Vera Holtz - O Gosto Da Vera

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Vera Holtz

O Gosto da Vera

Vera Holtz

O Gosto da Vera

Analu Ribeiro

So Paulo, 2006

GovernadorSecretrio Chefe da Casa Civil

Cludio LemboRubens Lara

Imprensa Oficial do Estado de So PauloDiretor-presidente Diretor Vice-presidente Diretor Industrial Diretora Financeira e Administrativa Chefe de Gabinete Hubert Alqures Luiz Carlos Frigerio Teiji Tomioka Nodette Mameri Peano Emerson Bento Pereira

Coleo Aplauso PerfilCoordenador Geral Coordenador Operacional e Pesquisa Iconogrfica Projeto Grfico Assistncia Operacional Editorao Tratamento de Imagens Rubens Ewald Filho Marcelo Pestana Carlos Cirne Andressa Veronesi Djair Wilson Aline Navarro Jos Carlos da Silva

ApresentaoO que lembro, tenho. Guimares Rosa

A Coleo Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, tem como atributo principal reabilitar e resgatar a memria da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compem a cena brasileira nas reas do cinema, do teatro e da televiso. Essa importante historiografia cnica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituda de maneira singular. O coordenador de nossa coleo, o crtico Rubens Ewald Filho, selecionou, criteriosamente, um conjunto de jornalistas especializados para realizar esse trabalho de aproximao junto a nossos biografados. Em entrevistas e encontros sucessivos foi-se estreitando o contato com todos. Preciosos arquivos de documentos e imagens foram abertos e, na maioria dos casos, deu-se a conhecer o universo que compe seus cotidianos. A deciso em trazer o relato de cada um para a primeira pessoa permitiu manter o aspecto de tradio oral dos fatos, fazendo com que a memria e toda a sua conotao idiossincrsica aflorasse de maneira coloquial, como se o biografado estivesse falando diretamente ao leitor.

Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator importante na Coleo, pois os resultados obtidos ultrapassam simples registros biogrficos, revelando ao leitor facetas que caracterizam tambm o artista e seu ofcio. Tantas vezes o bigrafo e o biografado foram tomados desse envolvimento, cmplices dessa simbiose, que essas condies dotaram os livros de novos instrumentos. Assim, ambos se colocaram em sendas onde a reflexo se estendeu sobre a formao intelectual e ideolgica do artista e, supostamente, continuada naquilo que caracterizava o meio, o ambiente e a histria brasileira naquele contexto e momento. Muitos discutiram o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida. Deixaram transparecer a firmeza do pensamento crtico, denunciaram preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando o nosso pas, mostraram o que representou a formao de cada biografado e sua atuao em ofcios de linguagens diferenciadas como o teatro, o cinema e a televiso e o que cada um desses veculos lhes exigiu ou lhes deu. Foram analisadas as distintas linguagens desses ofcios. Cada obra extrapola, portanto, os simples relatos biogrficos, explorando o universo ntimo e psicolgico do artista, revelando sua autodeterminao e quase nunca a casualidade em ter se

tornado artista, seus princpios, a formao de sua personalidade, a persona e a complexidade de seus personagens. So livros que iro atrair o grande pblico, mas que certamente interessaro igualmente aos nossos estudantes, pois na Coleo Aplauso foi discutido o intrincado processo de criao que envolve as linguagens do teatro e do cinema. Foram desenvolvidos temas como a construo dos personagens interpretados, bem como a anlise, a histria, a importncia e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biografados. Foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correo de erros no exerccio do teatro e do cinema, a diferenciao fundamental desses dois veculos e a expresso de suas linguagens. A amplitude desses recursos de recuperao da memria por meio dos ttulos da Coleo Aplauso, aliada possibilidade de discusso de instrumentos profissionais, fez com que a Imprensa Oficial passasse a distribuir em todas as bibliotecas importantes do pas, bem como em bibliotecas especializadas, esses livros, de gratificante aceitao.

Gostaria de ressaltar seu adequado projeto grfico, em formato de bolso, documentado com iconografia farta e registro cronolgico completo para cada biografado, em cada setor de sua atuao. A Coleo Aplauso, que tende a ultrapassar os cem ttulos, se afirma progressivamente, e espera contemplar o pblico de lngua portuguesa com o espectro mais completo possvel dos artistas, atores e diretores, que escreveram a rica e diversificada histria do cinema, do teatro e da televiso em nosso pas, mesmo sujeitos a percalos de naturezas vrias, mas com seus protagonistas sempre reagindo com criatividade, mesmo nos anos mais obscuros pelos quais passamos. Alm dos perfis biogrficos, que so a marca da Coleo Aplauso, ela inclui ainda outras sries: Projetos Especiais, com formatos e caractersticas distintos, em que j foram publicadas excepcionais pesquisas iconogrficas, que se originaram de teses universitrias ou de arquivos documentais pr-existentes que sugeriram sua edio em outro formato. Temos a srie constituda de roteiros cinematogrficos, denominada Cinema Brasil, que publicou o roteiro histrico de O Caador de Diamantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o

primeiro roteiro completo escrito no Brasil com a inteno de ser efetivamente filmado. Paralelamente, roteiros mais recentes, como o clssico O caso dos irmos Naves, de Luis Srgio Person, Dois Crregos, de Carlos Reichenbach, Narrado res de Jav, de Eliane Caff, e Como Fazer um Filme de Amor, de Jos Roberto Torero, que devero se tornar bibliografia bsica obrigatria para as escolas de cinema, ao mesmo tempo em que documentam essa importante produo da cinematografia nacional. Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior, da srie TV Brasil, sobre a ascenso, o apogeu e a queda da TV Excelsior, que inovou os procedimentos e formas de se fazer televiso no Brasil. Muitos leitores se surpreendero ao descobrirem que vrios diretores, autores e atores, que na dcada de 70 promoveram o crescimento da TV Globo, foram forjados nos estdios da TV Excelsior, que sucumbiu juntamente com o Grupo Simonsen, perseguido pelo regime militar. Se algum fator de sucesso da Coleo Aplauso merece ser mais destacado do que outros, o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu pas. De nossa parte coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficcia a pesquisa

documental e iconogrfica, contar com a boa vontade, o entusiasmo e a generosidade de nossos artistas, diretores e roteiristas. Depois, apenas, com igual entusiasmo, colocar disposio todas essas informaes, atraentes e acessveis, em um projeto bem cuidado. Tambm a ns sensibilizaram as questes sobre nossa cultura que a Coleo Aplauso suscita e apresenta os sortilgios que envolvem palco, cena, coxias, set de filmagens, cenrios, cmeras e, com referncia a esses seres especiais que ali transitam e se transmutam, deles que todo esse material de vida e reflexo poder ser extrado e disseminado como interesse que magnetizar o leitor. A Imprensa Oficial se sente orgulhosa de ter criado a Coleo Aplauso, pois tem conscincia de que nossa histria cultural no pode ser negligenciada, e a partir dela que se forja e se constri a identidade brasileira.Hubert AlquresDiretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de So Paulo

Vera, que se disps a me contar essa histria incrvel Prola e ao Beuys, pela recepo calorosa Denyse Godoy, pela pacincia Liane Lazoski, pelo socorro Ao Caesar Park Ipanema, pelos dias 5 estrelas Tet, que me ensinou o caminho das pedras Ao meu pai, que me fez acreditar que escrever livros uma atividade cotidiana minha me, pela fora de sempre Barbara, por tudo Analu Ribeiro

IntroduoVera-r-r-r-r-r! Quando s o que faltava para terminar este livro era o ttulo, tive uma luz: O Gosto da Vera. Ela adorou, e mais ainda quando contei a origem da minha inspirao. Acontece que meu pai, o jornalista Jos Hamilton Ribeiro, publicou nos anos 60 um livro lindo e emocionante, O Gosto da Guerra, no qual conta sua experincia como reprter enviado especial da revista Realidade para a guerra do Vietn. No meio da cobertura, ele pisou numa mina terrestre e foi para os ares. A exploso levou com ela parte de sua perna esquerda. Transferido para um hospital americano em Chicago, enquanto se recuperava do acidente junto com outros sobreviventes da mesma guerra, ele escreveu o livro, relanado em 2004 pela Editora Objetiva. Graas a Deus, e torcida dos amigos e da famlia eu era pequenininha, tinha dois anos de idade , sua recuperao foi total. Ele continua na ativa, exercendo sua profisso com a bravura de sempre, e espero que no se incomode com o meu trocadilho. Mais ainda: que d risada e, quem sabe at, se sinta homenageado. Em um pas de memria curta como o Brasil, e que no tem 13

ou no tinha, at agora especial vocao para publicar biografias, a busca era rida para quem, como eu, adora entrar em detalhes da vida e da trajetria das pessoas que eu admiro mais. Quando ouvi falar da Coleo Aplauso, e quase imediatamente corri a encontrar nas livrarias uma poro de livros com as histrias desse, daquele e daquele outro artista, junto com a pressa de ler tudo o que caa na minha mo me deu uma vontade danada de participar. Pensei na Vera, amiga querida, antdoto contra o baixo-astral, bacana, bagunceira, barulhenta, engraada, divina-maravilhosa e uma atriz daquelas, de talento gigantesco, destemido, indomvel. Ela tambm se animou com a idia, topou correndo. Nossos dias de entrevista foram incrveis. So Pedro ajudou com o cu azul sem falhas, banhado por um sol fresco de outono que deixava o Rio de Janeiro ainda mais lindo, se que isso possvel. O Jardim Botnico colaborou com a paisagem buclica e suas ruas antigas, que eu fazia questo de cruzar a p. E a Vera entrou com o relato, com a graa, com o sorriso que estava sempre me esperando do outro lado da sua porta. Na sua memria restaram apenas as partes boas, s do que ela se lembra. Achei estranho no

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comeo como vamos escrever uma biografia s com histrias divertidas? Eu sei, e qualquer um sabe: a tragdia vende muito mais. Mas o livro a histria dela, e a histria dela feita de muito riso, de muita alegria, de muita famlia, de muito amigo, de muita paixo, de muito porre, de muito carnaval. Foi uma delcia ouvir, um prazer escrever e uma vitria publicar. Minha satisfao vai ser completa quando voc terminar de ler e concordar comigo: Essa mulher tem gosto de festa! Analu Ribeiro15

Desenhista da Engevix, 1975, Rio de Janeiro

Captulo I Um Empurro para Fora da PranchetaEm 1975 me mudei de So Paulo para o Rio de Janeiro e troquei meu emprego no IPT (Instituto de Pesquisas Tecnolgicas), onde trabalhava h dois anos, por outro na empresa de engenharia Engevix, para atuar como desenhista do vertedouro da hidreltrica de Itaipu Alto, fazendo mapas de perfis geolgicos. Batia o ponto s oito horas da manh, ao meiodia eu almoava, uma hora da tarde voltava para a prancheta e s levantava de novo s cinco horas da tarde, para bater o ponto. Era um trabalho tcnico, com hora para entrar, hora para almoar, hora para sair. Virei uma pessoa normal. Foram trs anos batendo carto, enquanto minha vida me esperava do lado de fora da firma. Meu corpo sentia a inadequao e me mandava todo tipo de sinal possvel. Eu tinha problema de estmago, priso de ventre, no dormia direito, tinha angstias. No sabia ao certo o que era depresso e no entendia o que se passava comigo, mas me sentia mal, no me encaixava mais no mundo. Muitas vezes, durante os trs anos que fiquei l, chegava cedinho na empresa, bem antes do

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expediente, morrendo de sono pelas noitadas cariocas ou pelas noites perdidas fazendo o longo percurso entre So Paulo e Rio dentro de um nibus. O segurana me deixava entrar e eu dormia embaixo da prancheta, feliz com essa cidade que estava descobrindo, at as oito. Um dos meus apetrechos de desenho era a aranha, instrumento que tem uma agulha em cada ponta, a mais fina para fazer letrinhas menores, a mais grossa para letras maiores. Eu pegava no sono em cima dos mapas geolgicos e apoiava a cabea na agulha, cansei de ficar com a testa furada por causa da ponta da agulha da aranha.

Cercada pelos amigos do departamento de desenho do IPT em gravao para o Video Show. Adorei essa foto!

Um belo dia o meu chefe, Horst Krhne, me chamou. Eram 8h20, eu tinha chegado atrasada de novo naquela manh. Ele disse: Vera, vou te mandar embora. Eu falei: Ai, que bom! Estava ainda meio bbada, provavelmente, porque a gente bebia at de manh nos botecos do Baixo Leblon. Voc tem que seguir o seu destino, minha filha, que no aqui. Como que pode um alemo, um homem com a mesma origem do meu pai, dizer isso para mim? Vai fazer teatro, vai fazer a tua vida. Eu agradeci e fui embora, radiante. s 8h30 j estava xingando o Krhne, minha resignao transformada em revolta. Aos poucos entendi que ele estava me dando um empurro

Grandes amigas do Rio: Vera, Debora Fontes e Wilma dos Santos

de encontro ao meu caminho. a que acontece o Rasga corao e minha vida como Vera Holtz, a vida que escolhi para mim, comea. Seno eu tinha ficado na prancheta; quem sabe estivesse l at hoje. Ao longo de toda a minha vida contei com a interveno de certas pessoas, meus anjos da guarda, que apareceram para me dar um empurro na hora certa.

A pequena Vera

Captulo II Blecaute em TatuTeve um blecaute na cidade de Tatu, no interior de So Paulo, minutos depois que eu nasci. Tia Rita, irm de meu pai, estava no hospital com a minha me. Naquela poca (o dia 7 de agosto de 1952), racionamentos de energia eram comuns. Eu tinha acabado de nascer, s cinco para as onze da noite, minha tia me pegou no colo, eu sorri para ela e a luz apagou. A comeam as historinhas da minha vida. A do meu nascimento, que tia Rita relembrava ao longo de toda a sua vida, esta: nasci sorrindo e provocando blecautes. Fui registrada como Vera Lcia Fraletti Holtz, sobrenome italiano da minha me e alemo por parte de pai. Um pouco depois, meu pai tirou o Fraletti, mas ningum descobriu. Na realidade, por muito tempo fui Vera Lcia Fraletti Holtz e s mais tarde virei Vera Lcia Holtz. Na minha casa somos quatro irms: Maria Teresa, Rosa Cristina, Vera Lcia e Regina Maria. Eu sou a terceira. Quando mame estava grvida de mim, papai tinha uma aposta gigantesca de que viria um homem. Ele j tinha duas filhas e no queria

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outra mulher. Estava certo de que teria um filho homem e nasceu mais uma menina. Ento, tem mais essa historinha para eu resolver durante minha vida, a da decepo de meu pai no meu nascimento historinha que, acho, resolvi muito bem, tanto que papai, quando virou av, s queria netinhas. Elas vieram, eles tambm. Teresa teve Henrique e Maria Helena. Rosa contribuiu com Luciana, Ceclia e Matheus. Regina me de Gustavo e Letcia.

Rosa Cristina, Maria Teresa, Regina Maria e Vera Lcia

No colo de mame

Captulo III A Alma PereirenseMeus avs maternos so italianos. Vov, Joo Fraletti, era de Castelnuovo. Chegou ao Brasil em 1884, sozinho, como imigrante, mas com emprego prometido de padeiro em Pereiras. Vov, Cristina, de Ravena, vem com a famlia em 1890. Cristina e Joo se conheceram em Pereiras e se casaram em 1900. Tiveram 14 filhos. Mame a dcima-terceira. Depois dela ainda nasceu Henriqueta, que faleceu bem menina. Mame era a raspa do tacho, como ela dizia. Da raspa do tacho viemos ns quatro. Papai conheceu mame em Pereiras, onde foi lecionar. Terezinha Fraletti Holtz sempre foi uma exmia dona-de-casa. Era uma italianinha muito dinmica, exuberante e feliz, gostava de subir nas rvores e cantar com a sua voz grave. Costumava roubar os cavalos dos cavaleiros para se exibir por Pereiras. Cozinhava muito bem, costurava com gosto e tinha um corao genuinamente cristo. A ela coube cuidar do pai dela na velhice, o que fez com alegria. Vivia num casaro em Pereiras, ao lado do armazm da famlia, na poca o

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maior armazm de secos e molhados da regio de Conchas, Pereiras e Laranjal. Caula de uma famlia numerosa, minha me ficava no armazm com seu pai e criou todo um universo fantasioso em torno de caixas de bacalhau que vinham envolvidas em tecidos, rolos de fumo e torres de accar mascavo. Ela me contava essas coisas e tenho seus relatos muito impressos na memria, misturados com fotografias de famlia, de meu av. Papai, alm de professor, foi comerciante em Tatu, onde cuidava da Casa Fraletti, que vendia foges e botijes de gs. Enjoei de carregar botijes e empilhar

Mame (a primeira esquerda) e os irmos Fraletti

na perua Kombi, para a entrega. Mas isso em Tatu. E ainda estamos em Pereiras. Jos Carlos Holtz era um homem muito especial. Viveu 81 anos e dedicou sua vida famlia e comunidade, pois, alm da atividade de magistrio e no comrcio, sempre se empenhou com trabalhos sociais. Foi tesoureiro do Asilo So Vicente de Paula, presidente e fundador do Lyons Clube de Tatu sua grande paixo. Tanto que suas filhas eram chamadas de ferinhas (as filhas do leozo). Fui gerada em Pereiras e nasci em Tatu. Da vem a eterna questo: se sou de Pereiras ou de Tatu. Sempre digo que sou de Tatu de corpo, porque nasci em Tatu, mas pereirense de alma. Passei parte da minha adolescncia e da minha juventude em Pereiras. As duas cidades so vizinhas, esto a trinta minutos de distncia uma da outra. Pereiras tinha seis mil habitantes, a gente brincava que seus slogans eram Visite Pereiras antes que acabe ou A maior cidade pequena do mundo. Apesar de viver no Rio de Janeiro h trinta anos, tenho lembranas muito fortes do interior de So Paulo, e fui reencontrando minhas razes ao longo de minha vida. Botucatu outra cidade ali perto, de onde vem Alcides Nogueira, autor de pera

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O casamento de papai e mame, em 31/12/46

Joyce, inesquecvel obra de teatro. De Conchas vem o pai de Guilherme Leme, mais tarde um grande amor. Em Bauru nasceu Mauro Rasi, autor de Prola, um trabalho que mudou a minha vida. Em 2005 fiz Intimidade Indecente, pea da Leilah Assuno, que tambm de Botucatu.

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Tio Rolf e seus quadros

Captulo IV Uma Filha de TatuNasci na Santa Casa de Tatu, porque em Pereiras s tinha parteiras e mame havia sofrido nos outros partos. Papai tanto queria um filho homem que nem foi me registrar, incumbncia que ficou para o tio Rolf, meu padrinho. Tio Rolf era pintor acadmico, estudou com o Professor Rocco e no aderiu ao movimento modernista, como seu contemporneo Di Cavalcanti. Pintou at o final dos seus dias e foi tambm um grande letrista, responsvel pela produo de cartazes de cinema, listas de preos, faixas comemorativas, pintura de fachadas tudo isso que hoje feito por computador, mas na poca era feito mo. Ele me ensinou essa tcnica. Ao me registrar, tio Rolf manteve o nome duplo Vera Lcia para no fugir da tradio familiar, mas fez questo de incluir o sobrenome Fraletti. Minhas irms so apenas Holtz: papai no gostava de nomes compridos, achava pouco prticos. Vai dar trabalho no futuro, argumentava. Ele era um homem pragmtico, ponderado, firme. Sempre o consultavam para resolver os problemas familiares. Era, tambm, um excelente

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orador. Pensava no futuro como realidade e se preocupava em investir na educao das filhas: O que Joozinho no aprende, Joo no apren de nunca mais. E ainda: Primeiro se formar para depois casar. Estudei piano desde os seis anos de idade at quase me formar no Conservatrio Dramtico e Musical Doutor Carlos de Campos, em Tatu. No convvio com tio Rolf, no ateli dele, conheci bem as palhetas todas. Tio Rolf e tia Rita eram meus padrinhos, eles nunca tiveram filhos e me protegiam muito.32

Concerto de Cmara no Conservatrio Dramtico e Musical Dr. Carlos de Campos, em Tatu

Captulo V Criana FelizNossa casa em Tatu era pequenina e encantadora a casinha, como nos referamos a ela. Ficava na Rua Treze de Fevereiro. Ao lado, um grande quintal e era ali que nosso mundo acontecia. O nosso grande palco. Sempre sob a proteo de nossa bab Maria, que ajudou mame em tudo durante a nossa infncia. Vamos a terra mudar de cor, de um vermelho para o outro, com a chegada das chuvas. Fazamos grandes guerras de mamona, observvamos os insetos e as minhocas abrindo os seus caminhos, cuidvamos da hortinha, fazamos procisses com nossos brinquedos e bonecas, bandinhas tudo isso a cu aberto. Fui uma criana tpica do interior. Lembro que a gente ficava estourando bolinha de piche nas lajotas quentes da rua, corria atrs de enxurrada, machucava o p nos cacos de vidro. Me encantava com as chuvas de raio, relmpago e trovo. Participava de todas as festas folclricas, religiosas, e as de tradio familiar. Enfeitvamos a rua com folhas e ptalas para a procisso de Corpus Christi. Chegavam rvores inteiras na nossa casa para a gente desfolhar.

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Mame gostava de fazer doce de frutas da estao: doce de abbora em pedaos e ralada com coco, gelia do miolinho da goiaba, e de figos para o Natal. Acompanhvamos todo o ritual de preparo dos tachos de cobre, o corte da abbora em pedacinhos mergulhados na cal e perfurados com o garfo para receber melhor o acar, os figos apurados na calda, os doces de batata cristalizando ao sol. No final do ano, as pontinhas dos nossos dedos ficavam queimadas pelo leite contido na casca dos figos que ajudvamos a remover.

Vera e mame, Terezinha Fraletti Holtz, 2003

Almoo familiar dos Holtz, em 1957 eu sou a de culos

Os avs paternos - Pai Pedro e Me Rosa

Captulo VI A Grande FamliaMeu av paterno, Pedro Holtz (Pai Pedro, como era carinhosamente chamado), foi fundador do Clube Recreativo de Tatu. Era industrial, tinha fbricas de sabo, gelo, farinha e torrefadora de caf. Tambm gostava de fazer bebidas, licores, no poro da casa dele. Ns chegamos a encontrar alguns licores ainda ali. Ele adorava Carnaval, comprava engradados de cerveja embalados com palha e sentava na rea da casa para tomar cerveja quente. Para quem passava, ele oferecia. Afinal, era Carnaval. Me Rosa, minha av, no gostava nada dessa folia. A grande lembrana que eu tenho de Pai Pedro a cocada amarela. Ele era especialista em fazer essa cocada, usava 24 ovos para cada quilo de acar e um coco bem grande. Para atrair os netos, colocava o doce em minicopinhos americanos, polvilhava canela e vedava os copinhos com papel de po, colados com clara de ovo. Deixava guardados em cima da cmoda do quarto dele, numa assadeira de alumnio. Sua diverso era ver os netos burlarem a sua vigilncia e roublos, atrados pelos copinhos de uma colorao amarelo sol.

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A famlia Holtz muito festeira. Maria das Mercs Rocha Leite, escritora e editora, est pesquisando e escrevendo um grande livro sobre os Holtz de Tatu. Pai Pedro teve sete filhos, Rosinha, Holtinho, Fred, Rita, Anita, Paulo e Jos Carlos. O maior herdeiro de seu gosto pelo carnaval foi Paulo. Paulo Drago era o Rei Momo oficial da cidade. Estava presente em todas as manifestaes carnavalescas, e bvio que eu tambm porque era a sobrinha do Rei Momo. Tio Paulo fazia de tudo. Nas quermesses tinha roleta e barraquinhas de coelhinho na toca. Ele rodava a roleta e, quando

Tia Anita, tia Rita e eu, nos 90 anos de tia Rita

estvamos participando, dava um jeito de colocar uma ripinha de madeira no nosso nmero. A gente no tinha a menor idia de que isso acontecia, era tudo muito misterioso. Me lembro de um domingo de Pscoa em que sa da quermesse com um ovo praticamente do meu tamanho. Devia ter um metro de altura. Era um coelho grvido: quando abri, saiu um monte de coelhinhos de dentro da barriga. Foi uma festa, uma noite mgica, a quermesse, a luz das barraquinhas

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Aluna aplicada

Captulo VII Tempos de EscolaA primeira escola que freqentei foi a Escola Modelo, em Tatu, onde entrei com sete anos, j praticamente alfabetizada por papai. Como sou de agosto, e a idade mnima para admisso na escola era seis anos, entrei tardiamente. A Escola Modelo era anexa ao Instituto de Educao Baro de Suru, escola pblica. Naquela poca, o professorado era conceituado e muito bem formado. Sabia e gostava de ensinar. Sou extremamente apaixonada por ensino, talvez pudesse ter tido uma belssima carreira ligada educao, no fosse o aspecto metdico da atividade. Apesar de ter sido normalista e me formado em magistrio, no tenho nada de metdico na minha cabea. Agora, a Valsa do Pro fessor eu no esqueo: Dos bens que recebemos e gozamos, sentimos a beleza e o esplendor..., de autoria do professor Nassif Farah e Maria Aparecida Cardenas. Desde pequenininha gostava de dar aulas. Sentava meus colegas de classe nos bancos da Escola Modelo eram aqueles bancos lindos, de madeira ripada, com estrutura de ferro toda trabalhada , levava uma bonequinha preta e outra branca

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e ficava falando sobre igualdade racial. Apesar da diferena, somos todos muito parecidos. Aos seis anos de idade, j dava minhas primeiras aulas de catecismo. Depois ensinei piano e matrias complementares, educao artstica, artes plsticas, geometria descritiva, at alfabetizao (mas no levava o menor jeito). Sei l de onde vinham esses meus primeiros conceitos sobre igualdade racial. Um pouco era da minha formao crist, mas um pouco vinha mesmo de dentro de mim.

Colegas de colgio: Raquel Neix, Maria Luiza (Tot) e Vera, em 1967

Sempre fui ligada aos grandes humanistas e buscava conhec-los atravs das colees de capa dura que papai tinha em casa: Os Grandes Pensadores da Humanidade. Tnhamos tambm O Mundo Pitoresco, coleo toda ilustrada onde eu e minha irm mais nova, Regina, passvamos a tarde disputando quem encontrava lugares mais originais. Linda, de cabelos longos, ela fazia aqueles papelotes para ficar com cachos, se vestia toda de cor-de-rosa. Nos desfiles da escola, ela era baliza, eu era da fanfarra (tocava surdo e repique) e a Rosa, minha outra irm, general. Tocar na fanfarra fazia parte de meu comportamento mais associado ao dos meninos, me aproximava do menino que papai queria que eu fosse.

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Primeira Comunho com minha irm Regina

Captulo VIII Flerte com a IgrejaNo Instituto de Educao Baro de Suru me formei na Escola Normal, sem saber direito o que queria. Cada hora eu queria uma coisa. Pensei at em ser freira. Adorava fazer a hora santa, comungar. Eu queria morar na igreja. Fiz at o TLC (Treinamento da Liderana Crist) e fui parte da Cruzadinha. Tinha meu missal, minha fita amarela, a boina branca com o uniforme branco. Aos domingos passava mal na igreja porque tnhamos que comungar em jejum. Mas eu era to infantil (acho que sou at hoje) que nunca tive introspeco para entender a f, essa graa divina. Ento, pensei em ficar apenas com o que eu entendia e podia ver: o espetculo da igreja catlica, seus rituais, seus figurinos, sua msica, estandartes, imagens, procisses e a maravilhosa gua benta. Minha adolescncia foi uma exploso s. Fiquei rebelde de vez, virei bicho, no obedecia mais ningum. Papai brigava muito comigo por causa desse negcio de namoro: Voc no vai namo

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Wanda Seabra Mayer e eu no carnaval do Clube Tatuiense

rar fulano. Eu falava: Querer poder!, ele me ameaava: Ento vamos ver quem pode mais. Eu respondia: Negcio fechado. Era assim.

Recebendo o ttulo de Cidad Benemrita de Tatu

As irms Vera, Teresa, Rosa e Regina, repetindo a pose diante do mvel na casa de mame, no Natal de 91

Captulo IX Xod do PapaiEu era a protegida dos meus padrinhos, que no tinham filhos. E era, tambm, o xod do papai. A vida inteira fui xod do meu pai. Como eu era muito desobediente, papai sempre me desafiava. E o desafio do meu pai era um grande estmulo para mim. Eu era totalmente diferente das minhas irms, se bem que uma diferente da outra, mas somos todas muito unidas. A Rosa, sempre bonitona, estudiosa, maternal, uma belssima professora. Teresa, administradora, quieta, cmplice e parceira nas noitadas de viglia regadas a vinho, mame doente, nos repreendendo e ns duas, mais a Formiga, fazendo ligaes para todos os primos madrugada adentro. Regina o furaco branco da famlia: matemtica, organizadssima, obsessiva, s conhecendo para entender. E tem ainda a irm anexa, nossa prima Clia Holtz, filha do Paulo Drago, at hoje minha companheira de performances. Ora somos Papai Noel, ora Super-Tias, de acordo com a ocasio.

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Eu era muito inquieta, curiosa, novidadeira. Adorava imitar todo mundo em casa. Minha personalidade hiperativa provocava a rigidez e a braveza de papai. Quando precisava, ele exercia sua autoridade: usando cinta ou um bom papo. Como eu no ouvia, a cinta era quase sempre necessria. Sempre o escutei dizer: A mais velha cuida da mais nova. Teresa cuida da Rosa, que

Com tia Rosinha no meio, Vera e Clia de Super-Tias

Clia e Vera Holtz

cuida da Vera, que cuida da Regina. Eu brigava com a Regina, ento apanhava. Me lembro de roubar o dinheiro dele. O troco da loja de eletrodomsticos era guardado no quarto dele, em cima do guarda-roupa e lgico que eu sabia. Fingia que estava dormindo, com um olho fechado e outro aberto, enquanto o via guardar os pacotinhos de dinheiro. Quando ele saa, eu subia em cima do guardaroupa, abria o mao de notas e puxava as do meio. Pegava uma nota, duas, sei l quanto era na poca, nem lembro qual era a moeda.

Fui uma criana que apanhou muito. Mame me batia com as mos e com a borracha da panela de presso. Ou com o que tivesse nas mos. Eram surras italianas. Papai era mais oficial: me chamava, com uma voz diferente: Vera Lcia! Quando eu ouvia o Lcia... me trancava no quarto, tirava o cinto e... Adrenalina para que te quero! Minha vingana era contar para todo mundo. Eu ia at o bar do Osmar, na frente da minha casa, subia em cima do balco e levantava a saia para mostrar as marcas da cinta. Olha o que o papai fez em mim! Ainda bem que no tinha nenhum pedfilo por perto.54

Minha histria de pedofilia aconteceu em outra situao. Era muito pequenininha, no me lembro direito, mas fico um pouco emocionada e incomodada com essa histria. Parece que freqentava a casa da minha av um surdo-mudo, um belo dia a minha me estava l e teve uma sensao ruim, saiu me procurando, comeou a gritar o meu nome. Me encontrou na casa de outra tia, em cima de uma mesa, com esse surdomudo tentando tirar a minha roupa. Minha me deu um grito violento e depois contava que tinha tido uma intuio de que algo poderia estar acontecendo com a sua filha. Depois da morte de mame, eu e minhas irms perdemos nossas diferenas e nos fundimos

em um corpo s. Foi um processo lindo, nico, singular, feminino. Somos uma por todas, todas por uma. No sangramos mais. S de saudades de todos os que amamos e partiram.

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Casa de Mongagu, em 1955

Captulo X A Primeira Vez que Vi o MarNos anos 50 a famlia Holtz comprou uma casa em Mongagu, no litoral de So Paulo, em esquema compartilhado. A alemozada era danada: naquela poca ningum pensava em timesharing. Todos usavam a casa, em pocas alternadas. Me lembro da primeira vez que vi o mar, essa geografia sensacional que o mar, que me causou tamanho impacto que acho que mais tarde fui morar no Rio por conta disso. A viagem de ida, de trem, tinha baldeao. Pegvamos o trem em Tatu s trs, quatro horas da manh, e fazamos baldeao em Mayrink e Samarit. A viagem era encantadora, descamos de trem a Serra do Mar, que era a coisa mais linda do mundo ao amanhecer. Era um bando de gente e mame levava tudo que se pode imaginar para comer: bolo seco (cufa), tortinha com recheio de goiabada, tomate com sal, laranja descascada, ovo cozido, sanduichinhos. Mal o trem saa, eu j queria comer o lanche. Gulosa desde pequena. At hoje no posso entrar numa van com mais de uma pessoa que j acho que excurso e o meu esprito ferrovirio comea a se animar.

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Eu aproveitava a viagem longa de trem para socializar. Sumia entre os vages e minha me me encontrava sentada no colo de algum, gesticulando e imitando a pessoa que estivesse na frente. Eu era comunicativa, uma menininha leonina que ningum segurava. Me dava com todo mundo, conversava com todo mundo, imitava todo mundo. Essas coisas eu sei um pouco de ouvir contar e um pouco de lembrana, apesar de ter uma memria pssima. No meu primeiro contato com o mar, ainda pequenininha, entrei na areia pulando com uma perna s, meio mancando na areia fofinha. Nunca tinha visto aquilo. Fui subindo em uma duna de areia branca e de repente apareceu o mar, o horizonte se abriu pra mim. Foi uma viso sublime. Me lembro perfeitamente de Mongagu, de todas as minhas frias na praia de Mongagu. A minha Itapo. At trocvamos, na letra da msica, Itapo por Mongagu: Pas sar uma tarde em Mongagu, ao sol que arde em Mongagu, ouvindo o mar de Mongagu, falar de amor em Mongagu, que cantvamos aos berros pelas ruas. Uma vez, encontrei uma bengala enterrada na areia. Naquele vero, passeei todas as tardes com a bengala, cantando o tema de Bat Masterson. O marido da tia Ignez Fraletti era o tio Miguel.

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Regina, Clia, Tia Tota, Vera, Mariins, Tia Ignez, Z Eduardo, Dido e Bete

O nome todo era Miguel Neto Sacker, um libans lindo, de Djoubael. Usava Quina Petrleo no cabelo. Era o nosso grande gal. Um homem rico, com um carro daqueles: Impala. Viajvamos as oito crianas no banco de trs, ele, mame e tia Ignez no banco da frente. Imagina o que era descer a serra, aquelas curvas da estrada de Santos, ele anunciava: Agora curva!, os oito iam para um lado, Olha a curva!, os oito iam para o outro lado. Ele fumava charuto, adorava vinho, era bonito, o cabelo preto, a pele escura. Um homem alm do seu tempo: alegre, amoral (To das as pessoas tm seus motivos dizia), adorava conviver com os jovens. Tio Miguel me ensinou a gostar de vinhos e de coisas boas.

Meu tio Miguel

A lembrana que guardo dele a de sua chegada nos fins de semana em Mongagu. Ele abria o porta-malas do carro e tinha tanta coisa! Eu, sempre gulosa, me espantava com as frutas imensas, pssegos, ameixas, figos, uvas, lombos de Santa Catarina, garrafes de vinho de Bento Gonalves e Garibaldi, peixes, mariscos Grande tio Miguel! Saudades. Morreu muito cedo. Tia Ignez continua linda.

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Na formatura do curso Normal, com Bebei, em 1970

Captulo XI Pinga com Limo, Pimenta e SerestaMinha vida muita marcada pela convivncia com tios e tias. A infncia em Tatu foi encantadora. S guardei o lado bom: natais maravilhosos, avs maravilhosos, amigos maravilhosos. O casaro de meu av, de 1916, que depois ficou para meu pai, acabou ficando para mim, quando comprei a parte das minhas irms. Ocupa uma esquina, na Rua Jos Bonifcio. A rua do lado a Treze de Fevereiro, onde ficava a casinha de meus pais e a casa da tia Rita e do tio Rolf. Em seguida, vinha a do tio Paulo e da tia Totinha. E depois a da tia Rosinha irm mais velha de papai e do tio Vad, com quem aprendi a gostar de pinga com limo, macarronada com carne moda, pimenta e seresta. No dia de Natal, a gente ia de casa em casa ganhando presentes. Normalmente, envelopinhos cheios de dinheiro. Tia Rosinha era guardalivros do armazm da famlia Vanni. Ela era pititica, devia ter 1,50m de altura. Enrgica, mas super amorosa.63

Tia Rita (O quadro no fundo uma homenagem de tio Rolf, que pintava uma tela a cada aniversrio dela)

E tinha uma mo incrvel para plantar: seu jardim estava sempre florido, principalmente de hortnsias e rosas, como ela. Com ela aprendi datilografia numa pequena Remington e, tambm, como administrar o meu dinheiro. Demorei a usar esse conhecimento porque s comecei a construir um patrimnio pessoal depois dos 40 anos.

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Eliete no colo de Celia, Regina no colo de Bela, Cristininha e Teresa. Na frente, Vera e Rosa no Jardim da casa do Pai Pedro

Captulo XII Caipira com SotaqueOutra figura sensacional da vizinhana era dona Cludia Magaldi, de onde provavelmente eu herdo o sotaque muito carregado. Adorava conviver com ela. Ela era uma multimdia do lar: sabia bordar, costurar, pintar, cozinhar. Morava em um casaro com um grande pomar, que tomava quase todo o quarteiro. Tinha quatro filhos: o Pingo, o Pincer, a Maria Antonieta e o Rubinho. Eu passava divertidas tardes ao lado dela. Ela dizia, com seu sotaque forte: Pinceeeerrrrr... Pega o jornaaarrr... ou Sai do sorrrr Eu adorava a dona Cludia. Queria imit-la. E tambm devia ter alguma dificuldade de linguagem, algum distrbio da fala, ou talvez fosse um caso de timidez velada, mas o fato que ningum entendia o que eu falava. Falava muito rpido e para dentro. Me lembro de j no curso Normal ter ido conversar com minha professora de Pedagogia, Dona Cida Pio e dizer: Noconseguiterminaropranoderla. E ela: O que, Vera? Noconseguiterminaropranoderla. Ela no me entendia porque eu embolava as palavras e dizia arrrrla em vez de aula. Punha erre at onde no tinha.

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Vera aos 9 anos

Corrigi essa dificuldade muito depois, j no Rio de Janeiro, em sete aulas com a fonoaudiloga Glorinha Beuttenmller. Paguei seis e fiquei devendo a stima, porque usei o dinheiro para comemorar a grande descoberta: como tirar o sotaque. As aulas tinham sido oferecidas para mim por um amigo, Srgio Lafitte.

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Silvia, Maria Ignez e Margarida. Na frente, Regina, Vera, Zilda e Maurcio, em Pereiras

Captulo XIII Lembranas de PereirasEm Tatu eu convivia com o relgio, tinha hora para tudo. Em Pereiras eu convivia com o tempo. Tenho tanto de Pereiras dentro de mim! As rvores de mas verdes, as porteiras, o amanhecer, o cu estrelado nas noites frias, os sorrisos cmplices dos primos, os primeiros sonhos nos bancos do jardim, os leiles nas festas de santo, as roupas feitas pelas costureiras, os guardanapos de sacos alvejados e bordados mo, o tradicional sino da igreja da matriz que s 6 horas em ponto tocava a Ave Maria de Gounod. Toda a cidade silenciava. Era a hora de recolher a roupa do varal. Meus tios, tias, primos, primas. Sempre tinha um muro para pular, rvore para subir, rio para pescar, cavalo para galopar, frutas para catar, polenta para mexer, porco para matar, estradas para explorar, bailes para danar, praas para rodar, festas para namorar, varandas para prosear e, antes de dormir, leite com farinha de milho e pedacinhos de goiabada para engordar. Pereiras de Pedro, Vicente, Zeca, Dolores, Pina, Zico, Tana, Rosa, Toninho, Humberto, Mira, Beni, Didi, Geni, Cazuza, Assunta, Luiz, Luizinho

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e Marias, Ignez, Paulo, Terezinha, Vera, Miguel, Jos Carlos, Joana. A italianada, passional, transbordava de generosidade. Meu tio Paulo Fraletti, irmo de minha me, era psiquiatra, poltico, poeta, um enfant terrible, se metia na educao da gente. Ele me ensinava desde pequena a dialtica da vida, do comportamento. Tudo na vida tem dois lados, eles vo te mostrar uma coisa, voc v o que est por trs, ele dizia, eu j comeava a entender. De quem esta poesia? A gente chutava, at acertar (com msica era a mesma coisa). O tio Humberto passava de caminho e buzinava: Estamos indo

Grandes amigos de Tatu: Julinha e sua filha, Wanda, Beatriz, Vera e Rizek

Tia Rita, sobrinhas e sobrinhos-netos, em 91

para Conchas, e l amos ns para Conchas, cantando na carroceria. Pereiras o meu presepinho. De l tambm tirei esse registro tragicmico, da personalidade explosiva dos italianos no trato com a poltica, a religio, a cultura, a educao, a afetividade. Nunca se sabe quem est brigando com quem, quem est com a razo. Essa cultura de Pereiras usei mais tarde para fazer a novela Cabocla, em 2004. Do lado alemo trago o contido, o que no se permite, que me trouxe algumas dificuldades posteriores. Duas de minhas

Meu tio Paulo Fraletti, psiquiatra, poltico, poeta

irms moram em Tatu at hoje, Teresa e Rosa, nunca saram. A Regina mora em Curitiba, mas foi passar uma temporada em Tatu quando minha me faleceu, em setembro de 2004. Ela assumiu a casa da mame essa que agora minha foi para l resolver alguma dvida, alguma dvida que tinha restado com relao famlia. Em 2002, nos meus 50 anos, fiz uma festa de aniversrio em Tatu para 400 convidados, todos da famlia. Esse foi um dia muito especial. Tia Rita, tia Rosa e mame estavam vivas. Convidei todos os Fraletti e todos os Holtz. Apareceram os netos dos meus tios, que queriam me conhecer, mais um primo j com a filha, e a filha j com o filho, trs geraes. Estava uma tarde linda, no faltou quase ningum. S vou repetir uma dessas aos 60 anos. Se agentar esperar. muito bom estarmos todos juntos.

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Electra Concreta, de Gerald Thomas, em 1986

Captulo XIV So Paulo - CapitalSo Paulo entra na histria atravs de uma outra tia, Vera Maria Beltro Fraletti. Tia Vera de Curitiba, vem de uma famlia de produtores de erva-mate, se casou com o Paulo Fraletti e foram morar em So Paulo. Eles tambm so figuras sensacionais na minha vida. Tia Vera foi a primeira pessoa que me alertou de que eu era diferente. Alis, ela se incumbiu de avisar a famlia inteira. At inventou uma maneira de traduzir, de forma que minha me entendesse, a minha peculiaridade. Olha, Terezinha, como se voc tivesse quatro vaquinhas na sua casa. Tem uma que muge diferente: a Vera. Por mais que voc tente, no vai conseguir domla. Cresci achando que era uma vaquinha que mugia diferente. At hoje conservo a fixao pela figura da vaca, tendo colecionado e sido presenteada por muito tempo com objetos em forma de vaca. Sempre fui uma pessoa que dificilmente se apega. Eu no criava vnculo, nem mesmo com a minha me. Ela brigava muito comigo por causa disso. Vera, quero que voc enrole o meu cabelo. Eu no tinha pacincia. S fazia na hora que eu queria, onde eu queria, do jeito que eu queria.

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Prola, de Mauro Rasi, em 1995

Quando estava com vontade, pintava, enrolava, desfiava, arrumava, punha laqu, deixava ela bonitinha. Eu tinha facilidade pra tudo, mas tinha que ser... pra ontem. At hoje, esse negcio de preparar, ritualizar demais, discusses de grupo, trinta reunies, no tenho a menor pacincia. Sempre gostei de decidir tudo em um minuto e de inventar moda. Em Tatu eu adorava usar roupas da minha tia, da minha av, do meu av, s andava de roupa de brech. Do brech da minha famlia. Os Holtz eram ligados em moda e comearam a abrir os meus olhos para isso mame costurava para as filhas, desde as anguas rendadas at os vestidos de organdi. Bem mais tarde, na Bahia, quando conheci os estilistas Glria Coelho e Reinaldo Loureno, j gostava muito de moda. Eles terminaram de me abrir as portas para esse mundo.

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1967, Aniversrio de Marinz: Zilda, Regina, Teresa, Vera, Rosa e Maria Ignez

Captulo XV Programa de RdioBig Voss e Vera Lee era o nome do programa de rdio que eu apresentava na Rdio Difusora, em Tatu, durante o dia. Tocvamos rock e msica de discoteca. noite fazia outro programa, Momento Mariano, um programa religioso que contava as histrias da igreja. Lia os poemas do Michel Quost, de que me lembro at hoje, e dava as notcias: Tal dia na matriz, missa em home nagem a tal pessoa. No considero esse o incio da minha vida profissional, j que no ganhava um tosto para fazer. Na rdio tambm estava Jorge Rizek, amigo meu, que se metia em tudo comigo em Tatu. Rizek era meu parceiro antagnico. Enquanto eu estava assistindo A Praa da Alegria, ele assistia os festivais de msica. Eu adorava Cantinflas, Mazzaropi, Jerry Lewis, ele ouvia os Beatles, e os tropicalistas. Era um pouco mais velho do que eu, da idade da minha irm Rosa. Tinha interesse nas tradies da cidade, nas festas populares, nas comidas tpicas. Mora em Tatu e se dedica a atividades sociais. A minha Tatu uma cidade especial. Tinha um belssimo Carnaval. Tem timos artistas, doceiras,

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seresteiros, o Conservatrio de Msica. Eu podia fazer muitas coisas. Fui at colunista social. Tinha uma coluna chamada O Bico, no jornal do Interact Clube, ligado ao Rotary. Eu era a colunista social, s que ningum sabia que era eu. Eu era o bico, tenho at hoje esses jornais. Fazia fofoca, fulana foi vista entrando no carro de fulano, no sei mais o qu. Quanta bobagem!

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Minha primeira foto artstica no Rio

Captulo XVI Uma Vida sem FilhosNessa poca eu me achava muito estranha. Uma partcula solta no planeta, vindo no sei de onde e indo no sei para onde. Muito intuitiva, sensvel e voltada para o sonho de que algum, em algum momento, ia me levar embora. Tinha a sensao de que eu no era dali. Com 14, 15 anos, j no queria ter filhos. Sentava na soleira da porta e dizia para a nossa empregada, Dona Frana, que ficava horrorizada: No vou ter filho, no. Para a minha me eu falava: De mim a senhora no espere netos. Intu boa parte da minha vida l atrs. Sempre tive isso, esse esprito aventureiro, essa certeza de que tudo d certo desde que voc seja honesta consigo mesma. Eu levanto e vou. Ficou aquela idia da menina que ganha o jogo quando arrisca, que a vida te d de volta quando voc decide enfrentar. Tem que se esforar, estudar e correr o risco. Aquela coisa do Nietzsche: Se voc gosta do abismo, preciso ter asas . O abismo sempre me atraiu. Nunca tive dvida de que ia encontrar aquilo que buscava. Quando sa de Tatu, foi no

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Mapa astral de Vera

esquema t indo. Nem sabia para onde, sabia que estava indo. Tive muita sorte na vida, no sentido de ter sido rpida para perceber, na hora que aparecia algo que me interessava: Isso pra mim. No tenho ncoras, nunca tive. S tinha um nico pensamento: descobrir onde eu ia realmente amarrar meu burro. Vim parar no Rio de Janeiro. Como um poema de Vicente Huidobro: Los cuatro puntos cardinales son tres: el norte y el sur, que tenho tatuado nas costas.

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Tempos de EAD

Captulo XVII Primeiras PlatiasSe meu primeiro contato com o pblico foi como locutora de rdio, meu encontro com pblico ao vivo foi no teatrinho da Casa Pio X, anexo igreja da matriz, em um leilo que realizou uma disputa jovens versus coroas, para ver quem conseguia melhores resultados. Um coroa leiloeiro competia comigo, a jovem leiloeira. Eu ganhei. Cheia de animao, eu falava: Vamos chacoalhar os bolsos, minha gente! Ei voc, que est me olhando!, esse tipo de coisa. J estava testando minha capacidade de improvisao. Promovia bailes, fazia os cartazes anunciando as festas, pintava camisetas com desenhos de uma menininha hippie, que todo mundo desenhava na poca, com os cabelos enrolados, florzinhas e coraezinhos. Fizemos um baile hippie no clube tatuiense, do qual meu pai era diretor. Espalhamos os smbolos de paz e amor pelo clube inteiro. Decoramos a entrada com um vaso sanitrio cheio de flores, outra imagem comum na poca. Papai quase me matou quando viu o clube todo enfeitado dessa forma. Deixou-me de castigo.

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Eu j tinha enrolado o cabelo inteiro com papelote, mandado fazer uma roupa com mangas bufantes, um palmo de punho. Eu ia abrir o baile hippie com o grito primal, j tinha at ensaiado o grito. Ele me proibiu de ir. Adivinha o que eu fiz? Vesti a roupa, soltei os papelotes e pulei a janela. Fui pro clube, cheguei linda l, dei o grito, o baile comeou, eu voltei quietinha pra casa e fui dormir. No outro dia, papai descobriu e a fez valer sua autoridade. Afinal, ele era o presidente do clube e o meu pai.

Fabola, Maria Clia (Cec) e eu, As Africanas do bloco Os Mascarados, no Carnaval de Salvador

No Carnaval eu, Rizek, Jos Galvo presidente da comisso Paulo Vagalume, Corintinha, Julinha, Celina, Elosa, Beatriz, Rosa e grande elenco fazamos de tudo: carro alegrico, fantasias, grupos de rua, inventamos uma escola de samba chamada Vai Quem Quer, que saa na segundafeira. No Vai Quem Quer ns nos fantasiamos de tudo o que se pode imaginar. Fui at de criado-mudo, a Rosa de guarda-roupa, com um cabide cheio de roupas penduradas. Um ano fomos de palmeirinhas: peguei os galhos das palmeiras da mame e a gente usou uma faixa para amarr-los ao corpo. E tinha melancia no pescoo, recheada com bebida. Eu adorava beber, adorava ficar de porre. Adorava me atordoar e fingir que era outra pessoa. O Carnaval era um timo pretexto e sa de tudo, de holandesa, de astronauta, de vampiro, de domin, uma roupona grande com capuz, ningum descobria quem a gente era. O domin, depois, foi proibido de ser usado no carnaval pelo regime militar. Fui rainha do Carnaval, fui rainha da primavera em Pereiras. Corri atrs das galinhas, de madrugada, na sada do baile, para fazer arroz com frango. Eu estava de rainha, de vestido longo brocado, segurei o vestido aqui em cima para correr.

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Carnaval uma histria sensacional, eu adoro. Tem um perodo grande na minha vida em que no gostava, depois resgatei essa paixo numa temporada que passei em Salvador, uma fase importantssima na minha vida, que emenda duas pontas que estavam soltas. Durante muito tempo no Rio de Janeiro eu fiquei meio quieta, no tinha dinheiro, no tinha nada, no conhecia nada, os valores eram outros. A dcada de 80 ficou nebulosa para mim. Meu cunhado Valdir at me deu um livro sobre esse perodo porque ele acha engraado que eu no me lembre de nada. No sei quem tocava, quem cantava, uma sombra na minha memria. S fiz teatro, teatro e teatro.

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Captulo XVIII Tempos UniversitriosEntrei na faculdade de Desenho e Artes Plsticas em Tatu, a Faficile - Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras. Eu queria mesmo era ir para o Objetivo, em So Paulo, no prdio da TV Gazeta, na Avenida Paulista. Falei pro meu pai que ia embora, ele disse: V. Cheguei em So Paulo e fui at a Paulista, parei na frente do Objetivo, do outro lado da rua, vi aquela escadaria e no consegui cruzar a avenida. Para uma menina vinda do interior, aquela escada era faranica. s vezes me vejo diante de uma escadaria como aquela, como a do hotel Hyatt, em Beijin, e me volta a mesma sensao. Eu nunca tinha visto uma escada daquele tamanho. Olhei para ela do outro lado da avenida e nem atravessei, imagina se eu ia conseguir subir. Fiquei parada no tinha condies de fazer aquilo; no era para mim. Por ora. Voltei pra Tatu, entrei na faculdade, era uma excelente aluna e no segundo ano j estava dando aulas de Geometria Descritiva no Instituto de Educao Sud Menucci, em Piracicaba. No incio, ia e voltava todos os dias. Eu era muito nova e no tinha cara de professora. Pulava a janela para entrar pelo diretrio do colgio. De farra.

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Todo mundo pensava que eu era aluna. Eu vestia uns macaces que comprava em So Paulo, na loja Peter, que eram o mximo na poca. Depois dei aula num outro colgio, chamado Jernimo Gallo, tambm em Piracicaba, e num outro, Cristvo Colombo. Sempre dava um jeito de arranjar o meu dinheirinho. Em Tatu dava aula de piano pra crianada. Tinha uma letra boa tio Rolf me ensinou e fazia lista de preos para as festas, tabelas de preos para pendurar no bar e no clube. Fazia capas de trabalhos escolares, com colagem. Tambm ia para Pereiras vender

Monitora do vestibular de 1972 na Faficile, Tatu

os culos da tica Peixoto. At hoje ganho presente da tica Peixoto, meus culos so todos de l. Sempre tinha dinheiro, negociava aqui e ali, investia na minha independncia, comprava minhas prprias roupas. Aula sempre foi uma coisa muito presente na minha vida. Eu experimentava coisas. O que eu no sabia, eu inventava. Como quando fui lecionar em um curso de magistrio no perodo noturno, destinado a professores com diploma do curso superior. Eles no perdiam uma! Eu dava as aulas normais do currculo e tambm colocava Caetano para eles ouvirem, eles tinham que danar, tinham que aprender todas as danas brasileiras. Eu era uma anarquista didtica.

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Colegas de faculdade: Nancy Jacob Hessel, Beatriz Borges e Vera, em 1971

Captulo XIX Turma da FaculdadeBeatriz Borges, Nancy Jacob Hessel, Bernadete, Jos Anlio, eram grandes amigos da poca da faculdade. Eu no saa da casa da Nancy, ela adorava ouvir rdio, ficvamos ouvindo rdio o dia inteiro. O pai era dono do bar do Clube Recreativo. Me lembro que a Nancy tinha o sono muito pesado e, para no perder a hora, colocava o despertador dentro da bacia, aquilo virava uma concha acstica, fazia um barulho e assim ela acordava. Era tudo diferente na casa dela. Sempre me encantou a rapidez com que sua me, Carla, fazia arroz na panela de presso. Nancy se casou com um holands e mudou para Holambra. Eu no desgrudava da Nancy e da Beatriz, a gente andava sempre juntas, adorvamos cantar as msicas do Noel e da coleo Msica Popular Brasileira, que comprvamos na banca de jornal. Adorei os anos de faculdade: chantageava a Beatriz para me acompanhar aos bailes fora de Tatu, fui presidente do Diretrio Acadmico. Ficava mais no pingue-pongue do que dentro da sala de aula.

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Medeiamaterial cena final

Em Prola

Captulo XX Teatro, Eu?No comeo da dcada de 70, em Piracicaba, descobri o teatro atravs de um curso de expresso corporal, ministrado por dois bailarinos do Ballet Stagium, de So Paulo. Era o auge. O Milton Carneiro era um dos bailarinos e o reencontrei depois, anos mais tarde, em Campinas. Queria fazer o curso, mas a timidez me impedia. ngela Gagliardi, minha companheira de repblica e tambm tatuiense que era bem mais despachada do que eu, foi quem deu o empurro para que eu entrasse na sala. Assistente social, conhecia todo mundo, e pela primeira vez eu pedi ajuda. Ela foi comigo. Me levou at l, entrou e disse: Vim fazer a inscri o, a Vera quer fazer o curso. Me acompanhou na primeira aula e me jogou l dentro, eu morrendo de vergonha, meio chorando por dentro. Fiz aquele curso, com muita insegurana, mas fiz. Tinha muita coisa de expresso corporal, fazer rvore, imitar bicho. E ao mesmo tempo voc tinha de inventar uma histria. Numa dessas aulas um dos bailarinos me disse: Vera, voc tem muito jeito pra teatro. P, aquilo pra mim foi a mesma coisa que bater um gongo chins. Teatro...

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Nunca tinha passado pela minha cabea. Tinha feito aquele teatrinho em Tatu, mas no me despertou tanto interesse. Pensei: Agora vou experimentar esse troo a de teatro. Quando chegou janeiro, eu estava de frias em So Paulo e fiz inscrio na USP para a EAD, a Escola de Arte Dramtica. O Rizek foi comigo, porque eu no sabia onde era a USP, ele trabalhava em So Paulo j. Chovia torrencialmente quando ele me levou, achar a EAD foi uma novela, era um anexo da ECA (Escola de Comunicao e Artes), num barraco na frente da Geologia. Finalmente encontramos, ningum enxergava nada debaixo daquela chuva, ns chegamos atrasados e as inscries j estavam encerradas. Um funcionrio da EAD, Amadeu, aceitou minha inscrio para o vestibular da escola. Na pr-seleo, eram 200 pessoas para 40 vagas. Esses 40 selecionados faziam um estgio e passavam por outro processo de seleo que eliminava mais 20. Os 20 restantes faziam o curso. O processo de seleo era uma semana de testes, que terminavam com voc apresentando uma cena para um corpo de jurados. Para o teste escrito, o texto escolhido era Marta, a rvore e o Relgio, do Jorge de Andrade, de que eu nunca tinha ouvido falar. S tinha assistido uma pea de teatro at ento, em So Paulo, Se Correr o

Tempo Quente na Floresta Azul, com Teresa Frota

Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come, do Oduvaldo Vianna Filho, com a Miriam Muniz, que depois, por coincidncia, estaria na minha banca na EAD. O Valdir, meu cunhado, formado em Literatura, ento eu pedi: Valdir, leia o livro e me d um resumo porque eu vou decorar. Ele j conhecia a obra e me deu uma aula inesquecvel. Foi o que me salvou. De Portugus eu sabia umas coisinhas, no curso de voz me dei bem, sempre tive uma voz potente fui capit do time de voleibol da escola.

Passei com a professora de voz Mylene Pacheco, fiz um estgio grande de expresso corporal, improvisao, dana, nossa, que maravilha. Para mim, aquela semana na EAD foi sensacional. O purgatrio, porque o paraso foi depois. Fui da turma de 1973. A prova final era uma improvisao sobre um tema qualquer. Voc ganhava alguns objetos e

Meu cunhado Valdir

tinha de us-los em cena, de improviso. Deramme uma lata e um pincel. Quem estava na banca era o Alberto Guzik, a Miriam Muniz, e outros professores da escola na poca. O Guzik me disse: Voc tem nome de atriz que vai ganhar prmio, Vera Holtz.

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Um Certo Hamlet - Rainha Gertrud

Captulo XXI O Teste da EADTinha na mo o pincel e uma latinha de tinta, vazia. Sem saber nada, entrei de baliza, com a lata na cabea e o pincelzinho de baqueta, Tchar, Tchararatchtchtch! De repente entendi tudo, me senti localizada. Fiz um crculo, cruzei todo o palco, transformei a baqueta em microfone: E agora, com vocs, o Grande Circo de Tatu! Virei um leo, botei a pata em cima da lata e o pincel era a minha cauda. Eu urrava: Rrrrrrrrrrrrr. Fiz todas as cenas do circo, vrios animais, o atirador de facas, tremendo por dentro, num estado de adrenalina incrvel. S eu e minha cabea, minha imaginao, meu futuro. Imagina s uma menina represada no interior de So Paulo. Quando abriu a porteira, ela veio muito mais feroz do que uma boiada inteira. Ou uma represa, que de repente v abertas as suas comportas. um Nigara, Foz do Iguau, vem com tudo, aquela energia no tem onde parar. Tem de deixar a loucura tomar conta mesmo, porque na nossa profisso voc no pode perceber muita coisa, porque, se percebe, interrompe o processo artstico e no segue em frente. Tem

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que ter uma cegueira inicial. Se voc enxergar, acha que vai optar por uma profisso que no tem mercado? Quando terminou minha cena, lembro que a Miriam encontrou comigo e disse: Voc louca mesmo, voc um bicho de teatro, um bicho louco. Nunca esqueci esse comentrio nem a sua voz rouca. Entrei na EAD sem saber o que era. Descobri um mundo novo, tudo era muito novo. Tinha um sabor diferente na minha vida, sentia uma espcie de inquietao permanente. Fui ver tudo o que tinha de teatro: leituras, todos os festivais, coisas lindas, Peter Brooke, Bob Wilson, Vitor Garcia, tudo dentro do teatro eu fui aprender a fazer. Na turma um ano na minha frente estavam o Paulo Betti e a Eliane Giardini, Elizabeth Savalla e Neusa Maria Faro so minhas contemporneas. Eu morava numa repblica na Frei Caneca com mais sete mulheres. Depois ns alugamos um apartamento em um predinho na Rua Augusta. Fiquei dois anos em So Paulo, at o final do segundo ano da EAD. A fui embora.

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Nelson Carega, Anabel Albernaz, Marshall Netherland, Vera e Fabio Pilar. Theatro Musical Brazileiro

Captulo XXII Dias de PolticaEssa poca foi marcada por grande turbulncia poltica, o ano em que morreu Vladimir Herzog, professor da ECA. Todos os alunos foram ao seu enterro. A realidade me sacudiu. A USP vivia fechada e eu fechada l dentro. Isso j no me agradava mais. Queria ganhar dinheiro e fui dar aula no Colgio Anchieta, ali na Consolao, mas perdia a hora, no conseguia acordar. As aulas comeavam s oito da manh, eles mandavam o bedel me buscar em casa. Ele descia e gritava: Vera! Eu no agentava levantar, tinha ficado at tarde treinando esgrima em casa com pau de vassoura, j estava em outro mundo. No queria mais aquilo e consegui um emprego pertinho da USP, no IPT (Instituto de Pesquisas Tecnolgicas), como desenhista. Eu trabalhava o dia inteiro no IPT desenhando perfis geolgicos, mapas geolgicos, fiquei dois anos ali. Quando terminava o trabalho, ia a p at a EAD, chegava s sete da noite, e voltava para casa s onze. s vezes ia embora a p, porque no tinha dinheiro para tomar nibus.

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Caminhava da USP at a Rua Augusta, saa de l andando, pegava a Cidade Jardim, atravessava a ponte, os cachorros latindo. No to longe assim! Andava com uma poeta, a Cristina Gianesine, que ficava o dia inteiro falando do Fernando Pessoa.

Quem Tem Medo de Gertrud Stein, com Antnio Abujamra

Meu mundo foi ficando mais louco, conheci pessoas doidas, e cada vez mais doidas delirantes. Misturei-me com a cidade, descobri o submundo da metrpole. Fui perdendo a minha identidade e meu desejo de partir voltou. Lembro-me bem da morte do Herzog, me lembro de pensar no que os homens so capazes de fazer uns para os outros, um pouco da minha conscincia poltica comea a, no enterro do Herzog. Ele era judeu, teve a lavagem do corpo, que foi embrulhado e enterrado sobre a terra, essas imagens ficaram registradas como se fossem um filme na minha cabea. Eu me lembro da Clarice, a viva, que estava l. Nesse momento desisti da EAD e fui embora para o Rio.

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Reencontro com Santo Bertin em Braslia, durante a turn de Prola

Captulo XXIII Rio de JaneiroAt ento, s conhecia o mundo atravs dos livros de capa dura ou das aulas de geografia. Quando me descobri, estava radiante, descendo a Rua Baro de Guaratiba, no Catete, dona do meu destino: sem horrios, sobrenomes, desconhecida. E o Sol, o mar, o carioca com o seu chiado, a natureza recortando o horizonte. Eu tinha 23 anos. Que loucura, n? Nem terminei a EAD e um gelogo do IPT, de Tatu, o Santo Bertin, me ajudou a arrumar emprego na Engevix, empresa de engenharia. Perguntei ao Santo se no teria um trabalhinho para mim no Rio e ele me disse que, por coincidncia, estavam precisando de desenhistas. E ainda grifou: Voc tem certeza de que quer ir morar no Rio? Fui para o Rio sem falar para ningum. Fechei o contrato na Engevix em dezembro e no dia 5 de janeiro de 1976, me apresentei para trabalhar. Tinha estado no Rio um ano antes, em 1975, para participar do festival de teatro infantil em Arcozelo. A pea era Tribob City, de Maria Clara Machado. Eu era Maria Belezoca.115

Ensaio do Theatro Musical Brazileiro, com Luiz Antonio M. Correa (poca 1860-1915)

O Edwin Luisi estava no elenco. A produo nos levou para conhecer o Rio e eu me lembro at hoje que fomos a Copacabana e descemos na Rua Xavier da Silveira. Atravessei a avenida e fui at o mar. Parei e mentalizei: daqui a um ano estarei morando nesta cidade. Cuidado com o que voc pensa diante do mar.

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Medeiamaterial, Salvador

Captulo XXIV Casa do EstudanteCheguei ao Rio e no tinha onde ficar. Me lembrei da Leni, secretria do Paschoal Carlos Magno, que tinha conhecido em Arcozelo. Ela tomava conta de um anexo da Casa do Estudante do Brasil, associada Federao Internacional dos Albergues da Juventude. Fiquei sabendo recentemente, pelo atual presidente da Casa, que durou muito pouco tempo. O tal anexo ficava na Rua Baro de Guaratiba, no Catete, atrs do Hotel Glria. Tem uma delegacia, a 13a, uns botequins, e numa curva grande tinha uma casa antiga, em cima de uma pedra, com janelas gigantescas. Essa foi minha primeira residncia no Rio. Deitada na minha cama, pelos janeles, eu podia ver o Cristo. A partir da, tudo novidade. A Leni me deixou morar nessa casa, o que no era permitido, sua funo era receber estudantes estrangeiros. Mas ela aceitou que eu e Maria, uma japonesa, ficssemos morando ali. No conhecia a Maria ainda, mas nos tornamos grandes amigas, ela ficou comigo muito tempo. Cheguei casa e no tinha mais ningum, deitei numa cama beliche e dormi. Acordei com uma mozinha assim: Voc que de Tatu? Eu falei: Sou.

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Tambm sou do interior, meu nome Maria. Eu falei: Ih, Maria, ns viemos pra arrasar! Levantamos e decidimos ir para a praia. Estvamos descendo a rua quando de repente, pas-

Frederico Holtz, o tio Fred

sando em frente a um botequim, ouo uma voz: Vera? O que voc est fazendo aqui, menina? Era meu tio Fred, Frederico Holtz, irmo de papai, que morava na Rua Baro de Guaratiba e eu no sabia, olha o que o destino. Tio Fred era outro tio maravilhoso, sempre foi muito parecido comigo, tinha fases em que ele desaparecia, passava anos sumido da famlia. Trabalhava na Casa da Moeda e chegava em Tatu com tubos de moedas, jogava moeda para todo mundo, lavava o bar com Seven Up, era uma farra. E imagina ele ali, me esperando na rua, em pleno Rio de Janeiro! Fui tomar chope com ele, comeamos a beber juntos, eu, ele e a Maria. Minha vida com tio Fred no Rio era a cada dia em um bar do Catete. s vezes acho que fui resgatar o meu tio. Levei ele embora do Rio alguns anos depois. Era um tremendo cervejeiro e eu o devolvi a Tatu. Morei em tudo quanto lugar no Rio de Janeiro. Do Albergue da Casa do Estudante, Maria e eu nos mudamos para uma penso atrs do Caneco, na casa de uma nordestina. Foi a primeira vez que comecei a ter convvio com a cultura nordestina, a gente se assustava porque ela s comia macarro com farinha e ovo estalado em cima, todo dia! E tinha caf preto,

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ela tomava caf e comia isso a. A gente achava aquilo muito estranho. Ah, que saudades eu sinto da Maria! Morreu cedo, vtima de uma depresso, doena de que no se tinha muito conhecimento na poca. Era uma mulher do interior de So Paulo, como eu, e tinha vindo estudar, mudar o rumo da sua vida. Ela teve uma carreira ascendente, se formou em Bioqumica, trabalhou com silicone at virar chefe de um laboratrio de prteses. Venceu. Chegou a namorar um conhecido ator carioca. Foi com ele para Nova York e voltou muito feliz, mas trouxe na bagagem os primeiros sinais da doena que a levou. Ela cometeu suicdio.

Liane Lazoski no Central Park, NY

Captulo XXV Do Rio para Nova YorkNessa poca entra na minha vida um personagem de grande importncia afetiva: Liane Lazoski. Aquela Vera caipira, extrovertida, intuitiva, solar, encontra o seu contraponto: Liane. Jovem, executiva, bilnge, taqugrafa, tradutora, assessora do presidente de uma multinacional e, alm disso tudo, uma carioca da Urca. Viramos uma dupla inusitada. Na noite em que nos conhecemos, Liane estava apaixonada, secretamente. O objeto do seu desejo ia chegar de Nova York pela manh. Ela estava em dvida se devia ir busclo. Estvamos numa festa de gente que no conhecamos, cada uma de ns levada por pessoas que tambm no conhecamos bem. Msica alta, falao e, no meio da confuso, ela me conta tudo. Para qu? Antes do amanhecer, estvamos dentro de um fresco, cantando bossa-nova aos berros, com uma nota de um baro no bolso, enormes culos escuros no rosto, saltos altssimos e o corao aos pulos, rumo ao Galeo. Vamos fazer a histria!123

Dias Felizes, Braslia

Ela me mostrou um outro Rio... e Nova York. Com ela fiz minha primeira viagem internacional, em 1992. Uma festa! Liane e Nova York seguem comigo at hoje. Nossa amizade tem 28 anos. Uso a memria dela enquanto teo a minha biografia.

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Mauro Rasi e Vera na festa de Prola, no Copacabana Palace

Captulo XXVI Carlos Alberto Gonalves LeiteLogo que cheguei Engevix, conheci o Carlinhos gelogo paulista que trabalhava l e me repassava tarefas de elaborao de desenhos geotcnicos do vertedouro da hidreltrica de Itaipu Alto. Magro, de rosto encovado e cabelos longos, um tipo bonito de homem. Ele tambm passava por transformaes pessoais, retornava ao Brasil depois de viver sete anos no Chile e Equador como exilado poltico. Eu e Carlos nos apaixonamos de forma arrebatadora e, como toda paixo, imediata. Na dinmica de nossas modificaes, deixamos de navegar junto terra e nos lanamos ao mar, como fizemos numa madrugada nas guas de Copacabana, tirando somente os sapatos. Como escapar daquele envolvimento amoroso se convivamos cinco dias da semana, na mesma sala, em torno dos mesmos desenhos geolgicos? Acabamos por morar juntos. Primeiro em Laranjeiras e depois na Tijuca. Tivemos um bom tempo de vida em comum. Carlos ampliou meus conhecimentos sobre poltica e ele prprio: a sua priso pelo famigerado127

DOPS, o significado da ditadura, de como ela afetava nossas vidas e a atividade cultural, e a necessidade de alcanar a democracia em eleies livres e diretas. Tambm falvamos dos acontecimentos em pases onde ele esteve exilado, como o governo de Salvador Allende e o golpe de Pinochet, no Chile. Mas nossa vida tambm tinha atividades mais triviais. Ensaios de escola de samba, botequins na Lapa e em Santa Teresa, noitadas na gafieira Elite, passeios pela Floresta da Tijuca e Pedra Bonita, escapadas para as praias ento ermas e distantes: Recreio dos Bandeirantes, Paquet, Grumari e Guaratiba, ou Itacoatiara, em Niteri. Fiquei muito mal quando acabei com o Carlos. Separei-me, comprei um pianinho e fui morar em outra vaga de penso, ali na Dias Ferreira, muito encantadora, no Leblon. Era eu, um colcho, a caminha e o pianinho. Aquilo no prestou. No d para contar o que era o Baixo Leblon no final dos anos 70. Aquela moada da PUC, o pessoal do movimento estudantil. Trinta anos depois, num dos vrios encontros que tivemos, Carlos me disse que tambm sofreu muito com a nossa separao e que a entende como o desfecho natural das nossas buscas por transformaes pessoais.

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Ensaio da cena final da novela Que Rei Sou Eu, com Jorge Fernando

Com Otvio Augusto, no filme Bendito Fruto

Captulo XXVII Resgate da ArteRetomei o piano, a primeira forma de arte que conheci. Estava precisando me resgatar, me reaproximar de mim. Acho que o piano o meu retrato, meu porta-retrato. Ainda hoje tenho um piano na sala de casa, preciso da proximidade com esse instrumento, mesmo que no o abra. Ento conheci Felcia, professora de teoria e solfejo na Pr-Arte, em Laranjeiras, onde fui estudar piano com outra professora, chamada Salom. Felcia me mandou de volta para o teatro. Inscrevi-me na UniRio e voltei a estudar. No conhecia outra forma de voltar a fazer teatro que no fosse a faculdade. Na faculdade tinha o meu grupo, enfim. Fazamos leituras de textos, participei de vrias montagens, j estava me sentindo atriz. Foi a que conheci meu primeiro Luiz: Luiz Carlos Moraes, aluno do curso de direo, ramos todas apaixonadas por ele. Um homem charmoso, com inteligncia brilhante. Mais tarde, conheci o segundo: Luiz Antnio Barcos, meu diretor musical. E depois ainda veio o terceiro: Luiz Antonio Martinez Correa, meu padrinho artstico. Essas luzes todas se apagaram, e com elas tantas obras que poderiam estar sendo criadas.

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Rasga Corao, 1979

Captulo XXVIII Rasga CoraoEstava na escola ainda quando, em 1979, o Z Renato abriu testes para o coro de Rasga Cora o, do Oduvaldo Vianna Filho. Dbora Fontes, que minha amiga at hoje, era minha colega do curso de teatro na Uni-Rio e morvamos juntas no Jardim Botnico. Ela me incentivou a fazer o teste. Eu falei: Ai, ser, Dbora? Ns fomos. O Z Renato avaliava as pessoas por turmas, porque tinha que ter um gordinho, um magrinho, um compridinho, ento ele ia testando os grupos de acordo com o tipo fsico. Botava a turma l, mandava cantar, danar, sei l o que. Passei no teste. Ao pegar o elevador, prestei ateno em um gordinho. Sempre tive mania de querer adivinhar o futuro. Olhei para ele e pensei: Vou namorar esse gordinho. Quem era ele? Guilherme Karam. H anos o Guilherme conversa comigo usando o sotaque caipira, quando no relembra frases inteiras que eu teria dito para ele, por exemplo: Eu quero ser atriz, fio, usando a lngua presa.

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O protagonista do Rasga Corao era Raul Cortez, e tinha Luclia Santos, Raul Cortez, Ary Fontoura, Snia Guedes, Antnio Petrin, um elenco. Foi a primeira pea liberada depois da censura. O Vianinha, j doente, ditou o texto pro Z Renato. O Vianna morreu e o Z ficou com os direitos da pea, era uma coisa aguardadssima. E, surpreendentemente, ns duas passamos no teste. A comea minha vida no teatro profissional, com carteira assinada. A partir do momento em que entro no coro do Rasga, o resto do mundo deixa de me interessar: era s teatro, teatro, teatro. No importa minha vida pessoal, onde vou morar, onde no vou morar, eu fiquei s na caixa preta. E foram dois anos de pura alegria. Tinha experincia zero de palco, os dois anos na EAD me deram noes importantes da tica da profisso, mas sa no final do segundo ano, quando comeam as prticas de montagem. Tambm no sei se queria entrar no palco logo, acho que queria conhecer o mundo do teatro, meus interesses no eram especificamente relacionados interpretao. Hoje sim, mas na poca eu queria saber de cenografia, iluminao, figurino, aderearia, gerenciamento, administrao. Ficava xeretando os figurinos da Marlia Carneiro. A gente usava

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peas originais dos teatros de revista do Cassino da Urca, roupas inteirinhas bordadas chegavam minha mo e eu ficava deslumbrada. Uma das minhas saias do Rasga Corao pesava sei l quantos quilos. Os turbantes originais da revista, as lantejoulas, os bordados, rebordados, aquelas Carmens Mirandas gigantescas. Eu no queria saber de mais nada, s queria ficar l. A nica coisa que eu sabia era que no sabia nada de prtica. Era isso o que me interessava no momento.

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Qualquer Nota, com Stela Miranda, 1987

Captulo XXIX Crnica da Comdia CotidianaNo segundo ano do Rasga Corao, fiz uma pea infantil com o Grupo Tapa, Tempo Quente na Floresta Azul, onde conheci Teresa Frota, outra amiga carioca, de Copacabana. Dali fiz outra pea infantil, o musical Queridos Monstrinhos, onde fui indicada para um prmio. Fazamos grandes parcerias, cada amigo que aparecia virava uma vivncia importante. Com a Dbora Fontes tive uma experincia muito bacana, depois reencontrei a Wilma dos Santos, que fez Escola de Arte Dramtica comigo, que at hoje o meu tormento. Esbarrei com ela na praia e ela veio morar comigo e com a Dbora. A comea uma fase engraadssima, porque a Wilma uma palhaa. Ns duas aprontvamos tontices cotidianas. Tinha a maluquice da falta de dinheiro, eu ganhava salrio mnimo, sei l, no Rasga. Ento sa da casa da Dbora e fui morar com a Wilma numa outra casa, no Humait, e continuamos sem ter como pagar. Ento aterrissamos na Gvea, num apartamento da irm dela, Maria Vitria, que estava venda. Ela nos disse: Posso emprestar para vocs, mas estou vendendo. No tinha nada no

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apartamento e ns dormamos vestidas, porque nos finais de semana s 8 horas da manh j tinha gente querendo ver o imvel. Wilma herdava belssimas roupas da Maria Vitria, uma mais bonita que a outra. Lembro-me de um vestido de plush, cor-de-rosa, tomaraque-caia. Era a moda do tomara-que-caia, eu no tirava esse vestido. Inclusive era timo para dormir, porque no amassava.

O apartamento tinha umas colchas lindas, era muito chique. A gente chegava em casa s 5 ou 6 da manh, entrava embaixo da colcha e dormia. s 8 da manh tocava a campainha. Ns puxvamos as colchas e botvamos culos escuros para receber os compradores. A luz e o gs do apartamento estavam desligados. Nossas comidinhas eram banana e bolachas creamcracker. Uma dieta rigorosssima. Eu e Wilma no podamos descer com o lixo, porque ningum podia saber que estvamos vivendo l dentro. Do lado do prdio tinha um terreno baldio, ns rodvamos o lixo at ele sair voando pela janela e aterrissar no terreno. O dinheiro s dava para pagar o txi e o chope, porque a gente no abria mo dos bares do Baixo Leblon e nem do txi. O Baixo Leblon era povoado de poetas, bomios, msicos, artistas, filsofos, pensadores. Nessa poca conheci um rapaz chamado Srgio Lafitte, que me disse: Voc no quer perder esse sotaque, Vera? Eu no tinha idia de que isso fosse possvel e ele me falou de uma tima professora de fonoaudiologia, a Glorinha Beuttenmller, e se ofereceu para me pagar sete aulas. Aprendi a trabalhar com o meu instrumento vocal, a vibrao que sai de dentro, a projeo

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e articulao dos sons. Para corrigir o sotaque, obviamente, tinha que fazer muito exerccio. Um deles era ARERIRORUR. Onde a lngua enrolava para trs, eu tinha que aprender a fazer o som diferente, repousando a lngua e tocando na papila, suavemente. Alm do AR tinha o ORA, do agora. ARA, ERA, IRA, ORA, URA. Em seis aulas entendi o que ela queria dizer, por isso mesmo fui na stima aula e no paguei, usei o dinheiro para comemorar!

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Captulo XXX A Carteira, a Bunda e a SopaFiquei um tempo trabalhando com o Z Renato e sempre gostei de aumentar a minha renda. Como meu salrio devia ser bem pequenininho no Rasga Corao, arrumei maneiras de ganhar um pouco mais. Em uma cena, uma atriz entrava nua, de costas, s de meias e cinta-liga. Pedi pro Z me deixar fazer a cena e aumentar o meu salrio porque, afinal, eu ia mostrar a bunda. Tinha tambm uma sopa que era servida para o elenco entre as sesses, eu passei a preparar a sopa. Fazamos duas apresentaes do espetculo, uma no sbado e outra no domingo. Passava no supermercado na ida para o teatro e comprava tudo. Entre uma entrada e outra em cena no teatro Villa-Lobos, corria l pra cima, cortava os legumes, cortava a carne, temperava a sopa e colocava a panela no fogo, era um negcio imenso, para um monte de gente. Quando terminava a pea, uma hora e meia depois, a sopa estava quente, pronta para servir com pozinho. E era mais uma graninha que eu levava. Tinha trs salrios: da carteira, da bunda e da sopa. Lgico que tudo isso contribuiu para alimentar um folclore em torno de mim, mas acho que a

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gente mesmo faz o prprio folclore. Porque era divertido, eu me divertia com aquilo tudo, e fazia a sopa com capacidade incrvel. Imagina voc estar em cena, de figurino pesado, maquiagem carregada, cantando para a platia e pensando na cenoura que tinha que cortar com rapidez! Hoje no cozinho nada, mas sopa eu sei fazer.

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Captulo XXXI Cursos e Cais cursosEstudei muito. Fiz aulas de canto lrico com o Srgio Ferreira, que era do coro do Teatro Municipal, com a cantora Alade Briani, a dona Alade. Depois fui para Alda Pereira Pinto, tive aula com o Pep Castro Neves, Maria Lcia Valado e, por mais tempo ainda, Carol McDavid. Tinha feito dico com a Mylene Pacheco l na EAD, naquela poca, a Mylene me dava aula particular na casa dela. Depois vieram Glorinha Beuttenmller, Ana Frota. Ana foi bacana porque falou assim: No perca seu sotaque. Muitos anos depois, Roberto Frota, seu ex-marido, faria o namorado da Santana na novela Mulheres Apaixonadas. Mylene descobriu meu potencial vocal, Glorinha me ensinou a diminuir o sotaque. E Ana disse: Seja voc mes ma, quando voc quiser, tira o sotaque, quando voc no quiser, no tira. Mas no perca a sua identidade. Todas essas pessoas me protegeram um pouco. No posso deixar de pensar nelas com gratido. Obrigada. Ainda fiz jazz com o Cludio Tovar, com a Ndia Nardini, alongamento com a professora Rosane Maia, Antonio Negreiro e Bianca Marinho com143

quem sigo at hoje , bal clssico com a Maria Luiza Noronha. Fiz interpretao com Antonio Mercado. Participei de seminrios e ciclos de debates. No perdia nenhuma oportunidade de matar minha curiosidade na rea teatral.

Equipe e elenco original da Prola, em 1995

Captulo XXXII Na Mesa com o RaulOutra pessoa muito importante foi o Raul Cortez. No Rasga Corao eu consegui mais um salrio, como sua secretria particular. Alm de tudo o que j contei, ainda ajudava o Raul a decorar os textos da novela gua Viva. Ento, quando acabava o Rasga, amos para a casa do Raul, jantvamos, era uma delcia. Ele era casado com a Tnia Caldas, linda, linda. Ela tinha sido modelo, era uma bela mulher. A Tnia, as coisas da Tnia, tudo era lindo. Eu j tinha percebido que gostava de design e decorao. Via aquele ambiente refinado e ouvia uma vozinha: Opa! por aqui que eu quero ir, aqui que quero chegar. Tinha pouco dinheiro, ento jantar no Raul era demais. Eu j estava h anos morando longe da famlia e aquela comidinha na mesa, servida com tanto carinho, me aconchegava. Decorava com o Raul at tarde. Por sua indicao, at cheguei a fazer uma pontinha em gua Viva.145

Neusa, minha fiel camareira

Captulo XXXIII Diga ao Povo que FicoO Rogrio Fres tinha substitudo o Raul Cortez na montagem carioca do Rasga corao. Nesta poca fui convidada para participar da montagem paulista do espetculo e ele me disse para eu no fazer isso. Voc comeou a plantar sua semente aqui no Rio de Janeiro. Ainda no tem uma rvore, mas tem a sua mudinha. No saia daqui, faa sua carreira aqui. Eu escutei e guardei aquilo. Era muito independente, mas escutava e guardava o que me interessava. Decidi ficar e trabalhar muito. Em Queridos Monstrinhos, de Paulo Csar Coutinho, direo de Chico Terpi e Davi Pinheiro, fui indicada para o Prmio Mambembe de melhor atriz de teatro infantil. No tinha a menor idia do que isto significava. Prmio? Meu papel era o da Bruxa Caxuxa. Na Rdio Mec, fiz As Doutoras, do Frana Jnior. Participei de montagens de peras no Teatro Municipal. Primeiro como figurante (La Boheme, Carmen) e depois como aderecista, j na Central Tcnica de Inhama. Com o grupo Tapa, de Eduardo Tolentino, fiz O Anel e a Rosa, Tempo Quente na

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Floresta Azul e Caiu o Ministrio, onde contracenava com Denise Fraga, ainda menina. No Teatro Mesbla, Na Terra do Paubrasil nem tudo Caminha, Viu?, direo do Ary Fontoura, fiz uma substituio. A atriz titular adoeceu e eu, em 24 horas, tive de assumir o papel. Ela era mignon, manequim 36. Eu era 42 e, para entrar nas roupas dela, botei velcro para tudo que lado. Corre o boato de que minhas roupas eram to pequenas que a turma do elevador aguardava minha entrada em cena e apostava se meu peito ia saltar para fora daquelas roupas minsculas.148

O elevador ficava retido no andar do teatro enquanto as pessoas esperavam para subir ou descer. Tambm no Mesbla, com direo de Bibi Ferreira, fiz E Agora, Hermnia? Paralelamente ao trabalho de atriz, participava das montagens como administradora, gerente, assistente de direo e produo, figurinista, sonoplasta, o que viesse. O Srgio Britto me escolheu pra ser a Carmen dele, a imagem eterna da Carmen. Ento tinha a intrprete, a cantora, e eu era o duplo dela. A cortina ia abrindo e eu em primeiro plano, com a flor na boca, aquela imagem clssica da Carmen,

e, medida que eu girava, as coisas iam criando vida atrs de mim, e eu me perdia na multido. No final a Carmen morria, eu pegava de novo a flor, passava no corpo da Carmen, e terminava o espetculo novamente com a rosa na boca. Trabalhei com a Celina Sodr na Rioarte, como sua assistente, e tambm participei como atriz de seus espetculos Procurase uma Imperatriz, Motivo simples e Sem Suti. Aprendi com a Celina a cuidar do meu corpo e da minha cabea. Ela me apresentou dois especialistas; Armando Candal, seu irmo mdico - m e u ginecologista da via inteira - e Claire, psicanalista com quem reinventei a minha vida. Em Astrofolias, musical infantil de Antonio Adolfo, Paulinho Tapajs e Chico Chaves, direo de Lauro Ges, fiz uma estrela e tive a grande oportunidade de gravar uma faixa de um longplay. Com esse trabalho, ganhei o prmio Mambembe de melhor atriz. Na noite da premiao eu tinha acabado de cantar uma das msicas do Theatro Musical Brazileiro outro marco da minha carreira em que fazia uma neguinha, junto com o Fbio Pilar. Estava na coxia quando comearam a anunciar os finalistas. E aquela vozinha me soprou antes:

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O prmio seu. Improvise o discurso. Fiquei em silncio e o discurso me veio cabea: Eu gostaria de agradecer em nome de todas as pessoas que vm de longe e so bem recebidas nesta corte, o prmio foi meu.

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Captulo XXXIV Theatro Musical BrazileiroTheatro Musical Brazileiro um captulo parte. Quando o Luiz Antonio Martinez Correa me chamou, era para fazer produo do espetculo e comentei que tinha estudado canto lrico. Aceitaria o trabalho de produtora, desde que ele me deixasse cantar umas musiquinhas. As operetas eram cantadas por um quarteto vocal, trs instrumentistas, piano, viola e flauta, e voz. Era lindo, lindo, lindo, lindo. Conheci Maneco Quinder, um grande iluminador, que at hoje debocha de mim porque eu disse: Maneco! Veja bem como que voc vai iluminar essas coxas aqui, coxas de 30 anos! Maneco era um moleque na poca, eu tinha 33 anos a idade de Cristo. O Theatro Musical Brazileiro foi um sucesso. Na imprensa, tudo era motivo pra falar do espetculo: ensaios fazendo comparao dos figurinos, dos atores, da montagem, com outras peas da poca. Teve um ttulo da crtica: Pequena jia reluz imperiosa no Pao Imperial. Era trabalho, trabalho, trabalho. Corre a lenda de que no teatro voc precisa de dez anos para ser conhecida e de vinte anos para ganhar dinheiro. Eu j sabia disso, no precisava falar duas vezes.

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Dez anos depois, eu estrio Prola. Em 1995. E a lenda se confirma.

Oswaldo Rasi e Vera na estria de Prola em So Paulo, 1995

Captulo XXXV Eu e Meus Outros EusEu no procuro, eu acho Picasso Essa frase me inspira a refletir sobre os encontros e desencontros do ator com seus personagens. A curiosidade sempre me impulsionou busca do conhecimento. Menina, estudei piano, depois me formei em Artes Plsticas e Desenho Geomtrico, com especializao em Geometria Descritiva. Mas o grande momento artstico da minha juventude foi sem dvida a descoberta do mundo teatral, que passou a ser o meu foco principal. Fui conferir seu funcionamento, participei de todos os processos de montagem, luz, cenrio, administrao e finalmente assisti os ensaios. Ouvi os atores estimulados em leituras de mesa por semanas. Depois, j contracenando, recebi orientao de diretores. O figurino chegando. O ensaio geral. Estria. Pblico. Crticas. Crises. O tempo para o artista no serve como medida. Mas esses anos de descoberta foram especiais. Meu encontro com meus outros eus comea em geral com um telefonema. Um convite nos momentos mais improvveis. sempre nessas horas que as personagens nos

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encontram. Vera, tenho um papel para voc. a sua cara! No consigo ver outra atriz fazendo. L! No vou falar nada, mas sei que voc vai ado rar. L e depois a gente conversa. Leio o texto e esqueo. Deixo minha intuio decidir. O sim e o no se processam. A luz e a escurido. O sim me arrasta para o universo da criao. Ali encontro a msica, as artes plsticas que, juntas, conspiram a meu favor na construo de uma nova personagem. Vale tudo para conquist-la. O jogo comea, como aprendi com grandes professores e grandes atores, com o texto. Ler e reler. Sugar todas as informaes. Praticar a arte da releitura. Amaciar as palavras, buscar sua embocadura, sua sensao. E o mais difcil: domar o meu sotaque. Aps esse embate preciso levantar (literalmente, sair da mesa e ficar em p) a personagem. A msica me acompanha nessa fase, determinando ritmo, melodia e harmonia. Tudo comea a se mover e se projetar no espao com a tessitura escolhida. dessa miscelnea que Prolas e Ornellas, Fannys e Santanas, Quitrias e Oflias se alimentam. Da leitura, escrita, composio, projeo, introjeo e, sobretudo, INTUIO. Quantas vezes eu mesma me surpreendi com uma personagem! Em Rasga Corao, recm-sada da UniRio e es-

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treando com elenco vibrante, direo inspirada e montagem aguardada aps anos de censura. Com Luiz Antonio Martinez Correa perdi o pudor e pedi para participar do Theatro Musical Brazileiro. A atriz estava precisando deixar de produzir e estrear em musicais, lpida e faceira. O texto pera Joyce, de Alcides Nogueira, com a luz direcional de Mrcio Aurlio, propunha um quebra-cabeas de referncias culturais, complexo e intrincado. O desejo de decifr-lo me devolveu a So Paulo, j atriz aceita pela confraria intelectual, elegante e exigente da capital. As personagens de Gerald Thomas traziam como moeda de troca o NOVO, o desafio esttico, o risco, a inspirao, a transpirao, a f. Atravs de seus olhos pude tambm me ver como atriz, no mais como produtora teatral. Antonio Abujamra trouxe personagens que me revelaram a abrangncia do universo teatral, ampliaram minha viso de mundo, me forneceram informaes universais... preciso conhecer o movimento do mundo, ele dizia. Eu fui fazer isso, passo a passo.Outras mulheres que interpretei indicaram novos caminhos para o meu sotaque. Como Miss Penn Taylor, de Vamp, que, por sugesto do diretor Jorge Fernando, usaria o acento ingls. Prola tinha o meu prprio sotaque, poten-

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cializado. Algumas delas me espantaram pela forte presena do elemento feminino, com seus mistrios e enfeites, como a Ornella, de Belssima, e Simone, de Corpo e Alma. Outras me testaram pela briga entre o controle e o descontrole, como a professora Santana, a alcolatra de Mulheres Apaixonadas. Me Cndida, de A Muralha, presenciou um grande encontro entre os diretores Denise Saraceni, Carlos Arajo e Luiz Henrique Rios, que com sensibilidade me despiram dos cinco anos de Prola e fizeram repousar a guerreira. nestas personagens que sobrevivo. A distncia delas pura depresso. Cada uma a semente da semente da verdade do que eu sou.

Em cena de Vamp, com Abujamra

Captulo XXXVI TelevisoDe 1980 a 85, fiz pequenas participaes em produes da TV Globo e da TV Educativa, no Rio de Janeiro. Em 1986, na novela Beb a Bordo, avisei a todo mundo que eu ia aparecer. E todo mundo parou para ver. Pedi para ningum piscar, pois era mnima a minha apario. Estava no Rio de Janeiro quando recebi um telegrama da Globo: Venha acertar sua participao na novela Que Rei Sou Eu. Fui. Ao chegar sala do produtor, a secretria me disse: Vera, o Alcides Nogueira mandou entregar esta passagem para voc ir hoje noite para So Paulo, fazer uma leitura, conforme o combinado, da pea pera Joyce. Nossa! A vida que eu pedi a Deus. E mais passagens e contratos. Fiz, ao mesmo tempo, Que Rei Sou Eu?, minha primeira novela, com indicao do Roberto Talma e pera Joyce, no teatro, dirigida por Mrcio Aurlio eleito o melhor espetculo do ano em So Paulo. O ritmo da minha vida mudou. Fazia teatro em So Paulo e gravava novela no Rio. Estava sempre muito bem acompanhada.157

Lamartine para ingls ver

Meus primeiros passos na TV foram conduzidos por Antonio Abujamra, com quem, logo depois, trabalhei no grupo F privilegiados. O F j comeou ambicioso. Montamos Phaedra, Um Certo Hamlet, A Serpen te, mltiplas leituras dramticas, fomos muito bem recebidos, aclamados, aplaudidos, premiados. Com a dupla Oflia/Gertrudes, de Um Certo Hamlet, ganhei o meu primeiro prmio de teatro adulto: o Shell. Um Certo Hamlet ficou em cartaz durante seis meses, com casa cheia. Cludia Abreu fazia o Hamlet. Deborah Evelyn fez o estrangeiro, substituindo Anna Sartor. Era uma apario nua em plo, muito bonita. Ali