Veli

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Eu te amo, A.

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Frio.Na verdade, eu amo o frio, mas no naquela situao.

Eu estava deitado em algo que, pelo menos eu achava, era um velho colchonete. Estava escuro demais para ver. O tecido rasgado e spero me arrepiava nas costas nuas, e eu espirrava conforme partculas de poeira e espuma eram lanadas ao ar. Eu no podia evitar, estava me sacudindo com uma fora incomum. Algo me incomodava demais. Algo que no deveria estar ali, e por isso, no foi difcil achar a fonte de meus primeiros problemas.Mesmo com meu peito nu parecendo que estava em brasas de to acelerado que estava o que sobrou do meu corao, aquela corrente amarrada ao meu p esquerdo era a fonte de todo meu frio. Eu puxava, e puxava, e no conseguia ver onde ela estava amarrada. E eu estava agonizando, sem entender onde estava, porque era escuro, porque estava ali e como havia parado em tal lugar. Eu estava com medo, chorando e rezando silenciosamente. Na verdade, eu acreditava que a qualquer minuto, uma pequena luz de televiso iria acender. Ou eu acordaria, e me veria no meu sof aps uma soneca e um pesadelo, ou uma voz estranha diria que eu estou em um dos Jogos Mortais. Eu torcia pela soneca.Comecei a gritar, de vez em quando eram s gritos, mas s vezes as slabas se tornavam palavras como Socorro ou frases como Tem algum a?. Eu queria mesmo chamar a ateno de algum, mas me arrependi e me calei quando eu aparentemente consegui o que queria.Passos. Em algum lugar, havia algum, andando por todos os lados. Pareciam ser muitos passos, muitas pessoas, ou uma s andando freneticamente de um lado para o outro. De qualquer jeito, eles estavam perto de mim, e isso me causou mais medo.Eu sentei e encostei em uma parede, gelada, para variar. Era madeira, podia sentir a textura e as pequenas farpas atrs de mim enquanto eu tentava me concentrar. Tentativa frustrada, as lgrimas caam de uma forma desesperada. um sequestro!, pensei, S pode ser, e essa concluso no foi boa aos meus esforos de conter as lgrimas: eu chorava ainda mais.

Experimente ficar sentado quase nu, no frio e com tudo escuro, no lugar mais desconfortvel possvel. Os minutos vo comear a parecer horas, e as horas vo parecer milnios. Foi o que aconteceu comigo, e eu nem citei o pavor que sentia e a corrente no p.Pela primeira vez em toda minha estadia naquele local pra mim, haviam se passado muitas horas eu comecei a pensar racionalmente, pelo menos com o restinho da razo que me restava.Ta bom, no pode ser um sequestro.Vo pedir o resgate quem? Meus professores da faculdade?Onde eu estou, Deus?O que aquilo? Uma luz?Eu havia visto uma luz extremamente branca, em forma fina e arrastada, como uma fresta de uma porta fechada, e por todo o azar do mundo, meu palpite estava certo dessa vez.

Os passos que antes eu no conseguia identificar de onde vinham, dessa vez eram claros que estavam na direo daquela luz, e eles estavam ficando cada vez mais altos, mais fortes, e quando eu me dei conta de correr para o mais longe possvel da luz, j era tarde demais. Um claro me cegou por uns minutos, e eu ouvi sons perturbadores. Engatinhei o mximo que pude para a direo oposta do claro, at bater com o rosto em outra parede de madeira. Mais sons perturbadores.Correntes, provavelmente sendo arrastadas. Coloquei a mo na minha perna para me certificar que no era a que estava presa em mim, se balanando em quanto eu tremia. Um rudo chato e repetitivo, alguma coisa se arrastando em outra, ou asas batendo, ou, sei l, o motor de um carrinho de controle remoto.Um baque, um barulho surdo, o cho tremendo, algum ou alguma coisa havia arremessado algum ou alguma coisa para aquele lugar, junto comigo, e tudo que eu conseguia enxergar era o branco nas manchas dos meus olhos.Agradeci Deus por ter a escurido de volta, as manchas brancas se foram, mas s depois percebi que estava preso de novo, e dessa vez, no estava sozinho. Pelo menos eu sei que havia uma porta, mas com algo cado no meio do caminho at ela.Dessa vez eu estava encostado na quina entre duas paredes, bem no canto, me encolhendo ao mximo. S pude esticar o brao um pouco, tentando reencontrar o velho colchonete que me abrigava antes. Consegui.Estou com fome.

Minha viso pode ter sido prejudicada para o resto da minha vida depois daquele claro, mas eu ainda ouvia, e muito bem, e s pude perceber isso quando comecei a ouvir choros. E eu tambm sentia, e muito bem, algum calor estranho vindo de algum lado da escurido. Percebi que, seja o que estivesse ali comigo, estava chorando, mas isso no importava: estava acordado.

Oi?

Dei um pulo com o susto daquela voz grave e corri at aonde a corrente me permitia, e encontrei outra parede. Definitivamente, eu estava em um quarto.No havia reparado que aquilo havia parado de chorar, quero dizer, pelo menos agora eu sei que uma pessoa.O sentimento de perda e de morte em meu corao s aumentava conforme a respirao de meu companheiro de cela ficava mais intensa, at que, se fez silncio. Ele no respirava, eu no respirava.O que acont no consegui completar meus pensamentos depois que ouvi sua voz perguntando Tem algum a?, mas dessa vez com um tom forte e com muito dio, e confuso.

Quem voc? Eu gritava Onde eu estou?

Qual o seu nome? O ser misterioso respondeu.

No te interessa! Me arrependi de ter gritado isso logo em seguida. Sabe-se l com quem eu estava acompanhado.

Responde, qual o se nome?

Diego, porque? No tinha mais o que fazer, respondi Onde eu estou? Quem voc?

Voc no sabe onde est?

claro que no, voc surdo? Outra pontada de arrependimento.

Eles ele pausou, com uma voz mais calma pegam pessoas como ns, e ningum sabe o que acontece depois.

Pessoas como ns? Como assim? Eles quem?

Quantos anos voc tem? A voz mais calma ainda.

Eu fao as perguntas aqui, ok?

Responde! Quantos anos voc tem? O grito dele mostrou que eu acabei com sua pacincia.

Dezessete Respondi, assustado.

Muito novo... Voc deve ser diferente.

No tive coragem em criar outra pergunta.Voc humano? Ele perguntou.

claro que eu sou humano, queria que eu fosse o qu?

O silncio dele foi minha compreenso. Ele no era.O que voc , um demnio?

Sou bondoso demais para isso.

E egocntrico tambm sarcasmo, meu velho amigo Ento, um anjo?

Sou complicado demais para isso.

Ento o que voc ? Eu havia me acalmado. No queria, mas j estava calmo.

No posso te dizer. Ainda.

Pode me responder pelo menos o que est acontecendo?

Voc no sabe onde est, certo? Ele no me deixou responder, j estava claro demais Ento, eu sei muito pouco, mas, voc tambm est acorrentado?

Sim.

Eles acorrentam duas pessoas, neste local, e ningum sabe o que acontece depois.

Eles quem?

Eles se intitulam Cupidos.

Cupidos? O tom de deboche saiu mais alto do que eu pensei.

Sim. Muita gente no acredita que eles existem, mais existem. So criaturas ms, com asas pequenas e um corpo muito grande, desproporcional demais para voar, mas voam. Viajam entre os mundos procurando pessoas, e as capturam.

Para qu?

Eu j disse, ningum sabe o que acontece aqui.

Silncio.Ento Eu continuei Ns vamos morrer?

No sei. Dizem que das duas pessoas, uma retorna, e a outra no.

Ento, s um de ns vai morrer?

No sei.

Quebrei o silncio mais uma vez.O que voc quis dizer com Pessoas como ns?

No seu planeta eu no sei, mas no meu, so pessoas que tiveram seus coraes arrancados.

Corao? Voc humano ou no?

J disse, no sou, mas tenho um sistema muito parecido com o de vocs.

Como voc ?

Sou verde, tenho vinte olhos, garras, 4 metros de altura e uma calda em forma de serpente.

O QUE? Eu gritei, com tudo que meu pulmo havia para oferecer.

Calma, brincadeira. Na verdade, sou muito parecido com voc por fora tambm. Mesmo sistema respiratrio, auditivo, reprodutor, mesma pele. S somos mais altos, temos dentes diferentes, comparados com os de tubares, e nossos olhos enxergam mais que o seus. Na verdade, os humanos so nossos antepassados. Ns evolumos um pouco.

Voc homem, na sua espcie?

Ele soltou uma pequena risada.No temos definio de sexo em nosso planeta, todos so uma coisa s.

E o que so, homens ou mulheres?

J disse, nenhum dos dois.

Isso no faz sentido.

A vida no faz sentido.

Minha cabea girava, cada vez mais. O silncio era perturbador, mas a cada vez que ele o quebrava, era mais perturbador ainda.-----------------------------------------------------

De novo: experimente ficar sentado quase nu, no frio e com tudo escuro, no lugar mais desconfortvel possvel, mas dessa vez, com um companheiro de quarto. Vocs podem at dormir, sei l, mas se um dos dois for o que ns humanos chamamos de Aliengena, vocs no vo parar mais de conversar. Dessa vez, o tempo no parecia passar, mas meu lado racional me dizia que horas e horas estavam se passando.Eu quase no falava mais, s para fazer perguntas, e ele parecia disposto a responder todas elas. Descobri muitas informaes, novos mundos, novos povos. E, claro, eu no me considerava no planeta Terra mais.

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Em algum momento, aquele ser na minha frente se tornou muito socivel. Ele me acalmava, conversava comigo e parecia ser s mais uma vtima disso tudo. E, confesso, o calor que seu corpo emanava me aquecia, era uma sensao muito boa.Eu ainda estava com medo, mas passei a ficar confortvel quando deitei no cho e estiquei o brao e, sem querer, encostei minha mo em sua mo. Era tudo que eu no imaginava, gelada. Mesmo com todo o calor, ela era fria, mas me passava uma sensao extremamente agradvel. Resolvi no larg-la, j que ele demonstrou no querer largar a minha tambm.Eu me mantive acordado o quanto eu pudesse, at que a luz cegante invade o quarto de novo, mas dessa vez, me protegi a tempo.Uma imagem negra e distorcida aparece, agacha e pega uma das correntes na mo. Eu no entendi o que aquilo fazia at sentir a mo de meu protetor se afastar de mim. Aquilo o estava puxando para longe de mim.Ele se levantou, ficando de frente coisa, e pude ver sua silhueta. Era linda. No tinha visto sua face, nem sua aparncia em detalhes, mas aquela altura, no importava mais. Ele era lindo.

Voc voltar para casa Uma voz monstruosa soou no quarto, e todos os meus pavores voltaram. Quer dizer que ele ir retornar, e eu irei morrer?

Sim Foi tudo o que ele disse.

E a porta se fechou, nos deixando sozinhos novamente.Sinto muito Foi tudo que ele disse.

Por minha morte? No culpa sua, e eu no acredito na morte Pude responder, com minhas mos e queixo tremendo.

Ouvi passos.Esto vindo me buscar. Queria muito ficar com voc um pouco mais.

No precisa mentir. Volte para a sua vida.

No mentira, eu realmente queria te conhecer mais, mas no nessa situao.

Eu tambm.

Passos mais fortes.Isso um adeus? Perguntei.

Eu queria saber o que foi que aconteceu aqui, como ns chegamos aqui.

Mas voc sabe, foram os Cupidos, certo?

No, no digo aqui nesse quarto. Digo ns dois, depois de sermos sequestrados, chegarmos ao ponto de sentir afeto.

Isso verdade Respondi.

Ele se levantou, esperando que a porta seja aberta.Posso te perguntar algo? Eu disse, e ele se virou.

Claro.

Qual o seu nome?

Depende Ele disse.Voc apenas um humano, para voc eu tenho mil nomes, muitos impronunciveis e alguns cantados em lnguas que os ouvidos humanos no conseguem captar.Meu nome pode ser Puhdas, Ren, Saf. Meu nome pode ser Kathares, Puro, Zuiver. Meu nome pode at ser Czysty, mas no dia certo voc saber do que me chamar.

E l estava eu, relembrando suas palavras, e com medo de minha vida.O que vai acontecer comigo? O que vo fazer comigo? As perguntas no pararam de perturbar minha mente.Eu estava morrendo por dentro, at aquele momento, quando o escuro se tornou mais escuro, o vazio se tornou mais vazio, e o quarto se tornou frio de novo sem ele.

E eu acordei em uma cama com lenol branco, em uma sala com paredes em um tom de verde que me lembravam hospital, no sei porque.Eu parecia estar preso cama, mas percebi que estava ligado a aparelhos e um soro ao meu lado: eu estava em um hospital.Por mais perturbada que minha mente estava, no conseguia parar de pensar no que havia acontecido comigo, e onde eu estava.Um grande vidro, do cho at o teto, substitua uma parede. Uma janela, enorme e bizarra, confesso, mas nada era mais bizarro do que a viso que eu tinha de onde estava: o cu estava completamente laranja, as poucas casas que eu conseguia enxergar eram impecavelmente iguais e de formas arredondadas, como colnias de abelhas, todas em um campo grande e verde, mas nada era mais estranho do que as duas luas brilhantes na imensido laranja. Sim, eu disse duas.Eu no havia morrido. Provavelmente eu havia sonhado aquilo tudo, mas morto? No.S que, pela segunda vez, onde eu estava?Dizem que das duas pessoas, uma retorna, e a outra no.Aquelas palavras, que por algum motivo estavam na minha cabea, fizeram sentido: eu no estava em casa. Eu no estava na Terra. Eu no estava morto, mas havia sumido. Tudo o que aconteceu no foi um sonho.Meus pensamentos foram confirmados quando o vi: meu companheiro do quarto escuro, deitado em um sof completamente branco tambm, no lado oposto janela. Ele estava como pedra, mas respirando, provavelmente dormindo. Realmente, ele era muito alto.E na mesma direo, uma pequena mesa com uma flor em cima, uma flor maravilhosa, com um tom de azul que eu nunca havia visto na vida, e embaixo dela, um bilhete.Consegui esticar o brao que no estava preso pelo soro para peg-lo.

Para voc,Sou seu consolo, sua fortaleza, seu caminho.Sua posse, seu medo, seu Eu Mstico.Sou sua beleza, sua fora, sua identidade.Sou sua vida, seu amor, sua amizade.Veli .

E assim comeou minha vida.