Vasconcelos - Grandes Famílias, Política e Estratégias Escolares: conversões, reconversões e legitimação

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As estratégias de reprodução, conversão e reconversão, presentes nos processos de dominação social, representam objetos bastante estudados no que tange a grupos herdeiros de “grandes famílias”, seja da antiga nobreza em países europeus que contaram com essa estrutura social ou em outras configurações de grupos familiares com um longo legado de poder em diversas esferas sociais. Sem pretender empreender uma revisão exaustiva e definitiva destes trabalhos, o presente artigo tem como objetivo chamar a atenção para algumas possibilidades de análise deste fenômeno, especialmente no que tange os processos de conversão e reconversão de capitais herdados, com destaque para os investimentos em títulos escolares feitos por estes grupos em tentativas de legitimação de posições sociais estabelecidas e/ou conquista de posições ameaçadas em diferentes contextos. Após discutir alguns eixos de análise neste sentido, desenvolvidos por autores com trabalhos em contextos “centrais” ou mesmo “não periféricos”, apresentaremos resultados parciais de pesquisa empírica em andamento acerca do caso de parlamentares brasileiros em período recente, relacionando a questão das estratégias escolares de grupos familiares com elementos como parentesco e poder. Por fim e a partir deste diálogo, esboçaremos alguns limites e possibilidades para a construção deste objeto em contextos “periféricos”, com configurações sociais e históricas bastante diferentes, como o caso brasileiro.

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    Grandes famlias, poltica e estratgias escolares: converses,

    reconverses e legitimao

    Pedro Vasconcelos1

    Resumo As estratgias de reproduo, converso e reconverso, presentes nos processos de dominao social, representam objetos bastante estudados no que tange a grupos herdeiros de grandes famlias, seja da antiga nobreza em pases europeus que contaram com essa estrutura social ou em outras configuraes de grupos familiares com um longo legado de poder em diversas esferas sociais. Sem pretender empreender uma reviso exaustiva e definitiva destes trabalhos, o presente artigo tem como objetivo chamar a ateno para algumas possibilidades de anlise deste fenmeno, especialmente no que tange os processos de converso e reconverso de capitais herdados, com destaque para os investimentos em ttulos escolares feitos por estes grupos em tentativas de legitimao de posies sociais estabelecidas e/ou conquista de posies ameaadas em diferentes contextos. Aps discutir alguns eixos de anlise neste sentido, desenvolvidos por autores com trabalhos em contextos centrais ou mesmo no perifricos, apresentaremos resultados parciais de pesquisa emprica em andamento acerca do caso de parlamentares brasileiros em perodo recente, relacionando a questo das estratgias escolares de grupos familiares com elementos como parentesco e poder. Por fim e a partir deste dilogo, esboaremos alguns limites e possibilidades para a construo deste objeto em contextos perifricos, com configuraes sociais e histricas bastante diferentes, como o caso brasileiro. Palavras-chave: Parentesco; poltica; ttulos escolares; reconverses Introduo

    Alinhado a uma perspectiva do que se pode denominar Sociologia do

    Poder (SEIDL, 2013, p. 04), o estudo das dinmicas de poder que permeiam as

    diversas estruturas sociais envolve, como questes essenciais, a tentativa de

    apreenso dos meios pelos quais os grupos dirigentes reproduzem a dominao

    em suas respectivas esferas de atuao, as formas de legitimao desta

    dominao presentes neste fenmeno de reproduo social e as condies

    sociais e histricas em que estes processos ocorrem. Ao considerar a

    reproduo social como fenmeno no linear, passvel de diversas reorientaes

    ao longo da histria, ganha destaque o estudo dos mecanismos que permitem o

    sucesso ou fracasso de grupos dirigentes na manuteno de posies elevadas

    1 Mestrando pelo Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bacharel em Cincias Sociais pela Universidade de Braslia (UNB).

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    na hierarquia social em diferentes espaos. Estes processos envolvem

    deslocamentos diversos destes grupos no interior de um mesmo espao social

    ou entre outros espaos, sendo estes fenmenos respectivamente associados

    s ideias de acmulo de capitais e legitimao por meio de converses e s

    reorientaes como esforo para manter o status social em face a ameaas de

    desclassificao entendidas enquanto reconverses (SAINT-MARTIN, 1993).

    O olhar sobre as estratgias de reproduo, converso e reconverso, as

    persistncias e adaptabilidades presentes nos processos de dominao social,

    foi bastante estudado no que tange a grupos herdeiros de grandes famlias2,

    seja da antiga nobreza em pases europeus que contaram com essa estrutura

    social ou em outras configuraes de grupos familiares com um longo legado de

    poder em diversas esferas sociais. Sem pretender empreender uma reviso

    exaustiva e definitiva destes trabalhos, o presente texto tem como objetivo

    chamar a ateno para algumas possibilidades de anlise deste fenmeno,

    especialmente no que tange os processos de converso e reconverso de

    capitais herdados, com destaque para os investimentos em ttulos escolares

    feitos por estes grupos em tentativas de legitimao de posies sociais

    estabelecidas e/ou conquista de posies ameaadas em diferentes contextos.

    Aps discutir alguns eixos de anlise neste sentido desenvolvidos por autores

    com trabalhos em contextos centrais ou mesmo no perifricos,

    apresentaremos resultados parciais de pesquisa emprica em andamento,

    esboando por fim e a partir deste dilogo alguns limites e possibilidades para a

    construo deste objeto em contextos perifricos (BADIE & HERMET, 1993),

    com configuraes sociais e histricas bastante diferentes, como o caso do

    Brasil.

    Grandes famlias e capital simblico

    2 Na ausncia de outro termo suficientemente abrangente, que desse conta da

    multiplicidade de grupos sociais e contextos compreendidos neste fenmeno, optou-se por

    utilizar o termo grandes famlias para designar grupos familiares cujos membros ocupam (ou

    ocuparam) posies prestigiosas em diferentes espaos sociais por longos perodos de tempo.

    No , portanto, uma forma de enaltecer estes grupos ou tratar como grande em termos

    quantitativos (mesmo que o sejam), tal como o termo poderia sugerir em certos usos do senso

    comum, mas antes uma categoria que se pretende analtica, ainda que relativamente genrica.

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    Voltar a ateno para o estudo de linhagens familiares em posies

    hierarquicamente elevadas por longos perodos de tempo envolve perceber, por

    um lado, caractersticas prprias dos contextos e grupos em questo e

    caractersticas e mecanismos de reproduo social comuns a grupos familiares

    em diferentes perodos histricos. Para fins de apresentao de alguns eixos de

    anlise, cabe distinguir portanto a apreenso de atributos que so prprios de

    determinado grupo social de lgicas comuns em grupos familiares em um sentido

    mais amplo.

    No que tange a primeira proposta, ter destaque aqui o trabalho de

    Monique de Saint-Martin (1993) a respeito do espao da nobreza na Frana,

    dos trajetos e estratgias de reproduo, reconverso e diferenciao de

    descendentes deste grupo social amplo que, a despeito de dois sculos aps a

    Revoluo Francesa (que marcou a instituio da Repblica e da meritocracia,

    antagnicas sua presena), continuam a manter-se em crculos homogneos

    e separados de outros agrupamentos sociais, enquanto categoria social parte

    ao mesmo tempo em que concorrem entre si na definio dos significados do

    ser nobre no presente. Como mostra a autora, a produo da crena sobre a

    categoria de nobreza central para compreender as diversas formas pelas

    quais famlias centenrias constituem-se como grupo a parte, acumulando

    elevado capital simblico com bases nessa diferenciao, em perodos histricos

    to diferentes como o Ancien Regime e a Repblica.

    Enquanto crdito irreconhecvel como capital e que repousa sobre a

    crena, o capital simblico da nobreza dotado de caractersticas prprias que

    se associam aos ttulos e propriedades dos que o empreendem. Sua

    compreenso est associada historicamente e principalmente s ideias de

    notoriedade, reconhecimento e pertencimento, sendo necessrio o

    reconhecimento da qualidade de nobre em uma famlia por outras fraes de

    nobres, por grupos concorrentes (como a burguesia) e por classes populares.

    A ancestralidade atribuda ao nome de determinada linhagem familiar, associada

    notoriedade produzida a respeito de um nome de famlia e s propriedades

    especficas de quem o mobiliza, um importante componente simblico nas

    definies de reconhecimento e pertencimento entre a nobreza, apresentando-

    se como trunfo em disputas internas pela definio de nobreza e externas contra

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    as mudanas sociais que alteram o rendimento desta espcie de capital

    simblico. Assim, ao mesmo tempo que contribui para a unificao simblica da

    nobreza, o reforo deste capital simblico por fraes de seus descendentes

    ainda hoje representa tambm uma tentativa de defesa de um grupo em declnio

    social (Idem, p. 31).

    Um importante trao distintivo do capital simblico da nobreza, percebido

    tambm enquanto produo de uma crena, a afirmao de sua pretensa

    superioridade natural em relao a outros grupos sociais. Pesa na afirmao

    de estar acima do povo o que Saint Martin retoma como efeito de Noblesse

    oblige, o qual apresenta uma viso de que a condio de nobre impe a seus

    detentores no somente privilgios mas, principalmente, obrigaes que se

    traduzem em planos to distintos como a poltica (como no paternalismo exercido

    no poder local) e sistemas de valores morais (Idem p. 26, p. 132). Longe de se

    reduzir a um mero discurso, a afirmao de superioridade por parte de membros

    da antiga nobreza e seus herdeiros comporta a manuteno e transmisso de

    costumes, atividades e empreendimentos centrados na aprendizagem da

    diferena e na vivncia de atividades pretensamente desinteressadas (como

    esportes e passeios especficos), conformando um estilo de vida separado e

    reservado.

    Os processos de converso deste capital nobilirio ou, mais

    genericamente, de um capital simblico volumoso tal como caracterstico em

    grandes famlias no poder, em capital cultural e econmico, os dois princpios

    de hierarquizao nas sociedades diversificadas do presente (BOURDIEU, 1989,

    p. 382), so mltiplos e relacionam-se, entre outros fatores, com a histria e

    posio de cada famlia em suas relaes com as transformaes introduzidas

    nas condies e modos de reproduo social, assim como com as

    representaes que estes grupos fazem do futuro e da capacidade com a qual

    conseguem anteceder seus efeitos. Como estes processos so dificilmente

    indissociveis dos processos transmisso, converso e reconverso de outro

    capital que compe majoritariamente a estrutura do capital global destas famlias

    o capital social cabe traar algumas caractersticas a este respeito antes de

    entrar propriamente no mbito das converses e reconverses.

    Grandes Famlias e capital social

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    Se a centralidade das dinmicas envolvendo o capital simblico ficam

    claras em um estudo sobre as grandes famlias da nobreza, a anlise dos

    mecanismos de acumulao e instrumentalizao do capital social destes

    grupos que apresenta um alcance maior para os estudos sobre grupos familiares

    e suas relaes com a converso em outros capitais em perodos mais recentes,

    tal como o capital cultural e o investimento em ttulos escolares.

    O capital social, entendido enquanto capital de relaes durveis efetivas

    ou potenciais mas tambm compreendendo a ideia central de conhecimento e

    reconhecimento mtuos entre os que dele comungam, no se reduz s

    propriedades e capitais individuais dos agentes; funciona antes como

    multiplicador destas propriedades, sendo seu rendimento dependente das

    propriedades de cada membro tomado individualmente, do nvel de integrao e

    solidariedade interna deste grupo e das relaes que seus membros podem

    efetivamente mobilizar (BOURDIEU, 1980, p. 02). A famlia, em especial as

    grandes famlias de grupos dirigentes tal como tratamos aqui, representam

    nichos limite de rendimento desta espcie de capital pela sua caracterstica

    prpria de integrao e empreendimento coletivo (esprito de famlia), mas

    tambm pela centralidade que do s estratgias de mobilizar e acumular, das

    mais diversas formas, este capital.

    Deste modo, torna-se fundamental nos estudos destes grupos familiares

    a apreenso dos mecanismos de gesto e acumulao de capital social, o que

    compreende desde a anlise das organizaes sociais efetivamente voltadas

    para a acumulao deste capital (participao em clubes, reunies mundanas,

    festas, recepes, etc.) at formas mais atualizadas e menos ostentatrias

    como a organizao de visitas conjuntas a exposies de arte e conferncias

    (SAINT-MARTIN, op. Cit., p. 56). A importncia deste trabalho de gesto e

    acumulao se explica pelo seu j referido efeito multiplicador (fazer valer mais

    os ttulos que se detm) e pela possibilidade que a manuteno e mobilizao

    de relaes teis apresentam de garantia contra o declnio de posio social.

    Modos de reproduo social, estratgias escolares e legitimao

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    Compreendidas algumas propriedades presentes em grandes grupos

    familiares dominantes, resta entrar mais diretamente nas possibilidades de

    abordagem do fenmeno da reproduo social e suas relaes com os

    processos de converso, reconverso, em especial no que tange s estratgias

    escolares. Neste eixo entram questes fundamentais como as estratgias de

    legitimao de poderes estabelecidos por grandes famlias e as reconverses

    movidas pela combinao de capital social com outros capitais herdados,

    inclusive o referido capital simblico, nas tentativas de manter posies sociais

    privilegiadas e sobreviver s ameaas de desclassificao. Neste sentido, de

    grande interesse compreender de que formas convivem e concorrem diferentes

    modalidades de reproduo social em um mesmo perodo histrico.

    Pierre Bourdieu (1989), em amplo estudo acerca da distribuio e

    reproduo do poder em suas lgicas, espaos e relaes especficas com o

    sistema escolar na Frana, fornece para alm deste programa de pesquisa um

    referencial analtico frutfero para examinar as relaes entre grandes famlias e

    as estratgias de reproduo, reconverso e legitimao de seus capitais,

    especialmente no que diz respeito aos investimentos escolares e seus

    significados. Bourdieu traa dois modos ideais-tpicos de reproduo social: o

    modo de reproduo familiar e o modo de reproduo escolar ou mediado pela

    escola (Idem, p. 396-416). No centro desta oposio esto amplos processos

    de mudana social observados por Bourdieu na Frana e, em alguns nveis,

    tambm em outras sociedades avanadas (WACQUANT,1996) e sintetizados

    nas grandes tendncias: o crescimento da importncia do capital cultural no

    acesso a posies de poder (em relao a um declnio relativo do ttulo de posse

    econmica), e do declnio dos ttulos escolares tcnicos em relao ao aumento

    de importncia de ttulos de cultura geral-burocrtica (BOURDIEU, 1996, p.

    386). Tais tendncias, que representam mudanas nas taxas de converso de

    determinadas espcies de capitais, so sentidas de modo mais ou menos

    intenso por diferentes famlias e fraes de grupos dirigentes, dependendo

    principalmente da estrutura do seu capital, o que pode mov-los em direo a

    converses e reconverses.

    O primeiro modo de reproduo caracterizado pela transmisso direta

    de capitais entre as geraes, objetivada por exemplo na transferncia de ttulos

    de propriedade e na transferncia do nome de famlia (como smbolo do

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    conjunto do capital simblico familiar, tal como discutido anteriormente), e por

    estratgias diversas nas quais a busca de reproduo de determinado

    patrimnio indissocivel da busca pela reproduo e integrao familiar.

    Assim, estratgias de reproduo que poderiam ser vistas como propriamente

    familiares ou de reproduo biolgica (casamentos, controle de natalidade) se

    cruzam com estratgias propriamente econmicas, que dizem respeito ao

    capital econmico da famlia e o que deve ser feito para mant-lo. So centrais

    nesse sentido as alianas, por esses mtodos familiares, entre grupos

    detentores de corporaes em um mesmo ramo ou ramos distintos da economia,

    ou at mesmo a endogamia, visando tanto a conteno da diviso do capital

    econmico familiar quanto a sua integrao, prestgio, etc. (Idem, p. 397).

    A este respeito, Saint-Martin (Op. Cit., pp. 221-230) analisa as estratgias

    matrimoniais de distintas fraes da nobreza mais ou menos mantenedoras de

    homogeneidade social e verifica, por exemplo, como alianas familiares que

    seriam inadmissveis para herdeiros da antiga nobreza como casamentos entre

    linhagens de nobres e linhagens de burgueses foram aceitas em determinadas

    ocasies em que se perceberam ganhos importantes em termos de capitais

    (especialmente capital econmico e social). Porm, longe de serem alianas

    meramente utilitrias, calculadas visando aumento global de patrimnio, suas

    bases podem ser encontradas nas afinidades de estilo e disposies comuns

    entre as famlias em questo, de alianas anteriores entre as famlias, da

    frequncia em estabelecimentos escolares e mundanos semelhantes e,

    principalmente, da importncia maximizadora em termos de capital social de se

    situar entre dois mundos: o da nobreza e o das finanas.

    No que tange a questo da relao com a educao no modo de

    reproduo familiar, os usos da escola e do ttulo escolar so nesse sentido

    bastante sistemticos e especficos. No mbito domstico, para alm da escola,

    o cuidado e controle com a escolha dos ambientes educativos so estritos, assim

    como a gesto do tempo: todos os momentos so educativos, no sentido das

    prticas e da educao pelo exemplo, como em passeios com parentes,

    jantares e mesmo em momentos recreativos. A ideia circunscrita nesta

    regularidade e controle no deixar nada, ou quase nada, ao acaso (Idem, p.

    186).

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    J na escolha das escolas, Saint-Martin (Idem, pp. 184-208) ilustra como

    estas estratgias escolares situam-se no centro da aprendizagem da diferena

    caracterstica do capital simblico nobilirio, principalmente ao orientarem o

    convvio dos jovens herdeiros somente entre outros jovens do mesmo meio

    (nobres ou dominantes de outras origens), utilizarem praticamente em sua

    totalidade as escolas privadas e religiosas, as quais permitem tanto o

    aprendizado de uma moral e maneiras de agir especficas que incluem por

    exemplo a educao das mulheres para serem boas mes e esposas honrosas

    e o fortalecimento de disposies que visam a integrao familiar e o esprito de

    famlia.

    Esta relao especfica com o sistema escolar, que diz respeito menos

    aos contedos propriamente acadmicos do que a aprendizagem de maneiras

    de se portar com superioridade (como resume a mxima comportamental de

    tratar cada um de acordo com o seu nvel) e distino, de gerir relaes que

    podem vir a ser teis, etc., semelhante postura de herdeiros destas famlias

    em seus estudos de nvel secundrio e superior. Especialmente em perodos

    anteriores ao aumento de importncia do modo de reproduo baseado na cole,

    as estratgias escolares de grupos herdeiros da nobreza no modo de reproduo

    familiar seguiam as tendncias de presena majoritria em estabelecimentos

    privados de ensino secundrio e, para os que apresentavam diplomas de ensino

    superior, a preferncia era por ttulos generalistas ou menos tcnicos (Idem,

    pp. 211-212), como a habilitao em direito e posteriormente ttulos da ENA e

    Science Po.

    A este respeito, digno de nota o alcance que representou a formao

    jurdica e seus usos nos processos de reconverso de herdeiros da nobreza na

    Hungria do Antigo Regime, em um perodo de industrializao e diversificao

    de atividades e espaos sociais. Victor Karady (1989) mostra como o

    investimento em ttulos de direito por parte de membros da nobreza, alm de

    outras fraes dominantes, representou a melhor alternativa para estes

    estabelecerem-se em posies de poder. Apesar das grandes diferenas em

    relao ao sistema escolar francs do perodo estudado por Bourdieu e Saint-

    Martin, traos como os usos da escola na acumulao de capital social (como

    no destaque dado vivncia das mundanidades da vida escolar) e os usos do

    ttulo como legitimao social por estes grupos so aspectos comuns.

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    Uma das bases da recusa do ensino pblico est, tanto para

    descendentes da nobreza quanto para linhagens burguesas (as quais se aliam

    entre si recorrentemente, como assinalamos), na existncia de um ethos anti-

    universalista, anti-republicano que lhes caracterstico. A recusa de formas

    livrescas de conhecimento e crena, em oposio ao universalismo, na

    importncia da experincia e virtudes pessoais so traos caractersticos. Em

    suma, o que esperam do sistema escolar, mesmo do superior, uma boa

    educao moral e distino social, o que o ensino privado est preparado para

    lhes fornecer (BOURDIEU, op. Cit., p. 402). A educao guarda assim uma clara

    funo de legitimao social para quem j tem uma posio estabelecida h

    geraes.

    O estabelecimento cada vez maior do modo de reproduo baseado na

    escola transforma, como foi brevemente mencionado, as garantias, seguranas

    e, consequentemente, as estratgias e mecanismos de transmisso de grupos

    familiares assentados em capital simblico e capital cultural distintos, em termos

    de legitimidade, do propriamente escolar. Este modo tem como caracterstica

    fundamental uma compreenso mais generalizada do ttulo escolar, em especial

    aquele garantido pelas instituies do Estado, como direito de entrada em postos

    (em termos efetivos, no formais), o que inclui as grandes funes de poder da

    alta administrao pblica e privada, nichos historicamente caractersticos de

    elites e anteriormente transmissveis diretamente por vias como a herana

    familiar de ttulos de propriedade econmica e de nobreza social, alianas

    matrimoniais, etc.

    No caso francs, diferentemente da solidariedade e transmisso de

    privilgios por parentesco, desenvolve-se uma solidariedade de corps, grupo

    social com origem na grande cole que realiza a cooptao e distribui ganhos

    para o grupo em estruturas de poder (principalmente no Estado, mas tambm

    em grandes corporaes tecnocrticas), em uma estrutura de defesa do capital

    social semelhante, em termos lgicos, integrao familiar (Idem, p. 407).

    Apesar de tal semelhana na lgica de ao, o fato de seus membros deverem

    seus percursos e ttulos ao sistema escolar pblico assegura sua legitimao

    quase inconteste sob os signos da meritocracia e tecnocracia.

    No processo de modernizao da Hungria do Antigo Regime, a

    mediao do ttulo sentida especialmente no caso da ttulo de bacharel em

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    direito, tal como assinalado anteriormente. Sendo a principal nova via de acesso

    ao poder, a formao jurdica apresentou para os herdeiros da nobreza uma

    possibilidade de legitimao com custo relativamente reduzido, dadas as

    disposies compatveis entre tal formao e as caractersticas do habitus nobre,

    como o carter flexvel das possibilidades de atuao, a relao comum com a

    manipulao de pessoas e de contedos, o carter discursivo, e no manual, do

    ofcio, e a dignidade das finalidades profissionais, que se prestam a uma

    sublimao intensa (KARADY, op. Cit., p. 111).

    Investimentos escolares e reconverses

    nesta transformao da relao entre patrimnio dos grupos familiares

    e caractersticas dos instrumentos de reproduo, tendo no caso uma relao

    especfica com o sistema escolar como instrumento central, que se originam as

    reconverses: os deslocamentos entre espaos sociais distintos dos de origem,

    relacionados reconverso de uma espcie de capital em outra (BOURDIEU,

    1989, p. 395). A mediao operada pela instituio de ensino superior na

    ocupao de postos e seus efeitos como a burocratizao crescente dos

    novos mercados de atuao profissional, por exemplo apresenta dificuldades

    para a continuidade do estabelecimento de fraes de grupos dirigentes em

    posies de prestgio e poder, em especial para aqueles mais intimamente

    relacionados com o modo de reproduo familiar, como as grandes corporaes

    familiares e os herdeiros da aristocracia provincial no caso francs.

    Estes grupos, cuja relao com a educao (e, consequentemente, os

    investimentos escolares prvios) bastante diferente do que se apresenta como

    legtimo no modo escolar, e cuja identidade de nobre e portanto a negao do

    universalismo republicano ainda mais forte, percebem com frequncia mais

    tardiamente as necessidades de mudana que se colocam. Soma-se a este fator

    a questo da recusa recorrente e histrica, tanto em grupos de antigas

    aristocracias quanto grupos de elite em outros contextos, em exercer atividades

    tcnicas e manuais ou no correspondentes com uma condio dominante

    (KARADY, 1991, p.111; SAINT-MARTIN, 1993, p. 244), o que tambm precisa

    ser contornado para que consigam sobreviver no espao social.

  • 238

    As reconverses nestes casos devem ento ao estado dos mercados

    profissionais, sendo mais frequentes a ocupao de espaos menos

    contrastantes com um capital simblico nobilirio e/ou mais permeveis, em

    termos de organizao e burocracia, ao capital de relaes sociais o qual estes

    grupos familiares tanto devem as suas posies. O estudo de Saint Martin (1993,

    pp. 265-282) apresenta vrias indicaes de mercados nesse sentido para o

    caso francs, como carreiras de cunho nas chamadas relaes pblicas,

    empresas de publicidade, organismos de arte, profissionais de decorao de

    ambientes e funes de relaes pblicas em empresas de luxo. Em termos

    escolares, a presena de herdeiros da aristocracia nestes espaos favorecida

    por uma ampliao relativamente recente de estabelecimentos privados que,

    com custo escolar relativamente baixo, apresentam garantias de legitimao

    para herdeiros nestas posies.

    No caso de grandes famlias menos profundamente imersas no modo de

    reproduo puramente familiar tal como foi caracterizado - seja por relaes mais

    prximas com outros grupos sociais, posio geogrfica em grandes cidades,

    investimentos escolares anteriores em estabelecimentos pblicos, etc. - as

    reconverses se apresentaram de maneiras distintas, mas ainda devendo suas

    bases aos capitais herdados. neste sentido que Bourdieu (1989, p. 415)

    salienta a complementaridade entre os modos de reproduo: tratam-se no de

    oposies marcadas, mas de usos e formas mais ou menos exclusivas de certas

    estratgias de reproduo, em ambos os modos a partir da famlia.

    Assim, no modo de reproduo mediado pela instituio escolar tal como

    observado no caso francs, h uma srie de dissimulaes que possibilitam e

    legitimam a dominao e que compensam as perdas na transmisso direta de

    privilgios, especialmente no caso das famlias mais estabelecidas, nos quais se

    destacam: a acumulao mtua de ttulos de nobreza social (adquiridos via

    herana ou matrimnios), de nobreza escolar (diploma de grandes coles) e

    de propriedade (BOURDIEU, 1996, p. 332); os ganhos em termos de capital

    cultural herdados no mbito domstico, que proporcionam grandes vantagens

    na admisso em instituies que favorecem herdeiros dotados deste tipo de

    disposies, alm de valorizar mais o ttulo escolar devido ao capital social, ao

    mesmo tempo em que se ocultam sobre o manto da excelncia escolar e da

    meritocracia (SAINT-MARTIN, 1993, p.214); e a grande vantagem de ocupar

  • 239

    mltiplos espaos sociais em posies privilegiadas, o que representa bastante

    em termos de capital de relaes sociais (BOURDIEU, 1989, p. 416). Este ltimo

    ponto em especial diz muito a respeito da manuteno legtima de posies de

    poder por grupos familiares: ao conseguir se fazer presentes em vrios espaos

    sociais, no s multiplicam o capital social mas tambm atuam de modo a tirar o

    mximo de benefcios possveis de todos espaos e enfrentar assim o declnio

    em alguns deles, antecipando possibilidades frutferas e menos custosas de

    reconverses.

    Estudo de caso: Os usos dos ttulos escolares entre parlamentares

    herdeiros de grandes famlias no Brasil

    Uma forma de ressaltar a complementaridade entre os modos de

    reproduo social supracitados e problematizar a complexidade que alcanam

    as relaes entre escolaridade e poder tom-las nos mais diferentes contextos.

    Esta uma tentativa inicial de tratar das possibilidades de tomar como objeto as

    relaes entre grandes famlias, legitimao e ttulos escolares em um contexto

    bastante diferente dos quais os estudos citados ocorreram: herdeiros de famlias

    ligadas poltica no Brasil. A partir de pesquisa emprica (entrevistas semi-

    estruturadas, anlise de biografias, genealogias e material jornalstico) realizada

    com amostra de deputados federais e senadores brasileiros da 54 Legislatura

    da Cmara dos Deputados e do Senado Federal, cada um deles vinculados por

    laos de parentesco a grupos familiares detentores de cargos polticos eletivos

    em perodos anteriores, buscou-se levantar, entre outras questes, os principais

    recursos sociais detidos por estes agentes e a relao destes recursos com a

    mobilizao dos laos de parentesco.

    Entre a multiplicidade de recursos sociais analisadas na pesquisa, os

    parlamentares entrevistados destacaram o que podemos denominar como seus

    recursos de expertise: a importncia dos ttulos escolares e respectiva

    vinculao profissional na conduo de suas carreiras polticas e na

    consagrao das posies de poder que ocupam no interior do Congresso

    Nacional. A problematizao das relaes entre este recurso social e os laos

    de parentesco no espao poltico foram demonstrados em estudos anteriores

    para o caso de herdeiros polticos no Rio Grande do Sul (GRILL, 2003, 2007,

  • 240

    2008), os quais figuram direta e indiretamente como referncias centrais para a

    compreenso deste objeto. No caso em pauta apresentaremos, a partir dos

    casos empricos analisados, algumas especificidades nos usos e concepes da

    ideia de expertise entre os herdeiros de patrimnios polticos no Legislativo

    Federal.

    relevante na compreenso das lgicas de ao e estratgias de

    legitimao um olhar para os diferentes modos de conceber, entre os herdeiros,

    as relaes entre profisso e ttulo escolar com a atividade especificamente

    parlamentar, mas tambm com a atividade poltica em geral. Socialmente

    vinculada a ideais como capacidade tcnica e competncia, a aquisio de

    um ttulo escolar se mostra fundamental para a quase totalidade dos deputados

    federais e senadores. A valorizao deste ttulo, por sua vez, est associada a

    profisses socialmente superiores em termos de prestgio e/ou rendimentos tais

    como os ttulos de direito, medicina, engenharia e profisses (declaradas) como

    empresrio, administrador de empresas, produtor rural, professor, etc.

    Entretanto, deter um ttulo difere bastante dos mltiplos usos a ele associados.

    No caso de homens polticos, transparece com frequncia a politizao destes

    usos, feita de distintas formas a partir da relao com trajetos especficos, e

    figurando como um eficiente recurso de legitimao de posies polticas

    ocupadas.

    Neste sentido, h maneiras sutilmente diferenciadas de mobilizar o ttulo

    escolar com fins de legitimao, decorrentes dos recursos sociais com os quais

    podem contar determinado agente e seu grupo familiar. As variaes levantadas

    nesta pesquisa vo desde aqueles que possuem um ttulo citado como profisso

    declarada em suas biografias, mas sem qualquer identificao mais profunda e

    sem meno a este fator na carreira poltica, at aqueles que, tendo exercido ou

    no uma atividade profissional, mobilizam de algum modo a formao escolar

    em seus trajetos como os principais trunfos que possuem. Em comum, entretanto,

    guardam o fato de terem fins de legitimao e seus usos estarem sempre

    conjugados com relaes no profissionais com a atividade em questo, isto ,

    transcenderem as fronteiras da atividade profissional propriamente dita,

    politizando-a.

    Como exemplo da primeira variao mencionada, o depoimento de um

    senador paraibano com longa experincia em cargos eletivos, eleito deputado

  • 241

    federal pela primeira vez aos 23 anos de idade, questionado acerca dos trunfos

    valorizados no mbito do Legislativo Federal para a ocupao de posies de

    poder:

    quem tem uma formao jurdica agora, por exemplo, como membro da Comisso de Constituio e Justia aqui no senado e tem uma formao jurdica, eu no sou jurista mas sou um advogado inscrito regulamente na OAB, termina tendo um pouco de vantagem. Mais pelo fato de ter sido 03 vezes prefeito, ter sido 02 vezes governador, voc passa a ter uma viso muito ampla de vrios temas e ai a estrada da vida, o conhecimento, a experincia mesmo no viver o dia a dia da sociedade que lhe traz uma bagagem de experincia que lhe ajuda no desempenho do mandato. (grifos meus)

    Concepo semelhante transparece na fala deste ex-senador e ministro

    que, mesmo ingressando na poltica eletiva a partir dos 36 anos de idade, aps

    ter atuado profissionalmente como professor universitrio, concebe de um modo

    bastante particular a formao escolar:

    (...) a universidade muito importante para a formao do pensamento poltico e de cerceamento das atitudes que voc pode tomar na vida politicamente. Voc tem que tomar partido, tem que tomar posies, posies que so as vezes polmicas no meio que voc vive, mas que ali um aprendizado. Acho que a universidade um grande aprendizado para o mundo poltico.

    Como possvel perceber, mesmo quando mencionado como referncia

    de trunfo na carreira poltica, o ttulo perde em relevncia: o que transparece no

    discurso a valorizao da experincia poltica (estrada da vida) ou, como no

    segundo depoimento, a prpria experincia escolar vista como aprendizado

    para o mundo poltico.

    A compreenso dos usos da formao escolar entre os herdeiros se torna

    mais complexa quando tratamos daqueles que a mobilizam de modo mais direto,

    que se identificam com determinada profisso e reivindicam a si prprios uma

    correspondente expertise. Neste caso, quando a atividade profissional foi

    efetivamente exercida, os meios de acesso a ela so totalmente poltico-

    familiares e a atuao foi vinculada diretamente ao mundo da poltica, dotando

    a prpria denominao escolar de um sentido diferente e especfico,

    inseparvel de outras esferas sociais (poltica, famlia). Tomando o caso de um

    deputado federal sul-mato-grossense, proveniente de uma famlia com insero

  • 242

    privilegiada nos meios poltico-eletivos e jurdicos no estado de origem, ficam

    claras as relaes combinadas entre expertise e parentesco.

    Deputado federal em seu segundo mandato, neto de imigrante libans

    que se destacou no comrcio e posteriormente alou ao posto de cnsul

    honorrio do Lbano em seu estado. O grupo familiar do parlamentar em questo

    ilustra um perfil de ascenso social comum a imigrantes rabes e seus

    descendentes em outros estados do Brasil, como Minas Gerais, Rio Grande do

    Sul, So Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas e Cear: uma primeira gerao que

    prosperou no comrcio e, ao estabelecer-se economicamente, permitiu aos seus

    descendentes da segunda gerao o acesso a ttulos escolares socialmente

    valorizados como medicina, direito e engenharias (TRUZZI, 1992, 2008; GRILL,

    2003). Essa segunda gerao tambm a que ingressa posteriormente em

    atividades poltico-eleitorais.

    A entrada do grupo familiar na poltica se d por meio do pai deste

    parlamentar, bacharel em direito pela UERJ que, aps e durante a atuao como

    advogado criminalista, professor de direito penal e procurador, alcanou ao

    longo da carreira poltica os cargos de vice-prefeito da capital do estado,

    deputado estadual por dois mandatos e deputado federal por cinco legislaturas

    consecutivas. Com os direitos polticos cassados pelo regime militar em 1964

    por dez anos, consagrou-se publicamente como defensor da democracia e do

    estado de direito. Entretanto, o que mais se associa imagem que produziu em

    torno de si, na viso de apoiadores e colegas de diversos partidos, a ideia de

    seriedade, tica e notvel saber jurdico. Alm da experincia profissional

    como docente na rea de direito e nos cargos jurdicos supracitados, relevante

    mencionar sua participao como titular de uma das mais importantes comisses

    da Cmara dos Deputados Comisso de Constituio, Justia e Cidadania

    (CCJC) tendo em uma ocasio ocupado a terceira vice-presidncia, alm de

    segundo-vice-presidente de uma comisso especial para a Reforma do

    Judicirio e segundo-secretrio da prestigiosa Mesa Diretora da Cmara por um

    perodo de aproximadamente trs anos.

    Com a declarao de aposentadoria do patriarca, honrar o cobiado

    patrimnio familiar na Cmara dos Deputados coube no aos filhos mais velhos

    e politicamente mais experientes, mas a Fabio, que nunca havia disputado uma

    eleio para cargos pblicos municipais, estaduais ou federais. Argumentamos

  • 243

    aqui que esta sucesso familiar figura como exemplo central para entender as

    relaes entre a mobilizao de expertise, as exigncias maiores de legitimao

    em determinados espaos polticos e usos do parentesco neste contexto.

    O parlamentar em questo, Fabio, filho homem mais novo de um total de

    trs filhos e duas filhas do patriarca, demonstra por uma srie de motivos ter sido

    conduzido como o mais adequado para figurar como herdeiro nato do pai no

    espao que projetou nacionalmente o grupo familiar: a Cmara dos Deputados.

    Em primeiro lugar est o efeito de fratria, comum a grandes famlias ligadas ao

    poder. Este consiste em uma espcie de diviso do trabalho familiar no qual

    cada membro ocupa posies em diferentes espaos, o que favorece acmulo

    ainda maior de capital na forma de relaes de amizade, reciprocidade e alianas

    polticas; alm disso, como ressaltamos anteriormente a partir de Bourdieu (1989,

    p. 416), a presena em mltiplos espaos atua de modo a tirar o mximo de

    benefcios possveis de todos eles e resistir com fora aos revezes vivenciados

    em outros contextos. No caso de Fbio, a diviso em termos de postos pblicos-

    eletivos consistiu previamente em um irmo como prefeito da capital do estado,

    outro irmo como vereador e posteriormente deputado estadual e o j citado pai

    na Cmara dos Deputados, cargo que ficaria vago com sua aposentadoria. Havia

    necessidade de ocupar este espao com um membro de confiana e capacitado

    deste ncleo familiar, restando a Fabio, advogado militante e professor

    universitrio, a tarefa de constituir-se simultaneamente como herdeiro legtimo

    de um grupo familiar e representante poltico de um estado no Legislativo Federal.

    Mesmo em um contexto social distante daquele mencionado em pases

    centrais, nos quais teria grande fora simblica o modo de reproduo escolar

    das elites, a construo de uma candidatura legtima no caso em questo

    perpassa a aquisio de legitimidade escolar; especialmente no caso do grupo

    familiar em questo, dado que a consagrao do patriarca na poltica ficou

    marcada por esta alegao de expertise. Muito embora os outros irmos tenham

    igualmente alcanado, antes de Fabio, ttulos importantes em termos de

    legitimao escolar o mais velho formou-se em Medicina e o segundo irmo

    tambm em Direito, ambos por universidades conceituadas no Rio de Janeiro

    Fbio quem investe na construo de uma biografia marcada pela expertise e

    conhecimento amplo na rea do Direito: graduao em universidade no Rio de

    Janeiro, regio distante do seu estado e no centro cultural e econmico do pas;

  • 244

    dez anos de docncia nas melhores faculdades e ps-graduaes em Direito do

    seu estado; criao de um instituto jurdico que objetiva, em suas palavras, a

    formao de ncleos pensantes em direito penal no estado; alm da

    participao de dezenas de congressos, simpsios e palestras na rea.

    Diferentemente dos irmos, cujos percursos deram-se desde cedo a partir do

    mundo estritamente poltico dos cargos pblicos municipais e estaduais, as

    credenciais detidas por Fabio para entrada na poltica eletiva so marcadamente

    escolares.

    No obstante, o prprio faz questo de subscrever em todo seu percurso

    escolar e profissional um componente no-escolar e no-profissional em sentido

    estrito, mas fundamental para a legitimao de suas futuras posies: a condio

    de liderana e destaque em cada atividade exercida, ou ainda a associao

    feita de forma personalizada a grandes nomes da rea do direito. assim que

    podem ser interpretadas, por exemplo, as menes do parlamentar sua

    condio de orador da turma na ocasio de sua formatura em direito e aos

    professores ilustres de quem foi aluno e monitor (segundo ele, todos autores de

    obras jurdicas nacionalmente prestigiadas).

    No que diz respeito diretamente aos processos poltico-eleitorais

    referentes candidatura de Fbio, alm da base ampla de apoiadores reunidos

    pelo grupo familiar e partido poltico, o que o projetou para candidatar-se

    diretamente ao disputado cargo de deputado federal em termos simblicos e de

    constituio de sua prpria imagem demonstra ter sido a ao empreendida por

    ele quando presidente da OAB estadual: a cassao da aposentadoria vitalcia

    de um ex-governador do estado.

    Embora provavelmente nascida de um ataque poltico, ou seja, de cunho

    pessoal, ainda que exercida a partir de espaos e mecanismos formais, a um

    poderoso desafeto de seu grupo familiar, esta atitude de uma entidade de

    organizao de interesses capitaneada por Fbio no foi vista como tal: foi antes

    mobilizada e ganhou um contorno fortemente moralizante, tico, justo, de

    economia dos cofres pblicos. Os ganhos polticos deste processo derivaram

    enormemente da ao bem sucedida de dar repercusso nacional ao caso

    graas posio da OAB nacional e de outras regionais em estender a ao por

    todo o pas, colocando o estado nos holofotes da moralizao poltica no Brasil

    no perodo e, consequentemente, dotando Fbio de ampla visibilidade positiva.

  • 245

    Ao mesmo tempo em que fomentou a biografia de Fabio em termos pessoais,

    dando-lhe um caminho prprio, o carter que essa repercusso assumiu traz

    afinidade com o capital simblico do pai, consagrado ao longo de sua vida como

    defensor da tica e da justia.

    Reconstituindo assim alguns elementos da trajetria de Fbio, percebe-

    se um complexo sistema que envolve a mobilizao dos vnculos de parentesco

    na aquisio de competncias escolares, capital social e conhecimento sobre as

    dinmicas poltico-eleitorais; o acmulo deste volumoso capital de relaes

    sociais herdado e realimentado constantemente, visualizado a partir do efeito

    multiplicador que este capital exerceu no rendimento das competncias

    escolares adquiridas: convites para lecionar em importantes centros de ensino

    superior do estado e a facilidade de trnsito profissional desde o incio da carreira

    como advogado, culminando no convite para formar chapa vitoriosa na entidade

    de classe estadual que por sua vez forneceu cacife prprio para construir

    candidatura vivel para a Cmara dos Deputados. Deste modo, patrimnio

    poltico e de relaes sociais herdados por grupo familiar, os investimentos

    escolares, organizaes de interesses profissionais e dinmicas poltico-

    eleitorais se cruzam em uma trajetria singular, ilustrando parte da complexidade

    que permeia as bases da legitimidade poltica em contextos perifricos.

    Consideraes finais: Grandes famlias, poltica e estratgias escolares

    em condies perifricas

    Este artigo, fruto de reflexes sobre possibilidades de anlise do tema

    indicadas por outros estudos e da exposio de resultados parciais de pesquisa

    em andamento, pretendeu oferecer algumas bases para esta discusso; traar

    limites e potencialidades do uso de recursos explicativos destas abordagens

    para condies perifricas como o caso brasileiro pode ser frutfero em nvel de

    reflexo, mesmo que feito ainda de modo incipiente e a ttulo de consideraes

    finais.

    Como ponto de partida, possvel observar trs grandes limites que se

    apresentam de maneira complementar: a dificuldade de apreender as relaes

    objetivas entre a estruturao do espao escolar e do espao (ou dos espaos)

    de poder, relaes as quais, caso existam, dificilmente se estruturam de modo

  • 246

    to direto como a que sustenta os casos discutidos pela literatura internacional

    levantada (CORADINI, 1996, pp. 425-428). A diversificao dos espaos sociais

    e sua relativa autonomia, pr-condio dos modos pelos quais se orientam as

    possibilidades de reconverso nos trabalhos citados e, se tomada de maneira

    estrita, questionaria a prpria noo de reconverso apresentada, visto que

    deslocar-se entre campos pressupe a prpria existncia de campos

    razoavelmente delimitados; e a oposio entre classes e fraes de classes

    prprias s realidades subjacentes, o que torna vrias hipteses acerca das

    lgicas de ao e legitimao destes grupos compreensveis apenas no contexto

    em que esto inseridos.

    O que de alguma forma pode se apresentar como possibilidade a partir

    dos estudos discutidos a respeito de outras sociedades foi a tentativa de captar,

    a partir das observaes discutidas aquelas com maiores pretenses de

    generalizao sobre os casos especficos, o que aparentam ser princpios

    comuns e o que se apresenta como singularidade. Entendidos em um sentido

    amplo, sem incorporar as oposies caractersticas do contexto francs, traos

    como estratgias e busca por diferenciao, formas de gerir e garantir a

    integrao familiar, modalidades da construo de alianas com outras famlias

    de distintas posies sociais e seus limites, alm de princpios de legitimao

    que fazem aluso ao exerccio do poder como direito e obrigao

    possivelmente ecoam ou podem ser aproximadas s lgicas de dominao

    engendradas grandes famlias em diferentes contextos, centrais ou perifricos.

    De maneira anloga, abordar como se estrutura o capital global destas famlias,

    atentando para a possvel centralidade do capital social e simblico em suas

    relaes com outros capitais como o cultural e o econmico demonstram ser

    caminhos profcuos.

    Outra possibilidade complementar a tentativa de apreender as

    condies em que esto dadas as disputas, tal como tentamos compor a partir

    dos estudos referenciados. Ao tornar efetivamente claras as condies nas quais

    a reproduo social opera legitimidade corrente dos meios de transmisso

    (com destaque para o sistema escolar), grau de integrao dos grupos familiares

    em posies dominantes, estado das lutas entre grupos concorrentes, etc. - a

    investigao pode ter condies ento de compreender como os grupos

    familiares engendram estratgias adaptativas de forma a permanecer em

  • 247

    posies de poder e como enfrentam, com mais ou menos sucesso, os riscos de

    declnio colocados pelas transformaes sociais.

    Sob esta perspectiva destacamos por fim as estratgias escolares e seus

    respectivos usos polticos, tal como demonstrou ser caracterstico no caso de

    grandes famlias presentes h geraes no espao poltico brasileiro. Assim, a

    situao emprica apresentada ilustra os efeitos de dinmicas

    neopatrimonialistas presente em situaes perifricas, no qual, por sua vez, se

    baseia este carter ao mesmo tempo mais tcnico e politicista na organizao

    de interesses em sua relao com o recrutamento de elites polticas (BADIE,

    1994 apud. CORADINI, 2011, p. 202). Tal observao e o estudo de caso tornam

    ainda mais complexa a discusso empreendida a respeito da

    complementariedade dos modos de transmisso baseados na escola e

    baseados na famlia, e justamente a em que se encontra a validade de

    pesquisas que problematizam os efeitos polticos e sociais das condies

    perifricas nos esquemas de interpretao das dinmicas sociais em contextos

    distintos.

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