68
1 Nome do Autor, Nome do Texto / 2011 Encontro de Arte Viva 2011

V::E::R 2011

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Catalogo do encontro de performance realizado em Terra Una

Citation preview

Page 1: V::E::R 2011

1Nome do Autor, Nome do Texto /

2011

Encontro de Arte Viva2011

Page 2: V::E::R 2011

2 / Nome do Texto, Nome do Autor

Page 3: V::E::R 2011

Encontro de Arte Viva2011

Page 4: V::E::R 2011

4 / Créditos

Artistas

Ana Luisa Lima, Bernardo Moscheira, Bruno Caracol,

Bruno Jacomino, Bruno Miguel, Denise Alves,

Élcio Rossini, Jairo dos Santos, Jamil Cardoso,

Julia Pombo, Lucía Russo, Luis Parras, Maicyra Leão,

Michel Groisman, Michele Moura, Pontogor,

Rubiane Maia, Shima e Vitor Butkus.

Articulação

Alex Cassal

Beatriz Lemos

Domingos Guimaraens

Marcela Levi

Marcus Vinícius

Nadam Guerra

Produção

Domingos Guimaraens

Produção local

Mariana França

Marina Dain

Assistente de Produção

Clarissa Palma

Design gráfico

48

Fotografia

Julio Callado

Realização

Terra UNA

Agradecimentos

Escola Frei Wulff, Maria da Glória dos Santos Pereira,

Valdinei dos Santos, e aos moradores de Terra UNA.

Page 5: V::E::R 2011

5Sumário /

07 / Articuldores - V::E::R 2011 Encontro de Arte Viva

08 / Sobre os Participantes

11 / Nadam Guerra Muito Além da Performance

15 / Bruno Caracol Contrabando

19 / Alex Cassal Artistas no corpo

23 / Elcio Rossini Rito Inaugural

26 / Vitor Butkus Uma máquina desmontada

32 / Luis Parras Esperando passarinho

51 / Kenny Neoob Fontoura: um personagem conceitual

56 / Rubiane Maia Sim...

58 / Julia Pombo Convivendo

63 / Jamil Cardoso Sobre o V::E::R

66 / Vitor Butkus Havendo

Page 6: V::E::R 2011

6 / Nome do Texto, Nome do Autor

Anda dedos, de Michel Groisman

Criando rodando afeto, de Bernardo Mosqueira

Page 7: V::E::R 2011

Organizar um encontro de arte fora de um grande centro urbano, em um contexto particular de

uma Ecovila, foi uma oportunidade única de reunir artistas e críticos para um intenso convívio.

Durante dez dias colaboramos entre todos na montagem e realização dos trabalhos propostos via

convocatória, além das experiências em parcerias que surgiram a partir das aproximações. Em

Terra UNA, a arte dialoga constantemente com as diversas dimensões da sustentabilidade, estimu-

lando um campo sensível para a ação e interação. No VER – Encontro de Arte Viva este estímulo

propiciou ref lexões, debates, performances, instalações, objetos, esculturas, intervenções, de-

senhos, textos, fotografias, vídeos, pintura e falas para além da especificidade da arte. A produ-

ção realizada para o VER carregou (e continua reverberando) um toque de emotividade de quem

vivenciou tal experiência. Arte viva é nada mais do que arte na vida.

Esta é a segunda edição do VER que reuniu em Terra UNA 21 artistas e críticos, além dos

articuladores e produtores do evento, durante o período de 22 a 30 de janeiro de 2011. Foram

realizados trabalhos instalados, instantâneos, vivências, falas e oficinas, sem contar os es-

pontâneos que ganharam vida sem notoriedade.

Para esta publicação convidamos todos os participantes para que descrevessem seus pontos de

vistas acerca das obras realizadas, do encontro, do lugar e da experiência individual. Certos de

que não haveria melhor descrição, relato ou texto crítico do que os escritos por aqueles que se

sentiram ávidos ao chamado, é com imensa satisfação que apresentamos ao público o resultado

deste grande encontro. Viva arte viva.

Os articuladores

Alex Cassal, Beatriz Lemos, Domingos Guimaraens,Marcus Vinicius, Marcela Levi e Nadam Guerra

V::E::R 2011 - Encontro de Arte Viva

Page 8: V::E::R 2011

Ana Luisa Lima (PE) _ Fala _ “Qual Arte?”, sobre a relação arte, crítica e mercado. _ Vivência _ “Pequenos Tratados Sobre”, livro/objeto que passará de mão em mão, sofrendo intervenções, por todos os artistas participantes do VER.

Bernardo Mosqueira (RJ) _ Fala _ “Criando Rodando Afeto”, uma espécie de construção coletiva e polifônica de pensamento vivo/ativo sobre a vida e a arte contemporâneos.

Bruno Caracol (POR) _ Instalado _ “A Voz”, receptores de rádio enterrados em pontos distintos da Ecovila.

Bruno Jacomino (RJ) _ Instalado _ “Consuor”, máquina de lavar roupa doméstica, com sistema de engrenagens ligado a uma bicicleta, movida pela força humana.

Bruno Miguel (RJ) _ Instalado _ “Refeitório”, perfis de casas em compensado sobre cumpimzeiros e outras interferências na paisagem.

Denise Alves (SP) _ Instalado _ “Nível”, trata-se de uma passagem alternativa, construída com escavação feita no solo em área demarcada. O trabalho se desdobra através da perspectiva experimental, tanto na sua construção física como também para o ponto de vista daquele que o atravessa. _ Instantâneo _ “Percurso”, máquina construída e usada pela artista para registrar as vibrações e movimentos do seu corpo enquanto se desloca pelo espaço. Derivada da idéia de um sismógrafo, a máquina possui uma agulha que marca sobre o papel uma

linha dentada contínua durante a locomoção e uma linha estável nas pausas entre um lugar e outro percorrido.

Élcio Rossini (RS) _ Instantâneo e Instalado _ “Ora bolas”, um espaço para criação de uma performance que conta com a participação do público. Feita com balões transparentes cheios de água e ar pendurados por fios de nylon essa instalação também pode ser definida como um grande instrumento que produz sonoridades semelhantes a de uma cuíca.

Jairo dos Santos (MG) _ Instantâneo _ “E nós que nos amávamos tanto”, pendurar um ninho de João Garrancho abandonado na barba e esperar que algum pássaro pouse.

Jamil Cardoso (RJ) _ Instantâneo _ “Um arranjo coreográfico para um coadjuvante em um rito inaugural”. Pesquisa da trajetória como intérprete, tantas vezes fonte de matéria artística, apropriador de materiais estrangeiros. Compor ambientes no corpo, frases de movimento. A ação de comer. A investigação rítmica e plástica do corpo.

Julia Pombo (RJ) _ Instalado _ “Desapego”, caixa com objetos pessoais, relacionados à história de vida da artista, com “valor emocional”, colocada em um lugar fechado da ecovila, com uma instrução e uma lista/relato de cada objeto. Durante os dias os participantes trocam um objeto da caixa por outro próprio, sem comunicar previamente a artista.

Kenny Neob (RJ) _ Vivência _ “Personagem

Sobre os Participantes

Page 9: V::E::R 2011

9Sobre os participantes /

conceitual Heterônimo Fontoura”, durante a estadia em Terra Una, ser ‘capturada’ pelo pensamento do filósofo Gilles Deleuze de modo a deixar que seu fluxo de pensamento se misture ao meu e ao que é percebido no espaço, nas atividades do local, de modo que minha verbalização seja o resultado do discurso de um ‘Outro’. Este Outro, o personagem Heterônico, não sou eu, nem Deleuze, mas uma mistura.

Lucía Russo (ARG) _ Vivência _ Nas derivas do contra-bando: guias, contatos e redes informais de contrabando de historias e contradições, de Liberdade-MG.

Luis Parras (BA) _ Instalado _ “Projeto Caramujo/Tenda do Amor”, criação de um ambiente de lona amarela, nos moldes dos moradores de rua, camelôs ou toda gama de arquitetura efêmera presente nas grandes cidades, neste ambiente costumamos instigar a ocupação na tentativa de criar um espaço neutro onde os ocupantes dão a lógica de criação coletiva.

Luisa Nóbrega (RJ) _ Instantâneo _ “Degredo” Possuidora de uma leve deficiência auditiva de nascença, a artista se submeteu a cinco dias de surdez completa voluntária, com o auxílio de tampões de ouvido. Durante esse período, manteve-se em silêncio absoluto, evitando quaisquer formas de comunicação verbal, tais como ler ou escrever. No sexto dia, após retirar os tampões, se dirigiu a um local ao ar livre onde se manteve de pé, imóvel, durante o dia todo, falando ininterruptamente durante 24 horas.

Maicyra Leão (SE) _ Fala _ Apresentação de alguns trabalhos artísticos recentes que explorem processos alternativos de colaboração, envolvendo diretamente o “público” na ação. Para tanto, foram apresentados experimentos tanto do campo do teatro quanto das artes visuais, buscando compreender esse fenômeno como uma recorrência ampla na arte contemporânea.

Marcus Vinícius (ES) _ Instantâneo _ “Espera”, no alto de uma cachoeira, contra o fluxo da água, esperar amparado por tecidos brancos amarrados nas árvores.

Michel Groisman (RJ) _ Instantâneo _ Três ações realizadas. “O Polvo”, “Sirva-se”, “Anda Dedos” e o “Instrumento de Comunicação”.

Michele Moura (PR) _ Instantâneo _ “O Oco”, realização de ação ao ar livre que carrega o enunciado de que “existe separação entre corpo e mente”. Uma performance de dualismos, mover/sermovido, grotesco/sublime, introspecção/excitação. Performance realizada com auxílio de Pontogor, instalando microfones de contato no corpo da artista.

Nadam Guerra (RJ) _ Instantâneo _ “Autorretrato enquanto vários”, light bodyart. Corte de cabelo mudando as feições do artista.

Pontogor (RJ) _ Instalado _ “Escultura Sonora”, captadores de vibração instalados em cordas que sustentam pedaços de troncos. Ao serem tocados produzem diferentes sonoridades.

Page 10: V::E::R 2011

10/ Sobre os participantes

Rubiane Maia (ES) _ Vivência _ “O livro dos sonhos”, criação de um ‘livro de sonhos’ a ser registrado durante todos os dias do festival. Ação situada nas fronteiras entre performance e registros, realidade e ficção.

Shima (SP) _ Instantâneo _ Três performances noturnas do acervo Terra UNA baseadas nas práticas cootidianas da ecovila: “Trauma”, “Redenção” e “Romaria (vaga-lume)”

Vitor Butkus (RS) _ Vídeo _ “Havendo”, registro quase-documental, um vídeo que malogra decididamente em apresentar um relato integral do evento. Sua ambição é maior, e menor. Descumprindo a função de um registro do havido, cria-se uma escuta e uma retransmissão do durante.

OS ARTICULADORES

Alex Cassal (RJ) _ Historiador, criador e performer, atuando nas áreas de teatro, dança, performance e vídeo.

Beatriz Lemos (RJ) _ curadora independente. Sua pesquisa é voltada para as artes visuais contemporâneas e seus desdobramentos em redes.

Domingos Guimaraens (RJ) _ poeta e artista visual, doutourando em Literatura, Cultura e Contemporaneidades na PUC-Rio, realiza suas performances buscando fundir linguagens.

Marcela Levi (RJ) _ performer e coreógrafa. Seus projetos, que se situam entre a dança contemporânea e as artes visuais.

Marcus Vinícius (ES) _ artista, pesquisador e curador independente. Realiza projetos de intercâmbio e produção em performance e live art.

Nadam Guerra (RJ) _ artista visual e performer. Constrói obra multidisciplinar unindo dança, vídeo e artes visuais.

FOTOS, TEXTOS e VÍDEOS em www.terrauna.org.br/ver2011

Page 11: V::E::R 2011

pelas ruas e espaços públicos da cidade;

INSTALADOS: obras vivas, site specifics e instala-ções – trabalhos instalados na sede do evento du-rante todo o período do festival.

Um público de mais de 1000 pessoas e todo o even-to patrocinado pelos próprios artistas. Chamava-se “V::E::R - Live Art, Encontro do Rio.” O saudoso Reynaldo Roels, diretor da escola na época foi quem nos explicou “Arte Viva não existe. O que existe é Live Art”. Tudo bem. Ficamos com live art no título do evento em homenagem ao movimento inglês no qual nos inspiramos muito, é verdade2.

Mas queríamos mais. Não queríamos inventar uma nova categoria muito menos nos enquadrar em uma que já existisse. Queríamos algo além da perfor-mance. Algo além da live art. Algo além da arte!

Algum tempo antes eu escrevi um poema:

Sonho com um mundo sem arteArte é vida concentrada pessoas vão aos poemas pegar emprestada vida de mentira para as suas tão aguadas. Um dia, haverá mais poesia nas pessoas que nos livros. Um dia, ir a padaria será poema. Abrir a porta e olhar o dia será mais que uma resposta a “levo guarda-chuva?” Um dia, viver será o bastante.

(Nadam Guerra, 2002)

ARTICULANDOEm 2005, vínhamos de três anos de intensas ex-perimentações pessoais e coletivas com o Grupo

ARTE :: VIVA – ARTE :: ÚNICA Quando penso em arte viva imagino a unificação de todas as artes e da vida. Imagino uma arte única1 sem discriminação de tempo, espaço, credo, matéria, cor, sexo ou ritmo.

Vida quando é boa é arte.

Entendo a arte (arte única, arte viva ou apenas arte) como uma presença especial ou uma atenção mais intensa a algum aspecto da realidade seja ele qual for. Arte é quando colocamos nossa vida para fora de nós mesmos, quando compartilhamos nosso impulso vital pelo mundo. Pode ser fazendo um quadro. Uma música. Pode ser fazendo uma caminhada. Pode ser fazendo um bolo ou coletando imagens em uma câmera fotográfica. Tudo que é feito com vida é arte.

Arte quando é boa é vida.

Então falávamos do V::E::R. Que seria um en-contro de arte viva.

Em 2005 fizemos a primeira edição na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro. Foram dois finais de semana, participaram cerca de 40 artistas ligados às artes do corpo e da perfor-mance além de 30 vídeos nacionais e internacio-nais. Os artistas foram convidados e fizemos uma convocatória para vídeos. Organizamos os traba-lhos por suas características físico-temporais em:

INSTANTÂNEOS: performances, espetáculos e ações artísticas - trabalhos a serem apresentados em local fechado ou itinerantes, na sede do evento;

DESLOCADOS: intervenções urbanas - trabalhos que aconteçam nos arredores da sede do evento,

Muito Além da Performance

Page 12: V::E::R 2011

12/ Nome do Texto, Nome do Autor

multiplicidade para pensar os mutantes híbri-dos da fronteira. Os alienígenas guerrilheiros. Os crioulos intergaláticos.

BOIYS E BRITTOClaro que, como arte única, a arte viva deve con-ceitualmente abarcar tudo. Do tricô ao heavy metal. De Josef Beuys a Romero Britto. Mas quando pensamos um evento de arte viva nosso interesse principal são as obras inclassificáveis nos compartimentos padrões. O que transborda. O que não cabe.

Talvez este papo esteja ficando um pouco clichê ou até banal para a arte contemporânea. As ditas artes visuais vem incorporando grande parte do que transborda e tem mais sede de inovação e fu-turo que outras áreas. Mas o tempo é circular e o cordel pode ser a inovação da poesia concreta, a cestaria pode ser o futuro dos computadores.

É habitual em processos de pensamento valorizar certas características para classificar e excluir o

UM (por uma arte única) que depois de várias ações e fricções acabara de se condensar em duas pessoas, eu e Domingos Guimaraens3. O V::E::R era uma sigla para arte Viva Encontro do Rio. E vinha na sequência de eventos realizados pelo Grupo UM: Performances Fotográficas, Teatro Abstrato, Humanogravura, Chanchada Conceitual, Barroco Minimalista, Escultura Imaterial4.

Na época sentimos necessidade de convidar outras pessoas para pensar e realizar o V::E::R junto com o Grupo UM. Queríamos trazer para dentro do processo outras visões. Que a arte viva, arte única, não poderia ser pensada de um só ponto. Assim se uniram à proposta Marcela Levi, Alex Cassal e Daniela Labra (que acabou saindo do processo pouco antes do evento por conta de uma viagem). E neste V::E::R de 2011 chamamos Bia Lemos e Marcus Vinícius para integrar a equipe de articu-ladores junto com o grupo de 2005. O principal critério para estes convites, além da intuição é que pessoas em pontos diferentes podem V::E::R coisas que os outros não vêem. E que é necessário

Page 13: V::E::R 2011

13Nadam Guerra, Muito Além da Performance /

[1] A arte única é conceito fundador do Grupo UM como descrito no Manifesto UM. www.grupoum.art.br

[2] mais sobre o V::E::R 2005 encontro de live art do Rio de Janeiro em www.grupoum.art.br/ver/

[3] Neste processo de condensação assinamos também muitos trabalhos como NGDG. Entre 2002 e 2005 cerca de 20 pessoas integraram, de alguma forma, o Grupo UM.

[4] Eventos realizados no Parque das Ruínas, Teatro Laura Alvim, Parque Lage e Teatro Odisséia.

[5] Segundo o livro “The garden of vegan” de Tanya Bernard e Sarah Kramer os ovos podem ser substituídos por banana, linhaça ou suco de maçã.

que é diferente. A intenção da arte única é justa-mente o contrário: desclassificar para incluir o diferente. A arte única diz “eu sou a diferença, eu sou você”. Nesta fraternidade utópica em que tudo é arte acolhemos com amor tudo que não somos.

No V::E::R 2011 em que todos vieram para trocar acolhemos a Luisa Nobrega que veio para o encon-tro com os ouvidos tapados. O Jamil Cardoso que veio repensar seu repertório de movimentos junto com o Bruno Miguel que veio repensar seu repertó-rio de imagens. Lucía Russo colheu histórias e Jairo dos Santos criou boatos. Os que queriam ser outra pessoa e os que queriam construir coisas. Ou o Marcus Vinícius que simplismente fica por horas de pé sobre o rio vendo a corrente passar. Eu corto o cabelo e com o Shima vislumbramos a omelete sem ovos [5].

Vivemos esta experiência de imersão na Ecovila Terra UNA. Foram trocas artísticas e pessoais intensas. Um ambiente propício ao surgimento de novas idéias, novos conceitos, novas conexões. A Michelle Moura me conta que esta moda de “artista criador” está oprimindo a dança que é só dança, que às vezes não é pra pensar demais.“É isso!” penso “o corpo é o futuro da mente que é o futuro do corpo. Os opostos se atraem, os opostos se amam!”

Se arte viva for mais um conceito para oprimir não faz sentido. Ou melhor que nem exista, como que-ria Reynaldo Roels. E que se acabem todos os con-ceitos! Estou me contradizendo? Tanto melhor! arte já é vida. A vida já é arte. A arte já é viva.

Vivamos!

Nadam Guerra, Liberdade / julho de 2011

Autoretrato enquanto vários, de Nadam Guerra

Page 14: V::E::R 2011
Page 15: V::E::R 2011

caminho velho a leste e pelo novo a oeste, foi ficando abandonada, o que permitiu o surgi-mento de picadas clandestinas, bandos de as-saltantes e contrabandistas. Tentando retomar o controlo da região, o governador Freire de Andrade decretou, em 1755, os distritos da Mantiqueira área proibida1 .

* Saímos o Jairo, o Luís, o Domingos e eu, de-pois do café da manhã. Fomos no carro do Domingos até à beira de uma vereda, descar-regámos o material e seguimos a pé. Eu e o Domingos carregámos a caixa com o ninho e o óleo, embrulhada numa lona amarela, um à frente e o outro atrás. O Luis e o Jairo carre-garam o assento, o fubá e algumas ferramen-tas. Ladeámos a colina por um caminho estreito, que acabámos por deixar para descer até ao charco. Dias antes o Jairo tinha visto de longe algo que se assemelhava a uma vaca ou um cavalo, no meio do charco, o que o fez pensar que haveria terreno sólido por lá. Começámos à procura de um caminho para atravessar por entre a vegetação enquanto caminhávamos em fila, seguindo as pegadas uns dos outros. A lama ia ficando mais funda, até que nos cruzámos com um curso de água que atravessava de lado a lado o charco. Desistimos e voltámos para a margem, onde o Luis cavou um buraco para a base do assento, outro para as costas e outros dois para os pés. Sentámo-nos no chão e descansámos. Pouco depois eu e o Domingos voltámos para casa. Ao anoitecer caiu uma trovoada sobre a serra. Algumas horas depois voltaram o Jairo e o Luis, contaram que durante a tarde, enquanto o Jairo sustinha o ninho pela barba, nu, coberto de óleo e fubá, um homem passou no seu cavalo,

* o Caminho começava em Paraty, seguindo para a região norte do Estado de São Paulo, passando por Cunha, Guaratinguetá e Cruzeiro. Ao fim de alguns dias, entrava na região mi-neira, passando por Passa Quatro, Itanhandu, Itamonte, Pouso Alto e Baependi. Daqui, seguia para as cidades de São João Del Rei e Tiradentes, até chegar a Ouro Preto.

Em 1725 foi terminado o Caminho Novo. Seguindo esta rota, começava a viagem em embarcações à vela, partindo da cidade do Rio de Janeiro, entre o sopé do morro de São Bento e a atual praça XV de Novembro. Depois de uma escala na Ilha do Governador, seguia navegando até ao fundo da baía de Guanabara e adentrava-se pelo rio Iguaçu, depois pelo seu afluente, o rio Pilar, percorrendo um total de doze quilômetros em rios. Desembarcava no porto de Pilar do Iguaçu, donde seguia a pé, a cavalo ou em mulas, por uma estrada que leva-va à vila de Xerém e depois subia a serra até à atual Paty do Alferes. O caminho descia a serra pelos atuais distritos de Avelar e Werneck até cruzar o rio Paraíba do Sul, onde hoje está a cidade de Paraíba do Sul. Depois seguia para norte, atravessando a Serra das Abóboras, alcançando Paraibuna, em território do atual município fluminense de Comendador Levy Gasparian e, daí, adentrando-se em território mineiro, passava pela atual Juiz de Fora, até chegar a Ouro Preto.

Este era um transito essencial, por onde circu-lavam os minérios que foram o motor desta primeira colonização dos Gerais. Ainda assim, por falta de gentes e de particulares riquezas locais, a região da Mantiqueira, ladeada pelo

Contrabando

Page 16: V::E::R 2011

16/ Contrabando, Bruno Caracol

ainda assim as cidades históricas de Minas com uma rede mitológica de túneis se espa-lhando debaixo da terra, conectando distantes lugares da mesma cidade, ou mesmo cidades diferentes. Muitas dessas histórias descrevem uma aristocracia sempre preparada para a fuga, conectando os seus palácios aos bosques marginais da cidade, as ricas igrejas barrocas a vales distantes. Noutras, os subterrâneos são lugares de reuniões de uma burguesia subversiva, preparando a insurreição nas suas galerias.

Entre duas araucárias de 10 metros de altura, um buraco de cerca de dois metros de compri-mento por um de largura, por um e meio de profundidade. Cavada na terra uma escadaria até ao ponto mais fundo do buraco, que por causa da chuva dos últimos dias, tem o fundo coberto por uma capa de água lamacenta. Sentado no ultimo degrau, de pés na lama, fico com o olhar ao nível da terra. As duas araucárias enquadram o meu olhar, alguns metros à frente. Tive um flash imediato de, enquanto criança, brincar na praia e querer construir um grande túnel, da beira da praia até à barraca onde os meus pais dormiam. Consegui escavar o suficiente para que senta-do dentro do buraco, ficasse com o olhar ao nível da terra4.

*Minas Gerais esteve em tempos coberta de quilombos. Escravos fugidos organiza-vam uma sociedade paralela, ainda assim não autónoma, que vivia da porosidade do estado colonial. Escavavam-se minas clandestinas, traçavam-se quebradas e de uma forma ou de outra, o ouro quilombola

pelo caminho que ladeava o charco. Parou, olhou e seguiu caminho.

*A Lucia, de regresso da sua oficina em Liberdade, comentou que em conversa com um vizinho, este lhe tinha contado que a cidade tinha sido em tempos um ponto de passagem de rotas de contrabando de ouro3.

“Contrabando” tinha se tornado uma gíria no encontro a esta altura, dada a restrição ao consumo de bebidas alcoólicas e carne na co-munidade. A cachaça e a linguiça eram “de contrabando”. As festas eram ‘clandestinas’.

* No filme The Great Escape de 1961, Richard Attenborough, Charles Bronson e Steve McQueen interpretam soldados ingleses que arquitectam uma fuga em massa do campo de concentração onde se encontram prisioneiros. Cavam três túneis, que chamam de “Tom”, “Dick” e “Harry”.

O filme refere-se a um evento real, passado no campo de concentração de Stalag Luft III, na Primavera de 1943. 73 soldados conseguem fugir pelos túneis, mas apenas 3, interpretados no filme por James Coburn, Charles Bronson e John Leyton, conseguem escapar até terreno seguro, sendo os restantes recapturados ou mortos nos dias seguintes à fuga.

Nos Gerais oitocentistas, era em busca de mi-nério que se escavava a terra, criando galerias de túneis que chegavam a ter várias dezenas de quilómetros de extensão. A maior parte destas galerias estão inacessíveis, marcando

Page 17: V::E::R 2011

17Nome do Autor, Nome do Texto /

sempre uma posição mais institucional signi-fica uma maior visibilidade e influência, nem estes lugares são estáticos nos seus modelos. Mesmo assim, o meio não produziu um corte com as instituições artísticas. Pelo contrário, a circulação de capital do estado, de funda-ções ou empresas é fulcral para a sobrevivên-cia da maioria dos projetos.

TERRA UNA insere-se num movimento de ecovilas, comunidades ecológicas em que se experimentam outros modelos de relação com a natureza e de vivência comunitária. Para isso gerou colectivamente formas de funciona-mento e regras de convivência distintas da ‘sociedade exterior’. Em TERRA UNA estas

acabava por chegar aos mercados euro-peus, f inanciando a resistência.

Um posicionamento crítico no meio artístico vive nesta contradição entre dependência e autonomia. Uma rede de espaços de produ-ção ‘independente’ veio se espalhando pelo globo nos últimos anos, deslocando o foco da exposição para a produção, do espectáculo para o processo.

É difícil descrever genericamente este meio, talvez seja na diversidade que resida a sua in-dependência. Tem vários níveis de institucio-nalidade, formas de funcionamento, de gestão, de financiamento, de seleção de projetos. Nem

Page 18: V::E::R 2011

18/ Contrabando, Bruno Caracol

regras não são vividas de uma forma rígida, têm a função de mediar a convivência nos espaços comuns e é neles que estão mais pre-sentes. O desvio inscreve-se no espaço, em clareiras e caminhos menos percorridos.

No VER, produtores, artistas e público con-fundiam-se. Esta alternância de papeis gerou um campo intenso de troca, em que a relação artista-obra-espectador não era mais mediada, tornando inevitáveis as contaminações tanto dos processos criativos quanto as pessoais. Algo disto pertence à efemeridade da experi-ência, não é do plano do texto ou da imagem.

Estão por desenhar modelos de produção que permitam a geração de uma vida cultural paralela, estrangeira aos fluxos de capital. Esta acontece, na maioria das vezes fora de campos definidos como ‘arte’ e ‘cultura’. Não é senão a sua sombra que é capturada, o seu modo de agir é clandestino e os seus caminhos não estão mapeados.

[1] Anastasia, Carla Maria Junho – A Geografia do Crime: Violência nas Minas Setecentistas – UFMG, Belo Horizonte, 2005.O decreto do governador contribuiu mais para a dissemina-ção de atividades ilegais do que para o seu término, fazendo das regiões proibidas zonas sem lei. Dois dos mais importan-tes bandos de assaltantes atuando na região eram liderados por Joaquim de Oliveira, de apelido Montanha e por Manoel Henriques , de apelido Mão de Luva, contrabandista de ouro que deixou histórias de ter enterrado os seus tesouros em várias grutas dos Gerais.

[2] Em ‘E Nós que nos Amávamos Tanto’, Jairo Santos Pereira, propôs-se a suspender um ninho na barba e esperar que um pássaro nele pousasse.

[3] Lucia Russo deu a oficina ‘Ecos Fabulosos’ em Liberdade. As oficinas na cidade abriam vias de contrabando, seja mate-rial seja de sentido, por cruzarem o nicho protegido de Terra Una com a sua vizinhança.

[4] Denise Alves, em ‘Nível’, escavou uma passagem de aproximadamente 1,60 m de profundidade por 3 metros de comprido, entre duas araucárias.

Julia Pombo

Page 19: V::E::R 2011

Em janeiro, participei do V::E::R 2011 – Encontro de Arte Viva, que reuniu cerca de três dezenas de artistas e pesquisadores na ecovila Terra UNA, em Minas Gerais. Foram dez dias conversando, criando e imaginando formas de trabalhar, da manhã à noite, numa convivência desafiadora. Foi uma experiência rica para pensar em colaboração e contami-nação, para compartilhar perspectivas e friccionar desacordos.

Num evento que se propôs habitar um “terreno rugoso, impuro e mestiço, onde linguagens se cruzam e fronteiras se borram”, era de se espe-rar que a dança estivesse bem representada, e assim foi. Eu já conhecia alguns dos artistas que transitam pela dança contemporânea carioca, como a performer curitibana Michelle Moura, que depois do solo Cavalo continua a explorar as propriedades muito específicas do seu corpo numa dança quase expressionista, uma espécie de Mary Wigman quântica. Também há tempos venho acompanhando a trajetória entre artes visuais e dança de Michel Groisman, que espalhou por Terra UNA o seu vasto acervo de jogos que colocam as relações entre corpos no foco, como Polvo, Sirva-se e Instrumento de comunicação. A diretora e coreógrafa argentina Lucia Russo (parceira de Gustavo Ciríaco no lindo Eles vão ver) cami-nhou pelas ruas da pequena cidade de Liberdade – MG, investigando os relatos de seus moradores. E Jamil Cardoso levou para diferentes espaços (uma campina, um galpão de madeira, uma cozinha) o seu Working process, um solo sensível e multifacetado que confunde sua própria história com a história de outros.

Artistas no Corpo

Élcio Rossini

Page 20: V::E::R 2011

20/ Artistas no Corpo, Alex Cassal

Élcio é gaúcho, um artista que eu admirava desde que morava em Porto Alegre, e que continuei acompanhando de longe em seus trânsitos entre artes visuais, performance, teatro e dança. Há anos a coreógrafa Cibele Sastre já me falava dos seus Objetos para a ação, parangolés imensos feitos de um tecido muito fino, que inflam ao serem manipulados, tornando-se uma espécie de tenda ou pára-quedas ao redor do corpo. É empolgante expe-rimentar a riqueza de possibilidades de movimento destes infláveis, suas respostas inesperadas e envolventes, a sensação de “dançar” com o ar. Parece uma ferramenta incrível para pensar em contato-improvisação, no espectador-participante de Hélio Oiticica e Lygia Clark, nos poliedros de Laban, em tempo, em relação com o outro.

Outro trabalho que Élcio levou a Terra UNA foi a instalação Ora, bolas (na 1ª foto) – balões transparentes cheios de água pendurados em fios de nylon, um imenso e cinético instru-mento musical. Como os Objetos para a ação, é uma obra para uso que revela as suas possibi-lidades ao ser tocada, um convite à relação entre os corpos dos participantes (como os jogos de Michel Groisman). A fragilidade dos balões, que ameaçam a qualquer momento estourar e dar um banho em todos, provoca mais que limita, ainda mais na tarde de sol forte em que experimentávamos a instalação. E foi assim, com alguns alfinetes, que a insta-lação se desfez em segundos, numa apoteose de gritos e jorros de água que ficou ressoando na minha cabeça como o final de um concerto.

Mas também conheci em Terra UNA artistas vindos de outros lugares, que também explo-ram o corpo em sua matéria, suas propriedades e suas consequências. E sinto o desejo de falar um pouco mais sobre duas destas pessoas: Júlia Pombo e Élcio Rossini.

Júlia é uma jovem artista carioca com uma produção recente de vídeos e fotografias concentrados no corpo, principalmente o seu próprio. Muitas dessas obras têm um claro sentido cênico ou performático, corpos em relação com o espaço, com o próprio corpo, com outro corpo. Como Máquina, um vídeo simples e preciso misturando corpos e engre-nagens em movimento; ou a Série Introspectiva, estudo dobrado sobre si mesmo que me remete aos primeiros trabalhos da coreógrafa Alice Ripoll; ou Still, série fotográfica que é quase o resumo de um videodança, expressiva tanto na construção da imagem quanto no que deixa de mostrar.

Para Terra UNA, Júlia levou uma proposta de instalação – Desapego – em que ela trocava com os outros artistas objetos com valor afetivo. Cada objeto oferecido por Júlia vinha com uma pequena narrativa, “herdada” pelos novos objetos que foram aos poucos tomando o lugar dos originais. Um trabalho delicado e lento sobre construção de memória, sobre intimida-de, sobre as histórias que nos definem, lembrando Christian Boltanski e Sophie Calle. E um trabalho que também me parecia falar de memória do corpo, um corpo ausente mas persistindo naquelas roupas, brinquedos, em um livro, em uma caneca, nas fotos de um ex-namorado.

Page 21: V::E::R 2011

21Nome do Autor, Nome do Texto /

Desapego, detalhe da instalação

Desapego, de Julia Pombo

Page 22: V::E::R 2011

22/ Nome do Texto, Nome do Autor

”Jamil Cardoso em seu trabalho ”Um arranjo coreográfico para um coadjuvante em um rito inaugural

Page 23: V::E::R 2011

apresentada pelo artista, posso fazer sem culpa meu recorte.

Tarde de sol forte nas montanhas da Mantiqueira, provavelmente, dia 24 de janeiro de 2011. O lugar escolhido, por Jamil Cardoso, para apre-sentar pela primeira vez seu Arranjo coreo-gráfico para um coadjuvante em um rito inaugural (agora, chamado A Casca do Ovo por Dentro), foi um pequeno platô em frete a casa da Casula. A plateia formada pelos resi-dentes sentou em torno do lugar determinado pelo artista, alguns tinham a casa de madeira de duas águas como o fundo da cena; outros, uma cerca viva de ciprestes; outros ainda, como eu, tinham a encosta da montanha. O trabalho de Jamil começou, sem alarde, tão frágil e delicado que não sabíamos que era um começo. O pedido de um beijo, um beijo roubado e a sequência de ações vigorosas de seu corpo. O material que Jamil apresentou nos mostra de imediato a qualidade e a força de sua presença em cena. O trabalho é uma compilação de fragmentos de coreografias, produzidas durante sua participação no pro-cesso de criação de espetáculos de vários co-reógrafos para os quais dançou. Saber disso transforma radicalmente nosso olhar quanto ao material apresentado. Jamil Cardoso não discute em seu arranjo apenas o que seu corpo treinado pode fazer, suas habilidades como intérprete, os limites de sua resistência física ou questões caras à dança contemporânea. A proposta de Cardoso é, no meu ponto de vista, mais complexa e talvez urgente, ela trata de uma reflexão a respeito da autoria, sobre os acordos tácitos feitos entre intérprete e coreó-grafo. Para ele, a urgência de suas indagações não deixa dúvidas, ele expõe para si e para

Passados alguns meses da experiência de ver e compartilhar a obra e o pensamento dos artistas que participaram da residência em Terra Una, preciso recorrer à memória, sempre falha, para escrever a respeito do trabalho de Jamil Cardoso.

Conversando com Jamil, tomei conhecimento de seu projeto através das palavras que ele es-colhia e organizava para descrevê-lo. Soube, então, que era um trabalho em processo e que ele pretendia aproveitar a oportunidade do convívio com os outros artistas para construí-lo. Primeiro, conheci o título Um arranjo coreo-gráfico para um coadjuvante em um rito inau-gural, depois, tive conhecimento de que era Um processo de trabalho trabalhando. Essas duas frases pareciam sintetizar, para o artis-ta, a ideia que ele começava a construir. No entanto, eu não entendia, naqueles dias, sua extensão e, por isso, elas soavam apenas como um arranjo sonoro, eu não acessava seu conte-údo com clareza. Passado o tempo, constatei meu engano. O título, agora, tornou-se mais claro porque descreve, com exatidão, a inquie-tação que movia Cardoso nos primeiros dias de nossa residência em Terra Una.

Fazer a leitura de um trabalho artístico, escrever nossas ideias sobre ele é, por natureza, vê-lo de um único ponto de vista, desfocar tudo mais que ele pode oferecer para recortar de sua rica complexidade alguns poucos aspectos. Esse limite, que ignora e omite, como é o caso aqui, questões importantes de uma obra, pode, paradoxalmente, revelar e aprofundar uma questão específica. Dito isso, apresentada uma justificativa plausível para abandonar muitas das instigantes proposições da coreografia

Rito Inaugural

Page 24: V::E::R 2011

24/ Rito Inaugural, Elcio Rossini

trouxe à tona outra forma de olhar para aquilo que, no passado, surgiu como uma transfor-mação irreverente, marginal e que permitiu inquestionáveis conquistas para arte em todos os campos. Agora, Cardoso revisita a questão, revela-nos e expõe incisivamente o potencial criativo desses intérpretes-autores. Fala de

um anonimato incômodo e talvez, nem sempre, justo. O rito que Jamil Cardoso quis inaugu-rar durante o V:E:R, em Terra Una, teve como finalidade investir a si mesmo daquilo que ele sempre foi: criador, coreógrafo e intérprete.

nós uma pergunta que não tem por finalidade a resposta tranquilizadora da tomada de uma única posição.

A história das colaborações marcou a arte dos anos de 1960, no entanto é muito anterior a eles e teve sua origem na serata futurista e nos encontros dadaístas, no Cabaré Voltaire. Na efervescência dos anos de 1960, Anna Halprin foi precursora na criação de coreografias que destituíram o coreógrafo de seu poder de autor absoluto dos movimentos dançados. Através de suas tarefas, a dança deixou de exigir os corpos treinados para excelência do movimento, assim, permitindo o ingresso na arte dos corpos “imperfeitos”. As coreografias passaram a colocar os sujeitos e suas abordagens da ação como colaboradores na criação dos movimentos. As tarefas que Halprin propunha a seus dan-çarinos absorviam a particularidade dos cor-pos, mas também integravam o material criativo que cada um dos participantes trazia. Essa modalidade de colaboração marcou defi-nitivamente a dança contemporânea e alterou os limites da própria definição de coreografia. O coreógrafo pode, dessa maneira, transfor-mar-se em propositor de questões para serem respondidas corporalmente pelos dançarinos. Desde sua origem, os processos de colabora-ção para criação de uma coreografia dependem de muitas variáveis que dizem respeito às técnicas corporais, às proposições conceitu-ais, mas, acima de tudo, dependem e preci-sam ser fundadas em um acordo ético entre as partes envolvidas.

Atualmente, pensamos pouco sobre esse tipo de colaboração muito própria do teatro e da dança contemporâneos. O trabalho de Cardoso

Jamil Cardoso

Page 25: V::E::R 2011

25Nome do Autor, Nome do Texto /

Ora, Bolas, de Elcio Rossini

Page 26: V::E::R 2011

Denise é tão autora quanto a felpa da madeira e o barranco do riacho. As ideias se desenvol-vem imediatas à matéria viva, ou seja, rente à densidade da fita isolante, ao peso das pilhas, ao giro da manivela. Essas peças, retiradas do tecido do mundo, são manipuladas pela artista sem nenhuma preocupação formal ou compositiva. O que rege o lugar de cada uma das peças, no arranjo, é a sua função.

A transparência do plástico é expulsa de seu puro teor qualitativo, e propriamente visual; ela ingressa, pelas mãos da artista, no campo da utilidade. E assim sucessivamente, cada ele-mento se agrega conforme a sua funcionalidade para o conjunto maquínico. Percebemos então que, naquele acoplamento de peças, nenhuma delas é desprovida de função. No percurso de Denise, nenhum fragmento é decorativo.

lugarPercurso foi um projeto concebido na cidade de São Paulo, e executado em Terra Una. A ecovila, instaurada em meio à serra da Mantiqueira, no sudeste do país, é formada por algumas casas e outras edificações, habitadas e praticadas por seus habitantes. Todos esses habitantes são oriundos do meio urbano – po-rém, decidiram mudar de ares, de paisagem e de vida. Em São Paulo, caminhar é um há-bito cultivado com entusiasmo por Denise. Caminhante diurna e noturna da selva cin-za, a moça desloca seus passos, seu ritmo e sua f lutuação para as trilhas. E em Terra Una as veredas se mostram mais acidenta-das. Subitamente íngrimes, movediças. Sulcadas pela chuva e pelos passos que já deixaram seu peso.

Este texto é uma máquina desmontada. Suas peças estão nuas, visíveis nos seus volumes mais íntimos. Descontínuos, os fragmentos podem vir a funcionar, se uma leitura ativa estiver disposta a produzir esse funcionamento.

É mais ou menos assim que Denise Alves-Rodrigues vem construindo o seu percurso como artista: relendo, ou translendo as peças disponíveis na sua volta. Do enorme e fragmen-tado tecido do mundo, Denise extrai alguns pedaços sobressalentes, dando a eles uma função em suas máquinas. Foi esse jogo de reciclagem e reposicionamento das partes, o traço que motivou esta escrita.

Desmonto aqui uma das tranqueiras de Denise. Desmonto para melhor compreendê-la – aceitando o risco de que, uma vez remontada pelo leitor, a máquina volte a funcionar de uma outra maneira.

perguntaMais de um mês depois do nosso encontro em Terra Una, perguntei à artista Denise Alves Rodrigues o que era Percurso. Ela me respondeu:

já foi controle (de tentar anotar tudo, o q pen-so, o q vejo, o q imagino)

já foi desenho (pq desenho é mais rápido, é quase a idéia né?)

é sempre projeto

ideia/matériaO projeto existe e se conforma rente à maté-ria manipulada. A ideia não vem apenas da interioridade individual da primeira pessoa.

Uma máquina desmontada

Page 27: V::E::R 2011

Vitor Butkus, Uma máquina desmontada /27

corpo com a terra. Figura e fundo testam aí os seus limites intermediários. O rosto se desfigu-ra, o corpo se torna linha esquelética. O risco, negro sobre branco, nos lembra de uma existên-cia ondulatória das carnes. E temos a prova do inumano energético, pulsante e radioso que nos constitui como vivos em um planeta vivo.

frestaExposto ao encontro de nossos olhos e corpos, o que resta do Percurso é um texto escrito em preto sobre branco. Mas a chave de leitura de tal texto não está acessível. O risco negro foge lepidamente de nossa tentativa de decodifica-ção. No rastro de sua fuga, esse risco nos abre uma fresta para a infância do sentido. Ali, onde não há ainda rosto, figura ou fundo, ali acontece o abalo sísmico que nos faz humanos. É esse abalo que o risco registra e relata.

Ausente, o corpo que anda nos lembra, por obra de sua ilegível escrita, da inteligência rumorosa que é essa do corpo-terra. E a aparente bruta-lidade que essa linha nos relata tem também a sua suavidade. Rítmico, ainda que irrepetível, o caos que nos delimita deve ser luminoso: é o que lemos das fagulhas, ao longe.

máquina A princípio uma experiência inédita, esse caminhar vai se tornando, dia-pós-dia, roti-neiro. Antes disso, o corpo aprende as curvas e os veios da terra. E sim, há uma máquina que registra esse peso antes que ele fuja, antes que ele vire história, palavra, pesei. Antes que vire imagem, o corpo anda, é e vibra.

obra O que sobra de um encontro? Uma imagem, uma frase, um cheiro na memória.

O que sobra de uma vida? Uma trilha, um início e um fim, um currículo e uma biografia.

O que sobra de um caminhar? Uma linha acidentada, metade produzida pelo corpo, metade causada pela terra.

linha Mas essa linha não divide duas dimensões. Entre o corpo e a terra, entre o indivíduo e seu lugar, há um limiar: aquele que dá forma ao dentro e ao fora. Essa linha não existe, sua espessura é infinitesimalmente minúscula. Ela dá forma justamente ao que ela divide, colocando em imediato e f lexível contato. Desde o ponto de vista dessa linha, o corpo perde a sua mais civilizada humanidade. A artista perde o rosto, vira terra e osso, mús-culo. E o que resta nos oferece o testemunho de uma oscilação vibratória entre mim e o outro. Entre o retrato e a paisagem, o que aparece é uma linha frágil e finita.

infânciaA loucura das máquinas passa a ser esta: a de possibilitar o registro, em ato, do encontro do

Page 28: V::E::R 2011

28

Nível, de Denise Alves-Rodrigues

Page 29: V::E::R 2011

29Nome do Autor, Nome do Texto /

Page 30: V::E::R 2011

30/ Nome do Texto, Nome do Autor

Page 31: V::E::R 2011

31Nome do Autor, Nome do Texto /

Page 32: V::E::R 2011

instalado na barba de um sujeito.

No dia seguinte, tomamos aquele fantástico café natureba, com aquele monte de coisas saudáveis e logo depois fumamos um cigarro de palha cada um. Pegamos um carro e ru-mamos eu, Jairo, Bruno Caracol e Domingos Guimaraens até o local escolhido por Jairo para se instalar e esperar passarinho. Era o próprio exército de Branca Leone. Andamos um bocado e chegamos ao local, um charco cheio de mosquitos. Uma várzea entre dois morros cobertos de árvores, fazia muito sol. Montamos o banco e o encosto de madeira, também a barraca que serviria de suporte para a aventura estética, além de um cara-mujo para almoçarmos. E depois desta última ação Jairo começou a se preparar: tirou toda a roupa, fixou o ninho de João Garrancho na barba, se besuntou de óleo e se polvilhou de fubá. Pronto sentou e eu fiquei sentado escon-dido a uns 30 metros dele...

Espera. Depois de um tempão ele me fez um sinal, fui até ele que me pediu água. Atendi o pedido. Pegávamos água num regato que pas-sava perto de nós. Levei para Jairo acompa-nhado dum palheiro no canto da boca, ele me pediu um trago. Foi engraçado que antes dele sentar, falamos sobre tudo, filosofia, estética, política, gente, fofoca, piadas... neste momen-to, não falamos nada. Deu o trago e eu voltei pra minha tocaia. Mais um tempão danado. Passarinho nada.

Nossa passou um tempão. Outro aceno. Fui até lá e ele que estava nessa hora sentado, levan-tou, e me perguntou, e ai? Antes de responder ele mesmo me disse, o povo ta ai.

O dia que Iansã venceu Kant

É um lugar cheio de vaga-lumes. Uma brecha gigante no meio da serra onde ficamos hospe-dados para o encontro. Depois de alguns dias na residência artística V::E::R. 2011 e na noite anterior ao dia em que Jairo faria a ação “E nós que nos amávamos tanto”. Fomos, Jairo e eu, para o galpão, um espaço que serve para palestras, vivências e afins, mas na verdade passaríamos direto até a casa da tartaruga, usar umas ferramentas do Bruno Jacomino artista inventor que adaptava uma bicicleta ergométrica a uma máquina de la-var. No entanto algo nos reteve no galpão no momento em que separávamos madeira para confecção do banco que Jairo usaria na ação, era um som estranho que vinha do pé de uma árvore. Andei desconfiado até o local e para minha surpresa, depois de alguns dias sem escutar uma música proveniente de um apa-relho mecânico, o Adoniran entrava em meus ouvidos como uma poesia num local imprová-vel. Fui invadido de extrema nostalgia e pude descobrir que aquele dia era aniversário de São Paulo. Tratava-se do trabalho “A voz” de Bruno Caracol, rádios a pilha escondidos por Terra UNA. Foi incrível pois aquilo de certa forma dava um tom de “agora começou” a ação do Jairo, o fato de estarmos em Terra UNA, uma ecovila que recebe artistas con-temporâneos, carregados de seus existir ur-banísticos, para desenvolverem em ambientes florestais, ações artísticas. Ouvindo Adoniran Barbosa em homenagem a cidade de São Paulo me pareceu sintomático, já que no dia seguinte a proposta era ficar em um local ermo, longe da residência duas horas andando, durante 24h esperando um pássaro pousar num ninho

Esperando Passarinho

Páginas anteriores: E nós que nos amávamos tanto, de Jairo dos Santos

Page 33: V::E::R 2011

Nome do Autor, Nome do Texto /

Enfrentamento, de Jairo dos Santos e Luis Parras

Page 34: V::E::R 2011

34/ Esperando Passarinho, Luis Parras

mento, ao longe, e isso me pegou na hora que saímos do vale debaixo de raio e trovão. Seguimos o caminho inverso do homem do cavalo pois vimos o Julio Callado indo embora por ele, Julio sabe desses negócios das trilhas de lá porque já fez um trabalho a ver com isso no passado.

Naquele dia andamos muito até a Casula, nossa residência em Terra UNA. Chegamos acabados. Havia uma sessão de cinema nesse dia lá, não sabíamos. Nessa noite eu tive um pesadelo, depois de ter várias noites sem sonhar. O Shima me disse que isso era por causa da ca-choeira que tinha perto da casa, ela tranqüili-zava o sono e não lembrávamos dos sonhos. Na manhã seguinte o Shima estava propondo uma ação chamada Auditório Man, que con-sistia em ouvir alguém por 16 minutos e guardar tudo o que fora dito para sempre, de modo que não vou contar o que contei para ele, pois isso tiraria todo o motivo de eu ter aquela possibilidade naquele dia. Contei meu sonho e fiz uma pergunta.

- shima cê tem medo?

- agora eu não posso falar disso.

Chegaram: Domingos Guimaraens, Julio Callado, Bruno Jacomino, Julia Pombo, Kenny Neoob, (quem mais?). Subi até eles por que Jairo pediu que não houvesse aproxima-ções, menores que 100m. Conversei, peguei as coisas que os coleguinhas carinhosamente levaram pra nós e voltei pra minha tocaia. Entretanto anoiteceu.

Tenho dúvidas quando tento lembrar, do mo-mento que a chuva era evidente e o começo da tempestade de raios, a gente devia estar falando de arte. Sei que foi um consenso irmos para a barraca, já completamente noite. Os raios começaram a crescer estava extremamente escuro, o barulho das árvores balançadas pelo vento só me traziam Wagner com as Valquírias nos ouvidos. Eu estava alucinado, víamos o vale inteiro iluminado por segundos. Raios de cor violeta que tocavam o solo. Isso começou a dar muito medo.

O medo

Não sei explicar aquela grandiosidade, meu medo era sair dali e se perder, na chuva no meio do mato, pois na vinda para o vale, ficamos meio desorientados, estava muito escuro isso poderia ser bem desagradável na chuva. Mas depois de muita tensão, Jairo pegou um estilete e cortou os cabelos e pelos da barba que pren-diam o ninho de 5 quilos ao seu corpo e disse: cara vamos embora. Não titubeei. Pegamos a lanterna, foice e facão e andamos. Eu só queria saber o que pensou o homem a cavalo que pas-sou na hora da visita da galera. Ele passou por uma trilhazinha, olhou desconfiado para Jairo, atravessou o corregozinho, a porteira e sumiu na mata. Ficamos olhando ele naquele mo-

Page 35: V::E::R 2011

Nome do Autor, Nome do Texto /

Page 36: V::E::R 2011

36

Refeitórios, de Bruno Miguel

Page 37: V::E::R 2011

37

Oco, de Michele Moura

Page 38: V::E::R 2011

38

Voz, de Bruno Caracol

Page 39: V::E::R 2011

39

Inflável bicolor, de Elcio Rossini

Page 40: V::E::R 2011

40

Tenda do amor, de Luis Parras

Page 41: V::E::R 2011

41Nome do Autor, Nome do Texto /

Colaborações em performance e Experiência cromática azul, de Maicyra Leão

Page 42: V::E::R 2011

42

Artistas e articuladores do VER 2011 ;Em pé ao fundo: Ana Luisa Lima; Alex Cassal; Bruno Caracol; Luis Parras Jairo dos Santos; Jamil Cardoso; Julia Pombo; Pontogor

Na segunda fila: Michel Groisman; Marcela Levi; Lucía Russo; Shima; Michele Moura;Bernardo Moscheira; Beatriz Lemos; Bruno Miguel

Sentados em primeiro plano: Vitor Butkus; Denise Alves; Élcio Rossini; Marcus Vinícius; ;Domingos Guimaraens; Maicyra Leão; Julio Callado; Nadam Guerra; Rubiane Maia Clarissa Palma; Luisa Nóbrega; Kenny Neoob; Bruno Jacomino

Page 43: V::E::R 2011

43Nome do Autor, Nome do Texto /

Page 44: V::E::R 2011

44

O polvo, de Michel Groisman

Page 45: V::E::R 2011

45Nome do Autor, Nome do Texto /

Espera, de Marcus Vinicius

Page 46: V::E::R 2011

46

Page 47: V::E::R 2011

47

Redenção e Romaria (vaga-lumes), de Shima

Page 48: V::E::R 2011

48

Consuor, de Bruno Jacomino

Page 49: V::E::R 2011

49Nome do Autor, Nome do Texto /

Escultura sonora, de Pontogor

Page 50: V::E::R 2011

50

Degredo, de Luisa Nóbrega

Page 51: V::E::R 2011

Fontoura: Um personagem conceitual

tes da noite. Às portas de Terra Una, Fontoura encontra o artista Luis Parras, que lhe devolve a pergunta:

— O que veio fazer aqui? — Nada. Quem faz é o corpo — responde Fontoura.— Mas você não é o corpo?— Este corpo não é meu. Encarno em corpos.— Como se fosse um furto de corpos? Um empréstimo?— Um compartilhamento. — Então fique à vontade, quando quiser... Mas, agora, estou falando com o Fontoura ou com o dono do corpo?— Com o Fontoura.— É sempre bom conhecer outra pessoa! Co-nheci alguém muito parecido com você, a Matilde: é uma paraguaia, uma cambiadora de corpos. Ela tem a capacidade de mudar de corpo através do beijo. Muda de corpo, à me-dida que beija. Fez a passagem do Paraguai a Salvador em dois mil e tantos beijos.— Tomo o corpo apenas quando há necessidade.

Quando chegou à idade de preocupar-se com a liberdade de pensamento, o autor quitou sua cidade, seus hábitos urbanos e subiu a monta-nha em direção à Terra Una, um lugar onde a natureza impera: cachoeiras, rios, f lorestas e seres humanos com suas paixões. Apenas in-ventar personagens não era suficiente, o autor desejava viver um personagem. Passou, assim, a utilizar um heterônimo:

— Olá, meu nome é Fontoura.— Prazer, sou Jamil Cardoso.— O que veio fazer em Terra Una?— Uma oficina de conscientização corporal. E você?— Não vim fazer nada, sou apenas um perso-nagem. Não tenho corpo. — Ah!... Você é “o” Fontoura ou “a” Fontoura?— Como lhe disse, não tenho corpo, logo não tenho sexo. — Que pena para você!

Era preciso apressar o passo, para chegar an-

Quando um personagem é criado ele passa a se mover pelo mundo; a cada passo vai se dis-tanciando de quem o criou, vai tomando vida própria. Em Terra UNA encontrei Heterônimo Fontoura. Dizem que usava chapéu de palha; outros, que tinha densa barba, que usava ócu-los, olhos de águia, que era gordo, que era magro, mulher, homem, indecifrável. Fontoura se transforma aos olhos de quem o olha. Recebe em si o conhecimento de outras eras e deixa tudo fluir sem as portas trancadas dos preconceitos que estão nos corpos que o recebem. Fontoura é puro fluxo de consciência, pensamento em corrente caudalosa. Seu nome, biotô-nica energia, faz pulsar o verbo a cada pensamento. Há alguém andando na corda bamba entre a realidade e a ficção; se cai para cá é real; se cai para lá é invenção. Mas, neste espaço tensionado e tênue, este ser se equilibra e lança suas perguntas. Sinta aqui sua explosão sensível. Quem é ele? Será ela? Heterônimo Fontoura, quem é você?

Domingos Guimaraens

Page 52: V::E::R 2011

52/ Fontoura: um personagem conceitual, Kenny Neoob

ça entre “presença” e a ideia de um persona-gem. A presença pode acontecer, mesmo sem o personagem. Eu posso fazer uma cena em que eu tenha um estado de consciência diferencia-do e, ainda assim, ser eu mesmo. Esse estado de natureza é diferente do personagem.— Qual a consciência de um personagem? Seria possível instaurar um plano e pensar a partir desse plano? Seria possível criar um personagem desvinculado das forças imperan-tes e deixá-lo viver? — Viver isolado?— Viver na imaginação? — Interagindo com os outros? Um persona-gem tem uma lógica, uma estrutura complexa – afirma Elcio.— Estou interagindo com você; sou um perso-nagem, e não sou tolhido por certas forças que imperam sobre os donos dos corpos. — Você não está sendo tolhido pelas forças que o situam! – Exclama Élcio.— Posso interagir com diferenças, indivíduos, sem ser cerceado por essas forças e, assim, posso pensar mais livremente do que os donos dos corpos. — Você está pensando através de uma lógica que é a de um outro...— Estou pensando a partir de um plano feito de memórias e do que é percebido no momen-to presente. Não preciso me preocupar com o futuro. — Que personagem é esse? Tem uma estru-tura como um personagem teatral? Tem uma subjetividade?— Você toma como parâmetro o personagem teatral; prefiro os personagens conceituais da filosofia, aqueles que não estão, necessaria-mente, tão separados do próprio autor. Inú-meros filósofos criaram personagens conceitu-

— É mais simples!— Será? — Não sei qual o processo da Matilde, porque não deixei ela me beijar.— Ficou com medo?— Eu gosto muito do meu corpo!

O personagem continuava a insistir nas mesmas perguntas, com outros artistas:

— Qual seu nome? O que veio fazer aqui? — Olá, meu nome é Michelle Moura; farei uma performance, chama-se Cavalo. — Cavalo, no sentido do Candomblé? De incorporar?— Eu não incorporo nada. Eu comecei a me interessar por uma mudança no estado de consciência, mudança no estado de presença. Isso é muito comum em performance, nas pe-ças que trabalham com a cena. Quando se vai apresentar alguma coisa, entra-se num esta-do de concentração, num estado de presença, para desenrolar a tarefa. Nesse momento de concentração, nessa mudança de algo para es-tar em cena, já se ultrapassou o estado ordi-nário de consciência. O que é essa mudança? Interesso-me por ficções. — Personagens?— É muito ligado a personagem. Ser um e ser vários personagens. Existe uma narrativa in-terna. — Várias narrativas que af loram numa mesma pessoa?

— Sim.

Elcio Rossini, que escutava a conversa, retruca:

— Eu queria falar o seguinte: há uma diferen-

Page 53: V::E::R 2011

53Kenny Neoob, Fontoura: um personagem conceitual /

te transformador da vida. Tudo o que faço, chamo de “estratégias do corpo”.— Eu também sou fluxo, um fluxo que se atu-aliza no corpo – afirma Fontoura.

Os dois se abraçam. Silêncio. Fontoura continua sua caminhada, deixando a figura longilínea sob a copa da árvore. No outro dia, Fontoura en-contra Michel Groisman, outro visitante de Terra Una, e insiste:

— O que veio fazer aqui?— Eu trouxe propostas de experiências inte-rativas. Uma delas é realizada com copos: as pessoas colocam copos no corpo; eu ajudo a descobrir uma maneira de passar a água de um copo para o outro e de um corpo para outro corpo. — A água passa de um corpo a outro?— O trajeto da água é uma consequência; a ênfase está no f luxo, na continuidade. Eu comecei a investigar o comportamento da água, da qualidade da água. E como essa qua-lidade poderia funcionar na investigação do corpo, na investigação de si mesmo. A água é um dinamizador desse fluir. Eu percebo que o que atrapalha o f luir são as posturas men-tais, mais do que atitudes físicas.— Posturas mentais...— Quando o pensamento está em dissonância com a atividade, atrapalha o fluxo. O pensa-mento pode ser considerado como uma ação da mente. Eu tenho percebido que é muito difícil induzir a integração do pensamento e da ação do corpo. Talvez seja mais fácil evitar a dis-cordância entre o pensamento e a ação. O que eu percebo, na prática de minhas atividades, é que o pensamento projeta os desdobramentos que vão acontecer em seguida e, muitas vezes,

ais, para dizer aquilo que eles pensam. — Mas esses personagens foram escritos com a palavra. Viver um personagem é uma expe-riência diferente, há outras implicações: há a presença, há a relação com as pessoas, há f luxos subjetivos e indizíveis; por exemplo, empatias... — pondera Élcio.— Esta é a riqueza! O que me interessa são as relações entre fluxos diferenciados. — Como isso acontece? Como se processa? Não; não me diga isso agora!Élcio se afasta com Michelle. Fontoura fica só e percebe alguém sob uma árvore ao longe. — Você está sozinho? Vou subir a colina, quer vir comigo? Qual o seu nome? — Marcus Vinícius.— O que veio fazer aqui? — Vim fazer um trabalho que está em proces-so... Um processo muito intenso, muito livre. Chama-se “Espera”. Fala de fluxo, de fluido. De tudo o que se esvai.— O fluxo sempre me interessa! — O trabalho fala de mim e de tudo o que me rodeia. As pessoas fazem parte desse flu-xo que é minha vida. Levo meu corpo pelo mundo e minha passagem por Terra Una é uma transformação. Sinto-me transformado de uma maneira que não sei qual é. Sou do mundo e vou experimentando o mundo: como a água que passa no rio. Eu me sinto água – afirma Marcus Vinicius.—Você é um fluxo dentro de um fluxo.— Existe uma tentativa de reter esse fluxo, mas não é possível: é como a água! — O que o leva a fazer esse trabalho? – insiste Fontoura.— Sempre tive uma relação afetiva com a água, de contemplação. Sou extensão da água. O fluxo me faz pensar... a água...é um agen-

Page 54: V::E::R 2011

54/ Fontoura: um personagem conceitual, Kenny Neoob

a coisa em si vai numa direção diversa.— Num outro fluxo?— Exatamente. — O movimento é antecipado, sem o conhe-cimento de outros f luxos que vêm interferir no movimento: a projeção torna-se ilusão – conclui Fontoura.— Exatamente. O fluxo acontece. O pensamen-to tem uma temporalidade muito diferente da ação. Uma atemporalidade. Devido às proprie-dades do pensamento, ele tende a se confundir com a imaginação, com a fantasia e os estados emocionais que trazem todo um colorido. — Sou um personagem que vive no movi-mento do pensamento, na interação do pensamento com outra individualidade. Só nesse movimento alcanço a vida – explica Fontoura.— Ah, entendi: na ação, saímos da forma fe-chada do pensamento: o momento de interação é um momento de abertura! Mente sincroni-za-se com corpo e o corpo com a mente...— Como a água que passa de um corpo a outro corpo.

Neste momento, chega Ana Luisa Lima e pergunta:

— Você que é o Fontoura? Sagrado, não é? – gargalha amigavelmente. — Faço parte dos fluxos existentes: insisto em ganhar corpo, em interagir com fluxos de ou-tra natureza: com a voz, a luz, a água... Preci-so interagir para viver.

Ouve-se o canto de pássaros nas cercanias. A noite cai tranquila; Fontoura só acorda quan-do a manhã ainda não se anunciou. No céu, a lua parecia foice ao lado da estrela. Ao sol

do meio-dia, encontra um jovem sorridente e insiste:

— Qual é o seu nome? O que você faz aqui?— Eu sou Bernardo Mosqueira. Eu vim fazer uma curadoria experimental, algo fora dos pa-drões esperados para um curador ou crítico. É um posicionamento artístico, mas não é um comportamento de artista. Eu me apaixono pelos artistas, eu me envolvo com eles. — Uma aproximação da teoria com a prática? — Eu sempre tento colocar a primeira pessoa no discurso. O relato do Eu, o relato do Nós. Meu texto se aproxima da literatura, da poe-sia – que é minha origem dentro das artes. O que aconteceu aqui foi uma transformação, que lembrou minha origem: eu estudava en-genharia, sempre tive facilidade com as ciên-cias exatas. Eu nunca havia pensado em fazer outra coisa além de engenharia; tradição de família: avós, bisavós... Em um determinado momento, eu vi que fazia tudo aquilo para os outros: para meus pais, para a sociedade. En-tão decidi fazer as escolhas para mim. Pode parecer egoísta, mas é uma questão de auto-conhecimento e liberdade. Procurei seguir o caminho onde eu poderia ser melhor. E, as-sim, consegui meu caminho.— Você é um criador?— Minha intenção é dissolver as estruturas dos sistemas. Tornar as coisas mais líquidas. Essa minha transformação aconteceu em um momento em que eu não admitia as minhas necessidades e vontades. Eu admitia apenas as estruturas de fora.— Certas forças lhe formatavam a vida até quando você resolveu escolher a sua própria forma? – pergunta Fontoura.— Sim. Eu expandi isso para o mundo, liber-

Page 55: V::E::R 2011

55Nome do Autor, Nome do Texto /

Agora, o autor podia descer a montanha e vol-tar para sua cidade. Ele havia se transformado no seu próprio personagem.

Texto realizado a partir de conversas gravadas entre os artistas citados e o personagem conceitual criado por Kenny Neoob, em janeiro de 2011.

tando-me das imposições culturais, hegemô-nicas, ideológicas, familiares... Quando eu me libertei disso, eu vi tudo o que eu podia fazer. Se todo mundo tivesse essa noção e mais res-peito por si, pelo outro e pelo mundo... Se todo mundo pudesse ter essa transformação, ima-gino que o mundo seria...— Sou um personagem, uma possibilidade de pensar livre. É muito livre ser Outro. — Um exercício de alteridade! Em vez de co-locar-se no lugar do outro, colocar o outro no seu lugar. — É um prazer estar aqui com você – afirma Fontoura.

Page 56: V::E::R 2011

tanto estranha para qualquer criatura ávida de ocupação. Aos poucos, deixávamos para trás um regime de velocidade de vida em constante aceleração e movimento para estar num deter-minado intervalo, um ponto de possibilidades que, na falta do que “fazer“, nos provocava a sentir uma empatia fluida pelas inúmeras miu-dezas de tudo que se passava ao nosso redor.

A segunda lição de tempo: uma intensidade.Em Terra Una um processo, no qual as palavras não nos penetravam somente através dos pensa-mentos, mas principalmente via ações de corpo inteiro. Uma multiplicidade de outros sentidos habitava o nosso cotidiano e, dia após dia, nossa convivência era pautada na simplicidade (e em alguns momentos outros: nas complexidades) de muitas partilhas. Falo de um cheiro, uma palavra, um abraço, um banho, um pão,

Como tudo no mundo começou com um sim (já dizia Clarice), ali estávamos na espreita de uma nova oportunidade de roçar: pele com pele, pele com terra, pele com água, pele com ar, pele com mato, pele com arte...

A primeira lição de tempo: uma espera.No caminho de ida a primeira parada foi em Juiz de Fora onde, junto a Marcus Vinícius e Shima, fiquei a espera, aguardando o horário do ôni-bus para Liberdade por quase 10 horas. Nossas opções não eram muitas, mas é claro que pode-ríamos ter escolhido sair, caminhar sem rumo pela cidade. Entretanto, não sei se por inércia, cansaço, preguiça ou mesmo qualquer outra coisa, fomos ficando ali. Hoje fica muito claro perceber que o nosso primeiro contato foi com o Tempo. Mergulhados neste espaço-tempo de espera e paciência, crescia uma sensação um

Sim...

Page 57: V::E::R 2011

57Rubiane Maia, Sim... /

de retorno, denunciou em mim uma aflição pe-los excessos. Não foi difícil perceber que mui-ta engenhosidade é necessária para que com nossas práticas, sejam elas artísticas ou não, tomemos parte nos dispositivos de criação de outras perspectivas de realidade - criação e experimentação de mais lugares de encontros e afetos; no estabelecimento de relações mais íntimas; na prática de gestos mais suaves. Ex-periências comuns, mas que nas atuais confi-gurações da vida contemporânea têm-se facil-mente desqualificadas e descartadas. Como foi e está sendo todo o processo? Transbordante. Sobre o que fui fazer lá? Ver. Desprender-me. Diluir-me. E sobre os sonhos? Uma alquimia. Visíveis ou invisíveis, estiveram presentes em cada elemento, cada corpo, cada gesto, cada fala, em cada momento de silêncio.

Gratidão!

O livro do sonhos, de Rubiane Maia

um toque, uma neblina, uma flor, um passo, um arco-íris, um perfume, as borboletas colo-ridas como flores ao vento. A preparação e comu-nhão dos alimentos, a harmonia dos espaços, os quartos coletivos com conversas na madruga-da, a construção das ações e performances, as vivências, os passeios e mergulhos nas cacho-eiras. Tratava-se da tentativa de construção de um comum compartilhado entre todos. E ainda: o canto dos pássaros, algum silêncio, uma roda, uma fogueira, um canto, uma vida – era a escuri-dão do desconhecido que se aproximava, fazendo surgir o momento perfeito de abrir as janelas para ousar enxergar um tempo de céu estrelado.

A terceira lição de tempo: os transbordamentos. Ao retornar para a cidade, os estranhamentos se tornaram muitos - barulhos, pessoas, imagens, palavras. Uma agitação que, naquele instante

Page 58: V::E::R 2011

onde é preciso colaborar e respeitar regras. O que inicialmente pode ser um embate, com o passar dos dias se transforma em compreen-são e troca. As ‘questões’ da ecovila passam a ser dos residentes do encontro, ao mesmo tempo em que suas questões (e as dos traba-lhos) passam a ser da comunidade. Isso tudo sem ilusões ou imposições – cada um escolhe o quanto se envolve –, mas, com certeza, com mudanças para todos.

Trabalhar em meio a essa intensa convivência e deslocamento geográfico gerou uma transpo-sição temporal, uma aproximação (quiçá uma eliminação) dos limites que cercam a vida do trabalho; a arte da vida.

A todo tempo algum trabalho acontecia, a todo tempo pensávamos e agíamos em torno dos

Conviver em comunidade, ter o tempo trans-portado, praticar atividades colaborativas, construir novos locais de ação... Residir.

Trabalhar = viver. Ser artista, crítico (a), curador (a), historiador (a), produtor (a) – ser todos e nenhum ao mesmo tempo.

Um encontro para ver, mas também para dei-xar de ver – as relações, as experimentações, as trocas, os limites e vivenciar.

Sair da cidade para residir durante 10 dias em uma ecovila. Sair de um grande corpo social – onde a qualidade de comum parece se reduzir cada vez mais –, para coexistir numa pequena comunidade – onde o ‘comum’ é extremamen-te presente. Viver e trabalhar nesse contexto, com essa mudança, o que pode gerar? Pessoas e profissionais confundindo suas vidas com seus trabalhos, através de falas, performances, vivencias e instalações. O Encontro V::E::R de Arte Viva, janeiro de 2011, Terra Una.

Nesse lugar acontece uma imersão numa nova maneira de viver e trabalhar, seja para aqueles que já estão familiarizados com ecovilas, seja para aqueles que têm seu primeiro contato. E isso não é só pela proposta de residência artística que o encontro carrega, mas pelo mergulho (mais, ou menos profundo) no meio da natureza, e pelo que trazemos das cidades para essa natureza.

Nós, os 21 artistas residentes, convivemos não só com outros profissionais da área artís-tica, mas com pessoas que moram nesse outro contexto. Entramos não só num ambiente cercado pela natureza, mas numa nova rotina,

Convivendo

Page 59: V::E::R 2011

59Nome do Autor, Nome do Texto /

mesma forma os artistas se “encaixaram” no ambiente através de ações que os integraram à paisagem. E também enterraram e pendu-raram equipamentos, comuns ao trabalho na cidade, no espaço de toda ecovila.

Esse intenso envolvimento com os trabalhos propostos para o encontro se deu também através de ações colaborativas que vieram de amizades antigas ou recém construídas. Os trabalhos aconteceram, também, por essas colaborações, por esses encontros. E pelas dis-cussões do que seria uma arte colaborativa. Pode o espectador ter autonomia quando se envolve em um trabalho de arte? Como dife-renciar colaborações de coletivos de artistas? E quanto aos outros profissionais que se envol-vem na produção e criação? Muitas tentativas de respostas, muitas discordâncias, e alguns

trabalhos que foram desenvolvidos durante o encontro. Mas, ao mesmo tempo, não existia pressa, e, como disse o artista Luis Parras “a melhor maneira de controlar o tempo é rela-xar”. As ações, vivencias e instalações propu-seram um eco atemporal para aqueles que as viram, participaram e usaram. Ações de 4 ou 2 horas, de 1 dia ou 1 semana reverberaram como eternas em nosso imaginário. Trocas que se estenderam até o último dia, ou que duraram apenas o tempo de uma conversa dei-xaram rastros. E objetos instalados ou cons-truídos tiveram suas funções ressignificadas, independente de permanecerem naquele local.

As atividades cotidianas do dia-a-dia (co-zinhar, limpar, conversar, caminhar, etc), compartilhadas por todos, foram encaixadas nas performances, vivencias e instalações. Da

Julio Callado, Shima, Ana Luisa Lima, Bernardo Moscheira, Maicyra Leão

Page 60: V::E::R 2011

60/ Convivendo, Julia Pombo

lugar tão isolado e específico? Terra Una é um novo local de ação para arte, assim como mui-tos que vem acontecendo nas cidades. Esses locais se expandem na medida em que estão em algum momento para alguém. Não é por uma demanda de mercado que eles aconte-cem, mas pela necessidade que têm aqueles que fazem acontecer. E é justamente essa ne-cessidade que desloca-os para outros locais. A experiência que uma pessoa tem com a arte encontra muitas pessoas simplesmente atra-vés de sua vida.

Através das vidas das 35 pessoas (entre os 21 artistas, equipe de produção, moradores e vi-sitantes) que estavam em Terra Una, durante os dias 22 a 31 de janeiro, o Encontro V::E::R de arte viva poderá ultrapassar os limites da ecovila. E aí, mais uma vez podemos falar da aproximação entre trabalho e vida, vida e arte.

Este texto é totalmente dependente da convivên-cia com os artistas, críticos, curadores, histo-riadores e produtores que estavam no encontro. Além de todas as outras pessoas/profissionais que moram/trabalham em Terra Una. Que me-recem ter seus nomes escritos aqui.

Alex Cassal, Ana Luisa Lima, Beatriz Lemos, Bernardo Mosqueira, Bruno Caracol, Bruno Jacomino, Bruno Miguel, Clarissa Palma, Denise Alves, Domingos Guimaraens, Elcio Rossini, Glorinha, Jairo dos Santos, Jamil Cardoso, Jaya Pravaz, Júlio Callado, Kenny Neoob, Lucia Russo, Luís Parras, Luísa Nóbrega, Maicyra Leão, Manu, Marcela Levi, Marcus Vinicius, Mari, Michel Groisman, Michelle Moura, Micheline Torres, Nadam Guerra, Nana, Pontogor, Rubiane Maia, Shima, Tuan, Vitor Butkus.

consensos. Mas, talvez, o mais interessante é que o processo de trabalho durante o encon-tro mostrou, na prática, algumas formas de colaboração e provou para todos como isso é essencial não só para a vida, mas especifica-mente para a arte.

Muitos trabalhos saíram de seu planejamen-to original justamente porque dependiam da participação de todos para acontecer. Alguns projetos foram modificados porque, sem pro-por essa participação, contaram com ajuda em seu processo de produção, e outros, porque ao buscar um distanciamento, acabaram por provocar a proximidade.

Em fim, o tempo vivido na ecovila trabalhando e participando de diversas proposições trouxe questionamentos sobre o controle que o artis-ta tem de seu trabalho, desde a idealização até a apresentação para o público. Mostrou o embate entre o artista e o espaço – com suas condições específicas. E as diferentes manei-ras que uma proposta artística pode se desen-volver quando pensamos na quantidade de público e na atuação deste frente ao trabalho. Modificou o individualismo característico dos centros urbanos em coletivismo, descentrali-zando as atividades culturais desses centros, e transportando-as para novos locais de ação.

O Encontro V::E::R é mais uma ótima demons-tração da possibilidade de intercessão entre a instituição e iniciativas independentes no meio da arte. É mais um projeto que gera ações mi-cro políticas em arte, que se espalham para toda a sociedade. Mas como? Como colocar no mundo um encontro tão frutífero para aqueles que participaram, mas que aconteceu em um

Page 61: V::E::R 2011

61

Visita a Augusto Pestana

Page 62: V::E::R 2011
Page 63: V::E::R 2011

Sobre o V::E::R

por parte, em percursos irregulares de apro-ximação, reflexão, busca, acordos, afetos, gostos e tudo o mais que eu não vi.

No ônibus, com Kenny e Fontoura, nos apresen-tamos, falamos dos projetos e de nós mesmos... Guardo um exercício de imaginação. Imagine uma esfera. Imagine um ponto ao centro desta esfera. Imagine um dos pontos que formam esta esfera. Trace uma linha saindo deste pon-to, passando no ponto do centro e chegando a qualquer outro ponto, que também forma a esfera. Simultaneamente, imagine todos os pontos possíveis que formam esta esfera tra-çando linhas até os outros pontos formadores da esfera. O ponto do centro seria Deus.

Apresentei-me a todos: Meu nome é Jamil Cardoso, eu vim aqui para continuar a trabalhar!

Entre as tarefas funcionais partilhadas por todos, aquela que eu gostava de fazer era a “harmonia do jantar”. Enquanto arrumáva-mos a cozinha, sempre rolava uma cantoria, uma batucada, o Rap Haribol...

Na hora do almoço, eu me apeguei à girafa.

Na fala de Bernardo Mosqueira estava dita a palavra polifonia: “Soma na troca”. Foram su-geridos alguns assuntos para uma dinâmica, o grupo escolheu o “Tempo, entidade ontológi-ca e prática” como tema. Eu fiquei pensando no “momento”, na hora “H”. O tempo da cena, o tempo na cena... Fui achando que o tempo parece “eu”, dentro. E que o espaço parece o outro, o fora. Dizem que os japoneses têm a palavra tempo dividida em duas partes como

“Trata-se de um arranjo coreográfico para um coadjuvante em um rito inaugural”.

A pesquisa começou quando tomamos conhe-cimento da presente edição do V::E::R. Esse trabalho revê nossa trajetória como intérpre-te, tantas vezes fonte de matéria artística, apropriador de materiais estrangeiros a si, um interlocutor.

Compomos ambientes no corpo. A ação de comer. A investigação rítmica e plástica do corpo. Um questionário: você pode me tocar? Eu posso me excitar? Etc...

Nossas motivações giram ao redor de: como é o corpo. Como é o mundo que me cerca. Somos dois? Qual a troca possível com este mundo? Como interferir nele? Como construir, a partir da dança, um espaço para permanecer?”

Assim foi... a proposta de pesquisa enviada para o edital do V::E::R 2011...

Por onde então começar meus comentários so-bre o encontro? Continuar... Do início do meu próprio processo criativo? A partir da chegada a Terra Una? Minha primeira anotação que indica Liberdade é a palavra polifonia.

A estrutura do texto aqui apresentado é de tópicos ou fotográfica ou fragmentada. Embora não seja a melhor forma de leitura, essa estrutura serve como metáfora da própria experiência nesse encontro. Afinal, eu escolhi dançar! Como dar conta da experiência vivida, em um texto? Que coisa foi a que aconteceu? Aquilo aconteceu em um só fôlego, porém, descontinuamente, de pessoa a pessoa, parte

Page 64: V::E::R 2011

64/ Sobre o V::E::R, Jamil Cardoso

e o óbvio virou fantasma. Em outros momen-tos o som do rádio era como o despertador para o sonho. Há, mesmo ali, em Terra Una, onde se reconstrói o mundo, a vida, o velho mundo que nos foi apresentado, não só como memória.

Em alguma das conversas com Elcio Rossini, fui questionado sobre o nome da minha core-ografia: “- É uma referência a um modo de produção? Uma piada, uma crítica?”. Nessa conversa descobri que a motivação para o trabalho era uma batalha corporativa, uma defesa do intérprete como artista, tentativa de legitimar o meu lugar. Contra quem eu brigava?

Entre idas e vindas, fazendo uma comuni-cação entre Liberdade e Terra Uma, ao lado de Lucia Russo entendi: Aquilo que me move

essas... Fico pensando se o “cuidar” não é uma forma de doação de tempo. E, criação, a criação de sentido. E aí, “ser” é coisa da cria-ção, da representação, da memória, de um modelo. Quando a gente chora experimenta uma elipse de tempo?

Jairo dos Santos me falou de Guimarães Rosa. Fenômeno, Corpo Fechado e outros escritos...

A instalação de Bruno Caracol, A voz, me tomou de assalto. Depois do banho, fui procurar um som que não poderia estar ali. Entre a casa que tomava banho e o Galpão de atividades, onde eu dormia, tocava uma música estranha. Tinha alguém que comentava a música, era um som de rádio... Tudo estava ali, sempre. Se eu visse a caixa de som não seria assalto seria anúncio do óbvio, ele escondeu as caixas

Qual arte?, de Ana Luisa Lima

Page 65: V::E::R 2011

65Jamil Cardoso, Sobre o V::E::R /

corpo fora do programa de aquecimento que estou acostumado. Um reencontro dos cami-nhos do corpo. A cachoeira Jacuzzi. Suportar o frio da água. Aquecer o corpo para suportar outro estado de alerta - corporeidade.

O objeto aerado de Élcio Rossini, Objeto para a ação - espaço interno, espaço global, o objeto como extensão e que estende o corpo.

Jairo dos Santos produziu, para mim, o verda-deiro encontro. O “enfrentamento”. Jairo e Luís Parras correram, um de encontro ao outro. No alto de uma montanha, amarelados pelo fubá, chocaram-se um contra o outro. Caíram e deixa-ram-se rolar. Nada tão gráfico, eu vi. Nada tão simbólico, tão representativo do que eu vivi ali.

Hoje, chamo o meu trabalho de “a casca do ovo por dentro” - uma pesquisa que ainda não está acabada. Que talvez nunca encontre esta-bilidade em uma só forma de se apresentar... Trata-se de um solo. Meu primeiro esforço autoral, profissionalmente. Ele tem a marca da memória, da recriação. O trabalho nasce da vontade de afirmar a poética do intérprete em artes cênicas, artes vivas. Pretendo, dan-çando, a partir de minhas memórias, reparar no tipo de encontro que se dá na cena. Entre a dança e o espectador. Uma maneira de deli-near a distância entre o sujeito que performa a coreografia e o sujeito que assiste.

Acredito que apenas acompanhados nos percebemos indivíduo. Quando estamos sozi-nhos, nos orientamos pela lembrança de quando estamos em relação.

não é necessariamente o sentido daquilo que danço, aquilo que digo.

Ensaio com/para Michelle Moura: “Você quer saber o que eu enxergo no seu trabalho? Fique com o que te interessa, vejo gosto pela forma, gosto pelas ligações entre os passos.”

Da fala de Ana Luiza Lima vêm as questões: “Que arte?”. Modos de visibilidade da arte contemporânea. Ela afirma o pensamento modernista: arte que é emancipação, arte que é política. Como fazer da arte um novo espaço público? A posição dos agentes é que alteraria a realidade e não a arte? Uma reação da arte para certa exigência de transparência da contemporaneidade seriam os trabalhos de ressentimento. E eu, cá com meus botões: O meu ressentimento é minha força motriz para a existência! E agora? - Ela continuou... Necessidade? Risco?. Valor de mercado X valor simbólico. Acessibilidade não seria a exposição/imposição de um sistema? Fruição, experiência estética e outros parangolés... Errância X Comódite. Eu me pergunto: Quem merece mais o dinheiro público? Edital X ditadura X iniciativa privada. Existe uma luta e eu me sinto a Mãe Coragem de Brecht.

Ensaio para Lucia Russo e Marcela Levi: Atenção as palavras que você usa para descrever o trabalho! Nelas estão as maneiras de lidar com o material. Enquanto me explicava, dizia: Inversão das referências de gravidade, estar entre. Combinação, harmonizar partes dema-siadamente estranhas entre si, fazer analogias para descobrir pontos de fuga.

Os trabalhos do Michel Grosman... Aquecer o

Page 66: V::E::R 2011

tação disjunta e inclusiva. Talvez, aqui, esse traço de união seja mais bem encontrado nos tropeços do gesto, nos maravilhamentos que calam, nos acidentes que pontuam o texto dos homens, delineando uma geografia sutil que não é mais cultural que natural. Os silêncios por onde a mata nos fala. Havendo foi cons-truído para dar futuro a esse passado recente, guardando dele o inacabamento vivo pelo qual a memória passa a nos interrogar – desde que deixemos margem a uma experiência aberta do tempo.

Agradeço enormemente a todos os artistas que estiveram e estão presentes: Ana Luisa Lima, Bernardo Mosqueira, Bruno Caracol, Bruno Jacomino, Bruno Miguel, Denise Alves, Elcio Rossini, Jairo dos Santos, Jamil Cardoso, Kenny Neoob, Julia Pombo, Lucia Russo, Luis Parras, Luísa Nóbrega, Maicyra Leão, Michel Groisman, Michelle Moura, Pontogor, Rubiane Maia e Shima. Também aos organizadores do encontro – que também estiveram lá, que tam-bém estão aqui: Alex Cassal, Beatriz Lemos, Domingos Guimaraens, Marcela Levi, Marcus Vinicius e Nadam Guerra. E especialmente ao Tuan, que veio nos ensinar a ver. Também aos habitantes de Terra Una, sem exceção.

30 min / 2011Concepção e edição: Vitor Butkus

Registro quase-documental do VER 2011 – Encontro de Arte Viva, ocorrido em janeiro de 2011 em Terra Una, ecovila situada na Serra da Mantiqueira, no sudeste do Brasil. O encontro durou dez dias, reunindo 21 ar-tistas. Este vídeo malogra decididamente em apresentar um relato integral do evento. Sua ambição é maior, e menor. Descumprindo a função de um registro do havido, cria-se uma escuta e uma retransmissão do durante. Alguns depoimentos foram colhidos, algumas falas foram roubadas. Essas palavras foram extraditadas da ordem segura do “eu falo”, suspensas do plano reto do “esta é a minha obra”. Esse recorte, esse exílio contextual das frases obedeceu ao plano B traçado pelos lap-sos de memória, pelos duplos sentidos, pelos grunhidos assignificantes que vicejam no calor do próprio estar falando. Interessou-me principalmente, no verbo falado, o momento de hesitação. Ali onde a língua balbucia, sur-preendida no presente do encontro, entrecor-tada pelo silêncio da terra e pelo murmúrio da chuva. Ali o ruído ambiente tem lugar de música.

Ao todo, 21 projetos in situ, ações performá-ticas e falas foram realizados no encontro. Havendo não os apresenta um a um, mas de-seja extrair, do embate coletivo com a terra, um traço de união: o plano de uma co-habi-

Havendo

Page 67: V::E::R 2011

67Nome do Autor, Nome do Texto /

Page 68: V::E::R 2011

2011