Valor18-Governabilidade e globalização

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    Governabilidade e globalizao

    Fbio Wanderley Reis

    Como ocorre com credibilidade, usada como sinnimo deconfiana, a expresso governabilidade (um atributo, naturalmente,daquilo que governado, a sociedade) tem sido distorcida para indicar umtrao da mquina do Estado, aplicando-se capacidade governativa ou eficincia governamental. C como l, a confuso semntica interfere comcruciais problemas analticos.

    evidente a importncia de questes de eficincia, ou daquilo quealguns designam como a produo de efetivo poder coletivo, com aedificao de um Estado capaz de perseguir os objetivos compartilhados dacoletividade. Mas a relevncia poltica desse aspecto advm de suas relaestensas com a questo da distribuio de poder entre atores e interessesdiversos, vale dizer, da democracia. Se a eficincia supe fins dados para quese possam dispor de maneira apropriada os meios para alcan-los, ademocracia envolve justamente a problematizao dos fins, propostos por

    mltiplos atores e de difcil conciliao ou hierarquizao. E mesmopossvel dizer que, do ponto de vista da democracia, a capacidade governativas interessa na medida em que se ligue com o desafio de criar governabilidadeem sentido prprio: o de criar a sociedade que seja governvel por boasrazes, isto , na qual o Estado seja reconhecido como o agente autntico detodos por diferentes interesses e opinies.

    As diversas formas em que o tema da governabilidade tem sido tomado

    permitem distinguir trs tipos de crise de ingovernabilidade: a pretoriana,em que instituies polticas dbeis favorecem um jogo de vale-tudo e oprotagonismo militar; a de sobrecarga, em que um Estado aberto e sensvel diversidade de interesses se v submetido a demandas excessivas eeventualmente crise fiscal; e a hobbesiana, em que a intensificao dacriminalidade e da violncia impedem o Estado de garantir adequadamente

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    sequer a segurana e a ordem. No plano nacional, foi a construo dasinstituies do Estado e do Estado socialmente sensvel que permitiu, emcasos sucessivos, a erradicao do pretorianismo, articulada, de modosvariados, da ameaa da violncia e insegurana. Essa construo se deu,

    porm, em condies em que o plano internacional se mantinha como umaespcie de terreno baldio, onde o vale-tudo seguiu imperando em largamedida.

    A meu ver, isso ajuda a explicar a especial indigncia, ainda quandocomparada pobreza geral das chamadas cincias sociais, da disciplinadedicada ao estudo das relaes internacionais, presa como se acha aos merosinteresses e ao seu jogo cru e de feio s vezes at pueril, embora, por isso

    mesmo, potencialmente catastrfico. Seja como for, o que vemos naatualidade, com a nova dinmica econmica e a globalizao, um pouco orefluxo das condies desse terreno baldio sobre o plano domstico dosEstados nacionais. Se o Estado social se v submetido a condies impostas

    pelo jogo duro do mercado mesmo em casos mais avanados e propcios, asconsequncias so mais complicadas em circunstncias em que no se podeter segurana quanto superao sequer das precariedades pretorianas, agoracombinadas ao hobbesianismo. E preciso acrescentar ao quadro geral osefeitos do choque das civilizaes e das formas novas de violncia que

    produz.

    Dois desdobramentos podem ser apontados. O primeiro o dospossveis riscos para a democracia nos prprios pases de maior tradiodemocrtica, de que analistas atentos falam h muito. parte ocomprometimento dos direitos civis nos EUA de George W. Bush em suaguerra ao terror, uma consequncia menos dramtica, mas talvez maisdifusa, a provvel intensificao da insatisfao com a operao da

    democracia na medida em que as novas condies repem problemas bsicosde conflito distributivo e incorporao social em diferentes pases. A Franade Sarkozy e as turbulncias previstas so o exemplo de agora, com ahostilidade de setores trabalhistas e de esquerda e com o Estado surgindo maisdramaticamente como agente antes de uns do que de outros aos olhos deimigrantes e etnias minoritrias.

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    O segundo aspecto envolve dificuldades com certeza maiores. Trata-sede que, nas circunstncias que se criam, vai bem alm dos inconvenientes dotradicional terreno baldio o desafio de superar a ingovernabilidade no plano

    internacional, isto , de produzir poder coletivo, capaz de operar no nvel doplaneta como tal com a complicao, naturalmente, de assegurar que essepoder seja to democrtico quanto possvel. Wolfgang Reinicke, em GlobalPublic Policy, formula a definio mesma de globalizao em termos de umprocesso microeconmico (no obstante a escala onde ocorre) em que se tem areorganizao espacial das atividades das firmas ou corporaes como tal. Asassimetrias a contidas so evidentes, dado que nada nesse processo assegurasensibilidade dimenso social, ou mesmo trabalhista, dos problemas

    envolvidos. Por outro lado, se o dinamismo recente da economia mundial nostem feito esquecer as crises que a rondam na carncia de agentes efetivos decoordenao, os problemas ambientais que se transformam em urgncias, semfalar de velhas questes como a dos riscos trazidos pela proliferao dosarmamentos nucleares, impem o tema do governo mundial, ou do equivalentefuncional do Estado em nvel internacional.

    Na escala dos pases, a construo de Estados poderosos e sua eventualdemocratizao pde contar com um incio realista, em vrios casos, nahegemonia exercida por certas regies sobre outras. Tempos atrs pareceu

    possvel apostar em algo anlogo internacionalmente, que fosse alm de ONUe assemelhados: uma espcie de organizao do imprio de efeitosdemocratizantes (se o imprio inevitvel, quero votar em Washington!). Masat essa abdicao supostamente realista parece s-lo cada vez menos.

    Valor Econmico, 14/5/2007

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