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Variação linguística: língua portuguesa e o preconceito na mídia Tania Regina Montanha Toledo SCOPARO 1 Eliane Aparecida MIQUELETTI 2 Resumo Considerando a importância da variação linguística no ensino de Língua Portuguesa, este trabalho realiza uma revisão bibliográfica sobre a temática e faz análise de duas capas da revista Veja, com o objetivo de mostrar que a mídia incute a visão de certo e errado ao falar dos usos da Língua Portuguesa e ao enfatizar o domínio da norma culta à ascensão social, sem considerar as outras formas de uso da língua, pode auxiliar na propagação do preconceito linguístico. A base teórica principal é a Sociolinguística, mas também conta com as contribuições da Semiótica greimasiana. Palavras-chave: Variação linguística; Mídia; Preconceito linguístico. Abstract Considering the importance of linguistic variation in the teaching of the Portuguese language, this paper reviews the literature on the subject and makes analysis of two cases of Veja magazine, in order to show that the media instills the vision of right and wrong when talking about the uses Portuguese Language and emphasize the field of cultural norms for social mobility, without considering other forms of language use, can assist in the spread of linguistic prejudice. The theoretical basis is the main sociolinguistics, but also relies on the contributions of semiotics greimasian. Keywords: Linguistic variation; media; Linguistic Prejudice. 1 Professora na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Doutoranda na Universidade Estadual de Londrina. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. Rod. Celso Garcia Cid, Pr 445 - km 380. Caixa Postal 10.011. Londrina PR. CEP: 86057-970. Email: [email protected] 2 Doutoranda na Universidade Estadual de Londrina. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. Rod. Celso Garcia Cid, Pr 445 - km 380. Caixa Postal 10.011. Londrina PR. CEP: 86057- 970. Bolsista CAPES. Email:[email protected].

Variação linguística; Mídia; Preconceito linguístico. · Variação linguística: língua portuguesa e o preconceito na mídia Tania Regina Montanha Toledo SCOPARO 1 Eliane Aparecida

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Variação linguística: língua portuguesa e o preconceito na mídia

Tania Regina Montanha Toledo SCOPARO 1

Eliane Aparecida MIQUELETTI 2

Resumo

Considerando a importância da variação linguística no ensino de Língua Portuguesa,

este trabalho realiza uma revisão bibliográfica sobre a temática e faz análise de duas

capas da revista Veja, com o objetivo de mostrar que a mídia incute a visão de certo e

errado ao falar dos usos da Língua Portuguesa e ao enfatizar o domínio da norma culta à

ascensão social, sem considerar as outras formas de uso da língua, pode auxiliar na

propagação do preconceito linguístico. A base teórica principal é a Sociolinguística,

mas também conta com as contribuições da Semiótica greimasiana.

Palavras-chave: Variação linguística; Mídia; Preconceito linguístico.

Abstract

Considering the importance of linguistic variation in the teaching of the Portuguese

language, this paper reviews the literature on the subject and makes analysis of two

cases of Veja magazine, in order to show that the media instills the vision of right and

wrong when talking about the uses Portuguese Language and emphasize the field of

cultural norms for social mobility, without considering other forms of language use, can

assist in the spread of linguistic prejudice. The theoretical basis is the main

sociolinguistics, but also relies on the contributions of semiotics greimasian.

Keywords: Linguistic variation; media; Linguistic Prejudice.

1 Professora na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Doutoranda na Universidade

Estadual de Londrina. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. Rod. Celso Garcia Cid, Pr

445 - km 380. Caixa Postal 10.011. Londrina – PR. CEP: 86057-970. Email: [email protected]

2 Doutoranda na Universidade Estadual de Londrina. Programa de Pós-Graduação em Estudos da

Linguagem. Rod. Celso Garcia Cid, Pr 445 - km 380. Caixa Postal 10.011. Londrina – PR. CEP: 86057-

970. Bolsista CAPES. Email:[email protected].

Introdução

A história já provou que a língua é instrumento de poder em diversos aspectos,

entre outros exemplos, temos desde a bíblica história da Torre de Babel, na qual, para

mostrar seu poder, Deus mistura os idiomas para que os povos não mais se entendessem

impossibilitando a construção da torre. Na história das colonizações, como a do Brasil,

aos povos dominados é imposta a língua do dominador, em resumo, as línguas humanas

são mais do que instrumentos de comunicação, são, além disso, “reflexo da cultura de

um povo”, “mecanismos de identidade” (SCHERRE, 2005, p. 10).

Diante disso, as variações ocorrem seguindo, também, o curso das modificações

sociais. Em frente a essa perspectiva, nota-se que a mídia, enquanto veículo de

comunicação e, porque não, instrumento de poder, revela-se como importante

veiculador de valores e ideologias linguísticas, incutindo na sociedade afirmações que

nem sempre condizem com a realidade linguística, mas com vistas a objetivos

socioeconomicamente determinados.

Dessa forma, o objetivo deste trabalho é mostrar que a mídia incute a visão de

certo e errado ao falar dos usos da Língua Portuguesa, toma como certo absoluto a

“norma padrão” e erradas as variações que fogem a ela. Ademais, generaliza ao aliar o

domínio da norma padrão à ascensão social.

Partimos das seguintes hipóteses: a variação linguística e o uso de variedades mais

próximas da culta são direcionadas pela mídia de acordo com o que convém. As

variedades que fogem ao padrão culto continuam sendo usadas como mote para piadas,

atos pejorativos. O domínio dessa é reconhecido como a correta e necessária para a

ascensão social, desconsiderando as outras variedades existentes.

Para isso, realizamos um trabalho de revisão bibliográfica sobre a temática e

análise do corpus constituído de duas capas das revistas Veja, edições de 12/09/2007 e

11/08/2010.

Cabe destacar que a base teórica assenta-se nas prerrogativas da Sociolinguística

aliada à Semiótica Greimasiana, para a construção da análise das capas da revista Veja,

via metodologia do “percurso gerativo de sentido”, como auxiliar na verificação da

prova das hipóteses levantadas.

O tópico a seguir realiza algumas considerações teóricas em torno da

Sociolinguística e das prerrogativas que embasam as discussões sobre norma e

variações linguísticas; noções de certo e errado. O que se refere às bases teóricas da

Semiótica Greimasiana e a seu modelo metodológico, o percurso gerativo de sentido,

que fundamenta a análise das capas da revista Veja, estará na própria análise.

1. A Sociolinguística: algumas bases

Sociedade e linguagem estão desde sempre inter-relacionadas e a variação é algo

inerente a ambas, resultado da dinâmica comunicativa que as sustenta. Nessa

perspectiva enquadra-se a Sociolinguística, essa se preocupa com o uso da língua na

sociedade. Cabe assinalar, rapidamente, que apesar da Linguística ter se consolidado

como ciência a partir dos estudos saussureanos publicados no livro Curso de Linguística

Geral, em 1916, ao definir a língua (langue), sob um ângulo social, como objeto central

de seu estudo linguístico, em oposição à fala (parole), algo individual, a língua ainda

era vista como um sistema de regras, sistema estático, homogêneo, regular, ou seja,

privilegiava-se o caráter formal e estrutural do fenômeno linguístico (ALKMIM, 2001,

p. 23), o falante e os diversos modos como a língua se apresenta não eram considerados.

A Sociolinguística surge a partir da importância dada à fala, sua preocupação é

com o fenômeno linguístico em sua abrangência dialetal e variacional, observando

como a língua funciona em um contexto de fala, e quais os fatores que influenciam para

que as mudanças linguísticas aconteçam. Seus estudos foram consolidados depois de

1964 com a realização de um congresso na Universidade da Califórnia, no estado de

Los Ângeles, Estados Unidos, organizado por William Bright, e contou com a

participação de importantes figuras nos estudos da Sociolinguística mundial: William

Labov, Dell Hymes e John Gumperz (SOUSA, 2005, p.153).

Outros estudiosos como F. Boas (1911), Edward Sapir (1921) e Ben Jamin L.

Whof (1941), assim como, Antoine Meillet, Mikhail Bakhtin, Marcel Cohen, Émile

Benveniste e Roman Jakobson, que valorizavam a relação interdisciplinar entre

linguagem, cultura e sociedade, também contribuíram para a formação da

Sociolinguística atual (SOUSA, 2005, p. 154).

De maneira geral, essa área de estudo preocupa-se em estudar a língua em uso na

comunidade de fala, sendo assim, considera a língua como algo social, pertencente a

todos os indivíduos de uma comunidade, estrutura viva, nesse ponto integra seu caráter

heterogêneo, onde se situa as variações linguísticas. Bortoni-Ricardo (2005, p.20)

lembra que a Sociolinguística ocupa-se, sobretudo, “[...] das diversidades nos

repertórios lingüísticos das diferentes comunidades conferindo às funções sociais que a

linguagem desempenha a mesma relevância que até então se atribuía tão-somente aos

aspectos formais da língua”.

Ainda que rapidamente, cabe observar que entre os principais autores que

fundamentam as bases da Teoria da Variação e Mudança Linguística, sobretudo no que

se refere à interferência dos aspectos da estrutura social na mudança ao longo do tempo,

sincrônica, são eles Weinreich, Labov e Herzog ([1975] 2006), eles estabelecem como

ponto essencial de investigação histórica localizar o fenômeno tanto no contexto

estrutural (interno) quanto no contexto social (externo). De maneira geral, estuda a

variação e a mudança da língua no contexto social da comunidade de fala. A língua não

é propriedade do indivíduo, mas da comunidade (é social). Nesse sentido, o conceito de

mudança é visto como “um processo contínuo e o subproduto inevitável da interação

linguística” (WEINREICH, LABOV e HERZOG, 2006 [1975], p. 87 e 139), ou seja, a

dinâmica interna da língua produz mudança linguística.

Diante disso, a heterogeneidade linguística é vista na relação com o social e

frente a sua própria subjetividade, o sujeito é livre para escolher e adequar-se as várias

situações de uso da língua. As diversidades, coletivas ou individuais, são formas de

identificação dos “membros de uma nação, ligados por traços socioculturais,

econômicos e políticos, tradicionalmente firmados, identificam-se e distinguem-se dos

membros de outra pelo seu instrumento de comunicação” (CAMACHO, 1988, p.29).

Sendo assim, não há língua sem variação, no contato entre línguas, ou entre falantes elas

se individualizam, modificam e variam. Além disso, historicamente as línguas sofrem

alterações, já que “uma língua é um objeto histórico, enquanto saber transmitido,

estando, portanto, sujeita às eventualidades próprias de tal tipo de objeto. Isso significa

que se transforma no tempo e se diversifica no espaço” (CAMACHO, 1988, p.29).

No entanto, não são somente as diferenças entre os idiomas que marcam a

diversidade linguística, a mesma língua sofre influência ao longo do tempo, fatores

diversos modificam-na, para além de aspectos temporal e espacial. Nesse bojo,

Camacho (1988) aponta para aspectos sociais (idade, sexo, classe social, escolaridade

etc.) e estilísticas (estilo formal, informal, coloquial, culto etc.). Esses integram as

quatro modalidades de variações linguísticas: histórica, geográfica, social e estilística.

A variação histórica acontece ao longo de determinado período do tempo. A

mudança é gradual, uma variante inicialmente passa a ser usada por um grupo restrito

de falantes e só é substituída quando “ao se propagar, é adotada por um grupo

socioeconomicamente expressivo” (CAMACHO, 1988, p.30) e então é fixada pelo uso

na modalidade escrita.

Em relação à variação geográfica, estão relacionadas à espacialidade, as

mudanças de pronúncia, vocabulário e estrutura sintática que ocorrem em comunidades

linguísticas maiores que falam o mesmo idioma, como ocorre entre os falantes do sul e

do nordeste do Brasil.

A variação social está ligada à capacidade verbal que membros de mesmo grupo

sociocultural da comunidade vão assemelhando de acordo com fatores como: o nível

socioeconômico do indivíduo, o grau de educação, a idade e o sexo, fatores que podem

ocorrer isolados ou relacionados. Cabe observar que a variação social não prejudica a

compreensão entre indivíduos, o que pode acontecer na variação regional. Ademais, o

uso de certas variantes pode indicar o nível socioeconômico e cultural das pessoas, no

entanto, nada impede que o indivíduo de um grupo menos favorecido atinja o padrão de

prestígio de acordo com as relações culturais e profissionais, por exemplo, “o

intercâmbio cultural e profissional entre indivíduos de meio diverso possibilita a

adaptação das formas de expressão de um para outro grupo” (CAMACHO, 1988, p.33).

A última variação abordada é a estilística, está relacionada ao uso individual, ou

seja, as variações do estilo linguístico que cada indivíduo utiliza dependendo das

variações das situações de comunicação, a linguagem é adequada de acordo com

determinada finalidade, dessa forma tem-se: a relação familiar, a profissional, o grau de

intimidade, o tipo de assunto tratado, os receptores. “Tal adequação decorre de uma

seleção dentre o conjunto de formas que constitui o saber linguístico individual, de um

modo mais ou menos consciente” (CAMACHO, 1988, p.34).

É importante ressaltar, ainda, que as variações linguísticas se inter-relacionam,

por isso é comum que um mesmo falante apresente mais de uma delas, além disso, para

que a mudança ocorra, em determinado momento, ambas, a substituta e a substituída,

coexistirão, apenas com o reconhecimento pela maioria dos membros da comunidade de

prestígio a substituta passa a ser considerada.

Em síntese, é preciso considerar que as variações podem ocorrer nas diversas

manifestações da língua, é uma característica inerente das línguas naturais. Constitui um

fenômeno regular, sistemático, motivado por regras do sistema linguístico, cada uma

delas possui suas regras próprias e não aleatórias. No entanto, como corrobora Camacho

(1988) é comum a imposição da norma linguística do grupo dominante, considerando-a

como a correta, inculcando a distinção entre “correto” e “incorreto”, visão conservadora

de língua e elitista, em detrimento das variações estigmatizadas. De maneira geral, com

essa forma de tratamento da língua, muitas vezes também propagada pela escola, ajuda-

se a criar uma forma de discriminação social.

Faraco (2008) ao falar sobre as mudanças que a escola sofreu ao longo do

tempo no que se refere ao tratamento dado ao ensino da norma culta e comum, afirma:

O senso comum também não distingue a norma

culta/comum/standard falada da norma escrita. Em conseqüência, não

é rara a crença de que se deve falar como se escreve.

Por fim, o senso comum não distingue a norma culta – isto é, a

variedade efetivamente praticada pelos falantes letrados nas situações

mais monitorada de fala ou escrita - e a norma curta - isto é, os

preceitos conforme estipulados pela tradição gramatical normativa

conservadora (FARACO, 2008, p.190).

De forma geral, segundo o estudioso, a escola não dá conta de uma pedagogia

para trabalhar as variações linguísticas e acaba fortalecendo o preconceito linguístico;

e, por conseguinte, ajuda na manutenção de poder da classe dominante, como bem

lembra Labov: “a causa primária do fracasso educacional não são as diferenças

linguísticas, mas o racismo institucional” (LABOV, 1984, apud MONTEIRO, 2002, p.

149). Em torno dessas questões gira o tópico a seguir.

1.1 Entre certo e errado, a supremacia da norma culta

Apesar do surgimento e desenvolvimento dos estudos da Sociolinguística, boa

parte da sociedade ainda crê que há uma variedade mais certa do que outras. O

problema do “certo”/”errado” reside na pouca compreensão de que a variação está

inscrita na língua, é própria dela, como apontamos no tópico anterior. De maneira geral,

é possível verificar que há mudanças que advém da própria língua, lógica interna, e

outra diante das condições sócio-históricas em que vive.

Faraco, no artigo “Norma-padrão brasileira” (2002), explica que a raiz do

preconceito linguístico na cultura brasileira e das atitudes puristas e normativistas que

veem erros em toda parte e condenam qualquer uso de formas que fuja ao estipulado

pelos compêndios gramaticais mais conservadores, está na distância que se colocou,

desde o início, entre a norma culta e o “padrão artificialmente forjado”.

Nesse contexto, Mattos e Silva (2004) lembra que há aspectos históricos sociais

ligados à realidade linguística e a política educacional brasileira que imprimira a visão

social nessa direção. Em resumo, afirma que na segunda metade do século XVIII,

quando, por conta da política linguística-cultural de Marquês de Pombal, a Língua

Portuguesa é imposta aos indígenas, que falavam, sobretudo, uma língua de base tupi,

sem deixar de lembrar que antes disso ocorria no país outros contatos linguísticos, além

das línguas indígenas, línguas de origem africana, com destaque para o banto. Entre os

séculos XVI e XVII, o Brasil é culturalizado pela Companhia de Jesus e a formação

cultural era reservada a pequena parcela da elite que já dominava e deveria aprimorar a

norma culta. No início do século XIX, 1808, a corte portuguesa vem para o Brasil,

ocorre o aumento de letrados, apesar de o ideal homogeneizador do padrão prestigiado

não se configurar. Nesse momento destaca a implantação da clivagem resultante da

“diglossia” atual, em síntese, a oposição entre os dois polos do nosso continuum

linguístico: os que portavam o padrão linguístico lusitanizante (padrão culto brasileiro

no sec. XX) e os iletrados, grande maioria. Entra em cena, a “normatização linguística

explicitada, coercitiva” (MATTOS e SILVA, 2004, p. 134), o policiamento gramatical

preocupava a elite, fato que é perceptível até os dias de hoje.

De maneira geral, a partir da década de 1970 nota-se, segundo a estudiosa,

crescente consciência de linguísticas e professores de Língua Portuguesa no que se

refere à divergência entre o que prega as orientações oficiais e o que se verifica na

realidade escolar, segundo ela, há implícito a necessidade social de dar apoio

pedagógico-linguístico adequado para integrar as variantes dos estudantes aos padrões

prestigiados socialmente mostrando que esse é necessário para ascensão social. Dessa

forma, como bem aborda a autora, que imbricado ao prestígio de uma variante sobre as

outras, está o forte aspecto sócio ideológico e não há como negar que o domínio de

determinada variante prestigiada facilita o acesso ao poder.

Bortoni (2006, p. 272), numa análise comparativa entre oral e escrita, aponta que

as distinções envolvem o “estatuto do chamado erro”. Na fala não se enxergam erros,

mas inadequações; a variação lhe é inerente, marca de identidade dos falantes, de seu

papel social e sua relação com o interlocutor, pode ser escolhida de acordo com a

adequação a cada contexto de uso. Por outro lado, na escrita, o erro, apesar de também

estar ligado à avaliação social, corresponde a “transgressão de um código

convencionado e prescrito pela ortografia” (BORTONI, 2006, p.273); a variação não é

prevista nas línguas já estabilizadas historicamente, a uniformidade garante a

funcionalidade da ortografia. Diante dessas distinções a Sociolinguística atribui a noção

de erro apenas às transgressões ortográficas.

No que se refere ao conceito de “norma”, cabe destacar, as reflexões realizadas

por Coseriu (1979), um dos principais teóricos a esse respeito. Este estudioso tenta

conceituar norma ligado aos conceitos de fala e sistema. Em resumo, no sistema estão

os elementos virtuais, mesmo que não consagrados pela norma. A norma é menos geral

que o sistema e representa a realização natural, ou seja, a forma mais comum de uso da

língua. E a fala é uma realização concreta, individual, mas baseada nos modelos

observados dentro da comunidade linguística que faz parte. Para o autor, é necessário

compreender o funcionamento do sistema linguístico. Para isso cabe uma investigação

do uso linguístico, do ato de fala e suas variações, das diversas normas articuladas ao

sistema e à fala; enfim da constituição da “gramática” do sistema. Como afirma:

[...] o indivíduo cria sua expressão numa língua, fala uma língua,

realiza concretamente em seu falar moldes, estruturas da língua de sua

comunidade. Num primeiro grau de formalização, essas estruturas são

simplesmente normais e tradicionais na comunidade, constitui o que

chamamos norma; mas, num plano de abstração mais alto, depreende-

se delas mesmas uma série de elementos essenciais e indispensáveis

de oposições funcionais: o que chamamos sistema. Mas norma e

sistema não são conceitos arbitrários que aplicamos ao falar, mas

formas que se manifestam no próprio falar [...]. (COSERIU, 1979, p.

72).

Cabe observar que Faraco (2008, p. 35) afirma que pode-se conceituar norma de

um modo técnico, ou seja, “como determinado conjunto de fenômenos linguísticos -

fonológicos, morfológicos, sintáticos e lexicais - que são correntes, costumeiros,

habituais numa dada comunidade de fala”, dessa forma, a norma é entendida dentro do

sentido do que comum no interior de uma comunidade linguística.

Nesse sentido, Castilho (2002) afirma haver um conceito amplo como fator de

coesão social. Nesse caso, observam-se as atitudes da própria comunidade linguística ao

corrigir quando algum membro comete um desvio da norma, movido pela pressão

social, essa pretende a unificação dos traços culturais, a permanência da identidade do

grupo. Há, ainda, segundo ele, um conceito estrito, no qual a norma relaciona-se aos

usos e aspirações da classe social de prestígio, as „regras do uso bom‟. Em síntese

existe: a norma objetiva, explícita ou padrão (praticada pela classe social de prestígio); a

norma subjetiva, implícita ou padrão ideal (atitude do falante diante da norma objetiva,

o que a comunidade espera do indivíduo de grupo); a norma prescritiva (combinação da

objetiva e da subjetiva, o ensino dos usos linguísticos da classe prestigiosa como os

mais adequados).

Em relação à norma prescritiva, o autor dá considerável atenção para deixar

claro que ela também sofre influências da variabilidade linguística, apesar de essa

influência variar de comunidade para comunidade. As preocupações e atitudes mudam

ao longo do tempo, por isso, não há como estabelecer um modelo de norma comum ao

longo dos tempos. Tendo em vista a extensão territorial do Brasil e a rápida

urbanização, há uma pluralidade de normas, além disso, as diferenças regionais afetam

mais a norma oral e seus níveis fonológico e lexical, nos quais se notam maiores

variações e, consequentemente, problemas. Quanto ao espaço social, liga-se à variante

culta e compõem-se dos dois registros: a norma coloquial e a refletida.

Adotamos, para o presente trabalho, a premissa de que a norma padrão é ideal,

ou seja, é um modelo abstrato, preconizado pela gramática normativa; enquanto a norma

culta, na verdade são normas cultas, porque vai de acordo com cada comunidade, mas é

a mais próxima do padrão. A norma culta é considerada real, porque é praticada por

uma parte da comunidade mais letrada, com maior grau de instrução, a praticada pelas

pessoas com curso superior completo, por exemplo.

Enfim, diante das discussões teóricas, constata-se que: “Todas as variedades, do

ponto de vista estrutural linguístico, são perfeitas e completas entre si. O que as

diferencia são os valores sociais que seus membros têm na sociedade.” (CAGLIARI,

1999, p. 81). A variação “correta”, de prestígio, é a variedade normalmente usada pelos

grupos socioeconomicamente mais privilegiados e que detêm o poder econômico ou

cultural, a norma culta, por consequência o preconceito linguístico em relação aos que

não a dominam torna-se comum, e a mídia tem papel fundamental na permanência dessa

visão.

2. Análise

A variação linguística e o uso de variedades mais próximas da norma culta são

direcionados pela mídia de acordo com o que lhe convém. Há várias situações em que

observamos que a mídia, de forma mais ou menos explícita, corrobora para diversas

situações de preconceito linguístico. As variedades que fogem a culta são por ela

estigmatizadas e, muitas vezes, mote para piadas pejorativas.

Na mídia televisiva, por exemplo, normalmente os personagens de nível

socioeconômico cultural baixo são desempenhados por sujeitos que não dominam a

norma culta, o que nem sempre condiz com o real. Em programas de entretenimento, a

variedade linguística menos prestigiada é motivo de piada a exemplo do que ocorre com

o personagem Nerso da Capitinga, Adelaide, no programa Zorra Total, entre tantos

outros.

Essas variações aparecem em situações humorísticas, motivadas por falantes

estigmatizados. É tendência, na mídia, principalmente a televisiva, criar imagem

pejorativa de variedades do interior de certas regiões do Brasil, como falantes

nordestinos, mineiros, paulistas, cariocas, paraibanos, entre outros, e principalmente de

regiões rurais. Essa postura influencia o preconceito que os telespectadores

desenvolvem sobre as variedades estigmatizadas, possibilitando a manifestação de

avaliações negativas em relação a essas variações.

Observamos também que na mídia impressa o preconceito linguístico manifesta-

se em notas sobre “gafes” linguísticas cometidas por celeridades, além disso, mais do

que nunca gramáticos renomados tem sido requisitados, por jornais e revistas, para

“solucionar” problemas de desvio a norma e, cada vez mais impor uma imagem de

“erros” a outras formas de usos da língua.

Nesse contexto, destaca-se, neste trabalho, outra tendência midiática ligada à

supremacia da norma culta, esta aliada à ascensão social, certamente o domínio dessa

norma pode favorecer o crescimento social tendo em vista a exigência de seu uso em

algumas esferas da vida pública, sobretudo em empregos de alto poder aquisitivo, no

entanto ao deixar de considerar a existência de outras formas de uso da língua pode

levar, implicitamente, ao preconceito, ou seja, “quem não domina a norma culta e a

padrão é considerado ignorante”.

Tendo em vista demonstrar essa tendência, analisamos duas capas da revista

Veja, uma de 2007 e outra de 2010, em que reportagens sobre o domínio da norma culta

são destaque, quando necessário retomaremos parte das matérias que estão no interior

da revista, apenas para confirmar algumas reflexões realizadas. A revista Veja, suporte

do corpus a ser analisado, é uma revista semanal e de circulação nacional, publicada

pela Editora Abril. Foi criada em 1968, pelos jornalistas Victor Civita e Mino Carta. É a

revista de maior circulação no Brasil, com uma tiragem superior a um milhão de

exemplares, dessa forma, nota-se a influência que pode exercer sobre a opinião do

público leitor enquanto veículo de comunicação que é.

Assinala-se, ainda, que a escolha pela análise da capa da revista justifica-se por

este espaço constituir-se na primeira impressão que o público leitor tem da matéria

enfatizada, é a partir desse recurso que o leitor é “fisgado” a ler /comprar ou não a

revista. Scalzo (2003, p. 62) afirma que “uma boa revista precisa de uma capa que a

ajude a conquistar leitores e os convença a levá-la para casa”. A mídia, normalmente,

direciona algum tema relevante a ser discutido nas reportagens no interior do veículo

midiático e, a partir desta, constrói uma imagem visando a influenciar seus leitores.

O poder do discurso veiculado por jornais e revistas impressas não pode ser

ignorado. Apontaremos como a linguagem pode ser trabalhada no sentido de apresentar

a ideologia que se manifesta em seu discurso por estratégias da linguagem verbal e não

verbal. Para isso, a construção assinalada pela semiótica greimasiana contribui para o

sentido do texto e corrobora a assertiva da sociolinguística exposta no início deste

artigo. Vejamos as capas analisadas3.

Fig. 01 - Capa Veja 2007 Fig. 02 - Capa Veja 2010

3 A matéria, na íntegra, pode ser encontrada nas revistas impressas, edição 2025 – ano 40 – n° 36 – 2007 e

edição 2177 – ano 43 – n° 32 – 2010. E, também, no site da revista: www.veja.com.

Cabe informar que a matéria da revista Veja de 12 de setembro de 2007 (fig. 01),

“Falar e escrever certo” discorre sobre a mudança ortográfica e vários especialistas

falam sobre o assunto. No artigo da revista Veja o jornalista faz uma “chamada” com o

seguinte subtítulo “Ascensão pelo vocabulário” e afirma que “o bom uso da língua

influi na carreira (...) a chance de ascensão profissional está diretamente ligada ao

vocabulário que a pessoa domina. Quanto maior seu repertório, mais competência e

segurança ela terá para absorver novas ideias e falar em público” (p. 88). Na

reportagem, fica evidente que a “riqueza da língua” é ferramenta fundamental na

carreira profissional e no crescimento pessoal.

No texto da revista Veja que representa a capa de 11 de agosto de 2010 (fig. 02),

novamente o assunto foi o enriquecimento do vocabulário para que o brasileiro evite

“erros” e possa falar e escrever melhor para avançar na vida. O título “Falar e escrever

bem: rumo à vitória” trata da importância de se saber falar e escrever bem de acordo

com a norma culta da língua portuguesa. No conteúdo da matéria, no início, há a

seguinte “chamada” “Do ponto de vista da clareza e da gramática, o primeiro debate dos

candidatos deixou a desejar. Mas, para os brasileiros interessados em dominar o

português, novas obras de referência podem ajudar a enriquecer o idioma cotidiano”. (p.

94). O jornalista assim se posiciona sobre a linguagem usada pelos principais candidatos

– Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva – em seus pronunciamentos “na maior

parte, o debate foi simplesmente ininteligível. Os candidatos (...) afundaram-se em

anacolutos, solecismos, frases inconclusas e erros gramaticais (...) falharam todos, em

maior ou menor medida, no uso de uma ferramenta básica: a linguagem” (p. 94). O

debate foi um mote para o jornalista demonstrar que falar e escrever bem são essenciais

para ter êxito na vida pessoal e profissional. Discorre também sobre o lançamento de

novas obras destinadas ao leitor que anseia por aprimorar sua expressão verbal,

acrescentando, ainda, no interior da matéria os “10 erros de português que acabam com

qualquer entrevista de emprego” (p. 98-99).

Antes de proceder à análise, via pressupostos metodológicos da Semiótica, é

necessário realizar uma visão geral do que se visualiza nas duas capas. Na figura 01

verifica-se a presença de uma escada, no contorno da primeira letra do alfabeto, sendo

“subida” por uma mulher, possivelmente executiva, pelos trajes. A figura 2 apresenta a

imagem de um grande teclado, em formato de uma pirâmide, ao fundo, no final dela,

um homem, em uma tribuna, que parece discursar. Cabe lembrar que o objeto de estudo

da Semiótica Greimasiana é o texto, descreve os processos de formação do sentido

desses textos, a sua significação, oferecendo um instrumento metodológico para a

leitura, a interpretação, a desconstrução e a exploração de diversos níveis de seu sentido.

Dessa forma, cabe entender que texto, para essa teoria, compreende uma relação

entre um plano de conteúdo (significado do texto) e um plano de expressão. O plano de

expressão constitui-se na forma de apresentação do conteúdo. A manifestação do

conteúdo em um sistema de significação pode ser verbal, não verbal ou sincrético como

são as capas das revistas analisadas. Discini (2005, p. 57) observa que “No plano de

conteúdo estão as vozes em diálogo, está o discurso. No plano da expressão está a

manifestação do sentido imanente, feita por meio da linguagem sincrética, que integra o

visual e o verbal sob uma única enunciação”. Greimas e Courtés, principais

sistematizadores da teoria, explicam a semiótica sincrética como aquela que “como a

ópera ou o cinema – acionam várias linguagens de manifestação; da mesma forma, a

comunicação verbal não é somente de tipo lingüístico: inclui igualmente

paralingüísticos (como a gestualidade ou a proxêmica), sociolingüísticos, etc.” (s/d, p.

426).

Diante disso, Greimas concebe o sentido como um processo gerativo,

formalizado no modelo teórico do percurso gerativo do sentido, para onde convergem

três níveis de análise e a partir dos quais é possível observar o enriquecimento textual,

partido de um patamar mais simples e abstrato se busca categorias sob as quais o texto

foi construído, passa para outro um pouco mais concreto no qual se nota as relações

entre sujeitos e os valores advindos da base, até chegar ao nível mais complexo e

concreto, parte mais visível da elaboração do texto, campo da enunciação, o qual se

situam as ideologias, respectivamente, são eles os níveis: fundamental, narrativo e

discursivo.

Não sendo nosso objetivo neste trabalho delongar nessas definições por motivos

de espaço para o artigo proposto, passamos à análise, sobretudo se atendo a alguns

aspectos do nível discursivo do percurso gerativo de sentido, mais precisamente a

semântica discursiva, pois autenticará a validade da proposição da sociolinguística.

Comentários teóricos serão realizados ao longo da análise, quando necessários.

O elemento que nos chama a atenção no texto verbal é o título, cujo objetivo é

resumir a informação principal da reportagem especial da edição e, de certa forma,

direcionar, logo a primeira vista, interpretações sobre a matéria inserida no interior da

revista: “Falar e escrever certo” (fig. 01), e “Falar e escrever bem: rumo à vitória” (fig.

02). O discurso verbal que observamos nos dois títulos é realizado na forma de um

enunciado que é produzido por uma enunciação, instância de produção do discurso. Para

que esta enunciação seja produzida há uma relação entre um enunciador e um

enunciatário. Os verbos “falar e escrever” no infinitivo são realizações discursivas que

produzem um efeito de ação contínua e que tem como elemento semântico comum o

tema pressuposto ascensão social “Falar e escrever certo” e “Falar e escrever bem: rumo

à vitória”, figuras 01 e 02 respectivamente, são ações que supõem um enunciador, no

caso, a revista Veja, que realiza um fazer persuasivo.

Se há um enunciador, supõe-se também que há um destinatário, este é coletivo,

pois são os leitores da revista. O enunciador procura fazer com que o destinatário aceite

o que diz e ao mesmo tempo realize um fazer interpretativo. Os enunciadores e os

destinatários estão implícitos nos enunciados dos dois textos, pois não há nenhuma

marca pessoal que se refira a eles, como um “eu” ou um “ele” ou “você”, ou um verbo

na 1ª ou 3ª pessoas. No entanto, mesmo implícitos, os enunciadores estão presentes e ao

elaborarem os títulos provocam uma interferência intersemiótica: sua presença

determina a leitura do texto jornalístico e estabelece antecipadamente seu universo de

significados, orientando os leitores para uma compreensão do tema proposto.

O tema ascensão social (e por pressuposição lógica: preconceito linguístico) é

reforçado nas “chamadas”, ou enunciado-resumo ou microtexto, que acompanham os

títulos. Na capa da Veja (fig. 01), de 2007, lemos “a) Como o domínio da língua

impulsiona a carreira; b) Os 10 erros de português que arruínam suas chances”; c) A

ansiedade com a nova reforma ortográfica”. Já na capa de 2010 (fig. 02), apresenta o

seguinte texto “Expressar-se com clareza e elegância é essencial para avançar na vida. A

boa notícia é que há mais ferramentas para o aprendizado”. Esses discursos recebem

revestimentos semânticos figurativos. “As figuras são elementos do discurso que criam

a ilusão de um mundo possível por produzir uma referencialização ao mundo natural

(PIETROFORTE, 2010, p. 21). Assim, falar, escrever, certo, domínio, língua,

impulsiona, carreira, erros, português, arruínam, chances (fig. 01); falar, escrever, bem,

vitória, clareza, elegância, avançar, vida, ferramentas, aprendizado (fig. 02), são figuras

do discurso. Essas figuras concretizam o tema e ajudam na leitura, construção e

interpretação dos textos. Segundo Fiorin (1999, p. 70) “Ler um texto não é apreender

figuras isoladas, mas perceber relações entre elas, avaliando a trama que constituem. A

esse encadeamento de figuras, a essa rede relacional reserva-se o nome de percurso

figurativo”. Assim, o conjunto de figuras lexemáticas relacionadas no texto das revistas

compõe um percurso figurativo. Vejamos no quadro a seguir como o conjunto das

figuras concretizaram o tema proposto:

Quadro 01: Representação do percurso figurativo

Figuras Percurso Figurativo Tema

Fig.

01

falar, escrever, certo, domínio,

língua, impulsiona, carreira,

erros, português, arruínam,

chances

Domínio da língua

Crescimento pessoal

e profissional

Ascensão social (por

pressuposição lógica:

preconceito linguístico)

Fig.

02

falar, escrever, bem, vitória,

clareza, elegância, avançar, vida,

ferramentas, aprendizado

Domínio da língua

Crescimento pessoal

e profissional

Ascensão social (por

pressuposição lógica:

preconceito linguístico)

Como demonstramos no quadro, a escolha de figuras na organização da capa

comprova que a ascensão social (e por pressuposição o preconceito linguístico)

constitui, portanto, o tema central abordado nos dois textos verbais das respectivas

reportagens da Veja.

Do ponto de vista da Linguística e da Sociolinguística, todos os falantes de

língua portuguesa dominam a oralidade, pois crescem e falam a língua desde muito

cedo, quando ainda criança, seja por histórias que ouvem, por diálogos em casa e na

comunidade que os cercam, ou por rádio, televisão e mídia em geral. Conforme Scherre

(2005, p.9), “Falar é como andar. Acontece naturalmente, da mesma forma, nas mesmas

faixas etárias, em qualquer parte do planeta terra, independente de raça, de cultura, de

cor, de gênero e de ensino formal. Basta que sejamos seres humanos”. Sendo assim, nos

títulos das duas capas da Veja, houve a apresentação da hegemonia da norma culta,

desconsiderando fatores que geram a diversidade linguística, como já foi apontado

anteriormente: localização geográfica, faixa etária, situação socioeconômica,

escolaridade.

O plano de conteúdo dessas capas se relaciona com um plano de expressão, a

imagem, e marca o sincretismo, estabelecendo o que a Semiótica chama de

semissimbolismo que reforça o que foi explanado acima. Nas capas das revistas, o plano

de expressão ajuda na construção do sentido veiculado pelos títulos e pelos microtextos.

Nesse contexto, retomando Pietroforte (2004, p.21), o semissimbólico, conceito

desenvolvido por J. M. Floch, aparece quando o plano de expressão deixa de ser apenas

uma forma de veicular o conteúdo e passa a “fazer sentido” a partir da articulação entre

a forma de expressão e a forma de conteúdo. Para analisar as imagens dessas capas é

necessário entender dois princípios básicos utilizados por Algirdas Julien Greimas e

Jean-Marie Floch para os quais no plano de expressão possam ser reconhecidos: os

formantes figurativos (elementos que criam efeitos de realidade, como pessoas, objetos,

etc) e os formantes plásticos (categorias que dão sentido ao texto e podem, de acordo

com trabalhos de Greimas, Floch e Thürlemann, ser divididas em: topológica (ligada à

posição), eidética (ligada às formas) e cromática (ligada às cores).

As imagens escolhidas para editar as revistas da Veja não foram aleatórias, há

uma intenção que no contexto da enunciação representa um sentido, uma significação.

Nas duas capas vemos como as figuras do texto verbal que concretizam o tema da

ascensão social, por pressuposição lógica, também faz parte da imagem. Nesse sentido,

no tocante ao formante figurativo tem-se a imagem, na fig. 01, de uma pessoa vestida de

blazer feminino, saia e pasta de couro na mão (no imaginário popular, na junção desses

elementos, predomina o símbolo de ascensão e de poder e corrobora o que diz o texto

verbal “o domínio da língua impulsiona a carreira) subindo uma escada, encostada a

uma letra do alfabeto, em referência à escrita, a “falar e escrever certo”, no alto da

escada a pessoa se mistura às nuvens do céu (também um símbolo de ascensão: estar no

topo).

No que se refere à figura 02, outra pessoa, no topo de um teclado de computador

com as letras do alfabeto (em alusão a novas ferramentas para o aprendizado, como diz

o texto verbal; e vestida de terno e gravata, em posição de discurso, também em menção

ao texto verbal: “expressar-se com clareza e elegância é essencial para avançar na

vida”). É importante destacar que a imagem do teclado lembra uma pirâmide social,

portanto, as duas pessoas do texto não verbal se encontram no alto, estão bem vestidas,

são elitizadas, evidenciam que a relação entre domínio da língua, ascensão social e

crescimento pessoal pelo viés do conhecimento da língua portuguesa, norma culta, fica

fortemente marcada nos dois textos, verbal e não verbal. Isso induz no acreditar que só

quem sabe falar e escrever “certo”/ “bem” podem ter sucesso e ascensão social. As

outras formas são empobrecedoras, desviantes, indignas de uma “língua bem falada” e

formas normalmente usadas em maior número por pessoas de classe social sem

prestígio, uma vez que nas imagens, os dois indivíduos, que incorporam “a língua bem

falada” e que estão no topo, passam a imagem de pessoas elitizadas (terno, gravata,

blazer, pasta de couro). Não podemos deixar de lembrar que também as pessoas de

classe mais favorecidas produzem as formas consideradas “erradas”, só que,

normalmente, em menor quantidade, e nem por isso são estigmatizadas.

Em relação ao formante plástico, as cores predominantes são o azul (figs 01 e

02), o branco (fig. 01), e o amarelo (fig. 02). Segundo o Dicionário de Símbolos, o

branco é a cor “daquele que vai mudar de condição (...) daquele que se reergue e que

renasce, ao sair vitorioso (...) símbolo de afirmação, de responsabilidades assumidas, de

poderes tomados e reconhecidos, de renascimento realizado, de consagração”

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005, p. 141-143). A cor azul “é o caminho do

infinito, onde o real se transforma em imaginário. (...) Entrar no azul é um fazer como

Alice, a do País das Maravilhas: passar para o outro lado do espelho .... o caminho do

sonho” (Idem, p. 107). Já o amarelo “é intenso, violento, agudo até a estridência (...)

veículo do vigor” (Idem, p. 40). Nos dois textos não verbais a simbologia dessas cores

ratifica o que já foi analisado, ou seja, as figuras branco, azul e amarelo representam a

subida, a ascensão, a vitória; passar para o outro lado; ter vigor. Nesse sentido, todo o

arranjo reproduz a significação subjetiva do crescimento pessoal representada nas

figuras das duas pessoas no topo.

No sincretismo das capas analisadas, imagem e palavra estão separadas, ou seja,

há o espaço da imagem, no centro da capa, e os espaços das palavras. Nos textos em

questão, portanto, há a categoria topológica de expressão

vertical/subida/superior/ascensão (simbolizada pela escada na imagem) vs horizontal

(palavras) a organizar a disposição dos dois sistemas semióticos sincretizados. Dessa

forma, as palavras confirmam a categoria plástica cromática e topológica. Enfim, no

texto sincrético das capas, os conteúdos da ascensão social, crescimento pessoal,

domínio da língua materna (da norma culta) são manifestados no sistema semiótico

verbal e plástico e encaminha para a leitura das matérias no interior da revista.

Vertical/subida/superior/ Asceção social (domínio da norma culta)

______________________ = _________________________

Horizontal/Inferior /descida/ Desprestígio social (não domínio da norma culta)

Nessa análise usamos a semiótica greimasiana para reforçar que a mídia veicula

a imagem de que o domínio da variedade culta é reconhecido como “correto” e

necessário para se ter prestígio e ascensão social na sociedade contemporânea,

desconsiderando os grupos sociais com os quais os destinatários interagem,

independente do ensino formal, e sua necessidade de se identificarem com o grupo que

os cerca, como muito bem explana Scherre (2005, p.43) “Em nome da boa língua

pratica-se a injustiça social, muitas vezes humilhando o ser humano por meio da não-

aceitação de um de seus bens culturais mais divinos: o domínio inconsciente e pleno de

um sistema de comunicação próprio da comunidade ao seu redor”.

Scherre (2005) apresenta reflexões em torno de exemplos de preconceito

linguístico na mídia impressa brasileira entre 1993 e 2003. Afirma ela que:

[...] Estudos linguísticos de fenômenos estigmatizados podem ter,

portanto, como consequência imediata, a possibilidade de evidenciar

que o certo considerado inerente, em termos de linguagem, não tem

razão de ser (por mais óbvio que isto possa parecer). Certo é tudo o

que está conforme as regras ou princípios de um determinado grupo

dentro dos limites do próprio grupo [...] (SCHERRE, 2005, p.18).

E, certamente, na relação entre língua e sociedade: “[...] uma variedade

linguística „vale‟ o que „valem‟ na sociedade os seus falantes, isto é, como reflexo do

poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais” (GNERRE, 1985,

p. 4), certos usos marcam as variantes de prestígio ou padrão, diferindo da variante não

padrão ou estigmatizada.

Corroborando essa questão, Camacho, ao falar da relação entre as variedades

linguísticas e a norma pedagógica, afirma que “A aquisição pelo adolescente de uma

amplitude de estilos, coerentes em si mesmos, adequados a todo e qualquer contexto

extralinguístico é um dos fatores de mobilidade social ascendente” (CAMACHO, 1988,

p. 41). Ele fala em amplitude de estilos, para a mobilidade social ascendente e não a

supremacia de um deles.

Dessa forma, voltando nossa atenção para o ensino, Castilho (2002), diante do

exposto, recomenda como mais adequado o sensibilizar o aluno para a variedade

linguística a partir do trabalho ligado às situações em que é usada, o que implica sair de

uma visão “conteudista” de ensino da Língua Portuguesa e conduzir a observações de

fatos da língua, tendo em vista que o aluno evite preconceitos e saiba lidar com a língua

em diferentes situações. Paralelo a essa sensibilização, o estudioso não descarta o

trabalho com a descrição da variedade de maior prestígio, a norma padrão, objetivo

primordial da escola. Nesse momento, cabe lembrar outros estudiosos da

sociolinguística que também apontam para esse fato, entre eles, Bortoni-Ricardo (1986,

2004) e Camacho (1988).

Para finalizar, cabe considerar que ainda perpassa grande discussão em torno da

prevalência de uma variante padrão sobre as outras, Faraco (2002, p. 42), embarcando

nessa questão, é bem enfático ao afirmar que “O padrão não conseguirá jamais suplantar

a diversidade, porque, para isso, seria preciso o impossível (e o indesejável,

obviamente): homogeneizar a sociedade e a cultura e estancar o movimento e a

história.” Certamente a questão não é fácil, sobretudo quando pensamos no trabalho que

é preciso ser realizado fora do âmbito cientifico, mas é necessário e como destaca esse

autor “Em outros termos, as mudanças redesenham a gramática, mas jamais afetam a

plenitude estrutural da língua e, consequentemente, sua funcionalidade social”

(FARACO, 2002, p. 50) e é pensando nessa funcionalidade social e mais, na adequação

situacional de usos da língua que as problemáticas abordadas neste texto precisam ser

refletidas com vistas ao ensino de qualidade e que faça sentido para o aluno.

Considerações finais

O leitor é peça fundamental na imagem construída pela mídia. É ele quem vai se

autoidentificar com o que se anuncia na imagem, seja pelo viés da cultura, da história,

da linguagem, entre outras. Na análise das capas da revista Veja, que foi objeto deste

trabalho, observamos que se constitui num sujeito semiótico que possui confiança e

credibilidade e os seus leitores são sujeitos destinatários que a aceitam como tal e se

“deixam” ou não manipular. Daí a importância dos conteúdos veiculados por ela e pela

mídia em geral. O leitor da Veja, normalmente, tem poder socioeconômico melhor que

leitores de outros meios de comunicação. Ele consegue discernir entre o que é bom e o

que é ruim nos conteúdos veiculados. No entanto, a maioria dos leitores brasileiros não

possui esse discernimento. Como é o caso de grande parte dos alunos que frequentam a

escola pública.

Camacho (1988) salienta que a deficiência no ensino resulta da visão da

supremacia da norma padrão culta, deixa-se de aproveitar o trabalho com as variantes de

forma a ajudar o aluno a escolher o grau de formalidade de acordo com a situação, por

exemplo. Como lembra o autor, a escola, assim como a família, o grupo de amigos e o

trabalho, é “uma agência de socialização” e tem sua importância no papel de oferecer ao

aluno, sobretudo às classes desfavorecidas, um instrumento linguístico com as

alternativas adequadas para as situações de uso do ato verbal que necessitará. Para isso,

é preciso que a escola evite a relação entre capacidade verbal e classe socioeconômica.

Nesse sentido, o estudioso cita duas atitudes fundamentais no trato com as

variações em sala de aula: a eliminação no vocabulário do professor a dicotomia

correto/incorreto para formal /informal, e a tolerância e o respeito ao padrão linguístico

do aluno. Dessa maneira será possível o trabalho com as diversas situações de

comunicação possibilitando a mobilidade social ao aluno.

Sírio Possenti (2002) acredita que seria necessário o governo tomar decisões

coerentes para aumentar a eficácia das escolas. Sob tal enfoque, os documentos oficiais

estão se adequando a novas teorias, a novas metodologias. Vários autores fundamentam

o ensino de língua portuguesa voltado para o texto verbal e não verbal: o aluno precisa

compreender o que é um bom texto, como é organizado, como os elementos visuais e

textuais se relacionam, entre tantos outros recursos para entendê-los. Tudo isso aliado

ao respeito à heterogeneidade linguística do aluno.

O que a sociedade considera “erro” na linguagem, na verdade está contribuindo

para a difusão da noção de erro em forma de preconceito. Para desmitificar essa noção é

necessário combatê-lo, estudar as diferenças e divulgá-las adequadamente, redefinindo

novos padrões de conduta, principalmente, no âmbito socioeducacional.

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