22
 NOVOS ESTUDOS 84  JULHO 2009 153 Resumo Tomando como ponto de partida situações encontradas nas periferias paulistas, este artigo discute as relações redefinidas das relações entre o informal, o ilegal e o ilícito. Se é ver- dade que a transitividade entre o legal e ilegal, formal e informal sempre acompanhou a história de nossas cidades (e sociedade), apresenta-se hoje o desafio de construir um jogo de referência distinto do espaço conceitual que vigorava até recentemente, em grande medida regido pelo tema das chamadas incompletudes da modernidade brasileira. PaLaVraS-cHaVE: Cidade; economia de bazar; mercados informais; ilegalismos. abstRact Taking as a guideline situations found in the periphery of cities in the State o f São Paulo, this article tries to redefine the no tions of informal, illegal and illicit. If it is true that the interchange between legal and illegal, formal and inf ormal has always been part of the history of our cities (and soc iety), today the challenge is to build another kind of conceptual space, distant from the usual framework of the so-called incompleteness of Brazilian modernity. KEYWOrDS: City; Economy; informal markets; ilegalisms.  Vera da Silva Telles ilegalismos Urbanos e a Cidade Doralice, 40 anos, mora em um bairro da periferia paulista com o marido, o filho e mais a mãe, um irmão e um sobri- nho. Doralice é diarista. Ganhos parcos e irregulares, não mais do que três casas para cuidar da faxina. Provida de dotes culinários am- plamente celebrados pela família, houve um tempo em que resolveu  vender pão e broas que ela preparava durante o dia. Vendia à noite nas proximidades de um hospital em uma barraca improvisada na perua Kombi do marido. O empreendimento não deu muito certo e depois de alguns meses foi desativado.

Veras Telles 2

Embed Size (px)

DESCRIPTION

sociologia

Citation preview

  • NOVOSESTUDOS84JULHO2009 153

    Resumo

    Tomando como ponto de partida situaes encontradas nas

    periferias paulistas, este artigo discute as relaes redefinidas das relaes entre o informal, o ilegal e o ilcito. Se ver-

    dade que a transitividade entre o legal e ilegal, formal e informal sempre acompanhou a histria de nossas cidades (e

    sociedade), apresenta-se hoje o desafio de construir um jogo de referncia distinto do espao conceitual que vigorava at

    recentemente, em grande medida regido pelo tema das chamadas incompletudes da modernidade brasileira.

    PaLaVraS-cHaVE:Cidade; economia de bazar; mercados informais;

    ilegalismos.

    abstRact

    Taking as a guideline situations found in the periphery of

    cities in the State of So Paulo, this article tries to redefine the notions of informal, illegal and illicit. If it is true that the

    interchange between legal and illegal, formal and informal has always been part of the history of our cities (and society),

    today the challenge is to build another kind of conceptual space, distant from the usual framework of the so-called

    incompleteness of Brazilian modernity.

    KEYWOrDS:City; Economy; informal markets; ilegalisms.

    Vera da Silva Telles

    ilegalismos Urbanos e a Cidade

    Doralice, 40 anos, mora em um bairro da periferia paulista com o marido, o filho e mais a me, um irmo e um sobri-nho. Doralice diarista. Ganhos parcos e irregulares, no mais do que trs casas para cuidar da faxina. Provida de dotes culinrios am-plamente celebrados pela famlia, houve um tempo em que resolveu vender po e broas que ela preparava durante o dia. Vendia noite nas proximidades de um hospital em uma barraca improvisada na perua Kombi do marido. O empreendimento no deu muito certo e depois de alguns meses foi desativado.

    09_Silva Telles_p152a173.indd 153 8/12/09 12:49:42 PM

  • 154 iLEgaLiSmOSUrbaNOSEaciDaDE Vera da Silva Telles

    [1] Cf.Misse,Michel.Crime e vio-

    lncia no Brasil contemporneo.Riode

    Janeiro:LumenJuris,2006.

    Mas Doralice uma mulher batalhadora e no deixa escapar opor-tunidades para um ganho a mais para sua famlia. Assim, por exemplo, no hesita quando surge a oportunidade de montar uma banca de CDs piratas em um bairro prximo sua casa. Um ponto de venda bastante modesto, mas que aciona redes de escalas variadas, a comear pelos garotos de uma favela ao lado, chamados para garantir a venda durante o dia, enquanto ela sai para o seu trabalho de diarista. H tambm uma cascata confusa de intermedirios que passa pela sociabilidade vicinal, mas que transborda amplamente o permetro local: um parente pr-ximo fez o contato com o agenciador dos CDs, um tipo obscuro que mantm relaes obscuras com um estdio obscuro em que os CDs so copiados e mais os agentes que empresariam esse negcio hoje amplamente expansivo e presente em qualquer ponto da cidade. Do-ralice no consegue reconstruir os percursos que os CDs percorrem at chegar a seu modesto ponto de venda a partir de certo ponto o cir-cuito fica, como se diz nos meios populares, embaado. Afinal, seguir os traos desse artefato no tarefa fcil. A rigor isso definiria toda uma agenda de pesquisa que haveria de nos conduzir pelos fios da vrias redes superpostas de que feito o hoje redefinido mercado informal. Por ora basta dizer que so redes que passam pelo lado oficial, formal e cintilante da indstria cultural, que transbordam para os dispositivos sociotcnicos acionados nas fronteiras incertas do informal e ilegal, para se enredar nos mltiplos circuitos do comrcio ambulante por onde circulam produtos de procedncia conhecida, desconhecida, du-vidosa ou ilcita, para ento se condensar nas mirades de pontos de venda espalhados pela cidade. E aqui voltamos Doralice.

    Ela conhece muito bem as coisas da vida e sabe que no teria con-dies de bancar o seu negcio em algum lugar mais disputado e mais rendoso. Perguntamos a ela por que no um lugar mais rendoso j que ela teria acesso ao fornecedor, acesso ademais garantido por relaes de confiana, vnculos de proximidade e famlia. A resposta foi precisa: ela no teria capital para pagar fiscais ou ento a pol-cia e muito menos para compensar as perdas na eventualidade de um rapa. Enfim, Doralice desprovida do cacife necessrio para lidar com os representantes da ordem que parasitam os negcios infomais-ilegais com a fora da chantagem e da extorso, definindo, em grande medida, os modos como esses mercados se organizam e se distribuem nos espaos urbanos1. Sendo assim, ela teve que se contentar com os ganhos irrisrios de uma banca pobre instalada em um lugar pobrs-simo. Ganhos irrisrios e, alm do mais, incertos, pois vez e outra (e muito freqentemente) seus fornecedores ou intermedirios desapa-recem porque foram presos ou ficaram eles prprios devedores no per-verso (e violento) mercado da proteo, ou ento porque as relaes de confiana foram, em algum momento e por razes as mais variadas

    09_Silva Telles_p152a173.indd 154 8/12/09 12:49:42 PM

  • NOVOSESTUDOS84JULHO2009 155

    (traies, disputas, deslealdades), rompidas em algum ponto dessa rede por onde se fazem as conexes entre as pontas mais pobres da cidade e os circuitos de uma riqueza cada vez mais globalizada. Alis, foi por isso mesmo que ela desistiu do negcio.

    Decididamente, Doralice est longe de ser uma empreendedora. O que fazia no era mais do que um bico. Mais um entre tantos outros expedientes de que lana mo para lidar com as urgncias da vida. As-sim, por exemplo, ela no titubeia, nas horas do aperto, em mobilizar uma espantosa rede que opera o mercado de receitas mdicas frauda-das para conseguir o remdio de que depende a vida do marido, e que passa por dentro das farmcias de maior porte da regio, expediente, alis, rendoso para os que inventam (balconistas e farmacuticos de planto, com a conivncia de fiscais e outros) os artifcios para fazer da compra-e-venda dessas receitas um recurso a mais para comple-mentar os baixssimos salrios pagos no mercado formal de trabalho. Doralice passou a ter uma tal familiaridade com esse mercado negro de receitas que ela prpria, vez e outra, se transforma em uma inter-mediria, o que lhe rende uns trocados a mais cada vez que uma vizi-nha aflita (quase sempre mulheres, raramente homens) vem solicitar seus conhecimentos e boas relaes para resolver um problema de urgncia domstica. Em outro momento qualquer e conforme as circunstncias, Doralice no encontra nenhuma razo moral para re-cusar o servio que lhe proposto por um conhecido prximo e de confiana, e colocar a encomenda de farinha em sua bolsa, entrar em um nibus, atravessar a cidade e tranqilamente levar a mercadoria a seu destino, trazendo de volta um ganho modesto, mas que far toda a diferena em um oramento domstico garantido no dia a dia, sem que por isso ela se considere comprometida com o mundo do cri-me. Como ela diz, no estou fazendo nada de errado, no roubo, no mato ela apenas est se virando como pode, como em tantas outras circunstncias de sua vida.

    Haveria mais a dizer sobre os percursos desta no muito pacata dona de casa. A rigor, h toda uma agenda de pesquisa que poderamos definir a partir de uma situao como essa: seja seguir os produtos, os CDs pirata ou as receitas mdicas fraudadas ou ento a droga, para reconstituir, na medida do possvel, a cadeia de conexes que define os circuitos por onde trafegam; seja fazer a etnografia dos agenciamentos prticos acionados nesses pontos de condensao de relaes e me-diaes, tal como essa histria minscula permite entrever. Duas vias diferentes e complementares que certamente nos permitiriam prospectar os circuitos superpostos de um mundo urbano atravessa-do por expansiva trama de ilegalismos, novos e velhos, entrelaados nas prticas urbanas, seus circuitos e redes sociais. Esse o ponto que interessa, por ora, reter.

    09_Silva Telles_p152a173.indd 155 8/12/09 12:49:42 PM

  • 156 iLEgaLiSmOSUrbaNOSEaciDaDE Vera da Silva Telles

    [2] Aredefiniodasrelaesentre

    oformaleoinformalnocapitalismo

    contemporneoe,maisparticular

    mente,olugarredefinidodoinformal

    sobalgicadeumprocessodeacu

    mulaoqueexige,mobilizaeaciona

    asuareproduoampliadaesthoje

    nocentrodeumdebatequejconta

    comumaimportanteliteraturadere

    ferncia.Paraefeitodesseartigo,vale

    citarPortes,A.,Castells,M.eBenton,

    L.A.(orgs.). Informal economy: studies

    in advanced and less developed countries.

    Baltimore:JonhsHopkingsUniversi

    tyPress,1989.

    [3] Essaquestocentraldeumprojetoemcurso,realizadoemparceriacompesquisadoresdaUniversidadedeToulouseLeMirail(AcordoCapesCofecub).Essetextobeneficiaseemlargamedidadessacooperaofrancobrasileira.,sobretudo,devedordainterlocuocomAngelinaPeralvacomquempartilhoacoordenaodesseprojeto.Textosedocumentosderefernciaestodisponveisem.

    O fato que, hoje, a vida social parece atravessada por um univer-so crescente de ilegalismos que passam pelos circuitos da expansiva economia (e cidade) informal, o comrcio de bens ilegais e o trfico de drogas (e seus fluxos globalizados), com suas sabidas (e mal conhe-cidas) capilaridades nas redes sociais e nas prticas urbanas. nesse ponto que a histria de Doralice interessa. Trata-se de um jogo situa-do de escalas que se superpem e se entrelaam nas mobilidades la-terais, para avanar uma discusso a ser feita nas pginas seguintes desse personagem urbano, cada vez mais comum em nossas cidades, que transita nas fronteiras borradas entre o informal e o ilegal ao longo de percursos descontnuos entre o trabalho incerto e os expedientes de sobrevivncia mobilizados conforme o momento e as circunstncias.

    sempre possvel dizer que nada disso novidade, apenas repe o que sempre esteve presente em nossas cidades. No entanto, pouco en-tenderemos do que vem acontecendo se nos mantivermos presos a um marco descritivo-analtico pautado pelas mazelas de uma modernida-de incompleta. Tampouco entenderemos o que se passa se tomarmos situaes como essas aqui descritas apenas e to-somente como caso exemplar da virao prpria das desde sempre conhecidas situaes de pobreza. Na verdade, poderamos multiplicar os exemplos (volta-remos a eles ao final) e, a partir de cada situao, tal como postos de observao, apreender os perfis de um mundo urbano alterado e redefinido pelas formas contemporneas de produo e circulao de riquezas, que ativam os diversos circuitos da dita economia informal, que mobilizam o trabalho sem forma, para usar a expresso de Chi-co de Oliveira, e se processam nas fronteiras incertas do informal, do ilegal e tambm do ilcito2. esse o plano de atualidade, no qual se inscreve os percursos incertos de personagens urbanos como o aqui descrito. E cifra de contemporaneidade, pois entra em ressonncia com o que vem acontecendo em outros lugares, tambm nas cidades dos chamados pases do Norte.

    O fato que as relaes incertas entre o lcito, o ilegal e o ilcito constituem um fenmeno transversal na experincia contempor-nea. So vrios os autores que vem chamando a ateno para essa transitividade entre o informal, o ilegal e o ilcito, com uma preocu-pao, mais ou menos explicitada, em distinguir a natureza da trans-gresso que se opera no mbito da economia informal ou ento a que define as atividades ilcitas ou criminosas, como o trfico de drogas, armas e seres humanos3.

    Bem sabemos que essa transitividade acompanha a histria de nossas cidades, j foi cantada em prosa e verso e tematizada por uma j longa e prestigiosa literatura, para no falar das circunstncias histri-cas que presidiram o desde sempre expansivo mercado informal. Mas tambm verdade que nos vemos hoje em face do desafio de construir

    09_Silva Telles_p152a173.indd 156 8/12/09 12:49:42 PM

  • NOVOSESTUDOS84JULHO2009 157

    [4] Retomoaquiedesdobroemou

    trasdireesquestestratadasemar

    tigoescritoemcoautoriacomDaniel

    Hirata.Cf.Telles,VeraS.eHirata,Da

    niel.Cidadeeprticasurbanas:nas

    fronteirasincertasentreoilegal,oin

    formaleoilcito.Estudos Avanados da

    USP,vol.21,n61,2007,pp.173192.

    [5] Ruggiero, Vincenzo e South,

    Nigel.Thelatecityasabazaar:drug

    markets, illegalenterpriseand the

    barricades.The British Journal of So-

    ciology,vol.48,n1,1997,pp.5470.

    um espao conceitual distinto do que vigorava at recentemente e pelo qual a discusso se processava sob o ngulo das chamadas incomple-tudes da modernidade brasileira. Ser preciso trazer a situao brasi-leira para outro prisma de referncias. Essa a preocupao que subjaz a esse texto. No se trata de fazer um balano bibliogrfico, tampouco rastrear teorias e questes polmicas, muito menos oferecer explica-es ou marcos conceituais alternativos. Isso exigiria muito mais do que possvel fazer no escopo deste artigo. Arriscaria dizer que se trata no mais do que um exerccio, talvez uma experimentao a partir das pistas que os autores comentados nos fornecem em suas pesquisas, e so essas que interessam, na medida em que oferecem um repertrio ampliado de referncias pertinentes ao cenrio contemporneo.

    Nas fRoNteiRas iNceRtas do iNfoRmal, ilegal e ilcito4

    Em artigo de 1997, Ruggiero e South lanaram mo da metfora do bazar a cidade como bazar para descrever as interseces entre os mercados formais e os mercados informais, ilegais ou ilcitos, tal como se configuraram, a partir dos anos de 1980, nas metrpoles dos pa-ses centrais do capitalismo contemporneo5. Com evidente inteno polmica, a metfora evoca a alteridade nos traos de orientalismo associados ao bazar, para chamar a ateno que ele, agora, se encontra incrustado no ncleo das modernas (e ocidentais) economias urba-nas. Na mira dos autores, est um cenrio urbano no qual se expan-de uma ampla zona cinzenta que torna incertas e indeterminadas as diferenas entre trabalho precrio, emprego temporrio, expedientes de sobrevivncia e atividades ilegais ou delituosas. Nas fronteiras po-rosas entre o legal e o ilegal, o formal e informal, transitam as figuras contemporneas do trabalhador urbano, lanando mo, de forma des-contnua e intermitente, das oportunidades legais e ilegais que coexis-tem e se superpem nos mercados de trabalho. Mobilidades laterais, definem os autores, de trabalhadores que oscilam entre empregos mal pagos e atividades ilcitas, entre o desemprego e o pequeno trfico de rua, negociando a cada situao e em cada contexto os critrios de acei-tabilidade moral de suas escolhas. isso propriamente que caracteriza o bazar metropolitano: a interseco entre os mercados irregulares e os mercados ilegais, esse embaralhamento do legal e do ilegal, e o perma-nente deslocamento de suas fronteiras.

    O bazar metropolitano, dizem os autores, comeou a ganhar forma em meados da dcada de 1980. No caso da Inglaterra e dos Estados Unidos, o momento da virada conservadora de governos que fizeram por desmanchar direitos e garantias sociais foi o ponto de arranque da precarizao do trabalho e a redefinio dos mercados urbanos de trabalho. Em termos gerais, anos de reestruturao produ-

    09_Silva Telles_p152a173.indd 157 8/12/09 12:49:42 PM

  • 158 iLEgaLiSmOSUrbaNOSEaciDaDE Vera da Silva Telles

    [6] Ruggiero. Crime and makets:

    essays in anti-criminology. Oxford:

    OxfordUniversityPress,2000.

    [7] ArefernciaaCliffordGeertz

    passagemquaseobrigatriapelos

    autoresquelanammoatualmente

    danoodeeconomiadebazar.Cf.

    Geertz,Cliffort.Thebazaareconomy

    inCefrou.In:Geertz,C.,Geertz,H.

    eRosen,L.(eds.).Meaning and social

    order in Moroccan society.Cambridge:

    CambridgeUniversityPress,1979.

    tiva e da chamada flexibilizao das relaes de trabalho que terminou por esfumaar as diferenas entre trabalho, desemprego e expedientes de sobrevivncia , na prpria medida em que o assim chamado informal instala-se no ncleo dinmico dos processos produtivos e, no mesmo passo, se expande pelas vias de redes de subcontratao e formas diversas de mobilizao do trabalho precrio, sempre nos limites incertos en tre o legal, o ilegal, tambm entre o ilcito e delituoso, quando isso envolve o trfico de seres humanos direcionado para as mirades de oficinas clan-destinas que se espalham nesses circuitos produtivos6.

    Esses foram tambm anos em que as atividades ilcitas mudaram de escala, se internacionalizaram e se reorganizaram sob formas po-larizadas entre, de um lado, os empresrios do ilcito, em particular do trfico de drogas e que, a cada local iro se conectar com a crimi-nalidade urbana comum, e, de outro, os pequenos vendedores de rua, que operam nas margens da economia da droga e transitam o tempo todo entre a rua e a priso. Esses so os trabalhadores precrios da droga, que se multiplicam na medida em que o varejo se expande e se enreda nas dinmicas urbanas: modulao criminosa do capitalismo ps-fordista, criminalidade just-in-time, define Ruggiero, que responde variabilidade, s oscilaes e s diferentes territorialidades dos mer-cados. nesse sentido que as atividades ilcitas, no apenas o trfico de drogas, passam a compor as economias urbanas nos pontos de in-terseco com os expansivos mercados irregulares, multiplicando as oportunidades para a circulao de bens e produtos de origem duvido-sa, e que so transacionados no jogo multiforme das interaes sociais independentemente de serem legais ou ilegais, ou de origem ilcita.

    Por certo, as questes propostas pelos autores esto longe de dar conta de uma problemtica hoje tratada por uma vastssima literatura sobre a economia da droga em suas vrias dimenses, escalas e formas de territorializao. Mas no bem esse o ponto que interessa aqui discutir. O que importa, isso sim, reter o plano em que os autores apresentam suas questes, colocando a cidade o bazar metropolita-no como plano de referncia para situar os mercados ilegais em suas interaes com as dinmicas urbanas. justamente isso que, assim parece, fez a fortuna desse texto nos debates recentes.

    foRmas coNtempoRNeas de pRoduo e ciRculao de Riquezas

    A noo hoje revisitada7 de economia de bazar circula entre pesquisadores s voltas com processos prximos s situaes des-critas por Ruggiero e South. isso justamente que sugere o inte-resse da metfora do bazar para a descrio das cidades contem-porneas, oferecendo um prisma que coloca a cidade como plano de referncia para a descrio dos processos em curso. E isso o

    09_Silva Telles_p152a173.indd 158 8/12/09 12:49:42 PM

  • NOVOSESTUDOS84JULHO2009 159

    [8] Cf.Kokoreff,Michel.Traficsde

    drogueetcriminaliteorganise:une

    relationcomplexe.Criminologie,vol.

    7,n1,2004,pp.932;Idem.Fairedu

    businessdanslesquartiers:elements

    surlestransformationssociohisto

    riquesdeleconomiedesstupefiants

    enmilieuxpopulaires.Dviance et

    Socit,vol.24,n4,2000,pp.403

    24;Duprez,DominiqueeKokoreff,

    Michel.Les mondes de la drogue.Paris:

    ditionsOdileJacob,2000;Gode

    froy,Thierry.conomiesparallle

    oumtisses?Exemplesdactivits

    hybrides. In: Bessette, JeanMi

    chel(org.).Crimes et cultures.Paris,

    LHarmattan,1999,pp.159174.

    [9] Palidda,Savatore.Milanglobal:

    entreaffairismeetpolitiquessecuri

    taires.In:Peraldi,Michel(org.).La

    fin des norias? Rseaux migrants dans les

    conomies marchandes en Mditerrane.

    Paris:Maisonneuve&Larose,2002.

    [10] Peraldi,Michel(org).Cabas et

    containers: activites marchandes infor-

    melles et reseaux migrants transfrontai-

    liers.Marseille:MaisonneuveetLaro

    se,2002;Idem.Marseille:reseaux

    migrantstransfrontailiers,placemar

    chanteteconomiedebazar.Culture

    & Politique,n3334,1999,pp.5167.

    que permite colocar em perspectiva (e em dilogo) pesquisas que tratam dos vrios circuitos e redes de extenso variada que confor-mam o que se convencionou chamar de economias subterrneas nas periferias francesas, na superposio das atividades informais e nos mercados de rua, nos quais os fluxos de dinheiro, mercado-rias, bens de origem ilcita e tambm drogas se entrecruzam em um complexo sistema de trocas, se inscrevem no jogo das relaes sociais e passam a compor as dinmicas urbanas que transbordam amplamente o permetro estreito dos chamados quartiers sensibles8. Ou ento, a segunda grande transformao, para usar os termos de Palidda, que atinge, por exemplo, os ncleos industriais italianos, transfigurando a moderna e desenvolvida cidade de Milo, agora atravessada por toda sorte de ilegalismos em que se articulam a mi-grao clandestina, a ampla circulao de produtos da contraveno, do contrabando e da pirataria, vindos sobretudo do sudeste asitico (mas no s) e a nebulosa de relaes entre o ilegal, o informal e o ilcito, que acompanham os processos de terceirizao produtiva ou deslocalizao das plantas industriais9.

    Por outro lado, as pesquisas que tratam do que vem sendo chama-do de novas formas migratrias lanam luz sobre um outro vetor de constituio da economia de bazar, nas trilhas de outras dimenses das reconfiguraes do capitalismo contemporneo. No contexto francs, Michel Peraldi faz uso dessa noo, com referncia ao texto de Ruggiero e South, para tratar das dinmicas urbanas hoje redefinidas sob o impacto de formas de circulao de bens e riquezas que seguem os amplos circuitos da migrao por onde se estruturam redes trans-nacionais de um proliferante comrcio ambulante10. So redes que atravessam fronteiras, articulam centros comerciais espalhados em vrios pontos do planeta e se territorializam sob as diversas modula-es do chamado mercado informal em expanso nos centros urbanos do primeiro mundo, em particular nas cidades de fronteira, situadas nos pontos de conexo entre esses vrios circuitos, muitas delas ponto de chegada de vagas migratrias anteriores e que agora se redefinem nessa cartografia mutante do mundo contemporneo.

    Os circuitos por onde circulam os produtos at chegar aos merca-dos populares nos centros urbanos fazem o traado de verdadeiras re-des transnacionais de trocas informais nas fronteiras porosas do legal e ilegal, sempre tangenciando os mercados ilcitos (drogas, armas, seres humanos). Ao lado do que se poderia chamar de migrao da misria (a tragdia dos clandestinos sobre os quais tanto se fala), observam-se novas formas migratrias que no visam instalao nos pases de destino, colocando em movimento homens e mulheres que circulam entre pases e regies conforme as circunstncias e oportunidades de trocas e comrcio: as formigas da mundializao ou novos nmades

    09_Silva Telles_p152a173.indd 159 8/12/09 12:49:42 PM

  • 160 iLEgaLiSmOSUrbaNOSEaciDaDE Vera da Silva Telles

    [11] Cf.Tarrius,Alain.La mondialisa-

    tion par le bas: les nouveaux nomades de

    leconomie souterraine.Paris:Balland,

    2002.

    [12] Cf. Peraldi. Aventuriers du

    nouveaucapitalismemarchand:essai

    danthropologiedelthiquemercan

    til.In:Adelkhah,FaribaeBayart,

    JeanFranois(orgs.).Voyage du dve-

    loppement: migration, commerce et exil.

    Paris:Karthala,2007.

    [13] Porexemplo,sriosblgarosque

    passamasencomendasparaosafe

    gos,deixandoaestestodososriscos

    daspassagenspelasfronteirasnoscir

    cuitosquearticulamDubaieoLeste

    europeu,passandoporIstambul.Cf.

    Tarrius.La remonte des Suds: afghans et

    marocains en Europe Mridionale.Paris:

    LAube,2007.

    [14] Territriocirculatriotermo

    cunhadoporAlainTarriusparasere

    ferirstramasrelacionaisengendra

    daspelosenoscircuitostransnacio

    naisdessaspopulaesitinerantes.

    [15] Essasnovasformasmigratrias

    matriadeumajvastabibliografia

    fundadaempesquisasqueseguemos

    circuitosdessaitinernciaglobaliza

    da.Almdostextosjcitados,cf.Ce

    sari,Jocelyne(dir.).La Mditerrane

    des rseaux: marchands, entrepeneurs

    et migrants entre lEurope et le Maghreb.

    Paris:Maisonneuve&Lorose,2002;

    Dimenescu,Dana.Lemigrantcon

    nect:pourunmanifestepistmo

    logique.Migration/Societ, vol. 17,

    n102,pp.275292,disponvelem

    ;Portes.La

    mondialisationparlebas.Actes de la

    Recherche en Sciences Sociales,n129,

    set.,1999.

    [16] Halgocomoumageopoltica

    plasmadanacartografiadessasiti

    nernciasqueremetesturbulncias

    quedevastaramessasregiesaolon

    godasltimasdcadas,aoladodas

    restriescadavezmaisferozesnas

    fronteiraseuropias.

    da economia subterrnea, diz Tarrius11; pequenos comerciantes que praticam o que Peraldi chama de commerce la valise (quer dizer: os nos-so conhecidos sacoleiros), envolvidos em dispositivos comerciais transnacionais que articulam produtores do Norte e consumidores do Sul12. Alguns, ou melhor, multides deles so independentes, outros operam sob a encomenda de comerciantes bem estabelecidos nos en-trepostos comerciais, algo como atacadistas que mobilizam as formi-gas para o abastecimento dos produtos que sero, depois, negociados em outros tantos locais13. Populaes itinerantes que operam em redes mais ou menos extensas, seguindo os territrios circulatrios14 teci-dos por laos familiares e de proximidade (ncleos sedentarizados das vagas migratrias anteriores), ancoradas nas vrias cidades e localida-des por onde passam pessoas e produtos15.

    So esses circuitos transnacionais de migrao que permitem a cir-culao de bens e mercadorias que, sem esses novos migrantes, no chegariam aos mercados populares do Norte ou do Sul. Esta a tese de-fendida por Alain Tarrius: os grandes atores econmicos da mundializa-o mobilizam os pobres como consumidores, como clientes e tambm como passadores, fora das regras oficiais e ao largo das convenes co-merciais, fazendo os produtos chegarem aos pases pobres e s popu-laes pobres dos pases ricos. Assim, produtos eletrnicos (filmado ras, computadores portteis, mp3, aparelhos de DVDs etc.) despejados aos milhares em Dubai, espalham-se pelo Leste europeu e chegam at as periferias alems ou francesas graas s coortes de afegos, iranianos, georgianos e mais todos os derrotados das guerras que dizimaram os pases caucasianos nos ltimos tempos. Esses novos nmades, po-pulaes em excesso, seguem as redes sociais construdas nas trilhas das disporas anteriores ou recentes16 e so portadores de competncias circulatrias (quer dizer, saber passar pelas fronteiras, contornar as res-tries, os controles e as fiscalizaes), transformando-se em atores de amplas transferncias internacionais de mercadorias. Essa competn cia circulatria, sugere Tarrius, ajusta-se ao projeto de uma mundializao selvagem, porque ultra-liberal, quer dizer, fazer chegar aos mnimos recantos solvveis do planeta, mercadorias de que esses lugares seriam privados em funo das oscilaes aleatrias das polticas nacionais:

    [...] eis, a titulo de exemplo, as peregrinaes de uma cmara de vdeo, de concepo nova grava diretamente no DVD dotada de boas lentes, e que apareceu no mercado mundial em 2005. Em dezembro desse ano, eram vendidas por 420 euros em Dubai e no Kowait, onde chegavam massiva-mente, como destino final, enquanto os distribuidores franceses, alemes e espanhis as comercializavam por um preo em torno de 1400 euros. Depois de uma passagem furtiva pelas fronteiras dos emirados, graas s coortes de migrantes afegos, iranianos, caucasianos etc., esses aparelhos eram reven-

    09_Silva Telles_p152a173.indd 160 8/12/09 12:49:43 PM

  • NOVOSESTUDOS84JULHO2009 161

    [17] Tarrius.La remonte des Suds,op.

    cit.,p.10.

    [18] Ibidem,p.180.

    didos por volta de 440 euros em Beirute e em Istambul, e 430 euros em Sofia [...]. Iremos reencontrar essa mesma cmara, por 460 euros, nas periferias francesas, tendo l aparecido, como se diz, cadas do caminho [tomb du camion], mas que passaram pela Alemanha por intermdio dos turcos que, por sua vez, as receberam dos afegos e dos azeris, que seguiram os iti-nerrios que passam por Dubai. Quanto aos fabricantes, eles respeitaram estritamente os acordos do comrcio internacional, entregando, como des-tino final", centenas de milhares de aparelhos em um Estado que conta com apenas alguns milhares de cidados17.

    de se notar, ainda comenta o autor, o aparente paradoxo de formas de contrabando ( disso que se trata) prprias do mundo pr-capita-lista e que so agora mobilizadas a servio da forma contempornea do capitalismo. So formas variadas de contrabando, mobilizando as formigas da mundializao, e a elas se deve ainda acrescentar prti-cas da falsificao e da pirataria que se generalizam por todos os lados, muitas vezes com a conivncia ou o incentivo das prprias empresas interessadas em colocar em circulao o nome da marca, ampliando ainda mais seus mercados nessa espcie de fronteira de expanso do capital que so os pobres e seus hoje proliferantes mercados de con-sumo, no Norte e no Sul, Leste e a Oeste do planeta. Sob esta lgica, diz ainda Tarrius, em uma observao carregada de conseqncias, os migrantes passam da anterior submisso ao lugar-cidade, submis-so s lgicas comerciais aptridas das grandes empresas mundiais. Por certo, a explorao no menos srdida, mas as modalidades de autonomizao do migrante so outras.

    [...] a mobilizao dos pobres para passar, para contornar normas e re-gras, produz novas formas de migrao, povoadas por esses pequenos atores transnacionais. Esses migrantes generalizam mobilidades de formigas que se amplificam, em vez de se esgotar na sempiterna concentrao de populaes em torno das diversas zonas de atividade industrial, agrcola ou de servios, campos da misria. Eles so, ademais, excedentes em relao aos limites das naes por onde atravessam, esto fora do raio de ao das polticas ditas de integrao e de igualdade de oportunidades para os recm-chegados, gene-rosas mas pouco eficientes j h vrias dcadas para inmeros estrangeiros. Minoritrios, certamente, mas notveis atores das circulaes transnacio-nais, mantendo os vnculos com seus locais e meios de origem, se organizando em redes j mundializadas, eles produzem uma nova forma migratria car-regada de sentido para o conjunto das populaes e dos Estados18.

    Se, como sugere Ruggiero, o bazar metropolitano se constituiu nas trilhas das mutaes do trabalho e da imploso das formas re-guladas do emprego, vemos aqui um outro lado, em sintonia com o

    09_Silva Telles_p152a173.indd 161 8/12/09 12:49:43 PM

  • 162 iLEgaLiSmOSUrbaNOSEaciDaDE Vera da Silva Telles

    [19] Nosltimosanos,tambmIs

    tambulouDubaiedeloutrasrotas

    emdireoaoLeste,dasiaCentral

    aoSudesteasitico.Emtodasessas

    rotas,perfilaseumtramadodemer

    cadospopulares,acompanhadosde

    umproliferantecomrcioderua,fa

    zendocircularprodutosquasesem

    predeorigemduvidosa(contraban

    do,falsificaes,fraude,pirataria).

    Essesmercadospontilhamoscen

    trosurbanosnoschamadospasesdo

    Sul,inclusiveospobresecombalidos

    Estadosafricanos,passandopelos

    tambmpobres e tambmcomba

    lidospasesdoLesteeuropeuouda

    regiodoCucaso.Apropsito,ver

    osvriosartigosquecompemaco

    letneaorganizadaporAdelkhahe

    Bayart,op.cit.QuantoAmricaLa

    tina,hevidnciasdequeprocessos

    semelhantesvmocorrendo.

    [20]Peraldi,Aventuriersdunouve

    aucapitalismemarchand,op.cit.

    primeiro, modulaes de um mesmo processo de reconfiguraes do capitalismo contemporneo: modos de circulao de bens e riqueza que ganham forma nessa espcie de comrcio globalizado de saco-leiros nos territrios circulatrios pelos quais os novos migrantes fazem sua itinerncia entre fronteiras e pases e que se territorializam nos mercados populares e no comrcio de rua hoje em expanso nos centros urbanos dos pases do Norte e do Sul.

    Essa questo tambm tratada por Michel Peraldi ao estudar os mercados populares que se constituram no mediterrneo francs (Marseille, sobretudo). Atento aos circuitos de bens e pessoas (entre pases do Magreb e da Europa) que l desguam e, em suas pesqui-sas mais recentes, seguindo outros percursos e outros mercados que ganharam forma na prpria medida da endurecimento das restries nas fronteiras francesas19, Peraldi refora a hiptese de uma circulao ampla de mercadorias que se viabiliza em funo dessas populaes circulantes. Verses contemporneas de uma espcie de capitalismo mercantil, talvez, diz ele, um capitalismo de prias (Weber), agora conectado aos movimentos superacelerados de valorizao do cha-mado capitalismo flexvel (e as cascatas transnacionais de subcontra-taes) sob a gide do capital financeiro e que coloca em circulao volumes inimaginveis de modelos, marcas, tipos e variaes de estilo, tudo em rapidssima rotao e ciclos cada vez mais curtos de obso-lescncia de produtos mal sados dos espaos produtivos, que vo se substituindo uns aos outros conforme mudam as preferncias, os p-blicos-alvos, o jogo feroz das concorrncias e as disputas de mercados. esse capitalismo perdulrio e predatrio que ativa tal comrcio cir-culante. desse formidvel desperdcio que esse comrcio circulante se alimenta. Na anlise de Peraldi, so trs as funes desses mercados, entre a itinerncia desses comerciantes circulantes e seus modos de territorializao nos centros urbanos: capturar produtos destinados a outros mercados, dando-lhes outras destinaes improvveis pelas vias oficiais dos mercados; relanar todos os invendidos (estoques de falncia, produtos com defeito, erros de programao etc.), drenando esses produtos conforme lgicas de preferncia e de usos locais, que o mercado mundial ignora ou no pode atingir; por fim, reativar o ciclo interrompido de mercadorias postas fora de circulao nas condies modais do mercado mundial, as chamadas pontas de estoque que so relanadas, transformadas e adaptadas aos mercados nos quais passaro a circular20.

    Essas redes transnacionais por onde circulam produtos e pessoas criam condies para a circulao de produtos que, em outras situa-es, no chegariam a esses mercados: embargos, interditos, controles que marcam as fronteiras, diferenciais de renda e riquezas que tornam difcil quando no impossvel o acesso a esses bens e mercadorias. Em

    09_Silva Telles_p152a173.indd 162 8/12/09 12:49:43 PM

  • NOVOSESTUDOS84JULHO2009 163

    [21] Peraldi, Marseille: rseaux

    migrantstransfrontaliers,placemar

    chandeetconomiedebazar,op.

    cit.,p.56.ComodizPeraldi,etambm

    Tarrius, nohaveriamercadonem

    relaesmercantis semumdispo

    sitivodecafs,bares, restaurantes,

    casasnoturnasoudejogos,oficiais

    ouclandestinos,porondeasinforma

    escirculam,porondesotecidosos

    engajamentosrecprocos,osacordos

    informais,asredesdeconfianaeos

    jogosdereciprocidades.

    outros termos: tais mercados alimentam-se de obstculos, interditos e proibies que vigoram para a circulao de mercadorias entre pa-ses, alm das normas e das legislaes que codificam os regimes de circulao em cada pas. Mas justamente a que no s se qualifica a competncia desses pequenos comerciantes, mas tambm se especi-fica o sentido do bazar contemporneo, tal como proposto por Pe-raldi: no tanto a oralidade (acordos informais, regras de confiana, fora da palavra dada) e as tramas relacionais que os caracterizam, mas a capacidade de ultrapassar e contornar as fronteiras e as diferenas que demarcam (e obstam) a circulao entre pases. Toda uma trama relacional acionada e toda uma competncia circulatria ativada justamente nas dobras do legal e do ilegal, nas dobras das fronteiras polticas e desses territrios circulatrios que as transpassam o tempo todo: suborno nas alfndegas, documentos falsos, negcios escusos com fiscais e policiais, trocas de influncia, compra de proteo, acer-tos com condutores de caminhes etc. nesse sentido que Peraldi faz uso da noo de economia de bazar: um dispositivo comercial que coloca em cena comerciantes estabelecidos em seus postos, vendedo-res ambulantes, sacoleiros, consumidores e mais a trama de rela-es que passam por essa teia de intermedirios e mediaes, pelas quais os agenciamentos so feitos nas dobras do legal e ilegal, do for-mal e informal. A cada ponto dessa trama que viabiliza a circulao de merca dorias, esses atores esto em situaes relacionais, convocados a negociar constantemente a aceitabilidade moral de seus compor-tamentos em uma situao que torna possvel a coexistncia da le-galidade e da ilegalidade, e a mudana permanente dos seus limites nos termos de negociaes, sempre situadas, nas cenas pblicas ou privadas condicionadas pelas trocas mercantis21.

    * * *

    Vale dizer que na mira desses autores est, na verdade, um ponto crtico que pauta em grande medida as questes postas em discus-so. Eles propem um campo de discusso que desativa essa espcie de amlgama confuso (e nada inocente) que associa migrao, mis-ria, terrorismo islmico, fundamentalismo religioso, trfico ilcito e crime organizado, acionando as obsesses securitrias, as polticas repressivas e a legislao de exceo que vm se multiplicando no ce-nrio europeu. Ao seguir as pistas dessas itinerncias de bens e pes-soas, eles colocam em evidncia os mundos sociais que se desenham nos territrios circulatrios por onde transitam essas populaes com base em uma densa trama relacional, contraponto emprico e crtico aos cenrios de misria e degradao associados ao trfico de seres humanos e de legies de clandestinos mobilizados pelas redes

    09_Silva Telles_p152a173.indd 163 8/12/09 12:49:43 PM

  • 164 iLEgaLiSmOSUrbaNOSEaciDaDE Vera da Silva Telles

    [22] Essaoperaocrticaquesto

    discutidaemTarrius.Les nouveaux

    cosmopolitisme.Paris:LAube,2000.

    [23] Cf.Tarrius.AudeldesEtats

    nations:societs,culturesetrseaux

    demigrantsenMediterraneocci

    dentale.In:Peraldi(org.).La fin des

    norias?,op.cit.

    [24] Cf.Misse,op.cit.

    de subcontratao e trabalho precrio. Essas pesquisas terminam por traar um outra cartografia do mundo e da mundializao, e oferecem, por isso mesmo, um outro jogo de referncias para propor as questes pertinentes ao cenrio contemporneo22.

    Muito mais poderia ser dito a respeito dessas pesquisas. Por ora, vale reter algumas questes que ajudam a requalificar o bazar con-temporneo que foi nosso ponto de partida.

    Primeiro: se h porosidade nas fronteiras do legal-ilegal, do for-mal-informal, tambm verdade que a passagem no simples. Como parece evidente nos comentrios acima, justamente nessas dobras que se do os agenciamentos polticos prprios aos mercados de proteo e s prticas de extorso (fiscais, polcia, agentes pol-ticos, a gen tes locais dos poderes pblicos etc.) em suas vrias mo-dulaes conforme circunstncias de tempo e espao, que tambm variam con forme se alteram as condies polticas, os rigores repres-sivos e os critrios de incriminao de bens e produtos em circula-o23. Esse fato permite situar em escala ampliada uma questo que Michel Misse j props h bastante tempo e sempre volta a insistir como central para o entendimento das dinmicas urbanas prprias aos mercados in formais e ilegais nas cidades brasileiras. Em outros termos: nessa espcie de economia poltica dos ilegalismos urbanos, os mercados de proteo (e prticas de extorso) compem a face poltica do bazar contemporneo. Como afirma Misse, o mercado de proteo (com suas conhecidas seqelas violentas) constituti-vo das for mas de regulao dos mercados informais e ilegais24. Pois, ento, fica a sugesto de que, hoje, essa uma questo central nos modos de funcionamento do capitalismo contemporneo. Peraldi prope uma ousada (e interessante) hiptese de que justamente nesse ponto que vem se dando a apropriao privada dessa riqueza circulante em escala transnacional, envolvendo esses representan-tes da ordem responsveis pelo controle das fronteiras e suas passa-gens. Embora seja longo o trecho, vale a pena citar:

    O contrabando e as circulaes transnacionais de mercadorias no po-dem se efetuar sem o envolvimento e o apoio diretos dos funcionrios do Es-tado, sobretudo os aduaneiros, que permitem comprar as rotas [acheter la route] conforme uma expresso usual em Tanger. O signo mais tangvel da regularidade dos lucros do commerce la valise e de outras formas de contrabando pode ser averiguado diretamente no luxo ostensivo das vilas que os aduaneiros argelinos construram nos bairros ricos de Oran, Tanger ou La Marsa. [...] Esses beneficirios do comrcio transnacional podem ser encontrados, agora, ao lado das classes mdias dos pases emergentes, nos mesmos bairros em que moram, nas portas das escolas privadas em que seus filhos estudam, nas mesmas estaes balnerias onde passam as frias,

    09_Silva Telles_p152a173.indd 164 8/12/09 12:49:43 PM

  • NOVOSESTUDOS84JULHO2009 165

    [25] Peraldi,Aventuriersdunouve

    aucapitalismemarchand,op.cit.,

    p.109.

    [26]Cf.AdelkhaheBayart.Introdu

    tion.In:AdelkhaheBayart,op.cit.;

    Cuttita,Paolo.Lemondefrontire:

    le contrle de limmigration dans

    lespaceglobalis.Culture & Conflits,

    n68,pp.6184,2008.

    [27] Sassem, Saskia.Globalisation

    and its discontents: essays on the new

    mobility and money.NovaYork:The

    NewPress,1998.

    [28] Ramoneda,Josep.Archipelde

    lexception.Culture & Conflits,n68,

    2008,pp.1316.

    com a particularidade de terem sido formados na dobras do capitalismo mercantil e tambm das economias rentistas. [...] essas categorias sociais so economicamente estreis, na medida em que seus modos de enriqueci-mento, por mais espetaculares que sejam, raramente constituem um prin-cpio de acumulao primitiva capitalista convertida em alguma forma de investimento produtivo [...]. Porm, em geral, suas despesas sunturias ou estatutrias notadamente sob lgicas patrimoniais (filhos, casa, aquisies imobilirias) abrem espao para as lgicas especulativas das quais so mais vitimas do que beneficirias, deixando o campo livre para a constituio de um capitalismo deslocalizado em campos que eles prprios abriram. A emergncia de um capitalismo chins transnacional nesses terrenos , hoje, a manifestao mais visvel e mais unificada da qual ser necessrio ainda fazer a histria e o inventrio25.

    Expedientes crapulosos, diz Peraldi, que se alimentam de todos os controles e interdies que pesam sobre essas populaes circulan-tes. Mas so esses mesmos interditos, importante tambm dizer, que ativam a agenda securitria e as polticas de exceo no cenrio euro-peu, desdobrando-se na redefinio contnua das formas de controle e suas modalidades operatrias26. Em outros termos, se as migraes, como bem nota Sassen, constitutiva da histria do capitalismo27 e hoje um vetor poderosssimo dos modos de circulao de rique-zas, no possvel deixar de considerar os expedientes que se fazem justamente nas fronteiras-passagens, bem como os deslocamentos e as redefinies que se processam em funo desses agenciamen-tos poltico-repressivos, com impactos considerveis nas regies de passagem: conflitos, turbulncias, violncias, controles mafiosos e, sobretudo, o que um autor chamou de arquiplagos da exceo que redesenham a cartografia do mundo contemporneo28.

    Se h porosidade nos mbitos formal-informal, legal-ilegal, lcito-ilcito, isso no quer dizer indiferenciao entre uns e outros, pois justamente nas suas dobras que se do os agenciamentos polticos (corrupo, extorso, represso, violncia e as vrias modulaes dos mercados de proteo, entre outros) que condicionam essa ampla cir-culao de bens, mercadorias, pessoas e populaes itinerantes. Em outros termos, ao contrrio do que muitas vezes sugere a metfora dos fluxos e dos circuitos, os espaos no so lisos, e so justamente suas asperezas, digamos assim, que interessa averiguar; justamente a que vai se constelando a face poltica do bazar contemporneo. Por outro lado e ao mesmo tempo, as pesquisas aqui comentadas sugerem que tambm nessas dobras que se circunscrevem campos de gravi-tao, para lembrar outra metfora, dessa vez vinda de Thompson, o historiador, de experincias regidas por uma espcie de arte do con-tornamento que a competncia circulatria descrita pelos autores de

    09_Silva Telles_p152a173.indd 165 8/12/09 12:49:43 PM

  • 166 iLEgaLiSmOSUrbaNOSEaciDaDE Vera da Silva Telles

    [29] TomoaexpressodeFresia,Ma

    rion.Frauderlorsquonestrfugi.

    Politique Africaine,n93,mar.,2004,

    pp.6381.Emseu estudo sobreos

    inusitadospercursosdejovensrefu

    giadosnasfronteirasdoSenegaleda

    Mauritnia,aautoralevantaquestes

    quetmparalelosinteressantssimos

    comoqueestsendopropostoaqui.

    [30] Cf.Tarrius,La remonte des Suds,

    op.cit.

    [31] Cf. Chouvy, PierreArnaud e

    Aureano,Guilhermo(eds).Drogue

    etpolitique.Cemoti, Cahier dtudes

    sur la Mediterrane Orientale et le Mon-

    de Turco-Iranien,n32,2001.

    [32] Cf.Naim,Moises.Ilcito: o ata-

    que da pirataria, da lavagem de dinheiro

    e do trafico economia global.Riode

    Janeiro:Zahar,2006.

    [33] RuggieroeSouth,op.cit.,

    [34] Cf.Peraldi.Economiescrimi

    nellesetmondesdaffairesTanger.

    Cultures & Conflits,n68,2007,pp.

    111126.VertambmGuez,Sabine.

    lafrontiredulgaletdelillgal:

    travailetnarcotraficCiudadJuarez

    (Mexique)etElPaso(tatsUnis).

    Problmes dAmerique Latine,n6667,

    2007,pp.920.

    [35] Cf.Kokoreff,op.cit.

    alguma forma expressa, mas que tambm poderamos (e podemos) identificar como um trao transversal da experincia contempornea, bastante evidente, alis, no mbito de nossas cidades29.

    Segundo: o trfico de drogas est presente e tambm compe este amplo circuito transnacional de circulao de bens, mercadorias e pessoas. No o caso, nos limites desse texto, de se deter nas circuns-tncias que, sobretudo no correr dos anos de 1990, fizeram desses trficos uma proliferante e muitssima rendosa atividade com impac-tos considerveis nas dinmicas (e economias) urbanas nas cidades e regies por onde passam e se enrazam. Por enquanto, basta dizer que as redes transnacionais da economia da droga mudaram de escala e amplitude no correr desses anos. So outras modulaes dos mes-mos processos que ativaram as migraes transnacionais das ltimas dcadas30, ganhando configuraes particulares conforme as circuns-tncias geopolticas (mutantes e turbulentas) das regies produtoras e de passagem31. Estruturam-se como verdadeiras economias que se beneficiam das mutaes recentes do capitalismo contemporneo (produo flexvel, financeirizao da economia, tecnologias digitais) nas condies de ultraliberalismo e enfraquecimento das regulaes estatais32. Vale notar: se verdade que os circuitos e as redes do co-mrcio circulante transnacional tangenciam e por vezes, sob circuns-tncias locais, se articulam com os trficos ilcitos, essas redes no se confundem. Tarrius mostra, sobretudo em suas pesquisas mais recen-tes (nas rotas do Leste europeu), que no so as mesmas redes nem os mesmos agenciamentos locais. As conexes, os comprometimentos e os modos de regulao (controles mafiosos e violentos no caso das drogas) so outros, as rotas (com seus pontos/locais de passagem) tambm elas no so as mesmas, apesar de sua proximidade nas vastas regies, ao Sul e ao Leste, por onde passam.

    No entanto, a questo se coloca de outro modo quando vista sob o ngulo das dinmicas e economias urbanas das regies em que a economia da droga se instala e se ramifica: seja seus impactos nos mer cados urbanos de trabalho e a questo das mobilidades laterais de que fala Ruggiero e South33; seja suas ramificaes nas economias urbanas em uma nebulosa de relaes pelas quais o dinheiro da droga circula e impulsiona os mercados e os empreendimentos legais com impactos considerveis na economia local, para alm do que se pode-ria designar genericamente como operaes de lavagem do dinheiro sujo34; seja, no plano de seus modos de territorializao nas perife-rias urbanas, seu imbricamento no jogo das relaes sociais e na lgi-ca da virao de todos os dias, que se faz justamente nas fronteiras embaralhadas do legal e ilegal, lcito e ilcito35; seja, ainda, a redefinio dos jogos locais de poder e seus modos de regulao na disputa pela apropriao dessa forma nebulosa de riqueza (entre corrupo, formas

    09_Silva Telles_p152a173.indd 166 8/12/09 12:49:43 PM

  • NOVOSESTUDOS84JULHO2009 167

    [36] Cf.Rivelois,Jean.Lepouvoir

    clientlistelocal.Unecomparaison

    mexicaine:lintgrationsocialepar

    lconomiesouterrainedeladrogue.

    Lusotopie, 1996,pp.33342.Vertam

    bmChassagne,Philippe.Opiacs

    etroutesdesBalkans:facteursgo

    graphiques,historiquesetpolitiques

    duphnomne.Hrodote,n112,1

    trimestre,2004.

    [37] Cf.Misse,op.cit.;Zaluar,Alba.

    Integrao perversa: pobreza e trfico de

    drogas.RiodeJaneiro:FGVEditora,

    2004.

    [38] Cf.Oliveira,Francisco.Oorni

    torrinco.In:Crtica razo dualista/ O

    ornitorrinco. So Paulo: Boitempo,

    2003.

    de clientelismo, acordos mafiosos, violncia aberta ou camuflada) em situaes de encolhimento das prerrogativas estatais ou ento de per-da do monoplio da violncia legtima, para lembrar aqui a frmula famosa de Weber36.

    Por fim, se a noo de bazar metropolitano interessa sobretudo porque oferece um plano de referncia que permite situar (mas sem confundir em um amlgama confuso) os vetores que hoje atravessam e estruturam as dinmicas urbanas atuais. So eles as mutaes do tra-balho (e as redes nebulosas de subcontratao) que tornam incertas as diferenas entre trabalho precrio, emprego temporrio, expedientes de sobrevivncia e atividades ilegais a zona cinzenta em que operam as mobilidades laterais dos trabalhadores urbanos nos principais centros metropolitanos da atualidade. So tambm as formas de cir-culao de riqueza que se territorializam nas vrias modulaes do dito mercado informal e do comrcio popular proliferante nos cen-tros urbanos por onde circulam bens e produtos de origem duvidosa entre pirataria, contrabando, falsificaes ou simplesmente desvio dos circuitos produtivos oficiais. Trata-se ainda do mercado dos bens ilcitos (drogas, sobretudo) tambm conectados em redes transnacio-nais, com capilaridades nas dinmicas urbana e que dependem, assim como outros mercados ilegais, em seus modos de territorializao, dos mercados (tambm ilegais) de proteo esses tambm compem o bazar metropolitano na sua face poltica ou ento crapulosa, para lembrar aqui a discusso proposta por Peraldi.

    diNmicas uRbaNas RedefiNidas

    Bem sabemos que, entre ns, o bazar metropolitano no exa-tamente uma novidade. Esse trnsito entre o informal e o ilegal, qui o ilcito, sempre ocorreu em cidades caracterizadas desde longa data por um expansivo mercado informal, sempre prximo e tangente aos mercados ilcitos que tambm tm uma histria importante de ser, em outro momento, reconstruda37. Porm, se h, hoje, a reatualiza-o de uma histria de longa durao, h tambm um deslocamento considervel na ordem das coisas. tambm nesse ponto que o ba-zar metropolitano descrito por Ruggiero interessa como referncia que permite situar a contemporaneidade e as ressonncias do que acontece aqui e l. Isso que sempre foi considerado uma evidncia das incompletudes de nossa modernidade, a exceo do subdesen-volvimento, como diz Chico de Oliveira, projetou-se no ncleo di-nmico de um capitalismo que mobiliza e reproduz o trabalho sem forma38, ao mesmo tempo em que fez generalizar os circuitos ilegais de uma economia globalizada nas sendas abertas pela liberalizao financeira, a abertura dos mercados e encolhimento dos controles

    09_Silva Telles_p152a173.indd 167 8/12/09 12:49:43 PM

  • 168 iLEgaLiSmOSUrbaNOSEaciDaDE Vera da Silva Telles

    [39] Aesserespeito,verNaim,op.

    cit.

    [40]Paraessadiscusso, tomando

    comorefernciaasituaodospases

    africanos,verBayart,JeanFranois,

    Ellis,StepheneHibou,Batrice.The

    criminalization of the State in Africa.

    Bloomington: Indiana University

    Press,1999;Bayart.Lecrimetrans

    nationaletlaformationdeltat.Po-

    litique Africaine, Dossier Globalisation

    et Illicite en Afrique,n93,mar.,2004,

    pp.93104;Botte,Roger.Versuntat

    illgallgal?.Politique Africaine,n

    93,mar.2004,pp.721.

    [41] Essaaapostainscritanosv

    riosartigosquecompemacoletnea

    organizadaporKokoreff,Michel,Pe

    raldi,M.eWeinberger,Monique,Eco-

    nomies criminelles et mondes urbains.

    Paris:PUF,2007.

    estatais39, em um tal intrincamento entre o oficial e o paralelo, entre o legal e o ilegal, o lcito e o ilcito que essas binaridades perdem senti-do e tornam obsoletas as controvrsias clssicas em torno do formal e do informal40.

    Por outro lado, se a situao brasileira tem que ser vista sob o ngu-lo dos processos transversais que a atravessam, tambm importante averiguar os modos de sua territorializao, em interao com contin-gncias locais, histria e tradies herdadas, assimetrias e desigualda-des que lhes so prprias. Nesse plano, a referncia ao bazar contem-porneo tambm interessa, na medida em que prope a escala urbana para a descrio de recomposies, redefinies e deslocamentos nas relaes entre o informal, o ilegal e o ilcito em suas interaes com os circuitos urbanos de circulao de riqueza e as relaes de poder inscritas em seus pontos de interseco41.

    Ser importante verificar o modo como as dinmicas urbanas so redefinidas por essas novas formas de produo e circulao de riquezas que caracterizam a experincia contempornea. Trata-se do engendramento de formas urbanas atravessadas por circuitos econ-micos em escalas variadas que se superpem e se entrecruzam nos mercados informais, tambm eles redefinidos, pois agora conectados a economias transnacionais que mobilizam os trabalhadores e ativam agenciamentos locais informais, tambm ilegais, para fazer circular bens e mercadorias.

    Basta seguir os produtos que circulam nos centros de comrcio po-pular na cidade de So Paulo, com a legio de ambulantes que fazem cir-cular produtos de origens variadas, quase sempre duvidosas, pondo em ao agenciamentos locais e territorializados (verdadeiros dispositivos comerciais) que fazem a articulao entre o informal e os circuitos ilegais das economias transnacionais (contrabando, pirataria, falsificaes). So pontos de ancoramento de um capitalismo que, como diz Alain Tarrius, mobiliza os pobres como clientes, consumido res e ope radores ou pas-sadores que garantem a circulao e a distribuio de mercadorias que, sem esses circuitos nas fronteiras porosas do legal e ilegal, quando no ilcito, no chegariam aos recantos mais pobres das vrias regies do planeta. Disso temos as evidncias na expanso mais do que consider-vel dos mercados de consumo popular, que apresentam uma densida-de notvel no centro da cidade, mas que se expandem igualmente nos bairros perifricos em mercados locais apoiados em uma trama variada tecida nas fronteiras incertas do informal, do ilegal e do ilcito.

    essa teia de mediaes e esse jogo de escalas entrecruzadas que podemos desdobrar a partir de qualquer um desses pontos de ven-da que se multiplicam nos espaos urbanos e por onde circulam pro-dutos os mais variados: os muito modernos mercados de Cd pirata, produtos falsificados ou ento contrabandeados, dos cigarros vindos

    09_Silva Telles_p152a173.indd 168 8/12/09 12:49:43 PM

  • NOVOSESTUDOS84JULHO2009 169

    [42] Cf.Freire,Carlos.Trabalho infor-

    mal e redes de subcontratao: dinmi-

    cas urbanas da indstria de confeces

    em So Paulo.SoPaulo:dissertao

    demestrado,FFLCHUSP,2008.

    do Paraguai, passando por isqueiros vindos sabe l de onde, at os eletrnicos que chegam dos contineres chineses desembarcados no porto de Santos. So uma entre outras tantas fontes de renda para os que agenciam esses pontos de venda, mobilizando redes locais de so-ciabilidade e mais uma cascata confusa de intermedirios por onde circulam produtos cuja origem convm no perguntar, mas que fazem a alegria sobretudo dos mais jovens (mas no s deles) com seus apa-relhos de MP3, celulares modernos, aparelhos de som e DVD.

    Esses entrecruzamentos entre dinmicas urbanas e modos de ter-ritorializao de circuitos econmicos transnacionais so igualmente perceptveis nas redes de subcontratao que se expandem, em cascata, em uma zona cinzenta que torna indiscernveis as diferenas do legal e ilegal, e que so mobilizadas, por exemplo, por uma indstria txtil em aceleradssimo processo de integrao ao capital globalizado. Tome-mos um exemplo, seguindo as pistas da pesquisa de Carlos Freire na cidade de So Paulo42: nos pontos extremos da periferia leste da cidade, o tradicional e hoje renovado trabalho a domiclio. Sob certa perspec-tiva, exemplo paradigmtico da atividade de sobrevivncia, prpria ao mundo da pobreza com todas as limitaes e vulnerabilidades que lhe so definidoras nos pontos de juno entre precariedade e segregao urbana. No entanto, basta seguir o traado dos produtos para que outra topografia urbana e social seja desenhada. A partir da possvel desen-rolar os fios dos circuitos variados do chamado mercado informal e, em suas conexes, os vrios coletivos a atuantes: os intermedirios que fa-zem a conexo com os plos globalizados da economia e tambm com os negcios obscuros de procedncia variada; as associaes comuni-trias ditas filantrpicas que se transformam em agenciadoras das re-des locais de subcontratao numa peculiar mistura de apelo solidrio, clientelismo e jogo de poder nas disputas locais, tudo isso redefinido na medida em que justamente mobilizado por redes de subcontratao acionadas sabe-se l por quem e de modo muito obscuro, pois nunca se sabe ao certo de onde vem a encomenda, muito menos quem paga pelo trabalho feito e para aonde vai o produto realizado. Atravessan-do tudo isso, nos mesmos espaos e nos mesmos territrios, os flu-xos da migrao clandestina trazem para os fundos da periferia leste os bolivianos, agora personagens conhecidos da paisagem urbana, que vivem e trabalham em condies mais do que penosas, j que em boa medida so cativos dos coreanos que muito freqentemente agenciam a migrao e esto muitssimo bem instalados no centro da cidade. dali que saem as encomendas que vo circular pelas redes informais de subcontratao, mobilizando bolivianos e mais boa parte do trabalho a domiclio nessas regies distantes da cidade, ativando os circuitos da produo txtil que, no caso da zona leste da cidade, se alimenta da histria urbana da regio e reatualiza a importncia do centro velho

    09_Silva Telles_p152a173.indd 169 8/12/09 12:49:44 PM

  • 170 iLEgaLiSmOSUrbaNOSEaciDaDE Vera da Silva Telles

    [43] Permitomeremeteraonosso

    artigoemqueessasquestesforam

    tratadascombaseempesquisareali

    zadaemumbairrodaperiferiapaulis

    ta.Cf.TelleseHirata,op.cit.

    [44] Desenvolviessasquestesem

    Telles,Transitandonalinhadesom

    bra,tecendoastramasdacidade.In:

    Oliveira,FranciscoeRizek,Cibele

    (orgs.).A era da indeterminao.So

    Paulo:Boitempo,2007.

    da cidade (Brs, Bom Retiro), onde esto instaladas as confeces, onde se entrelaam todos esses fios, abertos e subterrneos ou clandestinos, e so igualmente urdidas as vinculaes com um mercado em acelera-dssimo processo de integrao no capital globalizado.

    Essas linhas desdobram-se e encontram um ponto (outro ponto) de juno nos lugares de concentrao do comrcio ambulante, onde todas as situaes podem ser encontradas lado a lado, num total em-baralhamento do legal e do ilegal, do lcito e do ilcito, do formal e do informal. Ali os produtos circulam por meio de acordos nem sempre fceis de serem mantidos entre organizaes mafiosas, gente ligada ao trfico de drogas, comerciantes pobres, intermedirios dos coreanos (e de outros tantos), alm dos fiscais da prefeitura que tentam fazer valer as regulaes oficiais, tudo isso misturado com presses, cor rupo, acertos obscuros e histrias de morte. Todo um jogo de atores que atuam nessa zona cinzenta feita de alianas, disputas ou acertos escu-sos, tudo isso regido por relaes de fora que liberam uma violncia sempre presente, sob formas latentes ou abertas, mas potencialmente devastadoras. Mas l mesmo que circulam produtos de procedncia conhecida, desconhecida, duvidosa ou simplesmente ilcita, mas tam-bm o excedente, se que possvel falar nesses termos, das famlias que se viram como podem para bem aproveitar o tempo que lhes sobra entre os ritmos descontnuos e incertos da produo sob encomenda.

    Todas essas linhas se entrecruzam nas prticas sociais, no plano das famlias, da economia domstica e das redes sociais, e a o jogo social se faz em conexo com outros tantos circuitos que embaralharam ainda mais as fronteiras do legal e do ilegal, do formal e do informal, do lcito e do ilcito. nesse plano que o varejo da droga encontra seus pontos de ancoramento, se enreda nas tramas urbanas em que os fluxos de dinheiro, de mercadorias, de produtos ilegais e ilcitos se superpem e se entrelaam nas prticas sociais e nos circuitos da sociabilidade po-pular. Por economia de texto, j que o tema exigiria muito mais do que possvel nessas linhas43, aqui que entram em cena figuras como a prosaica Doralice, com a qual abrimos esse artigo, personagem urbano que, em seus percursos, tambm nos faz ver o modo como esse imbri-camento se conjuga nas tramas da cidade. O fato que indivduos e suas famlias transitam nessas tnues fronteiras do legal e do legal, sa-bem muito bem lidar com os cdigos de ambos os lados, sabem jogar com as diversas identidades que remetem a esses diversos universos superpostos e embaralhados nas coisas da vida. Sabem, sobretudo, exercitar essa especial arte do contornamento para evitar os riscos alojados justamente nas dobras dessas fronteiras porosas: a violncia da polcia, sempre presente nesses percursos, e tambm a eventualida-de de algum desarranjo nos acertos instveis com os empresrios do ilcito, e no apenas o trfico de drogas44.

    09_Silva Telles_p152a173.indd 170 8/12/09 12:49:44 PM

  • NOVOSESTUDOS84JULHO2009 171

    [45] Foucault,Michel.Vigiar e punir.

    Petrpolis:Vozes,2006,p.227.

    [46]Misse.Mercadosilegais,redes

    deproteoeorganizaolocaldo

    crime. Revista Estudos Avanados da

    USP,vol.21,n61,2007,pp.139158.

    [47] Questo especialmente enfa

    tizadaporKokoreffemsuaspesqui

    sassobreosmundosdadrogano

    contexto francs.Cf.Kokoreff,op.

    cit.Entrens,cf.Misse,Mercados

    ilegais...,op.cit.

    uma Nova gesto das ilegalidades?

    A redefinio das relaes entre o informal, o ilegal e o ilcito, de alguma forma expressa na noo hoje revisitada de economia de ba-zar, poderia ser vista sob o ngulo de um deslocamento das formas de gesto dos ilegalismos. Lembremos: ao cunhar essa noo em Vigiar e punir (1975), Foucault desloca a discusso da tautolgica e estril binaridade legal-ilegal, trazendo para o centro da investiga-o os modos como as leis operam, no para coibir ou suprimir os ilegalismos, mas para diferenci-los internamente, riscar os limi-tes de tolerncia, dar terreno para alguns, fazer presso sobre outros, excluir uma parte, tornar til outra, neutralizar estes, tirar proveito daqueles45. Na passagem do sculo XVIII para o sculo XIX, tratava-se de lidar com uma nova economia poltica dos ilegalismos popu-lares, uma outra distribuio dos ilegalismos que acompanhava as novas formas de produo e circulao de riquezas (a economia ur-bano-industrial), seus modos de apropriao (o instituto jurdico da propriedade privada) e as polarizaes conflituosas (e explosivas) de classes que desfaziam as cumplicidades anteriores e se desdobravam nas multides confusas que era preciso ento desfazer e ordenar sob a lgica dos dispositivos disciplinares ento em formao. No seria arriscado dizer que, nesta outra virada dos tempos, do sculo XX para o XXI, h um deslocamentos considervel na economia interna dos ilegalismos populares, acompanhando as atuais reconfigura-es do capitalismo contemporneo. o que se pode ler, em filigrana, nas vrias pesquisas comentadas ao longo deste texto. isso o que est igualmente cifrado nas clivagens nem sempre muito claras en-tre a transgresso que se opera no mbito da economia informal e a que se define a atividades ilegais ou propriamente criminosas, como o trfico de drogas.

    Seja como for, se de interesse compreender os novos ilegalismos urbanos, no se poder descartar do campo da investigao a face po-ltica do bazar metropolitano, seja no registro dos agenciamentos polticos que se fazem nas dobraduras do legal e do ilegal os merca-dos de proteo-extorso que, como enfatiza Michel Misse, so mais ou menos ferozes e violentos conforme o grau de incriminao dessas atividades46 , seja no registro do modo como os mercados ilegais e ilcitos se redefinem, se deslocam, se reorganizam conforme alteram as prticas de controle, punio, represso, bem como as categoriza-es jurdico-policiais que comandam seus modos de tipificao47.

    Na verdade, isso definiria um amplo programa de investigao. Porm, essas breves sugestes tm aqui o sentido de chamar a ateno para o fato de que as redefinies das formas de controle afetam esses trabalhadores urbanos que transitam nas fronteiras porosas do legal

    09_Silva Telles_p152a173.indd 171 8/12/09 12:49:44 PM

  • 172 iLEgaLiSmOSUrbaNOSEaciDaDE Vera da Silva Telles

    [48] Em todos os lugares, vem se

    dandooqueGarlandchamadeen

    carceramentoemmassa.Valeacita

    o:[NosEstadosUnidos]oencar

    ceramentotornouseumainstituio

    socialqueestruturaasexperincias

    degrupossociaisinteiros.Tornou

    separtedoprocessodesocializao.

    Cadafamlia,cadadomiclio,cadain

    divduoemsuavizinhanatemuma

    experinciapessoal edireta coma

    prisopormeiodaesposa,deumfi

    lho,deumparente,deumvizinho,de

    umamigo.Encarceramentoquedei

    xoudeserodestinodeumpunhado

    deindivduoscriminosos,etornase

    umainstituioqueganhaformapara

    amplossetoresdapopulao.[...]Te

    mos,hoje,verdadeirasbibliotecasde

    pesquisasemcriminologiasobreo

    impactodaprisosobreosindivduos

    encarcerados,masquasenadasobreo

    seuimpactosocialnascomunidades

    esuasvizinhanas(Garland,David.

    Mass imprisionment: social causes and

    consequences. Londres/Thousand

    Oaks,Calif.:Sage,2001).

    [49] LoicWacquanteDavidGarland

    sorefernciaobrigatrianessadis

    cusso.DeWacquant,verOlugar

    daprisonanovaadministraoda

    pobreza.Novos Estudos Cebrap,n

    80,mar.,2008.DeGarland,verThe

    culture of control: crime and social order

    in contemporary society.Chicago,The

    UniversityofChicagoPress,2001,e

    tambmAscontradiesdasocie

    dadepunitiva:ocasobritnico.Re-

    vista de Sociologia e Poltica,n13,nov.,

    1999,pp.5980.

    [50]AquestesdiscutidasporMa

    nuelaCunhanocontextoportugus

    tmparalelosnotveiscomassitua

    esencontradasnasperiferiaspau

    listas.Cf.Cunha,Manuela.Entreo

    bairroeapriso:trficoetrajectos.

    Lisboa:FimdeSculo,2002.

    e ilegal, do formal e informal, do lcito e ilcito. Quer dizer: afetam os percursos das mobilidades laterais que agora passam, com uma freqncia cada vez maior, tambm entre a rua e a priso. O fato que indivduos com passagens pelos dispositivos judiciais-carcerrios so cada vez mais presentes no cenrio urbano atual, aqui e alhures48. A questo est na pauta dos debates atuais49. Impossvel enfrent-la nos limites desse texto, pois envolve outros tantos aspectos do cen-rio contemporneo.

    Mas se corremos o risco de passar de modo to ligeiro por uma questo dessa envergadura porque no possvel evit-la, menos por conta da lgica interna de um argumento e mais, muito mais, por uma imposio de evidncias de que no se pode contornar. Faz parte do dirio de campo de qualquer pesquisador que circule pelas periferias da cidade a constatao de que , hoje, quase impossvel encontrar uma famlia que no tenha contato e familiaridade, direta ou indireta (co-nhecidos, vizinhos, parentes) com a experincia do encarceramento. Isso levanta a pergunta sobre o modo como essa experincia afeta pr-ticas cotidianas e os modos de organizao da vida familiar (apoios, visitas, advogados, busca de recursos e solidariedades etc.) e, junto com isso, a ativao de redes sociais que passam, tambm elas, por essas fronteiras porosas do legal-ilegal, lcito-ilcito, para mobilizar recursos, suportes, bens e informaes de que depende a vida dos parentes aprisionados. Em outras palavras, o dispositivo carcerrio compe atualmente uma referncia urbana, redesenha os circuitos da cidade e em torno dele, nas fronteiras tambm porosas do fora e dentro de seus muros, h toda uma trama de relaes que vai sendo tecida em um jogo social variado que termina por desativar a binaridade ordem-desordem pela qual os dispositivos disciplinares (aqui, novamente Foucault) recortaram e formalizaram as transgresses50.

    O ex-presidirio hoje um personagem urbano presente (e cada vez mais presente) nas tramas sociais do bazar metropolitano: seja como operador dos vrios ilegalismos da economia urbanas; seja como com-ponente importante nessa espcie de reproduo ampliada dos mer-cados ilcitos (e da criminalidade urbana) na prpria medida em que se encontra cativo de formas de controle que o mantm no circuito fechado da delinqncia como diz Foucault, uma forma subor-dinada dos ilegalismos populares; seja ainda porque est presente, o tempo todo, nos agenciamentos da vida cotidiana e nas redes sociais que passam pela famlia, pelas relaes de vizinhana e todas as cum-plicidades tecidas no jogo das reciprocidades populares.

    Mas nesse ponto que se pode tambm reatar com a questo pro-posta no incio deste artigo, o plano de atualidade que atravessa essas realidades, em ressonncia com o que vem acontecendo em outros lugares. Temos aqui, talvez, outra pista a ser seguida para entender

    09_Silva Telles_p152a173.indd 172 8/12/09 12:49:44 PM

  • NOVOSESTUDOS84JULHO2009 173

    alguns dos processos transversais que atingem as sociedades atuais e que, nesse caso, remetem ao endurecimento penal e das formas de controle. Esse o outro lado do deslocamento das fronteiras do formal-informal, legal-ilegal, lcito-ilcito, deslocamento que pre-cisaria ser analisado em relao s mudanas na gesto diferencial dos ilegalismos. Isso supe colocar no foco da discusso os modos de incriminao e a redefinio, como sugere Garland, das formas de controle na sociedade ps-disciplinar ou, como prope Wacquant, o lugar redefinido da priso na sociedade ps-fordista, como forma de gesto da pobreza, compondo e interagindo com dinmicas urbanas nas quais tambm se atualizam e se redefinem traos persistentes de nossa histria.

    Vera da Silva Telles sociloga e professora do Departamento de Sociologia da USP.

    Rece bido para publi ca o

    em 3 de maro de 2009.

    noVos esTUdoscEbraP

    84, julho 2009

    pp. 153-173

    09_Silva Telles_p152a173.indd 173 8/12/09 12:49:44 PM