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cultural Em 1890, o caixeiro-viajante português José Francisco Monteiro fundou Humaitá (AM), cuja história se destacou entre as demais cidades da Amazônia, em especial pela construção de uma biblioteca no conjunto de prédios reservados à prefeitura, à câmara, à igreja e à delegacia de polícia. O acesso à leitura ajudou a formar gerações seguidas de profissionais liberais, políticos e intelectuais. 14-23 uma biblioteca na floresta Entrevistas | Reportagens | Livros | Cinema | Gastronomia | Fotografia | Música | Artes plásticas Oriente Médio além da visão ocidental 24-31 Drummond, o poeta sempre necessário 62-69 Tite arma time com escritores 50-53 Ano I n.º 2 agosto/2012 R$ 9,90 www.valercultural.com.br

Valer Cultural n2

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Revista de Cultura da Editora Valer

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Page 1: Valer Cultural n2

cultural

Em 1890, o caixeiro-viajante português José Francisco Monteiro fundou Humaitá (AM), cuja história se destacou entre as demais cidades da Amazônia, em especial pela construção de uma biblioteca no conjunto de prédios reservados à prefeitura,

à câmara, à igreja e à delegacia de polícia. O acesso à leitura ajudou a formar gerações seguidas de profissionais liberais, políticos e intelectuais. 14-23

uma biblioteca na floresta

Entrevistas | Reportagens | Livros | Cinema | Gastronomia | Fotografia | Música | Artes plásticas

Oriente Médio alémda visão ocidental24-31

Drummond, o poeta sempre necessário62-69

Tite arma time com escritores50-53

Ano I n.º 2

agosto/2012

R$ 9,90

www.valercultural.com.br

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Page 4: Valer Cultural n2

cultural

Diretor ExecutivoIsaac Maciel

Conselho EditorialMárcio SouzaRenan Freitas PintoIvânia VieiraTenório Telles

Diretor de redaçãoWilson Nogueira MTB/AM 365

Editora executiva Suelen ReisMTB/AM 235

Assistente de Edição Maria do Rosário R. NogueiraMTB/AM 148

INVCInstituto Nacional Valer de Cultura

Av. Joaquim Nabuco, 1.605 – CentroCEP 69020-03

Manaus-AMTel. 92.3234-9830

www.valercultural.com.br

[email protected]

editorial

Havia alguns anos que persistíamos no propósito de concretizar

este projeto. Não seriam as dificuldades que, por sinal não ces-

saram, a adiá-lo constantemente. Pesou, sobremaneira, a neces-

sidade de amadurecimento da primeira ideia. Valeu esperar. Os

dias longos de inquietação geraram acúmulo de experiência e aprimoramento

para realização de uma REVISTA que almeja se consolidar no mercado por

meio da qualidade editorial e gráfica. Unem-se, nas suas páginas, jornalismo

de profundidade, ético e coerente, e design arrojado e arejado. Trata-se de

publicação feita em Manaus, porém ousada na proposta de ter o mundo como

conteúdo. Jornalistas, colaboradores das mais diversas áreas do conhecimento,

designers e artistas gráficos estão imbuídos de um só propósito: traduzir a

realidade que se apresenta ou que se esconde na mídia ligeira do cotidiano.

A cultura, na sua mais ampla compreensão humana, é a pauta permanente

desta VALER CULTURAL. Assim, deita-se em perspectiva o desafio da imersão

na sociodiversidade e na biodiversidade como fenômenos culturais, cuja di-

mensão extrapola o entendimento ortodoxo da separação entre o local e o

global. Sabe-se hoje, mais do que ontem, que o mundo sobrevive em ecos-

sistemas – entre os quais o da comunicação – interdependentes. Uma solução

local, por exemplo, pode ser uma solução global. Não há fronteira que trave

a convivência humana em larga escala, ainda que sujeita a controvérsias.

Esta publicação quer contribuir com o aprimoramento da convivência humana

por meio do estímulo ao conhecimento. Os que se perfilam nesse propósito

certamente se sentirão satisfeitos em ler a VALER CULTURAL.

Isaac Maciel Diretor executivo

Design e Direção de Arte Heitor Costa

Ilustração da capa Bruno Raphael

Revisão Núcleo de Editoração Valer

Assinatura e publicidadeDarliane Michele – [email protected]

Colaboradores desta edição:Ana Cláudia Leocádio, Daniela de Tofol, Marcos Frederico Krüger, Ivânia Vieira, Leandro Curi, Liège Albuquerque, Márcia Costa Rosa, Marcus Stoyanovith, Maurília Gomes, Michelle Portela,Neiza Teixeira e Tenório Telles.

Page 5: Valer Cultural n2

Viagem aos sertões de bárbaros

Oriente a céu aberto

Tite, o conselheiro literário

6 24

50

cultural

14 Uma biblioteca no meio da selva32 Boi-bumbá espetacular38 Editais no centro do debate58 A antiepopeia dos Muras

Temaki, um prato multicultural

70

74 Quando as àguas [sobem]78 UEA afina Sinfônica82 Agenda cheia de eventos literários84 Reflexões sobre a arte de Maria Bonomi

Do romance às telas

O anjo cético e o sentimento do mundo

42

62

Legítimo dizer do caboclo

54

Page 6: Valer Cultural n2

entrevista | Auxiliomar Ugarte

Viagem aossertões de bárbaros

Autor de Sertões de bárbaros, Auxiliomar

Ugarte revelou, em entrevista à VALER

CULTURAL, que decidiu pesquisar os cronis-

tas ibéricos dos séculos 16 e 17 para pôr

mais luz na história da Amazônia desse período. A obra,

de 601 páginas, tem origem na tese de Doutorado em

História Social da Universidade de São Paulo (USP) de-

fendida em 2004. “O livro permanece fiel à maior parte

dos dados e argumentos da tese”, explica Ugarte. O

autor disse que, desde a graduação, esteve instigado

por uma afirmação do professor e historiador José Riba-

mar Bessa Freire: a de que os cronistas ibéricos retrata-

ram uma Amazônia referenciada nos valores europeus

e, por isso, não poderiam compreendê-la. Com rigor e

cuidado, Ugarte mergulha, criticamente, no estudo das

versões dos cronistas para fazer emergir novas possi-

bilidades de se compreender as amazônias do passa-

do e do presente. Para ele, o melhor entendimento da

história, cujo desdobramento se prolonga no tempo e

espaço, poderia reduzir o desconhecimento que se tem

da Amazônia na própria região, no Brasil e no exterior.

Mas, ainda segundo Ugarte, a produção bibliográfica

não alcança a dimensão do esclarecimento. “E o pior:

o nosso próprio sistema de ensino não tem minorado

essa ignorância”. Confira trechos da entrevista a Wilson

Nogueira, Neiza Teixeira e Suelen Reis:

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6 valercultural

Page 7: Valer Cultural n2

7valercultural

Page 8: Valer Cultural n2

Wilson Nogueira – Como o senhor

aplica o conceito de bárbaro no seu

livro, já que há também referência

a novos bárbaros? Se existem os

novos bárbaros, é porque existiram

bárbaros anteriores. Gostaria que o

senhor explicasse as visões a respei-

to desse conceito e das barbáries.

Auxiliomar Ugarte – Sim, antes

de tudo, o termo/conceito bárbaro

nasce no ambiente helênico, passa

pelo mundo romano e finalmente é

adotado pelo cristianismo. Do não

falante, do grego inicialmente. De-

pois do não falante do grego e do

latim. Com o cristianismo veio uma

nova conotação: a de povos que não

adotavam o próprio cristianismo. E

essa noção atravessou os séculos

medievais e ganhou uma nova for-

ça com a expansão dos europeus

sobre as outras partes do mundo. E

foi um termo bastante utilizado não

apenas por esses cronistas [estuda-

dos em Sertões de bárbaros] que

trabalhei, mas por todos aqueles

que entraram em contato com po-

vos diferentes. Na época não existia

o conceito de barbárie, que nasceu

no século 19 e que até hoje está em

vigência. Derivado de bárbaro em

latim veio de barbarismo, ou seja,

aquele que tinha um modo de vida

incivil, não policiado de acordo com

as normas da herança greco-roma-

na e judaico-cristã. Mesmo os islâ-

micos mais civilizados eram bárba-

ros, na ótica do cristianismo. Tanto é

que eles recebiam até um termo a

mais: o de infiéis. Interessante que

– só para reforçar o que eu estou

falando – num trecho da dedicató-

ria que o historiador Francisco Lopes

de Roma fez ao Imperador Carlos

V, ele disse o seguinte: “Terminada

a conquista dos mouros, começou

a conquista dos índios. Para que

sempre os espanhóis combatessem

os infiéis”. Essa expressão guarda

muita relação com o que aconteceu

também na Amazônia como em

outras regiões do continente ame-

ricano. Os nossos cronistas também

partilhavam a ideia da conquista

espiritual.

WN – Para fecharmos as visões

desse conceito, qual é o desdobra-

mento da ideia de barbárie para a

Amazônia contemporânea?

AU – Bem, como eu disse, o concei-

to de barbárie nasceu no século 19,

mas ele recebeu contribuições dife-

rentes também ao longo do próprio

século 20. Hoje nós podemos dizer

que existe uma barbárie dentro da

própria civilização, que é própria

da civilização. Quando nos repor-

tamos à devastação da floresta, à

poluição dos nossos rios e a outras

tantas formas de degradação do ser

humano e do ambiente, aplicamos

esse termo sem muito pensar nas

suas origens, porque é o que está

dentro da nossa civilização atual.

Diz respeito à barbárie promovida

pela própria civilização que mas-

sacra minorias, como os povos in-

dígenas. Hoje há toda uma política

em discurso oficial de aceitação, de

incorporação de alguns elementos

dos próprios valores dos antes vis-

tos como bárbaros. Esse discurso

enfoca os índios como os ecologica-

mente corretos. Aconteceu a idiliza-

ção. É uma nova idilização dos po-

vos indígenas. Assim como ocorreu

lá no próprio século 16, com padre

Las Casas, Montaigne etc.

Neiza Teixeira – O senhor acre-

dita então que, no caso da Ama-

zônia, estamos vivendo o retorno

a Rosseau, com a teoria do bom

selvagem?

AU – Sim, sim. Sem se falar nesses

nomes. Mas acontece, sim, uma idi-

lização dos povos indígenas – nem

vou mais falar de povos, porque

hoje estão novas formações socio-

culturais. Nesse discurso não se leva

em conta uma série de problemas

que ocorrem com esses grupos.

“ Os índios da Amazônia faziam parte desse mundo do barbarismo, das idilidades, e eles eram novos bárbaros”

WN – Daí então a ideia de novos

bárbaros?

AU – Justamente. Os índios da Ama-

zônia faziam parte desse mundo do

barbarismo, das idilidades, e eles

eram novos bárbaros diante desse

conhecimento que ia se travando

aos poucos. Agora, por que Sertões

de bárbaros? O título do livro nas-

ceu de uma expressão do cronista

Maurício de Heriarte. Sertão é um

termo lusitano para terra íngreme,

para terra afastada do litoral, ou

seja, terra não percorrida por civi-

lizados. Então ele diz o seguinte:

“Nestes sertões povoados de bár-

baros”. Daí nasceu o título da obra;

em resumo, o que seria o mundo

natural amazônico, e o que seriam

os habitantes dos antigos dessa re-

gião aos olhos destes conquistado-

res-cronistas.

8 valercultural

Page 9: Valer Cultural n2

NT – Vimos nos cronistas, na própria

carta de Caminha, quando há uma

reminiscência de um Éden. É a mes-

ma perspectiva dos viajantes que

buscavam esse paraíso perdido que

se deslocava por lugares distintos, no

século 16. Havia, nesse caso, a teoria

que esse paraíso estaria situado na

América...

AU – Veja só: a visão paradisíaca

de alguns sábios europeus é uma

coisa. Nem sempre aqueles que

estiveram numa região tiveram

essa perspectiva. Se Carvajal pro-

jetou colher trigo em determinada

área da Amazônia, isso não signi-

fica uma perspectiva paradisíaca.

É um utilitarismo, não é? Eu digo

claramente que, de forma explícita,

quem [replica] essa imagem para-

disíaca da Amazônia e um cronis-

ta que nunca esteve aqui, o padre

Alonso de Rojas.

Suelen Reis – Mas então a visão

dos cronistas foi mais infernal?

AU – Não. Ela, digamos, é uma visão

paradisíaca e infernal. Ela se equi-

libra. Por quê? Parte da vivência.

Se num momento ele experimenta

uma coisa ruim, como uma praga

de mosquitos, num outro momento

ele tem um descanso para os olhos,

um conforto. Se ele enxerga um car-

valhal em um ambiente que nunca

existiu carvalho, é porque aquela

formação florestal deu a ele um

alento, inclusive até de esperança.

WN – Dá a ele a ideia de que não

estava num mundo não tão diferen-

te do que imaginava...

AU – Não. Estava tão diferente, mas,

na similitude, ele achou um confor-

to naquilo. Num ambiente de hos-

tilidade etc, uma simples árvore,

um conjunto de árvores trouxe-lhe

alento, trouxe-lhe conforto.

NT – Essa questão do paraíso, da

procura do paraíso perdido me

chama muito atenção. Sempre ou-

vimos falar que o objetivo do Co-

lombo tornou-se mais utilitarista.

Todavia, quando lemos seus diários,

vimos ali que, na verdade, o nave-

gador buscava de fato o paraíso.

Vimos que a busca do ouro, aquela

ansiedade por encontrar o ouro, na

verdade foi um argumento que ele

utilizou para manter a paciência, o

incentivo e o investimento dos reis

de Espanha.

AU – Também. É uma dimensão.

Mas não podemos reduzir, digamos

assim, partindo de Colombo. Não

podemos reduzir o comportamento

e a visão desses navegadores e con-

quistadores, posteriormente, a um

9valercultural

Page 10: Valer Cultural n2

aspecto unicamente. Não. Colombo

queria ouro para financiar uma nova

cruzada. Uma ideia que os reis ca-

tólicos haviam abandonado há um

bom tempo. Ele queria reconquistar

Jerusalém. Veja só! Então o ouro

que se busca não é o ouro para ele

enriquecer pessoalmente. Ele que-

ria o ouro para enriquecer, mas não

era só isso. E o paraíso, essa ideia

do paraíso, nasce de uma expecta-

tiva que vai ocorrendo na medida

em que ele percorre aquelas ilhas.

Colombo só tocou o continente, de

fato, na última viagem, quase se

perdeu lá na boca do Orenoco. E é

claro que a conquista não se deu as-

sim, a passos rápidos como se quei-

ra imaginar num esquema. Tudo foi

muito lento, muito trabalhoso. Ago-

ra, alimentado por essa visão do

enriquecimento, da honra – isso era

um comportamento ibérico – e algo

que hoje nos parece até hipócrita,

que era buscar a glória da igreja, a

glória de Deus. Levar a palavra de

Deus a esses povos incultos.

WN – Só para pegar essa carona da

conquista num processo lento. No

livro, o senhor se refere ao tempo

da conquista dos impérios astecas

(México) e incas (Andes) como re-

lativamente curto em relação ao

despendido na Amazônia. Por quê

da Amazônia demorou tanto?

AU – O desconhecimento. Até 1513,

não se sabia do alargamento da

América do Sul. Por quê? Vasco

Núñez de Balboa atravessou o que é

hoje o Panamá em seis dias. Então,

ninguém imaginava que, no Sul do

Panamá, a América do Sul fazia isso

[o autor usa os braços para indicar

a abertura, alargamento]. Não se

sabia de fato as dimensões geográ-

ficas da América do Sul. Outra coisa:

a Confederação Asteca foi derrotada,

no que é hoje o México, porque lá

havia unidades políticas e culturais,

guardadas as proporções, muito pró-

ximas ao nível político europeu, das

centralizações, dos grandes senho-

rios; e as alianças levaram a vitória

não apenas dos espanhóis sobre a

Confederação Asteca. Mas levaram

a vitória de quem? Dos povos aste-

cas totonacas, que se tornaram tão

senhores da nova Espanha quanto

os espanhóis. Ou seja, uma nova eli-

te indígena emergiu com a conquis-

ta da Confederação Asteca.

NT – Algo que foi tentado no Brasil,

mas que não deu certo.

AU – Não deu certo em razão das diferenças fantásticas. Como acon-

teceu com muitas linhagens in-

caicas que estavam excluídas do

poder e que, com a chegada dos

espanhóis, emergiram. Então, não

devemos ver única e exclusivamen-

te uma conquista europeia. Um rol

de alianças, interesses, levou esses

povos – ou linhagens ou grupos – a

se aliarem a esses invasores, por-

que sem essa aliança seria impos-

sível um punhadinho de europeus

conquistar um império.

WN – Voltando aos cronistas da

Amazônia. O padre João Daniel su-

gere que compreendia a Amazônia

de modo mais próximo do que ela

seria realmente. Ele chega a reco-

mendar aos europeus, por exem-

plo, que suas roupas não seriam

necessárias na Amazônia em razão

do clima.

AU – Agora, por que ele se expres-

sou desse jeito? A vivência, a expe-

riência. Ele viveu aqui muito tempo.

Tanto é que ele fala de pragas. Ele

não idealiza essa Amazônia. Ele fala

das potencialidades, mas ele não

diz que é paraíso, de modo algum.

WN – Diferentemente de quem es-

teve só de passagem.

AU – E outra: é uma perspectiva de

memória. O homem do porte dele,

um intelectual, numa prisão, se

lembrando do que ele passou aqui.

Aquele gigantesco escrito hoje, pu-

blicado em dois volumes, nasceu

10 valercultural

Page 11: Valer Cultural n2

na prisão. Falar que João Daniel

já tinha projeto para a Amazônia,

isso é bobagem. O projeto era do

governo português, que faliu. Ele

tinha ideias, sugestões a dar, caso

alguém desse os ouvidos a ele.

Então, João Daniel é este homem

que parte da experiência, sem es-

quecer o quadro conceitual, que é o

lógico filosófico e filológico, suporte

necessário para pensar a realidade

na qual viveu. Quando ele diz que,

para impor respeito aos indígenas,

havia necessidade de surrá-los, é si-

nal de que essa era a vivência dos

jesuítas nos aldeamentos. Quando

ele diz assim: “Pai, quando os índios

estiverem bebendo, não se meta,

porque você corre o risco de morte”.

Agora, tudo o que ele escreveu só

fomos conhecer no século 19, por-

que o escrito dele permaneceu letra

morta durante muito tempo.

NT – Esse comportamento europeu

não era singular. A Europa também

agia assim. A surra, o castigo fazia

parte da vivência deles, da educa-

ção europeia.

AU – Agora, aqui era mais acentua-

do porque não havia pecado.

NT – Na Europa, se tens uma boa

formação, conheces os filmes Aguir-

re, a cólera dos deuses, e Fitzcar-

raldo, com Klaus Kinski. Aliás, Klaus

Kinski ficou famoso em razão desses

filmes. O que o senhor pensa dessa

forma de difusão da Amazônia, por-

que nesses filmes mostra-se o pro-

cesso de construção ou de invenção

da Amazônia para o europeu. Todo

o europeu bem informado conhece

esses filmes.

AU – Vou falar mais do primeiro,

porque o segundo não assisti. Mas

o outro já assisti muitas vezes, já fiz

análises. Numa perspectiva cinema-

tográfica mesmo, é fantástico; é um

filme surreal. Agora, se ele preten-

de traduzir uma realidade histórica,

porque é um filme lento, tem um

grau de sisudez forte, passa ideias

equivocadíssimas sobre a Amazô-

nia. Primeiro, mistura personagens

de diferentes momentos que nunca

tiveram contato. Mistura situações

que nunca ocorreram aqui na re-

gião, pelo que sabemos. Por exem-

plo, se vocês bem prestarem aten-

ção no filme, o rio Amazonas co-

meça barrento e termina num lago

de águas pretas. A última parte do

filme (Aguirre, a cólera dos deuses)

mostra Lope de Aguirre sozinho,

com aquela macacada toda, num

rio de água preta ou num lago de

água preta. Onde é que o rio Ama-

zonas tem um lago de água preta,

se é um rio corrente? Se vocês bem

prestarem atenção, as balsas em

que eles (os personagens do filme)

estão descendo está cheia de coco.

Se vocês bem prestarem atenção,

lá o personagem Fernando de Guz-

man levanta chupando um cítrico,

que não é laranja, mas parece uma

cidra qualquer. Então são aspectos

da fotografia do filme que pecam

e passam uma ideia errada para

quem não conhece essa realidade.

Coloca lá o Frei Gaspar de Carvajal

numa expedição na qual ele nunca

esteve. Coloca o Pizarro. Nessa épo-

ca, o Pizarro já estava morto.

WN – De outro lado, o que ficou co-

nhecido, no geral, são versões de

mão única porque a comunicação

“ Vejo que a realidade amazônica é ampla, hipercomplexa (...). A produção bibliográfica não alcança a dimensão de esclarecer”

11valercultural

Page 12: Valer Cultural n2

entre o conquistador/invasor e os

autóctones era praticamente impos-

sível, no primeiro momento.

AU – Na Península de Yucatan, Frei

Diego Duran mostrou que não ha-

via essa comunicação. Os índios não

entendiam o que os espanhóis fala-

vam e eles da mesma forma. Os ín-

dios apontavam lugares, mas como

compreender? Na realidade houve

monólogos e não diálogos. Eles não

se compreendiam.

NT – Fica aquela imagem do índio

apontando para o colar de ouro de

Cabral e eles interpretando que,

para aquele lado, existia ouro.

WN – O que fica desse contato, que

dura até agora, para a reflexão con-

temporânea. Qual a compreensão

da Amazônia hoje? Compreensão

de passado, presente e futuro...

AU – Vejo que a realidade amazôni-

ca é ampla, hipercomplexa (não é só

no Brasil, é preciso acabar com essa

ideia). Vejo que continua uma igno-

rância sobre a nossa região não só

pelas pessoas de fora, mas também

interna. A produção bibliográfica não

alcança a dimensão de esclarecer. E

pior: o nosso sistema de ensino não

tem minorado essa ignorância. Vou

dar exemplos concretos: Quantos de

nossos jovens conhecem Iranduba,

Manacapuru, Rio Preto da Eva, Presi-

dente Figueiredo? Muitos conhecem

Parintins, a festa do boi-bumbá. Mas

nem sequer prestam atenção no rio

que os leva até lá (se é que eles vão

de barco). É uma ignorância gigan-

tesca, tão grande como a própria

Amazônia.

“ Na realidade houve monólogos e não diálogos. Índios e espanhóis não se compreendiam”

12 valercultural

Page 13: Valer Cultural n2

continua dominante. O Brasil se re-

duz ao Centro-Sul. Há essa coloni-

zação interna. Foi minorado com a

regionalização, mas hoje tem uma

pressão para esse conhecimento

vindo do Centro-Sul. Outro proble-

ma seríssimo foi a retirada da dis-

ciplina Fundamentos da História do

Amazonas da grade curricular. Nós,

os historiadores – só para citar, além

de mim, a professora Etelvina Braga,

entre outros – conclamamos pela

volta da disciplina, mas esse apelo

não foi atendido em nome de um

conhecimento do Brasil, que é a his-

tória do Centro–Sul e, quando muito,

do Nordeste açucareiro. A Amazônia

é centro de preocupação, mais nun-

ca é centro de decisão. Quem ocupa

o poder de fato? Não posso dizer

que o Alfredo Nascimento [Senador

do PR-AM e ex-ministro dos Trans-

portes] foi uma representatividade.

Ele não representou nada, não fez

nada para a região. Outro problema

é que, apesar de toda a veiculação,

temos uma mídia que não trata da

ciência. Biólogos, historiadores, filó-

sofos são vistos como pessoas de

outro mundo...

WN – A História tem hoje estudos

arqueológicos que estão se aprimo-

rando. Qual a contribuição para a

História? Estão se fazendo revisões?

AU – A Arqueologia tem feito des-

cobertas, tem conhecimento amplo

do período anterior à descoberta.

Nomes como Eduardo Neves e He-

lena Lima estão se destacando. E a

História recebe de bom grado esta

contribuição das outras ciências.

Por exemplo, para fazer esse livro,

aprendi muita coisa sobre mosqui-

tos, de botânica, zoologia. Tudo isso

para compreender as representa-

ções dos cronistas. Por que eles cha-

mavam de pavão o mutum? Qual

era a semelhança? A história, com

sua problemática, filtra os conheci-

mentos e dá sua visão.

NT – Então, o senhor não reconhe-

ce trabalhos significativos sobre a

Amazônia?

AU – Com certeza, reconheço. As

produções científicas e literárias são

grandes, mas não alcançam um pú-

blico leitor.

NT – Mas isso não está ligado ao

planejamento que começa lá atrás

(relação com o Velho Mundo). Já

está na história do Brasil.

AU – O ensino não se reduz ao en-

sino universitário. O nosso ensino é

falho. Para piorar, ainda tem a im-

posição do Enem. Todas as questões

são elaboradas pelo Centro-Sul que

13valercultural

Page 14: Valer Cultural n2

capa

Uma biblioteca no meio da selva

14 valercultural

Page 15: Valer Cultural n2

A frenética corrida pelo látex das serin-

gueiras da floresta do Amazonas, entre

1890 e 1912, gerou suor, sangue, lágri-

mas e fortunas. Antes habitada por indí-

genas, a selva sentiu o ritmo de ocupação do seu solo

por homens brancos. A cada espaço dominado de terra

e água, consolidava-se a cultura colonizadora e explo-

ratória em detrimento da cultura ecologizada e socia-

lizada. E, como por ironia da história, já no período de

catequese dos sobreviventes, ergue-se um templo que

Uma biblioteca no meio da selva

Em 1890, um caixeiro-viajante português construiu um templo de

livros no lugarejo que deu origem a Humaitá, de onde saíram quatro

governadores, profissionais e intelectuais

Marcus Stoyanovith | jornalista enviado a Humaitá

Humaitá

15valercultural

Page 16: Valer Cultural n2

guardaria essa e outras histórias

mil, ou mesmo qualquer uma que

suas estantes pudessem alcançar:

uma biblioteca. Esse fato aconteceu

na Vila das Freguesias de Humaitá,

onde, anos depois, a própria biblio-

teca seria uma sobrevivente.

A ideia para a construção da

biblioteca, o templo do saber e

do conhecimento, como definiam

os mais ilustres moradores da an-

tiga vila, não surgiu da mente de

nenhum intelectual ou aristocrata.

O empreendimento ergueu-se da

vontade de um ex-caixeiro-viajan-

te, semialfabetizado, que depois

de chegar ao Brasil, ainda menino,

sem eira nem beira, se transformou

num rico comerciante. Trata-se do

português José Francisco Monteiro,

que em 1873 deixou Belém-PA para

se instalar, definitivamente, no sítio

do Pasto Grande, de onde prospe-

rou mais ainda e fundou Humaitá,

construindo, entre outras obras, a

capela e a biblioteca da cidade, que

já fora considerada a quarta mais

importante do Brasil. A história é

contada pelo humaitaense Almino

Affonso, neto de Monteiro, em seu

livro Comendador Monteiro: tronco

e ramagens.

Os habitantes do Cayari

Bem antes da entrada do ho-

mem branco na exploração das ri-

quezas da selva, na região de Hu-

maitá, já moravam nela os Torá, os

Pamá, os Arara, os Mura e os Pa-

rintintin – esses últimos habitavam

as margens do Cayari, rio Grande,

para os espanhóis, ou rio Madei-

ra, como é conhecido atualmen-

te. Num trecho do seu curso de

mais de cinco mil quilômetros,

entre os afluentes Ji-Paraná e

Aripuanã, essas populações

transitavam livremente. Rela-

tos colhidos pelo então padre Vitor

Hugo, em sua obra Os Desbrava-

dores, dão conta de que, desta-

cadamente, os Parintintin eram

responsáveis por uma organizada

e extensa lavoura de batata-doce,

macaxeira e banana; plantavam ár-

vores frutíferas e ervas medicinais;

secavam o peixe para armazenar

ou trocar com outras aldeias; cons-

truíam cestos, abanos, arcos e fle-

chas, canoas e flautas para dançar,

cantar e guerrear.

Ainda nos relatos obtidos por Vi-

tor Hugo, que abandonou a batina

para casar-se com uma freira, no

conflito dos rifles contra os arcos e

as flechas, o resultado foi a quase

extinção de todas as etnias. Dos

quase mil índios em conflito conse-

guiram fugir e sobreviver ao menos

70. Os que ficaram para trás foram

catequizados na fé judaica-cristã,

como relembra o aposentado e his-

Índios Parintintin

Esta obra é um testemunho de Almino Affonso

sobre a vida de seu avô, Comendador

Monteiro, nos beiradões

amazônicos

Caracterização etnográfica de índio da etnia Mura

16 valercultural

Page 17: Valer Cultural n2

toriador autodidata Juca Mota, 66,

filho de Humaitá.

No livro Humaitá, editado pela

Secretaria de Educação do Amazo-

nas, em 1993, há a versão de que

depois de dominarem o Peru, bem

antes do domínio dos seringalistas

brasileiros, os espanhóis se embre-

nharam Amazônia adentro atrás de

árvores de canela e outras especia-

rias. Foi nessa época, por volta dos

anos 1600, que eles navegaram o

rio Madeira. Juca Mota afirma: “Não

fosse a resistência dos Mura, na

região do município de Manicoré,

os espanhóis teriam dominado o

Madeira e, provavelmente, a Vila

da Freguesia de Humaitá não teria

existido”.

A chegada do fundador

Num ambiente onde a região

já estava dominada pelo homem

branco, embora alguns conflitos

com os índios ainda resultassem

em mortes, como no caso da Cha-

cina do Been, cujas vítimas foram

dezenas de seringueiros, doenças

como bexiga, sarampo e malária

também mataram muita gente. Foi

nesse clima que aportou o futuro

fundador de Humaitá e construtor

da biblioteca pública, José Francis-

co Monteiro, um homem de poucas

letras, mas visionário nos negócios,

como escreve o seu neto Almino

Affonso.

E de fato, seu avô prosperou a tal

ponto com o negócio da borracha e

da madeira que acabou se fixan-

do no lugar, ao contrário de outros

barões da borracha que preferiam

cidades prontas e semelhantes às

europeias. Em razão de sua per-

manência, em 1890, a antiga

freguesia de Manicoré pas-

sa a ser chamada de Vila

das Freguesias de Hu-

maitá. Com o poder de

traçar o próprio destino,

garantido pelas ranhu-

ras nas seringueiras, por

onde escorria o látex, e

pelo senso administrativo

do Comendador José Fran-

cisco Monteiro, começava a

nascer uma das mais prósperas

cidades do rico Amazonas, no já

formado ciclo da borracha.

O volume de dinheiro na cidade

era tamanho que, segundo Almino

Affonso, a prosperidade se prolon-

gou após a debacle: “Mesmo depois

do declínio do ciclo da borracha,

em 1910, Humaitá ainda nadava

em dinheiro, permanecendo assim

até 1935 [...} A produção da borra-

cha no Amazonas competia com a

produção do café como as maiores

exportações do Brasil”. Indo mais

além na cronologia, Juca Mota diz

que, até 1955, “ainda se podia ver,

na cidade, as damas e cavalheiros

vestidos e comportados como se

estivessem na França”. Mas além

do luxo, algo bem mais durável es-

tava para nascer na cidade.

Comendador Monteiro

17valercultural

Page 18: Valer Cultural n2

O batismo e a obra

A Vila da Freguesia de Humaitá

foi o nome sugerido pelo comen-

dador José Francisco Monteiro, em

homenagem à vitória da tríplice

aliança Brasil, Argentina e Uruguai,

contra o Paraguai, na ocasião da

conquista da fortaleza de Humai-

tá. E, ainda na condição de Vila, a

cidade ganha a Capela de Nossa

Senhora da Virgem Santíssima e de

Santo Antônio de Pádua, com terre-

no doado pelo comendador. Pouco

tempo depois, ele monta uma bi-

blioteca, num espaço generoso, do

gigantesco prédio, onde funcionava

a Prefeitura da cidade.

Almino Affonso descreve em

seu livro que não se tratava de um

quarto para guardar livros. “Era um

prédio admirável, edificado com

esse fim explícito, onde se instalou

uma biblioteca com dois mil livros”.

A cidade foi crescendo devagarzi-

nho, no início do século passado, ao

redor da biblioteca que já guardava

em si o universo inteiro, em razão

do rico acervo de livros que pul-

savam em suas estantes talhadas

bem à moda da arte portuguesa.

Mesmo depois do falecimento de

José Francisco Monteiro, em 1917,

o acervo era visitado pelos jovens

da cidade e até por turistas, como

lembra Juca Mota.

A Biblioteca de Humaitá che-

gou a ser a segunda mais equipada

do Amazonas, depois da Biblioteca

pública de Manaus, de acordo com

Juca Mota. Indo mais além, o advo-

gado, político e filho da cidade Terri-

nha Palmeira de Souza, 60, diz que a

biblioteca chegou a ser a quarta do

Brasil. A biblioteca era alimentada

com doações dos governos de Santa

Catarina, Rio de Janeiro e São Paulo,

na sua primeira fase, até meados

os anos de 1950. Nesse período,

o acervo já havia contribuido para

a formação de nomes que fizeram

história no Amazonas e fora dele.

Terrinha lembra que Humaitá

gerou quatro governadores para o

Amazonas: Álvaro Botelho Maia, Plí-

nio Ramos Coelho, e, interinamente,

Anfremon Monteiro e Lino Chíxaro.

E ainda, Almino Affonso, que foi mi-

nistro no governo de João Goulart,

vice-governador de São Paulo, no

governo Orestes Quércia, conselhei-

ro atual da República. Todos foram

beneficiados pela biblioteca pública

da cidade. A grande produção inte-

lectual de Humaitá tem suas razões

na biblioteca, explica Terrinha.

Álvaro Maia

Biblioteca Ferreira de Castro em Humaitá

18 valercultural

Page 19: Valer Cultural n2

A biblioteca e a escola

No grupo Escolar Oswaldo Cruz,

construído também pelo comenda-

dor em homenagem ao reconheci-

do sanitarista, que fez uma breve

passagem por Humaitá e lá deixou

ensinamentos para produção das

pílulas azuis para tratar a malária,

estudou o senhor Omar de Souza,

82, conhecido como seu Toti. Ele

lembra que, nos anos de 1930, a

população da cidade não chegava a

mil habitantes, mas o nível da edu-

cação era muito bom, mesmo indo

até a 5.ª série. Souza não é frequen-

tador assíduo da biblioteca, “em

razão de trabalho”, mas reconhece

que ela fez a diferença na formação

dos filhos da cidade.

A escola Oswaldo Cruz, que

mantinha forte elo com a biblioteca

pública, foi responsável pela forma-

ção de mais de 90% dos professo-

res filhos de Humaitá. Isso ainda

nos anos de 1950. Um orgulho para

Souza, ex-aluno e colega de sala de

Almino Affonso, no final da década

de 1930.

Mas a biblioteca não esteve

presente apenas na formação dos

homens que se destacaram na vida

pública. Juca Mota lembra que exis-

te um grande número de médicos,

advogados e engenheiros, filhos de

Humaitá, espalhados em Manaus e

em outras capitais do Brasil. Uma

das atrações que ajudou a formar

tantos cidadãos e cidadãs humaita-

enses foi o acervo da biblioteca que

sempre acrescentava informação

às aulas e provocava a curiosidade

pela pesquisas nos seus visitantes,

alunos, profissionais e pessoas ape-

nas interessadas na leitura dos li-

vros que os levavam a uma viagem

além-mar.

“ Existe um grande número de médicos, advogados e engenheiros, filhos de Humaitá, espalhados em Manaus e em outras capitais do Brasil”

Grupo escolar Oswaldo Cruz

Almino Affonso, neto do Comendador Monteiro, e detalhe de obras do

acervo original

Foto

: Div

ulga

ção

19valercultural

Page 20: Valer Cultural n2

A condenação

Mesmo com toda a sua impor-

tância para vida cultural, histórica

e intelectual da cidade, em 1950,

a biblioteca foi fechada e seu acer-

vo abandonado no porão da antiga

prefeitura. Sobre esse fato não há

registros nem nas atas ou tomba-

mentos oficiais. As únicas informa-

ções são aquelas que permanecem

na memória dos moradores mais

dedicados aos estudos. Restou ape-

nas uma estante original com alguns

livros, segundo a professora Etelvina

Viana, responsável pelo tombamen-

to do antigo do acero da biblioteca,

realizado entre 1990 e 2000.

Só 45 anos depois, em 1995, é

que a biblioteca volta a funcionar

no prédio número 18, na rua Ma-

rechal Deodoro, agora batizada com

o nome de Ferreira de Castro, jus-

ta homenagem ao poeta e escritor

José Maria Ferreira de Castro, autor

do romance A Selva. A reforma

foi realizada na administração do

prefeito Írio Guerra. Apenas duas

estantes originais fazem parte da

atual biblioteca. As demais foram,

habilidosamente, copiadas para

completar o total de sete estantes. Ferreira de Castro

Prédios históricos e pontos turísticos de Humaitá

Últimos livros que sobraram do acervo da Biblioteca de Humaitá

20 valercultural

Page 21: Valer Cultural n2

O que restou

Do acervo que deu à biblioteca

de Humaitá o reconhecimento de

quarta mais importante do Brasil

sobraram algumas obras e peças

raras, entre elas, a cópia da escri-

tura de compra e venda do escravo

Victor, datada de 24 de outubro de

1879, pelo valor de oitocentos mil-

-réis, pagos em moeda. Victor tinha

22 anos, e era registrado como mu-

lato. João Gusmão da Silva o vendeu

a Lúcio Anthunes Maciel. A escritura

original pertence ao acervo particu-

lar de Dom Miguel D’Aversa, bispo

diocesano, segundo o poeta e escri-

tor Raimundo das Neves de Almei-

da, filho de Humaitá, em seu livro

Retalhos históricos e geográficos

de Humaitá: documento público de

1869 a 1970.

Outras obras que ainda fazem

parte das raridades são a enciclopé-

dia Nouveau Larouse Illustré, assi-

nada por Claude Auge, o Dicionário

Universal, assinado por Maximiano

Lemos, e a enciclopédia The New

Brazil, obras do início e meados do

século passado, mais edições do

jornal Alto Madeira, de Porto Velho

(RO), que circulava na cidade desde

os primeiros anos do século passa-

do. Obras dos anos de 1950 a 1960,

não raras, mas de grande valor cul-

tural ainda se mantêm nas estantes.

São de escritores do nível de: Ma-

chado de Assis, Clarice Lispector, Gil-

berto Freyre, Érico Veríssimo, Darcy

Ribeiro e Márcio Souza.

Fotos: Marcus Stoyanovith

21valercultural

Page 22: Valer Cultural n2

O destino do acervo

Para onde foi o acervo cultural

da Biblioteca de Humaitá? Não é se-

gredo o destino da maioria desses

livros. De acordo com a professora

Etelvina, ”eles foram levados, por

coordenadores do Projeto Rondon,

e nunca mais foram devolvidos”. A

versão é confirmada pelo historia-

dor autodidata Juca Mota: “Os livros

do acervo estão em Araraquara, Bo-

tucatu, Avaré e Marília”. Indignado,

ele diz que não compreende por

que as autoridades do município

não reclamam a devolução dos li-

vros. Terrinha afirma que outra par-

te dos livros foi levada para Porto

Velho-RO, pelo diretor do jornal Alto

Madeira, Euro Tourinho.

Além do seu acervo extraviado,

e depois de tanto tempo de livros

jogados num porão, os últimos tom-

bamentos do acervo da Biblioteca

Pública Ferreira de Castro, feitos

em 1995, 1997 e 2009, registram

6.019 títulos. Uma soma que não

bate com o volume em exposição,

perto de dois mil livros, segundo a

professora Etelvina. Mesmo assim,

a biblioteca sobrevive e mantém

uma frequência regular de alunos

que agora contam, também, com

equipamentos modernos. É que no

porão da biblioteca, onde escravos

eram acorrentados, no século 19,

agora é ocupado por computadores

que ajudam as crianças em suas

pesquisas. A professora Ivana Fer-

reira Reis explica que as pesquisas

na internet são complementares

àquelas feitas nos livros.

22 valercultural

Page 23: Valer Cultural n2

A sobrevivência

Para a professora Etelvina Viana, a bi-

blioteca “tem a sua importância além da

vida escolar do aluno, porque ajuda na sua

formação como pessoa”. Ela afirma: “É aqui,

na biblioteca Ferreira de Castro, que ainda é

possível conhecer todos os poetas e escrito-

res filhos de Humaitá”. E lembra: “Os alunos

devem ser estimulados no início, depois eles

mesmos sentem a necessidade de frequentar

a biblioteca”.

E é com muita teimosia que a Biblioteca

Pública de Humaitá mantém-se viva há mais

de cem anos. Hoje recebe, em média, 300

alunos por semana. A maioria pesquisando

para trabalhos de aula. Assim como faziam,

no início do século, os habitantes fundadores

da cidade; em meados do mesmo século, os

membros da famosa Confraria São Vicente de

Paula, na qual o pai do ex-governador Plínio

Ramos Coelho era um deles, entre os anos

1952 e 1956, e como fazem hoje os alunos

como Gustavo Pereira, 12, estudante da esco-

la Tancredo Neves, que frequenta a biblioteca

porque é um lugar onde ele encontra respos-

tas para suas perguntas.

“ A biblioteca tem a sua importância além da vida escolar do aluno, porque ajuda na sua formação como pessoa”

Fotos: Marcus Stoyanovith

Etelvina Viana: dez anos dedicados à proteção do acervo da Biblioteca de Humaitá

23valercultural

Page 24: Valer Cultural n2

diário de viagemFo

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24 valercultural

Page 25: Valer Cultural n2

Visitas a museus e lugares históricos

do Oriente Médio garantem revisão

de aulas de história geral

Ana Cláudia Leocádio | jornalista

Quando meu marido chegou em casa,

em Brasília, em agosto de 2010, per-

guntando o que eu preferia: morar em

Ancara ou Damasco, confesso que tomei

um susto. Estava mais hesitante pela minha ignorância,

pois, até então, não fazia ideia de que Ancara era a

capital da Turquia. Sempre achei que fosse Istambul.

No receio, descartei Damasco, capital da Síria, país que

está passando por sérios problemas políticos.

25valercultural

Page 26: Valer Cultural n2

Passado um ano, cá estamos nós

morando em Ancara, localizada na

Anatólia Central, a 400 quilômetros

de Istambul, a antiga capital nasci-

da no lado europeu, cidade que por

séculos foi Constantinopla, a capital

dos impérios Romano e Bizantino,

uma segunda Roma, como dizem

os historiadores.

Por mais de mil anos, Istambul

foi uma grande fortaleza dos impé-

rios cristãos no Oriente, construída

entre o Estreito de Bósforo e o Chifre

de Ouro, e protegida pelas imensas

muralhas, que só foram abaixo em

1453, quando os otomanos, vindos

do leste, a conquistaram, colocando

fim ao domínio bizantino e cristão

na região.

Após séculos sob o regime do

sultanato, em 1923, o país tornou-

-se uma república e passou por um

processo de europeização que mu-

dou significativamente o modo de

viver turco sem, contudo, alterar o

espírito nacionalista e a fortaleza

cultural dessa nação. Talvez por es-

sas diferenças o sonho turco de in-

gressar na União Europeia até hoje

não se concretizou.

A Turquia tem quase 80 milhões

de habitantes, onde 99% da popu-

lação são mulçumanos. Istambul

segue como a maior cidade, com

cerca de 14 milhões de pessoas vi-

vendo em um verdadeiro museu a

céu aberto. A pacata Ancara, a se-

gunda maior cidade, tem aproxima-

damente 5 milhões de pessoas.

Lições

As lições de se viver nessa parte

do mundo, num país mulçumano,

principalmente para uma brasileira

e cristã, são muitas. A primeira é o

respeito à identidade de cada um.

Turco é turco, não é árabe, libanês

ou sírio, assim como iraniano é per-

sa e egípcio é egípcio. Isso precisa

ser dito, pois, não são poucas as

vezes em que nos vemos dizendo

que “tudo é a mesma coisa”. Não

“ Turco é turco, não é árabe, libanês ou sírio, assim como iraniano é persa e egípcio é egípcio”

Foto

s: A

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láud

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eocá

dio

26 valercultural

Page 27: Valer Cultural n2

jogador de futebol que atua nos

times locais. O ex-jogador da Se-

leção Brasileira Alex de Souza é

uma verdadeira autoridade na

Turquia, a ponto de ser home-

nageado pelo governo, que o

concedeu a cidadania turca.

Líder de um dos maiores ti-

mes de futebol do país, o Fe-

nerbahçe, Alex é respeitado

inclusive pelos jogadores e

torcedores dos times rivais.

Para quem torce o nariz

ao fato de carnaval e fute-

bol serem sempre as pri-

meiras palavras que um

estrangeiro lembra ao

encontrar um brasileiro, é

preciso agradecer a esses

“trabalhadores da bola”

cada sorriso que eles aju-

dam a abrir para a gente, no

exterior. Como eu adoro fute-

bol, não perco a oportunidade

de fazer novos amigos pegan-

do carona nos nossos jogadores.

Mas as novelas também são

outro chamariz. As mulheres são

curiosas e questionam de tudo

sobre as novelas, principalmente

sobre a sensualidade da brasilei-

ra. Bonitas, as

é, e isso faz toda a diferença. A

ninguém é dado o direito de tirar a

identidade de um povo.

A segunda lição é sobre a reli-

gião mulçumana, algo que ainda

estou aprendendo, buscando enten-

der esse modo de viver que segue

as revelações de Maomé, que para

eles foi o último e mais importante

profeta, quase sete séculos depois

de Jesus Cristo. Mais importante,

ainda, é esquecer os estereótipos

que ligam uma religião tão pacífica

ao terrorismo. Violência urbana é

algo raro por aqui, tal qual conhece-

mos no Brasil. Pode-se andar tran-

quilamente altas horas pela cidade,

que um bandido não vai te importu-

nar. Senti isso também no Egito, Irã

e Líbano.

Outra lição importante é sobre

a língua. Os turcos vieram da Ásia

Central. Sua língua, segundo um

professor português que conheço,

só se aproxima do coreano, o que

aumenta ainda mais a dificuldade

de aprendizado. O problema é que

os turcos são tão solícitos, que fica

muito fácil se comunicar com eles

por gestos, usando bem o dedo in-

dicador. Eles farão de tudo para te

entender e te ajudar. Mas para não

contar sempre com essa generosi-

dade, preferi dar uns passinhos à

frente e aprender um

pouco do idioma, até

em respeito a eles. E

está dando certo. É gra-

tificante ver a satisfação

deles, quando você che-

ga pedindo algo em turco

e não mais por gestos.

Brasileiros

O fato de ser brasileiro

também ajuda muito. Eles ado-

ram os brasileiros, têm sempre na

ponta da língua o nome de algum

27valercultural

Page 28: Valer Cultural n2

turcas são bem mais recatadas que

nós obviamente. O gosto pela no-

vela é tanto que os canais locais de

televisão têm novela em todos os

horários. A última e mais assistida

é uma novela sobre um dos maio-

res sultões da Turquia, responsável

pela ampliação da ocupação oto-

mana, Suleiman, e que só passa às

quartas-feiras. A Globo está de olho

nisso, tanto que, ano passado, a au-

tora Glória Perez esteve mais de um

mês na Turquia fazendo pesquisas.

A próxima novela da emissora, Sal-

ve Jorge, será gravada no país.

De mente aberta

Aos desatentos, um aviso: me-

lhor esquecer os estereótipos e

preconceitos quando quiser visitar a

Turquia ou outros países dessa par-

te do globo. Chegue com a mente

aberta. Essa parte do planeta já foi

casa de muitos impérios (hititas,

persas, gregos, romanos, bizantinos

e otomanos), é um caldeirão cultu-

ral. Foi também onde muitos após-

tolos de Jesus Cristo abriram cami-

nho para o Cristianismo, onde Maria

passou seus últimos dias (há contro-

vérsias sobre isso), e onde muitos

deles morreram devido a essa nova

religião, segundo os historiadores.

Esse itinerário religioso, com visita

aos locais históricos, é também um

dos grandes atrativos turísticos do

país, que em 2011 atraiu em torno

de 30 milhões de visitantes.

Mulçumano desde o século 15,

a atual Constituição turca diz que o

Estado é laico, ou seja, separado de

religião. Isso faz com que, em mui-

tos aspectos, a vida na Turquia seja

bem diferente de países mulçuma-

nos vizinhos. Na costa do Egeu e no

Mediterrâneo, as diferenças são ain-

da maiores, em relação aos Estados

do leste.

Nas grandes cidades, é comum

no dia a dia ver mulheres usando

véus coloridos na cabeça, com rou-

pas bem-comportadas, longas e

largas, algumas usando até o man-

lenço só é obrigatório para quem

deseja entrar numa mesquita. É um

sinal de respeito e reverência.

Até hoje ainda não entendi o

motivo de ter que cobrir a cabeça

em razão da religião. À primeira vis-

ta, sempre me pareceu falta de res-

peito à individualidade da mulher,

pois aos homens nenhuma obri-

gação desse tipo é imposta, mas

agora prefiro pensar que é uma

opção de cada um e isso precisa

ser respeitado também. Se reparar-

mos, freiras e mulheres de outras

religiões também usam véus sobre

a cabeça.

Turcos e brasileiros

Na tentativa de buscar algo que

aproxime o turco do brasileiro, para

mim, a aparência é um ponto em

comum. Mas isso não significa que

o turco parece com o brasileiro; pelo

contrário, como ambos não têm

uma aparência homogênea, isso faz

com que eles possam ter qualquer

nacionalidade. Senti isso ao chegar

ao aeroporto de Istambul, ano pas-

sado. Quando olhei ao redor, com

exceção das mulheres com véus,

cheguei a imaginar que estivesse

“ O crescimento turco é similar ao brasileiro, mas quando se olha o preparo do país em infraestrutura, as semelhanças acabam aí”

to negro, que só deixa os olhos à

mostra. Mas esse modo de se vestir

não é predominante, pois a maior

parte da população segue a moda

europeia, com roupas vendidas pe-

las grandes marcas da Inglaterra,

Espanha, Itália e da própria Turquia,

sem, contudo, mostrar-se muito. Os

mantos otomanos são, atualmen-

te, peças de museu e decoração. O

Foto: Ana Cláudia Leocádio

Lugar onde Maria, a mãe de Jesus, teria vivido seus últimos dias

28 valercultural

Page 29: Valer Cultural n2

em algum aeroporto brasileiro, ta-

manha a multiplicidade de rostos.

No plano econômico, o cresci-

mento turco é similar ao brasileiro,

mas quando se olha o preparo do

país em infraestrutura, as semelhan-

ças acabam aí. Sétimo país mais visi-

tado do mundo, a Turquia se prepara

para receber bem os turistas, com

excelentes estradas, portos e aero-

portos e rede hoteleira, isso sem fa-

lar do jeito amistoso de receber.

Aos poucos, do susto passei ao

estranhamento e o espanto inicial

de ter de mudar de cidade para um

país que só vi pelos livros, agora dá

lugar a mais curiosidade, à vontade

de aprender mais e mais sobre esse

mundo diferente, mas que tem raí-

zes sólidas na história. De um país

que liga o continente asiático à Eu-

ropa, mas que não consegue entrar

nesse grupo seleto do euro. Chego a

bendizer a minha inquietação, que

agora me abre portas a um conhe-

cimento negligenciado nas aulas de

história da escola.

Foto

: Vita

ly T

itov

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aria

Sid

elni

kova

29valercultural

Page 30: Valer Cultural n2

A cidade vista do Bósforo

O Estreito de Bósforo tem 30

quilômetros de extensão e separa

a Ásia Menor da Europa, ligando

o Mar Negro ao Mar de Márma-

ra, pelo qual se chega aos mares

Egeu e Mediterrâneo. Pelo estreito,

acordos internacionais permitem

que milhares de navios cargueiros

acessem diariamente esses mares

tão estratégicos para o comércio.

Por ele, diariamente, milhares de

turistas têm o prazer de contemplar

os prédios deixados pelos impérios

romano, bizantino e otomano. Uma

aula de história ao ar livre, com mo-

numentos que testemunham como

o poder é passageiro.

Testemunha de muitas batalhas

pela tomada do poder na região,

o Bósforo protegeu por séculos as

fortificações de Constantinopla e,

assim, manteve as ameaças lon-

ge da Europa, até a chegada dos

otomanos, em 1453. A partir dali,

Constantinopla passou a se chamar

Istambul, cidade que hoje preserva

as ruínas de um áureo período.

O legado histórico está em cada

canto da cidade. Impossível não

tentar imaginar como foram as ce-

lebrações na Basílica de Santa So-

fia (Sagrada Sabedoria), construída

pelo imperador Justiniano, no século

VI d.C, com mosaicos de ouro, com

a maior doma do mundo, com toda

aquela imponência. Mais parece um

pedido de perdão do imperador por

ter massacrado 30 mil pessoas no

Hipódromo, local de entretenimento

durante o Império. Com a conquista

otomana, a igreja foi transformada

em mesquita e teve suas obras de

arte encobertas por pinturas e tex-

tos do Alcorão. Atualmente, parte

dos mosaicos da era bizantina está

descoberta e pode ser admirada,

em Istambul.

As mesquitas são outra atração

à parte. Do Bósforo, é possível avis-

tá-las com seus imensos minaretes

rumo ao céu, seja do lado europeu

ou asiático. A mais famosa delas,

a Mesquita Azul, é um deleite aos

olhos. Única a ostentar seis mina-

retes, foi construída de frente para

a Basílica Santa Sofia, no século

17, e atrai diariamente milhares de

pessoas para contemplar, de dentro,

suas extraordinárias domas e imen-

so lustre.

Não menos importante e próxi-

mo a esses monumentos, está o Pa-

lácio de Topkapı, com seus imensos

jardins e salas, a casa do sultão.

“ O legado histórico está em cada canto da cidade”

Foto

: Mik

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amki

er

30 valercultural

Page 31: Valer Cultural n2

Culinária de encher os olhos

A culinária turca é uma história

à parte. Eles são a excelência nos

mesês, ou entradinhas, como os

designamos no Brasil. São tantos

os tipos, que se não tomar cuidado,

come-se apenas as entradas e não

sobra espaço para o prato principal,

que pode ser um kebab, um sken-

der ou um cordeiro assado. Há res-

taurantes que não cobram pelas en-

tradas, o que torna o exagero ainda

mais tentador.

Azeitonas, berinjelas, grão-de-

-bico, lentilhas, cebola assada e,

principalmente, os pimentões, en-

chem primeiro os olhos.

Um ingrediente que jamais pode

faltar na refeição turca é o iogurte; é

como a farinha para o amazonense.

Eles gostam tanto de iogurte, que

há uma bebida chamada airam à

base desse derivado do leite, que

vende mais que refrigerante,

de tão popular.

Mas país mulçumano tem

seus inconvenientes também

na comida. Nada sério. Eles

não comem carne de porco

e, por isso, é preciso ter um

canal próprio de pedidos

em Istambul para poder

comer carne de porco ou

algum produto derivado;

por exemplo, presunto e

salsicha. Outro produto

difícil de encontrar por

aqui é o bacalhau, mas em com-

pensação os peixes são uma delícia.

Trazidos principalmente do Mar Ne-

gro, o levrek e çipura (se pronuncia

tchipura) são os meus preferidos.

Outra coisa: encontrar leite con-

densado é um desafio. Uma amiga

me explicou que a base da sobre-

mesa turca é o açúcar e por isso

eles usam pouco leite nas sobre-

mesas, que, por sinal, são delicio-

sas. A baklava com pistache e os

famosos docinhos à base de açúcar,

conhecidos em inglês como turkish

delights, são sucesso absoluto. Isso

sem falar nos folhados, entre eles

o börek (que parece uma lasanha

sem molho) e o gözleme (um pão

aberto com recheio).

Foto: Ana Cláudia Leocádio

31valercultural

Page 32: Valer Cultural n2

literatura e folclore

Em Parintins, uma

brincadeira de terreiro

se transformou em

espetáculo midiático

Wilson Nogueira | jornalista

Foto

: Hei

tor

Cost

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32 valercultural

Page 33: Valer Cultural n2

O primeiro registro da presença do boi-

-bumbá no Brasil é um violento e pre-

conceituoso ataque ao folguedo. “Eu não

conheço um tão tolo, tão estúpido e des-

tituído de graça como o, aliás, bem conhecido bumba-

-meu-boi. Em tal brinco não se encontra um enredo

nem verossimilhança: é um agregado de disparates”,

escreveu o padre Miguel do Sacramento Lopes Gama,

no jornal O Carapuceiro, editado em Recife (PE), em

1840. No Amazonas, a notícia mais antiga da brinca-

deira, em Manaus, foi registrada no ano de 1859. O

33valercultural

Page 34: Valer Cultural n2

viajante alemão Robert Avé-Lalla-

mant, no seu livro Viagem pelo rio

Amazonas, compara o cortejo a um

arcabouço de boi (o simulacro do

boi animal) a entrechos do carnaval

parisiense, cujo desfile é visto das

janelas pelas famílias da alta socie-

dade. O interesse do religioso e do

viajante sugere que o boi-bumbá

inquieta os intelectuais há muito

tempo.

Os primeiros estudiosos do fol-

clore nacional o têm como uma

das festas enraizadas na folgança

do povo brasileiro. O folclore, nes-

se caso, caracteriza-se pela persis-

tência dos valores tradicionais de

uma comunidade e distanciamento

da erudição. Logo, as mudanças no

modo de se apresentar e se rela-

cionar com o mercado, a partir da

década de 1980, viriam a incomo-

dar intelectuais ortodoxos do por-

te do historiador Mário Ypiranga

Monteiro: “Uma alegoria industrial

é o funesto tipo, que está toman-

do vulto na Amazônia, apelidado

erroneamente de festival folclórico,

oficializado pelo governo estadual

e municipal, e pela imprensa, em

franco desrespeito ao condiciona-

mento científico”.

Em Parintins, desenvolveu-se,

a partir de 1965, com a realização

da primeira competição entre gru-

pos folclóricos, um boi-bumbá que,

com o decorrer dos anos, passou

a combinar manifestações artísti-

cas tradicionais e contemporâneas.

Mantém-se, na brincadeira, o fun-

damento da morte e ressurreição

do boi mais querido da fazenda,

morto pelo peão Pai Francisco, co-

movido pelos apelos da sua mulher,

a Mãe Catirina, gestante e desejosa

da carne do animal. Assim, a tragi- Foto

: And

reas

Val

entin

34 valercultural

Page 35: Valer Cultural n2

comédia veio a se transformar, por

meio do ânimo criativo dos parinti-

nenses, principalmente a partir dos

anos de 1980, em um espetáculo

lítero-cênico-musical de exaltação

das culturas amazônicas.

Espetáculo

Os protagonistas da versão es-

petacular do bumba-meu-boi nor-

destino são Garantido e Caprichoso,

que se apresentam, no bumbódro-

mo, no último fim de semana de

junho. Estima-se que, em média,

Parintins, com 104 mil habitantes,

receba nos três dias de festival ao

menos 50 mil pessoas. A cidade,

localizada numa das ilhas do arqui-

pélago Tupinambarana, na margem

direita do rio Amazonas, na região

do Baixo Amazonas, só tem liga-

ção com outras cidades por meio

de barcos ou aviões. Os percalços

da logística da festa não impedem

que uma multidão se acotovele nos

barcos, nos aviões, nos bares e res-

taurantes, nos hotéis e no bumbó-

dromo para assistir às três noites de

espetáculo. Garantido e Caprichoso

competem, com seus espetácu-

los, ao título de campeão do ano,

conferido por um corpo de jurados

formado por especialistas em cul-

turas e artes de Estados escolhidos

em acordo entre os dirigentes das

duas agremiações. Os bois-bumbás

desenvolvem temas por meio de

“ O boi-bumbá desperta pesquisa em diversas áreas”

performance teatral, com toada

(letra e música), danças coletiva e

individual, cenários e efeitos de ilu-

minação e sonorização. Não faltam

ideias para conceituar a conjunção

de tantos gêneros artísticos num

só espetáculo: carnaval amazônico,

ópera popular, ópera cabocla, teatro

de arena, teatro de revista amazôni-

co etc. O certo é que as experiências

heterodoxas do folclore parintinen-

se, em desacordo ao folclorismo,

gerou o boi-bumbá de Parintins, fe-

nômeno sociocultural originário da

ilha Tupinambarana.

O boi-bumbá em sua versão

parintinense-amazônica tem des-

pertado o interesse de intelectuais

e pesquisadores dos mais variados

campos artísticos e acadêmicos, tais

como da literatura, artes plásticas

e visuais, antropologia, sociologia,

história, economia etc. Seminários,

monografias, dissertações, teses e

Foto

: Wils

on N

Ogu

eira

Foto

: Wils

on N

Ogu

eira

35valercultural

Page 36: Valer Cultural n2

ensaios, muitos dos quais disponí-

veis na forma de livros (confira re-

lação na página ao lado), têm como

tema de análise o boi-bumbá de

Parintins. Guardadas as devidas pro-

porções, o Festival de Parintins des-

perta tanto interesse dos pesquisa-

dores quanto o carnaval carioca na

sua modalidade escola de samba.

o boi-bumbá de Parintins foi absor-

vido por um processo criativo que o

deslocou do folclore para fenômeno

da cultura popular contemporânea.

“Como espetáculo é algo mostrado

para ser visto. Motiva, portanto, um

olhar participante”. Um olhar cativa-

do por aquilo que assinala o autor.

O doutor em antropologia do

Departamento de Antropologia da

Ufam, Sérgio Ivan Gil Braga, no seu

livro-tese O boi-bumbá de Parintins,

acentua que os bumbás parintinen-

ses reencenam o temas das três ra-

ças formadoras, da guerra justa e da

morte e ressurreição, nos quais per-

meiam os signos de identidade. “A

versão desse mito de origem (das

três raças) se utiliza da imagem do

índio e da Amazônia, para promover

a imagem do caboclo como signo de

identidade regional amazônica. De

Parintins ela se projeta para outras

localidades, sobretudo Manaus, que

se identifica regionalmente com a

festa, mas também para outros Es-

tados e quem sabe para o mundo...”,

escreve o antropólogo.

Para a pesquisadora da Univer-

sidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ), Maria Laura de Castro Vivei-

ros Cavalcanti, autora de Festa na

floresta – o boi-bumbá de Parintins,

o folguedo parintinense apresenta

um novo indianismo, caracterizado

pela valorização dos indígenas por

Em 2000, a Universidade Fede-

ral do Amazonas – Ufam, sob a coor-

denação da antropóloga Selda Vale,

realizou, em Manaus, o seminário

O boi-bumbá na Universidade. Na-

quela época, foram catalogados

três teses de doutorado, três dis-

sertações, 14 monografias, quatro

projetos de pesquisa e cinco livros

publicados. Certamente a lista hoje

é bem maior e está acrescida de es-

tudos realizados em universidades

de outros Estados.

Os intelectuais e pesquisadores

apresentam o boi-bumbá de Parin-

tins por vozes múltiplas e polêmi-

cas. Compreendê-lo na sua forma

multifacetada tornou-se um desa-

fio para os estudiosos das culturas

contemporâneas. Há, em Parintins,

uma festa de boi articulada com

o mercado, porém com um pé no

folguedo do passado. O professor

doutor de Estética e História da Uni-

versidade Federal do Pará (UFPA)

João de Jesus Paes Loureiro, no seu

livro Culturas Amazônicas – uma

poética do imaginário, entende que

“ Há, em Parintins, uma festa de boi articulada com o mercado”

36 valercultural

Page 37: Valer Cultural n2

1. Boi-bumbá: festas, andanças, luz e

pajelanças/ Funarte, 1995

Autor: Simão Assayag

2. Cultura Amazônica: uma poética

do imaginário/ Cejup, 1995

Autor: João de Jesus Paes Loureiro

3. Um pessoal garantido / Ponto de

Vista, 1998

Autores: Andreas Valentin e Paulo

José Cunha

4. Caprichoso: a terra é azul / Ponto

de Vista, 1999

Autores: Andreas Valentin e Paulo

José Cunha

5. Festival na floresta: o boi-bumbá

de Parintins / Funarte, 2000

Autora: Maria Laura de Castro

Viveiros Cavalcanti

6. O boi-bumbá de Parintins/ Edua,

2001

Autor: Sérgio Ivan Gil Braga

7. A revelação histórica do folclore

parintinense / Ed. do Autor, 2005

Autor: Raimundinho Dutra

8. Contrários: a celebração da

rivalidade nos bois-bumbás de

Parintins / Ponto de Vista, 2005

Autor: Andreas Valentin

9. Boi-bumbá: evolução/ Valer,

2007

Autor: Allan Rodrigues

10. Festas Amazônicas: boi-bumbá,

ciranda e sairé/ Valer, 2008

Autor: Wilson Nogueira

11. Na ilha do boi de pano: uma

reportagem para além do dogma

da objetividade do jornalismo

/2009, www.teses.usp.br/

Autora: Patrícia Sales Patrício

12. História da Amazônia / Valer,

2009

Autor: Márcio Souza

intermédio da contextualização das

suas culturas no mundo contempo-

râneo. Os saberes e o imaginário

das etnias amazônicas antes des-

prezados e ridicularizados ganham

importância no cenário de desafios

das urgências ecológicas e multicul-

turais. Destacam-se no espetáculo,

por exemplo, as danças ritualísticas

e personagens do imaginário indíge-

na protetoras das florestas e dos rios.

Por entender que a Amazônia

foi inventada para estar ligada ao

mercado internacional, o escritor e

ensaísta Márcio Souza acentua que

os parintinenses desenvolveram

um espetáculo mais relacionado

com a indústria cultural do que com

a cultura tradicional ou rústica. Mas

salienta o escritor, em um dos capí-

tulos do livro História da Amazônia:

“O Festival de Parintins, mesmo com

sua vocação para o gigantismo ope-

rístico, tem seu caráter tradicional

e folclórico ressaltado pelo fato de

que cada uma das versões anuais

é concebida nos parâmetros do boi-

-bumbá típico, mas com uma relei-

tura distinta, fiel apenas ao desejo

de cada um dos bumbás envolvidos

de surpreender o outro e arrancar-

-lhe a primazia da surpresa”.

Como bem sintetizou Sérgio

Ivan, em título de artigo publicado

na revista Somanlu, o boi-bumbá de

Parintins “é bom para pensar”.

Foto

s: W

ilson

Nog

ueira

Doze livros sobre o tema

37valercultural

Page 38: Valer Cultural n2

política pública

Método que distribui recursos públicos a ações culturais

fortalece a diversidade artística no país

Maurília Gomes | jornalista

38 valercultural

Page 39: Valer Cultural n2

Desde que o Brasil in-

cluiu a cultura em seu

macroplanejamento,

com a criação do Mi-

nistério da Educação e Cultura, em

1953, as políticas culturais transitam

entre entendimento de que Estado

é agente financiador ou mediador

para o mercado. Nos últimos dez

anos, no entanto, prevaleceu o in-

vestimento estatal em projetos por

meio de seleção pública. Essa práti-

ca suscita preocupações acerca de

certo paternalismo.

Os editais representam uma for-

ma democrática de distribuição de

recursos públicos a ações culturais

no país, porque, por meio de regras

claras e critérios objetivos, permitem

maior transparência ao uso do dinhei-

ro público. A medida contribui para o

reconhecimento e fortalecimento da

diversidade cultural do país.

O jornalista e artista visual Sávio

Stoco afirma que as políticas cul-

cultural. Além disso, a ausência de

um calendário fixo para a publica-

ção dos editais e os atrasos nos pa-

gamentos aos selecionados dificul-

tam a atuação no setor.

De acordo com Stoco, é compli-

cado esperar apenas por verbas de

editais, pois há muita instabilidade.

Assim, a busca por investimento fora

da esfera pública continua sendo

uma alternativa bastante utilizada

pelos artistas e produtores. Resulta-

dos que não saem como o espera-

“ Saímos um pouco da política do pires na mão mas ainda temos muito para avançar”

turais implementadas pelo Gover-

no Federal atendem às diferenças

regionais. “Além de regionalizar,

elas têm criado iniciativas de pro-

jetos com recursos mais modestos

e mais adequados à realidade de

produtores culturais em início de

carreira ou, até mesmo, àqueles

que não necessitam de grandes

aportes”, destaca.

Outro fator importante é a am-

pliação do acesso à cultura em di-

ferentes campos sociais e o auxílio

aos produtores e grupos culturais.

“Os editais proporcionaram ganhos

quanto à distribuição por setores, o

profissionalismo de quem apresenta

seus projetos, pois saímos um pou-

co da política do ‘pires na mão’. Po-

rém, ainda temos muito para avan-

çar”, avalia João Fernandes, diretor

do grupo de teatro e dança Cia. de

Idéias, que atua em Manaus desde

2007. Contudo, os editais têm ge-

rado uma dependência no mercado

Foto: Aline Fidelix

Espetáculo Aniquilar a la Niña de Rodrigo Gomes e Florencia Gleize na Segunda Mostra Internacional de Videodança da Amazônia contemplada no prêmio Petrobras Cultural

39valercultural

Page 40: Valer Cultural n2

do, verbas que atrasam, orçamentos

que não saem como o planejado,

entre outros problemas. “Acho ne-

cessário que os artistas pensem em

outras formas para se manterem;

pelo menos é isso que estou bus-

cando via acadêmica (mas, claro

que há outras)”, ressalta.

Essa também é a opinião de

Fernandes, que considera impossí-

vel sobreviver no mercado cultural

apenas com verbas destinadas em

editais públicos e destaca a im-

portância da busca de outras for-

mas de financiamento. “Na Cia. de

Idéias, por não termos essa certeza

das publicações nem dos prazos

de pagamentos, que muitas vezes

atrasam, buscamos outras fontes

de capital de giro para realizarmos

as atividades sem prejuízo para o

público e o andamento da compa-

nhia”, explica o diretor.

Alternativas

Assim, os agentes culturais têm

procurado agregar valor aos seus

produtos, a fim de facilitar a ob-

tenção de outras fontes de finan-

ciamento, participando e criando

espaços alternativos de produção

cultural. Esses agentes precisam

ainda buscar visibilidade e reconhe-

cimento do público e, também, do

empresariado, que tem sido outra

importante fonte de recursos para

o setor.

Para Michelle Andrews, gestora

da Casa Fora do Eixo Amazônia, os

agentes culturais precisam buscar

outros mecanismos para a sustenta-

bilidade a curto prazo, a fim de cus-

tear o financiamento das atividades

e evitar cair na política paternalista

dos editais governamentais. Essa

também tem sido uma das alterna-

tivas adotadas pela Cia. de Idéias.

“Precisamos ser vistos pela popu-

lação, empresários e governantes.

Por isso, a cada dia procuramos criar

novos produtos, como a criação da

revista Casarão de Idéias, o Mova-

-se festival, e dialogar com outros

Estados do Brasil, para potencializar

nossas ações”, enfatizou.

Se os editais não são suficientes

para atender à demanda do setor,

qual seria, então, o caminho a ser

adotado pela política cultural no

Brasil para os próximos anos? A in-

tensificação do uso de editais ou a

diversificação dos incentivos, como

a renúncia fiscal, investimento dire-

to, entre outros modelos discutidos

pelo Sistema Nacional de Cultura?

A opinião geral entre os agen-

tes culturais é a de que não se

trata de uma ou de outra, mas da

diversificação das opções, porque

eles partem da perspectiva de que

aumentando o investimento tam-

bém se ampliam as condições de

produzir e potencializar a economia

da cultura. “Acho importante o em-

penho em fazer com que a parti-

cipação em editais seja ampliada.

Suspeito que essa prática ainda não

faça parte da rotina de muitos pro-

dutores”, opina Stoco.

João Fernandes e Sávio Stoco

Foto

: San

dro

Mar

andu

eira

Foto

: Alin

e Fi

delix

Espetáculo Cor-poregr@fico de Odacy de Oliveira no Miva

40 valercultural

Page 41: Valer Cultural n2

de projetos do Governo

Federal] e buscar informa-

ções on-line etc. Um bom

portifólio, a prática e os estu-

dos são a principal garantia de uma

projeto. É muito importante entender que ter

os editais como fonte de financiamento faz

parte de estratégias de longo prazo por conta

dos percalços e contratempos que surgem ao

longo do processo. Com o tempo, a instituição

vai dominar tão bem o processo que poderá

elaborar os próprios editais, como estamos fa-

zendo dentro do Fora do Eixo”, conclui.

Michelle Andrews, gestora da Casa Fora do

Eixo Amazônia e fundadora do Coletivo Difu-

são, explica que não existe uma fórmula que

possa garantir uma seleção nos editais, mas

táticas que podem facilitá-la. “É muito impor-

tante ficar sempre atento às instituições que

trabalham com frequência seus editais, tanto

as governamentais, como Funarte, MinC, Bi-

blioteca Nacional, quanto as privadas, como

Petrobras, Vivo, Natura, Vale etc. Além disso,

é importante o investimento em qualificação:

domínio das principais ferramentas do setor,

como Salic e Sincov [programas de cadastro

Caminho das pedras

Foto: Luana Záu

41valercultural

Page 42: Valer Cultural n2

cinema

Marcus Stoyanovith | jornalista

Do romance às telasA Selva de Ferreira de Castro

nas versões cinematográficas de

Márcio Souza e Leonel Vieira

42 valercultural

Page 43: Valer Cultural n2

Não é de hoje que

obras literárias são

adaptadas para o ci-

nema e acabam pro-

vocando outra maneira de contar

a mesma história. Esse fascínio da

transformação de uma história con-

tada em livro para o cinema, ou

teatro, sempre contagiou autores,

Do romance às telasdiretores e leitores/expectadores.

Esse é o caso de A Selva, de José

Maria Ferreira de Castro, romance

publicado em 1930, que inspirou a

produções homônimas. Dois filmes

de um livro que rendeu uma leitura

bem própria de cada diretor, cujas

épocas, técnicas e orçamentos são

bem distintos.

43valercultural

Page 44: Valer Cultural n2

O romance pode até ser ficção,

mas a vida que motivou a sua exis-

tência, não. O português se inspirou

no que vivenciou na selva amazô-

nica, na área do rio Madeira, desde

a ascensão até o início do declínio

do ciclo da borracha. Um período de

conflitos entre índios e seringalistas,

coronéis da borracha, que escravi-

zavam caboclos e nordestinos na

extração do látex e os mantinham

como prisioneiros de uma dívida

impagável.

Desse ambiente nasceu a inspi-

ração para o romance, ou como quis

descrevê-lo o seu autor, um diário

de um inferno verde. Um portu-

guês monarca, expulso pelo poder

republicano, é socorrido por um tio

pobre em Belém-PA, que paga a

um capataz para levá-lo ao Serin-

gal Paraíso, onde deveria arrumar

a própria sobrevivência. O contraste

de monarca para seringueiro é tão

feroz quanto o ambiente da selva.

Mas ele não perde a sensibilidade

e guarda toda a nova experiência

para vencer na selva. Lá, se apai-

xona pela dona YaYá, esposa do

guarda-livros do Coronel, assassina-

do por um escravo que ateou fogo

em sua casa.

O livro foi traduzido para vários

idiomas e transformou José Maria

Ferreira de Castro num dos escrito-

res portugueses mais lidos em todo

o mundo. A Amazônia, cenário da

trama, também passou a ser co-

mentada em todos os continentes.

E A Selva ainda motivaria outros

artistas que, de alguma forma, têm

em seu DNA registrado na história:

Márcio Souza é amazonense e dire-

tor do primeiro filme inspirado no

romance, em 1970, quarenta anos

depois do seu lançamento; e Leo-

nel Vieira é português e diretor do

segundo filme, finalizado em 2002,

setenta e dois anos depois do livro

rodar o mundo.

“ O romance pode até ser ficção, mas a vida que motivou a sua existência, não”

Cenas da produção de Márcio Souza. Primeiro filme inspirado no romance

44 valercultural

Page 45: Valer Cultural n2

As adaptações

Na Selva, filme roteirizado e

dirigido por Márcio Souza, deve-se

considerar as dificuldades orçamen-

tárias, técnicas e de produção para

a realização desse ou de qualquer

filme no Amazonas, naquela épo-

ca. Evidencia-se, em razão desse

quadro, a ousadia de se traduzir um

romance que foi tratado de forma

paralela no próprio livro que tem

como foco principal a aventura de

um monarca destituído de todos os

seus valores sociais e financeiros,

restando-lhe apenas a dignidade,

enfrentando e vivenciando uma

selva hostil e bárbara na visão civi-

lizada; um lugar onde a lei era a do

Coronel do seringal e a satisfação

dos prazeres, muitas vezes, ficava a

cargo de uma égua.

Esse aspecto o filme deixa claro.

Ao encerrá-lo, Márcio Souza justifica

o assassinato do Coronel pelo escra-

vo Estica, sempre humilhado, com

a interpretação do próprio escravo,

cujas falas surgem apenas no final:

“A gente mata quem não gosta de

liberdade” – um final mensageiro,

provavelmente, em razão do clima

dos anos de 1970.

Na Selva, filme dirigido por Leo-

nel Vieira, com uma produção bem

mais sofisticada, e uma linguagem

fotográfica mais apurada, o rotei-

ro mostra, de cara, um ataque de

índios a um seringueiro, buscando

Ferreira de Castro, Márcio Souza e Leonel Vieira e suas versões de A Selva

Foto

s: D

ivul

gaçã

o

Imagens da versão de Leonel Vieira, finalizada em 2002

45valercultural

Page 46: Valer Cultural n2

no ambiente selvagem o foco para

a história. Um ambiente com fatos

bem mais detalhados do que no

primeiro filme, principalmente, nas

passagens que justificam o mundo

selvagem, como: o assassinato co-

metido pelo personagem de José

Dumunt e, na sequência, o próprio

assassinato pelos capatazes do Co-

ronel, atribuída aos índios pelo se-

ringueiro mais experiente na lida,

encarnado por Chico Diaz.

Outras passagens, mais deta-

lhadas no segundo filme, foram: a

extração do látex na seringueira,

deixando claro que deveria haver

alguma habilidade para tal, e na for-

mação da própria pela (a borracha

embalada em forma oval) quando

a fumaça intoxicava o seringueiro; o

piano na casa do Coronel, um con-

traste com os rifles sempre às mãos

e o chicote à disposição; a fuga e o

resgate dos seringueiros pelos capa-

tazes; a tortura e, por fim, o detalha-

mento do próprio subnúcleo da tra-

ma romanceada, o amor entre o já

então contador, não mais seringuei-

ro, Alberto e a dona Yayá, esposa do

guarda-livros (contador) Guerreiro,

vivido por Paulo Gracindo Jr.

Mesmo sendo fiel ao livro que

ressalta mais o amor platônico en-

tre Alberto e YaYá, é provável que a

censura dos anos de 1970 tenha ini-

bido o diretor Márcio Souza a esta-

belecer, como o fez Leonel Vieira, a

diferença entre uma paixão platôni-

ca e um amor consumado, rodando

uma cena de sexo entre os aman-

tes. Numa outra sequência fica

marcada a diferença de leitura en-

tre os diretores. Na comemoração

de São João, o romance descreve

a brincadeira do boi-bumbá, muito

bem detalhado por Márcio Souza.

Mas o diretor português prefere o

forró como representação.

No final do seu filme, logo após

o incêndio criminoso que matou o

coronel Juca Tristão, o diretor Leonel

trabalha como ponto de finalização

não a fala do escravo Estica, que

apesar de querer não chegou a ser

apenado por seu crime, mas, sim

com a fala da narrativa em off (ape-

nas uma voz por trás da imagem)

que está presente em todo o rotei-

ro, numa alusão a um diário, como

classificou o livro o próprio Ferreira

de Castro. Na narrativa é dito que:

“A selva nunca mais saiu do meu

coração”, pensamento do Alberto, o

personagem central do romance.

“ A selva nunca mais saiu do meu coração”

Detalhes do set de filmagem do longa-metragem de Leonel Vieira, transformado em museu

46 valercultural

Page 47: Valer Cultural n2

Detalhes

Mas, afora o jeito de contar a

história de cada diretor, a partir da

condição financeira, profissional e

tecnológica para as produções de

cada filme, sem falar da distân-

cia entre as épocas em que foram

rodados, os roteiros seguiram a

mesma estrutura, fiel às principais

passagens da história, mas sem

aprofundamento nos detalhes ex-

postos no próprio desenvolvimento

narrativo do livro.

Ambos deixaram de lado al-

guns detalhes importantes, como o

aprendizado do ex-monarca com o

comportamento da vida da própria

selva. Ele observa que as orquídeas

são parasitárias que vivem da sei-

va de outras árvores que alcançam

o sol para alimentá-las; espanta-

-se, também, com a exuberância

da fauna e da flora, com o clima

quente úmido, com presença das

onças, jacarés e com os ataques

dos mosquitos.

Essa riqueza de detalhes se

deve, segundo analistas, porque A

selva é uma autobiografia do Fer-

reira de Castro, daí a admiração e a

luta pela sobrevivência da persona-

gem Alberto, no romance. Uma vez

que o livro continua despertando

curiosidades, é bem provável que

um dia algum pesquisador descubra

que o coronel Juca Tristão existiu de

fato e tenha morado bem naque-

las bandas onde Ferreira de Castro

escolheu para escrever seu famoso

livro, à luz de candeeiro. Mas isso é

para outro filme.

Fotos: Heitor Costa

Foto

s: S

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uze

47valercultural

Page 48: Valer Cultural n2

“O filme de Márcio Souza vai mais a fundo nas

questões postas pelo romance. Ainda que careça

de alguns elementos de ordem estética, o filme

dirigido por Márcio Souza propõe uma leitura mais

autêntica e menos leviana sobre o ciclo da borra-

cha. O de Leonel se prende a um exotismo que se

estende do texto para os planos sequência, uma

tentativa de sobrepor as lentes sobre a trama, a

fotografia desfocada da realidade narrativa”.

Márcio Braz, ator, diretor e membro do Núcleo

de Antropologia Visual (Navi) da Ufam.

48 valercultural

Page 49: Valer Cultural n2

O historiador Abrahim Baze lançou, em 2012,

pela Valer Editora, a terceira edição de Ferreira de

Castro – Um imigrante português na Amazônia. O

livro, sobre a vida e a obra do autor de A Selva,

além de revista e ampliada, conta com um DVD

do longa-metragem dirigido por Márcio Souza em

1972. A cópia foi restaurada a partir de originais

em película 35mm.

As obras literárias sempre atraíram ci-

neastas do mundo inteiro e de várias cor-

rentes do neorrealismo italiano à novelle

vougue francesa, até Hollywood se ren-

deu aos livros, produzindo, entre outros,

clássicos como Ben Hur (Lewis Wallace).

No Brasil, O Primo Basílio (Eça de Quei-

rós), Macunaíma (Mário de Andrade), a

A Dama do Lotação (Nelson Rodrigues);

Elite da Tropa (Rodrigo Pimentel, Luiz

Eduardo Soares e André Baptista) que

nos cinemas ficou Tropa de Elite; O que

é Isso, companheiro (Fernando Gabeira),

Memórias póstumas de Brás Cuba (Ma-

chado de Assis), Cidade de Deus (Paulo

Lins) todos foram transformados em fil-

me de bom gosto, tecnicamente corretos

e de algum sucesso de bilheteria.

49valercultural

Page 50: Valer Cultural n2

literatura e esporte

Tite, o conselheiro

literárioCampeão da Libertadores 2012,

técnico do Corinthians costuma

indicar livros aos jogadores

Leandro Curi | jornalista

Os suspenses da inglesa Agatha

Cristie nortearam sua adoles-

cência e despertaram a paixão

pela leitura. Mas foram as au-

tobiografias e os livros sobre (ou de) grandes

esportistas que conquistaram os olhos de Tite.

Campeão da Copa Libertadores da América

de 2012 com o Corinthians, o técnico foge do

senso comum entre os colegas de profissão. E

com a mesma intensidade que comanda um

treinamento, ele se dedica a esse hábito.Em

uma era cada vez mais ligada à tecnologia e

à facilidade das redes sociais, Tite foge dos

140 caracteres do Twitter e mergulha em pá-

ginas e mais páginas de livros. Costuma ler

um atrás do outro. Sem pausa. Na contramão

da super-

f ic ia l ida-

de, muitas

vezes inerente ao futebol, o técnico gosta de

se aprofundar mais nos pensamentos. Afinal,

desde os tempos de escola ele é provocado

a isso.

“Desde adolescente tenho o hábito de

leitura. Fui incentivado na escola, fascinado

pela leitura dos livros de Agatha Cristie e im-

pressionado também pela capacidade que

um professor meu tinha de argumentação e

convencimento. Um dos livros que mais gos-

tei nessa época foi ‘Como Fazer Amigos e In-

fluenciar Pessoas’, do Dale Carnegie”, explica

o comandante corintiano.

50 valercultural

Page 51: Valer Cultural n2

Fotos: Marcos Ribolli

51valercultural

Page 52: Valer Cultural n2

Fazer amigos e influenciar pessoas, realmente, tem

muito a ver com a profissão de Tite, que foi jogador de

futebol de 1978 a 1989. Logo que encerrou a carreira,

precocemente por conta de um problema no joelho,

ele enveredou na carreira de treinador. Fez, sim, mui-

tos amigos. E, claro, influenciou jogadores. Do contrário,

não teria chegado tão longe nesses mais de 20 anos.

Prática comum no estilo Tite de treinar, as indicações

de leitura aos jogadores ficaram ainda mais evidentes

quando ele aceitou dirigir novamente o Corinthians, se-

gundo clube mais popular do Brasil. Seja em momentos

decisivos ou mais delicados, o treinador sempre tem

uma sugestão motivadora retirada de um livro.

“Presenteá-los com um livro ou fazer alguma citação

de experiências semelhantes são, por mim, bastante

utilizados. Esta prática vem desde o início da carreira”.

“Nunca Deixe de Tentar”, de Michael Jordan, ex-jo-

gador de basquete norte-americano, é um dos livros de

cabeceira de Tite. Principalmente quando ele quer tirar

algum ensinamento ou conselho para os seus jogado-

res. Embora acredite que esse hábito é muito importan-

te dentro dos grupos que comanda, o treinador não tem

a pretensão de fazer com que os atletas leiam mais.

Perfil

Gaúcho de Caxias do Sul, Tite nasceu no dia

25 de maio de 1961. Aos 51 anos, o atual técni-

co do Corinthians acumula em seu currículo mui-

tas vitórias. São nove títulos como técnico. Os

principais deles foram a Libertadores de 2012,

com o Corinthians, o Brasileirão do ano passado,

também pelo Timão, a Copa Sul-Americana de

2008, pelo Internacional, e a Copa do Brasil de

2001, no comando do Grêmio.

Como jogador, Tite foi volante. Jogou de

1978 a 1989. Sua carreira foi curta em razão

de um problema no joelho. Em sua carreira de

atleta, ele passou por clubes como Caxias, Es-

portivo-RS, Portuguesa e Guarani, onde foi vice-

-campeão brasileiro de 1986, perdendo a final

para o São Paulo.

Há mais de 20 anos atuando como técnico,

Tite passou pelos seguintes clubes: Guarany de

Garibaldi, Caxias, Veranópolis, Ypiranga de Ere-

chim, Juventude, Grêmio, São Caetano, Atlético-

-MG, Palmeiras, Internacional, Corinthians e Al-Ain

e Al-Wahda, ambos dos Emirados Árabes Unidos.

Foto

s: M

arco

s Ri

bolli

52 valercultural

Page 53: Valer Cultural n2

TÍTULOS COMO TÉCNICO

Copa Libertadores da América 2012, Campeonato Brasileiro de 2011, Copa Sul-

Americana de 2008,Copa Suruga Bank de 2009, Campeonato

Gaúcho da Segunda Divisão em 1993,Campeonato Gaúcho de 2000, 2001 e

2009 e Copa do Brasil de 2001.

Seleção de Tite

• Cestas Sagradas, de Phil Jackson

Mourinho, a Descoberta Guiada, de Luís Lourenço

Valdano, Sueños de Futbol, de Carmelo Martin

A Linguagem das Emoções, de Paul Ekman

O Enigma da Preparação Física de Futebol, de Elio

Carraveta

Hablemos de Futbol, de Roberto Perfumo

Nunca Deixe de Tentar, de Michael Jordan

“O hábito da leitura é muito individual. Mas os livros

falando de esporte, em uma linguagem clara, direta,

são mais aceitos”, acrescenta o técnico do Corinthians.

Dono de um estilo bem diversificado de leitura

(aceita sugestões até mesmo da filha Gabriele, ainda

adolescente), Tite não acredita que a era da internet

tenha afastado o hábito de leitura dos brasileiros. Por

outro lado, o técnico do Corinthians aposta na evolução

da educação como melhor caminho para convencer as

crianças e os jovens a tomarem o gosto por ler.

“A melhoria da educação do país, de forma geral,

vai naturalmente aumentar o nível cultural, já com a

leitura inserida nesse contexto”, afirma Tite.

Nada mais natural do que um fã de livros como

o técnico querer escrever um livro. A ideia ainda pas-

sa por um processo de amadurecimento na cabeça de

Tite. O tema, no entanto, é certo: futebol. Quer mais

detalhes? Ele não dá!

“Vou escrever, sim, mas terei dificuldades com a mi-

nha verdade”, finaliza o técnico, mostrando que gosta

mesmo dos suspenses de Agatha Cristie.

53valercultural

Page 54: Valer Cultural n2

regionalismo

Liége Albuquerque | jornalista

O segredo do sucesso de Amazonês – expressões e

termos usados no Amazonas –, o livro mais vendido na

1.ª Bienal do Livro do Amazonas

Legítimo dizer do caboclo

54 valercultural

Page 55: Valer Cultural n2

Há definições tão hilá-

rias no Amazonês –

expressões e termos

usados no Amazonas,

do professor Sérgio Freire (Editora

Valer), que você esquece que está

consultando uma palavra e desanda

a ler tudo como se estivesse com

um bom livro de comédia. A obra é

feito para consulta, ou seja, um di-

cionário para entender o que signi-

ficam algumas expressões curiosas

e enraizadas no dizer do legítimo

caboclo amazonense.

A consulta era “embiocar”, daí

encontra-se o “e olhe olhe” e o in-

defectível “égua” e não dá para dei-

xar o livro de lado. O verbete “égua”

vem com uma explicação bastante

esclarecedora, já que quem convi-

ve com típicos amazônidas ouve

a expressão para tudo quanto é

coisa. “Égua pode ser usado em

várias situações. Tomou um susto:

‘égua!’. Alguém faz algo que você

não entendeu: ‘égua...’. Uma situa-

ção estapafúrdia? ‘Éééééguaa, ma-

Legítimo dizer do caboclo

ninho...’. A entonação faz parte do

sentido”.

Não à toa foi o mais vendido na

1.ª Bienal do Livro do Amazonas,

que ocorreu em Manaus, em abril

deste ano. “Comprei para levar para

meus amigos em São Paulo, onde

estudo, que adoram minhas regio-

nalidades no falar”, disse a estudan-

te de Design Larissa da Mata Souza.

“Nossas diferenças no falar, pelo

menos entre meus amigos, não é

motivo de gozação, embora a gente

“ Comprei para levar para meus amigos em São Paulo, onde estudo, que adoram minhas regionalidades no falar”

55valercultural

Page 56: Valer Cultural n2

dê muita risada, mas o sentimento

é de curiosidade mesmo”.

O livro surgiu de um trabalho

que Sérgio Freire fez no doutorado,

na disciplina Sociolinguística, e o ar-

tigo que deu origem a ele está na

primeira parte do livro. Em sua intro-

dução, o professor destaca que, por

tantas diferenças, alguns linguistas

já ousam chamar o português de

língua brasileira. “São línguas com

materialidades tão distintas que, ao

instalar um programa no computa-

dor, por exemplo, há a opção para

ambos os idiomas como se fossem

dois, porque de fato o são”, diz.

E essas fronteiras linguísticas são

muito tênuas e móveis: o amazo-

nês se mistura ao falar paraense, ao

gauchês, ao baianês. Mesmo assim,

não impediu que o autor recebes-

se reclamações de gente de outros

Estados requisitando a paternidade

dos verbetes.

“É bobagem reclamar a natura-

lidade dos termos. Recebi até um

e-mail meio agressivo, como se eu

houvesse roubado uma coisa sua,

de um paraense. Ele não deixa de

ter razão. Também era linguagem

dele, além de minha”, destaca. “O

dicionário não é para dizer que isso

é nosso, mas que é significativo

aqui”.

Coleta

Para compor o dicionário, o au-

tor coletou dados nas seis zonas

geográficas de Manaus. O interior

foi parcialmente coberto com ajuda

2.000O dicionário tem em

torno de dois mil

verbetes, distribuídos

em 109 páginas.

de amigos ou parentes que moram

nos municípios, em e-mails. O autor

já estuda uma segunda edição, cer-

tamente mais rica, com expressões

do interior, já que a caixa de e-mail

do autor está sempre cheia de cola-

boradores anônimos.

Há exemplos de como se chama

o “sacolé” dos paulistas no Amazo-

nas: em Parintins é “flau”, mas em

Manaus é “din-dim”. Há ainda a

possibilidade de a segunda edição

ser trabalhado um dicionário etimo-

O autor usa o nome de

amigos e familiares em

vários verbetes. Como na

palavra “a própria”, onde

brinca com o nome da

irmã, Ana Paula Freire.

“A Ana Paula comprou

um perfume francês e

chegou aqui se sentindo

a própria”. Em tempo:

a própria significa, em

amazonês, a tal, a boa, a

melhor.

CURIOSIDADE EM NÚMEROS

“ É bobagem reclamar a naturalidade dos termos”

Foto

s: H

eito

r Co

sta

56 valercultural

Page 57: Valer Cultural n2

Título: Amazonês – expressões e termos usados no Amazonas – 2.ª ed.

Autor: Sérgio Freire

Editora: Valer

Gênero: Dicionário

lógico. “Mas é algo que demanda

uma equipe, provavelmente nosso

grupo de pesquisa na Universidade

Federal do Amazonas (Ufam) assu-

mirá essa tarefa”.

Na pesquisa, o professor detec-

tou que a predominância da lin-

guagem do amazonês na capital é

mais percebida nas áreas de menor

poder aquisitivo e de menor acesso

aos bens sociais. Curiosamente, a

identificação positiva aparece muito

mais nos falantes de uma faixa eco-

nômica mais privilegiada e, a nega-

tiva, mais comuns entre os falantes

nas zonas mais pobres.

“Apesar de fazer uso da lingua-

gem local com mais frequência,

ser identificado como ‘caboco’ traz

imediatamente uma sensação de

negação identitária, como se essa

identidade ‘ruim’ devesse se apa-

gada ou dissociada de si”. O reca-

do na linguagem padrão é: “Não é

bom falar como eu falo porque isso

lembra que eu sou o que eu sou,

morador da periferia sem acesso

aos aparelhos sociais”.

Sérgio levanta ainda a necessida-

de de a história das raízes do falar

caboclo precisar ser preservada e

ensinada em sala de aula para não

morrer. “Ao aluno deve ser propor-

Sinopse: O livro traz expressões populares

no linguajar tradicional do caboclo, trazido

para a capital e difundido pelo país.

Tem termos enriquecidos com frases

de exemplos bastante elucidativos e

FICHA TÉCNICA

engraçados, como no verbete

“Ficar de bubuia: ficar sem fazer

nada, ficar flutuando na água. ‘E aí,

Zé, nadando um pouco?. Não. Tô só

aqui de bubuia um pouquinho”.

cionado o acesso à língua padrão

e cabe à escola essa experiência.

É pela língua padrão que ele aces-

sa bens culturais que ampliam seu

espaço de cidadania. A escola não

deve se furtar a tal tarefa sob pena

de ser uma escola excludente”.

Sérgio Freire, um sociolinguista interessado no amazonês

57valercultural

Page 58: Valer Cultural n2

A antiepopeia dos

Escrito na cidade de Ega (atual Tefé), pelo mi-

litar português Henrique João Wilkens, em

1785, o poema épico Muraida não apenas

inaugura a literatura que, a partir de então,

se produziu no Amazonas, como também apresenta e

defende a atuação do colonialismo contra as populações

indígenas.

Trata-se, na verdade, de um poema épico, não de

uma epopeia, posto o texto de Wilkens não trabalhar

motivos enraizados na memória popular nem tratar de

um herói excepcional, que se destaque por suas quali-

Marcos Frederico Krüger | professor e escritor

literatura

58 valercultural

Page 59: Valer Cultural n2

dades nos combates ou pela nobre-

za de caráter.

De que trata, afinal, o poema

do militar luso? Trata, segundo o

que ali se expressa, da pacificação

e cristianização dos índios muras,

que povoavam, originalmente, o rio

Madeira, mas que, perseguidos pe-

los colonizadores, buscaram refúgio

no Solimões. Podemos, no entanto,

traduzir essa “verdade” em outras

palavras: a Muraida trata da acul-

turação e escravização dessa etnia.

Durante a colonização, os por-

tugueses enfrentaram sérias resis-

tências da população autóctone. O

exemplo mais significativo foi a re-

volta de Ajuricaba, herói dos ma-

naus, ocupantes do rio Negro, na

primeira metade dos anos 1700.

Já os muras não davam trégua aos

brancos em outras partes do ter-

ritório.

Como característica marcante da

obra de Wilkens, salientamos o fato

de ela ser um poema camoniano,

como o foram outros poemas épi-

cos pertencentes ao cânone da li-

teratura brasileira: Prosopopeia, de

Bento Teixeira, datado de 1601, e

Caramuru, do frei José de Santa Rita

Durão, de 1781.

Ser camoniano significa, inicial-

mente, obedecer à estrutura do

poema Os Lusíadas, de Luís de Ca-

mões. As estrofes possuem oito ver-

sos e as rimas se dispõem segundo

o esquema abababcc (a chamada

oitava rima). A medida dos versos

também é padronizada: são decas-

sílabos, quase sempre heroicos.

Quanto ao desenvolvimento do

enredo, a Muraida é quase fiel ao

texto “original”. Assim, começa com

uma Proposição, contida na primei-

ra estrofe (Camões faz a sua nas

três estrofes iniciais). Depois, vem

a Invocação (estrofes 2 e 3). Se o

poeta do Renascimento invoca as

A antiepopeia dos Tágides, musas do rio Tejo, Wilkens

é bem menos criativo, pedindo o

favor da inspiração a Deus (ou ao

Espírito Santo):

Mandai raio da Luz, que comunica

A entendimento, acerto verdadeiro,

Espírito da Paz!

Em seguida, começa a Narração

propriamente dita. Falta ao poema

amazônico o oferecimento, que

no texto de Camões, vindo antes

da parte narrativa, se situa entre

as estrofes 6 e 18, do Canto I. Na

Muraida, o Oferecimento está fora

Vista da cidade de Tefé retratada por Edouard Riou para a edição

Le Tour du Monde, Paris, 1867

59valercultural

Page 60: Valer Cultural n2

do texto, constando do que podemos definir

como uma extensão do título.

Portanto, logo após a Invocação, o poema

de Wilkens começa a narração, que prosse-

gue até o Epílogo, o qual pode ser situado

apenas na última estrofe (em Camões, consta

das estrofes 145 a 156 do Canto X).

Outra quebra – além da falta do Ofereci-

mento – em relação às diretrizes “impostas”

por Os Lusíadas se verifica numa estrofe que

precede cada um dos seis cantos, à qual o

autor chama de argumento. Trata-se de uma

espécie de resumo do que será desenvolvido

naquele canto.

A falta da matéria épica fez o texto sobre

os muras ser bastante reduzido: Os Lusíadas

compõem-se de 1.102 estrofes e 8.816 versos;

a Muraida, de 134 estrofes e 1.072 versos.

Wilkens foi também buscar na fonte ca-

moniana a inspiração para alguns episódios

de sua narrativa. Assim, o Anjo que desce à

Terra, a fim de pregar o cristianismo entre os

índios, assume a forma de um mura. Para

melhor convencer o índio a quem aparece,

ele se transmuda em um rapaz que fora víti-

ma fatal do ataque de um jacaré:

Despojo reputado, que do injusto

Fado, alimento estava destinado,

Dum Crocodilo enorme, e devorado.

Em Os Lusíadas acontece episódio seme-

lhante: quando os portugueses estão na costa

africana, o deus Baco assume a forma “dum

Mouro, em Moçambique conhecido” (Canto I,

est. 77). Com tal disfarce, influenciou o régu-

lo, com o objetivo de que ele destruísse os

navegantes.

Na epopeia do Gama, quando os nautas

estão prestes a se fazer ao mar, aparece o Ve-

lho do Restelo, que impreca contra os desco-

bridores. Camões representa, nesse episódio,

as forças conservadoras, aquelas que se man-

tinham presas a um passado que a descober-

ta do caminho marítimo para as Índias iria de-

finitivamente sepultar (Canto IV, est. 94-104).

Algo similar acontece na Muraida, quando o

evangelho está sendo pregado aos índios: um

ancião, preso aos costumes ancestrais da tri-

bo, se levanta e protesta contra as palavras

do orador (Canto Terceiro, estrofes 16 a 21):

Mas entre os Anciões, um Velho encosta

A ressecada mão, com gesto raro,

Na negra face adusta, e enrugada,

Estremado responde, em Voz irada.

Embora calcado em Camões, a leitura des-

se episódio permite estabelecer uma diferen-

ça significativa entre Os Lusíadas e a Muraida.

Na epopeia lusitana, os Mouros são sempre

vistos como os infiéis, os impuros, aqueles a

quem é necessário exterminar por não segui-

rem a verdadeira religião, o cristianismo. No

poema épico de Wilkens, no episódio do an-

cião da tribo, os vencidos (os muras) têm voz,

pois o velho índio relata todas as atrocidades

cometidas contra os de sua raça:

Grilhões, Ferros, Algemas, Gargalheira,

Açoutes, Fomes, Desamparo e Morte,

Da ingratidão foi sempre a derradeira

Retribuição, que teve a nossa sorte.

Essa passagem do texto constitui-se em

exceção, pois a ideologia que permeia a Mu-

raida é, como já afirmamos, a de proclamar

a excelência do colonialismo, estorvada pelos

ataques dos bárbaros destituídos da verdade

divina.

Capa da edição de 1993

60 valercultural

Page 61: Valer Cultural n2

O conflito principal, aquele que gera a

narrativa, não é, como se pode pensar, en-

tre os índios e os brancos, mas entre Deus e

o Demônio. Por desígnios insondáveis, Deus

resolve que os muras se tornariam cristãos e,

em consequência, estariam aptos a ganhar o

reino dos céus. Contra isso se revolta Satanás,

que não admite que esses índios, que esta-

vam sob seu poder, tivessem a possibilidade

da redenção. As razões do Demônio são as de

que os índios não eram gente e, como tal, não

poderiam ocupar o lugar que já fora dele nas

moradas celestiais, de onde fora expulso. Diz

ele aos seus asseclas (Canto Sexto, estrofe 6):

Os olhos levantai, vede essas Feras,

(Pois serem racionais, só a forma indica)

Já quase a substituir-nos nas Esferas

Celestes destinadas.

O final da luta é previsível: vence o Bem:

os índios aceitaram o cristianismo. Significa-

tivamente, o poema termina com o batizado

de “vinte infantes” muras, simbologia do que

os colonizadores consideraram uma vitória

daquele povo.

Manuscrito

Composto em 1785, o texto foi enviado

a Portugal, posto não haver imprensa na re-

gião. Foi publicado em 1819, 34 anos após a

escritura. No frontispício, havia indicações que

tornaram ambígua a autoria. Ali se lia que a

transcrição portuguesa havia sido feita pelo

padre Cypriano Pereira Alho. Tal fato gerou

interpretações equívocas, como as de que o

poema teria sido escrito, originalmente, em

língua mura ou nheengatu, a língua geral.

Além disso, a má impressão, que misturou

estrofes de cantos diversos, comprometeu o

entendimento do poema.

Somente a descoberta dos manuscritos,

no início dos anos 90 do século passado, tor-

nou possível estabelecer a verdade sobre a

primeira obra literária do Amazonas. Não só

se pôde ordenar os cantos e as estrofes tal

como os compusera Wilkens, como saber que

ela fora escrita em português. Deduz-se, en-

À edição inicial de 1819, seguiu-se a de 1993, levada a cabo

pela Biblioteca Nacional, Universidade Federal do Amazonas e

Governo do Estado, por iniciativa do escritor Márcio Souza. Nela,

foi reproduzido o manuscrito de Wilkens, além da edição feita sob

a responsabilidade de Cypriano Alho. A terceira é esta, da Editora

Valer, em seu admirável propósito de documentar e divulgar as

obras significativas de nossa cultura, já que a Muraida possui um

valor histórico inestimável.

tão, que o padre Alho usara de subterfúgio

para se apropriar da autoria da Muraida, pois

traduzir é recriar, ainda mais quando se trata

de poesia.

Alguns bons momentos de lirismo, consi-

derando-se a época em que foi escrito, se ob-

servam no texto de Wilkens, principalmente

nas comparações, como a que se lê no excer-

to abaixo (Canto Primeiro, estrofe 7):

Entre os frondosos Ramos, que bordando

As altas margens vão, de esmalte raro,

Servindo estão mil rios, tributando

Correntes argentinas, que no avaro

Seio recolhe o Amazonas.

A Ilíada, de Homero, é a epopeia cujo tí-

tulo se refere (ironicamente?) aos derrotados:

Ilíada vem de Ílion (ou Troia), a cidade inva-

dida e destroçada pelos gregos. Tal como a

epopeia homérica, a Muraida “homenageia”

no título os derrotados, aqueles que foram

destituídos de sua cultura. Mas esse é o nos-

so ponto de vista, não o do autor da obra,

que certamente julgou vencedores aqueles

que passaram a enxergar a luz da “verdadeira

religião”. Daí o subtítulo (ou complemento do

título) do poema: “O Triunfo da Fé”.

61valercultural

Page 62: Valer Cultural n2

e o sentimento do

documento

Drummond de Andrade, um

dos poetas mais conhecidos do

Brasil, morto em 1987, recebe

homenagens em todo o país

pela passagem dos seus 110

anos de nascimento. Nada mais

justo, porque sua poesia ecoa

ensinamentos, às vezes de forma

dura como a realidade, sobre os

enigmas da condição humana.

62 valercultural

Page 63: Valer Cultural n2

Mineiro de Itabira, Carlos Drummond de

Andrade nasceu em 1902. Fez prati-

camente a travessia do século que se

encerra, morrendo, em 1987, no Rio de

Janeiro. Passou a infância na cidade natal, partindo mais

tarde para Belo Horizonte, onde se iniciou no jornalis-

mo, ao mesmo tempo em que participava da vida in-

telectual, ligando-se ao grupo modernista e publicando

seus primeiros poemas.

Formado em Farmácia, o escritor dedicou-se à lite-

ratura. Durante anos colaborou em diversos jornais de

Minas e do Rio de Janeiro. Sem poder sobreviver de sua

arte, ingressou no funcionalismo público, atividade em

que se aposentou. Sua estreia aconteceu em 1930, com

o livro Alguma poesia.

Foi um dos fundadores, em 1925, do principal órgão

modernista de Belo Horizonte, A Revista. Em 1928, ao

publicar, na Revista de Antropofagia, seu célebre poe-

mundoma No meio do caminho provocou escândalo e acirrada

discussão. O texto é expressivo do caráter irreverente

que caracterizou a fase heroica do modernismo. Mais

do que uma provocação, o poema é ilustrativo de uma

das temáticas recorrentes na obra de Drummond – os

obstáculos da vida. No seu caminhar, o ser humano en-

contra muitas pedras:

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

e o sentimento do

Tenório Telles | escritor

63valercultural

Page 64: Valer Cultural n2

2

Ao refletirmos sobre os descaminhos das civilizações contem-

porâneas, não há como ignorar essa obsessão pelo imediato, pelo

fugaz em que tudo parece e nada é. Essa percepção da incons-

tância da vida, do desencontro, do agônico e do próprio absurdo

da existência não escaparam à sensibilidade poética de Carlos

Drummond de Andrade, como se depreende da leitura do Soneto

da perdida esperança:

Perdi o bonde e a esperança.

Volto pálido para casa.

A rua é inútil e nenhum auto

passaria sobre meu corpo.

Vou subir a ladeira lenta

em que os caminhos se fundem.

Todos eles conduzem ao

princípio do drama e da flora.

Não sei se estou sofrendo

ou se é alguém que se diverte

por que não? na noite escassa

com um insolúvel flautim.

Entretanto há muito tempo

nós gritamos: sim! ao eterno.

3

Sintonizado com os dramas, angústias e esperanças vividas

pelo homem contemporâneo, Drummond constrói uma poesia

articulada com seu tempo. Apesar de suas dúvidas e ceticismo,

do tom melancólico e contido de seus versos, é evidente em sua

obra o compromisso com a vida, com a condição do ser humano

no mundo. O poema “Mãos dadas” é expressivo da obstinação

do poeta diante da realidade, seu enfrentamento solitário do ab-

surdo, desesperança e solidão que corroem a alma do homem.

O texto é uma afirmação de seu inconformismo e generosidade:

Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mão dadas.

(...)

64 valercultural

Page 65: Valer Cultural n2

Foto: Divulgação

65valercultural

Page 66: Valer Cultural n2

ções que marcaram a década de 20,

em particular a crise que se seguiu à

quebra da bolsa de valores de Nova

Iorque, em 1929, e que culminou

no fim da República Velha. Sua obra

teve como pano de fundo as movi-

mentações políticas que resultaram

na implantação do Estado Novo, a

Segunda Guerra Mundial, a Guerra

Fria. Nos anos de 1960, assistiu ao

triunfo da intolerância política com

o golpe militar de 1964.

Como não se passa impune-

mente pela vida, o poeta não ficou

indiferente a esses acontecimentos.

A indignação e a consciência da ne-

cessidade de resistir à banalização

da maldade e ao triunfo da barbárie

impulsionaram Drummond a um po-

sicionamento crítico diante da reali-

dade. O escritor aderiu à causa socia-

lista, colocando sua arte a serviço da

vida, da luta contra tudo que ultraje o

ser humano. O poema “Nosso tem-

po”, do livro A rosa do povo, publica-

do em 1945, é uma evidência do seu

comprometimento social:

O tempo é a minha matéria, o

[tempo presente, os homens

presentes, a vida presente.

A produção poética de Drum-

mond tem como fundamento o

humano, perpassada por intensa

densidade existencial e profundo

conteúdo filosófico. Soube traduzir

poeticamente as inquietações de

seu tempo, os dilemas de uma épo-

ca marcada pela intolerância, pelo

vazio, ameaçadora para a vida.

4

A poesia de Carlos Drummond

de Andrade está identificada com

o espírito modernista. O autor é o

mais destacado representante da

geração que surgiu nos anos 30, da

qual fazem parte Murilo Mendes,

Jorge de Lima, Vinicius de Moraes e

Cecília Meireles.

Drummond testemunhou os

grandes acontecimentos que mar-

caram o século XX. Viveu as agita-

Este é tempo de partido,

tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,

viajamos e nos colorimos.

A hora pressentida

[esmigalha-se em pó na rua.

Os homens pedem carne. Fogo.

[Sapatos.

As leis não bastam. Os lírios não

[nascem

da lei. Meu nome é túmulo, e

[escreve-se

na pedra.

(...)

O poeta

declina de toda responsabilidade

na marcha do mundo capitalista

e com suas palavras, intuições,

[símbolos e outras armas

promete ajudar

a destruí-lo

como uma pedreira, uma

[floresta,

um verme.

Diferente dos autores do primei-

ro momento modernista, mais liga-

dos a uma postura irreverente e ex-

perimental, os poetas da segunda

geração, que se firmam na década

de 30, farão uma poesia de compo-

nente reflexivo. Suas obras refletem

uma profunda preocupação com o

sentido da existência humana, o

confronto do homem com a reali-

dade, expressivo de seu estar-no-

-mundo. Esse modo de perceber a

vida explica o conteúdo existencial

que perpassa a poesia dessa gera-

ção: Não, meu coração não é maior

que o mundo. / É muito menor. /

Nele não cabem nem as minhas

dores. / Por isso gosto tanto de me

contar.

66 valercultural

Page 67: Valer Cultural n2

5

A poesia de Carlos Drummond

é um testemunho vívido e humano

sobre a vida e sua época. A leitura

de suas obras deixa evidente sua

inquietude e irresignação diante da

realidade. Suas posições em face

dos problemas que marcaram seu

tempo.

Há escritores que não se lê

impunemente. Drummond é um

desses autores. Seus poemas são

prenhes de questões, nos fazem

pensar sobre o sentido de nossas

vidas. Dentro de uma perspectiva

didática, é possível determinar cer-

tas margens de sua produção poé-

tica. Os temas mais constantes em

sua obra.

O desajustamento do indivíduo é uma marca fundamental de

sua poesia. O poeta se sente um ser à margem, deslocado de seu

tempo, um gauche, alguém que está à esquerda, isolado, como

se depreende dos versos do “Poema de sete faces”:

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser ‘gauche’ na vida.

(...)

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

(...)

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

O menino Carlos Drummond, em Itabira, e com a família em 1915

Foto

s: D

ivul

gaçã

o

67valercultural

Page 68: Valer Cultural n2

Esse sentimento de fragilidade e impotência diante

de seu próprio existir-no-mundo, perpassado por um

tom melancólico, é característico de seu discurso po-

ético. Em alguns poemas, como “Confidência do itabi-

rano”, é expresso de forma nostálgica, em que recom-

põe por meio da memória a infância, a família, o pai,

a cidade. O passado projeta-se, de forma dolorosa, no

presente:

Alguns anos vivi em Itabira.

Principalmente nasci em Itabira.

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.

Noventa por cento de ferro nas calçadas.

Oitenta por cento de ferro nas almas.

E esse alheamento do que na vida

[é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,

vem de Itabira, de suas noites brancas,

[sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,

é doce herança itabirana.

(...)

Tive ouro, tive gado, tive fazenda.

Hoje sou funcionário público.

Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!

6

A poesia de Drummond afirma-se pela riqueza te-

mática. Sua obra é como um caleidoscópio em que o

rosto estilhaçado do tempo se reflete, a vida em seu

escoar contínuo. Captura no cotidiano a matéria com

que compõe as malhas de seu canto.

Nada escapou ao seu olhar gauche, nem mesmo

o fazer poético. É recorrente em seus textos a reflexão

sobre a poesia, a linguagem, a magia de transformar

o silêncio em canto, desnudando a face das palavras.

A metalinguagem é um traço marcante de sua arte. O

poema “Procura da poesia” é ilustrativo de sua alqui-

mia poética:

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

Há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

(...)

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

Tem mil faces secretas sob a face neutra

E te pergunta, sem interesse pela resposta,

Pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Percebe-se assim que o fazer poético não é o exercí-

cio da inocência, do transbordamento de desordenadas

emoções. A poesia é o espelho estilhaçado em que se

reflete o mundo, a vida. Ao contemplá-lo, o poeta captu-

ra os fios evanescentes com que tece as malhas de seu

canto. É um diálogo com o ser, com a alma fraturada dos

homens. Como dizia o filósofo Martin Heidegger, em seu

belo estudo sobre a poesia de Hölderlin: A linguagem

68 valercultural

Page 69: Valer Cultural n2

originária, porém, é a poesia na

sua qualidade de instituição do ser.

7

Drummond decifrou o enigma:

a vida é uma miragem, um fio par-

tido entre o silêncio e o abismo. Rio

que caminha para o vasto mar da

memória. É inevitável em seu fluir

corrosivo e nada escapa à voraci-

dade do tempo. Tudo sucumbe ao

destilar contínuo de suas águas. Re-

sistir é o que nos resta – dizer não à

vulgaridade, à morte da esperança,

ao poder e à mentira. Defender a

vida do lobo que a espreita avida-

mente. Ou como diz o poeta:

Alguns, achando bárbaro o

[espetáculo,

Prefeririam (os delicados)

[morrer.

Chegou um tempo em que não

[adianta morrer.

Chegou um tempo em que a

[vida é uma ordem.

A vida apenas sem

[mistificação.

Foto: Divulgação

69valercultural

Page 70: Valer Cultural n2

gastronomia

70 valercultural

Page 71: Valer Cultural n2

um prato multicultural

É como a Yosakoi Soran, a dança

japonesa para todas as idades, e está

disponível em vários sabores, diferentes

lugares, na forma tradicional do Oriente e

reinventado no Ocidente. O temaki pede

passsagem para unir culturas.

Típico da culinária japonesa, o temaki invadiu o mundo.

Entrou mansamente para tornar-se, na atualidade, um

dos alimentos mais festejados nas diferentes regiões da

Terra – dos Estados Unidos a Manaus (AM). A grande

viagem faz percursos parecidos a de outras iguarias de tantos

povos que, por diferentes motivações, deixaram sua terra natal

para viver em outros lugares. São receitas escritas ou decoradas,

recriadas. Ora viajam nas mãos de seus donos, em pedacinhos de

papéis colocados nos bolsos, entre as páginas dos livros ou entre

os documentos mais pessoais; ora são reveladas no reavivamen-

to do acervo escondido nas memórias dos viajantes.

Essas receitas são identidades ou fragmentos delas refirman-

do culturas, resistências, aproximando-as, revelando-as, rein-

ventando-as como resultado da simbiose da existência humana.

Ivânia Vieira | jornalista

Foto

: Shu

tter

stoc

k

71valercultural

Page 72: Valer Cultural n2

É assim com

o temaki, um

alimento feito lite-

ralmente à mão, como

manda a tradição japone-

sa. Aliás, é isso que a expressão,

na tradução mais geral, significa: Te =

mão; maki = enrolado. É um sushi em forma

de cone, parecido, apenas na forma, com os cas-

calinhos de sorvete, também amado por milhares de

consumidores.

Em Manaus, as temakerias são um termômetro do

interesse, principalmente, por parte dos jovens, por

essa iguaria. São espaços elevados à categoria de point

(o ponto) e, como um bom negócio, os donos dessas

casas diversificam o serviço para ganhar mais clien-

tes. É possível, na cidade, saborear um temaki em am-

bientes agradáveis, frutos de composições das culturas

oriental e ocidental e, se não há tempo de ir até eles,

o consumidor pode pedir. O delivery (entrega) cresce

junto com o sucesso do alimento.

A arte da recriação

Do temaki tradicional do Japão ao temaki mundia-

lizado há diferenças importantes. Para uma parcela de

japoneses, o que se comercializa em vários países oci-

dentais como temaki não é temaki. O tradicional é feito

apenas com alga, arroz, verdura e sashimi (filé muito

fino de peixes crus), explica o vice-cônsul-geral do Ja-

pão em Manaus, Hiroaki Aizawa.

A americanização da iguaria está envolta no pro-

cesso de migração. Aizawa afirma que tanto os japo-

neses que se deslocaram para outros lugares, como os

EUA, quanto os estrangeiros que foram para o Japão

reconstruíram o temaki a partir daquilo que era dis-

ponível para eles, do hábito alimentar e do desejo de

reinventar que move a humanidade.

Hoje, o temaki mundializado tem hambúrguer com

molho adocicado, queijo, filé de frango. E é esse mo-

delo multicultural que a geração mais jovem do lado

ocidental aprecia. Com ele crescem as rodadas de con-

versas em torno da cultura japonesa e muitos jovens se

descobrem motivados a saber sobre Mangá (quadrinho

japonês de grande sucesso), Sumiê (pintura japonesa

com tinta monocromática à base de carvão e água),

língua japonesa...

É recorrente encontrar o sushi (no modo tradicional

feito de arroz com vinagre levemente doce) com frutas,

entre elas, manga, afirma Sandra Nagase, assistente ad-

ministrativa do Setor Cultural do Consulado do Japão em

Manaus. O sushi está de volta para o Japão, levado pelos

japoneses que moram ou moravam nos Estados Unidos,

mas com um jeito americano e, no Japão, muitas pesso-

as gostam desse novo arranjo, exemplifica Nagase.

Dados do Consulado mostram que há um interes-

se crescente, em Manaus, pela culinária japonesa, com

participação expressiva de homens. Também despon-

tam entre os cursos mais procurados os de artesana-

to, esse bastante demandado pelas mulheres. Sandra

Nagase lembra que a oferta de cursos sobre a culinária

japonesa é uma orientação do Governo japonês desde

os anos de 1980. Neste século, os cursos oferecidos

pelo Consulado reúnem turmas de 25 pessoas, e o per-

fil tem sido o de homens, donos de restaurantes de

comida a quilo.

Ler e comer

Carlos Eduardo Oshiro é um jovem em-

presário e consultor de empresas em Manaus

(AM), onde mora desde 1995. Formado em

Administração com especialização em Marke-

ting, viveu, durante três meses, no Japão, como

Foto

: Div

ulga

ção

72 valercultural

Page 73: Valer Cultural n2

dekassegui. A VALER CULTURAL conversou com Oshiro so-

bre literatura e culinária. A seguir a entrevista:

A literatura japonesa incentiva a expansão e a di-versificação da culinária japonesa?

Oshiro: Acredito que seja ao contrário. Ao provar a culi-

nária japonesa, os jovens passam a se interessar

pela cultura e buscam aprofundamento no tema por

meio de livros e de outras informações.

Qual é o bom negócio nessa mistura (literatura e culinária)? Tem exemplos?

Oshiro: A culinária no Japão é aliada à leitura. Muitos

restaurantes e bares disponibilizam revistas e livros

em seus locais para que as pessoas possam se en-

treter.

O senhor tem um indicador de que os jovens estão buscando mais esses espaços como ambiente de encontro?

Oshiro: Em Manaus, as temakerias têm atraído os jo-

vens, mas não tenho conhecimento de locais que

possuam literatura unido a isso. Desconheço essa

mobilização.

Mangá e culinária têm uma estrada longa e boa nesse mundo globalizado?

Oshiro: O Mangá tem um público específico que curte

esse tipo de leitura. Mas ainda é muito restrito no

Brasil.

Como situa o papel das temakerias na atualidade?Oshiro: As temakerias sofreram um boom em nossa

região e se tornaram mais uma opção de alimenta-

ção para o brasileiro. Em consequência elas ajudam

a divulgar a culinária japonesa, apesar de o temaki

ser uma adaptação para a culinária brasileira.

A temakeria Yoi Roll’s & Temaki

(bom, em português) é a pioneira

nesse nicho de mercado gastronô-

mico japonês, e, de acordo com o

dono do negócio, Bruno Joffeti Tino-

co, 29, é a única a ser franqueada

para vender o tradicional temaki. A

Yoi está em Manaus há três anos e

meio, funciona diariamente, a partir

das 12h, e, aos domingos, das 18h.

As temakarias ou temakerias

(as duas formas são aceitas) no Su-

deste do país são hoje um lugar-

-referência de encontro de jovens,

afirma Bruno. Em Manaus, o em-

presário percebe um público ecléti-

co (jovens e adultos) frequentando

o espaço que ele comanda. Trata-

-se de um público de classe mé-

dia e alta, aponta. O preço médio

do temaki é de R$ 12,50. A média

de gasto por cliente – um temaki e

uma bebida – é de R$ 30.

Na loja de Tinoco, os produtos

são importados do Japão, inclusi-

ve o arroz. Nesse lugar, o temaki

é o carro chefe, mas os clientes

também podem encontrar ou-

tras iguarias da culinária japonesa

como sushi, sashimi, e também

saladas e hot house. A maioria dos

frequentadores desse espaço é de

brasileiros. A ligação cultural é feita

pelo temaki.

Foto

: Div

ulga

ção

73valercultural

Page 74: Valer Cultural n2

ensaio | Raphael Alves

74 valercultural

Page 75: Valer Cultural n2

Daniela de Tofol | jornalista

O interesse pelo ser humano parece ter

despertado em Raphael Alves bem antes

que a própria paixão pela fotografia. Ain-

da criança gostava de observar as pesso-

as e ver como interagiam com seu meio, como se com-

portavam no trabalho, na rua. Sabendo disso, não fica

difícil entender o que há nas entrelinhas das imagens

do ensaio “Quando as águas...”, de autoria do fotógra-

fo, nascido em Manaus-AM. Com fortes traços de an-

tropologia visual, o ensaio traz as impressões pessoais

de Raphael Alves sobre o ser humano que precisa se

adaptar ao ciclo das águas dos rios da bacia amazônica.

Trata também da necessidade daqueles que precisam

driblar problemas como a falta de saneamento básico

e de estrutura em moradia. Mais que isso, abre ainda

debate sobre uma capital e uma pretensa região me-

tropolitana que agoniza em termos de organização. O

projeto, que traz até agora fotos da cheia que já atingiu

a marca recorde de todos os tempos no Amazonas, vai

se estender também pelo período de vazante dos rios.

75valercultural

Page 76: Valer Cultural n2

Outra característica do ensaio é a constante procura do fo-

tógrafo – característica marcante em toda sua obra – por criar

laços com o assunto, deixando de ser mero observador para

ocupar a posição de parte no processo de reportagem-foto-

gráfica. A imagem da criança com os pés dentro d’água na

rua Frei José dos Inocentes que observa curiosamente e quase

de ponta-cabeça o trabalho de Raphael, ou olhar natural da

senhora que segura uma imagem de Jesus Cristo em frente

à sua casa alagada na vila do Cacau Pirêra, são indícios de

como o fotógrafo cativa o observador a participar das suas fo-

76 valercultural

Page 77: Valer Cultural n2

Com a maior parte dessas caracterís-

ticas – que ultrapassam o campo das es-

colhas, justamente por sua naturalidade

– é quase inevitável questionar Raphael

sobre a mensagem que almeja levar. Para

o fotógrafo, muito mais que a apresen-

tação de uma opinião pessoal, fotografar

é levantar debates. “Ficaria satisfeito se

soubesse que meu trabalho está ao me-

nos gerando debate. Não quero empur-

rar uma opinião pronta. Procuro, em vez

disso, uma mensagem inacabada, que

não seja uma receita pronta para o es-

pectador do meu trabalho. Se eu tivesse

a pretensão de produzir uma mensagem

fechada, sem frestas ou arestas a aparar,

automaticamente excluiria o observador

do debate. E eu quero sempre ter o es-

pectador como parte fundamental deste

diálogo”, encerra.

tografias, refletindo sobre a vida de cada

personagem após disparar o obturador de

sua Leica analógica.

Para obter imagens como essas, Ra-

phael optou por lentes curtas (35mm e

50mm), conforme o próprio Raphael Al-

ves explica. “O tipo de trabalho que al-

mejo fazer – não somente neste ensaio

– requer que eu interaja com as pessoas.

Gosto de trabalhar com distâncias focais

curtas porque me aproximam do meu as-

sunto. Se pudesse gravar tudo no olho, o

faria. Mas como a câmera e lentes são

ferramentas necessárias, gosto que am-

bas sejam compactas. Sobre a escolha

pelo analógico, gosto do filme por me

fazer pensar mais antes de fazer uma

imagem. No digital, se eu ficar insatisfei-

to com uma imagem, basta apagá-la. No

filme, preciso pensar mais, do contrário

perco um quadro a cada imagem mal

executada”, diz.

77valercultural

Page 78: Valer Cultural n2

acordes

Profissionais da música formados pela Universidade do

Amazonas têm mercado no Brasil e no exterior

Para músicos profissionais e estudantes da

Universidade do Estado do Amazonas, a UEA

Sinfônica é a realização de um sonho antigo

de professores e alunos da Escola Superior

de Artes e Turismo (Esat/UEA), que já formou 75 mú-

sicos “preparados para o mercado de trabalho no Brasil

e no exterior”, explica o reitor José Aldemir de Oliveira,

para quem “a sinfônica cria oportunidades para os jo-

vens conhecerem, de fato, a rotina de um músico pro-

fissional, muito diferente da imagem glamourosa que

se divulga”, enfatiza o professor.

O maestro Zacarias Fernandes afirma que a rotina

de exercícios diários, a exigência de disciplina e o con-

tato permanente com regras de postura profissional se-

rão decisivos na formação pedagógica dos estudantes.

Márcia Costa Rosa | jornalista

UEA afina

78 valercultural

Page 79: Valer Cultural n2

Foto

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79valercultural

Page 80: Valer Cultural n2

“A sinfônica significa, para nos-

sos alunos, a integração de técnica,

postura e exercício, e isso fará a di-

ferença na formação desses meni-

nos”, explica o maestro, decidido a

manter a harmonia entre o clássico

e o popular na preparação do reper-

tório das apresentações que, desde

a estreia, arrancam aplausos demo-

rados de plateias lotadas.

Durante a sua existência, fo-

ram apenas três concertos, em dois

meses de atividades, em 2011. Po-

rém, tempo suficiente para que a

UEA Sinfônica mostrasse a força de

seus acordes para diferentes públi-

cos, que, em termos de aprovação,

igualaram-se na aprovação da Sin-

fônica formada por professores e

estudantes, e criada com a função

de ser um instrumento a mais na

formação acadêmica dos alunos do

Curso de Música que comemorou os

dez anos de criação da UEA, no ano

passado.

Arte por natureza

Para Margarita Chtereva, maes-

trina e professora de Violino da UEA,

a criação da Sinfônica representa

muito mais do que a realização de

um sonho. “É impressionante como

aqui a arte está em todo lugar. O

povo amazonense é artista por na-

tureza e vocação. Nunca vi isso em

lugar algum do mundo. E a criação

da sinfônica vai proporcionar um fu-

turo brilhante para a vida profissio-

nal dos nossos alunos, porque é um

momento no qual eles estão apren-

dendo muito em termos de técnica,

repertório e até de comportamento

artístico”, comentou. Chtereva, na-

tural da Bulgária, está há 14 anos

em Manaus, dez dos quais “vividos

dentro da UEA”. Ela também atuou

em outros países da Europa, nos Es-

tados Unidos e na China.

O estudante do oitavo período

de Licenciatura em Clarinete, Ema-

nuel Vasconcelos, concorda com a

professora Margarita. Aos 22 anos, o

jovem aluno de Música da UEA já é

um experiente profissional no mer-

cado. “Há seis anos a música é um

instrumento de trabalho para mim;

é um estilo de vida e de superação.

Estudar em uma universidade com

a credibilidade da UEA nos prepara

Margarita Chtereva, maestrina e professora de Violino da UEA

Foto

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ivul

gaçã

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EA

80 valercultural

Page 81: Valer Cultural n2

São 54 músicos sob a regência da batuta de Zacarias Fer-

nandes, para quem “a agenda rigorosa de ensaios deve ser

a mesma para professores e alunos. Na UEA Sinfônica, todos

são músicos e, como tal, devem manter a mesma postura

profissional, com o respeito que os integrantes da orquestra

merecem, sejam eles profissionais ou estudantes”, enfatiza o

maestro, que coordenou, pessoalmente, a seleção, em audi-

ção, dos 38 alunos entre cem candidatos, para a formação da

Sinfônica, na Escola Superior de Artes e Turismo, em setem-

bro do ano passado.

tecnicamente para enfrentar qualquer desafio

na nossa área, em condições de igualdade.

Além disso, contribui para a formação cultural

dessa nova geração que precisa saber ouvir

música, não apenas música clássica, mas tam-

bém as belíssimas canções da nossa região. É

uma forma de resgatar e manter viva a nossa

própria cultura”, afirma. O curso superior de

Música abriu, para ele, as portas do mercado

de trabalho “porque garante um valor extra

para o nosso desempenho profissional”.

Segundo o reitor, a Sinfônica chega à uni-

versidade como mais um instrumento de va-

lorização do curso de Música, criado há dez

anos. “Com a Sinfônica, temos uma preocu-

pação pedagógica. A gente não pensa que

o aluno de música vem aqui para aprender

música. Ele já traz um conhecimento musical

e precisa de aprimoramento e condições para

desenvolver a técnica, e aí, sim, sair qualifica-

do para o mercado de trabalho, que é muito

exigente”, explica o professor. Ele atesta que

o aluno “graduado no curso de Música da UEA

está apto a fazer, por exemplo, um concurso

ou exercer sua profissão em qualquer lugar

do mundo”.

81valercultural

Page 82: Valer Cultural n2

22.ª Bienal Internacional do Livro de

São Paulo | De 9 a 19 de agosto, no

Pavilhão de Exposições do Anhembi

Com o tema “Livros transformam

o mundo, livros transformam

pessoas”, terá três homenageados:

Jorge Amado e Nelson Rodrigues

que completariam cem anos em

2012 e a Semana de Arte Moderna

de 1922, que completa 90 anos. A

programação mescla literatura com

diversão, negócios, gastronomia e

cultura.

Feira do Livro de Frankfurt -

Alemanha – De 10 a 14 de outubro

Nesta edição, a Feira do Livro de

Frankfurt homenageará a Nova

Zelândia. O país convidado de

honra, sob o tema “Enquanto você

dormia”, vai levar à Alemanha

mais de 60 autores e 100 artistas.

E mais: promete traduzir, até

o final deste ano, 76 títulos

neozelandeses para o alemão. Em

2012, o Brasil participa da feira e

começa a se preparar já que será

o homenageado em 2013 deste

que é o maior evento do mercado

editorial do mundo.

agenda cultural

Agenda cheia de eventos literários

Foto

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82 valercultural

Page 83: Valer Cultural n2

58.ª Feira de Livros de Porto Alegre |

De 26 de outubro a 11 de novembro

na Praça da Alfândega, no Centro

Histórico de Porto Alegre

Entre as atividades já confirmadas

está o Seminário “A arte de contar

histórias”, que chega à sua 5.ª

edição e com novidade: terá a

Mostra Nacional de Contadores de

Histórias. O tema será “Escrever e

contar a literatura infantil e juvenil”.

Bienal Internacional do Livro do

Ceará | De 8 a 18 de novembro, no

Centro de Eventos do Ceará

Na sua décima edição, com o

tema “Padaria Espiritual – o pão do

espírito para o mundo”, resgatará

a história deste movimento

artístico cearense e homenageará a

Semana de Arte Moderna de 1922,

os centenários de Luiz Gonzaga,

Jorge Amado e Nelson Rodrigues

e do cantador e violeiro Joaquim

Batista de Sena.

8.ª Festa Literária Internacional de

Pernambuco (Fliporto) | De 15 a 18

de novembro, no Pátio do Carmo,

em Olinda (PE)

Com o tema “A vida é um

espetáculo”, homenageará Nelson

Rodrigues. A partir das obras do

dramaturgo, lançará um debate

sobre literatura e teatro. Entre

os convidados estão Ruy Castro,

que escreveu a biografia O Anjo

Pornográfico – A vida de Nelson

Rodrigues, o biógrafo britânico,

Barry Miles e Ariano Suassuna.

8.ª Feira do Livro de Mossoró

Quando: De 8 a 12 de agosto

Onde: Mossoró (RN)

8.º Festival Literário de Londrina

(Londrix)

Quando: De 22 a 25 de agosto

Onde: Biblioteca Pública

Municipal, no Teatro Zaqueu de

Mello, na Vila Cultural Cemitério

de Automóveis em Londrina (PR)

Feira do Livro de Brasília.

Quando: De 5 a 9 de setembro

Onde: Brasília (DF)

16.ª Feira Pan-Amazônica

do Livro

Quando: De 21 a 30 de setembro

Onde: Hangar Centro de

Convenções e Feiras da Amazônia,

em Belém (PA).

No exterior

Festival Literário de Maputo -

Moçambique

Quando: de 21 a 25 de agosto

Onde: Centro Cultural Brasil-

Moçambique

Feira Internacional do Livro de

Guadalajara – México

De 24 de novembro a 2 de

dezembro.

Informações: www.fil.com.mx

e +

83valercultural

Page 84: Valer Cultural n2

arteFo

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Mor

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Folh

apre

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84 valercultural

Page 85: Valer Cultural n2

Maria Bonomi é, hoje, reconhecidamen-

te, uma das maiores artistas brasileiras

e que tem a receptividade da crítica,

das galerias e dos museus nacionais

e internacionais. Sua obra é concebida, sobretudo, em

esculturas de madeira. Estas chamam a atenção pela

sua dimensão e pela apropriação das cores de uma

forma que não é vulgar. Mas, como todo artista con-

temporâneo, a obra não se prende apenas a um supor-

te: ela tanto se expõe na madeira como no metal, nas

instalações, na xilografia etc.

O percurso de Maria Bonomi não se inicia no Bra-

sil. Ela é italiana. Nasceu em Meina, aldeia localizada

nas margens do lago Maggiore, nas proximidades de

Milão, em julho de 1935, de mãe brasileira, Georgina

Martinelli Bonomi, e pai italiano, Ambrógio Bonomi.

Maria veio para o Brasil empurrada pela Segunda Gran-

de Guerra Mundial. Seu pai era engenheiro militar e

esteve nos campos de batalha. Em 1942, sua casa foi

invadia pelo exército alemão e foi, então, transforma-

da em centro de operações. A condição de sua mãe

permitiu que ela partisse com sua família para o Brasil.

Assim, com seis anos de idade, chega ao nosso país

aquela que seria a artista plástica Maria Bonomi, cujo

talento vem, há mais de cinquenta anos, merecendo

reconhecimento.

Apenas como reflexão sobre a condição do ser ar-

tista, chamo a atenção para alguns elementos que se

vão instalar na estrutura mental e intelectual de Maria

Bonomi. Em primeiro lugar, ela foi assaltada, durante a

infância, pelos temores da guerra. Em segundo lugar, a

condição material de sua família, ainda que como ex-

Neiza Teixeira | filósofa e escritora

85valercultural

Page 86: Valer Cultural n2

patriada, e também com uma par-

te dela que já gozava de prestígio

e de fortuna no Brasil, favoreceu

uma formação que lhe permitiria

desenvolver todas as suas possibili-

dades intelectuais, cognitivas e sen-

sitivas. Em terceiro lugar, também

como oferecimento da sua família,

ela teve a convivência, desde a in-

fância, com artistas, intelectuais e

fez uma formação artística que se

iniciou no Brasil e se prolongou na

Itália, França, Estados Unidos. Com

isso, não quero dizer que é neces-

sário ser “bem-nascido” para ser

artista, mas quero dizer que o po-

tencial de uma criança pode atin-

gir a plenitude quando o ambiente

lhe é favorável, como também a

mente de um artista se forja nos

acontecimentos que lhe abrem

perspectivas, como se se tratasse

de um choque ou da imersão do

extraordinário na sua consciência,

para ter uma percepção mais agu-

da da realidade. Não poderia, aqui,

esquecer de mencionar o nome de

Romero Britto, artista brasileiro de

origem humilde, que hoje tem seu

nome referendado e reconhecido

por qualificadas revistas de arte e é

presença nos grandes museus mun-

diais. Seria num outro contexto uma

análise digna de ser feita.

Outra discussão que hoje é co-

mum nos meios da crítica de arte

“ O potencial de uma criança pode atingir a plenitude quando o ambiente lhe é favorável”

é a contemporaneidade ou não de

uma peça. Quanto a isso, é interes-

sante referir Lyotard quando afirma

que os artistas na conjuntura atual

– a da Pós-Modernidade – traba-

lham como os filósofos, pois eles

estão em processo de reflexão para

reconhecer os critérios da arte. Por

essa via, o que se verifica é que

os critérios da Modernidade, que

orientavam, em todos os sentidos,

o nosso ver e o nosso pensar não

são suficientes ou não dão conta da

realidade que se estende a nossa

frente. Em suma, os processos de

reconhecimento da grandeza ou

não de uma obra de arte não são

facilmente reconhecíveis, restando,

todavia, os julgamentos que as-

sistimos por meio dos veículos de

comunicação de massa, a presença

das peças nas galerias e museus

mais reconhecidos do mundo, o

interesse dos colecionadores, a re-

Acima, as peças Terceiro Milênio e Metempsicose de Maria Bonomi. Ao lado, Romero Britto com uma de suas criações

Foto: Divulgação rom

erobritto.com

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Page 87: Valer Cultural n2

ferência nos livros de arte são algumas das

motivações que nos levam a olhar para uma

obra. Mas ainda gostaria de referir que alguns

critérios estabelecidos pela Modernidade, e

aqui se entende que a Pós-Modernidade não

pretende negar tudo o que foi construído,

mas principalmente reconhecer e dialogar

com o que de grande foi feito, permanecem.

Por exemplo, não se pode negar o que não

se conhece, e assim é um chamativo trilhar o

caminho do filósofo Derrida, o da desconstru-

ção. No que diz respeito ao meu julgamento,

espero sempre que uma obra se pronuncie e

que anuncie o que ela tem para dizer. Então,

espero ansiosamente que ela seja um cami-

nho de compreensão do homem e do tempo,

que ela seja, além de uma leitura, um docu-

mento, no sentido em que possa exprimir fa-

cetas ou uma faceta da nossa passagem pelo

mundo e da nossa compreensão deste. Esse

registro faz-se em todos os sentidos: no so-

cial, no econômico, no tecnológico, no lúdico,

no científico, no filosófico etc.

Além do uso da técnica, da capa-

cidade de fazer com que a obra reve-

le o que a ela cabe revelar, pode se

entender a receptividade concedida

ao trabalho de Maria Bonomi. Esta

artista, quando menina, em plena

fuga para o Brasil, fez os seus pri-

meiros desenhos conhecidos para o

livro Cobra Norato, de Raul Bopp. Aí

já mostrava as suas potencialidades

para as artes plásticas. As gravuras

ocupam um grande espaço na sua

criação, principalmente, como já foi

referido, em madeira. É nesse âmbito

que a obra de Bonomi chama muito

a atenção, pois ela utiliza-se de uma

técnica antiquíssima, provavelmente

de origem chinesa, para expressar o

seu posicionamento, o seu olhar so-

bre o mundo, o seu engajamento na

sociedade e no seu tempo. Trata-se

da xilogravura, por meio da qual tem

recebido inúmeros prêmios.

Xilogravura Trasfiguração da pomba na Broadway

Foto: Fernando Moraes/Folhapress

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Page 88: Valer Cultural n2

A obra ao lado, datada de 1970,

é uma xilogravura, cujo realce vai

para a dimensão e para as cores.

Aqui, a composição preto/verme-

lho que se poderia dizer vulgar,

todavia, é justamente esta que dá

vida e originalidade à peça. A con-

traposição preto/vermelho, a jul-

gar pelo título, é, nela, necessária:

Balada do terror. O preto, como é

sabido, é o representante, na nossa

cultura, do luto, da perda, da ausên-

cia, da dificuldade. Alguém poderia

refutar que é, também, a cor da

elegância, mas não se trata, quan-

do ele se apresenta como o vemos,

dessa compreensão. Por seu lado, o

vermelho é o significante do san-

gue, da guerra, da emoção intensa,

da explosão, do fogo. E, quando nos

remetemos ao título, vê-se que a

Balada, que significa música, dan-

ça, movimento, agitação, ou algo

que tem uma sequência ritmada,

portanto, uma duração. No presente

caso, considerando as cores, o ver-

melho, uma cor quente, e o preto,

que é a ausência de luz, portanto,

que não tem cor alguma, caindo no

abismo do nada, mostra a excitação

e o que finaliza a Balada do terror.

É ainda de se considerar que o

vermelho é a base de sustentação

da peça, o que significa que a emo-

ção é um sentimento, produzido do

exterior, que somente é compatível

em um ser-no-mundo. Quanto ao

preto, que, em forma de espiral en-

rosca-se na peça, contudo deixando

que o vermelho seja mantido como

base, pois ele não impede o percur-

so deste, se faz presente enquanto

estado passageiro, mas que gira em

volta de cada ser humano, como a

própria morte.

A última consideração que se

poderia fazer em relação a esta

peça é quanto à sua dimensão. Bo-

nomi, até mesmo acompanhando

os seguimentos da arte contempo-

Abaixo, Etnias do primeiro e sempre Brasil, no Memorial da América Latina e Estação de Metrô Jardim São Paulo.

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rânea, busca nas grandes dimensões mais um

elemento de exposição. Do mesmo modo,

poderíamos citar Serra e suas monumentais

esculturas de metais, bem como o hiper-re-

alismo, que abusam da dimensão para criar

efeitos que são “igarapés” para as nossas

análises.

Também não poderia deixar de pontuar

que a obra desta consagrada artista é uma

obra nascida no/do cenário urbano. Em qual-

quer metrópole há sempre lugar para o traba-

lho de Bonomi. Para qualquer homem que se

entenda como contemporâneo, há um reflexo

dele na obra da artista. É neste cenário que se

identifica e se faz presente a sua obra.

E para encerrar, ela é também muralista,

autora de monumentos artísticos como Etnias

do primeiro e sempre Brasil, no Memorial da

América Latina, em argila, bronze e alumínio,

onde traça a construção do homem brasileiro

e do Brasil desde a chegada do europeu. E

não se poderia esquecer a Estação de metrô

Jardim São Paulo.

E assim conhecemos nossos artistas.

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A Faculdade de Verdade

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