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 anális e fí lmi ca não é um fim em si. É um a prática que proc ede de um pedido, o qual se situa num conte xto instituaonal). Es se contexto, porém, é variá vel, e disso resultam evidentem ente deman- das também emi nent eme nte vari ávei s. Hoje em dia, a análise lmica é por vezes, requisitada por instituições escolares e universitárias exames d e final de curso, por exemplo), co ncu rso s CAPE S, lic enc ia- tura et c.) ou pesquisas teses de mestrado, teses relativas a fi lmes , dir eto res, ques tões cinematográficas). Pode igual me nte proceder de solicitações procedentes de outras instituições: imprensa escrita ou audio visua l crít ica, estu do de fil mes de diiet ores ), ediq áo livros sobr e o ci nema), cin ema const itui ção de documen taqão de apresentaç ão de filmes ou de conjuntos de filmes, tr ilms etc.). análise de filme geral mente dá lugar a uma produção esc ri ta, mas po de também co n- duzir a uma produção audiovisual ou mista fita que apresenta análises de sequências, fragmentos acompanhados de comentários, montagens de cenas ou de plano s característicos etc. ). VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. 5 ed. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papyrus, 2008:1994.

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A análise fílmica não é um fim em si.É uma prática que procede

de um pedido, o qual se situa num contexto (instituaonal). Esse

contexto, porém, é variável, e disso resultam evidentemente deman-

das também eminentemente variáveis. Hoje em dia, a análise fílmica

é, por vezes, requisitada por instituições escolares e universitárias(exames de final de curso, por exemplo), concursos (CAPES, licencia-

tura etc.) ou pesquisas (teses de mestrado, teses relativas a filmes,

diretores, questões cinematográficas). Pode igualmente proceder de

solicitações procedentes de outras instituições: imprensa escrita ou

audiovisual (crítica, estudo de filmes de diietores), ediqáo (livros sobre

o cinema), cinema (constituição de documentaqão de apresentação de

filmes ou de conjuntos de filmes, trailms etc.). A análise de filme

geralmente dá lugar a uma produção escrita, mas pode também con-

duzir a uma produção audiovisual ou mista (fita que apresenta

análises de sequências, fragmentos acompanhados de comentários,

montagens de cenas ou de planos característicos etc.).

VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne.Ensaio sobre a análise fílmica. 5 ed.

Trad. Marina Appenzeller.

Campinas: Papyrus, 2008:1994.

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A definição do contexto e do produto final é portanto indispen-

sável ao enquadramento da análise. Permite esboçar, pelo menos em

parte, seus limites, suas formas e seus suportes, seu ou seus eixos (ou,pelo menos, a possibilidade maior ou menor de escolha de eixos).A

presente obra não conseguiria evidentemente explicar todos os contex-

tos em sua especificidade. No entanto, tenta proporcionar alguns

princípios, alguns instrumentos, algumas condutas válidas em todos os

contextos, a partir do momento em que se parte deum objeto-filme para

analisá-lo, isto é, para desmontá-lo e reconstruí-10 de acordo com uma

ou várias opções a serem precisadas.

O s obstáculos à análise

A análise de filme depara-se com muitos obstádos, o que é

importante reconhecer se quisermos nos proporcionar os meios de

superá-los ou contorná-los.

Obstáculos de ordem material

Raymond Bellour' afirmava que o texto fíimicoé "impossível de

se encontrar", no sentido de que não écitável. Enquanto a análise literária

explica o escrito pelo escrito, a homogeneidade de signihcantes permi-

tindo a citação, em suas formas escritas, a análise fílmica só consegue

transpor, transcodificar o que pertence ao visual (descrição dos objetos

filmados, cores, movimentos, luz etc.) do fíimico (montagem das ima-

gens), do sonoro (músicas, ruídos, grãos, tons, tonalidades das vozes) e

do audiovisual (relações entre imagens e sons). Foi possível ver algu-

mas análises perseguindo em vão o mito de uma descrição exaustiva dofilme. Empreendimento evidentemente fadado ao fracasso. Se a com-

plexidade do objeto-filme de fato conduz à colocação com rigor do

problema de sua descrição pela linguagem e do que a ela se integra, sua

natureza de pluralidade de códigos proíbe pensar em qualquer "repro-

1. "Le texte introuvable", in L'analyse dufi lm, Paris, Albatros, 1979.

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dução verbal". É possível que os limites da descrição, da "anotação"

devam-se aos eixos de análise, às hipóteses de pesquisa colocadas no

início (ou no decorrer) da análise. Impossível de ser encontrado, o textofíimico, também naquilo em que é fugidio, movente, sempre preso ao

desenrolar da película e/ou ao circuito da distribui$ío. Ver, examinar

um filme tecnicamente nem sempre é fácil, tanto no tempo como no

espaço. Analisar um filme implica evidentemente que se veja e reveja o

filme: numa sala de cinema, na moviola, no vídeo, com a ajuda ou não

de uma transcrição escrita já existente? As condições materiais de

exame técnico do filme (auxílio, frequência, tempo, possibilidade deparar o desfile, de parar na imagem, voltas e avanços rápidos etc.)

condicionam a análise. Muitos críticos e teóricos cometeram erros ba-

seando-se numa visão única de um filme (a memória cinéfila muitas

vezes engana, pois lembramo-nos de ter visto o que agrada ou fortalece

uma hipótese de análise ou uma impressão de conjunto). Daí a necessi-

dade de averiguações sistemáticas.

Inversamente, o recurso ao videocassete, as possibilidade de

manipulação infinita do filme podem conduzir a análises "microscópi-

cas" não necessariamente pertinentes (ainda aí, tudo é questão de eixo

e hipótese de trabalho).

De qualquer modo, o analista deverá estabelecerum dispositivo

de observação do filme se não quiser se expor a erros ou averiguaçõesincessantes.Daía necessidade de aprender a anotar, de se proporcionar,

a partir do momento em que se inicia o processo de análise e em que

não se é mais uma espectador "comum", redes de observação a serem

fixadas e organizadas em função dos eixos escolhidos (privilegiados).

Obstáculos de ordem psicológica

O fato de a análise de um filme ser o produto de uma demanda,

como observamos, nem por isso afasta a pergunta do tipo "então, para

que serve?".

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De fato, de que serve descrever, analisar um filme? De que serve

essa operação que parece simétrica e inversa das que presidiram à

elaboração do filme (escrita dos diversos estados do roteiro, constitui-ção da decupagem técnica tendo em vista a filmagem)? Não é absurdo

"desmontar"o que foi pacientemente (ou impacientemente) montado?

Com efeito, as finalidades dessas operações diferem.A escrita do

roteiro, a decupagem técnica, a filmagem, a montagem e a mixagem

constituem as etapas de um processo de criação de fabricação de um

produto. A descrição e a análise procedem de um processo de com-preensão, de (re)constituição de um outro objeto, o filme acabado

passado pelo crivo da análise, da interpretação.

Mas, dirão, de que serve compreender?De que serve interpretar

um filme? Não basta vê-lo, eventualmente revê-lo, senti-lo? A meta do

cinema não é provocar emoções? Não é, antes de mais nada, um prazer,

um espetáculo? Não pertenceria, bem mais do que a literatura, e segun-do uma tradição bem estabelecida pela indústria e pelo comércio, ao

universo do lazer (mesmo que dependa de fato, hoje em dia, na França,

do Ministério da Cultura)?

Analisar um filme não é mais vê-lo, é revê-lo e, mais ainda,

examiná-lo tecnicamente. Trata-se de uma outra atitude com relação ao

objeto-filme, que, aliás, pode trazer prazeres específicos: desmontar umfilme é, de fato, estender seu registro perceptivo e, com isso, se o filme

for realmente rico, usufruí-10 melhor. A análise de um filme como

Playtime, de Jacques Tati, faz com que se descubram detalhes do trata-

mento da imagem e do som (ver o livro de Michel Chion sobre Tati2)

que aumentam o prazer a cada vez que se revê a obra.

Contudo, também existe um trabaího da análise, por pelo menos

dois motivos. Primeiro, porque a análise trabalha o filme, no sentido em

que ela o faz "mover-se", ou faz se mexerem suas significações, seu

impacto.

2. Michel Chion, lacques Tati, Cahiers du cinéma, 1987.

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Em segundo lugar, porque a análise trabalha o analista, recolo-

cando em questão suas primeiras percepções e impressões,

conduzindo-o a reconsiderar suas hipóteses ou suas opções para con-solidá-las ou invalidá-las.

Ademais, podemos observar que muitas vezes a análise acompa-

nha, precede ou sucede o trabalho de criação dos filmes: para nos

convencermos disso, basta ler os textos ou entrevistas dos grandes

cineastas, de Epstein ou Gance a Eisenstein, de Hitchcock a Fritz Lang

ou Ingmar Bergman e Truffaut. Ela se integra igualmente ao processode recepção dos filmes. Aqui seríamos tentados a convocar o nome de

grandes críticos e teóricos, de Louis Delluc a André Bazin, de Jean Mitry

a Christhian Metz.

A análise vem relativizar as imagens "espontaneistas"demais da

criação e da recepção cinematográficas. Estamos cercados por um dilúvio

de imagens. Çeu número é tão grande, estão presentes tão "naturalmente",são tão fáceis de consumir que nos esquecemos que são o produto de

múltiplas manipulações, complexas, às vezes muito elaboradas.Odesafio

da análise talvez seja reforçar o deslumbramento do espectador, quando

merece ficar maravilhado, mas tomando-oum deslumbramento partici-

pante.

O primeiro contato comum filme, a primeira visão, traz toda umaprofusão de impressões, de emoções e até de intuições, sejá nos colocamos

em uma atitude "analisante". Ora, não se quer dizer que a análise deve

suprimir esses primeiros aportes, que correm o risco de, a seguir, toma-

rem-se preciosos. De fato, impressões, emoções e intuições nascem da

relação do espectador com o filme. A origem de algumas delas pode

evidentemente dizer mais do espectador que do filme (porque o especta-

dor tende a projetar no filme suas próprias preocupações).Ofilme, porém,permanece a base na qual suas projeções se apóiam.

Não é possível conduzir, elaborar,uma análise de filme apenas

com base nas primeiras impressões. Mas seria errado separar radical-

mente o produto da atividade de espectador "comum" da análise. A

bem dizer, esse material bruto, resultante de um contato espontâneo,

ou, pelo menos, menos controlado, :om o filme, pode constituir um

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fundo de hipóteses sobre a obra. Essas hipóteses deverão, é claro, ser

averiguadas concretamente por um verdadeiro processo de análise.

Contudo, questões do tipo "como o filme conseguiu produzir em

mim este ou aquele efeito?", "como o filme me conduziu a simpatizar

com determinado personagem e a achar outro odioso?", "como o filme

gerou determinada idéia, determinada emoção, determinada associa-

ção em mim?", questões centradas no como e não no por que, conduzem

a considerar o filme com maiores detalhese a integrar, em um ou outro

momento, os "primeiros movimentos" do espectador.

O que é analisar um filme?

A análise fílmica significa duas coisas: a atividade de analisar

(quando Roger Odin, por exemplo, fala da "análise fílrnica como exer-cício pedagógicoM3); também pode significar o resultado dessa

atividade, isto é, com algumas exceçóes, um texto (se eu evocar, por

exemplo, a análise do Mépris pesprezo] por Michel Marie4).A reflexão

que se segue questiona, sobretudo, a atividade. Sua origem são as

análises-texto que mais fazem aparecer os vestígios dessa atividade

exibida, não, portanto, as elaboradas pelos especialistas, as "profissio-

nais", que, se explicitam os instrumentos que solicitam, se mostram àleitura o simulacro de sua produção, apagam e fazem esquecer os

obstáculos eventuais encontrados quando das diferentes fases do tra-

balho, mas, sobretudo, as de jovens estudantes, por vezes ricas,

cativantes, convincentes, por vezes pobres e superficiais, em todo caso

geralmente mais ingênuas, pois confessam os segredos íntimos e au-

tênticos de sua elaboração em todos os níveis. São a testemunha de

certas atitudes reflexas, o sintoma de um certo número de dificuldades

experimentadas.

3. "L'analysefilmique comme exercice pédagogique", n CiiiémActioiz,no47, Cerf-Corlet,1988.

4. Michel Marie, "Lernéplis",Étude critique, Nathan, 1991, col. "Synopsis".

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A atividade analítica, em que consiste?

Analisar um filme ou um fragmento é, antes de mais nada, nosentido científico do termo, assim como se analisa, por exemplo, a compo-

sição química da água, decompô-lo em seus elementos constitutivos.Édespedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e denominar

materiais que não se percebem isoladamente "a olho nu", uma vez que o

filme é tomado pela totalidade. Parte-se, portanto, do texto fílmico para

"desconstruí-10" e obter um conjunto de elementos distintos do próprio

filme. Através dessa etapa, o analista adquire um certo distanciamento dofilme. Essa desconstrução pode naturalmente ser mais ou menos aprofun-

dada, mais ou menos seletiva segundo os desígnios da análise.

Uma segunda fase consiste, em seguida, em estabelecer elos entre

esses elementos isolados, em compreender como eles se associam e se

tomam cúmplices para fazer surgir um todo significante: reconstruir o

filme ou o fragmento. É evidente que essa reconstrução não apresentaqualquer ponto em comum com a realização concreta do filme.É uma

"criação" totalmente assumida pelo analista, é uma espécie de ficção,

enquanto a realização continua sendo uma realidade. O analista traz

algo ao filme; por sua atividade, à sua maneira, faz com que o filme

exista.

Os limites dessa invenção, dessa "criação" são, contudo, muitoestritos. O analista deve de fato respeitar um princípio fundamental de

legitimação: partindo dos elementos da descrição lançados para fora do

filme, devemos voltar ao filme quando da reconstrução, a fimde evitar

reconstruir um outro filme. Em outras palavras, não se deveria sucum-

bir à tentação de superar o filme. Os limites da "criatividade analítica"

são os do próprio objeto da análise. O filme é, portanto, o ponto de

partida e o ponto de chegada da análise.

Duas observações:

1. Como se deve ter compreendido, a desconstruqão equivale àdescrisão. Já a reconstrução corresponde ao que se chama

com frequência a "interpretação". Muitas vezes, tem-se o

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hábito de considerar a interpretação como extrapolação com

relação ao filme. Ora, caso seja concebida, ao contrário, como

um movimento centrípeto em direção ao filme, qualquer

perigo de cair na interpretaçáo selvagem é afastado.

Com frequência, lemos análises que não distinguem explicita-

mente as fases de desconstruçáo e de reconstruçáo, que as

imbricam uma na outra, ou então, náo param de alterná-las.

Nem é preciso dizer que o texto, resultado final da atividade

analítica, não tem de explicar linearmente, cronologicamente,

os processos de sua produção. Mais ainda, inclusa no trabalho

de preparação que precede a redação, não existe uma sucessão

escolar de uma fase de descriçáo e de uma.fase de reconstrução,

mas antes uma alternância anárquica de ambas: apela-se a uma

quando a outra se esgotou e inversamente, num movimento de

balanço incessante.

As fraquezas encontradas em certas análises de estudantes (ou

de outros...) podem ser variadas:

a pessoa acredita estar interpretando, reconstruindo,

quando se contenta em descrever;

a pessoa tenta, ao contrário, interpretar antes mesmo de

ter descrito: faz uma paráfrase.

Esses dois tipos de problema são o resultado de um desequilíírio

entre as duas tarefas obrigatórias da análise.

Observamos outra fraqueza: sair definitivamente do filme para

se entregar a uma fabulação pessoal. Ou se tem um talento demasiado

grande de criador e, nesse caso, talvez fosse melhor fazer cinema do que

análise de filmes, ou, também, o analista se compromete com uma

hipótese falsa e tenta de qualquer modo defendê-la até o fim. O trata-

mento aconselhado: em primeiro lugar, desenvolver seu sentido de

autoaítica e, por outro lado, permanecer flexível intelectualmente o

suficiente para conseguir a todo instante enfrentar u m imprevisto e

aceitar a mudança de rumo.

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Ao contrário, finalmente, e esse caso talvez seja o mais comum:

quando o analista acredita nada ter a dizer sobre o filme, ou fica

aterrorizadocom a idéia de emitir uma hipótese um tanto pessoal sobreele, refugia-se na citação e na síntese de todos os escritos existentes

sobre esse filme. Esse esforço enciclopédico não é de forma alguma

condenável, contanto que não se o confunda com a atividade analítica,

com a qual não tem estritamente qualquer ponto em comum.

Nessa busca documentária, recolhe-se duas espécies de textos:

textos de informação "geral" (textos relativos à filmagem, informaçõessobre o diretor e sua carreira, história do cinema ...) e eventualmente

análises (o roteiro deve ser considerado à parte, pois também pode

constihir um objeto de análise). Veremos adiante em que medida é

possível explorar os primeiros (tampouco deve-se confundir análise de

filme e conjunto de histórias que cercam o filme). Quanto às análises do

filme já existentes, não é que se deva ignorá-las. Ao contrário, deve-se

utilizá-las, mas, antes de mais nada, épreciso sobretudosaberutilizá-las,não considerando-as de imediato como um saber obrigatório, prelimi-

nar, à análise, o que seria abandonar seu próprio trabalho de análise. De

fato, é imensamente mais difícil elaborar por conta própria, enquanto

estudante, a análise de um filme quando já se conhece uma do que se

envolver com a mente limpa. No limite, por que não abordar, numa

primeira fase, o filme sem preconceito, sem idéias preconcebidas, efe-

tuar sua pesquisa pessoal com toda a liberdade? Só depois

documentar-se, ler as análises dos outros, já tendo em mente pelo

menos uma (ou algumas) hipótese(s) pessoal(is). Só desse modo é

possível existir confronto, discussão, eventualmente um ajuste e até,

por que não, uma modificação radical do próprio ponto de vista. E, é

claro, se alguém se permitiu encontrar antes de mim uma idéia genial

sobre o filme que estou analisando, tem prioridade, devo citá-lo einclinar-me e não repetir e apropriar-me da idéia em questão (que,

contudo, também me pertence...).

Aparentemente, a natureza da relação do analista com "seu"

filme determina em parte a riqueza da própria análise, e a pobreza de

algumas análises provém, às vezes, das dificuldades que o analista tem

de entrar numa relação correta com seu objeto.

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Conhecemos o poder hipnótico da imagem, quer esteja impressa na

tela da sala escura, quer seja televisual. Sabemos com que facilidade somos

capazes de abolir a distância entrenós e a tela para entrar e até engolfar-mo-nos no mundo ficcional do filme. A analogia, muito relativa, mas nem

por isso menos poderosa, entre a imagem fílmica e o mundo reforça essa

proximidade que não facilita a reflexão "científica" e a produção de um

discurso sobre o filme. A obra de Jacques Aurnont, A imagem, e, em

particular, os capítulos I e II são uma síntese notável sobre a percepção,

seuscomponentes fisiológicos e psicológicos. Precisemos, contudo, a po-

sição do "espectador-analista", que se tem o costume, com razão, de oporao espectador "normal".De fato, se é, também ele, um "espectador dese-

janteu5,seu desejo (consciente)é, antes de mais nada, "compreender" o

filme ou o fragmento escolhido a fim de estar em condições de elaborar

um discurso a esse respeito. Analista e espectador ''normal" não recebe-

riam portanto o filme da mesma maneira, pois o primeiro busca

precisamente distinguir-se de forma radical do segundo, não se deixar

dominar como o último pelo filme.

ESPECTADOR NORMAL ANALISTA

Passivo, ou melhor, menos ativo Ativo, conscientemente ativo,

do que o analista, ou mais exata- af ivo de maneira racional,

mente ainda, ativo de maneira estruturada.

instintiva, irracional.

Percebe, vê e ouve o filme, sem de- Olha, ouve, observa, examinasígnio particular. tecnicamente o filme, espreita,

procura indícios.

Está submetido ao filme, deixa-se Submete o filme a seus

guiar por ele. instrumentos de análise, a suas

hipóteses.

Processo de identificação. Processo de distanciamento.

Para ele, o filme pertence ao uni- Para ele, o filme pertence ao campo

verso do lazer. da reflexão, da produção intelectual.

5. JacquesAumont,A imagem,Papirus, 1993.

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A idéia normalmente admitida e moralmente tranqüilizadora

pretende que a qualidade do trabalho seja mais ou menos proporcional

à amplidão e à intensidade do esforço fornecido pelo analista contra ofilme, tendo em vista "persegui-lo, brutalizá-10 e até rompê-lo um

po~co"~ .udo acontece, portanto, como se a relação entre o analista e o

filme devesse ser necessariamente uma relação de força, de luta. Se o

filme me hipnotiza e me domina, eu, analista, vou, como reação, criticar

o filme, ou melhor, atacar o filme; em suma, vingar-me do filme para

finalmente dominar. Esse ponto de vista requer, contudo, maiores

nuanças, pois, se um distanciamento total e uma relação de luta com ofilme são para alguns um remédio para os "bloqueios e decepções

~lteriores"~,ecerto para muitos são a própria causa de um bloqueio e

de uma decepção de outra ordem. Sim, a análise de uma sequência de

um filme exige tempo, perseverança, implica passar por uma série de

tarefas obrigatórias e resistir em parte à sedução operada pelo filme

(situamo-nos aqui de imediato no contexto de uma análise realizada

pelo tempo que for necessário em companhia do filme sob a forma de

videocassete, por exemplo). No entanto, é bem conhecida a sensação

dolorosa do esforço obstinado e contudo vão, infrutífero, estéril, que às

vezes conduz ao desencorajamento e à terrível angústia do vazio.

Ousamos pensar que talvez seja aí que comeqa precisamente o verda-

deiro trabalho: aceitar esse vazio, esse hiato, não tentar lutar

desesperadamente contra a angústia com instrumentos de análise ousoluções alternativas, não, deixá-la seguir seu curso e sobretudo deixar

o filme executar seu trabalho, pois parte do trabalho é incumbência

dele.

Assim, propomos que o analista se instale às vezes, até regular-

mente, diante do filme ou do fragmento, sem tentar fazer um esforço

intelectual particular; sugerimos a ele que solte as rédeas, que se permi-ta nada buscar, que deixe o filme estabelecer sua lei. Assim, então, ele

volta a encontrar uma espécie de disponibilidade e outorga-se a possi-

bilidade de deixar-se surpreender agradavelmente e de conseguir

6 . Roger Odin, in CinérnAction, no47, op. cit.7. Ibid.

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acolher elementos novos que se situam fora de suas projeções e desuas preocupações particulares. Às vezes, esses elementos podem

constituir um aporte considerável e principalmente uma renovação.É claro que o conselho, aqui, evidentemente não pontifica parar porcompleto qualquer atividade intelectual. Propõe modificar e flexibi-lizar uma metodologia que a angústia tende às vezes a tornar rígida.Sugere simplesmente proceder de vez em quando a um afrouxamen-to intelectual que permita uma recepção mais sutil, mais refinada dofilme, de um certo modo, mais "terna" e que pode se revelar muito

produtiva. Voltar a ser o espectador "normal"por alguns momentos,deixar o filme falar, procurar sem buscar: contemplar sem olharfreneticamente, prestar atenção sem aguçar os ouvidos, estar alertasem violência.O trabalho opera-se através de uma série de vaivéns.Oanalista diz coisas sobre o filme, o filme também diz coisas. Podemser estabelecidos um diálogo, uma respiração, que evitam a satura-ção, a estagnaçáo.

Apresentaçáo da obra

A presente obra esforça-se por corresponder exatamente ao

que acaba de ser exposto. Propõe, numa primeira parte, algunselementos de reflexão geral relativos à história das formas cinemato-gráficas, as ferramentas da narratologia e os problemas dainterpretação. Essa parte não tem o intuito de estabelecer um contex-to rígido, e sim de proporcionar referências e precisar um estado deespírito propício à conduta da análise. A segunda parte propõeanálises, do plano isolado ao filme inteiro. Não pudemos abordar,

nos limites desse livro, a questão da análise de um conjunto de filmes(obra de um cineasta, corpus de filmes reunidos por um critériocomum: período e local de produção, tema, gênero etc.); esse tipo detrabalho prolonga o nosso, mas requer o estabelecimento de opera-ções complementares específicas.

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Vague francesa), mas em contextos diferentes, as formas e as significa-ções sendo, com isso, automaticamente renovadas.

Em outras palavras, as formas cinematográficas constituem-senum fundo cultural no qual os cineastas se inspiram, e cabe ao analistaexplicar os movimentos que dele decorrem.

Quadro 1OS COMPONENTES DO PLANO

Definição

Porção do filme impressionada pela câmera entre o início e o final de umatomada; num filme acabado, o plano é limitado pelas colagens que o ligam aoplano anterior e ao seguinte.

Componentes do plano

1.A duração (do "instantâneo fotográfico" ao plano que esgota a capacidadetotal de carga do filme na câmera).

2. Ângulo de filmagem (tomada frontal/tomada lateral, plongtelcontre-plongée etc.).

3. Fixo ou em movimento (câmera fixa/câmera em movimento: tl.auelling,panorâmica, movimento com a grua, câmera na mão etc; objetiva fixalzoom:movimento ótico).

O plano-sequência, fixo ou em movimento, realiza a conjunção de um únicoplano e de uma unidade narrativa (de lugar ou de ação).

4. Escala (lugar da câmera com relação ao objeto filmado): plano geral ou degrande conjunto; plano de conjunto, plano de meio conjunto; plano médio(homem em pé); plano americano (acima do joelho); plano próximo (cintura,busto); primeiríssimo plano (rosto); plano de detalhe (insert, pormenor).

5. Enquadramento: inclui o lugar da câmera, a objetiva escolhida, o ângulo detomadas, a organização do espaço e dos objetos filmados no campo.

6. Profundidade de campo: de acordo com a objetiva escolhida, a iluminação,a disposição dos objetos no campo, o lugar da câmera, a parte de camponítida, visível, será mais ou menos importante.

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7. Situação do plano na montagem, no conjunto do filme: Onde? Em quemomento? Entre o quê e o quê? etc.

8. Definição da imagem: cor/preto e branco, "grão" da fotografia, iluminacão,composiçáo plástica etc.

Sobre o plano, "Voici", de Pascal Bonitzer, in Cahiers du cinéma, 2 273-275,1977.

Quadro 2

SEQUÊNCIASE PERFIS

SEQUENCIAIS1. Sequência

Definição: conjunto de planos que constituem uma unidade narrativa defini-da de acordo com a unidade de lugar ou de ação. O plano-sequência

corresponde à realização de uma sequência num único plano.

Alguns grandes tipos de sequências:

- arâmetros fílmicos (segundo Christian ~ e t z ~ )

a cena ou sequência em tempo real: a duração da projegão iguala aduração ficcional;

a sequência "comum":comporta elipses temporais mais ou menos impor-tantes; sucessão cronológica;

a sequência alternada: mostra alternadamente duas (ou mais do que

duas) açóes simultâneas;a sequência "em paralelo": mostra alternadamente duas (ou mais doque duas) ordens de coisas (açóes, objetos, paisagens, atividades etc.),sem elo cronológico marcado, para estabelecer, por exemplo, umacomparação;

a sequência "por episódios": uma evolução que cobre um período detempo importante é mostrada em alguns planos característicos separa-

dos por elipses;

a sequência "em colchetes": montagem de muitos planos que mostramuma mesma ordem de acontecimento (a guerra, por exemplo).

6 . Christian Metz, Essais sul. la sigtzification ai1 cinéma, tomo 1, Klicksieck, 1968.

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- arârnetros de roteiro: permitem distinguir as sequências:

em externalem interna;

de dia/ de noite;

visuais/ dialogadas;

de ação, de movimento, de tensão/inação, imobilidade, distensão;

íntimas/ coletivas, públicas;

com um personagem/com dois personagens/de grupo; etc.

2. Perfis seqgenciais

Dependem das seguintes variáveis:

número e duração das sequências = permitem opor filmes (ou partes de

filme) muito "decupadas" a outras pouco decupadas (comparar Hitch-

cock e Angelopoulos, por exemplo);

encadeamento das sequências: rápidallenta; corte seco/corte demarca-

do (escurecimentos, encadeamento musical ou sonoro etc.);cronologicamente marcada/acronológica; logicamente motivada/não

claramente motivada; contínua / descontínua;

ritmo inter e intra-sequencial: rápido/lento; seco/suave, contínuo/des-

contínuo etc.

Algumas fel-l-amentas nal-l-a ológicas

As abordagens narratológicas do filme hoje presentes no merca-

do são extremamente numerosas e variadas: algumas, teóricas, têmcomo intuito edificar uma narratologia da expressão; colocam em jogo

o conjunto de narrativas fílmicas diante do conjunto das narrativas não

fílrnicas (teatrais e romanescas, por exemplo). Outras, dentro do conjunto

das narrativas fílmicas através da história do cinema visam estabelecer ou

participam do estabelecimento de uma tipologia de narrativas definindo

grandes formas narrativas.Finalmente, a adotada pelo analista-narratólo-

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determinado personagem, adquire outro se varre determinada paisa-

gem... O conteúdo e a expressão formam um todo. Apenas sua

combinação, sua associação íntima é capaz de gerar a significação. Nãoé possível pretender trabalhar sobre o sentido de um filme sem convo-

car de imediato e em sincronia a história e a maneira. Queneau não nos

convenceu em definitivo que contar de maneira diferente é mudar o

sentido?"

Finalmente, a narração corresponde, ainda segundo Marc Ver-

net, ao "ato narrativo produtor e, por extensão, ao conjunto da situaçãoreal ou fictícia na qual ocorre.Diz respeito às relações que existem entre

o enunciado e a enunciação tal como se mostram à leitura na narrativa:

portanto, só são analisáveis em função de vestígios deixados no texto

narrativo", ou melhor, segundo Christian Metz, em função de "configu-

rações enunciativas" (pois a enunciação nem "sempre é mrcada, mas é

sempre agente")12.

Metz e Vernet o dizem com razão: é dentro do texto que se

encontram os indícios da enunciação desse texto. Evitemos procurar

fora os indícios da enunciação desse texto. Evitemos procurar fora do

texto algum enunciador ou narrador, responsável pela produção do

texto. Deixemos principalmente de lado a noção de autor que não se

refere diretamente a narratologia. Posso dizer: Alfred Hitchcock dirigiu

Rebecca (para ser preciso, seria necessário citar ao mesmo tempo o

conjunto de seus colaboradores), mas certamente não é Hitchcock que

"enuncia"a narrativa quando o vejo no cinema, é o próprio filme que

"se enuncia".

A enunciação

Não seria apenas no título de seu livro- énunciation impersonelle

ou le site dufilm- ue Christian Metz afirma explicitamente a nature-

za não antropomórfica da enunciação fílmica. Nas primeiras páginas

11. Ver Raymond Queneau, Exercices de sf yle , Folio-Gallimard, 1947.

12. Christian Metz, L'étzotlciafion impersonelle ou le sif e du fi lm , Méridiens-Kiiicksieck, 1991.

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da obra, ele mostra como, conscientemente ou não, tem-se uma

tendência quase natural a colocar no que precede o filme e no que lhe

sucede instâncias às quais se atribui mais ou menos explicitamenteuma natureza humana; essas instâncias remetem, de uma maneira

mais ou menos confessa, ao autor e ao espectador. Isso poderia

explicar que se tenha tentado transpor para o domínio fílmico o

dispositivo enunciativo do intercâmbio verbal, fundado no aparelho

dêitico (chama-se dêitico qualquer marca, qualquer indicador que

remete tanto ao locutor quanto à situação de enunciação. Os mais

comuns são os pronomes pessoais, os pronomes e adjetivos posses-

sivos e demonstrativos, os advérbios de tempo e de lugar e os tempos

dos verbos). Numa frase do tipo: "Eu estou lhe devolvendo o dinhei-

ro que tomei emprestado ontem", o presente de "estou devolvendo"

remete ao presente da enunciação, o passado de "tomei emprestado"

e o advérbio de tempo "ontem" remetem a iim passado uelativo ao

presente da enunciação, o pronome "eu" remete ao locutor e o pro-

nome "lhe", ao interlocutor. A partir desse modelo, tentou-se

denominar "eu" a fonte da enunciação fílmica (ou literária) e "você",

seu alvo, considerando desse modo o filme como o lugar de uma

conversa indireta (ou como uma metáfora de conversa) entre a fonte

e o alvo da enunciação.

Ora, diz-nos Christian Metz, não é porque os diálogos filmicos

(ou as partes dialogadas de um romance) empregam a bateria dêitica

que devemos nos autorizar a assimilar a enunciação fílmica (ou

literária)à enunciação da conversa. Num intercâmbio verbal oral, "os

dêiticos fornecem informações sobre a enunciação através da própria

enunciação", enquanto os dêiticos dos diálogos de um filme forne-

cem informações não sobre a enunciação do filme, mas sobre uma

enunciação interna, ela própria enunciada pelo filme (quando umpersonagem de filme diz "Eu sempre odiei essa mulher", o "eu" não

remete à fonte de enunciação do filme, é claro). Por outro lado, ao

contrário da conversa, o filme e o romance são "discursos preparados

de antemão e imutáveis". Imaginemos que à frase "Estou devolvendo

a você o dinheiro...", emitida pelo locutor X, o interlocutor Y responda

de uma maneira muito original "Eu lhe agradeço". Nessa resposta

curta, o "eu" não remete mais a X como na primeira frase, mas a Y, e o

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"lhe"não mais aY, mas aX. Na conversa, o "eu" e o "você" são intercam-

biáveis a qualquer momento. O discurso não está congelado, Y pode

intervir no discurso de X e X no de Y. Essa "reversibilidade"do "eu" e do"você faz parte dos fundamentos da enunciação dêitica no intercâmbio

oral. Nada disso ocorre na enunciação fílmica ou literária, nenhum diálogo

verdadeiro possível entre a fonte e o alvo, nenhuma intervenção possível

do "você, nenhuma intercambialidade dos papéis.

Finalmente, Christian Metz aponta a diferença entre romance

e filme: o romance éverbal por inteiro, a matéria do filmeé amplamenteextra-linguística. Alguns pesquisadores chegam a recusar a noção de

en~mciaqãoeferindo-se ao filme, sob o pretexto de que esta só pode ser

aplicada à palavra e à escrita e não à produção de imagens. Sem chegar

a privar o filme de enunciação, será necessário em todo caso "conceber

um aparelho enunciativo que não seja essencialmente dêitico (e portan-

to antropomorfo), pessoal (como os pronomes denominados dessa

maneira) e quenão imite tão de perto este ou aquele dispositivo lingiís-

tico". Para isso, nosso autor propõe em primeiro lugar substituir os

termos "enunciador" e "enunciatário",cujo sufixo duvidoso soa demais

à maneira antropomórfica,por "fonte ou foco da enunciaqão"e "alvo ou

desígnio da enunciação", mais neutros. Em seguida, mostra que, se a

enunciaqão não é principalmente detectável pelos dêiticos, ela o é "por

construções rc.flexivas".É

quando "ofilme~zosfaladele mesmo, ou do cinema,ou da posiçiio do espectador", que desvenda os segredos de seu dispositivo

enunciativo.O enunciado se "desdobra", "curva-se sobre si mesmo" e

fala da situação de sua produção. Metz dá o exemplo dos personagens

de um filme que, olhando por urna janela, lembram a mim, espectador,

que estou no cinema, numa posição próxima, a tela sendo minha

"janela"". Isso constitui uma configuraqão enunciativa.O filme no filme

(o filme mostra uma projeqão de filme) é igualmente uma figura dereflexividade muito explícita ..Desse modo, Metz analisa em seu livro

as grandes configurações enunciativas.

13. Op. cit.,p. 21.

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A questão da produção da narrativa deu lugar a uma profusão

terminológica que merece ser um pouco reinserida em seu contexto.

O que é possível afirmar de imediato é a presença mais ou menosmarcada em cada filme narrativo de um foco, de uma fonte, uma

instância de enunciação (Christian Metz), parente próximo da ins-

tância narradora, ou narrador fundamental, narrador de primeira

ordem, meganarrador (André Gaudreault14). 0 s dois autores atri-

buem a mesma origem a seus "monstros": o "Grande Imaginador",

o "Mestre de cerimônias" de Albert ~ a f f a y ' ~ . parentesco entre

enunciação e narração é, portanto, evidente. Tomando o cami-nho oposto de u m certo número de pesquisadores, Christian

Metz chega a assimilar as duas noções no caso do filme narra-

tivo, "n ão mai s di sp on do e ntã o d e critério teórico para

distingui-los": "Quando um filme é narrativo, tudo nele se torna

narrativo, mesmo o grão da película ou o timbre das v ~ z e s . " ' ~ó

nos filmes não narrativos é que se sente a diferença: neles, a

narração está ausente, mas não a enunciação. "Enunciação" é um

termo mais geral do que "narração", pois se aplica a qualquer tipo

de enunciado. Ao contrário, a narração só interessa aos textos

narrativos nos quais se confunde com a enunciação. O narratólogo

adotará, de preferência, os termos de narração, instância de narra-

ção, narrador, mais cúmplices e familiares aos olhos dele, mas

permanecerá aberto e "convivente" com relação a qualquer propó-sito considerado em termos de enunciação e derivados.

Narrador(es) e instância narradora

Essa instância narradora fundamental pode delegar seus pode-

res a um ou a vários narradores que se encarregam da totalidade ou de

uma parte da narrativa. Esse narrador delegado pode assumir váriasformas:

14. An dré Gaudreault, op. cit.15. Albert Laffay, Logique du ciizéma, Paris, Masson, 1964.

16. Christian Metz, op. cit., p. 187.