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1 VELHAS CASAS, VELHOS OBJETOS: A VIDA MATERIAL NOS CAMPOS DE MIRANDA-SÉCULO XIX ELAINE APARECIDA CANCIAN DE ALMEIDA * Introdução A partir da segunda metade do Oitocentos, famílias oriundas de São Paulo, Minas Gerais e de Cuiabá espalharam-se pelo antigo território de Miranda, situado na província de Mato Grosso. As terras locais dotadas de água em abundância, barreiros, pastagens nativas viçosas e, ainda, quantidade significativa de gado selvático, apresentaram-se como chamariz aos migrantes. Assim, impulsionados pela possibilidade de organizarem propriedades rurais a partir do apossamento livre, das terras consideradas devolutas, intensificaram a fundação e consequente formação de extensas propriedades rurais. Nestas fazendas, implantaram a criação de gado vacum e cavalar e, para a subsistência, o alambique, os fornos de cobre, o engenho de moer cana e as roças de algodão, café, cana-de-açúcar, feijão, mandioca e milho. Foram também plantadas árvores frutíferas, geralmente próximas das habitações rurais e mantidas dentro de cercados, protegidas dos animais. Currais, ranchos e casas duráveis foram elevados nos campos. Portanto, neste texto, propõe-se tratar sobre a ruralidade de Miranda, especificamente, a respeito da vida material. Com base na análise de documentos específicos, objetiva-se mostrar os tipos de moradias que existiram nas propriedades da região em questão, assim como a mobília e os objetos usados no cotidiano. O município de Miranda abrange, atualmente, um território de 5.478,8 Km². Todavia, no século XIX, abrangia extenso território situado entre os rios Paraguai e Paraná. No decorrer do Oitocentos a citada localidade foi perdendo algumas extensões de terras, para propiciar a criação de municípios, como Santana de Paranaíba em 04 de abril de 1857; Nioaque, 18 de julho de 1890; Campo Grande, 26 de agosto de 1899; Aquidauana, 18 de dezembro de 1906; Bonito, 2 de outubro de 1948; e Bodoquena, 13 de maio de 1980. * Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Doutora em História pela Universidade Federal da Grande Dourados-UFGD. Docente do Curso de História do Campus do Pantanal-CPAN/UFMS. E-mail: [email protected]

VELHAS CASAS, VELHOS OBJETOS: A VIDA MATERIAL NOS … · uma fazenda em Mato Grosso”, 1998, expôs que a moradia da propriedade Jacobina apresentava uma arquitetura em estilo colonial

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VELHAS CASAS, VELHOS OBJETOS:

A VIDA MATERIAL NOS CAMPOS DE MIRANDA-SÉCULO XIX

ELAINE APARECIDA CANCIAN DE ALMEIDA*

Introdução

A partir da segunda metade do Oitocentos, famílias oriundas de São Paulo, Minas

Gerais e de Cuiabá espalharam-se pelo antigo território de Miranda, situado na província de

Mato Grosso. As terras locais dotadas de água em abundância, barreiros, pastagens nativas

viçosas e, ainda, quantidade significativa de gado selvático, apresentaram-se como chamariz

aos migrantes. Assim, impulsionados pela possibilidade de organizarem propriedades rurais a

partir do apossamento livre, das terras consideradas devolutas, intensificaram a fundação e

consequente formação de extensas propriedades rurais. Nestas fazendas, implantaram a

criação de gado vacum e cavalar e, para a subsistência, o alambique, os fornos de cobre, o

engenho de moer cana e as roças de algodão, café, cana-de-açúcar, feijão, mandioca e milho.

Foram também plantadas árvores frutíferas, geralmente próximas das habitações rurais e

mantidas dentro de cercados, protegidas dos animais. Currais, ranchos e casas duráveis foram

elevados nos campos. Portanto, neste texto, propõe-se tratar sobre a ruralidade de Miranda,

especificamente, a respeito da vida material. Com base na análise de documentos específicos,

objetiva-se mostrar os tipos de moradias que existiram nas propriedades da região em questão,

assim como a mobília e os objetos usados no cotidiano.

O município de Miranda abrange, atualmente, um território de 5.478,8 Km². Todavia,

no século XIX, abrangia extenso território situado entre os rios Paraguai e Paraná. No

decorrer do Oitocentos a citada localidade foi perdendo algumas extensões de terras, para

propiciar a criação de municípios, como Santana de Paranaíba em 04 de abril de 1857;

Nioaque, 18 de julho de 1890; Campo Grande, 26 de agosto de 1899; Aquidauana, 18 de

dezembro de 1906; Bonito, 2 de outubro de 1948; e Bodoquena, 13 de maio de 1980.

* Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Doutora em História pela Universidade Federal da Grande

Dourados-UFGD. Docente do Curso de História do Campus do Pantanal-CPAN/UFMS. E-mail:

[email protected]

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Realizadas as devidas considerações para situar o leitor espacial e temporalmente,

partiremos para as seguintes indagações: Que tipo de moradia foi construída nas propriedades

rurais de Miranda? Quais objetos eram usados no interior da casa? Habitaram os moradores

dos campos em sobrados, elevados em pedra ou madeira e cobertos por telhas? Ou viveram

em moradias de pau a pique e com cobertura de palha? Para respondermos tais indagações,

analisamos uma tipologia documental muito utilizada pelos estudiosos que analisam o

universo rural brasileiro, neste caso, os inventários post-mortem, os processos de medição e

regularização de terras, todos envolvendo proprietários e propriedades do território de

Miranda.

A casa rural mato-grossense

Conforme a historiadora Nanci Leonzo, no texto intitulado “Pão e pano ou prato e

trato”, 2004, existiram poucas casas assobradadas nas propriedades rurais mato-grossenses. A

autora mencionou, a exemplo de habitação nobre, a casa do português Leonardo Soarez de

Souza, localizada na fazenda Jacobina, situada próxima à vila Maria, atual cidade de Cáceres-

MT. Outro modelo de habitação é citado também, neste caso, um rancho elevado em área hoje

conhecida por Nhecolândia, região de Corumbá-MS. (LEONZO, 2004).

De acordo com o memorialista Lécio Gomes de Souza, na obra “Jacobina: História de

uma fazenda em Mato Grosso”, 1998, expôs que a moradia da propriedade Jacobina

apresentava uma arquitetura em estilo colonial. Além da casa assobradada existiram no local

moradias mais simples e demais construções, como armazéns, capelinha, oficinas e senzalas.

Edificações rústicas abrigavam os engenhos, dois movidos a água e dois por bois.

O viajante e desenhista Hercules Florence, integrante da expedição dirigida pelo

médico naturalista russo Georg Heinrich von Langsdorff, que explorou o interior do Brasil de

setembro de 1825 até março de 1829, esteve na Jacobina e realizou importantes registros

sobre a mesma. Na obra “Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829”, 1977, é

possível entender que a casa do proprietário da fazenda Jacobina consistia em um sobrado

alpendrado, contendo o primeiro pavimento amplo com portas de acesso abertas a um espaço

usado como local de trabalho. Nele, cativos e forros executavam os serviços cotidianos. O

alpendre era construído junto à fachada da moradia. Comprido e aberto em uma de suas

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laterais era, sustentado por esteios de madeira. Neste espaço, Leonardo Soarez recebia os

convidados e viajantes.

Florence deixou registrado que após ser convidado a “subir ao alpendre do sobrado”

sentou-se junto a outras pessoas habitantes de Cuiabá e, no local, jantou na presença deles e

do proprietário da fazenda. Anotou, ainda, sobre a mobília observada no alpendre: “Uma

mesa de 20 pés de comprido [aproximadamente seis metros] cercada de bancos pesados e

maciços” que ficavam ao centro, dispondo de “muito espaço ao redor dela”. (FLORENCE,

1977, p. 180). É preciso ressaltar que além do sobrado alpendrado, outras edificações fizeram

parte da paisagem local, a saber: quarenta casas cobertas por telha, uma igrejinha, armazéns,

oficinas, olaria e ranchos.

Em outra fazenda denominada Camapuã, Florence também observou a existência de

sobrados, quando esteve na mesma em outubro de 1826. O viajante observou duas moradas

assobradadas, “uma onde mora o comandante que na ocasião era um alferes de milícias

(guarda nacional); outra fronteira, separada por vasto pátio, que tem um engenho de moer

cana tocado por bois. O pátio é fechado pela senzala dos escravos, toda ela baixa e coberta de

sapé”. (FLORENCE, 1977, p. 73-74).

Na obra do memorialista Virgílio Corrêa Filho, “Pantanais matogrossenses”, 1946,

encontramos referências às casas rurais mato-grossenses. De acordo com o autor, as moradias

eram elevadas de adobe e “barreadas apenas a sopapo”, técnica que uma vez utilizado o barro

para preencher as paredes deixava-as em cor escura. Mas existiram também as moradias com

paredes claras, devido à aplicação da cal. Tais habitações apresentavam cobertura no estilo

“duas águas”, protegidas por telhas. Eram moradias com chão de terra batida e muito úmidas.

A umidade interna ocorria devido ao período das chuvas quando o chão ficava “fartamente

embebido de água do subsolo”. (CORRÊA FILHO, 1946, p. 113).

Corrêa Filho descreve com detalhes um dos cômodos comumente encontrados na casa

mato-grossense, “a sala de frente”, que conforme descrição do autor era uma peça ampla,

aberta “salvo em uma das extremidades, fechada para acolher as mercadorias destinadas às

transações mercantis, de limitado giro”. (CORRÊA FILHO, 1946, p. 113). Ainda de acordo

com o autor, era habitual ser encontrada nela uma mesa de tábuas sobre cavaletes compridos e

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rodeados por bancos feitos de madeira rústica, utilizados para as refeições da família e dos

camaradas, em momentos diferentes.

Retomemos a narrativa de Hercules Florence, para refletirmos sobre as edificações

simples e mais comuns encontradas no universo rural mato-grossense. Durante sua trajetória o

viajante encontrou moradias simples, chamadas de ranchos. Na concepção de Florence eram

casas desconfortáveis, na verdade, ranchos cobertos por sapê, por vezes descritos como sujos,

miseráveis, em mau estado, sobretudo em áreas de exploração dos metais preciosos. Ao ter

acesso ao local conhecido por Quilombo, lugar de retirada de diamantes, registrou: “Essa

gente não levanta casas, porque sua profissão é esburacar o terreno”. (FLORENCE, 1976, p.

172).

Referência sobre casas simples edificadas com cobertura de palha ou ranchos também

é observada no diário de viagem do engenheiro militar Alfredo d’Escragnole Taunay,

intitulado “Viagem de regresso de Matto-Grosso à corte. Memória descriptiva” e publicado no

ano de 1869, pela revista do Instituto Histórico Geográfico e Etnográfico do Brasil. Assim,

durante a Guerra com o Paraguai, 1864-1867, Taunay, estabelecido junto às forças brasileiras

no sul da província de Mato Grosso, em local conhecido por porto do Canuto, margem

esquerda do rio Aquidauana, foi designado pelo major José Thomaz Gonçalves, para levar até

o Rio de Janeiro as correspondências oficiais, relativas aos fatos ocorridos durante o conflito.

Desta forma, a caminho da Corte, dia após dia, executou registros da viagem. Assim, no ano

de 1867 durante seu regresso à Corte entre tantas peculiaridades naturais da parte sul da

província de Mato Grosso, registrou as edificações encontradas.

No dia 17 de junho de 1867, ao alcançar a fazenda “Dois Irmãos”, apontada como

pertencente à sogra do fazendeiro Henriques descreveu-a com “excelente curral” e com

“modestas casinholas”. (TAUNAY, 1969, p. 07). No dia seguinte, alcançou um local

denominado Correntes, também conhecido por “tapera do Henriques”, e observou uma casa

edificada em uma elevação, possivelmente, uma simples construção edificada em madeira e

palha. Em 20 de junho do mesmo ano, ao prosseguir viagem chegou à “palhoça do Motta”.

Sobre a moradia registrou: “O rancho do Motta acha-se situado numa planície acidentada, que

belos grupos de buritis tornam realmente encantadora”. (TAUNAY, 1969, p. 10). De acordo

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com o autor, Motta era um “pobre cultivador”, o qual sozinho plantava extensas roças de

arroz, feijão e milho, cereais, comercializados no distrito de Miranda.

Taunay ao passar pela posse do mulato José Veríssimo, próxima à margem esquerda

do rio Sucuriú, parou para descansar na morada do posseiro. Conforme o viajante descansou

em uma habitação “em muito asseio” que foi descrita como rústica, com coberta de palha e

limpa. Todavia, em continuidade ao percurso, no dia 2 de julho de 1867, ao encontrar uma

fazendinha, observou somente a existência de taperas e de um laranjal, do qual pôde saborear

as frutas. No dia 3 do mesmo mês e ano, alcançou o rancho de Manoel Coelho, em cujo local

fora recebido com hospitalidade. (TAUNAY, 1969, p. 23-24).

No dia 4 de julho de 1867, Taunay encontrou em certa área de cultivo de roças o

“rancho novo do José Roberto”. (TAUNAY, 1969, p. 23-24). Conforme o autor, José Roberto

e sua esposa realizaram no local a limpeza dos matos, plantaram extensas roças e construíram

uma palhoça confortável. O casal criava também animais vacuns e “bom leite com farinha de

milho” propiciaram ao viajante. (TAUNAY, 1969, p. 26).

Através do estudo atento das memórias de Taunay, é possível observar as recorrentes

descrições de habitações específicas, como: palhoças, ranchos e taperas. Tais moradias eram

na verdade as casas simples, cobertas de sapé e elevadas no território mato-grossense, por

indivíduos com escassos recursos financeiros. Foram nas grandes propriedades rurais que o

viajante encontrou moradias mais elaboradas. Assim, o viajante registrou que no dia 6 de

julho de 1867, ao chegar à casa de Joaquim Leal, observou habitações amplas e confortáveis,

ainda que algumas fossem cobertas de palha. Sobre as casas anotou: “As casas por ai já vão

tendo aspecto mais confortável; ou cobertas de telha ou de palha, tem proporções vastas,

oferecendo grandes acomodamentos; entretanto ainda há pouco cuidado na conservação da

limpeza; o terreiro anda sempre coberto de sabugos de milho [...]”. (TAUNAY, 1969, p. 28).

A partir da literatura disponível, podemos considerar que a casa típica dos ambientes

rurais da província de Mato Grosso, sobretudo da parte sul, era de pau a pique. Na obra

“Cartas de campanha”, 1944, também escrita por Alfredo d’ Escragnole Taunay, encontramos

em frase resumida qual o tipo de moradia encontrada por ele, na província mato-grossense,

durante a Guerra do Paraguai. Após o militar alcançar a fazenda de Antonio Theodoro de

Carvalho, na região do rio Taquari, registrou que a moradia do local sintetizava o que existia

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em termos de construção na região, ou seja, uma arquitetura baseada no pau a pique. Em carta

escrita na data de 23 de dezembro de 1865, endereçada ao pai e publicada na obra em

referência, registrou sobre a casa de Antonio Theodoro:

É um casarão de pau-a-pique, coberto de sapê, barreado, com dois lances a que

separa pequeno pátio, fechado por cerca, muito amplo, mas de pé-direito atarracado.

Pela frente da casa corre um alpendrado coberto de folhas de buriti e sustentado por

grossos taquaruçus. A porta principal é muito larga e está ladeada por duas janelas

muito apertadas, mal abertas e assimétricas, o que dá desagradável aspecto a mais

que mesquinha fachada. (TAUNAY, IN: CORRÊA FILHO, 1946, p.115).

Através da descrição de Taunay conhecemos detalhes da técnica aplicada para elevar a

casa, bem como as características da mesma. O registro mostra uma moradia com paredes

elevadas em madeiras cruzadas e vãos preenchidos com barro; a cobertura de sapê, feita com

folhas de buriti. Um modelo construtivo baseado nas condições oferecidas pela natureza local.

Para proteção do calor e das chuvas o alpendre, também coberto de buriti. Vale explicar que a

antiga técnica do pau a pique, também conhecida por barro de mão e taipa, não permitia a

elevação de fachadas altas e amplas e, portanto, edificações mais elaboradas. Daí o fato da

casa mato-grossense rural e, apresentar uma arquitetura rústica e, conforme Taunay, com

aparência acanhada e sensação de aspecto desagradável devido à extrema simplicidade.

Ainda conforme as descrições de Taunay, a casa apresentava “dois lances a que separa

pequeno pátio”. (TAUNAY, IN: CORRÊA FILHO, 1946, p.115). Felizmente, devido ao

desenho da moradia de Antonio Teodoro, executado pelo próprio autor e publicado na obra

“Album. Viagem pitoresca a Mato Grosso”, podemos entender melhor como era a casa que

representava as demais existentes na ruralidade de Mato Grosso do Oitocentos. Assim, é

possível observar na imagem, duas compridas peças com coberturas separadas em duas águas

e feitas de palha, registradas por “um casarão de pau-a-pique [...] com dois lances a que

separa pequeno pátio, fechado por cerca, muito amplo”. (TAUNAY, IN: CORRÊA FILHO,

1946, p.115). O desenho, executado em 14 de dezembro de 1865, mostra exatamente o espaço

livre entre as duas peças amplas e uma cerca elevada em madeira, interligando os dois

compartimentos. O alpendre não aparece no desenho, assim como as janelas ao redor das

portas. Mas outros elementos são observados, os quais foram omitidos na descrição. Outra

construção, com a mesma aparência construtiva da casa do fazendeiro Antonio, aparece bem

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próxima e interligada por uma espécie de varal, contendo roupas penduradas, supostamente

em processo de secagem ao sol, como pode ser observado na imagem.

Figura 1. Habitação de Antonio Theodoro.

Fonte: “Casa de vivenda de Antonio Theodoro, no caminho de Cuyabá, à 2 leguas do Piquiry.

14 Dezembro 1865”. TAUNAY, Alfredo Maria Adriano d'Escragnolle (Visconde de

Taunay). Album. Viagem pitoresca a Mato Grosso. IN: Instituto Hercule Florence de Estudos

da Sociedade e Meio Ambiente do Século XIX Brasileiro. Disponível em:

http://200.98.202.170:8080/xmlui/handle/1357/16 Acesso em: 28 de março de 2014.

Conforme exposto, a literatura disponível evidencia que as moradias rurais da região

sul da província mato-grossense constituíam-se nos chamados ranchos, ou as casas de pau a

pique, de paredes revestidas com barro e cobertura feita com folhas de palmeiras da região.

Essas edificações rústicas eram elevadas tanto nas posses destinadas às pequenas lavouras de

subsistência, quanto nas de criação de animais. Vale ressaltar, porém, a existência das

edificações cobertas com telhas; as moradias altas, assobradadas e alpendradas, ainda que

raras.

Moradias rurais de Miranda: casas de telha e capim

Para tratar especificamente a respeito das habitações rurais do território de Miranda no

Oitocentos, recorremos à análise dos inventários post-mortem do período de 1873 a 1900;

encontramos informações de como as habitações eram edificadas. Observamos na

documentação moradias com dois tipos de cobertura: telha e capim. Grande parte das casas

localizadas nos campos de Miranda possuía cobertura de telhas, eram geralmente elevadas

com cozinha, corredor, despensa, salas de frente, varanda e frontispício com portas e janelas.

As edificações cobertas com capim possuíam compartimentos em menor quantidade e

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também, na frente, portas para acesso interno e janelas. O quadro 1 mostra os dados

disponibilizados em alguns inventários post-mortem sobre as características das habitações da

região estudada.

Quadro 1 - Características das casas rurais de Miranda (1875 – 1899).

Produtor rural Ano ̸

Inventário Propriedade Moradia ̸ Característica

Francisco Xavier

Ribeiro 1877

Sesmaria Coqueiros Casa coberta de capim.

Fazenda Bonito Casa coberta de capim.

Joaquim de Souza

Moreira 1879 Fazenda Piqui

Casa coberta de telha.

Corredor, despensa, varanda e

três salas de frente.

Bento de Arruda Pinto 1886 Posse Embauval

Casa com metade coberta de

telha, outra de capim.

Corredor, duas salas de frente

e varanda na frente e nos

fundos.

Tenente coronel

Simplicio Xavier

Tavares da Silva

1886 Sesmaria Maxorra

Casa de pau a pique coberta de

telha.

Nove compartimentos.

Casa de pau a pique.

Cinco compartimentos, dois

cobertos de telha e três com

capim.

Cypriano Monteiro 1886 Posse Ponadigo

Casa coberta de telha.

Três salas de frente e alcova

assoalhada.

Anisezo Martins Ferreira 1887 Terça parte da fazenda Piáu Casa coberta de capim.

José Gonçalves Barbosa

e Magdalena Candida de

Oliveira Marques

1887 Parte de terras na fazenda Passa-

Tempo Casa coberta de capim

Canuto Virgulino de

Faria 1890

Terras de campos e cultura-Santo

Antônio

Casa térrea de pau a pique,

coberta com telha, sem reboco

ou caiação.

Dois compartimentos de 4

metros de frente e 10 de

fundos.

Frente com uma porta e uma

janela; duas portas internas.

Fazenda de criar e lavoura chamada

Correntes Rancho coberto de palha.

Antonio Ferreira 1890 Sítio e mais uma parte na fazenda

Santa Gertrudes

Casa coberta com telhas.

Duas salas de frente.

Anna Rita da Fonseca

Fialho 1890 Um terreno com matos de lavoura

Casa coberta de telhas.

Duas salas de frente.

Francisco Alves Ribeiro 1890 Fazenda Emadica Casa coberta de telha, por

concluir.

Pedro Luiz de Amorim 1894 Duas terças parte de terras na

fazenda Bodoquena Casa coberta de capim

Policena Lino de Faria

Albuquerque 1895 Fazenda Chapena

Casa coberta de capim.

Três salas, sete janelas e três

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Produtor rural Ano ̸

Inventário Propriedade Moradia ̸ Característica

portas.

Manoel José Pinto e

Thereza Nunes Pinto 1895 Sesmaria São Sebastião do Pulador Casa coberta com palha.

João Alves de Arruda 1896 Posse Rebojo Casa coberta de telha.

Joaquim da Silva

Albuquerque 1898 Fazenda Jacutinga

Casa coberta de telha com

quatro lanços de frente.

Duas portas e quatro janelas.

Marianna de Carvalho

Corrêa 1899 Posse Barranco Branco

Casa assobradada coberta de

telha.

Varandão na frente, três salas

depois do varandão e mais

compartimentos.

Fonte: Inventários post-mortem 156-07,157-05, 157-09, 159-03, 159-04, 159-08, 159-20, 159-13, 161-05, 161-

09, 161-15, 161-16, 162-11,162-16, 163-03, 163-07, 163-20, 164-09. Arquivo e Memorial do TJMS.

Observa-se no quadro que as informações das moradias com coberturas de capim

foram as mais restritas possíveis. Nem sequer apresentaram a existência de compartimentos,

como salas, cozinhas ou varandas. Talvez, devido à simplicidade delas nem precisassem ser

caracterizadas nos documentos de herança.

Relativo à cobertura de telhas não significou, na região, um modelo de edificação

durável, elevada em pedra ou tijolos. Certamente, as telhas ofereciam maior comodidade aos

moradores, por impedirem que as águas das chuvas penetrassem no interior da casa por meio

de goteiras, mas seu uso não significou, na prática, a existência de moradias em alvenaria.

Assim, no universo rural da localidade estudada existiram as casas térreas, elevadas de pau a

pique, de paredes preenchidas com barro e a cobertura de telha. A exemplo deste modelo de

moradia citamos a casa de Canuto Virgulino de Faria, elevada na fazenda Santo Antônio.

As terras da propriedade Santo Antonio foram ocupadas desde 1854. A fazenda estava

localizada nos seguintes limites: “à barra do ribeirão Taquarussu, por este à barra do córrego

Pulador, por este até a serra, por esta até o morro azul e deste uma linha reta ao rio

Aquidauana e por este do ponto de partida ou barra do ribeirão Taquarussu”. (INVENTÁRIO,

1890). No local, Canuto Virgulino elevou uma moradia térrea em pau a pique e com cobertura

de telhas. A casa era composta por “dois compartimentos”, cada um com a extensão de quatro

metros de frente e dez de fundos [40 m²]. No frontispício, uma porta para acesso e uma janela

para entrada de iluminação e ventilação. A circulação interna era feita por meio de duas

portas. Em 1890, a edificação ainda apresentava as paredes sem reboco e caiação. Conforme

as descrições encontradas no inventário, a moradia era rústica, semelhante a tantos ranchos

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encontrados na documentação da região. O diferencial era a cobertura de telhas, característica

que para a região já oferecia certo status ao morador.

Havia também na propriedade Santo Antônio, próximo a casa, um cercado de pau a

pique, contendo “cento e vinte e cinco pés de café produzindo” e “quarenta e dois pés de

arvoredos de espinhos produzindo”. (INVENTÁRIO, 1890). Também um engenho de moer

cana, com alguns objetos usados na preparação dos subprodutos da cana-de-açúcar, a saber:

três tachos de cobre, cinco gamelões pequenos e dois grandes.

No inventário de Canuto Virgulino foram arroladas também a fazenda de criar e

lavoura chamada Correntes, adquirida por compra de Augusto Ferreira Mascarenhas e uma

parte de terras da propriedade Alinane e a posse no lugar denominado Lagiado, onde

mantinha um rancho coberto de palha, dois lanços de curral de “trinta braças em quadro cada

um” [145,2 m²], cercados com madeira de lei e um cercado de pau a pique com “cento e

oitenta e nove braças de comprimento” [415,8 m²], elevado com diferentes tipos de madeira.

(INVENTÁRIO, 1890). Relativo aos animais, havia em posse da família 1.242 animais,

sendo: 1.216 bovinos e 26 cavalares de sela.

A análise do conjunto documental consultado, neste caso os inventários, mostrou que

eram as famílias proprietárias de terras, ou com maior quantidade de bens de raiz e cativos, as

possuidoras de moradias com cobertura de telhas. Os proprietários de terras com poucos

animais, ou possuidores de um ou dois escravizados, moravam em casas cobertas de palha ou

capim. Vale explicar que em algumas propriedades rurais as habitações, mesmo elevadas com

materiais rústicos, apresentavam várias peças.

Na fazenda Chapena, propriedade do casal Moysés Augusto de Albuquerque e

Policena Lino de Faria Albuquerque, a exemplo, apesar da habitação ter sido elevada com

cobertura de capim, apresentava três compartimentos, sete janelas e três portas. Além da casa,

havia no local um cercado elevado de taquarussú, usado para pasto aos animais e mais uma

edificação coberta de telhas, com três salas, cinco portas e seis janelas e outros dois currais

para o serviço com o gado vacum. A família sobrevivia da criação do gado e da fabricação do

açúcar, da farinha e da rapadura. Encontramos em posse da família no ano de 1895, período

de execução do inventário de Policena Lino, 830 vacuns, 15 bois de carro, quatro cavalos de

serviço, quatro éguas e um burro. Também, utilitários usados no campo, como: engenho de

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madeira, forno de cobre, roda para mandioca e tachos de cobre. Além destes, foram arrolados

também, dois carros de boi, duas mesas de jacarandá, duas mesas de cedro, uma cômoda de

jacarandá e um sofá, denotando que a família desfrutou de pouca mobília no interior da

moradia. (Inventário, 1895).

Interessante apontar que a literatura dos viajantes e as obras que tratam sobre a

ruralidade da província de Mato Grosso, sobretudo da região sul, produziram para o produtor

rural uma imagem de homem rude, no enfrentamento de vida severa em território inóspito.

Desta forma, induzem-nos a pensar em indivíduos totalmente toscos, vivendo sem nenhuma

sofisticação. Mas a partir dos estudos que realizamos, é preciso explicar que existiram

fazendeiros no território de Miranda, donos de uma ou mais casas na vila de Miranda, outros

possuidores de objetos em prata e ouro e, demais, ocupantes de casas amplas, cobertas com

telhas, servidos por importante número de trabalhadores escravizados e com mobília

requintada. É certo que as moradias eram mais modestas se comparadas às edificações das

fazendas paulistas e mineiras, ou às casas-grandes dos engenhos nordestinos, porém as casas

elevadas com coberturas de telhas de barro distinguiam seus moradores daqueles que

habitavam os rústicos e simples ranchos rurais.

A diferença entre um rancho e uma casa de pau a pique não está na técnica de se

construir, mas na divisão interna, na quantidade de compartimentos e na cobertura. O rancho,

típica moradia dos sertões encontrados pelos viajantes, era sempre coberto com capim. Para

mostrar como era edificada a casa de pau a pique reportemos às explicações contidas no texto

“A casa de moradia no Brasil antigo”, 1945, escrito por José Wasth Rodrigues. De acordo

com o citado autor, a maneira de levantar uma parede em pau a pique era da seguinte forma:

[...] terra úmida, calcada com soquetes pesados, dentro de uma armação de tábuas

(lembrando o cimento armado de hoje), presas aos esteios verticais e estes aos

horizontais, do andaime. A armação ia subindo e acompanhando o crescimento da

parede, preservados naturalmente os vãos da casa. Terminada a obra, ficavam os

buracos dos paus horizontais, que eram então tapados, rebocada de barro, era caiada.

(RODRIGUES, 1945, p. 167).

Conforme José Rodrigues, a elevação de uma casa através da técnica de pau a pique

permitia a utilização de materiais facilmente encontrados na natureza. O entrelaçamento da

madeira feito para dar origem às paredes podia ser realizado tanto com bambu, troncos finos

de árvores, ou madeira retirada das matas locais. A técnica era versátil e adaptava-se às

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condições de cada região. A madeira colocada vertical e horizontalmente formava a estrutura

e os espaços da habitação, no entanto, deixava aberturas vazias, as quais eram preenchidas

com terra umedecida com água. O barro depois de seco e endurecido poderia receber uma

pintura feita com cal. A cobertura também podia ser construída com recursos retirados da

natureza, como: capim, folha de coqueiro, palha de buriti e carnaúba ou ainda a telha de barro.

Mobília e utilitários da casa

Conforme as informações extraídas das fontes primárias, o mobiliário usado pelos

proprietários de terras de Miranda constituiu-se em: armário, banco, baú, cadeira, caixa, cama,

canastra, catre, cômoda, espreguiceiro, estante, guarda-roupa, mesa, mocho, sofá e tamborete.

A mesa aparece na maior parte da documentação dos anos de 1873 a 1900, analisada.

Observamos que a maioria das famílias possuiu a mesa para fazer as refeições, as redes para

descansar e as caixas para guardarem seus diferentes pertences. Sobretudo, nas casas de pau a

pique, cobertas de capim ou nos ranchos instalados nos vastos campos cobertos por pastagens

e matas fechadas, os proprietários de terras e gado viveram com simplicidade.

Na documentação relativa aos anos de 1870, mesmo nos ambientes rurais com número

expressivo de escravizados, observamos rara mobília. Não podemos desconsiderar o fato de

que se trata de um período pós conflito com o Paraguai e que a região desde o ano de 1864 foi

invadida, as propriedades e vilas saqueadas. Terminada a guerra em 1870, os proprietários

retomaram suas posses e reiniciaram suas atividades cotidianas. Assim, a partir dos anos de

1880 observamos a existência de maior quantidade de objetos, inclusive requintados, como:

cômoda, sofá, entre outros.

Nos anos de 1890 encontramos o espreguiceiro, a estante, o guarda-roupa, que apesar

de inexpressivos quantitativamente, quando comparados à mobília como caixas, catres e

mesas sinalizaram certo luxo no interior da casa rural. Em uma região onde as casas possuíam

tão pouca mobília, a existência de sofá, uma espreguiçadeira, um guarda-roupa ou uma

estante de sala revelava sofisticação e consequentemente prestígio social. Além da posse

desse tipo de mobília rara, a casa com cobertura de telha e a presença dos cativos destacava

socialmente o terratenente.

A análise documental permitiu-nos notar que o sofá, artigo de destaque da segunda

metade do século 19, esteve presente nas casas rurais da região estudada, desde os anos de

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1870. De acordo com Lucio Costa no texto “Notas sobre a evolução do mobiliário luso-

brasileiro”, 1939, apareceram nas moradias brasileiras no final do Oitocentos “os bonitos e

majestosos sofás de palhinha”, assim como, as “mobílias de sala de visita de aspecto às vezes

sóbrio, outras, pretencioso e rebuscado, em todo caso formalístico”. (COSTA, 1939, p. 158).

Encontramos na moradia de Daniel Benicio de Toledo, criador de animais, o sofá de

palhinha, característico da segunda metade do século 19. Além do sofá, havia também na

casa, dois armários com vidros, duas mesas quadradas, um espelho dourado e um relógio de

parede, um par de castiçais de metal e um par de lampiões de louça. (INVENTÁRIO, 1893).

Alguns sofás em estilo rústico fizeram parte do interior das moradias rurais da região.

O sofá da casa de Maria Alves da Conceição Fialho, proprietária de uma sesmaria e “um pasto

de criar e lavoura”, era de madeira de jacarandá. (INVENTÁRIO, 1882). Da mesma madeira

era o sofá da sala da habitação de Anna Rita da Fonseca Fialho, proprietária de terras, terrenos

e casas urbanas. (INVENTÁRIO, 1891). Dois sofás haviam em posse do proprietário rural

Augusto Gomes de Almeida que, infelizmente, não foi possível identificar de que tipo de

material eram. De palhinha, era a espreguiçadeira dele. (INVENTÁRIO, 1896).

As canastras e os baús encontramos em quantidade razoável nas casas das fazendas de

Miranda. No inventário de Eulália de Arruda Pinto, 1878, foi registrado “três pares de

canastras encouradas de sela preta com pregos dourados”. (INVENTÁRIO, 1878). Devido às

características do objeto, possivelmente se tratava de um móvel mais requintado quando

comparado aos demais, da mesma categoria, descritos em outros processos analisados.

Existiram também os baús grandes e pequenos, encourados e sem couro de madeira e

envernizados. A recorrência deles no interior das casas justifica a rara presença dos guarda-

roupas utilizados para guardarem as vestimentas e demais objetos pessoais.

Conforme explicação de Lúcio Costa, já citado, a casa brasileira, tanto a colonial

quanto a imperial apresentavam os móveis essenciais de sobrevivência. Assim, registrou que

ao homem colonizador: “além do pequeno oratório com o santo de confiança, camas,

cadeiras, tamboretes, mesas e ainda arcas. Arcas e baús para ter onde meter a tralha toda”.

Para Costa, o clima tropical e certos costumes presentes no Brasil, como o uso das redes e o

“sentar-se sobre esteiras, no chão, não estimulavam o aconchego dos interiores nem os

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arranjos supérfluos ou de aparato. Quanto menos coisa, melhor, para não atravancar

inutilmente os aposentos”. (COSTA, 1939, p. 151).

As habitações rurais de Miranda foram pobres em ornamentos. No período estudado

arrolamos a quantidade de cinco pares de castiçal de prata e somente um quadro. Espelhos e

relógios de mesa e parede apesar de úteis e também peças para enfeitar a casa foram raros e,

assim como a espreguiceira, a estante, o guarda-roupa e o sofá poderiam denotar certo

requinte para quem os possuíssem.

Relativo a cozinha abrigou poucos objetos de uso comum; os utilitários constituíram-

se em louças, paliteiros, pratos, salvas e talheres e estiveram presentes em poucas moradias. O

comum foi a bacia e a panela, ambas de ferro. Em três décadas de documentação analisada,

somente uma salva de prata foi registrada. Destacamos a casa de Virginia Miquelina, com

cozinha equipada com seis cadeiras americanas, dois tachos de cobre, uma mesa grande de

cedro, louças e talheres. (INVENTÁRIO, 1896).

Uma raridade foi o oratório no território de Miranda, encontramos somente dois

registros. Enquanto expressão da religiosidade, o oratório era mantido pela população da

época em alguma peça da casa, para execução das rezas diárias, sobretudo nos espaços rurais

destituídos de capelas. De acordo com a historiadora Nanci Leonzo, em texto já referenciado,

somente algumas fazendas mato-grossenses possuíram edificações religiosas. As igrejas das

fazendas Jacobina e do Taboco são citadas pela autora, como exemplos raros encontrados na

província de Mato Grosso. (LEONZO, 2004, p. 268). Assim, na falta das capelas anexas às

habitações rurais, as famílias mato-grossenses poderiam manter seus oratórios e quadros de

santos dentro de casa, para exercerem a fé católica. Na moradia de Anna Rita da Fonseca

Fialho existiu um oratório, com as imagens de Santo Antônio e Santa Ana. E o proprietário

rural Pedro Luiz de Amorim possuiu um oratório de madeira, com diversas imagens de

santos.

Considerações finais

A análise dos inventários post-mortem permitiu-nos perceber algumas características

das habitações rurais de Miranda e o uso comum de objetos. Relativo a maioria das moradias

eram térreas, elevadas em pau-a-pique, paredes preenchidas com barro e com cobertura de

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telha ou de capim. As casas com cobertura de telhas tinham compartimentos como cozinha,

corredor, despensa, salas de frente, varanda e portas e janelas na parte da frente da construção.

As casas cobertas de capim possuíam compartimentos em quantidade inferior, mas

apresentavam também portas de frente e janelas, as paredes revestidas com barro.

Dentro dessas moradias foi comum o uso de baús, caixas, canastras e mesas. Objetos

raros foram o catre, o espreguiceiro, a estante, o guarda-roupa e o tamborete. A bacia e a

panela de ferro também eram objetos comuns, utilizados na preparação das refeições diárias.

Utensílios mais requintados como louça, paliteiro, salva de prata e talher raramente fizeram

parte das cozinhas das fazendas de Miranda. Desta forma, as famílias proprietárias de terras

da região de Miranda mantiveram o mobiliário e os objetos indispensáveis à sobrevivência

cotidiana, adaptados à rusticidade e simplicidade vivida nos ambientes rurais.

Fontes

Inventariada: Anna Rita da Fonseca Fialho, 1891. Caixa 161-15. Arquivo e Memorial do

TJMS.

Inventariada: Maria Alves da Conceição Fialho, 1891. Caixa 1157-26. Arquivo e Memorial

do TJMS.

Inventariada: Marianna de Carvalho Corrêa, 1899. Caixa 164-09. Arquivo e Memorial do

TJMS.

Inventariado: Augusto Gomes de Almeida. Caixa 163-05. Arquivo e Memorial do TJMS.

Inventariado: Canuto Virgulino de Faria, 1890. Caixa 161-05. Arquivo e Memorial do TJMS.

Inventariado: Daniel Benicio de Toledo, 1893. Caixa 162-05. Arquivo e Memorial do TJMS.

Inventariado: Francisco Xavier Ribeiro, 1877. Caixa 156-07.

Inventariado: Maria Alves da Conceição Fialho. Caixa 157-26. Arquivo e Memorial do

TJMS.

Inventariado: Tenente coronel Simplicio Xavier Tavares da Silva, 1886. Caixa 159-03.

Arquivo e Memorial do TJMS.

Bibliografia

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Janeiro: IHGB, 1946.

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FLORENCE, Hercules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. São Paulo:

Cultrix, 1977.

LEONZO, Nanci. Pão e pano ou prato e trato: um ensaio sobre a casa mato-grossense.

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SOUZA, Lécio Gomes de. Jacobina: História de uma fazenda em Mato Grosso. Revista do

Instituto Histórico de Mato Grosso, 1998.

TAUNAY, Alfredo d’ Escragnole. Viagem de regresso de Matto-Grosso à corte. Memória

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TAUNAY, Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle (Visconde de Taunay). Album. Viagem

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Ambiente do Século XIX Brasileiro. Disponível em:

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