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Artigo de opinião publicado no jornal "Correio do Vouga"
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Quarta-feira, 07 de outubro de 2015 | Correio do Vouga | 21
opinião
Vamos brincar às bibliotecas?
Os livrosApetece chamar-lhes irmãos,tê-los ao colo,afagá-los com as mãos,abri-los de par em par,ver o Pinóquio a rire o D. Quixote a sonhar,e a Alice do outro ladodo espelho a inventarum mundo de assombrosque dá gosto visitar.Apetece chamar-lhes irmãose deixar brilhar os olhosnas páginas das suas mãos.
José Jorge Letria, Pela casa fora
Outubro é o Mês Internacional das Bibliotecas Escolares. Com o cair do Outono, misturam-se--me de novo nas mãos as folhas caducas e as páginas perenes. Há um tema, nestas crónicas, que é cíclico como as estações: os livros e as bibliotecas. Corro, bem sei, o risco de me repetir e de fatigar os leitores, mas habituei-me àque-la voz pequenina, a pedir: “Mãe, conta outra vez!” E então eu re-conto, e acrescento um ponto (ou dois...) para reflexão.
“Vamos brincar às bibliote-cas?”, pergunta a mais nova ao irmão, quando quer aliciá-lo pa-ra uma brincadeira a dois. Numa casa onde não há televisão nem tablet, os meus filhos têm de se entreter muitas vezes uma com o outro… e esta é uma das brin-cadeiras preferidas de ambos. A história começa assim:
Ela chama o irmão, pegam nos livros ao colo, afagam-nos com as mãos, abrem-nos de par em par em cima da cama-balcão.
E é então que a bibliotecaestá pronta a funcionar.Quando um deles requisita,é o outro quem regista.
E eu, ao vê-los bibliotecar, sin-to-me em (e)terna sintonia com o poeta argentino Jorge Luis Borges: “yo, que me figuraba el Paraíso / bajo la especie de una biblioteca.” Creio que também os meus miúdos perfilham esta ideia da biblioteca como espaço paradisíaco e almejado: a mais nova, que ainda não sabe ler, dizia-me há tempos, contando pelos dedos: “Quando for gran-de quero ser: contadora de his-tórias; senhora que trabalha na biblioteca; e cabeleireira. O tio diz que podemos ter três profis-sões ao mesmo tempo.” Sorri à ideia fabulosa de uma cabelei-reira contadora de histórias que me cortasse o cabelo enquanto ia narrando a novela infantil En-quanto o Meu Cabelo Crescia (Planeta Tangerina).
Primeiro ponto: hoje, no ima-ginário de muitas crianças, a bi-blioteca não é um lugar habitado pelo denso silêncio, nem pelo pó dos cartapácios, nem por ratos de biblioteca, nem por idosas bi-bliotecárias de carrapito e óculos (mas, decerto, há por aí adultos a pensar assim…). Felizmente, para muitos miúdos, a biblioteca é o lugar fantástico onde moram contadores de histórias, paredes--meias com o Pinóquio, o D. Qui-xote e a Alice; o Senhor Cavalo Marinho e o Bicho Estranho; o Grufalão e o rato Frederico, po-eta por missão; a Fada Palavri-nha e o Gigante das Bibliotecas; a Rainha das Cores e o Tintim e a Rapariga Karateca. E até a cabe-leireira Mila!
Estou convicta de que, para a brincadeira bibliófila dos meus filhos, muito têm contribuído as respectivas escolas (uma IPSS, outra pública). Embora não dis-pondo de uma biblioteca esco-lar, ambas têm desenvolvido um notável trabalho de articulação entre os educadores/professores e os bibliotecários municipais. No infantário da mais nova, por
exemplo, são muito frequentes as visitas das crianças à Biblio-teca Municipal para pesquisar sobre um tema e fruir “a hora do conto”. Estes pré-leitores de meio palmo chegam a ir ali duas vezes por semana: um dia para requisitar os livros, e outro para os devolver. (É claro que a edu-cadora poderia devolvê-los sozi-nha, mas o facto de levar de novo toda a turma é muito instrutivo, até em termos cívicos: fomenta--se, deste modo, a responsabili-dade colectiva pela devolução de um bem que é de todos.)
Uma simples visita à Biblioteca Municipal, em termos pedagógi-cos, tem um alcance maior do que parece: primeiro, há a dimensão do passeio a pé pela cidade e a consequente interiorização das regras de segurança rodoviária; depois, a noção de que a apren-dizagem também se faz em locais variados (exteriores à escola) e a familiarização, desde tenra ida-
de, com o usufruto de equipa-mentos culturais; promove-se, também, a atitude de pesquisa em diversos suportes (livros, In-ternet, outros media); além dis-so, cada criança tem oportuni-dade para uma exploração livre e pessoal dos livros à disposição (de diversas tipologias, temáticas e formatos) e, em conjunto, po-dem decidir quais requisitar pa-ra a turma; por último, há ainda todas as implicações pedagógicas (em termos de desenvolvimento da imaginação, linguagem, orali-dade, literacia, inteligência emo-cional, compreensão do mundo) proporcionadas pela vertente lú-dica da “hora do conto”, narrado pela bibliotecária num criativo avental ou tapete de histórias, dinâmico e interactivo, donde ir-rompem… animais felpudos que cooperam uns com os outros pa-ra alcançar a Lua e assim poder saboreá-la. E depois do conto, na conversa com as crianças, a bi-bliotecária pergunta a cada uma: “E a ti, a que te sabe a Lua?”, e haverá um menino que dirá: “A Lua sabe-me à minha mãe.” E o silêncio que então atravessa a bi-blioteca será o da ternura…
Segundo ponto: é por tudo isto que as bibliotecas públicas, se-jam municipais, sejam escolares – e mais ainda em contextos so-ciais desfavorecidos ou em regi-ões deprimidas do Interior, onde escasseiam as livrarias, os livros nas casas e o pão na mesa –, são um importantíssimo espaço de democracia de longo alcance (e
até mesmo de democracia sub-18, porque formar pré-leitores é educar pré-eleitores). Como se descobre num livrinho simples e encantador, Uma Biblioteca É Uma Casa Onde Cabe Toda a Gente (Bichinho de Conto). Pen-sado para os mais pequenos, este “manifesto” inclusivo também pisca o olho a pais, educadores e… sociólogos. A versão digi-tal está disponível aqui: http://www.bmel.pt/livrodamafalda/ mas, se eu fosse manda-chuva da Cultura, mandaria mesmo dis-tribuir a versão em cartão a cada cidadão.
Fazer da biblioteca um espaço de utopia, mas também de igual-dade e cidadania, tem mobiliza-do, nos últimos anos, educado-res, professores, mediadores de leitura e bibliotecários. E isto é resultado, em grande medi-da, do trabalho desenvolvido no âmbito do programa da Rede de Bibliotecas Escolares (é possível folhear uma série de iniciativas e de boas práticas em www.rbe.mec.pt). Mas o envolvimento das famílias, nomeadamente pelo es-tímulo concreto e pelo exemplo, pode reforçar mais ainda as mui-tas potencialidades e o papel pe-rene das bibliotecas como lugar de fruição e de educação perma-nente para todos.
A pensar nas famílias (mas também nas escolas), aqui fica uma sugestão – a não perder – para o Mês Internacional das Bibliotecas Escolares: o FOLIO – Festival Internacional Literário de Óbidos (http://foliofestival.com/). De 15 a 25 de Outubro, esta festa literária vai ser uma grande folia, uma transbordante biblioteca, uma casa onde cabe toda a gente. Não deixem de es-preitar a programação de cada dia. Seja em passeio familiar, seja em visita com a escola, neste Ou-tono levem as crianças e jovens a brincalhar com as folhas do FO-LIO, com paragem obrigatória na PIM!, a mostra internacional de ilustração (com uma colecção ímpar de ilustrações originais da literatura infanto-juvenil). VIVA O FOLIO! VIVA PIM!
JOANA PORTELAMãe e Revisora de Texto
Uma simples visita à Biblioteca Municipal, em termos pedagógicos, tem um alcance maior do que parece: primeiro, há a dimensão do passeio a pé pela cidade e a consequente interiorização das regras de segurança rodoviária; depois...