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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS – UNICAMP PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA MONOGRAFIA DE DOUTORADO “VINHOLES E CAGE: TEORIAS, INDETERMINAÇÃO E SILÊNCIO” Pesquisador Valério Fiel da Costa Orientadora Profª Drª Denise Garcia Campinas, julho de 2005 1

Valerio Fiel Da Costa-Vinholes e Cage

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Page 1: Valerio Fiel Da Costa-Vinholes e Cage

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS – UNICAMP

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

MONOGRAFIA DE DOUTORADO

“VINHOLES E CAGE: TEORIAS,

INDETERMINAÇÃO E SILÊNCIO”

Pesquisador

Valério Fiel da Costa

Orientadora

Profª Drª Denise Garcia

Campinas, julho de 2005

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VINHOLES E CAGE: TEORIAS, INDETERMINAÇÃO E SILÊNCIO

Valério Fiel da Costa

[email protected]

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

Orientadora: Profª Drª Denise Garcia

Resumo

Nesta monografia procuro estudar alguns aspectos da obra do compositor pelotense Luiz Carlos Lessa Vinholes, primeiro brasileiro a produzir obras de caráter indeterminado, em comparação com aspectos similares da obra do compositor norte-americano John Cage, tais como suas iniciativas de criação de novas teorias de estruturação musical a partir do ritmo, utilização do silêncio em suas obras e opção por poéticas voltadas para a indeterminação em música, com o intuito de entender a posição de Vinholes no âmbito da produção de música aleatória a partir do início da década de 60. Este trabalho faz parte de minha pesquisa de doutorado sobre música indeterminada brasileira.

Palavras-chave: L.C. Vinholes; John Cage; indeterminação.

IntroduçãoPorque esse contraponto entre Cage e Vinholes? O que se espera ganhar com isso?

O que é que tem a ver Cage com Vinholes? Essas perguntas me perseguiram durante toda a redação desta monografia. Com o passar do tempo e do texto, fui percebendo, porém, que diante de mim (e de nós) talvez esteja se começando humildemente a descortinar todo um capítulo da história da música brasileira muito mal-contado até então, que se referiria a essa música enquanto processo, ou obra aberta, ou obra em movimento, ou música aleatória, ou música indeterminada. Antes de começar tal trabalho achava que a única abordagem útil para se pensar nossa produção de música aleatória fosse pesquisar em cada compositor sua genealogia poética ou estética na música européia ou norte-americana. “Você é afilhado de quem: Stockhausen ou Cage?” Conhecendo Vinholes fui forçado a reconsiderar isso.

Quando ouvi pela primeira vez as obras do compositor pelotense Luiz Carlos Lessa Vinholes, durante o XIV Congresso da ANPPOM (Porto Alegre – 2003), tive imediatamente a impressão de que estava diante de um compositor filiado às idéias de John Cage sobre utilização de material, silêncio e acaso. Para mim foi uma bela surpresa ter enxergado isto, uma vez que o programa dos concertos citava Vinholes como um herdeiro de Webern. De weberniano constava somente, pelo menos aos meus ouvidos, um certo essencialismo no que diz respeito ao gestual sonoro usado nas peças, o gosto pelo pouco, algo do grupismo de alguns trabalhos do mestre vienense tais como o Concerto Op.24, onde fragmentos da série são salpicados no tempo adquirindo status de personagens autônomos envolvidos num clima silencioso; a duração bastante pequena de suas peças seria outra característica afim. O material de Vinholes, porém, era ainda mais rarefeito. Tratava-se de uma simplicidade mais radical. Tal constatação, aliada à descoberta de que o compositor utilizava métodos aleatórios em algumas de suas peças, me fez pensar no John Cage das Music for Piano 1-84 (1952-56), peças cujo material sonoro, fruto de operações de acaso, muitas vezes não ultrapassa 4 ou 5 notas por página e onde o silêncio adquiria um significado novo como espaço de contemplação dos sons ambientais, figurando como uma entidade, mais psicológica que acústica, dependente da intencionalidade de escuta do fruidor.

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Em Vinholes, porém, apesar da aparente confirmação de tal genealogia estética, manifesta pelo trato com o material sonoro, havia algo diferente no que se refere aos seus silêncios. Eles não se encontravam tratados como a entidade psicológica cageana, pelo contrário, estavam inseridos no contexto como blocos estruturais. Tinha seu peso e relevância no desenrolar das obras. Era necessário ouvi-los à maneira como o compositor os dispôs no tempo. Um indício disso, a atitude dos músicos diante dos ruídos do público que, atrasado, procurava sentar-se para apreciar o espetáculo: uma certa apreensão e expectativa pelo estabelecimento de uma janela de silêncio real através da qual a música pudesse começar. Apesar de, num primeiro momento, seus trabalhos remeterem à estética cageana, certamente havia em suas peças diferenças fundamentais que mereciam ser investigadas.

Quem seria este compositor atomista? Como é pensado seu silêncio estrutural? De onde viria a relação de Vinholes com o aleatório? Seria cageano? Teria motivação ideológica ou puramente estética? Esta monografia pretende tratar estas questões. A abordagem a que me propus consiste em realizar um contraponto entre Vinholes e Cage no que diz respeito às suas idéias sobre teoria, indeterminação e silêncio. Tomei o cuidado de não conceber a estética cageana como um molde a partir do qual entenderia Vinholes ou vice-versa. Meu trabalho foi no sentido de entender como se deu no Brasil o primeiro suspiro daquilo que chamamos, no século XX, de música aleatória. Cage surge, assim, como referencial, senão indispensável, quase inevitável.

Do contraponto Cage-Vinholes, necessário apenas na medida em que me ajudou na aproximação da poética de Vinholes, visto que já havia estudado Cage durante meu mestrado na UNICAMP, ficou a impressão que ainda há muito a percorrer antes de se esgotar o tema. Não discuti, por exemplo, a influência da estética oriental em ambos os compositores. Talvez, um estudo mais aprofundado sobre a simplicidade em Cage e Vinholes torne isso necessário mais adiante.

Vimos que, ao passo em que há muitos pontos de contato entre os dois compositores no que se refere ao caminho que os levou à indeterminação (mote principal deste trabalho), tais como a sua formação, a maneira como se deu sua ruptura com seus mestres, a iniciativa de criar novas teorias de estruturação musical, a busca pela liberdade baseada no indeterminado, a valorização do silêncio. Ao mesmo tempo, foram surgindo pequenos conflitos estéticos e poéticos entre os dois compositores que me ajudaram a entender o que havia de mais singular na obra de Vinholes: o pensamento estruturalista partindo do micro se propagando e sobrepujando o macro, ao contrário do estruturalismo que parte do macro sobrepujando o micro de Cage; as conseqüências estéticas de uma poética do silêncio em detrimento de uma poética do sonoro; a questão da acessibilidade irrestrita em comparação a uma acessibilidade conjuntural. Enfim, tal comparação acabou por me ajudar a compreender melhor, inclusive, John Cage.

A história da música brasileira que nos foi legada não parece muito simpática para com nossos compositores experimentais com seus happenings, acasos, peças que nunca soam iguais a cada performance, seus silêncios, seus ruídos, suas não-coisas, sua arte sonora. O que dizer de Vinholes, um compositor que fez questão de não se produzir ou divulgar seus produtos musicais por aí Antes de começarmos nossa entrevista em seu apartamento em Brasília ele me disse que minha visita era um sinal de que as coisas que ele fez têm algum interesse. A homenagem em Porto Alegre durante a ANPPOM de 2003 seria outro sinal. “Se tem interesse, vai acabar dando em alguma coisa. Não há pressa”. A história não seria capaz de perdoar tal atitude. Luiz Carlos Lessa Vinholes, que foi

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responsável pelo Setor Cultural da Embaixada durante mais de 10 anos nas suas duas estadas no Japão, nunca usou seu prestígio e poderes para favorecer-se. Coisa que fez abundantemente quando se tratava de outros artistas, divulgador febril que foi de nossa cultura no Japão e no Mundo.

Espero que este trabalho venha somar-se aos textos daquela ANPPOM de 2003 e à dissertação de mestrado de Mario de Souza Maia sobre Vinholes para começarmos a juntar os cacos conceituais e históricos da aventura da indeterminação no Brasil.

Não é nossa intenção realizar neste espaço um estudo biográfico, mesmo que resumido, sobre John Cage. Pretendo realizar, porém, flashes neste sentido sempre que algum aspecto biográfico seu vier a auxiliar na presente investigação. Quanto a Vinholes, em razão das ainda poucas referências a ele em nossa bibliografia, é conveniente procedermos com apresentação de um resumo de sua carreira como músico, poeta e funcionário do Itamaraty antes de prosseguir.

VinholesSegundo o estudo biográfico, bastante rico, realizado por Mario de Souza Maia em

19991, Luiz Carlos Lessa Vinholes nasceu em Pelotas-RS, em 1933, onde iniciou seus estudos de música. Em 1946, cantava no coro da Catedral e, em 1949, trabalhava como copista da Orquestra Sinfônica de Pelotas. Tal ofício de copista o aproximou do repertório e da teoria musicais. Em 1952, tendo sido indicado pela pianista Yara André, foi aceito por Koellreutter no Curso de Férias de Teresópolis. Vinholes já conhecia pessoalmente o mestre alemão naturalizado brasileiro, fundador do Grupo Música Viva, quando este esteve em Pelotas para reger sua Orquestra Sinfônica em dezembro de 1950. Nesta ocasião Vinholes chegou a receber algumas aulas de contraponto e Koellreutter, vendo o seu empenho, solicitou à prefeitura da cidade que lhe desse uma bolsa de estudos para ir ao Curso. Depois de muita burocracia a bolsa foi concedida (Maia: 1999, 43).

Após o Curso acabou indo morar em São Paulo, onde trabalhou como secretário pessoal de Koellreutter como forma de pagar pela sua estada enquanto estudava nos Seminários Livres de Música (antiga Escola Livre de Música da Pró-Arte). Esta temporada em São Paulo o permite estudar composição regularmente com Koellreutter e estrear alguns trabalhos, além de conhecer os poetas que iniciavam o movimento que resultou na poesia concreta. Participa, como cantor, de vários grupos corais, participa de estréias brasileiras de obras como a Paixão Segundo São Mateus de Bach e da Missa de Notre Dame de Machaut. Nesse período, como membro do Grêmio Béla Bartok dos alunos dos Seminários, organiza concertos de música contemporânea, música antiga, jazz e música étnica na capital paulista.

Em 1956, numa série de 3 conferências intituladas Uma Nova Tentativa de Estruturação Musical, expõe sua teoria de organização de células rítmico-melódico-harmônicas batizada de técnica Tempo-Espaço.

Neste mesmo ano assume o lugar de Koellreutter, que havia se transferido à Bahia, como crítico de música do Diário de São Paulo. O compositor aproveita o cargo para realizar desde a defesa da música moderna e a crítica ao circuito de ensino de música tradicional até análises de peças de compositores contemporâneos como Boulez e Stockhausen (Maia: 1999, 56).

Em 1957 recebe uma bolsa do Governo japonês para estudar música tradicional japonesa em Tóquio. Ao chegar no Japão, além de estudar no Departamento de Música da Universidade de Tóquio, foi aceito no Departamento de Música do Palácio Imperial para

1 Ver bibliografia.

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estudar o gagaku, a música da corte japonesa. Na ocasião estudou o shichiriki (pequena flauta vertical) e o sho (órgão de boca).

Entre 1958 e 1961, Vinholes é contratado pela USIMINAS para trabalhar com os brasileiros da empresa no Japão. Em abril de 1960 organiza a primeira mostra de poesia concreta brasileira fora do Brasil, em Tóquio, evento de enorme repercussão (Maia:1999, 84). Várias outras mostras de poesia concreta foram organizadas pelo compositor até o ano de 1964 no Japão. Em dezembro de 1961 estréia em Tóquio sua primeira obra aleatória Instrução 61 (a primeira produzida por um brasileiro). Nesta obra os intérpretes tocam seguindo instruções impressas em cartões mostrados por membros da platéia. Tal procedimento seria utilizado posteriormente em Instrução 62, no ano seguinte, e a liberdade do intérprete em interferir no resultado de suas músicas passou a ser uma constante, assim como em seu trabalho com poesia.

Como compositor produziu, até 1964, diversas obras. Entre elas a peça Tempo-Espaço VI – Kasumi, que foi estreada no 1º Festival internacional de Música Contemporânea de Osaka. Vinholes participou como compositor convidado ao lado de Schoenberg, Penderecki e Stockhausen.

Relevando seu trabalho de intercâmbio cultural no Japão proporcionado pelo emprego na USIMINAS, a Embaixada Brasileira em Tóquio acabou por contratá-lo para cuidar do Setor Cultural. Promoveu edição de partituras de compositores brasileiros, antologias poéticas e traduções para o japonês de peças de teatro. Durante o ano de 1962 Vinholes apresentou um programa de rádio chamado Canta Brasil, dedicado à música e à poesia brasileira em Tóquio. Neste mesmo ano participou da fundação em Osaka da Sociedade Internacional de Artes Plásticas e Audiovisuais.

Em 1967, depois de 10 anos no Japão, serve como intérprete do príncipe herdeiro Akihito na viagem ao Brasil e decide instalar-se no Paraguai para ficar mais perto de casa. Durante sua permanência naquele país, não se dedica à produção de obras. Acaba como o introdutor da técnica dodecafônica ao tornar-se professor de composição de Nely Jimenes e organizador e regente de coro infantil. Tal temporada dura até 1974, quando, a pedido do então Ministro das Relações Exteriores, retorna para o Japão permanecendo lá até 1977, ano em que organiza uma exposição de música contemporânea brasileira na Galeria da Embaixada do Brasil em Tóquio onde constam 474 partituras de 97 compositores. Em outubro de 1977, muda-se para o Canadá, período em que volta a compor, e permanece no país até 1989. Atualmente aposentado, o compositor vive em Brasília com a esposa.

Podemos ver nessa trajetória de Vinholes alguns pontos de convergência entre ele e Cage que vão além do uso do aleatório em suas obras. Ambos, em um determinado ponto de suas carreiras se interessaram pelo Oriente, realizaram um sólido trabalho literário e foram teóricos de suas próprias idéias. Tais elementos serão usados mais adiante para estabelecer pontos de contato entre as duas personalidades.

Superando os mestresJohn Cage foi aluno do compositor Arnold Schoenberg entre 1935 e 1938. O mestre

alemão, criador do dodecafonismo, se encontrava exilado nos EUA desde 1931 devido à ascensão do nazismo na Alemanha.

Para conseguir estudar com Schoenberg sem ter que pagar o caro preço das suas aulas particulares, o jovem compositor assumiu o compromisso de dedicar sua vida à música. Este episódio bastante conhecido da biografia de Cage marca o início de seu relacionamento com o mestre alemão.

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Cage idolatrava Schoenberg e, dentro do clima de disputa entre schoenberguianos e stravinskyanos comum à época, ou seja, entre serialistas e neo-clássicos, comportava-se como um verdadeiro partisan defendendo o mestre alemão. Cage, numa entrevista para Jeff Goldberg relata:

Enquanto estudava com Schoenberg nos anos 30, Stravinsky veio morar em Los Angeles e um empresário local apresentou um concerto com as suas músicas como Música do maior compositor vivo. Eu fiquei indignado, marchei determinado até o escritório do empresário e disse a ele que pensasse duas vezes antes de fazer esse tipo de declaração numa cidade onde vivia Arnold Schoenberg. Eu era extremamente partisan. Era como um tigre defendendo Schoenberg (Kostelanetz: 1991,8).

Com o passar dos anos, começaram a surgir entre eles sérios conflitos teóricos motivados pelo fato de Cage não aceitar o estudo da harmonia como base válida para se pensar uma arte que, àquela época, já havia incluído como parâmetros estruturais importantes o ruído e o silêncio. Segundo Bernstein, outro conflito importante diz respeito à preferência cageana pela conectividade de material sonoro (tendência não-linear) ao invés da continuidade valorizada por Schoenberg (tendência linear) (Bernstein: 2002, 35). Além disso, enquanto Schoenberg criticava a repetição literal como um procedimento estéril, incapaz de gerar novas formas e pregava a variação como norma, Cage valorizava esta mesma repetição justificando-se com uma imagem do próprio Schoenberg a respeito da variação: de que esta seria nada mais que uma repetição não literal (idem, 29).

Na verdade, o aspecto conectividade só veio a ser plenamente desenvolvido por Cage muito depois do fim de seu contato com Schoenberg, pouco antes de assumir o acaso como método de disposição de material sonoro, em obras como o String Quartet in Four Parts (1950), onde, ao invés de preencher seus espaços de tempo com material improvisado, técnica usada até então, escolhe seqüências de fragmentos melódico-harmônicos dentro de uma série pré-concebida de objetos. Mesmo em obras tardias como as Sonatas & Interludes (1948) para piano preparado Cage ainda deixava transparecer alguma dependência em relação à linearidade. Já a opção pela repetição literal de material foi amplamente explorada em suas obras para percussão a partir de 1939 e para piano preparado entre 1940 e 1948, constituindo-se numa marca do período imediatamente anterior à produção das suas primeiras obras baseadas em séries de objetos sonoros e quadros de material gestual melódico-harmônico. Com o uso do acaso para determinar a continuidade dos sons no tempo, a partir do último movimento do Concerto for Prepared Piano and Chamber Orchestra (1951), o aspecto da repetição literal, bem como o controle sobre a conectividade dos sons, deixaram de figurar como centrais na obra do compositor.

O interesse por uma música baseada não em material escalar ou serial, mas no total sonoro, marca uma ruptura importante entre Cage e seu antigo mestre. É a partir desta idéia que Cage passa a elaborar suas primeiras propostas de organização musical tendo como parâmetro primordial o ritmo, tomado como único elemento realmente indispensável para a concepção de qualquer música. É também bastante conhecido o diálogo entre Schoenberg e Cage, onde este último declara não ter ouvido para harmonia. O professor adverte para a impossibilidade de desenvolver-se na composição musical sem tal preparo:

Depois de ter estudado com ele por 3 anos, Schoenberg disse: “para escrever música, você precisa ter sensibilidade para harmonia”. Então ele disse que eu sempre encontraria um obstáculo, que seria como se eu chegasse a um muro pelo qual eu não podia passar. Eu disse

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“Nesse caso, vou dedicar minha vida a bater com a cabeça contra o muro” (Cage: 1985, 114)

Este diálogo marca o fim do relacionamento entre Schoenberg e Cage. Schoenberg nunca reconheceu o aluno como compositor. Mesmo quando, muito mais tarde, declarou que, dentre todos os alunos que teve nos EUA, apenas Cage era digno de ser lembrado, referiu-se a ele não com um compositor, mas como um inventor genial (Kostelanetz: 1991, 6).

Vinholes, por outro lado, esteve, em meados dos anos 50, enquanto estudava composição com Koellreutter em São Paulo (outro mestre alemão exilado na América devido ao nazismo), ligado aos compositores brasileiros interessados na técnica dodecafônica. Nesta época estes se encontravam em pleno conflito ideológico contra os compositores nacionalistas. O compositor, porém, resolveu não se envolver neste conflito. Maia vê a situação da época da seguinte forma:

Os nacionalistas, em termos teóricos musicais, seguiam o desenvolvimento do processo harmônico, ou seja, se utilizavam de recursos que eram aceitos, considerados certos, como intervalos de terças, sextas, quintas acompanhadas de terças, enfim, combinações consonantes, harmoniosas, eliminando aquelas consideradas dissonantes e por isso desinteressantes e inúteis como segundas, sétimas, o trítono, etc. Por sua vez, os dodecafonistas o que fizeram? Fizeram a apologia de tudo aquilo que era negado pelo conceito bom e certo, o uso da dissonância, das segundas e sétimas e tudo aquilo que criasse caso em relação ao que era utilizado pelos adeptos da harmonia tradicional.(...)Em meio a esta confusão, Vinholes conclui que, no fundo, ambos (...) vêm a ser a mesma coisa, só que de lados opostos. Um é o espelho do outro (Maia:1999, 132).

O próprio Vinholes chega a declarar a Maia em 1998: Eu não posso estar jungido a isso aí, porque se é só isso, pra mim é pouco. Eu já descobri que é só isso, então tenho que sair pra outra (idem, 133).

O dodecafonismo é uma técnica de composição teoricamente neutra, baseada em uma seqüência de intervalos formados pela disposição de doze notas, que se repete na composição como forma de manter coerência melódico-harmônica. A questão é que, no Brasil, em meio à disputa ideológica entre nacionalistas e dodecafonistas, acabou sendo criada uma estética dodecafônica, ou melhor, desenvolveu-se, a partir da utilização da técnica dodecafônica, uma estética da dissonância, que acabou funcionando como um novo dogma para aqueles que desejassem acompanhar a vanguarda musical brasileira. Diante dessa circunstância, e interessado antes de tudo na liberdade criativa, Vinholes decide pela neutralidade.

Tal neutralidade teve reflexos na maneira como compunha e motivou o fim de seus estudos com Koellreutter. O mote foi a peça dodecafônica Paisagem Mural (1955). É do próprio compositor a explicação do fato:

Ele (Koellreutter) deixou de ser meu professor de composição no dia em que eu desrespeitei a técnica dodecafônica (...). Fiz a Paisagem Mural desrespeitando as normas, as regras da série dodecafônica. Ele me disse “se você não corrigir isso eu não lhe dou mais aula”. Eu lhe respondi claramente “então essa vai ser a nossa última aula mesmo”. Continuamos grandes amigos e tudo mais (Vinholes: 01/07/2005).

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Vinholes faz questão de frisar que este momento marcou o início de uma relação de horizontalidade entre os dois compositores. Koellreutter passa a considerá-lo um colega, não mais um aluno e ambos serão colaboradores e amigos íntimos durante décadas.

Para continuar compondo, porém, Vinholes foi obrigado a inventar novas estratégias composicionais que o liberassem tanto de uma tradição tonal considerada caduca, quando do formalismo exacerbado da técnica dodecafônica. Cria, em 1956 uma solução pessoal para o impasse, chamada de Teoria Tempo-Espaço, onde propõe uma forma sistemática de tratar o material sonoro sem vinculá-lo diretamente a nenhum sistema pré-estabelecido.

Teorias emancipatóriasCage estava interessado, acima de tudo, no ruído durante os anos 30, e empenhou-se

em desenvolver uma estruturação rítmica capaz de abrigar tal entidade sonora. O silêncio, em um primeiro momento, ainda era considerado um bloco a mais na paleta que o compositor pretendia criar (como veremos, idêntico ao silêncio deliberado de Vinholes). Rompendo com uma estruturação baseada em alturas, Cage podia conceber a música, ou organização sonora nos seguintes termos: material sonoro disposto, de acordo com um método, dentro de estruturas pré-concebidas, configurando-se com isso uma forma. Cage, durante sua carreira, sempre se referirá a esta estruturação rítmica como chave para suas composições, mesmo quando estiver em questão a ruptura com algum dos conceitos2. Os termos forma e estrutura querem dizer, respectivamente, conteúdo e forma. Forma, para Cage, seria a disposição de tudo aquilo que soa dentro de uma peça e estrutura, a divisão temporal definida pelo compositor previamente, dentro da qual a forma se desenrola.

Os anos 40 foram caracterizados, nos termos da estruturação rítmica cageana, por uma ênfase muito grande nos parâmetros material e estrutura. Constam desse período seus trabalhos envolvendo grupos de percussão e piano preparado. A maioria destas peças foram compostas tendo como mote o acompanhamento de dança. Desde fins da década de 30, Cage colaborava com grupos de dança compondo e tocando. O que tinha à mão: uma paleta de ruídos (seu grupo de percussão ou preparações de piano) e um esquema rítmico, elaborado muitas vezes pelos próprios dançarinos, para compor a parte musical. Esse modelo foi adotado como base para sua estruturação rítmica (Cage: 2000, 34). Em peças de concerto, sem dança, Cage experimentou criar relações mais abstratas usando o chamado princípio micro-macrocósmico de organização rítmica, onde as pequenas partes da peça possuíam entre si as mesmas relações que as grandes partes como em First Construction (in metal) (1939) (idem, 35) (Fig.1).

2 O parâmetro cageano estrutura foi questionado pelo compositor ainda nos anos 50, quando começou a escrever obras onde tal referencial torna-se prescindível ou mesmo inexistente. É o caso de obras como Winter Music (1957) para de 1 a 20 pianos e Concert for Piano and Orchestra (1958), onde a total autonomia entre as partes e a possibilidade destas serem tocadas em qualquer quantidade dentro dos limites da partitura faz com que não seja mais possível identificar as balizas temporais da teoria (N.P.).

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Fig.1 – estruturação rítmica da peça Fisrt Construction (in metal) (Pritchett, James. The Music of John Cage. New York: Cambridge University Press, 1995, p.17).

Os aspectos da forma e do método nunca adquiririam uma sistematização própria. Num primeiro momento eram frutos de improvisação; num segundo, frutos de escolhas realizadas dentro de séries de objetos ou quadros de material sonoro e, finalmente, tornaram-se produto de operações de acaso. No artigo de 1944, Grace and Clarity, Cage chama atenção para a relação entre forma e estrutura, afirmando que os músicos, dançarinos e audiência gostam de ouvir e ver as leis da estrutura rítmica hora obedecidas, hora ignoradas (Cage: 1995, 92). De fato, a música de Cage do final dos anos 30 caracterizava-se pela total sujeição da forma em relação à estrutura. É a essa abordagem que se deve o aspecto de colcha de retalhos de peças como First Construction (in metal) (1939), And the Earth Shall Bear Again (1942) (Fig.2) e Daughters of the Lonesome Isle (1945).

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Fig.2 fragmento da partitura de And the Earth Shall Bear Again (1942). As barras duplas representam pontos importantes da estrutura rítmica. John Cage. Prepared Piano Music, Vol 1: 1940-47. New York: Peters, 67886a, p21.

Posteriormente, o compositor passou a flexibilizar a relação entre forma e estrutura. Tal evolução levou a forma a tender a uma auto-referencialidade, ou seja, as músicas de Cage desse período (fins da década de 40), quase podem ser classificadas como grandes improvisações escritas (Music for Marcel Duchamp – 1947, Sonatas & Interludes – 1948). A adoção de uma estrutura racional como referência tinha papel importante na construção de uma música de caráter não-linear. Quando esta referência deixa de existir como conseqüência natural de uma busca de Cage por uma maior flexibilidade entre forma e estrutura, torna-se necessário utilizar, ao invés do puro arbítrio da improvisação, as séries e os quadros de material gestual para organização da forma. Mas a flexibilização total só viria quando Cage resolveu usar o acaso como método para organizar a forma dentro da estrutura. O acaso surge, desse modo, como forma de resolver o problema do arbítrio e seus sotaques dentro da composição.

Em 1956, Vinholes resolve pôr em teoria uma série de idéias que vinha gestando desde 1952. Cria seu próprio sistema de organização sonora a que veio chamar de Teoria Tempo-Espaço. Maia chama atenção para o fato de que a grande maioria dos compositores brasileiros optou por experimentar técnicas que estavam sendo exploradas por compositores dos EUA ou Europa e, no caso de Vinholes, seu pensamento estava dirigido para uma alternativa própria (Maia: 1999, 136).

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Por espaço, Vinholes entende a diferença de freqüência entre duas notas (intervalos); por tempo, a duração de cada nota. Sua teoria está baseada em pequenos núcleos (células) de notas, caracterizados por uma relação melódico-harmônica qualquer, que podem ser apresentados e combinados de diversas formas. Não há nenhuma recomendação quanto à utilização de alturas específicas.

Na música dodecafônica havia proibições. Havia parâmetros que deviam ser seguidos rigidamente com relação ao que era aceito ou não era aceito, ou seja, consonância e dissonância, para resumir. Eu queria acabar com isso, eu queria sair dessa prisão, cortar essas algemas. Criei tempo-espaço onde isso não acontece. Não interessa se tem terça se não tem terça, se tem trítono, se não tem trítono... isso não interessa mais, acabou. É um espaço controlado mediante aqueles núcleos, você faz aquelas três formas de apresentação de cada núcleo e pronto, acabou. (Vinholes: 01/07/2005).

A nova teoria acabou exigindo uma nova terminologia o que, num primeiro momento dificulta a sua compreensão. Temos unidades espaciais (UE), que seriam qualquer intervalo entre duas notas e unidades temporísticas (UT) que seriam as figuras de duração a serem vinculadas às figuras espaciais. Ao ligar estes dois conceitos, tem-se uma unidade estrutural (US)

Fig.3 - UE, UT e US

Em seguida são elencadas as várias maneiras de apresentação destas células rítmico-melódico-harmônicas, que podem ser ligadas umas às outras formando as chamadas unidades estruturais consecutivas (UC) e apresentadas de 3 formas: F1 – as freqüências extremas (fe) possuem curta duração admitindo um silêncio estrutural entre elas; F2 – a primeira freqüência extrema (pfe) (localizada à esquerda da célula), possui longa duração, enquanto a segunda apresenta-se curta e F3 – a segunda freqüência extrema (sfe) apresenta-se longa enquanto a primeira apresenta-se curta. Ao misturarmos estas formas alternadamente ou não, temos uma estrutura rítmica mista (ERM). O compositor classifica ainda os processos de estruturação relevando a variedade de formas e estruturas utilizadas em determinado caso. Uma vez fixados os detalhes de sua teoria, Vinholes escreveu a peça Tempo-Espaço Ie II, como forma de ilustrá-la (Fig.4).

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Fig.4 – obra Tempo-Espaço I (1956) (Maia, Mario de Souza, Serialismo, Tempo-Espaço e Aleatoriedade: A obra do compositor Luiz Carlos Lessa Vinholes. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: PUCRS, 1999, p.195 - anexos)

Vinholes, como Cage, busca uma maneira de estruturar suas peças que prescinda de uma sistemática voltada para o relacionamento entre alturas. Para o compositor, pouco importa que intervalos se vai utilizar, pois reconhece que cada compositor possui seu próprio repertório de sonoridades que lhe é idiossincrático. O ruído, aspecto que não chamava tanto a atenção de Vinholes na época em que concebeu tal teoria, está também contemplado, na medida em que se pode usar as suas células-estruturas sem referência a alturas. Não tenho uma posição nem favorável nem avessa ao som e ao ruído, diria o compositor (Vinholes: 01/07/2005).

Ironicamente, Vinholes usa os termos forma e estrutura como conceitos chave de sua teoria. Aqui, porém, tais conceitos possuem um sentido completamente diferente, uma vez que se referem a uma estruturação musical a partir do micro. Enquanto para Cage estrutura significava a divisão do todo em partes, para Vinholes este termo está relacionado aos blocos elementares da construção da peça. A forma cageana, que está relacionada à organização dos sons dentro da estrutura, aqui tem que ver com a maneira como estes blocos elementares se apresentam. A própria forma geral da peça, em Vinholes, é secundária, pois acaba sendo fruto da maneira como se organizam as pequenas células em seu interior. Em outras palavras, usando conceitos cageanos, temos uma estrutura e uma forma dependentes da concepção do método e, como já vimos, o material adquire, na poética de Vinholes, um status secundário podendo, inclusive, ser inserido no contexto após a organização dos outros parâmetros. Uma poética do micro ao macro em contraponto a uma poética do macro ao micro.

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De certa forma, a proposta de Vinholes é complementar da proposta de Cage, por dar conta da estruturação daqueles parâmetros que permaneciam em descoberto pelo compositor norte-americano e que tinham que ver com o desenvolvimento da forma e da definição de um método, além de considerar secundários os aspectos estrutura e material. Vinholes continua, até hoje, compondo segundo sua técnica tempo-espaço, mesmo quando admite soluções de caráter indeterminado. Seus primeiros experimentos com o chamado aleatorismo serão marcados pela idéia da sobreposição ao acaso de pequenas partes autônomas, como veremos mais adiante na Instrução 61 (1961).

Acaso, indeterminação, aleatórioPara compreendermos melhor a diferença entre o acaso cageano e o aleatorismo

vinholesiano, é necessário acompanhar a evolução do pensamento de cada um anterior a tal tomada de posição.

Para Cage, como já vimos, havia a necessidade de criar uma saída para o impasse liberdade versus lei, expresso pela relação entre forma e estrutura, sem com isso sacrificar a noção de descontinuidade na concepção da forma. As séries de objetos sonoros e os quadros de material gestual significaram um passo importante neste sentido, uma vez que a escolha dos detalhes era realizada a priori para elaborar os quadros ou séries e o compositor podia operar mais livremente, escolhendo seus blocos de construção, correndo menos riscos de recair em soluções lineares.

Em 1951, enquanto trabalhava no Concerto for Prepared Piano and Chamber Orchestra, seu aluno, o compositor Christian Wolf, o presenteou com o I-Ching, ou Livro das Mutações (Pritchett: 1995, 70). O uso oracular do I-Ching consiste no sorteio, usando varetas ou moedas, de trigramas formados pela combinação de linhas yin – vazadas e yang – compactas. Tais trigramas possuem entre si uma relação dinâmica de perpétua transitoriedade ou mutação e, combinados entre si, compõem signos mais complexos chamados de hexagramas. Ao todo existem 64.

Cage usou o I-Ching como método para organizar a forma, em suas peças desse período. Com isso conseguiu obter tanto um discurso musical baseado na descontinuidade – fruto da não interferência do gosto estético do compositor sobre o resultado – quanto uma relação de desobstrução entre estrutura e forma, neste momento, definitivamente desobrigadas. A característica básica das peças desse período é a fixação de elementos, escolhidos via operações de acaso, que deviam ser obedecidos à risca pelo intérprete. Cage, ao se referir à sua Music of Changes (1952) para piano, primeira peça totalmente elaborada usando operações de acaso, compara sua abordagem com a criação de um monstro de Frankenstein:

A Music of Changes é um objeto mais inumano que humano, uma vez que foi gerada por operações de acaso. O fato dessas coisas que a constituem, apesar de serem apenas som, terem se agrupado para controlar um ser-humano, o intérprete, dá à obra um caráter de monstro de Frankenstein (Cage: 1995, 36).

Cage diferenciava acaso de indeterminação. Para ele, acaso se referia ao uso de algum processo randômico no ato da composição. Indeterminação, por outro lado, se referia à qualidade de uma peça de poder ser executada de várias maneiras diferentes (Pritchett: 1995, 108).

Até 1957, Cage trabalhou quase exclusivamente com o primeiro princípio e criou diversas obras onde o intérprete esteve sempre a serviço de escolhas feitas através de operações de acaso tais como uso oracular do I-Ching: Music of Changes para piano,

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Imaginary Landscape N°4 para 12 rádios, William Mix para tape, Two Pastorales para piano preparado, todas produzidas em 1952; observação de imperfeições gráficas em folhas de papel a partir das quais notas eram definidas: Music for Carillon N°2 (1954), Music for piano 1-84 (1952-56), ou ambas as técnicas: 26’1.1499” For a string Player (1955).

As obras envolvendo indeterminação, ou seja, a participação efetiva do intérprete no seu formato final, começam a surgir na segunda metade dos anos 50 com obras como Winter Music (1957), para de 1 a 20 pianos, onde o compositor usa partes autônomas e em número variável. Tal autonomia entre as partes faz com que se perca definitivamente a noção de estrutura (Fig.5). No Concert for Piano and Orchestra (1958), há o mesmo princípio de autonomia entre as partes. Além disso, o solista deve escolher, dentro de um livro com 84 tipos diferentes de notações de caráter indeterminado, sua linha de performance (Fig.6). O concerto pode ser tocado com qualquer número de intérpretes, sendo que o seu formato mínimo é piano solo (nesse caso a peça passa a chamar-se Solo for Piano). O regente, seguindo sua própria partitura, realiza um papel mais coreográfico que musical3.

Fig.5 – fragmento da partitura de Winter Music para de 1 a 20 pianos (1947) (PRITCHETT, JAMES. The Music of John Cage. New York: Cambridge University Press, 1995, p.111).

3 Na estréia deste trabalho, no Concerto de Comemoração dos 25 anos de carreira do compositor, na Town Hall em Nova Yorque, em 1958, o coreógrafo e companheiro de Cage, Merce Cunningham, ficou responsável pela “performance de regência” (N.P.).

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Fig.6 – Uma das notações usadas na parte de piano do Concert for Piano and Orchestra (1958) (PRITCHETT, JAMES. The Music of John Cage. New York: Cambridge University Press, 1995. p.118).

Existe nesta escolha de Cage pela cessão de liberdades ao intérprete uma vontade de

fazer com que as fronteiras entre este e o compositor sejam diluídas. Cage, no texto Experimental Music, de 1958, ao referir-se à sua música de caráter indeterminado, explica: O que houve comigo é que me tornei um ouvinte e a música algo a ser ouvido (Cage: 1995, 7). Nesse momento está se operando no trabalho de Cage tal diluição, uma vez que o compositor já não representa mais aquele sujeito que possui o controle total sobre o que vai ocorrer no palco. Ele próprio está à mercê do que pode ocorrer. Ele próprio é um ouvinte apesar de ser o propositor da situação sonora dentro da qual estão todos imersos.

Tais liberdades cedidas ao intérprete acabaram, porém, cobrando o seu preço. Cage logo percebeu que nem todo intérprete tem condições de realizar os objetivos daquele tipo de proposta, seja por uma questão de despreparo técnico, seja por uma questão de ignorância em relação ao como proceder, seja por uma simples questão de má-fé. Ao referir-se a isso em entrevista cedida a Hans G. Helms em 1972, desabafa:

Dar liberdade ao intérprete individual me interessa cada vez mais. (esta liberdade) Dada a indivíduos como David Tudor, claro, gera resultados que são extraordinariamente belos. Quando essa liberdade é dada a indivíduos sem disciplina e que não partem – como digo em vários textos – do zero (por zero entendo a abstenção em relação aos seus gostos e desgostos), que não são, em outras palavras, indivíduos mudados, mas que permanecem como indivíduos com seus gostos e desgostos, daí, claro, dar liberdade não tem interesse nenhum (Kostelanetz: 1991, 67) .

Uma boa ilustração para o que se entende por indisciplina em performance seria a sabotagem sofrida por Cage em 1961, em pleno palco, pela Filarmônica de Nova York, sob a regência de Leonard Bernstein, na estréia da peça Atlas Eclipticalis (1961). Os músicos retiraram os microfones de seus instrumentos e começaram a bater neles em protesto. Nos bastidores, disseram a Cage: Volte daqui a 10 anos, que talvez a gente te leve a sério (Kostelanetz: 1991, 69).

É importante frisar que Vinholes não teve contato com as obras de Cage antes de sua viagem ao Japão. Isso se deve talvez ao fato de que a produção cageana se encontrava restrita a uns poucos privilegiados capazes de freqüentar Nova York em meados da década de 50. Esses poucos só podiam voltar ao Brasil trazendo relatos o que viram e ouviram, uma vez que as peças e textos de John Cage só vieram a ser publicados em 1961, quando este assinou o contrato com a Peters Edition. Mesmo quando, em 1958, Cage participa como conferencista e intérprete de suas obras no Curso de Verão de Darmstadt (Alemanha), ocasião em que compositores de todos os países, inclusive Brasil, tiveram acesso às suas idéias, Vinholes já tinha partido. Segundo o próprio compositor:

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O conhecimento dos trabalhos de Cage, digo sinceramente, vim a ter no Japão. Em São Paulo, não. Em São Paulo Cage era uma figura desconhecida. Eu conheci o próprio Cage, em 1961, em Tóquio. Foi feito um grande festival e ele esteve lá (Vinholes: 01/07/2005).

A inserção de Vinholes no que se chamou aleatoriedade ocorreu como evolução da idéia de liberdade total já expressa por ocasião da criação da técnica tempo-espaço. Num primeiro momento livrar-se da necessidade de escolha semântica proposta pela querela nacional x dodecafônico criando uma sintaxe neutra. Num segundo momento considerar que tal processo de libertação poderia ser expandido para os intérpretes e mesmo para o público. Vinholes crê num tipo de música onde o compositor, intérprete e ouvinte sejam postos no mesmo nível de fruição e participação. Para ele esta seria a verdadeira essência da música aleatória.

Enquanto houver a dicotomia público e intérprete ainda está faltando alguma coisa para que a coisas da aleatoriedade se concretizem em sua plenitude, porque ainda tem aquele que tem a expectativa de ouvir alguma coisa e aquele que tem a expectativa de produzir alguma coisa que seja ouvida (Vinholes: 01/07/2005).

Umberto Eco, em seu artigo Poética da Obra Aberta, no trecho que trata da ontologia da obra de arte, traça o paralelo da obra em movimento (obra aberta, equivaleria à obra de caráter indeterminado de Cage) com a concepção einsteiniana de que existe a priori uma ordem no espaço-tempo, mesmo que esta não seja suficientemente exprimível com as ferramentas humanas disponíveis. Einstein não pressupõe um Deus que joga dados, mas o Deus de Spinoza, que rege o mundo com leis perfeitas (Eco: 2003, 61). Eco sugere uma analogia entre o Deus organizador que define as regras misteriosas do cosmos, de modo que este permaneça íntegro mesmo assumindo um aspecto aparentemente caótico, e o compositor de obras em movimento.

A obra em movimento é possibilidade de uma multiplicidade de intervenções pessoais, mas não é convite amorfo à intervenção indiscriminada: é o convite não necessário nem unívoco à intervenção orientada, a nos inserirmos livremente num mundo que, contudo, é sempre aquele desejado pelo autor.

E continua:

O autor oferece, em suma, ao fruidor uma obra a acabar: não sabe exatamente de que maneira a obra poderá ser levada a termo, mas sabe que a obra levada a termo será, sempre e apesar de tudo, a sua obra, não outra, e que ao terminar o diálogo interpretativo ter-se-á concretizado uma forma que é a sua forma, ainda que não organizada por outra de modo que não podia prever completamente: pois ele, substancialmente, havia proposto algumas possibilidades já racionalmente organizadas, orientadas e dotadas de exigências orgânicas de desenvolvimento (Eco: 2003, 61-62).

O conceito obra significa, entre outras coisas, fruto do trabalho de alguém. Na poética de Vinholes este trabalho seria realizado essencialmente pelos intérpretes (ele incluso) e procura-se minimizar ao máximo a influência do compositor sobre os resultados. O compositor chega, inclusive, a negar que o erro exista na performance desse tipo de música. Em relação ao diagnóstico de Eco sobre o papel do compositor como princípio regulador oculto da obra em movimento, temos em Vinholes um ativador de processos que,

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uma vez em curso, teoricamente, fugiriam do seu controle. Digo teoricamente, pois, apesar de relevar a falta de preparo dos intérpretes no executar de peças de caráter aberto devido à sua formação inadequada para isso, possui suas preferências estéticas (o gosto pela simplicidade, pelo dizer muito usando pouca coisa) e seu trabalho é um reflexo disso.

Eu nunca acreditei que para dizer as coisas seja com a linguagem que for se tenha que falar horas a fio. Não. Com pouca coisa se pode dizer bastante. Uma linha pode ser uma obra de arte, meia dúzia de palavras como se fez no concretismo. Um pequeno volume pode ter uma beleza extraordinária (Vinholes: 01/07/2005).

Com isso quero dizer que, apesar da abertura aparentemente irrestrita, há uma expectativa a respeito do resultado. Não há, porém, no caso de Vinholes, uma estratégia para garantia de resultados, seja intrínseca à obra, seja dependente de questões extra-musicais, como ocorre em Cage. Um certo desapego à obra faz parte de sua poética.

A melhor ilustração desse aspecto da obra de Vinholes é uma de suas performances no campo da poesia de vanguarda. Em Veneza, ao ser convidado para um Festival da Palavra (1997), onde estavam presentes poetas do mundo inteiro, ao invés de escrever no catálogo do encontro um poema seu, decidiu que o público o faria. Coletivamente decidiu-se uma regra: seriam escritas frases onde a palavra olho deveria figurar. De posse do catálogo de alguns dos presentes e, com o auxílio de um retro-projetor, Vinholes dispôs as frases uma em cima da outra usando como coluna central as palavras olho (como nos poemas mesósticos de Cage, mas usando uma palavra inteira no lugar das letras do eixo central). Depois, cada um pegou seu catálogo e foi embora do teatro.

Quem escreveu na página do seu negócio está de posse daquilo, os outros também estão. O trabalho está escrito por todos, mas uns não sabem dos outros. Naquele momento o trabalho estava restrito àquele espaço do teatro. Mas no momento em que aquelas pessoas saíssem dali, uns indo embora para Milão, outros indo embora para Paris, o Haroldo (de Campos) voltando para São Paulo, esses catálogos estão indo embora e o espaço ocupado pelo trabalho feito se dilata. Esses catálogos vão durar até quando? Alguns vão ser destruídos, outros vão ser queimados... vai ser minimizado o tamanho do trabalho feito. Nisso aí existe autoria, nisso aí existe coisa feita, nisso aí existe espaço para a coisa feita, mas ninguém tem idéia do que é, onde está e por quanto tempo (Vinholes: 01/07/2005).

Ou seja, o processo é desencadeado e, logo depois, ganha vida própria. Temos um ativador de processos ao invés do autor tradicional e o coletivo que se torna autor (intérpretes) logo perde as rédeas sobre o desenrolar da obra, que adquire uma existência absolutamente desvinculada de qualquer controle. Para Vinholes aí existe uma essência de coisa aleatória (Vinholes: 01/07/2005).

John Cage trabalhou com obra em movimento ou, composição enquanto processo, para usar sua própria terminologia, como forma de distanciar-se do controle da obra e fazer com que ela se apresentasse diante dele como uma coisa nova. É esse o sentido da afirmação cageana quanto ao fato dele ter se tornado um ouvinte. Sua incursão nessa direção se deu através do acaso. Porém, o acaso em Cage não se dá em prejuízo do que Eco enxerga como integridade da obra em movimento. O acaso cageano está sempre submetido a um projeto composicional específico e serve como forma de escolha entre diversas possibilidades. Joga-se dados para saber se num determinado espaço de tempo ocorrerão três ou cinco eventos, por exemplo. Com algumas exceções, mesmo sua produção de música indeterminada possui diversos casos de integridade formal, dada, por exemplo, pela coerência na escolha de materiais sonoros que se repetem dentro de um lapso de tempo

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determinado formando texturas estáticas. Cage, preocupado com tal integridade sempre busca balancear, com já vimos anteriormente, essa liberdade com a escolha dos intérpretes. Quanto mais livre, mais disciplinado e responsável e musical deve ser o intérprete.

A peça Instrução 61, para qualquer combinação instrumental, de Vinholes, estreada em Tóquio em 31 de dezembro de 1961, foi a primeira obra de música de caráter indeterminado criada por um brasileiro.

Trata-se de 4 instruções distribuídas entre 100 cartões quadrados: 1) - folha em branco, 2) - ponto, 3) - linha curta e 4) - linha longa, que são apresentadas aos intérpretes durante a performance por colaboradores retirados do público. A linha longa significa uma nota de longa duração, a linha curta, uma nota de curta duração, o ponto um som puntiforme (muito curto) e a folha em branco significa silêncio estrutural (deliberado). Se o cartão for apresentado verticalmente, para linha curta temos pequeno aglomerado de sons, para linha longa, grande aglomerado de sons. Note-se que os valores de tempo e quantidade de sons são relativos. Assim, um som é longo sempre em relação a um outro som considerado curto. Um aglomerado de sons é considerado pequeno sempre em relação a outro considerado grande. Aqui não há especificação de instrumentos ou do número de intérpretes. Uma vez entendidas as regras, não é necessário sequer adquirir os cartões do compositor. Qualquer um pode elaborá-los por conta própria.

Uma observação importante a meu ver é que os objetos apresentados nos cartões remetem ao tipo de material usado nas primeiras peças tempo-espaço. Aqui estes elementos (nota longa, curta, silêncio estrutural, etc.) são organizados (libertos da rigidez da norma) pelo acaso na escolha da sequência e sobreposição de material e pelas decisões dos intérpretes, que lidam com partes autônomas, na modelagem gestual desse material.Fig.7 – modelos para os cartões da peça Instruções 61 (posição vertical).

Esta peça marca, em comparação ao percurso cageano, uma espécie de salto do determinado direto para o indeterminado. De uma música baseada na observância plena das indicações do compositor por parte do intérprete para uma música onde o intérprete e mesmo o público acabam decidindo, mediados pelo acaso, o resultado sonoro, do qual o compositor, ou melhor, o elaborador da proposta inicial, torna-se mais um ouvinte. É como na imagem cageana, a pouco comentada, do compositor que se torna ouvinte e a música algo para ser ouvido.

O elemento público, porém, surge aqui como diferencial. A fé no intérprete e um certo desapego quanto ao resultado sonoro vão diferenciar a atitude de Vinholes em relação à atitude de Cage. Considero que Cage tinha suas razões para desconfiar dos intérpretes e do público: era uma figura muito visada na época, tinha sido pivô de pequenos escândalos conceituais muito mal digeridos pelos músicos de um modo geral (até hoje), morava em Nova York que, na época, podia ser considerada ainda o centro da cultura mundial do pós-guerra, a sua personalidade expansiva e visionária o mantinha constantemente sob os holofotes.

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Um fato recente nos ajuda a definir melhor a postura de Vinholes a respeito de sua música coletivista nesse período. Ao ir morar recentemente em Brasília pouco antes de se aposentar, o compositor passou a revelar um imenso interesse na obra do artista plástico carioca Athos Bulcão, parceiro de Oscar Niemeyer na construção de Brasília e que foi responsável pela criação de mais de 100 murais de azulejos na capital do país. O aspecto da obra de Athos que encantou Vinholes foi que, em várias paredes que azulejou, ao invés de definir em detalhe os desenhos, preferiu deixar a cargo dos operários tal escolha. O mestre azulejista deixava uma instrução simples do tipo evitem fechar os círculos e ia embora. A obra era fruto do trabalho e preferências dos operários e o arquiteto providenciava apenas as instruções que a viabilizavam.

Vinholes faz questão de afirmar o parentesco de seus trabalhos em música aleatória com algumas das inserções de Bulcão em Brasília e admira-se de que tivesse havido tanta semelhança entre os dois projetos criativos no mesmo período, um em Tóquio e o outro em Brasília.

Eu criei as Instruções... é o que o Athos Bulcão certamente pensa: quem fez aquilo que está no Teatro Nacional foram os operários, não foi ele. A música que foi feita em 61 e que é feita cada vez que se usam os cartões, Instrução 62, a Peça Para Fazer Pssiu/xi, cada vez é diferente. Eu não fiz aquilo. Eu só preparei as instruções que viabilizam a coisa a ser realizada (Vinholes:01/07/2005)

Maia cita o poema Alea I – Variações Semânticas de Haroldo de Campos como outro exemplo semelhante de correspondência com a visão de Vinholes. Neste poema o leitor deve realizar livremente permutações em duas palavras de cinco letras. O universo (este dado está escrito na folha do poema) é de 3.628.800 possibilidades (Maia:1999, 175). Vinholes considera tal poema afim com suas idéias expressas nas Instruções 61 e 62.

Outro aspecto essencial do trabalho de Vinholes com a indeterminação, além do desapego pela postura de compositor, que é o da acessibilidade como princípio, mais que como uma exigência circunstancial.

Eu dei a oportunidade para que pessoas fizessem música sem saber muito de música, sem saber nada de música. (...)Não há necessidade de você ser um virtuose. A prima-dona na ópera, o solista no concerto são figuras desnecessárias, prescindíveis. Eu prefiro aqueles outros com menos conhecimento, com menos ginásticas e malabarismos e tudo mais, fazendo música. Quero estar mais perto dessa maioria que não teve o privilégio de se tornar figura central. Daí a grande diferença entre meus colegas brasileiros da aleatoriedade com o meu trabalho. Porque eu quero que os outros, que os não-músicos façam música. Essa dicotomia do músico e não-músico, poeta e não-poeta não pode existir (Vinholes: 01/07/2005).

Este aspecto é importante para o nosso contraponto na medida em que, no caso de Cage, a acessibilidade técnica está estreitamente ligada às circunstâncias. Aqueles trabalhos criados para serem tocados por amadores no período em que esteve responsável por acompanhamento de dança na Cornish School em Seattle (1938-1941) ou pelo próprio Cage enquanto não conseguia um grupo de intérpretes durante seus primeiros anos em Nova York – o que, inclusive, motivou a grande produção de peças para piano preparado desse período (Pritchett: 1995, 24) – são, via de regra, bastante acessíveis do ponto de vista técnico. Entretanto, sempre que havia a oportunidade de contar com um intérprete virtuose,

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Cage escrevia algo capaz de explorar os limites do músico. A acessibilidade não era, portanto, num primeiro momento, um dado essencial às suas obras.

Em 1979, Vinholes compõe a peça, em homenagem ao ano internacional da criança, Peça/Pessa para fazer Psiu/Xi para coro. Nela utiliza apenas instruções literais do tipo fazer psiu (como quem pede silêncio) e/ ou xi (referência a fazer xixi), o compositor nesse caso prescinde do suporte partitura ou cartão. Isto faz com que Maia chame atenção para o parentesco entre essa poética e a música de tradição oral, justificando tal comparação observando a ausência de suporte gráfico e reflexos autorais no fazer da música e seu caráter coletivo como uma somatória de expressões individuais. Vinholes é mais cauteloso e adverte que, apesar das semelhanças, o enfoque é outro.

Nós chegamos a isso aí, há uma semelhança enorme com aquilo que tem lá, mas o pensamento que levou aquilo a acontecer e o pensamento que leva isso agora a acontecer são pensamentos muito diferentes (Vinholes:01/07/2005).

De fato, apesar do parentesco evidente entre esta música de caráter aberto, simples, ritual, coletivo e não-autoral com manifestações da tradição oral, não podemos esquecer ou apagar a experiência acumulada de mais de 4 séculos de busca pela complexidade, valorização de princípios hierárquicos, individualismo, autoria, concepção de obra de arte, valoração desta obra de arte segundo critérios interessados dependentes de prioridades de grupos específicos, etc. É como Webern comenta, nas suas conferências O Caminho para a Música Nova, sobre o parentesco entre os procedimentos polifônicos dos dodecafonistas e a música flamenga da Renascença:

Nossa técnica de apresentação atingiu um parentesco muito grande com os métodos de apresentação empregados no século XVI pelos neerlandeses, mas que naturalmente se serve também de todos os resultados da conquista do domínio tonal-harmônico (Webern: 1960, 53).

Constam no catálogo de Vinholes apenas mais quatro peças de caráter aleatório dentro do espírito anárquico de Instrução 61. Instrução 62, para instrumento de teclado e um colaborador onde constam ainda os cartões de instruções e as peças Peça/Pessa para Fazer Psiu/Xi (1979) (já vista) e Vento-folha (1961-1978), ambas experiências com leitura de poemas tomados como eventos musicais. O hábito de oralização de poemas era cultivado pelos poetas concretistas em São Paulo no período em que Vinholes esteve lá antes de viajar para o Japão. Ambas podem ser executadas por não-músicos e são propostas algumas poucas instruções para performance.

Vinholes também misturou procedimentos aleatórios à sua técnica tempo-espaço nas obras Tempo-Espaço XIII – 4 Lados das Mil Faces de Janet (1978), onde o intérprete percorre livremente, usando uma parte autônoma, uma matriz de células tempo-espaço (Fig.8). Tempo-Espaço XV (1978) é feita seguindo o mesmo princípio. Ambas podem ser tocadas simultaneamente configurando a peça Tempo-Espaço XVa4.

4 Texto de Pedro Xisto.

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Fig.8 – fragmento da partitura de Tempo-Espaço XIII – 4 lados das Mil Faces de Janet (1978).

Na peça Tempo-Espaço XIV (1978) temos este mesmo princípio sobreposto a uma leitura do poema suk-a de bill Bisset (Fig.9).

Fig.9 – partitura de performance para leitura do poema suk-a (MAIA, MARIO DE SOUZA, Serialismo, Tempo-Espaço e Aleatoriedade: A obra do compositor Luiz Carlos Lessa Vinholes. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: PUCRS, 1999. p.151)

Como pode-se logo perceber, a produção de Vinholes é muito reduzida. Isso se deve, segundo o compositor, a duas razões. A primeira sua dedicação, enquanto esteve fora do Brasil, à embaixada e à poesia de vanguarda e a segunda, mais simples e subjetiva, ele não se sente bem em compor caso não sinta que tal atividade esteja acrescentando algo de

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novo. Graças a essa característica, Vinholes foi apelidado por Gilberto Mendes de compositor bissexto (Vinholes: 01/07/2005).

Eu não consigo produzir a toda hora. Porque se eu não encontrar uma razão de pesquisa, uma razão de pensar na coisa eu não escrevo. Eu prefiro ficar sem escrever do que fazer uma coisa que eu acho que está repetindo outra (Vinholes: 01/07/2005).

SilêncioO último aspecto a ser abordado será o silêncio. O silêncio para Vinholes foi tratado

como dado estrutural na grande maioria de suas peças (apenas as suas oralizações musicais não prevêem tal silêncio estrutural). É um elemento musical que contribui para construção da forma geral das peças. Isto é verdade para suas peças escritas segundo a técnica de tempo-espaço e também para suas Instruções. Essa característica é que ficou evidente à escuta, em Porto Alegre, episódio relatado no início deste trabalho, onde os músicos, para começar aguardavam um silêncio real (de sala de concerto) e, no tocar das peças, interpretavam as pausas de modo a torná-las evidentes.

A utilização do silêncio como parte efetiva da constituição dos núcleos (células) da Teoria Tempo-Espaço, uma de suas características fundamentais, proporcionam tal diferencial estético. Já a partir de suas primeiras peças tempo-espaço, o silêncio é visto como elemento estrutural. Na teoria é chamado de Valor Negativo (VN).

A célula tempo-espaço tem três maneiras de se apresentar: uma em que sempre o primeiro elemento é o mais longo e o segundo é o mais curto, o outro em que o primeiro elemento é o mais curto e o segundo elemento é o mais longo e o terceiro em que o elemento primeiro e o elemento segundo, os extremos, são os mais curtos, e o mais longo é aquele silêncio que está entre eles. Ele passa a ser um elemento igual aos demais. O silêncio é estrutura. O silêncio não é coisa que acontece (Vinholes: 01/07/2005).

Em obras como Tempo-Espaço XIII e nas próprias Instruções, há dois tipos de silêncio, para usar a terminologia de Maia, um deliberado, quando o silêncio faz parte daquilo que está sendo tocado naquele momento (quando um cartão de silêncio está diante de um intérprete, por exemplo) e outro não-deliberado: aqueles silêncios que ocorrem ao acaso entre uma intervenção e outra.

Estes dois tipos de silêncio explorados por Vinholes são usados por Cage de uma forma sistemática. Num primeiro momento, interessado na expansão da paleta de possibilidades sonoras a serviço do compositor, Cage admitiu o silêncio deliberado como parte desse novo e irrestrito universo e chegou a defender sua proposta de estruturação rítmica afirmando que a duração é o único aspecto do som que é comum ao som e ao silêncio (Pritchett:1995, 39).

Influenciado pela famosa experiência dentro de uma câmara anecóica na Universidade de Harvard, onde descobre que, mesmo numa situação de silêncio absoluto ainda é possível ouvir os sons do próprio corpo, chega à conclusão de que o silêncio, afinal, não passa de uma entidade psicológica. O que determina o silêncio é a intencionalidade de escuta. A partir dessa experiência, o silêncio cageano passa a existir per si. Escapa da partitura. Torna-se oportunidade de ouvir num outro nível. Entrar em contato com a natureza dos sons ambientais. Cage estabelece uma diferença agora entre sons escritos e sons não escritos.

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Nessa música não há nada além de sons: aqueles que são escritos e aqueles que não são. Aqueles que não são notados aparecem na música escrita como silêncios, abrindo as portas da música para os sons que ocorrem ao redor (Cage:1995, 7-8)

Para continuarmos usando a terminologia de Maia, podemos dizer que, no caso cageano, ao invés de termos silêncios deliberados ou não deliberados, o que temos são sons deliberados e sons não deliberados. Em peças de Cage com longos momentos de silêncio, na verdade ocorre intensa atividade sonora. A configuração dessa atividade sonora depende da escuta. Em Vinholes o silêncio não deliberado é produto do acaso. Não há para ele uma sistemática ou tratamento especial: ele simplesmente ocorre. Já os seus silêncios deliberados , quanto à performance, possuem uma propriedade similar à de peças cageanas como 4’33”, onde, via de regra, os intérpretes definem, por motivo de ênfase na articulação dos movimentos, posturas específicas. Para o ouvinte, aquele é um silêncio deliberado. Está “sendo tocado”. Do mesmo modo, nas Instruções 61 ou 62 de Vinholes, um cartão em branco é a oportunidade para o intérprete expressar esta ausência de som. Entretanto, não há em Vinholes a figura do som não deliberado. Aquela informação sonora que está ali, como parte da música, sem que seja tocada ou posta em vibração. Isto é uma das conseqüências de sua opção pelo silêncio estrutural: um silêncio existente, bloco de construção, silêncio azulejo, na acepção dos trabalhos de Athos Bulcão.

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Partituras: JOHN CAGE. Prepared Piano Music, Vol 1: 1940-47. New York: Peters, 67886a_____. Prepared Piano Music, Vol 2: 1940-47. New York: Peters, 67886b

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