que haja um

controle ou a suspenção imediata

desse tipo de extração.

Em Barcelos, as terras indígenas

ainda não foram demarcadas, em-

bora os estudos para isso já tenham

sido concluídos. São consideradas

terras indígenas as dos rios Aracá,

Demeni, Padauari, à margem direita

do rio Negro, a partir de Barcelos até

o rio Jurubaxi, e os rios Kiuini e Kau-

rés. “Vamos reunir com a Funai e a

Foirn, em São Gabriel da Cachoeira,

para tratarmos das demarcações”,

assegura a presidente da Associa-

ção Indígena de Barcelos (Asiba), a

índia Baré Dilza Tomas de Melo, 56.

Ela explica que as terras para o índio

não têm valor de mercado; têm va-

lor espiritual segundo os princípios

de cada cultura.

Dona Dilza, como é conhecida

na cidade, fica feliz com o aumen-

to do número de associados e faz

as contas: “Uma média de três ou

quatro todos os dias”. O motivo de

tanta adesão, segundo dona Dilza,

são resultados da organização e

benefícios alcançados na área de

saúde. Ela destaca que os índios

nas aldeias já aceitam o remédio

do branco e os doutores brancos já

reconhecem o poder de cura das

plantas medicinais, utilizadas há

séculos pelos parentes. “Mas eles

estão se associando e nós estamos

com problemas. As mulheres pre-

cisam de equipamentos para fazer

seus exames; os medicamentos e

as vacinas não podem atrasar”, diz

a presidente.

Com a diminuição da discrimi-

nação contra os povos indígenas

na sede do município de Barcelos,

o número de jovens estudantes que

permanecem nas escolas aumentou

nos últimos cinco anos. “A criança

ou o jovem negava a sua identida-

de para evitar a discriminação, mas

isso de pouco valia. A ex-prefeita

da cidade Alberta Oliveira dizia, na

nossa frente, que em Barcelos não

existia índio. Hoje é diferente. Eles

sentem mais força no movimento

indígena que chama a atenção do

mundo todo e isso trouxe mais res-

peito para nós”, reflete dona Dilza.

Um dos desafios na área da edu-

cação também é a implantação de

uma educação diferenciada. A ideia

de se ter uma educação diferenciada

em todas as etapas do ensino está

mais forte porque tem o apoio das

lideranças das aldeias, comunidades

e sítios. Dona Dilza explica que todos

estão bem informados e sabedores

dos seus direitos e seus deveres.

“Os índios lutam, por exemplo, por

uma educação que considere, no

seu conteúdo curricular, a crença

e os rituais, as formas de pesca e

caça, a dança, e música e os modos

de como devemos nos relacionar na

natureza”, exemplifica. O que dificul-

ta a implantação da educação dife-

renciada é a falta de compreensão

da Seduc para esse aspecto.

O fato mais grave na ausência

de um ensino que esteja voltado

aos índios é o esvaziamento das

aldeias, sítios e comunidades pe-

los jovens que se deslocam para as

cidades e acabam se envolvendo

com drogas e álcool. “Nossa luta é

para que as comunidades recebam

escolas e que ensinem a nossa lín-

gua, mais o inglês e o espanhol”, diz

dona Dilza. O ideal, para ela, é que

educação diferenciada se implante

em toda a região do rio Negro.

Agenda multiétnica

A Foirn tem uma agenda multié-

tnica que já foi acordada entre as li-

deranças formais (das organizações

e associações) e tradicionais (das

aldeias, sítios e comunidades). Os

tópicos relevantes da agenda são:

demarcações e regulamentações

das terras indígenas; luta pelo for-

talecimento da identidade indíge-

na; programa de sustentabilidade;

participação dos conselhos locais;

melhorias no atendimento na área

da saúde; instalação de escolas nas

comunidades; agricultura familiar;

universidade indígena com ensino

diferenciado.

Em seu estudo, Gersen Baniwa

escreve que as tradições ainda são

valorizadas na educação indígena.

Assim, essa afirmação justifica o

desejo das lideranças em favor de

uma educação diferenciada. E, ela

já está respaldada na Constituição

Federal, e na Lei de Diretrizes Bá-

sicas – LDB, com a resolução n.° 3,

de 10, de novembro de 1999, do

Conselho Nacional de Educação,

que define os elementos básicos

para a organização, estrutura e fun-

cionamento da escola Indígena. E

“ Nossa luta é para que as comunidades recebam escolas e que ensinem a nossa língua, mais o inglês e o espanhol”

79valercultural

Page 80: Valer Cultural 3

SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA

Em São Gabriel da Cachoeira,

85% da população de 37.300 ha-

bitantes (IBGE-2010) pertencem a

uma das 23 etnias indígenas. Mas

eles falam em português, e, no mí-

nimo, mais de uma língua, além da

sua própria que pode ser o nheen-

gatu, tukano ou baniwa.

São Gabriel da Cachoeira é área

de Segurança Nacional, pela Lei

Federal 5.449, de 1968. Lá estão

instaladas a Segunda Brigada de In-

fantaria de Selva, o Quinto Batalhão

o conselho estabelece a inclusão

das estruturas sociais, das práticas

socioculturais e religiosas, e das for-

mas de produção do conhecimen-

to e métodos próprios de ensino/

aprendizagem.

Tradição viva

Algumas das tradições que ain-

da são muito fortes e considera-

das como conteúdo na educação

diferenciada foram recortadas por

Gersen Baniwa. Escreve ele: “A fa-

mília e a comunidade, ou o povo

são responsáveis pela educação das

crianças; é na família que se apren-

de a viver bem, sendo um bom ca-

çador, um bom pescador; aprende

a fazer uma roça, a plantar, a fazer

farinha; a benzer e a curar doenças,

a conhecer as plantas medicinais.

Vai conhecer a geografia das ma-

tas, dos rios e das serras; conhecer

a matemática e a geometria para

construir a casa, a canoa, o remo”.

Gersen Baniwa registra tam-

bém que o método preferencial

das ciências indígenas é a visão da

totalidade do mundo e assinala: “O

indígena deve buscar conhecer o

máximo o funcionamento da na-

tureza, não para dominá-la e con-

trolá-la, mas para seguir com sua

lógica”. Maximiliano, por sua vez,

lembra que as crenças que levam

em consideração a leitura do cos-

mos e os ritos que fazem as pas-

sagens das fases da vida também

são conteúdos da educação dife-

renciada, almejada por todas as li-

deranças, estejam elas à frente das

organizações ou nas aldeias, sítios

e comunidades.

Em movimento

André Baniwa lembra uma ci-

tação no meticuloso estudo do

parente Gersen Baniwa, feita pelo

índio Daniel Mundurucu, que dis-

se preferir a expressão “índios em

movimento” no lugar do conhecido

“movimento indígena”. Muito mais

que uma troca de palavras, a prefe-

rência revela uma luta sem tréguas

pela afirmação das Identidades.

André e Maximiliano, líderes ati-

vistas, dizem que há um processo

de amadurecimento e que as bases

para as novas conquistas já foram

construídas com as organizações

locais, estaduais, nacionais e es-

trangeiras. “Já estamos reconquis-

tando nosso território; o orgulho

de ser índio está de volta no jovem

que já entende que a sobrevivên-

cia está na sua tradição. Estamos

reaprendendo nossa língua, sobre

nossos mitos e rituais”, diz a líder

Dilza Melo. “Eu posso conhecer a

sua comida, você pode conhecer

a minha. Posso aprender a sua lín-

gua e você pode aprender a minha.

Mesmo que sejamos diferentes,

devemos ser todos parentes”, diz

André Baniwa.

de Infantaria de Selva, a 21.° Com-

panhia de Engenharia e Construção

e o Destacamento do Controle do

Espaço Aéreo do município.

Sua economia é pautada pela

agricultura de subsistência (man-

dioca, banana, bata-doce a abacaxi)

e pelos salários dos funcionalismos

municipal, estadual e federal.

SANTA ISABEL DO RIO NEGRO

Distante a 781 km de Manaus-AM,

Santa Isabel do Rio Negro é conhecida

como o teto do Brasil por abrigar dois

picos culminantes do país: o pico da

Neblina e o pico 31 de Março. Esta-

tística do IBGE/2010 contabiliza uma

população de 18.728 hab.

O ano de fundação é datado em

26 de Dezembro de 1957, e o mu-

nicípio possui uma área de 63 mil

quilômetros quadrados. Santa Isa-

bel também foi território de Barce-

los e tem sua economia baseada na

agricultura e na pesca.

As festas da Padroeira Santa Isa-

bel, em 04 de julho, e de Sant’Ana

em 26, do mesmo mês, são as

maiores atrações festeiras do lugar.

Coordenadas de cada cidade

80 valercultural

Page 81: Valer Cultural 3

RETRATOS DA HISTÓRIA

As forças militares da colonização portuguesa e es-

panhola, entre os séculos 16 e 18, foram responsáveis

pelo extermínio de milhares de indígenas no baixo, mé-

dio e alto rio Negro. A motivação da colonização era

exclusivamente econômica.

Na sanha exploratória várias formas de controle fo-

ram colocadas em práticas. Mas nenhuma violência foi

tão duradoura e, sutilmente, perversa, quanto a da Igre-

ja que usou da humilhação para aniquilar o índio que

havia em cada habitante do lugar.

Entre os séculos 16 e 20, foram várias as missões

civilizatórias, com destaque para as salesianas que, ao

longo desse período, assentou-se nos médio e alto rio

Negro e deu início à imposição de um novo modelo

de vida para os indígenas, baseados no lema: “Uma só

religião, uma só língua, uma só bandeira”, escreve a

professora Judith Gonçalves Albuquerque da Universida-

de do Mato Grosso, em um trecho do seu estudo sobre

os Indígenas do rio Negro.

A professora Valeria Augusta Weigel, da Universida-

de Federal do Amazonas-Ufam, escreve em seus estu-

dos que O Papa Leão XIII, com receio da propagação

das ideias humanitárias comunistas, tratou de ocupar

o maior número de espaços e cabeças possíveis. Com

apoio do Governo Brasileiro, os experientes salesianos

expandiram os Internatos e neles instalaram vários jo-

vens índios. Os que fossem pegos falando sua língua

eram obrigados a usar uma placa humilhante e eram

espancados na própria sala-de-aula. “Fora das aldeias

a maioria de nós fala muito baixo e quase não dá prá

uma conversa. Isso é um reflexo das discriminações”,

diz o indío Tukano Maximiliano, dirigente da FOIRN, ex-

-interno de Escola Salesiana.

Gersen Baniwa escreve que durante os últimos 500

anos, mais de mil línguas foram destruídas. Ele coloca

na conta do modelo de educação imposta aos indíge-

nas como causa principal.

Ainda, de acordo com trechos do estudo da pro-

fessora Valéria, só, em 1962, é que o Papa João XXIII,

no Concílio 6, passa a determinar uma outra orienta-

ção para que trocasse a doutrina da severidade pela

da misericórdia. “(...) deseja mostrar-se mãe amorosa

de todos; benigna, paciente, cheia de misericórdia e

bondosa com os filhos dela separados”, diz um trecho

do texto do Papa.

Na década de 1980, durante as comemorações pe-

los 500 anos do descobrimento do Brasil, o Papa João

Paulo II, pede perdão aos índios que passariam a ser re-

conhecidos na suprema Constituição brasileira de 1988.

BARCELOS

Foi a primeira capital do Amazo-

nas, na época da Província e, com

122.475.728 quilômetros quadra-

dos, é considerado o segundo maior

município do Brasil, atrás apenas de

Altamira, no Pará. Barcelos está a

405 quilômetros da capital. Foi fun-

dada em 6, de maio, de 1758.

Barcelos conta com uma popula-

ção de 25.835 habitantes, segundo

o IBGE/2010. Além do turismo, sua

economia se baseia nos cultivos da

mandioca, arroz e banana. Apesar de

ser considerada a terra do peixe orna-

mental, um sucesso mundial, a cidade

sofre com a escassez dos peixinhos,

em razão da captura predatória.

Como atrações turísticas, tem a

Festa do Peixe Ornamental (Acará

Disco e Cardinal), as visitações aos

Parques Nacional do Jaú e Estadual

da Serra do Aracá; Cachoeira do El

Dourado, com quase 400 metros de

altura e o abismo Guy Collet, a ca-

verna mais profunda do Brasil.

81valercultural

Page 82: Valer Cultural 3
Page 83: Valer Cultural 3
Page 84: Valer Cultural 3

gastronomia

Banquete

84 valercultural

Page 85: Valer Cultural 3

BanqueteGelado

Sorvetes naturais de frutas da região

conquistam cada vez mais novos paladares

D ona de um exclusivo “acervo” de

frutas, especiarias e iguarias, a

Amazônia tem conquistado cada

vez novos paladares. E não é só

com seus pratos típicos ou seus

peixes de água doce. O sabor regional se destaca tam-

bém quando misturado à cremosidade dos sorvetes.

Estes, aliás, são a pedida certa para enfrentar o calor do

verão amazônico.

Um conceito que se apurou por mais de 40 anos

resultou na união de uma família para resgatar o tra-

dicional ramo da matriarca. O sorvete artesanal. Dos

tempos que dona Creuza Braga fazia seus próprios

sorvetes onde morava, na avenida Joaquim

Nabuco, esquina com Sete de

Setembro. Quase meio século

depois, o resgate deu origem

à sorveteria Zero Grau, localizada na rua Pará, 660, no

Vieiralves.

Lá, uma dose de refrescância pode ser recebida,

por exemplo, com a receita autêntica do sorvete De-

Renata Paula e Lane Lima | jornalista

lícia de Cupuaçu, ou das frutas Bacuri, Buriti, Tucumã

e Araçá-boi.

Ainda na era da tropicalidade das frutas, a Zero

Grau também oferece sorvete de Sorva, que é uma

fruta amazônica de coloração esverdeada, passando a

castanho quando madura, possui a casca fina e o leite

viscoso. Tanto a fruta com o sorvete são facilmente en-

contrados de novembro a fevereiro.

Os irmãos Ana Lúcia e Carlos Bra-

ga assumem a direção da sorve-

85valercultural

Page 86: Valer Cultural 3

teria, que oferecem as receitas sem

conservantes, com puro extrato da

fruta e leite. Além dos sabores, o

cliente tem a opção de acrescentar

ao sorvete, mousse de cupuaçu ou

chocolate e cobertura de açaí.

A fruta gelada

Na mesma época em que a vi-

zinhança procurava as delícias de

Dona Creuza, surge a sorveteria

Glacial, na avenida Getúlio Vargas,

esquina com a rua Lauro Cavalcante,

loja que até hoje se mantém ativa.

Com 50 sabores, sendo 20 regionais

(entre eles cupuaçu, tucumã, açaí,

graviola, araçá-boi e pitomba), a fá-

brica já possui 12 lojas, sendo umas

em Presidente Figueiredo, Manaca-

puru, Itacoatiara, Maués e várias em

Manaus.

Se o requinte permitir, o regio-

nalismo também atravessa as bar-

reiras da culinária e dá vez ao Pettit

Gateou Amazônico, que consiste em

um bolo de chocolate ao leite, ge-

leia de cupuaçu, calda de chocolate

quente e castanha-do-brasil para

decoração.

Inovação

A autenticidade das fábricas e

distribuidoras de sorvete tem dado

aos clientes opções exclusivas com

sorvetes com doces de cupuaçu,

castanha-do-brasil, murici, tapioca

e até queijo bola. Como é o exem-

plo da Vaca Lambeu, uma marca

local que se aproveita das delícias

locais para inovar e transformar o

que seria uma simples sobremesa

num verdadeiro banquete gelado.

Da polpa ao doce da fruta, a fá-

brica aposta na mistura de sabores

e cores para chamar mais a atenção

da clientela. Para a sócia da loja,

Marina Oliveira, os sabores tradicio-

nais nem sempre têm vez na balan-

ça. De acordo com ela, as maiores

procuras da loja são de sabores ita-

lianos e regionais.

A empresa também lançou no-

mes exclusivos para simbolizar as

misturas, como “Paz e Amor”, que

surge da mistura dos sorvetes de

açaí e tapioca. Ou os coloridos como

Caprichoso e Garantido, Paraen-

se, Pavê de Cupuaçu e o Carimbó

(sorvete de castanha com doce de

cupuaçu). E também o que resultou

no nome da fábrica que mistura os

sorvetes de queijo bola e doce de

cupuaçu.

Os produtos da fábrica podem

ser encontrados em pontos de ven-

das disponíveis em toda Manaus,

mas a loja oficial fica na rua Jorge

Viega, 1, no Conjunto Eldorado, bair-

ro Parque Dez, zona Centro-Sul.

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86 valercultural

Page 87: Valer Cultural 3

Em São Paulo, a sorveteria Ta-

perebá, na Vila Madalena, região

conhecida por seu roteiro gastro-

nômico, oferece um novo conceito

aos seus clientes. Há sete anos no

mercado paulistano, a loja chama

atenção por unir a técnica italia-

na em produzir sorvetes cremosos

com os incomparáveis sabores do

Norte e Nordeste do país. Dos con-

vencionais aos exóticos, as iguarias

são feitas artesanalmente no local

com frutas selecionadas e nativas

da Amazônia, do Cerrado e da Mata

Atlântica, compradas em um sítio

localizado no interior do Estado.

Açaí, bacuri, cacau, camu-camu,

castanha, cupuaçu, graviola, guara-

ná, jabuticaba, murici, pitanga, ca-

rambola, taperebá, tapioca e umbu

são alguns dos sabores do cardápio.

Diariamente, cerca de doze sa-

bores revezam-se na vitrine. Difícil

é escolher o mais gostoso. David

Barkan, fotógrafo, é um dos fre-

quentadores assíduos do local. Seu

sorvete preferido é o de taperebá,

sabor que tem recebido reconheci-

mento inquestionável tanto de con-

sumidores como de especialistas

em gastronomia. “Mas não deixo

de experimentar as novidades”,

afirma Barkan que destaca cajá,

umbu, cupuaçu e ba-

curi em sua lis-

ta de frutas

exóticas.

Já o paraense Fernando Braga,

economista que mora em São Pau-

lo há 40 anos, diz que visita o local

para lembrar-se de sua terra natal.

“Sempre peço de tapioca ou açaí.

Estou há muitos anos aqui, mas não

deixo de comer as delícias amazô-

nicas”, afirma.

As crianças também solicitam

diferentes sorvetes dentre as mais

de cem receitas. Júlio Parente, de

dez anos, lista suas preferências.

“Banana com paçoca, goiabada

com queijo e abacaxi com hortelã”.

Das frutas nortistas ele é enfático:

“Prefiro o bacuri”.

Em sua primeira experiência

na sorveteria Taperebá, Carolina

Ornellas escolheu o cupuaçu. Já o

marido Mauro é do Maranhão e já

está acostumado com as frutas re-

gionais. “Desta vez escolhi tapioca,

estou adorando”, comenta.

No colorido que enche os olhos

de quem chega, outras frutas como

abacaxi, figo, caju, lichia, manga,

mamão papaia, acerola e pera

completam o time de delícias.

Delícias do Norte e Nordeste em São Paulo

87valercultural

Page 88: Valer Cultural 3

em Londres

Em meio ao silêncio, as árvores, as

flores, paz e as demais sepulturas.

Lá no fim do caminho, onde todos

sabem, está o último lugar de des-

canso de um grande pensador e não ape-

nas pensador, mas um homem de ação

também, Karl Marx.

Karl Marx foi, com certeza, o mais in-

fluente de todos os filósofos políticos, é

o mais famoso refugiado que a Inglater-

ra recebeu e o “hóspede” do mausoléu

mais visitado no cemitério de Highgate,

no norte de Londres.

Na verdade, primeiramente Marx foi

enterrado cerca de 150 metros do local

onde está hoje o seu memorial. Teve

um enterro muito modesto, com cerca

de uma dúzia de pessoas como teste-

munhas. Mas, com o passar do tempo,

sua influência intelectual aumentou o

Túmulo do famoso

filósofo é o mais visitado

no cemitério Highgate

Ao pé do memorial, o professor universitário Tom Ward e a esposa que incluíram a visita a Marx no roteiro de viagem

em memória

Ana Goreth Antony | jornalista

88 valercultural

Page 89: Valer Cultural 3

Fotos: Ana G

oreth Antony

89valercultural

Page 90: Valer Cultural 3

número de admiradores que vinham

visitá-lo cresceu tanto que foi preciso

um lugar mais acessível para o grande

mestre receber a todos.

Em 1956, o conselho da associação

do Marx Memorial Library comprou o

lugar onde hoje está o memorial es-

culpido por Laurence Bradshaw, mas

as inscrições são originais. As palavras

na pedra são a prova viva de que se

enterra o corpo, mas não se enterra o

homem, suas palavras e seus ideais.

No topo, lê-se o convite a todos

os trabalhadores do mundo. “Workers

of all lands United” – “Trabalhadores

de todo mundo unidos”. Logo abaixo,

mais palavras de desafio “The Philoso-

phers have only interpreted the world

in various ways. The point however is

to change it”. – “Os filósofos interpre-

taram o mundo de várias maneiras. O

ponto, entretanto, é tentar mudá-lo”.

Do alto de sua lápide, o busto de

Marx olha com severidade aos que

veem ao seu encontro. Talvez não seja

severo para todos, para alguns, ele pa-

rece dizer: “Bem que eu avisei”, em

tempos em que a Europa enfrenta sua

maior crise econômica desde 1930.

Pelo menos é assim que Tom Ward,

professor de Ciências Sociais da Uni-

Marx em ação

“Quem é dado por morto, vive mais”. O filósofo alemão

Robert Kurz (1943-2012) recorria sempre a esse adágio

para reafirmar importância do legado intelectual de Karl

Marx (1818-1883), para o qual se voltam os que querem

compreender o modo de produção capitalista, principal-

mente em seus ciclos de crise, como o que varre o mundo,

atualmente, a partir dos Estados Unidos e da Europa. No

ensaio Marx depois do marxismo, publicado em 24 de

setembro de 200, no jornal Folha de S. Paulo, Kurz afirma

que a razão do vigor do pensamento marxista é simples:

“A teoria de Marx só poderá morrer em paz junto com o

seu objeto, o modo de produção capitalista”.

No mesmo texto, Kurz alerta que a exemplo do que

acontece com todo pensamento teórico que ultrapassa a

data de validade de um determinado espírito de época,

também a obra de Marx carece de uma nova abordagem

que lhe descubra novas facetas e descarte velhas interpre-

tações. Novas abordagens à luz das contradições internas

do capitalismo – as que geram crises socioeconômicas de

magnitude global – só viriam a fortalecer a crítica radical,

inaugurada por Marx, a esse modo de produção. A síntese

dessas críticas está nos tomos de O Capital, publicado em

1867, em francês. No Brasil, a obra foi publicada em 1960,

pela editora Civilização Brasileira

O Manifesto comunista (publicado pela primeira vez

em 1848), escrito em parceria com Friedrich Engels (1820-

1895), pontificou a internacionalização das ideias de Marx

como forças mobilizadoras do proletário em favor de uma

nova ordem mundial que devolvesse aos trabalhadores os

meios de produção. “Proletário de todos os países, uni-

-vos”, o brado do manifesto, tornou-se símbolo da corren-

te marxista do movimento operário. Mais que retórica ou

elemento estratégico do socialismo, o manifesto expressa

o compromisso do socialismo com a emancipação da hu-

manidade e instauração de um humanismo revolucioná-

rio, no qual não haverá lugar para exploração do homem

pelo homem.

O conhecimento das ideias de Marx é essencial para a

formação intelectual e atuação dos profissionais das áreas

das ciências sociais e dos que militam em movimentos

sociais.

90 valercultural

Page 91: Valer Cultural 3

versidade de New Mexico Highlan-

ds, nos Estados Unidos, o encarou.

Esta é a primeira vez que Ward e

sua esposa visitam o Reino Unido,

mas fizeram questão de incluir a vi-

sita a Karl Marx no roteiro.

O professor está visivelmente

emocionado e afirma que o lugar

inspira tranquilidade e até mes-

mo pode sentir o cheiro de Marx.

A quem ele descreveu como “um

dos mais importantes pensadores

sociais de todos os tempos. E que

teve muito a dizer sobre Capitalis-

mo”, disse Ward que, antes de par-

tir, ainda recomenda um livro para

reflexão, Why Marx was right (Por

que Marx estava certo?) de Terry Ea-

gleton. O livro foi escrito depois do

começo da crise em 2008 e levan-

tou algumas críticas no Reino Unido.

De acordo com elas, o autor fez o

possível, mas não mostrou a verda-

deira importância pensamento de

Marx e porque ele estava certo.

O cemitério de Highgate

Como numa grande ironia do

destino, o lugar de descanso de um

dos maiores críticos do sistema ca-

pitalista é vizinho a grandes man-

sões e comunidades fechadas no

norte da capital inglesa.

Highgate é uma das mais exclu-

sivas e caras áreas ao norte de Lon-

dres. No século passado era apenas

um vilarejo, mas com o passar do

tempo foi adicionada ao resto da ci-

dade. É uma área muito verde, que

reteve parte de sua beleza natural,

onde as casas grandes e imponen-

tes existem em perfeita harmonia

com as árvores. O lugar todo é um

tanto quanto constrante e dormen-

te se comparado com a energia que

transcende da grande cosmopolita

Londres.

O cemitério de Highgate em si é

dos mais tradicionais da cidade, do

tempo em que os funerais tinham

todo um ritual de homens vesti-

dos em verde-escuro e de cartolas

pretas, como nos livros de antiga-

mente. As árvores crescem entre os

túmulos, assim a natureza acolhe as

lápides.

Segundo o aposentado Eric

Palker – que visita o lugar há muitos

anos semanalmente com a amiga

Joice Bell, para cuidar do túmulo dos

91valercultural

Page 92: Valer Cultural 3

• A filha de Karl Marx, Eleanor, uma

das fundadoras da Liga Socialista e

que escreveu muito sobre a ques-

tão da mulher em política e socie-

dade teve suas cinzas depositadas

no local em 1956.

• Em 1970 o memorial sofreu um

atentado a bomba. Mais uma prova

de que um homem como Karl Marx

não descansa e vive por gerações

por meio de sua obra e pensa-

mentos, inspirando todo o tipo de

reações.

• E Engels, o companheiro de obras e

lutas? Engels não foi enterrado, foi

cremado e a seu pedido teve suas

cinzas jogadas no Canal da Mancha

de um lugar chamado Beachy Head

no condado inglês de East Sussex.

Beachy Head é o mais alto dos

penhascos britânicos, com 162 me-

tros, também muito conhecido por

ser um lugar popular em suicídios.

Contudo o lugar é muito bonito, o

penhasco de encontro ao mar.

CURIOSIDADES

avós de Joice –, o cemitério mudou

muito e até mesmo partes que eram

apenas jardins tiveram que acolher

mais sepulturas, assim como cons-

truções antigas foram demolidas a

fim de criar mais espaço.

Palker se sente tão à vontade

no cemitério, conta estórias curiosas

como onde estão enterrados os pais

do cantor Rod Stewart. “Sabia que o

Rod Stewart, antes de ser famoso,

trabalhava como coveiro aqui?”. Ele

me pergunta e, de acordo com as

informações on-line, apesar da mi-

nha surpresa, é verdade.

O cantor Rod Stewart cresceu

em Highgate e teve um trabalho

temporário como coveiro naquele

cemitério.

Joice é ainda mais apaixonada

pelo lugar e, segundo ela, existem

bons livros que relatam como os fu-

nerais de antigamente eram muito

mais bonitos. “Havia a cerimônia

na igreja antiga, no lado oeste, e o

caixão vinha por uma passagem por

debaixo da terra para esse lado”,

conta a aposentada que insistiu em

não revelar a idade.

O cemitério está em funciona-

mento desde 1860. De tão antigo,

tem algumas lápides que começam

afundar com o movimento do solo

e é preciso ajuda de máquinas para

erguê-las novamente.

Em 1981, a Associação dos Ami-

gos do Cemitério de Highgate to-

mou conta da administração, é uma

associação sem fins lucrativos. Qual-

quer pessoa interessada pode fazer

parte e custa apenas £12 por ano.

De acordo com Dee Linnell,

uma aposentada que estava muito

animada com a possiblidade de se

“ O cantor Rod Stewart cresceu em Highgate e teve um trabalho temporário como coveiro naquele cemitério

Eric Palker e Joice Bell visitam o cemitério toda semana

92 valercultural

Page 93: Valer Cultural 3

tornar associada, visitar o cemitério

de Highgate é uma ótima experiên-

cia. “A experiência foi maravilhosa,

estou voltando pela segunda vez,

serei voluntária no futuro, existem

esculturas lindas como o “Sleeping

Angel” (Anjo Adormecido)”, diz ao

mostrar um postal que acabara de

comprar.

Passeio

O cemitério é dividido em duas

partes: oeste e leste. Para visitar a

parte oeste, paga-se £7 libras e é

necessário o horário certo porque

precisa-se de guia, um outro pro-

blema é que nessa parte as fotogra-

fias são limitadas a uso pessoal.

Mas Marx está no lado leste do

cemitério, onde a entrada é ape-

nas £3 libras e se pode ficar quanto

tempo quiser e tirar quantas foto-

grafias o turista desejar.

Para se chegar ao cemitério

de Highgate, usando o transporte

público, deve se usar a linha pre-

ta conhecida como Nothern Line

que corta a cidade de norte a sul, o

nome da estação é Archway. A saída

é na esquerda e aponta para uma

rua Highgate hill que na verdade é

uma ladeira. No topo da rua existem

duas igrejas e, ao atravessar a rua,

um magnífico parque.

O parque Waterlow é vizinho ao

lado leste do cemitério e de lá pode

se observar algumas das cruzes e

lápides que, aos poucos, em meio

a alegria enchem o ar de respeito e

por si só fazem com que o visitante

sinta que está no caminho certo.

Dee Linnell, aposentada

93valercultural

Page 94: Valer Cultural 3

cinema

Um filme deautor ou um autor de filmes

Akira Kurosawa é considerado um

dos maiores diretores de cinema

de todos os tempos. É dele o filme

Tagemuscha: a sombra do samurai,

o filme que assistimos com calma para sobre

ele tecer os comentários que se seguem. A

razão da escolha é ser reconhecido como um

Uma reflexão sobre o filme

Kagemuscha: a sombra do Samurai, de

Kurosawa, considerado o mais ocidental

dos diretores japoneses

Neiza Teixeira | escritora e filósofa

94 valercultural

Page 95: Valer Cultural 3

Um filme deautor ou um autor de filmes

dos mais interessantes da obra do diretor, in-

clusive, este filme marca o ponto de viragem

na obra e no ressurgimento de Kurosawa.

Especificamente, chama-se a atenção para o

caráter autoral da obra e para a linguagem

universal que estabeleceu, inclusive garantin-

do a manutenção e o conhecimento da cultu-

ra japonesa, e a relação que estabeleceu com

a linguagem cinematográfica ocidental.

Assim como é perceptível a marca, por

meio de uma linguagem musical muito par-

ticular de Philip Glass em todas as suas com-

posições, o mesmo se pode dizer de cada um

dos filmes de Kurosawa, considerado o mais

Fotos: Divulgação

95valercultural

Page 96: Valer Cultural 3

ocidental dos diretores japoneses.

Sem querer prolongar a discussão e

sem a aprofundar como se deveria,

este é um dos motivos que nos fa-

zem classificar os seus filmes como

“filmes de autor”. E, como conse-

quência, dizer que este diretor, que

contribuiu para a compreensão do

“cinema arte” ou como “obra de

arte”, como linguagem fundamen-

tada, sempre foi coerente consigo

mesmo, com a sua obra e com as

pessoas que sempre esperam um

cinema de qualidade e um cinema

revelador/desvelador.

Temas recorrentes

Kurosawa é um dos diretores ja-

poneses que teve melhor aceitação

e que influenciou o cinema ociden-

tal. Foi com ele que o Ocidente se

virou para o Japão para ver e ouvir o

que aquele país trazia de novo tan-

to para a linguagem cinematográ-

fica como para a cultura ocidental,

cansada de si e ávida de novidades.

Detentor, no seu trajeto, de prêmios

de grande envergadura, como o

“Leão de Ouro”, “Palma de Ouro” e

reconhecido com o “Oscar de Hon-

ra” pela sua influência em cineastas

do mundo inteiro e pelo bem-estar

ou mal-estar que trouxe à huma-

nidade, divertindo-a, inspirando-a,

enriquecendo-a, encantando-a, Ku-

rosawa diz, na sua obra, como nos

percebe, como nos consegue ver.

Se o Japão, nos filmes de Kuro-

sawa, dialoga consigo mesmo, re-

vivendo no cinema o seu passado,

detalhando-o, escavando-o, mais

uma vez Kagemuscha: a sombra

do samurai é uma atitude de re-

conhecimento de si mesmo e um

diálogo com o Ocidente. A estética

do filme, que traz uma temática ja-

ponesa, expõe o Ocidente na sua

linguagem, como também temas

que lhes são caros, por exemplo, a

tragédia humana, que apresenta a

crise de identidade, a incapacidade

de sermos o outro e a ambiguidade

de uma vida sem sentido: ela pode

ser o tudo como pode ser o nada.

Para enfatizar, não se pode esque-

cer Sonhos, onde van Gogh, prede-

cessor do Expressionismo, é um dos

meios de revelação. Da mesma for-

ma que van Gogh se faz presente, a

tragédia, de forte influência shakes-

peareana, é o discurso utilizado. Na

perspectiva shakespeariana, Kuro-

sawa, um homem nascido no Japão,

“ Kurosawa é detentor de prêmios como o Leão de Ouro e Palma de Ouro

96 valercultural

Page 97: Valer Cultural 3

educado no Japão, mas com o olhar

de cima, do seu país e do mundo,

via o que a todos ou à maioria não

cabe ver. Através do meu olhar,

sinto que Kurosawa trouxe o máxi-

mo possível de olhares para dizer,

simplesmente: Vejam: Este é o ho-

mem! Pensem nisso!

Kagemuscha: a sombra do samurai

A palavra “kagemuscha”, em ja-

ponês, refere-se ao “guerreiro das

sombras”, um sósia e um impostor.

A ideia deste filme chegou quando

Kurosawa, por intermédio de um li-

vro de história do Japão feudal, sou-

be da existência de Schigen Takeda

(1521-1573), um dos senhores da

guerra do Japão feudal, que tinha o

hábito de contratar sósias para con-

fundir os adversários. Esta informa-

ção levou à criação de uma história

que se passa entre os anos de 1572

e 1575, no período que antecede a

unificação do Japão. A guerra envol-

ve três clãs, em luta pela detenção

do poder. O objetivo da guerra, que

se degenerou em guerra civil, era

tomar a capital Kioto.

O líder do clã Takeda, Schigen,

é ferido gravemente por um atira-

dor do clã adversário, quando quis

ouvir o tocador de flauta do castelo

assediado, que tocava todas as noi-

tes, e que impressionava os seus

guerreiros. O tiro foi mortal, mas,

antes de morrer, ele pediu aos seus

generais que não revelassem a sua

tragédia durante três anos, o que

fez com que um sósia, um ladrão

prestes a ser executado, e que foi

salvo por seu irmão, um dos seus

sósias habituais, assumisse o seu lu-

gar. A não divulgação da sua morte

por três anos garantiria a estabilida-

de do clã por esse período. O sósia,

cujo nome ninguém nunca soube

qual era, assumiu com habilidade

e prontidão o lugar do guerreiro,

colocando uma questão presente

em Raschmon, a verdade. Somente

conheciam a verdade sobre Schi-

gen os homens mais próximos, os

demais, até mesmo seu neto, esta-

vam convencidos de que o chefe do

clã estava vivo, porém, o cavalo de

Schigen encarregou-se de destruir a

farsa, confirmada pelas concubinas.

O velho ladrão foi expulso, sob pe-

dras, do castelo. Todavia, ainda que

expulso e apedrejado, ele seguiu

com a nova identidade, que se re-

vela, principalmente, nas cenas fi-

nais do filme.

Os estandartes do exército de

Schigen trazem a insígnia do clã:

um losango formado por quatro lo-

sangos, em referência aos elemen-

tos do lema dinástico: “Veloz como

o vento, silencioso como a floresta,

feroz como o fogo e imóvel como

a montanha”; todos os adjetivos

concentram-se na figura do chefe

do clã. Kagemuscha viu o guerrei-

ro Schigen morto, quando tentava

roubar coisas e fugir. A descoberta o

deixou apavorado, mas foi conven-

cido a ficar, e o nada-ser permitiu-

-lhe ser o guerreiro morto, o que se

constitui num tema para a psicolo-

gia e para a filosofia; por isso, em

cenas paradigmáticas revela-se a

sua tragédia: ele assiste à derrocada

97valercultural

Page 98: Valer Cultural 3

do clã Takeda, devido à leviandade do filho de

Schigen; dilacera-se com a derrota, visível na

cena em que ele descobre o peito no ensejo

de mostrar a dor que o lacerava; é acossado

pelo dilaceramento que domina a todos que

nada são e que descobrem, sem panejamen-

tos, a exiguidade do tempo, a fragilidade de

cada um e do todo.

É impossível não reconhecer um filme de

Kurosawa: pela sua plasticidade, pelo jogo

estético, pelo desempenho dos atores, pelos

diálogos que instaura, pelo caráter expressio-

nista. Kurosawa, por meio dos seus filmes,

inclusive recorrendo à história, tentou com-

preender o homem, daí a presença marcante

de Shakespeare na sua obra. Conforme a sua

cinematografia, a vida humana é tragédia.

Portanto, a nossa questão é o que fazer de-

pois que sabemos disso.

Além disso, evidencia-se a nossa incapa-

cidade de vir-a-ser o outro e, pior que tudo, a

nossa perdição quando nos perdemos de nós

próprios. Ver Kagemuscha é assistir a uma

peça composta por dezesseis quadros, cuida-

dos, um a um, pelo diretor, daí a beleza do

figurino, do cenário, da composição. O filme

“ Seus filmes tentam compreender o homem, daí a presença marcante de Shakespeare na sua obra

que aqui se vê reúne o que qualquer crítico

rigoroso considera importante, e o que não

pode deixar de ver.

Os espaços são clinicamente escolhidos;

as tomadas de câmera chegam e se desfazem

como as águas da cena final rumo ao infinito/

finito, na hora certa; a lentidão com que as

cenas decorrem convida-nos a ver e a pensar.

A tragédia é narrada passo a passo até o mo-

mento derradeiro. Na cena que nos aproxima

do final, o show macabro é proporcionado

pelos cavalos agonizantes, em câmera lenta

e em vários ângulos, que se misturam com os

guerreiros mortos ou em agonia, desfazendo

qualquer distanciamento entre ambos.

Por fim, Kagemuscha, numa cena quixo-

tesca, corre por cima dos cadáveres, no único

momento em que pode guerrear, com uma

lança em punho, quando é ferido pelo adver-

sário. O vermelho do seu sangue expande-se

pelo seu corpo numa coloração que visa pro-

porcionar um efeito estético, e que nos leva

ao teatro japonês, indicando-nos que o que

vemos é cinema, é arte. É na água que se

misturam o sangue do ser-nada e o estan-

darte do clã Takeda, que Kagemuscha não

consegue apanhar, porque se encontra morto,

e porque as águas do mesmo rio, próximas

entre si, seguem em caminhos contrários, o

que mostra toda Impossibilidade. Afinal, o ho-

mem não é mais do que um. E tudo é mera

representação.

98 valercultural

Page 99: Valer Cultural 3
Page 100: Valer Cultural 3

Quixote ou as virtudesda ambiguidade

literatura

100 valercultural

Page 101: Valer Cultural 3

Numa rua de mercadores de To-

ledo, um jovem vende cartapá-

cios e velhos papéis escritos em

árabe. Um desses folhetos nar-

ra a história de uma tal Dulcineia del Toboso

(também, conhecida como Aldonça Louren-

ço), mulher que tinha uma especial habilida-

de para salgar a carne dos porcos; era a His-

tória de don Quijote de la Mancha, escrita por

historiador arábico chamado Cide Hamete Be-

nengeli. Não foi difícil achar no mercado al-

gum mouro versado em línguas que pudesse

traduzir a história ao castelhano. O trabalho,

feito em troca de passas e trigo, demandou

um mês e meio, e tinha sido encomendado

por Miguel de Cervantes Saavedra. Este epi-

sódio é narrado no capítulo 9 de El Ingenioso

Hidalgo Don Quijote de la Mancha, escrito

em 1605 por Miguel de Cervantes Saavedra.

No capítulo 6 dessa mesma obra, um pa-

dre e um barbeiro examinam a biblioteca de

Don Quijote (também conhecido como Alon-

so Quijano), em procura das obras que teriam

provocado a loucura do ingenioso hidalgo,

leitor de abstrusos romances de cavalaria.

Na biblioteca encontram as causas do desva-

rio: Amadis de Gaula, Sergas de Esplandián,

Florismarte de Hircania, El Caballero Platir,

Palmerín de Inglaterra, Don Belianís, entre

outros títulos que, por prudência e para que

não provoquem males maiores, recomendam

queimar. Encontram também outras obras,

que preferem salvar do fogo, e para as quais

reservam, porém, sólidas frases de ironia e

escárnio. Uma dessas obras é La Galatea, de

Miguel de Cervantes, más versado en des-

dichas que en versos, segundo a definição

do padre. Este, que diz ser muito amigo do

autor, afirma que “o livro tem algo de boa

invenção; propõe algo, e não conclui nada” e

finalmente recomenda guardá-lo, à espera de

uma segunda parte anunciada

pelo autor, que quiçá possa

ser recebida com alguma

misericórdia.

No capítulo 2 da se-

gunda parte, escrita às pressas por

Cervantes em 1615, um ano depois da pu-

blicação em Tarragona do Quixote apó-

crifo do suposto licenciado Alonso

de Avellaneda, Don Quixote e

Sancho Panza descobrem

por intermédio do bacharel

Carrasco que a fama das suas

vidas e aventuras já corria pelo

mundo, divulgada no romance El Ingenioso

Hidalgo don Quijote de la Mancha, escri-

to por Cide Hamete. Depois descobri-

Apreciam-se no Quixote não apenas a divertida sucessão

de aventuras, a satírica invectiva contra os livros de

cavalaria e a memorável caracterização dos personagens,

mas também toda uma série de questionamentos

relativos à arte de narrar

Alfredo Cordiviola | professor de literatura da UFPE

101valercultural

Page 102: Valer Cultural 3

102 valercultural

Page 103: Valer Cultural 3

rão também que existia um outro

romance, o de Avellaneda, que con-

tinha no prólogo palavras que eram

melhor esquecer, e incluía dados

errôneos e casos falazes.

Assim, nessa trama de ficções

superpostas, Cervantes, o autor, é

mais um personagem, Cide Ha-

mete, um sonho de Cervantes,

é o “verdadeiro” autor, e os dois

personagens principais leem suas

próprias aventuras em romances

apócrifos ou imaginários. Se o ato

da leitura postula a relação entre

um mundo que está dentro do livro,

com suas peripécias e invenções, e

outro mundo que está fora (aque-

le que espreita e ressurge quando

o livro é fechado), o Quixote nos

lembra permanentemente que en-

tre o mundo do leitor e o mundo

do livro há uma continuidade estra-

nha, perturbadora. Como no breve

relato de Júlio Cortázar, “Continuidad

de los Parques”, em que o leitor se

transforma em vítima da história

que estava lendo, Cervantes pare-

ce querer dizer que em cada livro,

como nisso que chamamos o real,

há muitos mundos, nem todos re-

ais, nem todos imaginários. Em

“Magias Parciais do Quixote”, Jorge

Luis Borges se pergunta por que é

inquietante que Dom Quixote seja

leitor do Quixote (ou Hamlet es-

pectador de Hamlet), e responde

com um argumento que poderia ter

sido subscrito por Cervantes: “tais

inversões sugerem que se os per-

sonagens de uma ficção podem ser

leitores ou espectadores, nós, seus

leitores ou espectadores, podemos

ser fictícios”.

Clássico universal

Talvez tenha sido essa inquieta-

ção um dos motivos que provoca-

ram o sucesso imediato do roman-

ce e a sua perduração na fervorosa

categoria dos clássicos universais.

O Dom Quixote pode ser lido como

uma experiência de leitura (Quixote

como leitor que substitui a realida-

de pela Literatura, ou para quem

a Literatura é a realidade), como

melancólico desengano do mundo,

como fábula sobre o ocaso do Im-

pério, como canto final do magnífico

Século de Ouro das letras espanho-

las. Pode ser visto também como o

fundador de um gênero (o romance

moderno) e como um importan-

te elemento na conformação dos

discursos de identidade hispânica.

Como Shakespeare, como Dante,

Cervantes e seu Quixote tiveram a

boa ou má sorte de ser conside-

rados fundadores de uma tradição

nacional e, ao mesmo tempo, em-

blemas de universalismo.

Leitores situados em épocas e

contextos muito diferentes soube-

ram apreciar no Quixote não ape-

nas a divertida sucessão de aven-

turas, a satírica invectiva contra os

livros de cavalaria e a memorável

caracterização dos personagens,

mas também toda uma série de

questionamentos relativos à arte

de narrar e aos modos em que a

Literatura processa e transgride os

estatutos do real. Leitores como

Sterne, Diderot e Machado

de Assis, que recuperam a

lição cervantina de privi-

legiar o sonho e as am-

biguidades da paródia

e da imaginação.

O ácido humor e a

celebração e a críti-

ca da ficção desenham

uma peculiar linhagem

que deliberadamente

une o Quixote, Tris-

tran Shandy, Jac-

“ Como Shakespeare, como Dante, Cervantes e seu Quixote tiveram a boa ou má sorte de ser considerados fundadores de uma tradição nacional

103valercultural

Page 104: Valer Cultural 3

ques, o Fatalista e Brás Cubas, em textos que

postulam suas gêneses fictícias e proclamam

o império da linguagem e do riso implacável.

No século 19, em que os romancistas de lín-

gua espanhola não conseguem se livrar dos

efeitos tantalizantes das convenções realis-

tas e naturalistas, Machado de Assis revive

e prolonga uma tradição que transforma o

romance em espaço privilegiado para ence-

nar as tensões entre ilusão e realidade, arte

e vida, verdade e ficção. De Memórias Pós-

tumas (1881) a O Alienista (1882) e Quincas

Borba (1891), essa tradição, esquecida pelas

letras latino-americanas, ressurge de maneira

excepcional no melancólico destino das per-

sonagens machadianas.

Transcedental

A fama do Quixote, porém, transcende a

leitura pontual, a invenção literária e a exege-

se apaixonada; mesmo quem nunca leu o ro-

mance é capaz de reconhecer toda uma série

de significações associadas com a errância do

Cavaleiro da Triste Figura e com o conjunto de

oposições que o une a seu escudeiro Sancho

Pança. Um adjetivo como “quixotesco”, que

surge como consequência do romance, mas

excede suas páginas, torna-se com o tempo

uma palavra comum para designar projetos

utópicos ou imaginários que interpelam e en-

tram em direto conflito com as postulações

do real. No pensamento ibero-americano, e

particularmente a partir do século 19, há toda

uma tradição que reivindica o sentido político

desse adjetivo. Influenciados pelas interpre-

tações de Miguel de Unamuno, que resgatam

o modelo do Quixote como emblema de crí-

tica e transformação social, muitos publicistas

e ideólogos espanhóis e latino-americanos

fundam revistas que desconfiam dos dogmas

e aspiram, por meio de sátira político-social,

a mudar a sociedade. Periódicos como San-

cho Panza (Madrid, 1863), Don Quijote (La

Habana, 1864), Don Quijote (México, 1919)

se multiplicam como instrumentos para dis-

cutir ideais nacionalistas e reformistas. Nessa

linha se inscrevem também duas publicações

criadas no Rio de Janeiro, Don Quijote, revista

104 valercultural

Page 105: Valer Cultural 3

ilustrada fundada por Ângelo Agos-

tini (1895-1903), e sua homônima,

dirigida por Bastos Tigre (1917-

1927), que utilizam o mito quixotes-

co para questionar as contradições e

promessas da nascente República.

Para o Quixote de Agostini, a Dul-

cineia é a pátria brasileira, tão bela

e tão forte, pela qual está disposto

a lutar contra todos os inimigos em

prol do ideal de “mais civilização,

mais progresso, mais humanidade”.

Mas sabe que no seu caminho há,

como em La Mancha, penúrias e

desilusões, sintomas de uma época

de expectativas frustradas, que dão

lugar a um hiato cada vez maior en-

tre as aspirações de transformação

e as limitações da precária ordem

republicana. Um hiato que encon-

trará sua máxima expressão em

duas grandes epopeias da tristeza:

em Lima Barreto, no penoso fim das

inúteis iniciativas do funcionário pú-

blico Policarpo Quaresma (1915), e

no José Lins do Rego de Fogo Morto

(1943), na sombra do Capitão Vito-

rino, que cavalga solitário, falando

com ninguém, pelas imediações do

engenho de Santa Fé.

Esse Quixote, que com desvaira-

da obstinação combate inimigos re-

ais e imaginários, todos impossíveis

de vencer, perdura na memória po-

pular, como lembra Câmara Cascudo

ao estudar as influências hispânicas

no Nordeste, por meio da tradição

impressa ou oral de narrativas fa-

miliares, provérbios e refrões. Como

o pícaro ibérico, que luta pela sua

sobrevivência em condições sem-

pre adversas, e o gracioso do teatro

barroco espanhol, que ironiza va-

lores e usos com o instrumento da

sua lúcida loucura, o escudeiro tos-

co e prático e o cavaleiro andante

e insensato são figuras permanen-

temente parafraseadas nos folhetos

de cordel, nos desafios dos cantado-

res e nos autos populares. São tipos

heroicos e cômicos, provenientes

desse mundo ibérico e mediterrâ-

neo que oferecem o substrato e as

mitologias que conformam o proje-

to estético de Ariano Suassuna.

Vitoriosos fracassos

O Quixote e Sancho são também

tipos melancólicos, como aparecem

nos lânguidos desenhos de Porti-

nari comentados pelos versos de

Drummond; melancólicos porque

sabem que o único recurso possível

é continuar andando, mesmo quan-

do parece não haver sentido nem

ocasião. São tipos que fracassam,

como Pierre Menárd, o inverossímil

escritor simbolista francês sonhado

por Borges, que pretendia escrever

o Quixote para criar não apenas

uma cópia, mas algo “infinitamente

mais rico”, e mais ambíguo (por-

que a ambiguidade é uma riqueza,

como ensina o próprio Cervantes).

Ou como Macedonio Fernández, o

escritor argentino que escreve um

romance que consta de infinitos

prólogos e nunca começa (Museo

de la Novela de la Eterna, 1967).

Fracassam, mas sabem fazer des-

se fracasso uma espécie de vitória

que é mais duradoura e real que as

agruras da vida.

Talvez a grande presença de

Cervantes na literatura latino-ame-

ricana esteja justamente aí, nos vi-

toriosos fracassos que se revelam

nas páginas de um Machado, um

Lima Barreto, um Borges, um Mace-

donio, entre tantos outros. Filhos de

La Mancha, segundo afirma Carlos

Fuentes em “O Milagre de Assis”,

filhos de um mundo manchado, im-

puro, sincrético, barroco, corrupto,

animados pelo desejo de manchar

sob a condição de ser, de contagiar

sob a condição de assimilar, de

que as aparências se multipliquem

a fim de multiplicar o sentido das

coisas, contra a falsa consolidação

de uma leitura única, dogmática,

do mundo”. Autores que escrevem

com a missão de dilatar os espaços

da imaginação, a nossa, individual

e coletiva imaginação que, às ve-

zes, em épocas incertas como esta

e como todas na América Latina,

parece ser a única coisa que ainda

nos resta.

“ A fama do Quixote transcende a leitura pontual, a invenção literária

105valercultural

Page 106: Valer Cultural 3

O poeta é um navegador solitário

do vasto mar do tempo e da

memória. É alguém que cons-

pira contra o esquecimento,

a negação da magia, o obscurecimento da

consciência. Não é outra a matéria utilizada

por Luiz Bacellar, em Frauta de Barro, para

elaborar seu discurso poético. A memória é

o repositório de onde recolhe as fraturas com

que compõe seu canto.

Frauta de Barro, seu livro de estreia, pu-

blicado em 1963, é um passeio pelo tempo,

um mergulho no passado, de onde recolhe a

matéria com que constrói sua poesia. Bacellar

é o arqueólogo de uma época subtraída, des-

troçada pelo destilar corrosivo dos dias, traga-

da pela voracidade do progresso (compulsório

nos trópicos).

Seu trabalho poético é o de um rapsodo

que preserva, através de seu canto, a memó-

ria de um tempo estiolado, desaparecido sob

a esteira da modernidade. O mundo de que

tenta remontar a face estilhaçada é a provín-

cia. Ao voltar-se para o passado, o poeta faz

a crítica do caráter desagregador, corrosivo do

progresso.

literatura

Tenório Telles | escritor

Uma rapsódia da memória

106 valercultural

Page 107: Valer Cultural 3

Poesia orgânica

Frauta de Barro é um livro cheio de res-

sonâncias. Um caleidoscópio de formas poé-

ticas e temas. O livro possui uma arquitetura

interior, composta basicamente de sete par-

tes. Os blocos de poemas são constituídos de

“sequências de sonetos”, “os romanceiros”,

“os noturnos”, “os escorços” e os “poemas

dedicados”.

O nome da obra já é uma evidência das

preocupações temáticas do autor. Frauta de

Barro: “Frauta”, forma primitiva de flauta. “De

Barro”, a matéria de que é feito o instrumen-

to, afirmação de seu caráter substantivo. Sua

poesia é orgânica, plasmada de temas liga-

dos ao cotidiano popular, ao folclore.

Afirmação de seu talento poético, Bacellar

trabalha igualmente com formas e temas eru-

ditos, compondo textos perpassados por uma

densa carga existencial. A recorrência a pro-

cessos de composição mais formais, a uma

dicção poética clássica terá seu momento de

afirmação com a obra Quarteto (publicada

originalmente com o nome de Quatro Movi-

mentos, em 1975). O rigor e a elaboração da

linguagem são as marcas definidoras do livro.

Outro traço marcante em sua poesia, é

o musical. No primeiro soneto do “prólogo”,

que abre Frauta de Barro, o poeta descreve

como encontrou na infância seu “frio tubo

de argila”, sua frauta de barro, em que vai

“toscamente improvisando” as “estórias que”

narra. O livro é como se fosse uma sonata,

tocada por uma rústica frauta:

Em menino achei um dia

bem no fundo de um surrão

um frio tubo de argila

e fui feliz desde então;

rude e doce melodia

quando me pus a soprá-lo

jorrou límpida e tranquila

como água por um gargalo.

E mesmo que toda a gente

fique rindo, duvidando

destas estórias que narro,

não me importo: vou contente

toscamente improvisando

na minha frauta de barro.

É o tema recomeçado

na minha vária canção. Bacellar (1928-2012): a memória de um tempo estiolado

Foto: Ham

ilton Salgado

107valercultural

Page 108: Valer Cultural 3

O texto foi composto num dis-

curso poético fluido, perpassado

pela musicalidade. Vertido numa

linguagem vigorosa, límpida. Sim-

ples, despida de excessos formais.

Em Bacellar, a formalidade é antes

de tudo uma sutileza. Quanto ao

plano de estruturação dos versos, é

evidente a opção do autor pela re-

dondilha maior.

A leitura do primeiro terceto do

soneto de abertura é uma revelação

das preocupações temáticas de Ba-

cellar. A matéria de seu canto são

“estórias” que improvisará em sua

tosca frauta de barro.

Para retratar estas “estórias”,

nos temas de viés popular e fol-

clórico, o poeta utiliza-se de versos

de sete sílabas, usados nas canções

populares, remontando às cantigas

medievais portuguesas.

A despeito de seu caráter popu-

lar, a redondilha maior não aparece

apenas em criações populares e

canções. Camões fez uso dessa for-

ma de verso nas suas “redondilhas”.

A análise da estruturação das

estrofes do soneto revela uma par-

ticularidade dessa forma poética.

Compõe-se de cinco estrofes: dois

quartetos, dois tercetos e um dístico.

Bacellar rompe, nos três textos que

compõem o prólogo, com a forma

petrarquiana e mais tradicional do

soneto, de quatro estrofes. Acres-

centa mais dois versos, formando

assim uma quinta estrofe, a que se

chama esteticamente de estrambo-

te, ou cauda.

O soneto que apresenta essa es-

truturação estrófica, chama-se “so-

neto de estrambote”, ou de “cau-

da”. O “estrambote” pode ter de

um a três versos. Nos três sonetos

que compõem “variações sobre um

prólogo”, as estrofes acrescidas são

de dois versos, como pode ser ob-

servado no soneto de entrada: É o

tema recomeçado / na minha vária

canção.

Crítica ao tempo fugaz

O caráter agônico, elegíaco da

poesia de Luiz Bacellar talvez pos-

sa ser explicado pelo fato de seu

imaginário infantil, sua sensibili-

dade terem se sedimentado sob a

atmosfera perene de um mundo

provinciano, em que o tempo era

uma dimensão palpável da vida,

percebia-se o seu trotar silencioso.

Bacellar não é poeta desse

equívoco em que se transformou a

modernidade. Ao voltar-se para a

infância, para as reminiscências, faz

a crítica desse nosso tempo fugaz,

dessa conspiração contra a memó-

ria. O terceiro soneto da série “so-

bre um prólogo” é uma evidência

dessas preocupações do autor:

Nos longes da infância paro;

há uma inscrição sobre o muro:

Frauta clara, arroio escuro,

frauta escura, arroio claro.

E esse cavalo capenga?

E esse espelho espedaçado?

E a cabra? E o velho soldado?

E essa casa solarenga?

Tudo volta do monturo

da memória em rebuliço.

Mas tudo volta tão puro!...

E, mais puro que tudo isso,

essa anárquica inscrição

feita no muro a carvão.

São temas recomeçados

na minha vária canção.

Observe-se a atmosfera de

quase imobilidade que perpassa o

texto, os elementos temáticos do

poema: “cavalo capenga”, “espelho

108 valercultural

Page 109: Valer Cultural 3

espedaçado”, “cabra”, “o velho sol-

dado”, “casa solarenga”, clara evi-

dência de um mundo provinciano,

em tudo diferente do que surgiu

com a vida moderna: veloz, baru-

lhento, de edifícios envidraçados,

carros, congestionamentos, em que

as distâncias se encurtaram, mas o

seres humanos estão mais distan-

ciados.

A busca narcísica

Bacellar, esse Narciso que busca

seu rosto no passado, é um poeta

que se mira na superfície líquida

da memória. Num esforço de re-

miniscência recupera os objetos,

as formas das coisas, as fachadas

das casas, as imagens que guarda

das pessoas, da cidade, suas vielas,

seus becos, os sons, as estórias que

povoaram sua infância.

Essas preocupações temáticas

são recorrentes em vários textos de

Frauta de Barro, como na série dos

três sonetos “provincianos”. A in-

fância é uma constante em seu dis-

curso, como se observa nos versos

finais do poema “Porta para o quin-

tal”: ...nos varais / a roupa brinca

de navio de velas / minha perdida

infância reinventando...

No soneto “Finis gentis meae”,

persistem as preocupações com o

passado, a consciência da voracida-

de do tempo, da brevidade da exis-

tência, sendo a memória o leito em

que os destroços, as lembranças são

depositadas:

Súbito chega a Tarde pressentida

a roçagar musgosos, carcomidos

muros; com a fímbria azul de

[seus vestidos

restaurando-os na grave

[despedida.

(...)

Os textos da série de “Sonetos

provincianos”: “Porta para o quintal”,

“Lavadeiras” e “Finis gentis meae”,

quanto ao aspecto formal, possuem

uma estrutura petrarquiana.

Quanto à metrificação, a estrutu-

ra não é fixa, os três sonetos pos-

suem versos com 10 sílabas poéti-

cas, coincidência de sons fortes na

sexta e décima sílabas, sendo, por-

tanto, decassílabos heroicos.

A leitura dos “Três noturnos mu-

nicipais”: “da Praça da Saudade”,

“do bairro dos Tocos”, “da rampa do

mercado”, atestam a permanência

de um discurso poético fundado na

subjetividade, plasmado por forte

carga existencial. A tecitura poética

“do noturno da rampa do mercado”

é enfronhada por uma atmosfera de

melancolia, nostálgica, como se de-

preende da leitura dos dois primei-

ros quartetos:

As luzes das barcaças sonham

[ventos

quando em águas propícias e

[serenas

no cansado ancorar brilham

[pequenas

em alvos lucilares cismarentos...

O rio e a noite expandem seus

[lamentos

Os mastros tristes são candeias

[plenas

de oleosas saudades e de penas

sirgando macilentos barlaventos...

O poeta descreve as “barcaças”

ancoradas à noite na “rampa do

mercado”, suas luzes tênues, so-

nhando “ventos”. O autor cria um

cenário triste, elegíaco, dominado

pelo rio e pelas trevas como pano

de fundo.

O noturno é uma “composição

musical de caráter melancólico, sim-

ples”. A utilização poética de formas

musicais por Bacellar evidencia a

importância da música em sua obra.

*Frauta de Barro possui uma es-

trutura e um discurso poético musi-

cal. Bacellar cumpre o desafio lan-

çado pelo poeta norte-americano

Ezra Pound: reconciliar a poesia com

a música. Como na antiga Grécia,

em que as composições eram feitas

para ser acompanhadas ao som da

lira. Compôs uma rapsódia da me-

mória, um cantar elegíaco para um

tempo desmoronado.

Como os velhos rapsodos gre-

gos, Luiz Bacellar tece seu cantar

nostálgico solado pelo som agres-

te de sua velha frauta de barro. É

preciso salvar o passado para não

perdermos o futuro. Afinal, é difícil

enfrentar o desconhecido, o impal-

pável sem que se conheça as velhas

rotas do tempo. A travessia se cum-

pre. E a velha frauta, bojuda de tan-

tos cantares, fez-se versos, poesia.

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