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Verbos Do Salomao

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Crônicas, Artigos e Crítica reunida pelo editor Iba Mendes

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Salomão Rovedo

Verbos do Salomão

Ensaio – Crítica – Resenha

Publicação autorizada pelo autor. O título é nosso. As imagens sobre os títulos não se incluem nos originais.

Salomão Rovedo (1942)

“Projeto Livro Livre”

Livro 655

Poeteiro Editor Digital

São Paulo - 2015 www.poeteiro.com

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PROJETO LIVRO LIVREPROJETO LIVRO LIVREPROJETO LIVRO LIVREPROJETO LIVRO LIVRE

Oh! Bendito o que semeia Livros... livros à mão cheia...

E manda o povo pensar! O livro caindo n'alma

É germe — que faz a palma, É chuva — que faz o mar.

Castro Alves

O “Projeto Livro Livre” é uma iniciativa que propõe o compartilhamento, de forma livre e gratuita, de obras literárias já em domínio público ou que tenham a sua divulgação devidamente autorizada, especialmente o livro em seu formato Digital. No Brasil, segundo a Lei nº 9.610, no seu artigo 41, os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento. O mesmo se observa em Portugal. Segundo o Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, em seu capítulo IV e artigo 31º, o direito de autor caduca, na falta de disposição especial, 70 anos após a morte do criador intelectual, mesmo que a obra só tenha sido publicada ou divulgada postumamente. O nosso Projeto, que tem por único e exclusivo objetivo colaborar em prol da divulgação do bom conhecimento na Internet, busca assim não violar nenhum direito autoral. Todavia, caso seja encontrado algum livro que, por alguma razão, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentileza que nos informe, a fim de que seja devidamente suprimido de nosso acervo. Esperamos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejam repensadas e reformuladas, tornando a proteção da propriedade intelectual uma ferramenta para promover o conhecimento, em vez de um temível inibidor ao livre acesso aos bens culturais. Assim esperamos! Até lá, daremos nossa pequena contribuição para o desenvolvimento da educação e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obras em domínio público, como esta, do escritor brasileiro Salomão Rovedo: “Verbos do Salomão”. É isso!

Iba Mendes [email protected]

www.poeteiro.com

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ÍNDICE

A primeira visita de Macunaíma ao Rio de Janeiro......................................

Guimarães Rosa – O espelho........................................................................

Augusto dos Anjos – 100 anos do EU............................................................

Autorretrato de poetas.................................................................................

Gullar porteño..............................................................................................

Manuel Bandeira – Todas as estrelas............................................................

Chico Buarque – Atribulações de um romancista.........................................

Paulo Mendes Campos – Diário da Tarde.....................................................

O filósofo e o cantador..................................................................................

Abgar Renault – O anjo caído........................................................................

Som Saruê: O poeta e o reino encantado.....................................................

Salgado Maranhão – Acorda palavra!..........................................................

Duayer - Cartas a uma menina......................................................................

Rafael Cariello e o ‘livreiro’ português..........................................................

Natalia Viana – Sementes.............................................................................

Ana Miranda – A última quimera do poeta..................................................

Inês Pedrosa – Ora pois, pois, por quem sois... ............................................

André Iki Siqueira – Uma biografia pra esquecer..........................................

Machado de Assis vs. Lima Barreto...............................................................

Milonga e Cordel...........................................................................................

Homero – Odisseia.......................................................................................

Arrabal, Cervantes e outras rasteiras............................................................

O Quixote de Avellaneda...............................................................................

Hermann Hesse – Muitas alegrias.................................................................

A lanterninha de Pirandello...........................................................................

Anatole France – Justiça e injustiça...............................................................

Rabindranath Tagore – O poeta esquecido..................................................

Reflexões sobre Konstantinos Kaváfis...........................................................

William Somerset Maugham – A arte de escrever.......................................

William Styron – Shadrach………………………………………………………………………..

Stefan Zweig está de volta……………………………………………………………………….

Vincent Van Gogh – Cartas a Theo…………………………………………………………….

Garcia Márquez – Poeta, repórter, romancista.............................................

Memórias são como balas.............................................................................

Borges - Dois retratos....................................................................................

Isabel Allende – Conversas com Paula..........................................................

50 poemas de Sandra Pien............................................................................

Redescobrindo Salieri....................................................................................

50 anos de ditadura musical!........................................................................

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A PRIMEIRA VISITA DE MACUNAÍMA

AO RIO DE JANEIRO

“Macunaíma” (Editora Itatiaia - 1987)

Antes de escrever o romance Macunaíma, Mário de Andrade fez uma viagem que veio realizar um de seus sonhos. Partindo de São Paulo (Santos), a expedição marítima organizada por dona Olívia Penteado, correu o Amazonas e o Peru, com escalas no Rio de Janeiro, Salvador e outras capitais do Nordeste.

Desde 1926, dona Olívia Penteado – conhecida como A Senhora das Artes – vinha divulgando o seu projeto de organizar uma viagem que simbolizasse uma nova descoberta do Brasil. A ideia animou sobremaneira Mário de Andrade, que bem a seu jeito, batizou de “Viagens pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia, por Marajó até dizer chega”.

Participaram da viagem dona Olívia Penteado, sua sobrinha Mag, Mário de Andrade e Dulce, filha da pintora Tarsila do Amaral. O itinerário de ida constou de ida de navio até Belém e daí então seguir de barco pelo Amazonas até Iquitos (Peru). No retorno a comitiva percorreu a [Estrada de Ferro] Madeira-Mamoré, voltou a Belém e depois continuou até a Ilha de Marajó. Ao passo que de volta a São Paulo, fizeram escalas por algumas capitais do nordeste e pelo Rio de Janeiro.

Dessa viagem resultou um sem número de realizações do escritor paulistano e determinou o interesse de Mário pela produção cultural do Norte e Nordeste do país. Entre as obras que nasceram da viagem contam o diário publicado com o título de “O Turista Aprendiz”, as gravações, fotografias e notas sobre temas populares, que seriam incluídas em outros trabalhos.

Foi nessa viagem que Mário de Andrade descobriu o cantador de coco e repentista Chico Antonio (cujo projeto seria o livro Na pancada do ganzá), mas, principalmente, acendeu no poeta a chama de brasilidade que deu origem ao seu romance mais famoso: “Macunaíma”. Nesse romance Mário de Andrade

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inclui uma pequena passagem do herói pelo Rio de Janeiro (capítulos VII, Macumba e VIII, Vei a Sol).

É no capítulo VII Macumba, que começa a primeira atribulada passagem de Macunaíma pelo Rio de Janeiro:

Macunaíma estava muito contrariado. Não conseguia reaver a muiraquitã e isso dava ódio. Pois então resolveu tomar um trem e ir no Rio de Janeiro se socorrer de Exu diabo em cuja honra se realizava uma macumba no outro dia.

Com esse estado de espírito Mário de Andrade prepara o roteiro do seu personagem:

A macumba se rezava lá no Mangue no zungu da tia Ciata, feiticeira como não tinha outra, mãe de santo famanada e cantadeira ao violão. Tia Ciata era uma negra velha com um século no sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz em torno na cabeça pequetita.

O reduto de Tia Ciata era conhecido. Ficava ali pelas bandas da Praça Onze, nas encostas do morro do Estácio. Era ponto de reunião de macumbeiros, sambistas, músicos e também dos “fadistas” que se tornariam os chorões no futuro. Pixinguinha, Donga, João da Baiana compareciam às festanças regadas a música, mulheres e comilanças.

No mesmo terreiro em que ela festejava os Orixás, as festas de Cosme e Damião, da Oxum Nossa Senhora da Conceição, Tia Ciata comandava rodas de samba, nas quais demonstrava suas habilidades de partideira. Avançada na idade, Tia Ciata dava preferência ao miudinho, um tipo de samba sincopado que se dançava de pés colados, mãos nos quadris, rebolado e passos curtos.

Então a macumba principiou: Na ponta vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadista de profissão. E foi lá que Macunaíma provou pela primeira vez o cachiri temível cujo nome é cachaça.

O filho de Ogum, bexiguento e fadista não é outro senão o próprio Pixinguinha, em carne e osso, que foi um das muitas fontes que forneceu a Mário de Andrade os dados necessários para compor o capítulo. A correspondência de MA com os cariocas comprovam que a todos eles sempre dava um jeito de perguntar algo sobre a matéria.

No entanto, corre na internet a seguinte história:

“O escritor Mário de Andrade procurou Pixinguinha, em 1926, explicando que estava recolhendo material para um livro, ‘Macunaíma, o herói sem nenhum caráter’, que pretendia publicar. Pediu um depoimento a Pixinguinha, que relatou em detalhes as rituais do candomblé da Tia Ciata, célebre pelas famosas

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sessões onde eram cultuados orixás africanos. Em retribuição, procurando homenageá-lo, Mário fez de Pixinguinha um de seus personagens na obra, inserido na famosa cena de macumba descrita no livro pelo autor paulista. Pixinguinha figura como "um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadista de profissão”.

Em toda história tem um pouco de folclore, nesta não será diferente. Isso porque, salvo prova em contrário, se existem indícios da criação de Macunaíma nessa época (1926), não seria com tanta definição assim. O próprio Mário de Andrade fez questão de dizer que escreveu o livro em 1927, de supetão, na semana de férias que tirou no sitio do tio dele, no interior de São Paulo, após a viagem ao Amazonas. O livro saiu em 1928.

Ademais, Macunaíma foi um trabalho muito discutido com seus correspondentes, notadamente Manuel Bandeira, que ousou desclassificar Macunaíma da condição de romance, por não satisfazer algumas exigências estéticas. Resultado dessa discussão, Macunaíma saiu na primeira edição como Rapsódia e não como Romance. Também o título do romance foi motivo de comentário entre os amigos. Manuel Bandeira tratava a expressão “caráter” com o sentido moral e ético, enquanto Mário de Andrade traduzia nela o sentimento antropológico: o brasileiro, devido à mestiçagem física e cultural, ainda não tinha características de povo, raça.

Por outro lado, a mãe-de-santo mais afamada da época, Tia Ciata, havia falecido em 1924.

A macumba era frequentada por todo tipo: gente direita, gente pobre, advogados, garçons, pedreiros meia colheres, deputados, gatunos, marinheiros, marceneiros, ricaços, portugas, senadores.

Alcançado o intento de se vingar do gigante Piaimã, que tia Ciata realizou dando-lhe uma sova monumental, algumas muitas chifradas de touro selvagem e ferroadas de quarenta mil formigas-de-fogo. – o que de fato ocorreu – tudo termina em samba.

Mario de Andrade aproveita a ocasião e faz uma bela homenagem aos amigos:

Então tudo acabou fazendo a vida real. E os macumbeiros Macunaíma [ele, Mário de Andrade, o próprio], Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira, Raul Bopp, Antônio Bento, todos esses macumbeiros saíram na madrugada.

No capítulo seguinte (VIII - Vei a Sol), Macunaíma ainda está no Rio de Janeiro. Mas é o outro Rio que aparece, a baía de Guanabara, a Praça Mauá, a Avenida

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Rio Branco. Macunaíma estava com fome e fez uma trapaça com a árvore Volomã, fazendo com que caíssem dela os frutos mais saborosos.

Volomã ficou com ódio. Pegou o herói pelos pés e atirou-o pra além da baía de Guanabara, numa ilhota deserta, habitada antigamente pela ninfa Alamoa que veio com os holandeses.

O retrato da Baía de Guanabara, pontilhada de centenas de ilhotas desertas, pedregosas, com pouca ou nenhuma vegetação, sem água e sem condições de serem habitadas, se fixou em Mário de Andrade. O herói Macunaíma penou na ilhota deserta sujo de coco de urubu, até que um dia Vei, a Sol tomou Macunaíma na jangada e fez as três filhas limparem o herói.

E Macunaíma ficou alinhado outra vez.

A jangada vai flutuando pela baía de Guanabara, enquanto Macunaíma dorme. Quando a embarcação topou na margem, Macunaíma acordou.

Lá no longe se percebia mais que tudo um arranhacéu cor-de-rosa. A jangada estava abicada na caiçara da maloca sublime do Rio de Janeiro.

Este “arranhacéu cor-de-rosa” não é outro senão o Edifício A Noite, recém-terminado, que aparecia imponente, moderno e belo a todos aqueles que chegavam ao Rio de Janeiro, aportando no principal atracadouro na Praça Mauá. A paisagem vista do cais também é fotografada pelo romancista:

Ali mesmo na beira d’água tinha um cerradão comprido cheinho da árvore pau-brasil e com palácios nos dois lados. E o cerradão era a Avenida Rio Branco.

Os pés de pau-brasil ornamentavam a então Avenida Central desde a época da sua fundação em 1905. Tempos depois o pau-brasil foi substituído e até hoje a Avenida Rio Branco é arborizada com oitizeiros.

Safado como era Macunaíma se viu no Paraíso:

Pulou da jangada no sufragante, foi fazer continência diante da imagem de Santo Antonio que era capitão de regimento e depois deu em cima de todas as cunhãs por aí.

E depois de muitas estripulias, enfarado da maloca sublime:

Macunaíma não achou mais graça da capital da República. Trocou a pedra Vató por um retrato no jornal e voltou pra taba do igarapé Tietê.

Isso tudo se torna profético, porque anos depois, em 1938, Macunaíma retornaria ao Rio de Janeiro, em circunstâncias totalmente diversas e adversas. E do mesmo modo repentino resolveu retornar pra taba do igarapé Tietê.

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Esse é o mote para “A segunda visita de Macunaíma ao Rio de Janeiro”, que virá antes de Miguel de Cervantes escrever a 2ª parte do seu Dom Quixote – a não ser que outro Avellaneda mais afoito me tome à dianteira.

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GUIMARÃES ROSA O ESPELHO

“Primeiras estórias” (José Olympio Editora - 1962)

Conto como o conto foi...

Diante do espelho:

A estrutura narrativa do conto, entre os subterfúgios da criação, exige de antemão clareza e concisão. A narrativa linear do conto, de princípio cobre essa premissa. Mas a linearidade do conto narrado na primeira pessoa é cheia de armadilhas. A narrativa linear na primeira pessoa dirigida a um contraponto imaterial, assexuado, tira e dá liberdade ao narrador. Este espelho de que tratamos aqui não reflete necessariamente o valor científico. Portanto, o ouvinte invisível e mudo é incapaz de traduzir as injunções induzidas pelo autor, com base em séries de raciocínios e intuições?

Sigam-me:

O espelho é simbologia pura. Através do espelho Alice se transportou para o país das maravilhas, que outras não eram senão derivadas de raciocínios e intuições. Narciso morreu debruçado no espelho. O vampiro e os mortos não se refletem no espelho. Mas aqui não se pretende o espelho vulgar, o espelho químico, o espelho que serve para barbear, maquilar, pentear a ilusão cotidiana. O espelho honesto que reflete o rosto, seu aspecto próprio, a imagem fiel. Não. Reporto-me ao transcendente. Mas, cabe nesta realidade perceber o transcendente, resultante do concreto?

Um milagre:

Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo. Entre os milagres somam-se os fenômenos sutis. Pois é disso que tratamos. Enquanto a magia do tempo transporta para um futuro invisível, vindos de um passado que se esfumou, vivendo no mesmo dia a dia feito de fragmentos de tempos

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passados e vindouros também não visíveis – enquanto isso esqueço que o espelho é o olhar. O tempo é mágico, o olhar é o espelho. Desconfie do que os olhos vêem. Sabia que a ninguém é devido o dom de ver o rosto de outra pessoa e o seu próprio reflexo no espelho?

A descoberta:

Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí o seu desajeitado tatear. Donde se deduz que os olhos não são as portas da alma, mas o portal e o porvir de todos os enganos. O espelho, como olhar, acompanham a premissa: mesmo o espelho que nos reflete todos os dias não é diferente dos espelhos do parque de diversões que deformam a criatura. Enquanto ali sorrimos do monstro que não somos, no cotidiano é o olhar que nos protege da criatura deformada. Sob a proteção feiticeira do olhar, sobrevivemos ao espelho sem medo. Responda rapidinho: os animais e os anjos se miram no espelho?

O caçador:

Quem procura enigmas encontra enigmas. Deixe a mente esvoaçar. Não caia na tentação de remover os bloqueios visuais que a sábia natureza se nos impõe. Permaneça com os olhos submetidos a uma gaiola como o passarinho. Os olhos domados, sim, são a janela para a paisagem, a luz... Saiba que os olhos da gente não têm fim, desde que não se submeta a transar com novas e desconectadas percepções. Do contrário, preste atenção, o que vê no espelho será o bicho que dormita dentro de você. Assim, com a mente distraída, fala sério!

Preste bem atenção! Que bicho é esse aí pressentido? Refletido num relance?

A caça:

Meditação transcendental. Ioga. Vidas passadas. Concentração. Espiritismo. Reencarnação. Metempsicose. Análise dos sonhos. Pirâmides. Cromoterapia. Os cristais. Ajuntados os elementos naturais com as coligações empíricas para chegar ao supra-sumo do espelho: o olhar não-vendo. E perceber assim, o elemento hereditário – as parecenças com os pais e avós – que são também, dos nossos rostos, um lastro evolutivo residual. A Prudência é um espelho rodeado por uma serpente. Num dia qualquer a imagem desaparece do espelho. É prudente parar a investigação. Eu era - o transparente contemplador?

O não ver:

Tudo se transforma em claridade, luz misteriosa que não se vê, espelho no qual nada se reflete, apenas a luz, depois o raio, arco-íris, raio que precede o trovão, halo sobreposto ao corpo do santo, luminosidade da alma encantada, anel luminoso da cabeça de Jesus, raio que circunda os vegetais, fulgor dos corpos imantados, luz da energia, clarão do desconhecido, brilho da lâmpada,

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luminescência do fiel que adora, sol dos sóis, fogo das lavas, radiação do átomo, lume primordial, cintilação de brasa, tremular de tocha. Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa?

Atrás do espelho:

Albert Einstein contou que o universo é da forma de uma bolha de sabão. Na suposição de que o nosso olhar alcançasse o fim veríamos refletida nossa própria nuca. Chegamos a uma outra fórmula da mesma conclusão. Na qual o espelho é a vida. A existência também é da forma de uma bolha de sabão, uma bolha de espelho, capaz de todos os reflexos: gente, bicho, alma, santo, monstro. Reflexo de mim mesmo, ainda não rosto, não delineado, emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal. E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só?

Rio de Janeiro, Cachambi, 9 de julho de 2013.

OMELETE SEM OVOS

Entre as finalidades da estilística, segundo V. V. Vinogradov, encontra-se a tarefa de “conhecer o estilo individual do escritor, independentemente de toda tradição, de toda obra contemporânea”. Não obstante, o próprio Vinogradov aconselha violar esse [e todos] os demais princípios, mesmo porque, “as obras de um escritor escritas em épocas diferentes não se projetam imediatamente no mesmo plano. Devemos descrevê-las segundo sua ordem cronológica” (id).

Ora, de Guimarães Rosa sabemos que, “partindo da apreensão do magma regional, elevou-se à universalidade cósmica, através da manipulação de mitos regionais de significação universal, graças as novas dimensões que lhe emprestou a sua penetração psicológica”.

Cronologicamente o conto “O espelho”, que integra o volume de contos “Primeiras estórias” (1962), que reúne 21 contos. Nos textos, as pesquisas formais características do autor, uma extrema delicadeza e o que a crítica considera "atordoante poesia".

http://www.revista.agulha.nom.br/ednamenezes7.html

Situa-se depois de “Sagarana” (1946), “Com o vaqueiro Mariano” (1952) e do romance “Grande sertão: veredas” (1956). Esse conjunto de obra consagrou Guimarães Rosa como um artífice da linguagem, da pesquisa etimológica, estendendo-o ao campo etnográfico, mitológico e folclórico.

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A crítica moderna brasileira posterior ao Formalismo Russo – escola a que pertence o mentor destas notas – seguiu as novas regras de estilística, sem deixar de preservar a tradição. Com efeito, a crítica literária brasileira assumiu a universidade antes mesmo de enterrar os comentaristas que preferiam o ufanismo da amizade e os efeitos dos fogos de artifício para enaltecer mais o gênio do autor que a perenidade da obra.

Difícil estabelecer um marco, mas certamente as lições de Agripino Grieco foram suficientes para libertar a crítica literária das amarras. Pode-se (mas não se deve) enterrar esse ciclo passadista com Silvio Romero. Depois de Grieco Alceu Amoroso Lima e Afrânio Coutinho estabeleceram os alicerces da crítica da literatura brasileira.

Como base analítica, era o texto, entendido como artifício narrativo, a técnica, a imagística, a caracterização, estilo e convenções dramáticas, intencionais ou não. Para se firmar como dogma, a nova atitude tratou de desacreditar aquela crítica exclamativa de que se falou atrás. Agora era mais importante ensinar a ler, traduzir o que havia de literatura embutida na obra, interpretar o significado intrínseco, descobrir os mecanismos da linguagem, a literatura dentro da linguagem.

Eleva-se o primado do texto sobre a premissa do tema. Esse método de estudo estilístico, que Vinogradov chama de funcional e imanente, tem como base “o estilo de um ciclo formado de obras heterogêneas de um escritor, representado como um sistema de procedimentos estilísticos comuns a todas as suas obras”. (Id.) Quem provar que o procedimento pode ser adotado para análise da obra de Guimarães Rosa ganha um doce.

No entanto, navigare necessari est.

AS ARTES DO CONTO

Em “O Espelho” Guimarães Rosa rompe com a linguagem experimentada nas obras anteriores, como por exemplo, em “Meu tio Iauaretê”, de Sagarana. Neste caso Rosa provoca uma violenta ruptura com a língua padrão. Agora, não. Mas tecnicamente há uma semelhança, no sentido em que existe ali também um “diálogo” que se mantém até ao fim apenas com a fala do narrador. Não há como recusar a expressão “monólogo”.

Ainda mais quando o monólogo se torna uma realidade, apesar [ou em razão] da presença invisível e estática da segunda pessoa na narração. Busca-se provar também que é inverossímil todo solilóquio implica[r] em uma emissão dialógica, mesmo que o interlocutor esteja em um plano imaginário e/ou idealizado. (Ruy Perini) Aqui não há metamorfose: é apenas um espelho casual, para que a

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narrativa não se perca no espaço. A fala do narrador atinge o leitor diretamente, sem intermediários.

Em “O espelho” Guimarães Rosa segue as normas técnicas da boa literatura. Aproxima-se fisicamente da A.B.L., tem a provar que não é um escritor regionalista, sem deixar perceber que ser regionalista é uma pecha. É tempo de regionalismo em todo o Brasil, da Amazônia aos Pampas. Neste caso não há ruptura linguística, mas aparentemente, sem o perceber, ele se aproxima de outro vício imanente. Na mesma época importa-se da Europa uma literatura que rompe os limites espaciais: o realismo fantástico.

Enquanto que Gabriel Garcia Márquez realiza a mais fantástica incursão no gênero, Guimarães Rosa caminha por trilhas avançadas na arte de narrar: tem um interlocutor presente/ausente, interlocutor não nomeado, interlocutor silencioso, interlocutor/leitor, interlocutor que pensa que ouve. Tem o narrador do tema, narrador da metamorfose, o narrador radical, narrador vivendo onça, o narrador verdadeiro. Tem um tema que beira o mágico, o fantástico, o verdadeiro e o inverossímil e com ele trafega entre a ciência e a magia.

O espelho é também um narrador invisível: quando reflete a verdade, quando reflete a mentira, quando reflete o suposto. Não existe um objetivo direto na narrativa a não ser aquele representado pelo círculo: humanizar, animalizar, bestializar desumanizar e de novo humanizar – pelo pecado original, resquício de vida humana. Não há interesse na divinização da mitologia universal do espelho e do olhar como fator de progresso, também de desgraças.

O espelho é o olhar, o olhar é o espelho. A persona é tanto o que reflete, quanto o que absorve por reflexo, corpo do corpo, sombra da sombra.

------- Referências e Consultas: CANABRAVA, Euríalo – Análise da estrutura interna COUTINHO, Afrânio – Enciclopédia de Literatura Brasileira HOLANDA, Sérgio Buarque – http://almanaque.folha.uol.com.br/ HOUAISS, Antônio – Correntes cruzadas [artigo sobre o livro de AC] (1954) PORTELLA, Eduardo - Em torno de um conceito de crítica literária JAKOBSON, Roman – Biografia in www.pt-wikipidia.org MARTINS, Heitor – Do Barroco a Guimarães Rosa (1984) MENEZES, Edna - A viagem pelo labirinto - http://www.revista.agulha.nom.br/ MERQUIOR, José Guilherme – Formalismo e tradição moderna NOVA CRÍTICA – http://www.triplov.com/hipert/pratica_critica.htm PERINI, Ruy - Da escrita e da escritura - http://www.revista.agulha.nom.br/ RÓNAI, Paulo – Tutaméia - João Guimarães Rosa

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AUGUSTO DOS ANJOS 100 ANOS DO EU

AUGUSTO DOS ANJOS-EU-29ª EDIÇÃO-COMEMORATIVA DO CINQUENTENÁRIO DO SEU APARECIMENTO 1912-1962-LIVRARIA SÃO JOSÉ-RIO DE JANEIRO, 1963-INTRODUÇÃO DE FRANCISCO DE ASSIS BARBOSA

Eram bem fundadas as esperanças do poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914), ao se dispor a jogar todas as fichas no sucesso do seu livro de poesias EU. Era tamanha a fé com que carregava o seu projeto, que teve e topete de sacrificar a sua vida profissional na Paraíba e partir para o Rio, na mais completa pindaíba. Mas com laivos de irresponsabilidade, posto que arrastasse consigo a sua família na temerária aventura.

O sacrifício compulsório que teve de assumir foi impulsionado pela circunstância de ver o pedido de licença para viajar ser negado pelo Governador do Estado, que seria seu “amigo”. Assim, o que poderia ser um porto seguro em caso de fracasso, transformou-se num adeus: de modo perempto, ele abandona o cargo de professor e resolve viajar para o Rio de Janeiro, levando na bagagem a mulher grávida e os originais de seu livro de poesias EU. Corria o ano de 1910...

“Fora fulminante o choque. Retornando a casa depois da entrevista que lhe marcaria o destino, o poeta transfigurado comunicara à esposa a dramática resolução: – Vamos para o Rio. Nunca mais porei o pé na Paraíba! – Dias depois, o primeiro navio do Lóide que passou pelo Recife levaria para o Rio de Janeiro o casal Augusto dos Anjos”.

A viagem foi dramática, não só pelo arrebatamento impulsivo do poeta, mas também porque a sua esposa estava grávida de três meses. Desconhecido no Rio de Janeiro, ele contava apenas com o apoio do irmão Odilon dos Anjos, e foi justamente com este que o poeta conseguiu recursos para publicar o seu livro, após frustradas tentativas junto a editores cariocas.

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Debaixo de tanta responsabilidade, Augusto dos Anjos, morando numa pensão da Praça Mauá, no começo da Avenida Rio Branco, teve de encarar a nada fácil vida da Capital da República. O colega alagoano José Oiticica, também recém imigrado, dividia com Augusto dos Anjos sua parcela de infortúnios.

Muito embora Augusto dos Anjos tivesse conseguido emprego de professor na Escola Normal, nem por isso se viu livre da situação de penúria que passava com a família. Aceitou a colocação, mas a considerava um posto temporário, não só porque remunerava mal, mas também porque o seu sonho era fazer parte do corpo docente do Colégio Pedro II, por onde passavam todas as sumidades da época.

Toda essa situação se agrava devido a seu gênio introspectivo, onde até mesmo a ajuda espontânea e valiosa do irmão parecia a ele um favor e por isso mesmo inaceitável. Como se não bastasse, em consequência do acúmulo de desastres materiais, adveio uma profunda depressão, agravada pela recepção silenciosa, pela reação pífia dos críticos e pelo silêncio da intelectualidade sobre o seu livro. Se lembrarmos do primeiro passo dado em João Pessoa, a profunda decepção tinha sua razão de ser: Augusto dos Anjos sacrificou a vida e depositou todas as suas esperanças no sucesso do EU.

A Capital Federal vivia a época em que predominava a literatura voltada para a sociedade feliz, até certo ponto parisiense. Parnasianos e Simbolistas dividiam a atenção dos amantes da literatura e da poesia. O aparecimento de um livro como EU em 1912, nesse ambiente artificial, na segunda década dos anos de 1900, constituía uma coisa insólita e desafiadora. O cronista de O País, Oscar Lopes, representante legítimo dessa mentalidade, se mostrou escandalizado ao ler o livro de Augusto dos Anjos, "tocando no volume com a ponta dos dedos, para não sujar as mãos de sangue no vermelho do título que ocupava quase toda a capa".

Lá mais adiante, esse fato inusitado – em que a própria capa, elaborada de modo excêntrico, por si própria provoca um rebuliço – Manuel Bandeira bem que notou: “Nesse ambiente de requintado modernismo estourou como um grito bárbaro a voz de um estranho poeta, cujo livro se intitula EU e já nesse prenome impresso em grandes letras que tomavam toda a capa, clamava o seu irredutível egotismo”.

Porém, alguns poucos simbolistas – vertente literária futurista e rebelde da época – ao lado de outros não vinculados às correntes literárias, apoiaram o recém-chegado. Mário Pederneiras, Osório Duque Estrada, José Oiticica e Eduardo Guimarães (de pensamento independente), saudaram a poesia nova e diferente de Augusto dos Anjos.

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Assim, como seu livro de estreia EU – que viria ser o único – Augusto dos Anjos morreu, desconhecido e silencioso, em 1914, na cidade de Leopoldina (MG). A não ser pela agitação promovida pelos ardorosos admiradores Orris Soares, Heitor Lima e Antonio Torres, nada se comentou na imprensa. Antes mesmo de completar quatro anos de vida na Capital Federal, antes de realizar o sonho de ver seu livro ser aceito pelos leitores e pela crítica, Augusto dos Anjos desapareceu.

Dos literatos de seu tempo se contam duas anedotas. A primeira foi atribuída a Olavo Bilac, o Príncipe dos Poetas Brasileiros, e ocorreu logo após o falecimento de Augusto dos Anjos:

Poucos dias depois de sua morte, os amigos Orris Soares e Heitor Lima caminhavam pela Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, quando encontraram a Olavo Bilac, recém-eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros. Ao cumprimentá-lo, ele indagou o porquê da visível tristeza dos dois amigos. Logo Olavo Bilac foi informado da morte do ‘grande’ poeta Augusto dos Anjos, mas sua reação foi frustrante: mostrou completo desconhecimento do nome do ‘grande’ poeta, não conhecia nenhuma poesia dele e ignorava as circunstâncias do fato.

E quis saber: “Quem é esse Augusto dos Anjos?”. Os dois amigos, espantados diante da falta de informação do poeta, ficaram mudos. Ante o silêncio de seus interlocutores, Olavo Bilac insistiu: “Quem foi esse poeta? Não conheço, nunca ouvi falar, sabem alguma poesia dele?” Heitor Lima tomou a iniciativa e recitou o soneto “Versos a um coveiro”, que foi ouvido séria e pacientemente. Mas talvez tenha sido a escolha de repertório infeliz, que fez Olavo Bilac sentenciar: “É esse o poeta? Então fez bem morrer, porque não se perdeu grande coisa”.

A segunda anedota, quando muitos críticos já tinham publicado outras opiniões, era bem diferente:

Gilberto Freyre, então licenciado da Columbia University (USA), em visita à Paraíba a convite de José Lins do Rego, foi levado a conhecer uma estátua, recém inaugurada, em homenagem ao escritor Álvaro Machado. Diante da imponente vassalagem ele perguntou a José Lins: “E para Augusto dos Anjos, o que vocês fizeram?”

Foi desse modo, tardio e anedótico, que Augusto dos Anjos passou a pertencer ao Clube Exclusivo de Artistas Incompreendidos em Vida. Em literatura não são poucos os membros desse clube, desde o exemplo maior Miguel de Cervantes, com Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança, que não teve reconhecimento dos contemporâneos de sua terra: “Post tenebras, spero lucen” é a divisa que acompanha o seu Ex Libris...

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No nosso país, Augusto dos Anjos tem como principal parceiro o poeta e também nordestino Joaquim de Sousândrade (1832-1902), que teve o seu longo poema O Guesa (13 Cantos, total de 3342 estrofes, escritos entre 1858 e 1888), impresso na Inglaterra e ignorado pela crítica. Joaquim de Sousândrade constatou, com tristeza, que o seu livro só seria compreendido no espaço de cinquenta anos após sua morte. Voltando a Augusto dos Anjos, o mea culpa veio primeiro de José Américo de Almeida, que se viu na obrigação de escrever sobre o poeta logo quando após sua morte completar um mês. Daí em diante o reconhecimento ao valor do EU e da qualidade do poeta, não só cresceu, mas ganhou novas e contundentes avaliações.

Toda essa polêmica, que para alguns demora até os dias atuais, transformou o EU num livro enigmático e desafiador, fazendo parelha com outras obras que sobreviveram graças ao extraordinário poder, à qualidade de conteúdo, ao mistério que as suas criações guardaram. Aleatório e de memória, relembro alguns títulos que participam do mesmo destino: Folhas da relva (Walt Whitman), Primeiros cantos (Gonçalves Dias), Flores do mal (Charles Baudelaire), Navio negreiro (Castro Alves) e o já citado O Guesa, de Sousândrade. Para referir somente à poesia, se pode afirmar que Augusto dos Anjos está em ótima companhia.

Já faz mais de cem anos que Augusto dos Anjos aportou no Rio de Janeiro trazendo debaixo do sovaco os originais do EU, livro que tanto amava e no qual depositou todas as suas esperanças. Em 2012 faz cem anos também que saiu a primeira edição, guardada por um silêncio de vários anos, pois só em 1920 foi publicada a segunda edição, por iniciativa de amigos. Além de deixar como herança os volumes encalhados, ao autor coube guardar a dívida com seu irmão que nunca foi paga.

E, no entanto, os poemas do EU – acrescidos de outros escritos publicados esparsamente – continuarão sua indevassável e sempre renovada jornada através da mente do leitor. Alguns poemas parecem fácil tradução emotiva de uma vivência pessoal; a grande maioria, porém, traduz a comoção que acompanha o homem e seu destino cabalístico, científico, teológico – que está sujeito sempre à derivação que a mente estipula para cada intérprete e seu tempo.

Rio de Janeiro, Cachambi, 1 de janeiro de 2012.

Obs.: O texto e as citações deste artigo foram baseados no volume acima citado.

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AUTORRETRATO DE POETAS

Poetas falam de per si, mas com grande desassossego. Na maior das vezes cuida de tratar bem os sintomas da humanidade, ainda que presente apenas no universo próximo, ao seu redor. Quando Augusto dos Anjos chegou ao Rio de Janeiro trazendo os originais do seu livro de poesias EU debaixo do braço, cheio de esperanças, se surpreendeu com a recepção pífia com que seus pares receberam a publicação, não obstante o calor da crítica de alguns poucos. Mário Pederneiras escreveu uma nota simpática, Osório Duque Estrada preferiu discutir as ideias filosóficas do poeta:

“Um grande talento transviado; promessa de extraordinário poeta, abortada na alma de um filósofo; extravagante volume de versos em que pérolas se misturam com o cascalho dos exotismos estapafúrdios”. Sem negar que se trata de “um espírito de elite e uma inteligência capaz de grandes cometimentos”.

Outros foram menos bondosos e criticaram abertamente o excessivo e egocêntrico poeta, que se gabava com alarde das qualidades próprias. É que Augusto dos Anjos tinha plena consciência das qualidades de sua obra. Para manter a coerência crítica e assegurar ao poeta um lugar no país de Olavo Bilac, Hermes Fontes deu a maior força:

“Augusto dos Anjos é um poeta que não se confunde com os outros. É diferente dos demais pelo credo, pela fortuna e pela grande independência de pensar e dizer. Com os outros, isto é, com três ou quatro dos nossos grandes jovens poetas, ele se identifica, apenas, pela força da cultura, pela segurança, pelo brilho, pela excepcionalidade de seu estro”.

O cientificismo, o amor pelas coisas inauditas, a absorção de temas universais, a liberdade de tratamento dado ao Ser e à Terra, consubstanciados numa só comunidade – tudo isso fez com que Augusto dos Anjos se mantivesse à margem, transformando-o em Poeta Maldito.

Escondido num Soneto, porém, achamos outro retrato de Augusto dos Anjos, mais simpático, alegre até, desprendido das coisas materiais. No mesmo rumo de Bocage, perpassando por seu conterrâneo Leandro Gomes de Barros,

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Augusto dos Anjos apresenta um humor até então desconhecido e ignorado. Vejamos as similaridades. Bocage foi um dos que poetizaram o autorretrato:

SONETO Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura, Triste de facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno: Incapaz de assistir num só terreno, Mais propenso ao furor do que à ternura; Bebendo em níveas mãos por taça escura De zelos infernais letal veneno: Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moças mil) num só momento E somente no altar amando os frades; Eis Bocage, em que luz algum talento; Saíram dele mesmo estas verdades Num dia em que se achou mais pachorrento. Esse é o Bocage! E Leandro Gomes de Barros – que nada devia em humor e talento ao grande vate lusitano – será que era leitor de Bocage? Parece que sim, porque ele publicou na contracapa do folheto “Peleja de Manoel Riachão com o Diabo” um autorretrato muito próximo ao Soneto do poeta português. Os traços de Leandro Gomes de Barros, desenhados pelo próprio, tem o ritmo gracioso e piadista revelados em grande parte de sua poesia. Eis como Leandro se viu:

A cabeça um tanto grande e bem redonda, O nariz, afilado, um pouco grosso; As orelhas não são muito pequenas, Beiço fino e não tem quase pescoço. Tem a fala um pouco fina, voz sem som, De cor branca e altura regular, Pouca barba, bigode fino e louro. Cambaleia um tanto quanto ao andar. Olhos grandes, bem azuis, da cor do mar; Corpo mole, mas não é tipo esquisito, Têm pessoas que o acham muito feio,

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Sua mãe, quando o viu, achou bonito! A literatura é vasta, portanto deve ter por aí outros milhares de exemplos de poetas que se fizeram conhecer desenhando a própria imagem, o tipo físico, os traços, olhos, o jeitão, rugas e narizes, nas linhas de seus versos, como os pintores fazem através de suas telas. Cavoucando o EU, tive o sentimento de que também Augusto dos Anjos desenhou um autorretrato, ainda que usando um pseudônimo inventado, seguindo os mesmos parâmetros de Bocage e Leandro, mas com um humor muito superior, como que rindo de si mesmo. Eis:

SONETO O oxigênio eficaz do ar atmosférico, O calor e o carbono o simples éter são, Valem três vezes mais que este Américo Augusto dos Anzóis Souza Falcão... Engraçado, magríssimo, pilhérico, Quando recita os versos de Tristão Fica exaltado como um doente histérico Sofrendo ataques de alucinação. Possui claudicações de peru manco, Assina no Croquis Rapaz de Branco E lembra alto brandão de espermacete... Anda escrevendo agora mesmo um poema E há em seu corpo igual a um corpo de ema A configuração magra de um 7. Obs.: Anda circulando por aí uma versão desse retrato de Leandro Gomes de Barros com algumas ‘correções’ ou ‘versões’. A principal delas é esta abaixo, assimilada por Arievaldo Viana, biógrafo de Leandro. A poesia foi mexida principalmente na terceira quadra. A primeira versão é a que o Arievaldo apresenta em vários artigos de sua autoria, a segunda é a que consta na Casa de Rui Barbosa, que guarda grande parte do acervo de cordel do país, graças a Sebastião Nunes Batista, pioneiro em catalogar e incrementar a coleção de literatura de cordel naquela entidade.

Versão de Arievaldo Viana: Olhos grandes, bem azuis, da cor do mar; Corpo mole, mas não é tipo esquisito,

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Têm pessoas que o acham muito feio, Sua mãe, quando o viu, achou bonito! Versão da Casa de Rui Barbosa: Olhos grandes, bem azuis, têm cor do mar: Corpo mole, mas não é tipo esquisito, Tem pessoas que o acham muito feio, Mas a mamãe, quando o viu, achou bonito! A versão da Casa de Rui Barbosa é apresentada como “Auto-retrato de Leandro Gomes de Barros na quarta-capa do folheto Peleja de Manoel Riachão com o Diabo”. Ocorre que no citado folheto, digitalizado pela CRB, a quarta-capa está ilustrada com um anúncio da Livraria Pedro Batista, indicando que se trata de reedição, portanto, sem a poesia.

Arievaldo Viana assumiu a versão em que constam as alterações:

a) ‘tem cor do mar’ para ‘da cor do mar’; b) ‘Tem pessoas’ para ‘Têm pessoas’ c) ‘Mas a mamãe’ para “Sua mãe’. Por sua vez a versão da CRB, pelo que se deduz, pluralizou ‘tem cor do mar’ acrescentando o circunflexo ‘têm’, deduzindo concordância com ‘olhos’. Neste caso o Arievaldo Viana é que interpretou certo: mas não devia alterar o verso original, que seria ‘Olhos grandes, bem azuis, tem cor do mar’ – o singular ‘tem cor’ significando ‘da cor’. Agora, trocar ‘Mas a mamãe’ por ‘Sua mãe’ é já assumir a coautoria, visto que a expressão ‘mamãe’ é bem nordestina (e bem a cara de Leandro), eis que o sulista resume ao simples ‘mãe’. Ademais, ninguém se preocupou em anotar nos versos a métrica de pé quebrado – alguns decassílabos outros com onze silabas. Essas dúvidas persistirão até que se encontre o fac-símile da contracapa original, que se transformou em verdadeira cabeça de bacalhau: todos sabem que existe, mas ninguém vê.

--- Fontes: De Castro e Silva: Augusto dos Anjos, poeta da morte e da melancolia Augusto dos Anjos: EU e outras poesias http://www.camarabrasileira.com/cordel77.htm http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/leandro.html

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GULLAR PORTEÑO

“Poema Sucio/Em el vértigo del día” (Corregidor - 2012)

Depois de quase 35 anos da sua invenção, em 1975, o Poema Sujo de Ferreira Gullar volta a Buenos Aires, onde foi escrito. Como diriam nossos amigos rioplatenses: ¡enhorabuena!

A iniciativa partiu da editora Corregidor, que acrescentou o volume “Poema sucio / En el vértigo del día” na coleção Vereda Brasil, que já conta com treze títulos de autores brasileiros. Ferreira Gullar agora – muito merecido – figura ao lado de Gregório de Matos, Machado de Assis, Oswald de Andrade, Clarice Lispector e Graciliano Ramos, entre outros.

A edição é bilíngue e devo à poeta argentina Sandra Pien (autora de Mi Borges.com, outro enigmático poema latinoamericano), o prazer de desfrutar tal preciosidade.

Completa o volume um prólogo de Davi Arrigucci Jr. – o texto “Todo es exílio”, publicado no livro Outros achados e perdidos – Cia. Das Letras 1999 – assim como o famoso artigo de Vinícius de Moraes, Poema sujo de vida, publicado na revista Manchete em 1976, que causou frisson na intelectualidade brasileira e suores frios nos governantes militares.

Apesar de tudo e de todos, se pode dizer que este texto – ao lado da também famosa fita cassete (também trazida por Vinícius de Moraes), com a leitura do Poema Sujo pela voz do próprio autor, que se reproduziu como coelhos e foi ouvida em todo o país – foi o responsável direto pelo retorno em segurança do poeta ao Brasil e em muito contribuiu para a distensão democrática que já se anunciava. A publicação da primeira edição no Brasil, em 1976, coube a Ênio Silveira que, ao dar o formato de caderno escolar ao volume, transformou o Poema Sujo em estrondoso sucesso popular.

A tradução e a apresentação dessa nova edição do Poema sujo (Poema Sucio) ficaram a cargo de Alfredo Fressia, enquanto que a dupla Mario Cámara e

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Paloma Vidal se encarregou de traduzir e apresentar Na vertigem do dia (En el vértigo del día).

Durante esse labor, em que houve intensa troca de correspondência entre os tradutores e o autor, ocorreu a entrevista feita a Ferreira Gullar, que também foi incluída no volume. Mas tradução é tradução! Quer dizer: tradução, implica, desde sempre, ocultar uma atroz armadilha que, impiedosa, arrasta para o mesmo poço o autor, o tradutor e os leitores...

Neste caso não foi diferente. Do Poema sujo (segundo Gullar declarou na citada entrevista), pode-se dizer que é a terceira tradução para o espanhol, contando-se a edição saída na Colômbia nas mãos de Elkin Oregón Sanin e outra publicada na Espanha, sob a responsabilidade de Pablo Del Barco.

Outra tradução extraordinária – que foi oferecida para consulta a Alfredo Fressia pelo próprio Gullar – sabe-se que existiu e que foi feita, por um time de tradutores, ao mesmo tempo que o poema era finalizado. Seus amigos porteños, mais uma vez instigados por esse espírito rebelde chamado Vinícius de Moraes, prepararam uma tradução simultânea, feita a múltiplas mãos, de nomes tais como o próprio Vinícius de Moraes, mais Augusto Boal, Eduardo Galeano e Santiago Kovadlof!

Não me perguntem por que essa tradução não foi aproveitada. Simples. É muito provável que ela tenha caído sob a crueldade do tempo implacável e tenha se tornado obsoleta. No entanto, Ferreira Gullar a colocou nas mãos dos tradutores atuais, que puderam consultá-la e usá-la como lhe aprouvessem. Na sua “Presentación de Poema sucio”, Alfredo Fressia confessa:

“El lector sabe que la tentación es más humana que la prudência, de modo que acepté conocer esa primera traducción”.

Bem, bom e daí? Bom, daí ocorre uma dúvida: se a tradução é para inserir o poeta Ferreira Gullar no mundo literário argentino – exclusivamente nele – pode-se aceitar os parâmetros que nortearam a tradução. Porém – para isso existe o porém – trata-se de uma edição bilíngue, o que faz tudo mudar de feição.

Abro um parêntese para registrar uma interrogação que me acompanha desde muito: por que somente os textos poéticos são apresentados em tradução bilíngue? Por que não se editam romances ou contos ou ensaios ou artigos em edição bilíngue? Não sei, ninguém sabe, alguém saberá? O fato é que, ao apresentar um texto poético em edição bilíngue, o tradutor oferta também sua cabeça à guilhotina, sem direito a reclamar da dor que a lâmina causará.

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Alfredo Fressia sabia do risco que corria e não se desmaia em corrê-lo, ao contrário, enfrenta os percalços com infinita bravura:

“Mi trabajo resultó en la presente traducción, ciertamente diferente de aquel pré-texto multicéfalo, hecha además en sintonía de criterios con la de Paloma Vidal e Mario Cámara para En el vértigo del dia”.

Mas a armadilha da tradução não demora a mostrar suas garras e acaba por transformar a ótica pela qual os tradutores decidiram pôr em prática na tradução dos poemas de Ferreira Gullar num trágico equívoco. Vejamos como Alfredo Fressia estabelece o objetivo de seu trabalho, cujo critério se mostrará falso e infiel:

“Del portugués entrañable, nordestino, lleno de la fauna, la flora, la vida de São Luís do Maranhão, ese idioma que crea muchas veces cierto extrañamiento en el lector brasileño de los grandes centros urbanos, quedó un castellano rioplatense, también de entraña popular, y que debería por veces reproducir ese extrañamiento original”.

Nada mais equivocado! De boas intenções o inferno está cheio, diz o ditado popular. Por algum motivo ninguém pôde alertar a Alfredo Fressia de que o linguajar maranhense não é aquele mesmo portugués entrañable, nordestino, lleno de la fauna, la flora, la vida, que ele desejava e gostaria de inculcar como se fosse a própria alma de sua tradução (mais correto seria dizer: da sua versão para a linguagem rioplatense).

Sim meus amigos, o nordeste brasileiro é uma áfrica de dialetos, todos baseados num português bem aproximado do galiciano. Ouso muito? Ora, senão vejamos: o português que se fala no Maranhão não é de modo algum o nordestino, assim explicitado por Alfredo Fressia. Esse pretenso nordestino, sim, não deixa de ser lleno de la fauna, la flora, la vida, porém é falado do Ceará a Alagoas, com muitas variantes. E com outras tantas variantes do Ceará ao Rio Grande do Norte num grupo e da Paraíba a Pernambuco, noutra combinação. Alagoas sofre a influência massificada do baianês, que surge como um dialeto moderno e independente.

No entanto, para que torcer contra? Afinal o que está em jogo é a divulgação da nossa poesia e isso merece de nossa parte todos os fogos de artifício. Tomara, pois, que a intenção dos tradutores do Poema sujo e de Na vertigem do dia tenham alcançado seus objetivos, pelo menos no que se refere à inclusão de Ferreira Gullar em grande porção de leitores argentinos.

Como disse, se a publicação das traduções de poesia não seguisse esse ritual esquisito do bilinguismo, ninguém iria reprovar as liberalidades que os tradutores tomam ao verter o trabalho dos outros para o idioma de seus

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bairros. Gullar pelo menos, que é o dono do objeto, não se importou. Acho, aliás, que os autores – ao contrário do que se pensa – mais se divertem do que se aborrecem com esses malabarismos. A tradução também é uma interpretação e é ótimo se conhecer o quê e o quanto o trabalho individual de cada um mexe e remexe com outras culturas, outras formas de arte e outros povos.

Mas, deste caso em particular, destaquei a tradução de um poema de Ferreira Gullar para o qual os critérios de tradução não se mostraram realistas.

Trata-se de Cantiga para não morrer, do livro Na vertigem do dia:

Quando você for se embora, moça branca, como neve, me leve. Se acaso você não possa me carregar pela mão, menina branca de neve, me leve no coração. Se no coração não possa por acaso me levar, moça de sonho e de neve, me leve no seu lembrar. E se aí também não possa por tanta coisa que leve já viva em seu pensamento, menina branca de neve, me leve no esquecimento. Ora, parece ser um poema fácil de traduzir, não é? Primeiro, trata-se de uma cantiga. E uma cantiga pressupõe ritmo, sonoridade, cadência – fórmulas às quais o poeta se ateve com notório talento. Para destacar o ritmo o poema é apresentado em quadras, trovas – porém não obrigatórias. Para a sonoridade o poeta usou, em quantidade muito econômica, as rimas suaves, redondas: eve, ão, ento. E a cadência ele obteve com uma métrica de sete sílabas, quebrada apenas no terceiro verso.

Acontece que os tradutores simplesmente ignoraram esse detalhe importante – importantíssimo, diria – nessa canção. Vejam como ficou a tradução:

CANCIÓN PARA NO MORIR

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Cuando te vayas, muchacha blanca, como la nieve, llevame. Si acaso no podés cagarme de la mano, niña blanca de nieve, llevame en el corazón. Si en el corazón no podés acaso llevarme, muchacha de sueño y de nieve, llevame en tu recuerdo. Y si allí tampoco podés por tanta cosa que lleves conmovida en tu pensamiento niña blanca de nieve, llevame en el olvido. Mas, é o caso de se perguntar: ¿Que pasó? Por que uma canção se transformou numa coisa sem sal, sem tempero, sem aquele frescor pretendido, lleno de la fauna, la flora, la vida? Por que “moça” (duas sílabas) se traduziu para “muchacha” (três sílabas) e não para “chica” (duas sílabas)? Sinceramente não dá para entender, já que talento não falta aos tradutores, nem exemplos também não, porque a fauna das letras de tango e da poesia popular rioplatense é cheia de exemplos tais, sonoros, cadenciados, ritmados.

Tem jeito? Eu bem que poderia tirar o corpo fora. Não é problema meu. Mas, criticar sem sugerir é falta grave. Portanto, apesar de não ser tradutor, mas sendo poeta, não fujo da tentação nem da responsabilidade e ouso fazer uma tentativa. Ficou assim:

CANCIÓN PARA NO MORIR Así, cuando usted te vayas, chica blanca, como nieve, lléveme. Si acaso usted no podéis cagarme por la mano, niña blanca de nieve,

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lléveme en el corazón. Si en el corazón no podéis acaso a mí llevar, chica de sueño y de nieve, lléveme en tu recordar. Y si ahí tampoco podéis por tanta cosa que lleves ya viva en tu recordar niña blanca de nieve, lléveme en tu olvidar. Bom, ninguém é perfeito e nem esta tentativa pode ser achada como solução... Mas é assim mesmo: tudo se critica! Tradutor, traidor, diz o provérbio italiano, já universalizado. O tradutor sofre com isso. No entanto, como poderíamos ler as obras universais se não fosse ele, o tradutor? Convém, pois, não perder a esperança. Tanto que Alfredo Fressia não se incomoda em dar a mão à palmatória, sem perder o humor:

“Es lo que espero, lo que los traductores siempre esperamos: ser buenos intérpretes entre dos culturas, intermediarlas recreando una aventura estética, lidiar elegantemente con la pérdida y, ya que sabidamente somos traidores, por lo menos traicionar siempre por lealtad al lector”.

Portanto, viva o tradutor, que faz chegar até nós as mais belas produções de um país em que tem Babel como Capital!

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MANUEL BANDEIRA

TODAS AS ESTRELAS

“Estrela da vida inteira” (José Olympio Editora - 1973)

Deixando de lado tudo que se possa dizer do poeta Manuel Bandeira – e com certeza tudo de bom já foi dito – posso afirmar que a leitura de sua poesia continua tão prazerosa como se estivéssemos contemporâneos de seu tempo. Então, usufruir de uma obra como o que realizou a Livraria José Olympio Editora ao enfeixar num só volume as poesias reunidas do poeta pernambucano é um privilégio de poucos.

Livro de poesia é assim mesmo: nunca fica velho demais que não mereça uma releitura. A gente compra, lê, guarda e de vez em quando volta a ele para matar a saudade. Nesses reencontros tudo acontece: algum poema que na primeira leitura pareceu desinteressante logo se disfarça de outra maneira e vira magia, outros pequeninos, de circunstância, ganham brilho e crescem, outros mais vibram em sonoridade e ritmo, eis aí tudo a se modificar – é um novo livro que temos nas mãos.

Com Manuel Bandeira, então, nem se fala! Como a releitura enriquece, mais que nenhuma, a sua poesia! Mas a importância do volume que tenho em mãos não é somente o manancial da poesia que jorra. Começa, desde logo, pela leitura da orelha. Não é qualquer livro nem qualquer autor que possa se orgulhar de ser “orelhado” por nada menos que Otto Maria Carpeaux, escritor austríaco que abrasileirou, tão rápido, como a maioria daqueles que foram atirados até nós pelo desatino da guerra.

Otto Maria Carpeaux chegou aqui em 1939 e foi mandado para o Paraná, como... agricultor! Claro que foi coisa de momento, porque logo se desviou para São Paulo e tratou de sobreviver ao primeiro momento de dureza vendendo objetos pessoais, um pouco do patrimônio que trouxe da terra natal. Depois de breve correspondência com Álvaro Lins, Carpeaux foi convidado para escrever

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no Correio da Manhã (jornal publicado no Rio de Janeiro, na pré-história da imprensa, junto com o JB e O Globo – bem antes da família Marinho engolir vorazmente TODA a imprensa da antiga Capital Federal).

Daí em diante o leitor pôde saborear, como se fosse um produto popular, toda a erudição desse notável brasileiro. Sim, no mesmo ano em que Stefan Zweig – em depressão plena – desistia do Brasil dividindo um copo de cicuta com sua mulher Lotte, no mesmo ano que este escriba era parido na Paraíba, o entusiasmado emigrante Otto Maria Carpeaux se tornava brasileiro da gema...

Todo o conhecimento adquirido por Otto Maria Carpeaux não foi obra do acaso. Ainda estudante ele dominava vários idiomas (inglês, italiano, francês, alemão, espanhol, etc.), mas não o português – o que demonstra que sua chegada aqui não tinha sido planejada. Entretanto, o estudo de línguas facilitou para que se tornasse fluente na nossa língua com pouco mais de um ano de dedicado estudo.

Sua formação acadêmica em várias matérias – que abrangia física, matemática, sociologia, filosofia, música e literatura – serviu de manancial para tudo que aqui produziu, destacando-se os oito volumes consagrados à História da Literatura Ocidental (1947), Uma Nova História da Música (1958) e os volumes de Ensaios Reunidos (2005).

Agora pasmem: nenhum sinal dessa vastidão de conhecimento perpassa pelo texto que dedicou ao poeta Manuel Bandeira. É claro que aqui e ali Otto Maria Carpeaux destaca as qualidades poéticas de Manuel Bandeira, principalmente como autor de “versos felizes”, mas em quantidade e volume tão grandes que, para o ensaísta, isso era tão natural ao poeta quanto à proximidade da morte...

Não, nesse pequeno texto apertado na orelha de Estrela da Vida Inteira, Otto Maria Carpeaux desvenda o olhar do leitor para a importância do lirismo na poesia de Manuel Bandeira, lirismo esse que deságua como cachoeira no ritmo, na sonoridade, na cadência verbal, transplantando os versos diretamente ao solo musical. Essa musicalidade, pressentida desde logo pelos contemporâneos do poeta, fez de Manuel Bandeira autor principal da canção brasileira, assim entendida como os lieder alemães.

Para não esticar mais a conversa, leia a seguir o texto de Otto Maria Carpeaux, depois saiba de algumas informações sobre a obra musicada de Manuel Bandeira. Na pescaria para compor este texto, para minha surpresa, topei com um velho disco (Maria Lúcia Godoy canta poemas de Manuel Bandeira) e de contrapeso um texto de Paulo Mendes Campos, feito especialmente para o lançamento do disco. É mole? Pois o dito cujo texto também vai a seguir...

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POESIA INTEMPORAL

Orelha do livro “Estrela da vida inteira”, por Otto Maria Carpeaux.

“Eis aqui a Obra Poética total de Manuel Bandeira. É a edição definitiva, depois das muitas outras que a precederam e cujo número é sinal do sucesso extraordinário de um poeta cujos versos chegaram a gravar-se na memória da nação brasileira.

“São muitos versos inesquecíveis. Antigamente costumava-se falar em “versos felizes”; e felizes eles são em todos os sentidos: são felizes pela densidade da carga emocional de palavras coordenadas por uma lógica secreta e irrespondível; são felizes porque foram o resultado de sofrimentos graves, de meditação profunda, e chegaram a tornar mais feliz a vida do poeta; e a vida de todos nós.

“Mas às vezes esses versos “felizes” são muito tristes, como aquele, talvez o mais famoso de todos, sobre “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”. Outra vez, o verso é pungente, denunciando a vida como “agitação feroz e sem finalidade”. Mas outra vez, respira a melancolia sem desespero de uma tarde triste primaveril: “... passei a vida à toa, à toa”. Só um compositor de lieder, um Schubert, um Hugo Wolf, seria capaz de interpretar bem a música de um verso desses. É mesmo forma musical o rondó dos “cavalinhos correndo”, em que o gerúndio é sabiamente aproveitado para simbolizar e musicar a ligeireza da vida que passa.

“Ligeireza do verso, mas não do seu sentido. Os melhores versos de Manuel Bandeira parecem-se com nocturnes e nuages de Debussy, mas é inconfundível neles o fundo de tragicidade beethoviana. Essa poesia cumpre a exigência do severo Matthew Arnold de ser uma crítica da condição humana. Esse poeta não tem “mensagem”, felizmente, porque as “mensagens” costumam tornar-se, depressa, obsoletas e inaproveitáveis. Não precisa de eloquência para convencer-nos e consolar-nos. Umas poucas palavras bem escolhidas, colocadas numa ordem que as faz cantar, e tudo está dito, mesmo aquilo que em palavras ninguém poderia dizer. É este o privilégio da poesia lírica.

“Ao contrário do que pensam os mil e mais mil poetastros do mundo inteiro, a inspiração da poesia lírica é a mais rara de todas e o número de poetas realmente grandes é pequeno em qualquer época e em qualquer literatura. Contudo, um ou outro verso feliz é capaz de ocorrer, até aos fazedores de “chaves de ouro”. Os compositores de valsas e sambas são milionários em melodias, mas só um Beethoven sabe enfrentar um tema simples e analisar-lhe todas as possibilidades e realizá-las conforme as regras rigorosas do

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desenvolvimento temático e criar uma sonata, um quarteto, uma sinfonia, enfim, uma estrutura.

“Manuel Bandeira é poeta que sabe estruturar seus temas. Seus temas são simples: recordações da infância, um amor irrealizável, a sombra de uma doença grave, um enterro que passa, uma linda tarde de despedidas, uma velha casa que vai abaixo e na qual se sofreu e se amou muito. Mas eis o milagre realizado: cada um desses temas simples é a célula-máter de um processo de desenvolvimento temático, enriquecendo-se e revelando facetas novas, inesperadas, e enquadrando-se na forma para a qual estava predestinada e enfim está formado o cristal perfeito, o poema.

“Nosso poeta foi o melhor amigo e o homem mais gentil do mundo. Mas em defesa da poesia, contra a falsa poesia, era capaz de tornar-se agressivo. Seu passado está cheio de polêmicas. Durante muitos anos foi considerado um dos protagonistas do modernismo brasileiro. Na história da literatura nacional já lhe pertence um capítulo substancioso. Sem Manuel Bandeira não haveria no Brasil poesia moderna, ou então, ela não seria o que ela é. Mas tudo isso são águas passadas. Manuel Bandeira, embora sempre aberto a tudo que é novo, não se filiou a nenhuma “escola” nem moda nem estilo. Sua poesia é só dele e adquiriu há muito tempo, a suprema qualidade: é intemporal.

“Quem fez tanto, não passou a vida à toa, à toa. Depois de estruturar sua poesia chegou a estruturar sua própria vida. Sua existência decerto não foi um sorridente rondó de cavalinhos, mas tampouco uma agitação, feroz e inútil. Foi a vida inteira que poderia ter sido – e que aqui está, realizada: a Obra Poética de Manuel Bandeira”.

APÊNDICE:

Disco do Museu da Imagem e do Som - MIS

Maria Lúcia Godoy Canta poemas de Manuel Bandeira

Ao piano: Murilo Santos

Museu da Imagem e do Som – MIS

Fundação Vieira Fazenda

Rio de Janeiro 1966

Texto de Paulo Mendes Campos

“Diletante dos lugares-comuns, costumo colher um exemplar e remirá-lo até desbastar-lhe o cansaço: então posso vê-lo na renovada surpresa de expressão original. "Trama do destino", por exemplo, forjada por uma verdadeira apreensão da existência, é um clichê fascinante, lâmina histológica a definir todo o tecido humano, peça microscópica da experiência histórica e dos

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enredos individuais. "A Trama do Destino" é o título cinematográfico da biografia de tudo e de todos.

“Ainda mal tramados, como a relva recém-plantada, um rapaz e um adolescente percorrem as ruas de Belo Horizonte - no tempo em que Hitler já se escondera no bunker da chancelaria. Encontram-se, por uma fatalidade de programas escassos, nas salas de concerto, nas exposições de pinturas, nos auditórios literários. Vivem, separados, o primeiro movimento, esse allegro das almas verdes, a buscar: na expressão artística, um espelho; no convívio dos amigos, a solidão comum dos poucos que reconhecem à primeira vista a perplexidade e a delicadeza de viver.

“Ela, abrindo como luz fluorescente olhos líquidos de espanhola, atende pelo nome, um pouco desamparado, de Maria Lúcia. O moço tímido, mas despenteado, é um Paulo a mais circulando neste mundo. Ela demite a doçura quando canta nas reuniões, e sua beleza juvenil se mascara de uma contensão sem idade. Desde menina, Maria Lúcia desaparece no canto, suprime a personalidade quando canta, transforma-se no canto, como a ave que descola do ramo e vira o voo.

“Nossa igrejinha, sofrendo de antipatia pelas cantoras que se exprimem, que cultivam os miosótis da personalidade, ainda buscava uma voz para as canções: embora nada existisse que lembrasse um contrato, decidimos, Maria Lúcia nos representaria através do canto.

“Às vezes, Maria Lúcia e Paulo encontravam-se em um salão de baile. Timidamente. Desconfiados de que a festa é frívola e vai acabar. E de que a trama do destino prevalece sobre o momento.

“É quase impossível que, entre duas músicas dançadas, a um canto do salão, os dois amigos não tenham falado, em voz baixa, sobre o poeta Manuel Bandeira. O lirismo bandeiriano era mais pressuroso, mais triste, mais verdadeiro e mais iluminado que o noturno festivo do Minas Tênis. Manuel ficava conosco. Só ele, o poeta, dava sentido à incoerência de estarmos ali no baile sem acreditar no baile, desajustados entre os pares, a não ser a própria mocidade.

“Jamais os dois deploráveis dançarinos poderiam imaginar - e esse acanhamento da imaginação é outro lugar-comum do destino - que a trama aqui reuniria o poema, a voz e o despenteado.

“De minha participação subalterna, Ricardo Cravo Albin é o culpado. Mas a culpa se redime pelo resto da iniciativa. Juntar Maria Lúcia Godoy, Manuel Bandeira, Villa-Lobos, Mignone, Jaime Ovalle, Edino Krieger, Lorenzo Fernández, Guarnieri e Siqueira em um disco, que se pode guardar para sempre, é um ato

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simples e deslumbrante como um passe de mágica. Se não o fizeram antes é porque os mágicos são raros na civilização argentária.

“Este é o disco mais completamente brasileiro que conheço: porque os temas, a linguagem, o ritmo e a emoção do poeta doem de tanta verdade brasileira; porque os compositores aqui reunidos são ainda os primeiros que romperam com a dependência estrangeira e exprimiram os timbres, as cadências, as sugestões instrumentais, as secretas combinações melódicas que nos falam e falam por nós; e porque a extraordinária Maria Lúcia Godoy, pela qualidade da voz, pela intuição interpretativa, é uma artista irreprimivelmente brasileira, graças a Deus.

“Por isso mesmo, por sua brasilidade inconsútil, pode-se dizer, sem antinomia, pelo contrário, por um determinismo de criação artística: este disco pertence à música do mundo.

Paulo Mendes Campos

NOTA QUE SEGUE ESTE TEXTO

“Os agradecimentos do MIS a Murilo Miranda, que, quando Secretário Geral do Conselho Nacional de Cultura do MEC, teve a iniciativa da gravação deste disco para homenagear os 80 anos do poeta Manuel Bandeira. Também se estendem esses agradecimentos a Nilo Sérgio, da Musidisc, que cedeu o tape ao MIS. O layout é de Joselito. A gravação foi feita por Ary Perdigão nos estúdios da Musidisc em setembro de 1966. A coordenação geral é de Ricardo Cravo Albin, Diretor do Museu.”

Os poemas musicados, por número da faixa: 01 - Dança do martelo (Bandeira-Villa-Lobos) 02 - Modinha (Bandeira-Villa-Lobos) 03 - O anjo da guarda (Bandeira-Villa-Lobos) 04 - Azulão (Bandeira-Jayme Ovalle) 05 - Modinha (Bandeira-Jayme Ovalle) 06 - Dona Janaína (Bandeira-Francisco Mignone) 07 - Pousa a mão na minha testa (Bandeira- Francisco Mignone) 08 - O menino dorme (Bandeira- Francisco Mignone) 09 - Impossível carinho (Bandeira-Camargo Guarnieri) 10 - Canção do mar (Bandeira-Lorenzo Fernandez) 11 - Madrigal (Bandeira-José Siqueira) 12 - Desafio (Bandeira-Edino Krieger)

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Outros poemas de Bandeira musicados esparsamente: 4 poemas (Bandeira-Almeida Prado) Balada dos reis (Bandeira-Dorival Caymmi) Baladinha arcaica (Bandeira-Toninho Horta) Belo Belo (Bandeira-Wagner Tiso) Berimbau (Bandeira-Joyce) Debussy (Bandeira-Villa-Lobos) Desencanto (Bandeira-Francis Hime) Irene no céu (Bandeira-Camargo Guarnieri) Na Rua do Sabão (Bandeira-José Siqueira) O impossível carinho (Bandeira-Ivan Lins) Portugal meu avozinho (Bandeira-Moraes Moreira) Tema e voltas (Bandeira-Radamés Gnattali) Testamento (Bandeira-Milton Nascimento) Trem de ferro (Bandeira-Tom Jobim) Trem de ferro (Bandeira-Vieira Brandão) Versos escritos n’água (Bandeira-Dori Caymmi) Vou-me embora pra Pasárgada (Bandeira-Gilberto Gil) Vou-me embora pra Pasárgada (Bandeira-Paulo Diniz)

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CHICO BUARQUE ATRIBULAÇÕES DE UM ROMANCISTA

“Leite derramado” (Editora Schwarcz - 2009)

“Um homem muito velho está num leito de hospital. Membro de uma tradicional família brasileira, ele desfia, num monólogo dirigido à filha, às enfermeiras e a quem quiser ouvir, a história de sua linhagem desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador da Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de Janeiro atual. Uma saga familiar caracterizada pela decadência social e econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil dos últimos dois séculos. A saga familiar marcada pela decadência é um gênero consagrado no romance ocidental moderno. A primeira originalidade deste livro, com relação ao gênero, é sua brevidade. As sagas familiares são geralmente espraiadas em vários volumes; aqui, ela se concentra em duzentas páginas. Outra originalidade é sua estrutura narrativa. A ordem lógica e cronológica habitual do gênero é embaralhada, por se tratar de uma memória desfalecente, repetitiva mas contraditória, obsessiva mas esburacada. O texto é construído de maneira primorosa, no plano narrativo como no plano do estilo. A fala desarticulada do ancião, ao mesmo tempo que preenche uma função de verossimilhança, cria dúvidas e suspenses que prendem o leitor. O discurso da personagem parece espontâneo, mas o escritor domina com mão firme as associações livres, as falsidades e os não-ditos, de modo que o leitor vai reconstruindo os acontecimentos e pode ler nas entrelinhas, partilhando a ironia do autor, verdades que a personagem não consegue enfrentar. Em suas leves variantes, as lembranças obsessivas revelam sutilezas ideológicas e psíquicas. Tudo, neste texto, é conciso e preciso. Nenhum elemento é supérfluo. Percorre todo o relato, como um baixo contínuo, a paixão mal vivida e mal compreendida do narrador por uma mulher. Os traços e gestos de Matilde, ao mesmo tempo que determinam a paixão do marido, ocasionam a infelicidade de ambos. Embora vista de forma indireta e em breves flashes, Matilde se torna, também para o leitor, inesquecível. Outras figuras, fixadas a partir de mínimos traços, também se sustentam como personagens

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consistentes. É espantoso como tantas personagens conseguem vida própria em tão pouco espaço textual. Leite derramado é obra de um escritor em plena posse de seu talento e de sua linguagem.” (Leyla Perrone-Moisés)

Essa é a Orelha do livro de Chico Buarque citado acima. Quando a li da primeira vez, ao correr do texto, adveio-me o espanto. Melhor dizendo: o susto. Depois reli outras vez e mais outra e a cada vez o mesmo demônio respirava a meu lado, impedindo-me, inclusive, de iniciar a leitura do livro. Fiquei entre estarrecido e emparedado. Mas qual a razão de tanto assombro? Já faz algum tempo que a formação estética do romance contemporâneo brasileiro mexe com meus nervos. Sinto que existe alguma coisa de enganadora, não no texto em si, mas, principalmente, na feitura gráfica, que é o que encerra e dá realmente o ponto final na obra do escritor. No caso dessa Orelha – que refaz a obra num resumo – há muitas coisas estranhas a considerar. Desfiemo-las, pois, na sua própria desordem...

Relembrando: “A primeira originalidade deste livro, com relação ao gênero, é sua brevidade. As sagas familiares são geralmente espraiadas em vários volumes; aqui, ela se concentra em duzentas páginas.”

Aliás, duzentas não. O livro conta 195 páginas, mas como a numeração de cada capítulo ocupa uma página inteira – são 23 capítulos – temos, enxutas, 172 páginas de texto, no qual se pretende contar “a história de [uma] linhagem desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador da Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de Janeiro atual”. Garotão, aliás, cuja trajetória final pode ocupar as 172 páginas de outro romancezinho, quem sabe, lá pra frente.

Aqui também tudo me espanta, porque não sei a quantas se anda ensinando literatura nas universidades. Para mim, que só aprendi até o científico, a literatura ficcional em prosa era representada – principalmente – por três gêneros: conto, novela e romance.

Afinal, não era o conto a estória curta? A novela não é algo assim como um gênero intermediário entre o conto e o romance? E o romance não é um gênero em que a ação dramática forma uma saga?

É claro que todas as determinantes ficam submetidas à uma ordem estética, que é superior. Mas é claro que me enganei! Apesar de todas essas definições ainda constarem em currículos, apostilas e teses espalhadas pela internet, vejo que também a definição ultramoderna dos gêneros literários anda se modificando.

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Vejamos o que diz o professor Manuel Pereira da Silva, catedrático pela Universidade de Coimbra e mestrado pela USP, ambos em Literatura Comparada:

“A primeira coisa que devemos tirar da cabeça é a história de que a diferença entre esses três gêneros é o tamanho: o conto é curto, a novela é média e o romance é longo. Nada disso é verdadeiro. Existem novelas maiores que romances e contos maiores que novelas.”

E existem romances menores do que contos?... Mas existe, sim, sem dúvida! Agora, pronto! Eis-me de novo em dia com a estética literária. E também me lembrei que realmente outro dia li um conto de 600 páginas. Sim senhor! Foi o livro “Os catadores de conchas” do escritor britânico Rosamunde Pilcher, história que caberia num conto. O resto das 500 páginas além do que seria um conto é recheio, moldura, enfeite, jardim, flores, plantas, paisagem, memória, dramazinhos localizados, tudo, enfim, que não cabe num conto. A história em si é pequetitinha, pequetitinha. Mas é romance...

Donde se deduz que também romance é, não só aquilo que chamamos de romance, mas aquilo que escrevemos como um romance. Brincadeiras à parte, continuemos, curiosos, degustando e apreciando as definições do ilustre professor a respeito dos gêneros literários.

O que é Conto?

“O Conto contém apenas um único drama, um só conflito chamado de "célula dramática". Uma célula dramática contém uma só ação, uma só história. Um conto é um relâmpago na vida dos personagens. O espaço da ação é restrito. A ação não muda de lugar. O objetivo do conto é proporcionar uma impressão única no leitor.”

O que é Novela?

“Uma novela nada mais é que uma sucessão de células dramáticas, como se fossem arrumadas em uma linha reta infinita. Diante dessa estrutura é possível acrescentar mais uma célula dramática, mesmo depois de terminada a novela.” (*)

(*) Não me perguntem COMO isso é possível, posto que a Novela está terminada.

O que é Romance?

“Com esse conceito, podemos compreender a diferença entre Novela e Romance. A diferença está na forma como as células são dispostas. No Romance elas estão concatenadas formando um círculo, uma estrutura fechada. Uma

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sucessão lógica com um encerramento definitivo. Seria impossível acrescentar mais uma célula dramática, depois de terminado um romance.” (*)

(*) Então, durante todo esse tempo, nós, os leitores, fomos enganados com as sucessivas “continuações” de romances célebres, como o famoso “E o vento levou”, de Margaret Mitchell, continuado por Donald McCraig, com "Rhett Butler's People" e por Alexandra Ripley, com “Scarlett”. Na parte nacional temos as várias intervenções feitas na obra de Machado de Assis por escritores brasileiros.

Baseado nessa informação moderníssima nós ficamos sem saber o que é o livro de Chico Buarque “Leite derramado”, simplesmente porque ele se enquadra nos três gêneros citados pelo emérito educador:

É conto, porque é uma obra de uma só “célula” dramática, contém apenas um único drama, um só conflito. O espaço da ação é restrito. A ação não muda de lugar...

É novela, porque, antes de terminá-lo, o autor achou por bem violar a regra e, nas entrelinhas, sem que ninguém percebesse (mas com clara advertência da autora da orelha), achou por bem introduzir uma sucessão de novas células.

É romance, não só porque na ficha técnica está escrito “Romance brasileiro”, mas também porque “as células estão (...) concatenadas, formando um círculo. Uma estrutura fechada. Uma sucessão lógica com um encerramento definitivo.” Bem, o encerramento não está assim tão definitivo porque já dei a dica pro Chico Buarque contar a saga do último membro da família, o garotão que vive em Copacabana cheirando cocaína adoidado.

Agora, dando um salto para frente, submeto a parte da verossimilhança, que parece parte da estética do romance, a um juízo de dúvidas. Primeiro porque a construção da saga de duzentos anos não se concretizou. Não foi contada uma história, “uma saga familiar caracterizada pela decadência social e econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil dos últimos dois séculos.”

Apesar de todo talento do escritor, trata-se de uma impossibilidade prática e técnica narrar uma saga sem: 1) concatenação, 2) cronologia e 3) verossimilhança. Ademais há de se considerar aquilo que, na narrativa, parece inconcebível: que “um homem muito velho” – e por isso já com a “memória desfalecente” – possa desfiar num monólogo de cento e tantas páginas “a história de sua linhagem desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador da Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de Janeiro atual.”

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Chico Buarque não foi o primeiro nem será o último autor a cair nessa esparrela. Temos romances de escritores famosos em que a narrativa memorial se perde em centenas de páginas, como se o dom do pensamento se expandisse em neurônios tantos e tais numa cronologia sem fim e a perder de vista. Outros já cometeram narrativas em forma de carta que entre o Prezado Senhor e o Atenciosamente se recheiam centenas de páginas com minudências tantas que só mesmo o leitor não se dá conta que se trata de uma missiva apenas no nome... Mas, afinal, o que seria do artista e da obra de arte se a sua criatividade e a sua alma ficassem restritas a conceitos tão belos quanto idiotas?,

Ora, dirão que falei, falei, falei, mas não dei minha opinião sobre o romance (vá lá!) de Chico Buarque. É verdade. Apesar de criticar o que leio, não sou propriamente um Crítico Literário. Além do mais, Chico Buarque não carece de crítica literária: como Paulo Coelho, ele tem uma plêiade de admiradores que compra e deglute qualquer coisa que ele expila pelos sete orifícios tântricos. Para vender o seu trabalho, musical ou literário, Chico Buarque não precisa de adjutório e charlatanice de críticos engrolados que sobrevivem puxando saco de editores e autores. Como não precisa, não dá, portanto, a mínima se gostei ou não gostei.

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PAULO MENDES CAMPOS DIÁRIO DA TARDE

“Diário da tarde” (Civilização Brasileira/Massao Ohno, 1981)

Paulo Mendes Campos pode ter sido tudo, mais não era cronista preso a ideários formais de literatura. Isso é evidente nas suas crônicas, como se vê na “amplidão de suas escolhas de traduções e paixões literárias, bem documentadas na interessantíssima coletânea Diário da Tarde”. Sempre de maneira mais coloquial possível, em linguagem de simples entendimento, “vai do futebol e dos roteiros de bares a Christian Morgenstern e Borges, passando por Dante, Cummings, Eluard, Montale, Auden e tantos outros. – disse Claudio Willer em artigo na Revista Agulha.

O sábio editor Ênio Silveira já dizia na orelha do livro Diário da Tarde: “Paulo Mendes Campos é, mineiramente, a soma de várias personalidades que se superpõem, que se mesclam, ensejando-nos a cada instante uma visão de sua pessoa, que no instante seguinte já é outra, nenhuma delas permitindo clara e completa definição do todo. Algo assim como se ele fosse um calidoscópio, regalando nossos olhos com sucessões aparentemente infinitas de arranjos, todos eles fascinantes”.

Deve-se dizer que Ênio Silveira não fazia orelha de livro pra qualquer um. Se o autor, mesmo estreante, merecesse algumas palavras assinadas pelo editor na orelha de seu livro, poderia se considerar um privilegiado. Pois, aproveitando a ocasião desse registro, já é bom alguém pensar reunir em livro as orelhas que o Ênio Silveira escreveu. Teremos então um compêndio histórico da literatura brasileira, dentro de um ciclo que delimita bem claro a importância desse intelectual literato, que teve como escrivaninha o prelo e escolheu o arrojo da edição corajosa para exercer sua arte: a literatura como um todo.

É provável que o “Diário da Tarde” seja um dos livros menos conhecidos de Paulo Mendes Campos, entre os muito desconhecidos e conhecidos que

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escreveu. Aqui o poeta escolheu a informalidade estética e temática, ajuntando num pacote de temas e escolhas um complexo cotidiano que supera a crônica, a poesia, o conto, o comum e o excepcional. Na verdade, ao final de todo capítulo chega-se à conclusão que cada pacotinho de temas tem na verdade a informalidade de um bate-papo de botequim.

“Um painel da barafunda das minhas curiosidades, que não foi projetado, mas resultou dessas atenções múltiplas que surgiram sempre na minha vida e estão refletidas neste volume involuntário” – assim o próprio Paulo Mendes Campos descreveu o “Diário da Tarde”.

Paulo Mendes Campos – poeta do qual não se pode falar sem mencionar o nome inteiro – foi anotando, sob o roteiro fixo de cinco temas, quais sejam: Artigo Indefinido, O Gol é Necessário, Poeta do Dia, Bar do Ponto, Pipiripau, Grafite, Suplemento Infantil e Coriscos, os textos, elaborados em aparência informal, que contemplam o universo do dia-a-dia de todos nós. São temas que tratam da importância da vida, da existência pela qual passa o cidadão comum e o burocrata, o padeiro e o médico de plantão, a florista e o jornaleiro, o padre e o mais devotado, fervoroso e carola fiel.

E aqui não cabe mais lero-lero, nem farofa, nem quero-quero, senão encerrar ainda com as palavras finais de Ênio Silveira na orelha: “Humor, ironia, mordacidade, beleza poética, esporte, frases soltas (que, por vezes, fazem mais sentido do que parágrafos inteiros...), emoção de viver e de sentir, tudo isso está aqui, tudo isso é Paulo Mendes Campos, a soma sendo maior do que o total das partes. Um belo livro. Um documento. Um testemunho”.

Tê-lo é preciso, mas aonde? Catar nos sebos, claro.

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O FILÓSOFO E O CANTADOR

Yara Frateschi - Hobbes: a instituição do Estado - In: Filósofos na sala de aula - Org. Vinicius de Figueiredo

(Berlendis editores, 2007)

Patativa do Assaré - Cante lá que eu canto cá (Editora Vozes, 2012)

O FILÓSOFO

O ponto de partida da filosofia de Thomas Hobbes se baseia no fato de que nada pode ser pior do que a guerra. Com efeito, para ele a guerra impede o trabalho, o cultivo da terra, o comércio, o desenvolvimento técnico, o conhecimento e as manifestações artísticas. A guerra destrói os laços de sociabilidade, torna os homens desconfiados, cada um temendo todos os outros, sempre na expectativa de que alguém vá roubar os seus bens, saquear a sua propriedade, tirar a sua vida. Em tais circunstâncias todo homem é inimigo de todo homem.

A partir dessa contestação, Hobbes deduz que a guerra jamais poderá ser benéfica para os homens. A sua filosofia tem a intenção de mostrar de que modo os homens devem se organizar politicamente a fim de estabelecer a paz. Antes de tudo é necessário investigar as razões que levam os homens ao conflito, afirma Hobbes.

Como conhecer o que causa uma guerra? O que faz os homens se comportarem de modo cruelmente belicosos uns em relação aos outros? Primeiro essa pergunta deve ser respondida para que se possa construir a paz. Para Hobbes, a guerra é o resultado da soma de dois fatores: a natureza humana e a fraqueza do Estado. Por tendência natural nós buscamos realizar o próprio bem e agimos motivados pelos nossos próprios interesses. Toda ação voluntária é feita visando à obtenção de algum beneficio para quem age.

Em uma situação em que não há um poder comum capaz de estabelecer limites para a ação e garantir a preservação da vida e dos bens de cada um, a solução

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dos conflitos tende a se dar, não de modo pacífico, mas belicoso, já que todos os homens naturalmente fazem tudo o que está ao seu alcance para preservar e satisfazer os seus desejos, mesmo que isso custe o benefício, a vida ou os desejos dos outros.

Por aqui se vê que, para Hobbes, a única maneira de evitar a guerra será estabelecer um poder bastante forte para impor limites às ações e evitar que as desavenças sejam resolvidas pela violência. Muitos contemporâneos e sucessores de Hobbes o criticaram duramente por dizer que os homens agem em nome do seu próprio benefício e tendem naturalmente à guerra e não à associação.

O CANTADOR

Muitas centenas de anos depois, em algum lugar do sertão cearense, Antonio Gonçalves da Silva, poeta popular, nascido na Serra do Santana, interpretou as desgraças da guerra de outro modo, mas com a mesma consistência social. Como o filósofo Hobbes, o poeta Antonio Gonçalves sabe que a guerra rouba o bem estar coletivo, transforma os sonhos em pó, os projetos de vida, atingindo sem distinção os jovens e os idosos.

Só desgraças traz a guerra Defendemos, pois, a paz. Deve a paz sempre reinar Em todo e qualquer sentido Pois a guerra nos tem sido A causadora do azar; Rouba nosso bem estar E o nosso sonho desfaz Chora o ancião e o rapaz Na hora que o canhão berra Só desgraças traz a guerra Defendemos, pois, a paz. As mesmas desgraças que Hobbes registra ao impedir o cultivo da terra, prejudicar e paralisar o comércio, afetar seriamente – apesar dos “progressos" que, dizem, a guerra traz - afetar o desenvolvimento técnico, por fim, alterar as manifestações artísticas, uma vez que a temática se volta inexorável para o tema.

A paz é um bem comum Que nos enche de prazer Deve sempre florescer

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No peito de cada um Da guerra o triste zum-zum É obra de Satanás O vil inimigo audaz Tudo destrói tudo aterra Só desgraças traz a guerra Defendemos, pois, a paz. Por ser poeta, por ter uma previsão do mundo diferente dos demais, Antonio Gonçalves também há de lutar com moinhos de vento para ressaltar os malefícios que a guerra traz a uma simples amizade entre vizinhos, visto que a guerra destrói os laços de sociabilidade, torna os homens desconfiados, cada um temendo todos os outros, sempre na expectativa de que alguém vá roubar os seus bens, saquear a sua propriedade, tirar a sua vida.

A paz é a salvação A vida e a felicidade A guerra é a barbaridade O luto a dor a aflição A miséria e a traição Como seu instinto mordaz; Portanto a todos apraz Implantar a paz na terra Só desgraças traz a guerra Defendemos, pois, a paz. Em tais circunstâncias todo homem é inimigo de todo home – diz Hobbes. Hermann Hesse também, Anatole France, Thomas Mann também e inúmeros outros escritores e pensadores. Mas como convencer os políticos, militares e empresários que a guerra só traz desgraças? Voltemos ao sertão, à ilha deserta, aos oásis do Saara ou ao Sítio do Jenipapo, porque só nesses lugares teremos paz...

Fui certa noite cantar No Sítio do Jenipapo E ouvi lá um bate papo Que me fez admirar; Dizia à luz do luar O velho Juca Tomaz: Desde o vale até a serra Só desgraças traz a guerra Defendemos, pois, a paz. 1973.

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ABGAR RENAULT O ANJO CAÍDO

"A Outra Face da Lua" (Editora José Olympio - 1983)

Quantas vezes já lemos os decretos que regem o fazer poesia e o quê o poeta pode ou não pode poetar. Quantas vezes o adjetivo foi execrado, os possessivos foram defenestrados, os plurais detonados, a própria pontuação, quantas excessivas exclamações foram para o cadafalso sem direito a defesa.

Sim, nós lemos e escrevemos porque herdamos de nascença uma língua das antigas, um vastíssimo dicionário, uma gramática e tentamos o trabalhar honrado dentro desse espectro.

Laboramos, claro, suamos um pouco, sorrimos ao dormir com nossa penúltima obra prima, nos envaidecemos com a lisonja, a palavra amiga de quem interpretou, embora de maneira diversa, nossa modesta confabulação com as musas.

Decerto isso tudo não é pouca coisa não. Mas aí vem a mais clássica das perguntas, que, extraída das cavernas lúgubres da inteligência, aflora à luz numa entrevista qualquer:

– O que é poesia?

O poeta treme. O poeta vacila. O poeta engole seco. E pensa em quantas e quantas centenas de milhares de definições estão por aí vagando pelo inter espaço! Na última vez que fiz essa pergunta ao Google veio o absurdo: Aproximadamente 6.480.000 resultados (0,12 segundos) e lá embaixo apareceu um Goooooooooogle de intermináveis ós... E depois os próprios poetas se acorrentam nas proposições ditas clássicas:

O poeta não deve se inspirar no próprio sofrimento. O poeta deve refletir o sentimento do mundo.

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O poeta tem uma atitude específica diante do mundo que não é a do filósofo, nem a do cientista. O poeta vive de descobertas e de espantos a cada momento. O poeta não tem por objetivo explicar o mundo. O poeta revela para as pessoas o seu espanto, o mistério e a beleza da vida. O poeta mostra o que a vida tem de incompreensível, de transcendente, de inexplicável. O poeta deve ter aquele grau de loucura bíblico, mas não necessariamente estar num grau de loucura. A poesia não se entrega a quem sabe defini-la. O verdadeiro poeta não lê outros poetas: lê os pequenos anúncios dos jornais. O poeta não tem o ofício de narrar o que aconteceu e sim o que poderia acontecer. O poeta traduz o que é possível, segundo a verossimilhança e a necessidade. O poeta é mais fabulador que versificador, porque é poeta por imitação – imita ações. Quando, porém, o poder do imponderável visita sua vida, o poeta se vê despido do manto de superioridade e se torna o homem comum que é. A vida é composta de pequenas tragédias, ninguém a elas está imune. Não existe uma vacina contra a tragédia nem contra o inexplicável que permeia sua existência. Quando a tragédia ocorre naturalmente a vida desaba, o mundo desaba, a fé desaba, instala-se o caos cósmico – o poeta é um anjo caído.

Então, se ele pretende desvelar o trágico por suas próprias palavras, todas as teorias literárias e regras poéticas caem por terra. O poeta é agora um ser humano primitivo que canta as mazelas ao som de rude viola. É uma lavadeira que à beira do rio enfeita seu labor com versos que sua avó ensinou e que sua neta, agora, devora com ouvidos atentos. É um cantador cego que acompanha apenas com o martelar rítmico do pandeiro o canto rimado que vem da alma e só a ele alcança.

Assim ocorreu com o Mário de Andrade. A foice desta vez estava representada pela angústia, as mazelas, o próprio viver que a idade trava. Pois foi do fundo dessas questões freudianas que nasceu o Mário de Andrade sentimental da Lira Paulistana, mas, sobretudo, o poeta ser humano de A Meditação sobre o Tietê:

Quando eu morrer quero ficar,

Não contem aos meus inimigos,

Sepultado em minha cidade,

Saudade.

Meus pés enterrem na Rua Aurora,

No Paissandu deixem meu sexo,

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Na Lopes Chaves a cabeça

Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem

O meu coração paulistano:

Um coração vivo e um defunto

Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido

Direito, o esquerdo nos Telégrafos,

Quero saber da vida alheia

Sereia.

O nariz guardem nos rosais

A língua no Alto do Ipiranga

Para cantar a liberdade.

Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá

Assistirão o que há de vir,

O joelho na Universidade,

Saudade...

As mãos atirem por aí,

Que desvivam como viveram,

As tripas atirem pro Diabo,

Que o espírito será de Deus.

Adeus.

(Lira Paulistana)

****

Água do meu Tietê,

Onde me queres levar?

– Rio que entras pela terra

E que me afastas do mar...

Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança.

Eu me acho tão cansado em meu furor.

As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista

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Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas

Para o peito dos sofrimentos dos homens.

...e tudo é noite. Sob o arco admirável

Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca

Uma lágrima apenas, uma lágrima,

Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.

(A meditação sobre o Tietê)

Assim foi também com o poeta Ferreira Gullar, quando a febre do exílio atacou-lhe as vísceras, quando a perseguição implacável tirou-lhe o sossego, quando o cerco irrefreável da violência trouxe-lhe o medo. Quase o mesmo sentimento que décadas atrás havia ferido de morte o escritor Stefan Zweig: o exílio, a falta da pátria, a ausência de uma ilha – uma ilha que fosse! – atirou o sentir do poeta nas páginas de Na vertigem do dia e, principalmente, do Poema Sujo:

Amigos morrem, as ruas morrem, as casas morrem. Os homens se amparam em retratos. Ou no coração dos outros homens. (Na vertigem do dia)

***

Na Rua do Sol me cego, na Rua da Paz me revolto na do Comércio me nego mas na das Hortas floresço: na dos Prazeres soluço na da Palma me conheço (...) Acordo na zona. O dia ladra, navega enfunado e azul (...) (Poema Sujo)

Não dizem que toda regra tem exceção? Pois a exceção para este noturno chama-se Carlos Drummond de Andrade. Se houve um ataque à percepção onírica do ser poeta, isso ocorreu com a frialdade corpórea e sentimental que sempre acompanhou o poeta de Itabira. O poeta preparou-se para a morte com a frieza de um papa-defuntos. Drummond viveu uma existência literária

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premeditada e desde cedo tirou o corpo fora das ranhuras da comoção. Mas o fato ocorreu e foi na própria carne, na própria existência, que Carlos Drummond de Andrade escreveu o seu último poema. Mas o que escreveu o poeta ante a trágica desaparição de sua filha queridíssima Maria Julieta? Nada, nenhum poema! Simplesmente morreu! É provável que haja repetido o monólogo que teve consigo mesmo por noventa e tantos anos de vida...

Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

(Mãos dadas)

Com Abgar Renault a tragédia o visitou em forma de notícia. Veio de longe, mas atacou o lado mais íntimo do poeta. Como uma enxurrada incontrolável arrasou a imaginada fortaleza, mas só imaginada porque se estraçalhou rápida e fulminante. Se a covardia diante do fato abateu o ser humano tribal, o mesmo não aconteceu ao poeta. O homem ruiu, a vida se transformou em cacos de vidro, mas o poeta não refugou a verdade nem se escondeu da violência, da fatalidade. Nem censurou a voz da alma, quando ela derramou lágrimas em forma de poesia: verso de poeta gente, lavra de poeta homem, oração de poeta pai.

Isso se deu no livro A outra face da lua, quando, escondidos nas últimas páginas, aglomerou cinco poemas aos quais deu o título A lápide sob a lua, onde se desvenda o poeta o mais humano possível.

NO ALTO DA MONTANHA

Já não sinto saudade de mais nada,

a não ser do começo da escalada,

quando o azul era azul de azul sem fim

e Deus criava de novo o mundo em mim.

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(A outra face da lua)

A LÁPIDE SOB A LUA

TOMBO, SENHOR, SUBMISSO, MAS INCONFORMADO NA DESESPERANÇA

E NÃO TE RECONHEÇO NA CRUEL DESNECESSIDADE DA TUA LANÇA.

FILHO MORTO

Vejo o corpo morto da tua mocidade

dormindo sem sono a sua construção de ossos e músculos.

Estás ferido, e dóis, deves doer, e nem te queixas e não choras,

e nunca dirás o que sentiste

quando sobre a tua frágil cabeça de menino e deus

a vida desabou.

Estás imóvel, frio e sozinho, com os teus olhos sem olhar,

a tua palavra muda, os teus dentes sem rico;

mas nós conversamos, comemos, dormimos,

o nosso corpo exige abrigo contra o frio,

e usamos pesadas lãs.

Olho o azul infenso, o ouro falso do sol,

ouço perto os pássaros da vida a encher o claro céu de cores,

e penso na roxidão das tuas unhas

e na tristeza das tuas roupas derradeiras.

Estou aqui o mesmo entre imagens, luzes, relógios, cravos, pessoas,

mas não és mais tu; és apenas o teu corpo indiferente,

a tua boca que não ri, os teus pés que não caminham,

as tuas mãos que não oferecem,

e insone para sempre dormirás.

Fulgura o dia sem nuvens. Há risos na amplidão,

as continuas imóvel, sozinho e cheio de frio.

O que eu choro na tua ausência

não é a rosa do teu corpo jovem, abatido na haste,

nem a tua alegria, que não mais verei:

doem-me os teus frutos, que, ao caíres, esmagaste sob ti;

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amarga-me o quinhão de tempo e flor

arrebatado às tuas mãos de vida.

Ai! o colete que pela primeira, única vez usaste!

Ai! o teu terno novo e triste!

Como ficaram amargos os meus dedos entre os teus cabelos ainda vivos

– pálido consolo...

Lembro a verruga da tua nuca,

as unhas rentes nas mãos generosas,

o largo riso dos teus dentes brancos,

os coloridos papagaios de papel que inventei para o sem-limite do teu céu;

lembro-me outrora e esqueço-te morto,

mas abro a janela do meu quarto,

entra por ela a vida, e em seu clarão me firo;

tão inútil e desnecessário o teu destroço!

e vejo o teu dia breve e tempestuoso,

teu excessivo, teu imperfeito sol,

a rua fulgurante e breve em que esvaíste

tão antes da tarde o teu ardente girassol,

e contemplo – já sem ti a minha vida –

este coração – esta rua chovida e sem pássaros.

Vou calar-me e fingir que eu sou eu,

mas, se virem um homem chorando sem pejo,

será ele, o pai do moço, do menino, do meninozinho,

que o fortuito matou na reta da estrada, à toa...

Triste vento soletra a solidão,

e triste vento lê teu surdo nome,

e dentro da noite de tristes árvores insones

finjo que não ouço e adormeço,

ó triste viajante horizontal,

como se não soubesse o triste número

da tua triste casa e quanto ele dói

na brancura silenciosa da última cidade.

ESTRAMBOTE DO MORTO VIVO

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Ah! de todas as vezes que morri

sempre restou a máscara e uma pétala,

e fingi o meu som de vida viva,

e pude arder sobre raízes frias.

Agora, morro derradeiramente:

não ficou dos pretextos de ficar

nem vago fio ou sombra ou voz ou letra,

e escuto sobre o túnel, sob a treva,

cair o solo e o seu silêncio turvo:

não tenho olhar, nem fronte, nem perfil,

e aço de espelho algum me refletira.

Quem destruiu a luz e no seu vácuo,

fora do céu, deixou, por só lembrança,

minuto mutilado antes do voo,

viúvo gesto de gelo em mãos de goivo?

ELEGIA

Cada momento do meu coração

bebe a memória do teu morto nome,

e este meu resto, em fuga, se consome

entre musgos de cinza e escuridão;

nem a memória só do morto nome,

mas o calado rosto, a inútil Mao,

a voz, o peito, a prematura fome

de vida no menino (e homem) de então.

Meu lembrar-te, buscando sem onde,

caminha, a amargamente sobe a rua

e o seu silêncio pálido de cal.

Sobe, e deixa, na pedra que te esconde,

entre apagada flor e antiga lua,

póstumo olhar sem tempo, de água e sal.

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CHÃO MORTO

Se essa orfandade, essa privação de tudo, esse escuro exercício do nada

ao menos rebentassem num verso nu, esguio, sujo de terra,

– raiz arrancada em convulso estremecimento,

Não da gelada lucidez do pensamento,

Mas da viva carne da aflição, –

ainda houvera similitude de consolação,

e a cegueira fora-me outro modo de enxergar.

Mas não. A falta de luz na alma e no olhar,

a perda de tudo (de um tudo que não é meu), menos o

[náufrago vivo sempre e para sempre frio,

E tudo apenas isto, este acontecimento que estala os ossos.

Ou estas palavras: sal, areia, surda pedra, geladas lavas

em que não nasce fonte, avaro fruto, espinho amargo.

O escuro, o ralo sol, o sufocamento no vácuo triste,

a forma bem morta, a forma disforme no livro, na carta, no peito largo,

no assoalho, na rua, na lâmpada, na mesa.

Forma que não é forma, nem feiúra nem beleza,

água que não matará nenhuma sede, chão que nada enterra,

estacado pensamento, gesto cortado no braço que o fazia,

obrigatório sono dentro do leito perpétuo e frio.

SAUDADE

Por tua casa pálida e noturna

hoje passei, terrestre, sem parar;

na límpida corola da manhã

aberto sol, que ria ao mar e ao céu,

cegou-me o peito, e a minha dor cansada

doeu-me como doeu e hora primeira

da tua ausência eterna – e nunca ausente.

Mais do que a sombra do teu vulto, vi

o claro outrora do teu riso largo

e a infância-às-vezes dos teus olhos bons,

e no silêncio da atmosfera lúcida

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o longe ouvi da tua voz perdida;

outras manhãs desabrocharam no ar,

e os meus amargos olhos também o viram

a tua mão sem cor, num gesto imóvel,

que as fez murchar, sem sol e sem azul,

num jardim cujas flores eram sinos

lançando ao vento músicas de cinza;

e vi no triste mármore de fontes

o cristalino cântico das águas

petrificar-se num escuro gelo;

contemplei-te menino, homem e criança,

e de novo te vi, amargamente,

na manhã morta, de arroxeados sóis,

nem homem, nem menino, nem criança

dormindo, sem dormir, um sono morto

e rodeado de luzes e de vésperas;

teu íntimo calvário, a cruz precoce,

tão mais de ferro que teus ombros e ossos,

teu arco-íris de cravos e de goivos,

teu céu infante entre os teus dedos de homem,

tua fulguração profunda e rápida,

o ardente leque de culminações

imensamente aberto antes do tempo,

chama partida e vã, fogoso fruto

colhido quando ainda sonho verde...

Terrestre, sem parar, hoje passei

por tua casa silenciosa e pálida.

(A lápide sob a lua)

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SOM SARUÊ: O POETA E O REINO ENCANTADO

Na terra de Som Saruê Tem coisa de adimirá.

(Folclore Sergipano)

Vi cerca de queijo e prata E lagoa de coalhada.

(Leandro Gomes de Barros: Uma viagem ao céu)

Lá os tijolos das casas são de cristal e marfim.

(Manoel Camilo dos Santos: Viagem a São Saruê) Existem dezenas de estudos, análises, críticas, ensaios e comentários, esmiuçando o universo contido no pequeno folheto de Manoel Camilo dos Santos "Viagem a São Saruê". É mesmo um folhetinho, pequeno de tamanho, mas suficientemente -vigoroso e consagrador a ponto de destacar o poeta paraibano de seus contemporâneos. Ao invés de sair a campo queimando pestana em busca de tais estudos, na procura de alguma luz que ilumine esse mist-erioso encantamento que possui o folheto, optei por uma penetração no próprio território de São Saruê e eis-me tal Alice no país das maravilhas ou Fernão de Magalhães em busca da passagem secreta entre os Oceanos Atlântico e Pacífico. A verdade que ninguém pode impunemente conhecer a história de São Saruê tal como Manoel Camilo dos Santos narrou e sair ileso da aventura que é descobrir, percorrer e se deslumbrar com a cidade mágica e encantada. O folheto maravilhou a néscios e intelectuais, tanta é a força criadora da imaginação semeada nas pequenas páginas do livrinho.

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Mas, segundo o próprio poeta, este não é o seu melhor romance. Ou não era... Mas o poema caiu de tal maneira no gosto dos leitores – mais ainda – no gosto dos eruditos que se deleitam com a poesia de cordel, que acabou por celebrizar o autor, notabilizando-o pelas dezenas de outros folhetos de sua autoria, de igual qualidade, mas que passaram despercebidos. Manoel Camilo dos Santos, nascido no dia 9/07/1905 em Guarabira (PB), aos 24 anos foi morar em João Pessoa, onde vivia da profissão de cantador de viola. Na década de 1940 começou a escrever e vender seus folhetos. Depois foi para Campina Grande-PB, onde montou a famosa folhetaria “Estrella da Poesia”, com a qual se fixou na Literatura de Cordel. É este o retrato do autor do romance “Viagem a São Saruê”, cuja influência mais notória foi a leitura de “Uma viagem ao céu”, de Leandro Gomes de Barros. Além da sua obra, Manoel Camilo dos Santos foi editor de João Melchíades Ferreira (de quem adquiriu todas as obras) e lançou novos nomes como Manoel Pereira Sobrinho, Cícero Vieira da Silva “Mocó” e Manoel Monteiro, entre outros. Manoel Camilo dos Santos faleceu no Rio de Janeiro, no dia 9/04/1987, antes de completar 82 anos. Após a morte de Camilo, o escritor e pesquisador Umberto Peregrino, amigo íntimo e admirador, criou no bairro de Santa Teresa a “Casa São Saruê”, destinada a aglutinar todo o acervo da Literatura de Cordel no Rio de Janeiro e coletar os folhetos importados do Nordeste. A “Casa São Saruê” servia também de pousada: poetas, violeiros, cantadores que chegavam ao Rio de Janeiro tinham ali um quarto, um lar, com todo conforto. O local e o acervo foram posteriormente transferidos para o poeta Gonçalo Ferreira da Silva, que assim pôde realizar o seu sonho maior que era criar a Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Apesar de ter certa raiz folclórica, o Rei-no de São Saruê não encontra registro em nenhum compêndio conhecido, como entidade fantástica. É São Saruê uma das muitas cidades maravilhadas produzidas pelos cérebros doa poetas da Literatura de Cordel, onde tudo ocorre por força de encantamentos e milagres. É ela a mesmíssima El Dorado dos antigos desbravadores, o Reino das Amazonas onde tudo é de ouro, a Terra das Esmeraldas pela qual as espadas e garruchas dos bandeirantes dizimou tribos inteiras. É também o País das Maravilhas de Lewis Carroll e Alice, o Reino Encantado de Oz, quiçá a própria terra prometida dos judeus errantes. Alguns calepinos registram em geral a expressão Saruê como sinônimo de Sarará. No Nordeste é também a "espiga de milho que nasce com poucos grãos". Saruê, Sarigueia ou Sariguê é o marsupial, conhecido por alguns por

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Mucura e por outros – erroneamente, a meu ver – por Gambá. Saruê é também a "dança em que se misturam figuras da quadrilha francesa com passos de danças sertanejas e na qual a marcação é feita num misto de francês estropiado e de português". A expressão, dizem, é corriqueira no centro-oeste ali por Goiás, Mato Grosso e adjacências. Particularmente tenho assistido desde a infância as representações juninas, que culminam com o casamento dos noivos durante as festas, sempre sendo chamada de quadrilha. E para encerrar esta digressão conto que nas leituras ainda descobri que algumas lendas indígenas citam Saruã como uma coisa ou um lugar encantado, misterioso, aonde tudo que ocorre e se descreve não se acha explicação racional. Esta é decerto a ideia mais aproximada da fantasia criada e elaborada com esmero por Manoel Camilo dos Santos. No livro "Minha Gente (Costumes de Sergipe)" de Clodomir Silva (Paulo, Pongetti & Cª. 1926), pequeno volume temas folclóricos, deparei com alguns versos ditos pela boca de cantadores em desafio – um se acompanhando da tradicional viola e o outro com um cavaquinho, pasmem! – versos esses que tomam mais remota localização da mágica cidade em que Manoel Camilo bebeu o vinho celestial da fantasia: "Na terra de Som Saruê tem coisa de admirá: muié corta de machado, deixa os cambito virá; amunta nos pordo brabo, é quem dá sarto mortá; e cond'as muié dá lúiz, os home dá de mamá..." Portanto, a fama de lugar onde coisas maravilhosas acontecem já vem de longe. O próprio Manoel Camilo dos Santos confirma isso no princípio da sua história: "Eu que desde pequenino sempre ouvia falar neste tal São Saruê". Mostrando, assim, que as origens do mítico Reino de São Saruê – a Eldorado do cordelista – é mais longínqua do que se pensa. No volume anteriormente citado, do qual não encontrei qualquer outra referência literária, nem do livro nem do autor, Clodomir Silva registrou também a resposta à oitava cantada pelo desafiante, sendo que esta foi recitada em sextilha, que é uma forma mais

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aproximada do cordel: "Na terra de Som Saruê é onde véve meus vizinho, creando cabra de leite pra sustenta bacurinho; é bem nas unha dos gato adonde os rato faiz ninho." Pelo que se viu, a impressão que fica é que sob o mote “Na terra de Som Saruê / Tem coisa de adimirá” muita fartura de rima pode correr pela imaginação dos poetas, ao som das violas, do pandeiro e do cavaquinho. É um filão nobre pra cantador nenhum botar defeito. A princípio estava eu mais propenso a considerar o desafio registrado como fruto da imaginação do autor de "Minha Gente", princi-palmente achar fantasioso o fato de cantadores se acompanharem com cavaquinho, instrumento jamais visto em cantoria. A confiança numa "explicação introdutória" do autor, no entanto, me fez ter fé nas informações ali contidas. Diz a nota: "O que se escreve aqui é fruto de observação. Pode ser defeituoso, mas é verdadeiro. Representa um contingente para a compilação dos modismos de Sergipe ainda poucos conhecidos e muitos descuidados." Lendo o livro "Eu Conheci Sesyom", do biógrafo e grande glosador caicoense, Francisco Amorim, reforça a ideia que o cavaquinho já teve sua época como acompanhante de cantadores: Mote: Júlio, Rodolfo e Macrino São necessários na farra. Glosa: Quando a tarde toca o sino Chamando para a novena Aparecem logo em cena Júlio, Rodolfo e Macrino Não sei dos três o mais fino No cavaquinho e guitarra Digo mais, não é fanfarra Contando ali réis por réis

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Sou franco: os três menestréis São necessários na farra. Mais adiante, voltando ao Clodomir Silva, em seu livro reclama que “nada se tem recopilado em Sergipe, depois de Sylvio Romero, o maior de todos, no culto a nosso berço e a seus costumes”. Portanto, nada mais justo que pôr fé nos informes prestados no livro "Minha Gente", segundo os quais, terminada a faina diária, o pessoal se reunia no terreiro varrido de novo (recém-varrido), "espantando, ao som do cavaquinho e da viola, as canseiras de um dia de labor". Manoel Camilo dos Santos engrossa a fileira de famosos poetas paraibanos. Se suas raízes familiares não se esticaram pelo terreno sergipano, fonte dessas antigas referências sobre a cidade dos seus sonhos, é mais provável que o próprio Reino de São Saruê, esse sim, se estenda autóctone e sem fronteiras por todo o território nordestino. A fundação de cidades e lugares absurdos e comuns na de cordel. Leandro Games de Barros (nunca é demais citá-lo), um exemplo desse local só na imaginação dos poetas: Na cidade da Caipora Perto de Tabua Lascada, Município da Rabugem, Freguesia de São Nada, Rua de Não Sei Se Há, Esquina da Sorte Minguada. Nesse local de difícil localização é que mora, numa vila mais longínqua ainda... O visconde Cururu Barão de Cuia Quebrada, Morava na Vila Nojenta, Rua da Esfarrapada Travessa do Lagadiço Na casa número nada. (Gosto com desgosto) O pequeno grande folheto de Manoel Camilo dos Santos (31 sextilhas e 2 décimas) tem o indiscutível mérito de colocar a fantasiosa região – São Saruê é mais que uma simples vila ou cidade, tem ares de nação – em definitivo no

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cume do folclore brasileiro, via Literatura de Cordel. Aliás, recuássemos um pouco no espaço/tempo e São Saruê seria não um país, nem uma cidade, tampouco uma região e sim um Reino, um Império, aquele lugar maravilhoso de antigamente que fecundou nossa imaginação quando ouvíamos as histórias contadas debaixo de uma mangueira à luz das lamparinas. A São Saruê de Camilo é um país, é uma cidade, é uma nação. E moderna, com todos os requisitos dos séculos futuros. Sua localização exata mais correta é a própria mente de cada leitor que folheia as 31 páginas do romance. São Saruê vive na imaginação rica de quem sempre aspira um lugar assim para viver a vida tranquila que sonhou sempre – e não "nas unha dos gato / adonde os rato faz ninho", como no repente sergipano citado antes. Embora, admita-se, “nas unha dos gato” seja um lugar tão fantástico quanto qualquer outro, capaz de caber outra São Saruê inteirinha por entre os becos e vielas... A viagem de Manoel Camilo dos Santos e a consequente viagem dos seus leitores – inicia em obediência à ordem expressa do "Doutor mestre pensamento", que afinal irá tornar realizado o sonho do menino que um dia ouviu falar na estranhíssima terra: Camilo vá visitar o país São Saruê pois é o lugar melhor que neste mundo se vê. Mas São Saruê é mesmo um país imaginário ou fantasmagórico? Nem tanto, a terra existe, a cidade é real, igual a tudo que "neste mundo se vê". E tudo aquilo que se vê não é fruto da imaginação, a não ser as miragens desérticas que iludem o viajante solitário. E ainda mais, antes mesmo de aportar em terra tão fabulosa, coisas estranhíssimas começam a perturbar a viagem narrada: Iniciei a viagem as quatro da madrugada tomei o carro da brisa passei pela alvorada junto do quebrar da barra eu vi a aurora abismada. Pela aragem matutina eu avistei bem defronte

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a irmã da linda aurora que se banhava na fonte já o sol vinha espargindo no além do horizonte. Surgiu o dia risonho na primavera imponente as horas passavam lentas o espaço incandescente transformava a brisa mansa em um mormaço dolente. Passei do carro da brisa para o carro do mormaço o qual veloz penetrou no além do grande espaço nos confins do horizonte senti do dia o cansaço. O que mais impressiona na mágica viagem que se inicia (e depois na própria cidade folclórica de São Saruê) são os interregnos poéticos, dignos de poetas mais tradicionais, desde Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista. Para o poeta popular a aventura do lirismo é muito perigosa porque exige alta dose de talento, conhecimento e rigor, para evitar a repetição e o vácuo piegas que costumam transformar em ridículo a criação poética. Manoel Camilo dos Santos, porém, se sai de forma estupenda das inúmeras dificuldades que o texto cria a cada nova estrofe: Enquanto a tarde caía em mistérios e segredos a viração docilmente afagava os arvoredos os últimos raios de sol bordavam os altos penedos. Morreu a tarde e a noite assumiu sua chefia deixei o mormaço e passei pro carro da neve fria vi os mistérios da noite esperando pelo dia.

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Ao surgir da nova aurora senti o carro pairar olhei e vi uma praia sublime de encantar o mar revolto banhando as dunas da beira mar. Superado esse "trânsito" tumultuoso, cheio de surpresas, eivado de figuras assombrosas, promessa de um mundo desconhecido, eis que surge à vista a cidade de São Saruê, igualmente fantástica, faiscante, luminosa: Avistei uma cidade como nunca vi igual toda coberta de ouro e forrada de cristal ali não existia pobre é tudo rico geral. Uma barra de ouro puro servindo de placa eu vi com as letras de brilhante chegando mais perto eu li dizia: – São Saruê é este lugar aqui. Os metais preciosos, as pedras de quilates insuspeitados, sempre tiveram a preferência dos humildes, para demonstrar e simbolizar a riqueza quase nunca alcançada. A São Saruê, cintilante e extraordinária, confirma essa tendência. O brilho da prata, a faísca do diamante, a cintilação da pedraria, o colorido das esmeraldas, o rútilo faiscante dos metais, tudo deixa o visitante de boca aberta: Quando avistei o povo fiquei de tudo abismado uma gente alegre e forte um povo civilizado bom, tratável e benfazejo, por todos fui abraçado. A preocupação com as igualdades sociais começa a ser ressaltada pelo poeta. O povo, absolvido da visão miserável da região nordestina, aqui e "bom, tratável e benfazejo"...

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No fundo, no fundo, trata-se confessar uma esperança e um desejo de que as coisas mudem para melhor, de que o irreal prevaleça sobre a realidade constante e aterradora do sertão. Uma vontade de saber, um desejo comum, um reconhecimento de que a terra poderia ser outra bem melhor... O povo em São Saruê tudo tem felicidade passa bem anda decente não há contrariedade não precisa trabalhar e tem dinheiro à vontade. Lá os tijolos das casas são de cristal e marfim as portas barras de prata fechaduras de "rubim" as telhas folhas de ouro e o piso de cetim. Da mesma forma que o poeta deseja o bem-estar da população, almeja-lhe fartura, saúde, boa alimentação, de preferência a custo nenhum. Para tanto, é necessário que a própria cidade, com sua natureza fértil provenha a população de modo natural. Não é de surpreender, pois, que nada seja vendido ou comercializado ou objeto de transação comercial e financeira. Em São Saruê tem de tudo para todos, tão gratuitamente quanto a natureza oferece. Lá eu vi rios de leite barreiras de carne assada lagoas de mel de abelha atoleiros de coalhada açudes de vinho do porto montes de carne guisada. As pedras em São Saruê são de queijo e rapadura as cacimbas são café já coado e com quentura tudo assim por diante existe grande fartura. Feijão lá nasce no mato maduro e já cozinhado o arroz nasce nas várzeas

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já prontinho e despolpado peru nasce de escova sem comer vive cevado. Galinha põe todo dia invés de ovos é capão o trigo invés de sementes bota cachadas de pão manteiga lá cai das nuvens fazendo ruma no chão. Lá os pés de casimira brim, borracha e tropical de nycron, belga e linho e o famoso diagonal já bota as roupas prontas próprias para o pessoal. Os pés de chapéus de massa são tão grandes e carregados os de sapatos da moda tem cada cachos "aloprados" os pés de meias de seda chega vive "escangalhado". O mais admirável de tudo é que, embora o país de São Saruê ofereça ao cidadão tudo de bom, todo o necessário para a sua sobrevivência, também não falta ali o "vil metal". Para quê? Lá se sabe!... Talvez para que o fascínio que provoca o dinheiro se mantenha vivo entre a gente mais po-bre. Talvez para um caso de rara necessidade... mas seja para qual necessidade for, a verdade é que dinheiro jamais falta ali, tem em abundância. Sítios de pés de dinheiro que faz chamar atenção os cachos de notas grandes chega arrastam pelo chão as moitas de prata e ouro são mesmo que algodão. Os pés de notas de mil carrega chega encapota pode tirar-se a vontade quanto mais tira mais bota

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além dos cachos que tem casca e folha tudo é nota." Os peixes lá são tão mansos com o povo acostumados saem do mar vem pras casas são grandes, gordos e cevados e só pegar e comer pois todos vivem guisados." Sendo tudo fruto de encantamento, em São Saruê a fome e as doenças foram extirpadas. A vida lá realça o prazer sem trabalho-. Um verdadeiro país de diversão, alegria, felicidade e lazer. Maniva lá não se planta nasce e invés de mandioca bota cachos de beiju e palmas de tapioca milho a espiga e pamonha e o pendão é pipoca. As canas em São Saruê não tem bagaço (é gozado) umas são canos de mel outras açúcar refinado as folhas são cinturão de pelica e bem cromado." A cidade cresce aos olhos dos leitores em tamanho e prodígio. Para fins de localização note-se que lá existe uma culinária bem brasileira, bem nordestina. Não obstante São Saruê pertence a uma região que acompanha o progresso, os ditames da moda advindos das metrópoles mais avançadas do mundo. Se em São Saruê não existem privilégios, também não há esquecidos. Tudo do bom e do melhor que a vida oferece é para todos e não só para uns poucos como a razão capitalista estabelece e faz sentir. Dona de uma população perene, São Saruê também vê seus filhos nascerem e deles não se descuida. E quando a velhice chega, não tem problema: é só dar um mergulho no Rio da Mocidade e o octogenário cidadão de repente volta à sua mocidade, fica novinho em folha! Lá quando nasce um menino não dá trabalho a criar

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já é falante e já sabe ler, escrever e contar salta, corre, canta e faz tudo quanto se mandar. Lá não se vê mulher feia e toda moça é formosa bem educada e decente bem trajada e amistosa é qual um jardim de fadas repleto de cravo e rasa. Lá tem um rio chamado O banho da mocidade onde um velho de cem anos tomando banho a vontade quando sai fora parece ter vinte anos de idade. O visitante foi bem tratado nos muitos dias que ali passou, gozando "prazer, saúde, alegrias”. Sua única ocupação era recitar poemas. Lá existe tudo quanto é de beleza tudo quanto é bom, belo e bonito, parece um lugar Santo e bendito ou um jardim da divina Natureza: imita muito hem pela grandeza a terra da antiga promissão para onde Moises e Aarão conduziam o povo de Israel, onde dizem que corriam leite e mel e caía manjar do céu no chão. Tudo lá é festa e harmonia, amor, paz, benquerer, felicidade, descanso, sossego e amizade prazer, tranquilidade e alegria; na véspera de eu sair naquele dia um discurso poético, lá eu fiz, me deram a mandado de um juiz um anel de brilhante e de "rubim" no qual um letreiro diz assim: – é feliz quem visita este país.

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Depois de apresentada ao resto do mundo com tantos elementos maravilhadores, a terra de São Saruê se transformou num mundo turístico para muitos brasileiros ilustres. Inu-meráveis são as laudas escritas enaltecendo o lugar e seu fun-dador. Muitas são as versões havidas das inspirações provocadas pela poética de Manoel Camilo dos Santos. Contam já centenas de outros reinos encantados, tão encantadores quanto São Saruê, fi-lhos dos reinos mágicos de outrora. Países de identidade virtu-almente oposta a dos mundos fantásticos da ficção científica, reverso mesmo das terras espaciais frequentadas por um Flash Gordon, e outros heróis futuristas, mas tão intensamente prodigioso quanto elas. Muitos novos reinos serão ainda descritos, desta vez são saruês com nav-es estelares, videofones intergalácticos, outros sois, outras luas. Tudo o que a nova tecnologia atualizou e mais a internet com seus espaços virtuais. Mas, por enquanto, aqui por nossa terra poética, só existe uma São Saruê. Convém visitá-la logo, antes que acabe... Vou terminar avisando a qualquer um amiguinho que quizer ir para lá posso ensinar o caminho porem só ensino a quem me comprar um folhetinho.

Do livro: Literatura de Cordel, o poeta é sua essência.

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SALGADO MARANHÃO ACORDA PALAVRA!

“A cor da palavra” (Imago/FBN - 2009)

Estou lendo o livro “A cor da palavra”, que reúne a poesia de Salgado Maranhão de 1978 a 2009. Não obstante a existência do parâmetro cronológico, o livro contém diretrizes do autor, como se nos desse uma dica para a leitura de sua poesia e deste livro. A primeira delas se refere à estética de princípios, adotada pelo poeta desde quando abraçou a poesia, como o ethos – o caminho para fazer a arte – ou seja, aquilo que seria a personalidade de autor. Essa diretriz aparece no Posfácio “O traço apolíneo de Salgado Maranhão”, de Luiz Fernando Valente, que abre com a seguinte citação do poeta:

“A visão da poesia e das artes em geral está muito relacionada a uma postura dionisíaca e desleixada da vida. Nunca me permiti ser assim. Sempre tive uma postura apolínea.”

É, claro, uma tomada de posição muito pessoal, que trouxe alimento para o ensaio de Luiz Fernando Valente. Pois bem, isso daria também panos pra manga, que seria abrir uma discussão, de já muito cansada e esgotada desde Nietzsche, em “O Nascimento da Tragédia”, que trata da dualidade da tendência artística. Para o filósofo, a arte está profundamente ligada à duplicidade antagônica do apolíneo e do dionisíaco. E de imediato a esta oposição primeira, surgem outros contrários, que servirão de modelo ao que representam as figuras de Apolo e Dionísio. Toda dualidade é tendenciosa, porque se inicia primeiro entre arte plástica e música, depois entre sonho e embriaguez, mais a aparência e o êxtase, etc. Cada um se opõe ao outro, sem excluí-lo, para manter a relação de oposição, como se fosse complemento. As oposições se sustentam em confrontação e interdependência. Mas todas remetem ao mesmo nível de experiência da arte.

Os deuses representam a máxima expressão da cultura apolínea, qual seja: a superação do pessimismo. Segundo Nietzsche, para chegar ao grau de

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afirmação da vida deve-se, primeiro, levar o pessimismo ao limite extremo, alcançando, assim, o sentido metafísico de aprofundar e superar. Uma guerra de terra arrasada. Mas, se essa verdade for assimilada, levará ao aniquilamento da vida, ou seja, à última expressão do saber dionisíaco: o êxtase. Pois foi assim que Nietzsche fixou a distinção entre apolíneo e dionisíaco: Apolo é o deus da clareza, da harmonia, da ordem. Dionísio, o deus do êxtase, do caos, da música. Mas, a poesia não é uma arte exterior? Ou seja, ainda uma vez, não está acima e além de todas as demais artes? Para Nietzsche o apolíneo e o dionisíaco eram forças complementares, mas foram separadas pela civilização moderna. Onde a poesia caminha nesse labirinto? Resulta, portanto, que tudo acaba retornando ao impasse da existência da dualidade.

Pode-se alimentar ainda mais e fogueira que cuida da dualidade entre a vida e a arte, conforme Moira Muller observa em “Lo apolineo y lo dionisiaco de Nietzsche”:

“Sea de modo disfrazado o deformado algo expresó el joven Nietzsche en El nacimiento de la tragedia que nos sigue diciendo algo. La intuición de que el desarrollo del arte esté ligado a la duplicidad de lo apolíneo y lo dionisíaco, aunque no constituye una intelección científica, mantiene su significado filosófico y poético para nosotros. Toda la expresión artística, afirma Nietzsche, surge como un arma, una anestesia, contra el dolor sufrido por el hombre. Una vez echado un vistazo en la profundidad de la verdad de la vida, el hombre se ve desgarrado de su mayor anhelo, haciéndose una herida incurable. El arte se nos presenta como una alegre esperanza de que pueda romperse el sacrilegio de la individuación del Uno primordial, de los dioses eternamente perfectos, como presentimiento de una unidad restablecida. Ningún pueblo fue tan apto para el sufrimiento como los griegos y para poder vivir tuvieron que crear los dioses y el arte. Como estrategia de supervivencia “los griegos, que en sus dioses dicen y a la vez callan la doctrina secreta de su visión del mundo, erigieron dos divinidades, Apolo y Dioniso, como doble fuente de su arte. En la esfera del arte estos nombres representan antítesis estilísticas que caminan, una junto a la otra, casi siempre luchando entre sí, y que sólo una vez aparecen fundidas, en el instante del florecimiento de la voluntad helénica, formando la obra de arte de la tragedia ática”.

Outra diretriz dada por Salgado Maranhão na feitura do livro “A cor da palavra” se refere a um procedimento – a revisão de textos poéticos já publicados – tema que também suscita muita discussão na literatura, tanto na teoria quanto na prática. O que ele fez? Explica melhor a declaração do poeta:

“Os leitores que, de algum modo, acompanham meu trabalho desde as primeiras publicações, encontrarão, aqui, poemas reciclados ou fora de ordem.

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Isto deve-se à minha obstinação pela palavra de múltiplas arestas, e ao intento de dar a esta obra, verdadeiramente, a feição de um novo livro.”

Com efeito. Também se trata de uma opção. Trabalhar a palavra requer, de fato, suor e obstinação, como diz o poeta. Muitos autores mexeram e remexeram seus trabalhos antes de publicá-los. Li não sei aonde que James Joyce reescreveu “Ulisses” – aquele calhamaço, sim senhor – mais de 34 vezes! Caramba! Neste caso acredito que a literatura perdeu muito, pois o dublinense bem que poderia ter usado esse tempo para nos oferecer outras maravilhas... Ademais, a escritura é um labirinto. Quando se lê o que se escreveu lá atrás, a pergunta que primeiro vem é “Quem escreveu isso?”.

Por essas e outras razões, muitos escritores preferem jamais reler o que escreveram. Josué Montello, na velhice, pegou o primeiro romance – que já havia enterrado como obra de juventude – e reescreveu todinho. Nada sobrou do texto inicial, dizia ele muito orgulhoso. Outros, muitos outros mesmo, quando alcançam a fama depois de anos laboriosos, optam por enterrar no limbo do esquecimento as primeiras palavras. Ferreira Gullar hoje ri do seu primeiro livro "Um pouco acima do chão". Outros “tiram do catálogo” as obras condenadas pelo tempo inclemente. O livro existe, está na biblioteca, o nome de quem escreveu está lá, mas quando se encontram o autor finge que não viu, vira o rosto, desdenha, empina o nariz. Coitado do primeiro verso...

Enfim, mexer ou mexer é uma decisão e responsabilidade pessoal. Outro dia mesmo andei lendo – mas não anotei a fonte, droga! – dizendo que a poesia não se revisa, porque é difícil refazer o itinerário da palavra até o papel. A prosa sim, dá todas as opções para uma revisão concreta. Quiçá, a respeito do tema, li no livrinho de pensamentos “Reflexões sobre poesia e ética”, do poeta grego Konstantinos Kaváfis:

“As imagens e sensações estivais me infundem numerosas impressões. Todavia, não sei de as ter representado ou traduzido de pronto numa composição literária. Digo ‘de pronto’ porque as impressões artísticas demoram a ser usadas, a gerar outros pensamentos, a transformar-se sob a ação de novas influências e quando enfim se cristalizam em palavras escritas, é difícil lembrar a ocasião primeira onde nasceram e de onde se originam as palavras escritas.”

Bom, chega de divagar... Ah, mais cabe mais algum comentário. O resultado obtido ao transformar essa reunião em novo livro, como quis obstinadamente Salgado Maranhão, restou, de algum modo, complicado. À vista do resultado que essa re-ordenação e re-visão trouxeram, imagino que foi muito trabalhoso ao poeta realizar, porque também os livros antigos tomaram nova feição, novos títulos. “A cor da palavra” ao final assumiu a seguinte forma gráfica, que vai aqui como roteiro:

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PUNHOS DA SERPENTE – Com Ebulição da Escrivatura & amp; avulsos (1978-1989)

– À flor da fala PALÁVORA (1995) – Dez Limites – Coisas e Lugares – Petit Finale O BEIJO DA FERA (1996) – Nudez Nutriz – Palavras com Figuras – Faces do Disfarce – Coda MURAL DE VENTOS (1998) – Itinerário de Afetos SOL SANGUÍNEO (2002) – Tribos e Vitrines – Tear dos Afetos – Legenda Gris – Adereços para um Eclipse SOLO DE GAVETA (2005) – Mapa de Origem – Espécimes – Diversos A PELAGEM DA TIGRA (2009) – Mar de Lavas – Mar sem Ondas – Mar Deriva – Mar Aberto – Tear de Prismas (Finis) Pensando bem, acredito que Salgado Maranhão não se propôs apolíneo para exprimir suas idéias – sociais, históricas e políticas – sob a grandeza da poesia. Esta se expressa através do poeta na conformidade do tempo, de uma forma que nem a re-arrumação, nem a re-visão ou a re-ordenação não conseguem sufocar. O apolíneo em Salgado Maranhão está na ordem apropriada que a arte lhe consentiu, em nome da palavra, para frutificar na profissão de Poeta. Nesse caso, lucra o leitor: ao mesmo tempo que lê a poesia de Salgado Maranhão, se

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dá ao luxo de também re-ler aquilo que transtornou a visão de uma escrita já gravada no tempo.

Ora, direis, ao fim acabaste não falando sobre a poesia de Salgado Maranhão. Tendes razão – responderei – mas o que seria a opinião deste modesto escriba ante as inúmeras e bondosas críticas já professadas por maiores figuras? Ademais é mister que se procure escrever sobre um tema ou pessoa ou escritura de um modo que assunte sobre paisagens inéditas, detalhes ainda não assimilados, lugares não descobertos, entranhas virgens, portanto ainda não desbravadas.

Procuro, com esse viés, também provocar pontos-de-vista sobre essas áreas ainda não transitadas e assim permitir ao leitor deslumbrar novos horizontes. Pelo menos é essa a intenção. Por isso, passo a palavra a Ferreira Gullar, que bem se expressou sobre a poesia de Salgado Maranhão, na contracapa do livro que tenho em mãos:

“Salgado Maranhão é um dos mais brilhantes poetas de sua geração e possui um trabalho de linguagem muito pessoal. ‘Sinergia’ é a palavra que define sua poesia. Uma poesia da palavra, muito embora não ignore o real, pois o traduz em fonemas e aliterações. Que não hesita em ir além da lógica do discurso (ou do enlace com o plausível) se o resultado é o impacto vocabular e o inusitado da fala.”

Ora bolas! Com esse sábio depoimento de Ferreira Gullar ia encerrar este artigo, mas eia! Já se abre um novo foco de incêndio. Sim, incêndio. A palavra é incêndio, é fogo. Aqui o leitor, somando os três fatos, fará uma associação de ideias:

1) Salgado Maranhão é um poeta autodenominado apolíneo, isto é, autor de vida e arte canônicas, acadêmicas, certinhas;

2) Em função dessa diretriz, Salgado Maranhão optou por reescrever seus livros e poemas anteriores e transformá-los em novos poemas e novos livros;

3) Salgado Maranhão é um poeta obstinado pelas palavras de múltiplas arestas, (...) que não hesita em ir além da lógica do discurso (ou do enlace com o plausível) se o resultado é o impacto vocabular e o inusitado da fala.

4) Dedução: Salgado Maranhão é um poeta chato!

Felizmente não é assim. A poesia de Salgado Maranhão pode (ou não pode) ter todas as qualidades e defeitos apontados aí acima. Mas, graças ao olhar apolíneo, que de imediato atrai o oposto foco dionisíaco, tudo se transforma. Por exemplo, tente descobrir os muitos sonetos – nada apolíneos, diga-se – que se escondem dentro de uma ou outra poesia mais hermética, mais intraduzível

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de imediato. Graças ao rigor com que o poeta lavoura os seus poemas, temos a garantia do verso honesto. São poemas belos em que a tranquilidade lacustre da palavra tensa, em breves momentos, é alterada de leve pelo rumor da brisa que encrespa a superfície da água.

Digo que é nos sonetos ingleses, ainda que compostos de forma mais quadrangular que esférica (ou seja, de informalidade estética), que Salgado Maranhão liberta o que há de dionisíaco em sua poesia, o filho bastardo que o poeta reluta em assumir. Ademais – olha o leitor aí, gente! – o modo de criar de Salgado Maranhão faz com que cada mirada traduza sua própria paisagem. Como você gosta de ler poesia? Eu não leio tudo de uma vez, ao contrário, vou ruminando as páginas e mesmo quando acaba o livro, volto a ele de vez em quando. E, acredite, cada leitura, cada releitura é uma nova descoberta, um novo prazer.

Um poeta assim, múltiplo, raro, é apropriado que se leia a todo momento. O livro? “A cor da palavra” é pra se ler e guardar e ler. Assim, o leitor também terá seu modo de ler e de traduzir a palavra. Nesse momento, então, não importa o que o poeta escreveu: o verso será um novo verso, as palavras se misturam interpretadas de modo diferente. Esse é o mistério da poesia, que coube aos poetas semear na terra...

Por fim, uma amostra grátis:

O DEUS E A MÁSCARA Sim, trata-se de um deus que reina ao léu seus caprichos, suas leis de luz e abismos que ao tocar na leve tez do lirismo traz as garras ao que há de céu em seu reino. Réplica de um quase anarquismo ou rito de máscara sob um véu de quem é santo mesmo sendo ateu de quem é uno mesmo em dualismo. Ninguém deterá tal mapa ou endereço: trata-se de um folião sem adereço a vestir a própria alma no disfarce. (O encanto, o afeto, a paixão e seu preço escrito a ferro e flor e desenlace.) E assim, quanto mais morre mais renasce.

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DUAYER CARTAS A UMA MENINA

“Cartas”- Ilustrações Taline Schubach (Ygarapé Editorial - 2011)

Entre os muitos gêneros literários, tem um que se destaca dos demais, embora de poucas aparições: a carta. Para falar de uma literatura técnica, de estética perfeita, temos de lembrar o romance As ligações perigosas, de Choderclos de Laclos, cujo sucesso consagrou o gênero, além de versões para o cinema e teatro.

Se é para lembrar a literatura de comunicação, caímos no inevitável mundo da epistolografia, que é a publicação da correspondência real, isto é, trocada entre pessoas. Neste caso vale lembrar o poeta Mário de Andrade, cuja obra literária ampliou-se de modo considerável quando se publicou a vasta correspondência que trocou com nomes famosos de nossa literatura e, por extensão, da própria arte como – por exemplo – o poeta Manuel Bandeira.

Mas de repente surgiu o computador e com ele um mecanismo de comunicação imbatível: a internet. Com o advento da internet a correspondência passou a se chamar e-mail. O que é um e-mail? Trata-se de uma carta que não precisa de papel para ser escrita, chega ao destino mais rápido que a transportada por avião, não consome envelope, dispensa o selo, em cujo endereço não consta nome de rua, bairro ou CEP. E em muitos casos nem mesmo o nome do destinatário, apenas um nickname, ou seja, um apelido.

O universo do e-mail também deflagrou outro tipo de literatura, cujos parâmetros estão ainda indefinidos, devido à amplitude de recursos oferecidos pela rede virtual: tão infinito quanto o tamanho do próprio universo estelar e tão misterioso quanto o dilema “de onde viemos, para onde vamos?”, que persegue a humanidade e sua fé.

Neste livro de apenas um conto – Cartas – injustamente classificado como “literatura infanto-juvenil” – o poeta, cartunista e também multimídia Duayer busca uma saída do labirinto no qual estamos todos enredados com o big bang

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da comunicação. Duayer inventa uma carta à moda antiga para explicar a situação (explanada de leve nas linhas acima), para entender e fazer entender o que ocorreu com a mudança brusca da comunicação pessoal, pegando o exato momento em que a carta virou e-mail.

Essa é a importância do livro: muita gente já falou dos achaques, malefícios e benefícios que a internet trouxe para a comunicação e o diálogo entre as pessoas. É justo esse o ponto neuvrágico que Duayer toca – como que a juventude assimilou essa mudança, no momento da transposição. Porque a geração imediatamente posterior à internet sequer sentiu que algo havia mudado: entrou de chofre no email, desconhecendo que um dia existiu essa coisa chamada carta...

Desconhecendo que (como diz a nota da contracapa), “Não faz muito tempo, as cartas viajavam pelo mundo conectando pessoas... acredite! Era um meio de comunicação muito comum. Então chegou o computador pessoal e os e-mails tomaram conta de tudo! Hoje, as cartas são contas, avisos (muitos indesejáveis) e toda a sorte de propagandas. Será que esquecemos o seu lado bom?...”

Duayer é um artista plástico cuja base tem como matriz a união do cartum, da fotografia e da pintura. E foi talvez por essa larga experiência que escolheu e se rendeu às belas ilustrações por Taline Schubach, que alcança tal intimidade com o texto tornando-a praticamente co-autora do Cartas.

Não tenho a mínima idéia de como colocar Cartas em suas mãos, raríssimo leitor, mas pode encontrá-lo com certeza no endereço postal da editora Ygarapé Editorial - Av. Gomes Freire, 647/903 - Rio de Janeiro (RJ) - CEP 20231-014 ou no site www.ygarape-books.com (e-mail: [email protected]), verdadeiro ato falho com que a internet costuma brincar com seus usuários, pois, pois, por que “fale” ao invés de “[email protected]”?...

Rio de janeiro, Cachambi, fevereiro de 2012.

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RAFAEL CARIELLO E O ‘LIVREIRO’ PORTUGUÊS

Revista Piauí, Rio de Janeiro.

Somente no exemplar gratuito da Piauí “Flip 2013” li o seu artigo “Uma tonelada de versos”, de 2012, mas que depois de dois anos continua vivo. Aprendi que as coisas que escrevemos não morrem nunca! No seu artigo – depois de um papo de “três horas, quatro cervejas e meio maço de cigarros” – você conta a breve história de Mario Guerra, vulgo Changuito – “o livreiro português que veio viver de poesia no Brasil”. Como gosto de ler e escrever, tomei a liberdade de fazer alguns comentários.

Pra começar, não creio que alguém que teve uma livraria por meros dois anos já possa ser chamado de livreiro ou incluído nessa confraria que arregimenta muita gente boa – mas, por sua generosidade, aceito, vá lá, que assim seja.

Em seguida você informa que, “ao visitar o país (Brasil) pela primeira vez, há quase vinte anos, [Changuito] teve a imediata noção de que aqui viveria e, de preferência, morreria”. Quer dizer, Cariello, que o livreiro Changuito esperou vinte anos para se mudar para a terra onde “viveria e morreria”? Demorô, né?

O livreiro, Changuito era o “dono da única livraria portuguesa especializada em poetas e versos”, a “Poesia Incompleta”, fundada em 2008 e fechada em princípios de 2011. Aí você diz: “O negócio vingou – apesar dos alertas de amigos de que o sucesso era improvável”. Peraí, Cariello, como que “vingou” um negócio que durou apenas dois anos e faliu? Lamento, não vingou não, os amigos de Changuito tinham razão e ele fez mal em não dar ouvidos à advertência.

A minha dúvida sobre a vocação de livreiro se reforça quando Changuito confessa: “Gostava de trabalhar como taxista, mas não tenho carta” (o lusitanismo ‘gostava’ traduz-se pro brasileiro ‘gostaria’ e ‘carta’ é a nossa CNH, certo?). Fosse eu o interlocutor, sabendo que ele confessou que já dirigiu ‘ilegalmente’, teria dito: “Ô Changuito, isso aqui não é problema.

Tem muito táxi pirata por aí pilotado por motoristas sem carta, com carta e

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taxímetro falsos, não esquenta, vai à luta!”

A confessa paixão pela terra brasilis também é posta em dúvida quando ele declara que veio pra cá porque “Portugal está negro, governado por uma cáfila de predadores corruptos”. Ah, você não teve coragem de replicar que aqui está a mesma coisa, e que – pior – não somos Europa!

Então, acho que fico com a segunda opção para a vinda do livreiro Changuito: o amor que ‘comeu’ Changuito (ou será vice-versa?) foi o leit motiv para a vinda dele para cá. Viva, pois, a nossa poeta Valeska!

Bem, Cariello, espero que você continue escrevendo – escrever é perseverar (fazer de um fato insignificante tema de artigo já é mostra de talento). Essa ingenuidade, de certa beleza estética, mas sem nenhum rumo, no tempo certo vira pó, pela prática, pela insistência, pela teimosia. Agora, me tire uma dúvida: quem pagou as quatro cervejas e o maço de cigarros? Não foi você, foi?

Um abraço do Salomão Rovedo.

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NATALIA VIANA SEMENTES

“Plantados no chão” (Editora Conrad - 2007)

Foi a própria Natalia Viana quem me enviou o texto, que reproduzo a seguir em nome da liberdade de expressão e do direito à verdade.

“Às onze horas do dia 20 de novembro de 2004, dezessete homens armados entraram na fazenda Nova Alegria, no município de Felisburgo, Minas Gerais. Queriam "acertar a contas" com as 130 famílias do Movimento de Trabalhadores Sem-Terra (MST), que estavam há mais de dois anos no acampamento batizado de Terra Prometida. Os sem-terra denunciavam que parte da terra havia sido grilada, e pela lei deveria ser desapropriada. Adriano Chafik – dono da propriedade – e seus homens caminharam até o centro da ocupação e abriram fogo. Mataram cinco sem-terra e feriram quinze.

“Três anos se passaram.

“Às 13 horas do dia 21 de outubro de 2007, quarenta homens armados entraram na fazenda da multinacional Syngenta Seeds, próxima ao Parque Nacional do Iguaçu, em Santa Tereza do Oeste, Paraná. Queriam “acertar as contas” com os líderes das setenta famílias da Via Campesina que montaram ali um acampamento batizado de Terra Livre. Os camponeses denunciavam os experimentos da Syngenta com sementes transgênicas de soja e milho, que feriam uma lei que proíbe tal prática próxima a reservas florestais. Os homens, contratados de uma empresa de segurança privada, entraram na fazenda já atirando. Executaram um líder sem-terra e feriram outros cinco.

“O relato dos dois episódios assusta pela semelhança. Mas deveria chamar a atenção, também, pela diferença. São duas histórias distantes no espaço e no tempo, envolvendo atores diferentes e com motivações diferentes. No entanto, como numa novela bem ensaiada, o desenrolar dos acontecimentos é idêntico: as vítimas já haviam sido ameaçadas, as autoridades sabiam do perigo

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eminente, mas mesmo assim nada foi feito. O desfecho, também, provavelmente será o mesmo. Enquanto matavam mais um sem-terra no campo da Syngenta, Adriano Chafik, réu confesso do massacre de Felisburgo, continuava sem julgamento – e sem previsão para tal.

“O livro “Plantados no Chão” é um grito de indignação contra essa novela. Publicado em junho de 2007, é uma compilação de mais de 180 casos de militantes assassinados nos últimos quatro anos – durante do governo Lula – por causa da sua convicção. É uma tentativa de entender esses assassinatos, buscar estabelecer que padrão eles seguem, por que eles acontecem e perguntar como continuam a ocorrer em um governo que foi eleito com o apoio desses mesmos movimentos sociais. Não são respostas fáceis, e por isso não pretendemos esgotar o assunto, mas iniciar um debate muito necessário.

“Cada assassinato político não é a morte de um militante, é um pouco a morte da causa que ele defende. Os assassinatos políticos nos dias de hoje não servem para exterminar uma pessoa, mas para refrear a demanda de um grupo que é representado por essa pessoa. Ao permitir essa rotina de violência, nosso governo permite que a democracia brasileira continue sendo decidida a bala. Não é algo para se orgulhar.

“Desde o lançamento, sempre quisemos que o livro fosse disponibilizado na internet para download gratuito. Queríamos desde o começo que o seu conteúdo tivesse mais alcance do que a forma (e o preço) de um livro pode alcançar. Queremos levar esse debate para os mais diferentes cantos possíveis. Por isso, como autora (juntamente com toda a equipe da Conrad) pedimos: baixe o livro, copie, imprima, leia, releia, critique. Afinal, parafraseando a jornalista britânica Jan Rocha, autora do prefácio do livro, o assassinato político não é a morte de uma só pessoa; é um golpe contra a esperança – e contra o futuro da nossa democracia.

“E o trabalho iniciado com “Plantados no Chão” não termina por aqui. Em breve estrearemos um blog neste site, onde manteremos os leitores atualizados não apenas em relação aos crimes relatados no livro, mas também abrindo espaço para novas denúncias. Aproveite o livro e o site, e espalhe a ideia”.

Nada há a acrescentar ao texto da autora, jornalista corajosa Natalia Viana. Para encerrar, gostaria de dizer que vários sites e locais onde o livro poderia ser baixado, foram deletados, em ato de evidente perseguição. Depois de muita busca achei uma cópia no site da CUT.

Está lá em: http://www.cut.org.br/sistema/ck/files/plantados(1).pdf, para quem quiser baixar, antes que o endereço seja linchado pelos donos da verdade. Mas uma ocorrência dessa magnitude tem que ser investigada. Cadê as promotorias,

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cadê as entidades de direitos humanos, cadê a tal comissão da verdade – só vale para o Araguaia?

Rio de Janeiro, Cachambi, 24 de fevereiro de 2008.

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ANA MIRANDA A ÚLTIMA QUIMERA DO POETA

“A última quimera”

(Companhia das Letras - 1995)

Um bom reforço neste ano de 2012, comemorativo do centenário de publicação do EU, de Augusto dos Anjos é este livro de Ana Miranda, A última quimera, que, por isso mesmo, merece uma reedição.

Isto porque, neste Século 21, são poucos os que conhecem os detalhes da aventura desumana que redundou em desastre e transformou em drama a vida do poeta augusto dos Anjos.

Para os leitores que um dia tiveram nas mãos esse estranho e incompreensível livro – EU – o seu teor será mais estranho e mais emblemático ainda. Neste caso, o romance de Ana Miranda irá pacificar a sua mente, além de obrigá-lo a reler, uma vez mais e sob novas perspectivas, um dos livros mais importantes e universais da poesia brasileira.

Partindo de um fato ocorrido após o falecimento de Augusto dos Anjos – o encontro casual entre dois amigos consternados e o poeta Olavo Bilac, recém chegado de Paris. A autora leva o leitor a uma retrospectiva labiríntica – mas com roteiro exato – percorrendo os fatos e dramas que antecederam e precederam a morte do poeta: o período trágico entre 1910 e 1914.

No romance A última quimera, os dois amigos da história original se fundem numa só pessoa, que é o próprio narrador: “Na madrugada da morte de Augusto dos Anjos caminho pela rua, pensativo, quando avisto Olavo Bilac saindo de uma confeitaria de fraque e calça xadrez, com bigodes encerados de pontas para cima e pincenê de ouro se equilibrando nas abas do nariz.”

O fato é historicamente anedótico: o pragmatismo do poeta famoso ante as notícias sobre novos autores. Uma prevenção instintiva o alerta sobre o “perigo” e logo se transforma em autodefesa, que o protege, a seus pares e à

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corriola que o cerca. Informado do falecimento do poeta Augusto dos Anjos, Olavo Bilac, consagrado Príncipe dos Poetas, confessa ignorância sobre a pessoa e as obras do finado. E para conhecê-lo, pede informações e que lhe recitem algum poema dele.

Para ser um romance de cunho histórico e não apenas uma biografia, a autora recorre à ficção e acrescenta toda carga dramática necessária. É neste ponto que Ana Miranda reelabora o fato e parte para a ficção: substitui o poema que foi recitado – “Versos a um coveiro” –, pelo magnífico soneto “Versos íntimos” que, junto com “Monólogo de uma sombra”, é um dos mais queridos entre os fãs de Augusto dos Anjos.

VERSOS ÍNTIMOS

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a Ingratidão – esta pantera –

Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!

O Homem que, nesta terra miserável,

Mora entre feras sente inevitável

Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,

A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que afaga,

Escarra nessa boca que beija!

A história original, narrada por Francisco de Assis Barbosa na introdução da 29ª edição do EU, (Editora São José, 1963), conta o fato da seguinte maneira:

“A morte de Augusto dos Anjos, em 1914, teve pouca ou quase nenhuma repercussão na imprensa do Rio de Janeiro, a não ser pelo artigo de Antônio Tôrres, recordando o poeta com entusiasmo. (...) na Paraíba, como a reparar todo o mal que fizeram ao filho incompreendido, José Américo de Almeida escreveu o seu “Augusto dos Anjos no trigésimo dia do seu falecimento” (...) Por iniciativa de Orris Soares, seria publicada uma nova edição do EU, acrescida de poemas esparsos, em 1920. Até então, o poeta quedara esquecido, mesmo dos que o amavam, quando não completamente ignorado pelos donos da literatura.

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Dias depois da sua morte, ocorrida em Leopoldina, Orris Soares e Heitor Lima caminhavam pela Avenida Central [hoje Avenida Rio Branco] e pararam na porta da Casa Lopes Fernandes para cumprimentar Olavo Bilac. O Príncipe dos Poetas notou a tristeza dos dois amigos, que acabavam de receber a notícia.

– E quem é esse Augusto dos Anjos? – perguntou.

Diante do espanto de seus interlocutores, Bilac insistiu:

– Grande poeta? Não o conheço. Nunca ouvi falar nesse nome. Sabem alguma coisa dele?”

Heitor Lima, que conhecia a fundo a obra do amigo Augusto dos Anjos, recitou o soneto

VERSOS A UM COVEIRO

Numerar sepulturas e carneiros,

Reduzir carnes podres a algarismos,

Tal é, sem complicados silogismos,

A aritmética hedionda dos coveiros!

Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos

Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,

Na progressão dos números inteiros,

A gênese de todos os abismos!

Oh! Pitágoras da última aritmética,

Continua a somar na paz ascética

Dos tábidos carneiros sepulcrais,

Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,

Porque, infinita como os próprios números,

A tua conta não acaba mais!

“Bilac ouviu pacientemente, sem interrompê-lo. E, depois que o amigo terminou o último verso, sentenciou com um sorriso de superioridade:

– Era este o poeta? Ah, então fez bem em morrer. Não se perdeu grande coisa”.

Pode ser que a escolha do poema tenha sido infeliz – não era dos mais belos – que o tema, um tanto mórbido, causasse a reação intempestiva, um tanto sarcástica e fria de Olavo Bilac. Ou talvez o fato não tenha ocorrido e seja

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apenas de mais uma das muitas anedotas literárias que circulam por aí, atribuídas a muitos escritores, vivos e mortos.

O fato é que, com este gancho, Ana Miranda nos transporta – na voz de um narrador onipresente e onisciente – à brevíssima residência do poeta no Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ao nos indicar o caminho que atravessa toda a existência de Augusto dos Anjos, ultrapassando a própria morte, sinaliza um futuro menos áspero e mais glorioso.

Deixa, porém, um mistério: quem será esse narrador que sabe “de cor todos os versos de Augusto dos Anjos?”

Quem será esse companheiro “do tempo em que éramos crianças e passávamos férias juntos, no Pau d’Arco?”

Quem é essa figura que encontra Bilac amiúde e ouviu dele o pedido de desculpas pelo que falou “a respeito do poeta que morreu?”

Quem será o autor do relato que viu guardado entre as mãos de Olavo Bilac um exemplar do EU, “comprado no balcão de saldos da Livraria Garnier, a preço vil?”

Quem será o narrador que na madrugada encontra uma jovem de vestido escuro, xale sobre os ombros, chapéu de feltro, expressão de alguém dotada de intensa e sofrida vida espiritual e sabe tudo sobre Augusto dos Anjos – que o parabeniza por ter sido “eleito o Príncipe dos Poetas?”

Seja o quê for ou quem for Ana Miranda transformou-o em personagem que guarda um credo: a platônica paixão por Esther, esposa (e depois viúva) de Augusto dos Anjos, a quem não teve coragem de cortejar. Um professor de Leopoldina casou-se com a viúva antes do defunto esfriar, como se costuma dizer.

Ressabiado, ele relembra “o sujeito com quem Esther se casou é o mesmo que espreitava sua casa e que a procurou para falar sobre a criação de um Grêmio Literário”; que “muitos condenaram o casamento”.

Da amada Esther, guarda ternas lembranças: “De manhã saía com os filhos a passear na praça; às vezes entrava na igreja e chorava, ajoelhada diante do altar”. Lembra também do “pintor que passeava de tarde na linha do trem, Funchal Garcia, [que] fez um retrato a óleo de Esther, em roupas negras”.

Por fim, conclui amargurado: “Esther está grávida do quarto filho. Apenas lamento que não tenha se casado comigo”.

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Um caso de amor de cunho passional, em que Esther guarda silenciosa aparência com Capitu, ou até mesmo com o affair de Ana, esposa de Euclides da Cunha, sem o desfecho trágico, claro...

A última quimera, de Ana Miranda, entre as comemorações dos 100 anos do EU, é um livro a ser lido.

Rio de Janeiro, Cachambi, 04/01/2012.

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INÊS PEDROSA ORA POIS, POIS, POR QUEM SOIS...

“Fazes-me falta” (Editora Objetiva - 2010)

Depois de muita ruminação, começo a ler o livro de Inês Pedrosa, que faz tempo me olhava de soslaio (finalmente uso essa palavra que ninguém ousa incluir na fala oral; quando ousarei escrever perspicaz?) da beira da estante. Sentia-se – o livro, claro – humilhado ao ver-me todas as manhãs pegar uma leitura em detrimento do seu direito de anterioridade: ele estava ali a acumular poeira por bem mais de um mês.

Primeiro, tenho que lamentar que esse romance já chegue aqui defasado em oito anos. É provável que no ano de 2002 Inês Pedrosa não valesse os euros que vale hoje, pois é assim que os livreiros vêm o escritor: cifrão e nada mais. Segundo, mais lamentação: depois que José Saramago, do alto do Prêmio Nobel, recusou-se permitir que os seus livros fossem traduzidos do lusitano para o brasileiro, parece que virou moda. Também este Fazes-me falta vem em português lusitano.

Assim é que durante toda a leitura tive de fazer pausas para repensar ou pesquisar em dicionário o que significa isso e aquilo. Parece que não faz diferença, mas faz sim. Em particular aqui neste livro de enredo muito maçante, que exige do leitor também muita paciência. É um livro pesado, lerdo, com a temática de construir o difícil e improvável diálogo entre uma falecida e seu último aluno-amante-professor-alter-ego, que continua vivo. Essa combinação de leitura e texto difícil transforma o livro num pesado fardo para o leitor comum – como eu.

Desde o título, num português incomum em nós, atravessam as páginas centenas de expressões, palavras, falas naquela língua estranha. Além do mais, um dos suportes do texto é a paixão da personagem por adágios e frases feitas: também os anexins entremeiam abundantes toda a narrativa. Embora muitos

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desses ditados tenham chegado até nós, sejam do nosso conhecimento, não há como evitar a consulta num e noutro caso.

Vejamos alguns exemplos:

“...o meu pequeno e velho Deus de algibeira, meu amigo.”

“– Um dia chego cá e encontro-te no meio dessa papelada, morto de cansaço, pronto a encaixotar. Olha, eu é que não te empacoto – ganhei medo a mortos.”

“Que sentido faz a morte de uma rapariga de 37 anos, catano, roída pela própria posteridade? Tinhas deixado de fumar para não morreres de cancro.”

“– És um pulha. Digas o que disseres, és um pulha. E o teu filho vai saber o pulha de pai que tem.”

“A primeira sensação que experimentei, depois de ter desmaiado de dor, foi um intenso perfume de bebé, um perfume quente e azedo de leite bolçado.”

“Deixaste a luz da casa de banho acesa, as portas do roupeiro abertas e umas calças de bombazina vermelho-escuras enrodilhadas ao lado da cama.”

“Pensavas tanto e tão bem que intercalavas sempre as citações nos sítios certos.”

“Através de ti eu existia antes de ter nascido, no vocabulário áspero e secreto de uma guerra que já não me pertenceu – moita carrasco, gatilhos olvidados, o tanas.”

“...trocávamos inibições e desaires como os miúdos trocam cromos.”

“Às vezes sacudia-te, só por aflição, imagina, uns desenrascanços de timidez que me punham as moléculas a ferver...”

“Cachopa. A falta que fazem ao mundo as tuas certezas absolutas sobre o Bem e o Mal. Certezas um bocado aldrabadas, está claro, com fendas por todos os lados.”

“Gamaste-me uns trabalhitos sobre o teu excelso mulherio – e eu gozei arabicamente a tua aflição impudica.”

“...garras coloridas e afiadas remetiam-me para costumes bárbaros, odores de bairro da lata, rituais primitivos.”

“Dei-te o braço, dirigimo-nos à dama, osculei-lhe a pata com olhos de encornador e depois recitei-lhe...”

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“Desde que tu lerpaste, só consigo ver crocodilos.”

E assim segue o texto eivado dessas expressões em claro e nítido lusitanismo (mas não para nós), nas centenas de páginas que compõem o livro. Mas não é só a palavra que na fala comum ou literária faz a diferença: também a colocação pronominal, os adjetivos substantivos e vice-versa, expressões europeias contemporâneas, tudo, enfim, merece uma adaptação para o brasileiro, porque, queiram ou não, a língua portuguesa é distinta aqui, em Angola, em Moçambique, em Cabo Verde, em Timor. Ademais estamos na América Latina, abaixo da linha do Equador e não há como fugir disso.

Há pouco tempo a chamada comunidade lusófona, depois de gastar muito dinheiro e papel, após inúmeras viagens de turismo literário e piqueniques intelectuais, aprovou uma reforma ortográfica que teve a unanimidade de deixar a todos descontentes.

É claro, nessa baboseira cheia de vaidade gastou-se tanto dinheiro – não deles, mas dos contribuintes – que havia necessidade de justificar a extravagância, apresentando um resultado. Mas toda essa movimentação, que consumiu anos e o tempo precioso de alguns chefes de estado, resultou num pífio conjunto de decisões, arremedo de reforma, em desastrosa tentativa de unificar o que é desunido pela própria natureza das coisas. Os meios literários e intelectuais de Portugal repudiaram o trambique.

A língua portuguesa é brasileira, angolana, moçambicana, timorense, cabo-verdiana – e será para sempre. A contribuição que cada país recebe da língua materna é diferente, divergente, cada caso é um caso. Mesmo a assimilação ocorrida em países africanos – Angola e Moçambique, por exemplo, onde a contaminação provocada pelos dialetos tribais é muito forte – é distinta entre si e tem vida própria. São as incorporações assimiladas anos e anos, de maneira natural, no uso popular, depois culto, aquelas que a língua nativa análoga recebe e adota como filhas queridas.

Durante milênios, em algum lugar da Terra, a língua nasce, cresce e morre. Os idiomas e dialetos contemporâneos que ganharam a batalha da sobrevivência estão aí porque conseguiram se adaptar e permanecer em constante mutação. Um só elemento tem importância vital para sua sobrevivência – o falar do povo – que a conserva no uso cotidiano, através das tradições, repassando no ensino comunitário.

Quanto ao livro em si, bem, superada a primeira dificuldade (a leitura em língua “estrangeira”), Fazes-me falta, ainda assim, é um livro pesado, morrinhento, que não se lê: se rumina, como, aliás, não poderia deixar de ser, devido à temática. Além do mais teve o desplante de tentar incorporar nos meus escritos alguns vícios, gerúndios escabrosos, etc. e tal. Mas é leitura que tomo por

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obrigação, para manter em dia o conhecimento da literatura lusitana. No entanto, tenho notado que os livros portugueses, justo esses que não são adaptados ao brasileiro, em geral se tornam odiosos, tal e qual o velho Luís de Camões o era para os alunos do século passado.

Preocupa também o fato desse livro ter sido recomendado às professoras e professores municipais do Rio de Janeiro, como parte do programa Rio, uma cidade de leitores. O que se espera como resultado dessa indicação? O quê esse livro acrescentará ao professor, que o comentará ao aluno de classe primária? Sinceramente nada vejo de positivo nisso. É apenas mais um subsídio ao editor, dos milhares que os governos dão como benesse a um fabricante de produtos caros e nem sempre confiáveis.

Os governos federal, estadual e municipal eximiram as editoras de todo e qualquer ônus na produção e comercialização de seu produto (aí entram o maquinário, a matéria-prima, a tinta, o papel, etc.) – o livro – baseado nas contas de uma redução de preço, que até agora não ocorreu. Quando o valor do livro brasileiro será reduzido na mesma proporção da benesse governamental?

Pois acredite caro leitor, falando-se de escritores brasileiros publicados em Portugal, a recíproca não é verdadeira. Muitos escritores brasileiros foram publicados em Portugal, desde o romantismo. Mais recentemente, em pleno Século XX, obtiveram êxito em Portugal os livros de Érico Veríssimo, Jorge Amado e Rachel de Queirós, entre tantos outros escritores. Todos os livros foram vertidos para o lusitano! Não houve como contemporizar, não houve como atender algum pedido de escritor brasileiro – até mesmo porque eles não o faziam, em respeito à língua portuguesa – como fez aqui José Saramago, exigindo a manutenção do texto original, como condição sine qua non para que seus livros fossem publicados no Brasil.

E na mesma onda que veio Inês Pedrosa, virão outros mais. Os editores brasileiros adoraram a exigência, porque assim economizam o salário de mais um profissional, moderam também na produção, porque usam o mesmo material e os originais utilizados em Portugal. No entanto, trata-se de um erro mercadológico: muitos leitores brasileiros deixam de comprar o livro ao sabê-lo publicado em lusitano. Eu não compro! E todos nós estamos cheios de razão: ler um livro em lusitano é um pé no saco!

Voltando ao livro Fazes-me falta, conto, pois, que estava lá pela metade do romance quando minha irmã me emprestou A soma dos dias, mais um livro de memórias de Isabel Allende. Logo na primeira folheada gostei, pois se trata de outra escritura, fluente, calma, como ovelhas apascentadas. Isabel Allende, aliás, é escritora que se descortinou de imediato ao impor em sua ficção a pseudo-memória. Agora que esta reminiscência se torna cada vez mais de

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cunho pessoal, é leitura cheia de promessas. Mas isso é tema para outra história...

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ANDRÉ IKI SIQUEIRA UMA BIOGRAFIA PRA ESQUECER

“João Saldanha, uma vida em jogo”

(Cia. Editora Nacional - 2007)

Quando um biógrafo humilde confessa que teve de “estabelecer um prazo para o fim da pesquisa e da apuração” sobre o biografado e quando se vê que o livro objeto da biografia teve seu lançamento programado para fins do ano de 2007, não há como ignorar que existe uma ligação entre os fatos. E, depois, quando se compra o livro cujo valor foi a mais de R$ 60,00 também não se pode desligar uma coisa de outra. [Parêntese para perguntar: quando o livro nacional – que recebeu do Governo isenção TOTAL de impostos – vai chegar num patamar acessível a todos os brasileiros? E quando o Governo vai cobrar dos Editores essa atitude?]

Voltando aos finalmente, como se diz, pergunto: como fica o leitor, quando o livro tropeça num número exagerado de erros, quando o texto perde-se num matagal de vírgulas, quando se vê que a própria biografia registra mais “o que se ouviu dizer”, fugindo sorrateira da realidade dos fatos e se escora em anedotas, verídicas ou não. O quê dizer? Mais uma vez, o quê dizer quando o livro repete, sem recriar, muitas das centenas de histórias que ele mesmo contou em seus livros e crônicas esportivas, acrescidas das histórias sobre histórias que muitos dos seus colegas de profissão, os jornalistas esportivos, também pontuaram tanto em volumes impressos quanto nos textos das colunas diárias de jornais.

O quê dizer quando se percebe que, se o volume atingiu suas 551 páginas, não foi graças aos esforços do biógrafo em investigar a fundo a vida do biografado e sim graças às centenas de fotografias que entremeiam o texto, à impressão em tipo itc Century sobre papel couché de 90 g/m, espaçamento 1,5? Todos sabem que a vida de João Saldanha dará não só uma biografia, mas muitas biografias. Como personagem da história do futebol brasileiro, tudo o que se sabe da vida

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de João Saldanha, sobrará ainda muito caldo para filme longa metragem, para programas de TV e para vários documentários.

Pois André Iki Siqueira se esmerou num contexto de cronologia tão duramente traçada, que teve de dar por encerrada a biografia às pressas e entregar os originais à editora para que daí surgisse um bom produto de Natal. Todo o seu trabalho está travado pelo rigor da cronologia. Para os que não conheceram a vida do João Saldanha, principalmente em sua primeira fase bem mais política que cultural, o publicitário André Siqueira não teve trabalho em escolher e oferecer um panorama bem diversificado.

Mas com certa tristeza se vê que os fatos descobertos serviram apenas para enquadrar o corpo mirrado do garoto João numa paisagem entremeada de sangue, disputas políticas, ambições de poder, guerras de latifúndio. É nesse espaço que a paisagem e os fatos bastante notórios da história do Rio Grande do Sul servem de estrada para os primeiros passos de João Saldanha, mas que também lança o menino em presumidas aventuras e tomadas de posição entre maragatos e chimangos, desvarios a que raramente se lança a juventude interiorana, acostumada à vida pacata e discriminatória do interior.

Dessa caminhada por uma estrada cheia de pedregulhos pode-se inferir que houve um momento em que o futebol começou a tomar conta das atitudes políticas do jovem João Saldanha. Porém faltou a André Siqueira a dosagem certa de imaginação para localizar o ponto em que essa atitude foi importante na vida de Saldanha, uma vez que o jovem interiorano se dirigia direto para o confronto político, impedindo a cauterização das feridas ideológicas e provocando a fixação de algumas ideias que durante toda a vida ele praticou, inexorável. Ora, direis, toda biografia é uma obra cronológica. Tendes razão. Porém, o ideal é que até as obras literárias que exijam o caráter e o rigor de uma cronologia viessem a ser elaboradas “sin perder la ternura jamás”. Quando se trata de trabalho de mestrado existe uma regra a seguir e não segui-la significa perder ponto. Por isso, quando uma tese de mestrado se transforma em livro não consegue disfarçar a rigidez extraliterária do texto. Mais: quando Cervantes criticou o Dom Quixote apócrifo, não o fez por ser uma obra literária má. Não era e não é. Cervantes condenou a dureza “de piedra” com que o texto foi elaborado. E por quê? Porque Avellaneda seguiu rigorosamente o roteiro que Cervantes havia deixado no primeiro volume, o que, também, teve o demérito de limitar a imaginação do autor. Ser fiel foi o pecado de Avellaneda.

De qualquer modo, a vida de João Saldanha está quebrada em dois fragmentos cheios de fanatismo. Primeiro, o lado político, a convicção ideológica, a obediência às diretrizes emanadas da União Soviética, a fé arraigada na opção socialista. Segundo, o fanatismo pelo futebol – e pelo esporte em geral. E essa

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convicção determinada em defesa do futebol e do jogador, tem algo da herança socialista por um lado. Por outro lado, bate de frente com todo o rancor ideológico que emana das diretrizes socialistas rígidas, que condena as práticas populares – incluídos carnaval e futebol – como “ópio do povo”. Então, podemos repetir, sem medo, que ser fiel foi o pecado de André Siqueira.

Essa biografia de João Saldanha foi planejada assim. O biografado escolhido a dedo, qualificado pelo volume de retorno financeiro. O tempo datado pronto para determinar a unanimidade dos capítulos. Assim é que essa história, que principia em 1917 (ano da Revolução Russa), de lá pra cá atravessa a Época de Ouro do futebol, até chegar em 1990, quando João Saldanha – muito doente dos pulmões (enfisema) – fez tudo para conseguir liberação médica para ir à Copa do Mundo da Itália. Acabou morrendo lá mesmo. O interessante é que André Siqueira adotou um esquema de ir mesclando a vida de João Saldanha com os fatos históricos que rodeavam sua existência.

Mas essa técnica – se podemos chamar assim – foi emagrecendo ao caminhar da biografia, na razão inversa da importância que a vida de João Saldanha ganhava na história do futebol brasileiro. E na razão direta em que o João Saldanha político perdia em importância. Senão nesse mesmo caminhar, André poderia sinalizar que na década de 1990 houve o nascimento da Perestróica e o consequente colapso da União Soviética. Também a Guerra Fria submergiu nas águas geladas do rio Volga. Seria sem dúvida um trauma para o velho comuna assistir a derrocada do único sistema político capaz de enfrentar os americanos e os chineses. Ainda mais sendo esses fatos seguidos pelo advento da democracia, globalização e capitalismo global. O velho comunista tremeria na base.

Ademais, dá na vista que foi um trabalho realizado sem sair do eixo Rio-São Paulo. André Siqueira não demonstra em nenhuma linha que teve o trabalho de se deslocar para o Rio Grande do Sul – até mesmo às cidades uruguaias fronteiriças – onde decerto acharia rastros da família Saldanha e poderia comunicar seus achados com mais precisão. Se o advento da internet facilitou, por um lado, a pesquisa sobre a vida, a movimentação e as atividades do biografado, por outro lado tornou os pesquisadores mais preguiçosos, fazendo-os esquecer de que o que já está na rede não é mais inédito e é provável que grande parte dos leitores já tenha conhecimento da notícia. Assim é nesta segunda parte da biografia de João Saldanha: muitas das informações tomadas através de depoimento já são de domínio público, não careciam de uma biografia para serem conhecidas. E mais uma vez prevaleceu o lado folclórico do João Saldanha, nada se soube sobre sua vida e dramas privados, que ele viveu intensamente na última fase da vida. A elogiar, se não fosse dado à matéria um tratamento sintético exagerado, o relato da viagem de Saldanha à Itália, onde viveria os últimos momentos da existência.

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Não passou em brancas nuvens outra observação feita ao acaso, mas com propósito bem definido. Vamos da voz a André Siqueira: “Numa segunda-feira de junho de 2003, fui a Maricá com meu primo Sacha Amback e sua mulher, Christiane. Eu estava ansioso e preocupado. Meu destino era a última casa onde morou João Saldanha; e meu objetivo, conhecer seu filho, João Viotti Saldanha – amigo de Sacha –, e sua mãe, Ruth Saldanha, a segunda esposa de João. (...) Eu queria fazer um documentário sobre a vida de João Saldanha e pedir a autorização da família para tanto. Fui recebido com alegria e tive a concordância e o entusiasmo dos dois. Fiquei muito feliz com esse sinal verde. Lógico que poderia escrever sobre a vida de João sem que eles me autorizassem, mas a participação da família era fundamental para recompor o personagem e transmitir carga emocional ao trabalho”.

Nesse pequeno excerto pode-se ver que não foi gratuita a crítica sobre os lapsos da fluência da escrita, a presença de vírgula e ponto-e-vírgula, excessiva e inoportuna, que a revisão deixou passar. Também aqui há uma referência que remete à discussão entre a invasão de privacidade e a pseudo liberdade de escrita que o biógrafo deve ter, à luz de recente biografia de conhecido cantor. Há um pouco de arrogância na frase “Lógico que poderia escrever sobre a vida de João sem que eles me autorizassem”.

Poderia mesmo? No caso da biografia (esta, sim, não autorizada) de conhecido cantor, causou engulhos de vômitos a intervenção judicial favorável à proibição, não porque o texto ofendesse a vida privada – ao contrário, está dentro dos limites éticos – mas sim pela ausência da promessa de mais alguns $$ na conta corrente de Roberto Carlos. Paulo César de Araújo se esqueceu de dar – como se dizia antigamente – o jabaculê...

Rio de Janeiro, Cachambi, 3/9 de janeiro de 2008.

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MACHADO DE ASSIS VS. LIMA BARRETO

Acabo de assistir ao filme “Policarpo Quaresma – Herói do Brasil” (1998), baseado no romance de Lima Barreto “O triste fim de Policarpo Quaresma”, direção de Paulo Thiago. A filmografia brasileira tem aproveitado em bom nível a literatura, pois romances de Machado de Assis foram bem realizados quando transpostos aos telões. Dom Casmurro, outro bom trabalho dirigido por Paulo César Saraceni, saiu com o título de “Capitu”, em 1968. Ambos refletem fidelidade às ideias centrais dos romances, sem temor de que ambos se transformassem, para usar o jargão, em meros filmes de época. Duas belas realizações da cinematografia nacional que se juntam ao monstro de Joaquim Pedro de Andrade chamado “Macunaíma” (1969), da sinfonia de Mário de Andrade.

Duas coisas, porém, não irei fazer aqui: crítica literária, muito menos de cinema. O paralelo que me vem à cabeça é sobre o significado dos trabalhos de Machado de Assis e Lima Barreto quando traduzidos em roteiro e imagens, encaminhados, nessa condição, ao espectador. Essa compreensão se faz necessária porque é a que toca à vida de hoje, conquanto que os autores sejam lembrados nas elites literárias de modo apaixonado ou somente como modelos teóricos da literatura nacional.

Machado de Assis, filho de mulatos, nasceu no Morro do Livramento, de família pobre, mal estudou em escola pública muito menos em qualquer universidade. Querendo ter acesso à boemia e namorar a corte, estudou sozinho e sozinho se tornou intelectual. Assumiu cargos públicos e conseguiu notoriedade nos jornais para os quais escreveu poesias e crônicas. Já famoso na maturidade, reuniu colegas e escritores para fundar e presidir a Academia Brasileira de Letras. Lima Barreto também era filho de mulatos. Seu pai foi tipógrafo e a mãe, educada com maior esmero, chegou a lecionar o primeiro grau. Ela faleceu quando o menino tinha apenas seis anos, obrigando-o a trabalhar muito para sustentar os quatro filhos do casal, nada lhe valendo o fato de ser afilhado do

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visconde de Ouro Preto (alguma suspeita de filiação?). Essa condição, cujo cotidiano ligava ao fim da monarquia, bem como as lembranças negativas da Abolição da Escravatura – dizem – exerceram forte influência nas críticas cáusticas ao regime republicano.

[Aqui cabe um parêntese para registrar que o mulato foi o primeiro negro a ser aceito pela sociedade escravocrata – depois republicana. Tanto o homem quanto a mulher mulata tiveram tratamento diferenciado do negro puro, ascendendo em escala social e intelectual. Gilberto Freyre bem que reparou nisso: muitos mulatos tiveram acesso à banca de advocacia, a cargos públicos, ao jornalismo, à literatura e às artes em geral. As mulatas, “de pés compridos” (GF), alcançaram notoriedade pela beleza peculiar e não tiveram problemas em se estudar, se formar em professoras, até mesmo em namorar e casar com brancos, de família tradicional ou não].

De Machado de Assis já se disse tudo e são tantas as louvações, as influências, as imitações literárias, a grandeza das influências que a ele imputam, que é impossível falar mal desse desgraçado, um tiquinho que seja. Com efeito, como levantar a voz contra aquele de quem se diz que “a revolução modernista se aproveitou da obra de Machado em objetivos da vanguarda?” E de que estudos da sexualidade, da psique humana e do existencialismo, “atribuiu-se certo psicologismo às suas obras, muitas vezes comparando-as com as de Freud e Sartre”?

Como contestar a declaração de que “nos últimos tempos, com recentes traduções para outras línguas, Machado de Assis tem sido considerado, por críticos e artistas do mundo inteiro, um gênio injustamente relegado à negligência mundial?” E o que dizer de Harold Bloom, que o posicionou “entre os 100 maiores gênios da literatura universal e o maior literato negro surgido até o presente"?

De Lima Barreto, falam pouco – e o que dizem é que também foi um dos que tiveram a obra influenciada por Machado de Assis. No entanto, uma pequena frase distingue muito bem Lima Barreto de Machado de Assis: “Ele foi o maior escritor libertário do Brasil”. Talvez essa tenha sido uma das razões de Lima Barreto ter colocado como citação ao seu Policarpo Quaresma: “O maior inconveniente da vida, que a faz insuportável ao homem superior, é que, se ele for um visionário, as qualidades se tornam defeitos, de modo que muitas vezes, embora realizado, tem menos sucesso do que aqueles motivados pelo egoísmo e pelo hábito vulgar”.

Essa paráfrase tem a assinatura “Renan, Marc-Auréle” (citação do livro “Marco Aurélio”, imperador romano biografado por Ernest Renan), reflete sua própria amargura, já que Lima Barreto não teve a mesma sorte de Machado de Assis, embora tenha galgado a mesma culminância na arte de escrever. Não está em

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má companhia, pois muitos outros escritores provaram do mesmo fel, inclusive Cervantes. Talvez, por isso, Lima Barreto pudesse também parafrasear o próprio Renan, repetindo: “Os maiores acontecimentos da minha vida foram muitos pensamentos, leituras, alguns pores-de-sol à beira-mar e palestras com amigos”.

E lembrar-se, como o citado Marco Aurélio, estoico na plena acepção da palavra, quando disse em suas “Meditações”: “O homem cujo coração palpita pela fama depois da morte não pensa que todos aqueles que se lembrarem dele em breve estarão também mortos, e que, com o correr do tempo, geração após geração, até ao fim, depois de sucessivamente cintilar e se sumir, a centelha final da memória se extingue”.

Voltando à vaca fria (ou revenons à nos moutons), falávamos de filmes brasileiros sobre romances brasileiros, e o que deduzi é que tanto “Capitu”, quanto “Policarpo Quaresma, herói do Brasil” são ótimas realizações sobre o Brasil, mas de destinos tão desiguais que cravam em nosso peito a mesma dor que sofreu Lima Barreto. Como traduzir em poucas palavras a vida de dois seres cujos bisavôs foram pretos escravizados, grandes escritores brasileiros, mas cujas vidas tomaram rumo tão dessemelhante? Já que li os livros e assisti aos filmes, posso tentar fazer uma comparação, mas de jeito não tão técnico como douto escritor faria.

Machado de Assis teve vida longeva de classe média, fundou, presidiu e pertenceu à Academia Brasileira de Letras, trabalhou e progrediu em seus empregos, tornou-se jornalista e escritor famoso. A página que lhe dedica a Wikipédia é enorme, como é grande a sua fortuna crítica, seus livros foram traduzidos para centenas de idiomas, vários romances foram escritos sob a inspiração de seus textos, estudos, continuações, os volumes inspirados em sua obra já a ultrapassam em número e quantidade. Nomes importantes da literatura universal, em razão disso, trataram-no como igual, um par, membro do clã. Machado de Assis foi, enfim, como diria a minha avó, um preto de alma branca – portanto, inserido no contexto e aceito pela sociedade.

E Lima Barreto? Se em algo superou a Machado de Assis foi o próprio nome, pois a maioria prefere referir-se a ele como Afonso Henriques de Lima Barreto – coisa que, por princípio (acho), ele mesmo depreciaria. Lima Barreto tentou várias vezes ser membro da Academia Brasileira de Letras, mas sempre seu nome foi rejeitado. Como a instituição de elite republicana poderia aceitar como membro um contra, alcoólatra e louco? A sua página na Wikipédia é tão mísera que nela se podem contar as linhas, a fortuna crítica que lhe dedicam é maior acentuada na sua vida recheada de desgraças do que em sua obra, os livros que falam dele são poucos e seus romances só inspiram alguns loucos, revoltosos e visionários, como a refletir a própria imagem.

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Machado de Assis era Freud, Lima Barreto era Nietzsche.

Machado de Assis nos endereçou às enfermidades de uma sociedade mestiça e triste – mazelas que nos acompanham até hoje; Lima Barreto nos ensinou a rebeldia, o não conformismo – que os cara pintadas e baderneiros honram ao mantê-los de pé.

Machado de Assis era a assimilação, Lima Barreto era a anarquia. Ambos também se desigualam no endereço do pó: seus ossos e almas jazem no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro: – os de Machado de Assis entre sábios fraternos, no mausoléu de ouro e mármore da Academia Brasileira de Letras; – os de Lima Barreto junto ao populacho, misturados a cantores, artistas, santas, palhaços, anjinhos milagrosos e ilustres desconhecidos.

Agora adivinhem com quem eu fico? Com a dúvida que nos deixou Machado de Assis: a formosa Capitu (com “aqueles olhos de cigana oblíqua e dissimulada” e que já “aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas”), foi ou não foi comida pelo malandro Bentinho? Doutor Santiago é ou não é um chifrudo?

Ou estarei ao lado do louco visionário Lima Barreto, que teve a audácia de atacar os republicanos, de sacrificar o personagem do romance a balaços, fazendo com que Policarpo Quaresma, amado por duas belas heroínas, seja fuzilado pelo chumbo da República (que nos governa até hoje), bradando, de braços ao alto: – Viva o povo brasileiro! Com quem fico, hem, hem?

Rio de Janeiro, Cachambi, 18 de abril de 2014.

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MILONGA E CORDEL

Pode-se dizer que a milonga – canção popular de raiz uruguaia, mas que se fixou na Argentina – é uma prima da poesia de cordel, que corre nos países hispânicos com o nome de “poesia popular”. A milonga transita livre pelas fronteiras do Brasil com Argentina e Uruguai, tendo também vertentes e variantes nacionais, cantada em verso e prosa. Como a nossa poesia de cordel, em sua pré-história, também a milonga começou a ser escrita em forma de quadra, com versos de sete sílabas, o que dá a idéia de que ambas as formas se originam da trova.

Depois sua forma se expandiu e as variantes vão de sextilhas a décimas, sendo que a poesia de cordel criou variantes mais elaboradas, como o martelo, o galope – cujo fim era desafiar a memória e a habilidade dos cantadores e violeiros. Portanto, também os cantadores e os payadores também são descendentes e herdeiros da estirpe dos trobadores medievais, cujas canções – lá como cá – na verdade cavoucam notícias das coisas que ocorriam em volta, fatos que abrangiam tanto a política quanto as ocorrências mais comuns do dia a dia, as tragédias pessoais e naturais, o nascimento e a morte de algum personagem importante, amores e desamores, fatos de natureza profana e sagrada.

Jorge Luis Borges encontra na milonga a raiz do tango. Ele tenta fixar o nascimento da milonga nas periferias de Buenos Aires ou, no máximo, entre Montevidéu e a capital portenha. Mas o fato é que a milonga ultrapassa essas fronteiras e ocorre em todo o cone sul, desde o pampa gaúcho até as periferias mais distantes da Argentina e fronteira com o Chile. Trata-se de fato de poesia que tanto pode ser recitada apenas com fundo musical, quanto pode ser musicada na forma conhecida no Brasil, Uruguai e Argentina, quase uníssona, com poucas variações tonais. Depois a milonga se aproximou do tango de tal maneira íntima que hoje só os experts conseguem fazer distinção.

As canções de cordel (não confundir com a poesia de cordel), são também

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limitadas a máximo cinco variantes musicais, nas quais todas as letras compostas se enquadram. As nossas canções também não se prendem à sextilha de sete sílabas, têm uma forma própria, mais aproximada da poesia dita clássica, com rimas. Os temas, porém, acompanham o registro geral e tratam, de forma romântica ou trágica, da vida comum, das ocorrências sociais e políticas, dos milagres e fatos extraordinários, da história presente e futura. Difere da poesia de cordel, cuja composição obedece a regras fixas, cuja base é a sextilha de sete sílabas, rimando nos formatos ABABAB, ABCBCB ou setilhas no formato ABABCCB e é recitado com acompanhamento de viola em harmonia que varia de dois ou três acordes, repicando o solo com o vocal.

A incursão de Ferreira Gullar na poesia de cordel foi fortuita e ocasional, tinha uma finalidade específica, não foi uma fase poética do autor que pudesse causar uma interrupção no itinerário que ele percorria na literatura. Em 1962, quando fez parte do Centro Popular de Cultura da UNE, Gullar escreveu “Quem matou Aparecida?” e “João Boa-Morte, cabra marcado para morrer”. “Quem matou Aparecida?” relata um drama urbano: uma mulher que trabalha como doméstica em Ipanema, é atacada pelo patrão, vê o seu companheiro, operário, desaparecer depois de participar de uma greve. Desesperada, a doméstica acaba se imolando, ateando fogo às vestes.

“João Boa-Morte” foi escrito para ser apresentado em teatro e representações populares pelo CPC. “Oduvaldo Vianna Filho procurou Gullar para criar um espetáculo sobre reforma agrária e pediu que fizesse a estrutura da peça em versos, a fim de poderem usar um cantador do Nordeste”. "Cabra marcado para morrer" se transformou em filme dirigido por Eduardo Coutinho. “História de um valente” (assinado com o pseudônimo de José Salgueiro) foi feito por ‘encomenda’ do Partido Comunista, a fim de ajudar na campanha para libertar o líder camponês Gregório Bezerra. O livro foi publicado na clandestinidade e Gullar usou o pseudônimo de José Salgueiro, poeta popular, numa referência à sua escola de samba. Só muitos anos depois Gullar assumiu a autoria do cordel.

Eis o mais famoso cordel de Gullar:

JOÃO BOA MORTE - CABRA MARCADO PRA MORRER

Essa guerra do Nordeste não mata quem é doutor. Não mata dono de engenho, só mata cabra da peste, só mata o trabalhador. O dono de engenho engorda, vira logo senador. Não faz um ano que os homens

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que trabalham na fazenda do Coronel Benedito tiveram com ele atrito devido ao preço da venda. O preço do ano passado já era baixo e no entanto o coronel não quis dar o novo preço ajustado. João e seus companheiros não gostaram da proeza: se o novo preço não dava para garantir a mesa, aceitar preço mais baixo já era muita fraqueza. "Não vamos voltar atrás. Precisamos de dinheiro. Se o coronel não quer dar mais, vendemos nosso produto para outro fazendeiro." Com o coronel foram ter. Mas quando comunicaram que a outro iam vender o cereal que plantaram, o coronel respondeu: "Ainda está pra nascer um cabra pra fazer isso. Aquele que se atrever pode rezar, vai morrer, vai tomar chá de sumiço". Já a afinidade de Jorge Luis Borges com a milonga foi mais pródiga, talvez buscando uma afirmação para esse ritmo portenho, talvez uma contraposição à aversão que o poeta nutria pelo tango. Nem por isso Borges se considerava um milonguero, porque também não tinha raízes populares – sua poesia era clássica por demais. Mas depois de ver muitas poesias musicadas acabou por aceitar a homenagem que os milongueros lhe faziam toda vez que isso era possível. Além das milongas, Borges compôs letras que foram musicadas por Astor Piazzolla: “A Don Nicanor Paredes”, “Alguén le dice al tango”, “El Títere” e “Jaccinto

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Chiclana”, são alguns poemas que viraram tangos. Eis algumas milongas escritas por Jorge Luis Borges: “Milonga de Calandria” (música: Eladia Blázquez), “Milonga de Albornoz” (música: José Brasso), “Milonga del Infiel” (música: Sebastián Piana) e “Milonga del muerto” (música: Sebastián Piana). A seguir reproduzimos duas das mais famosas milongas de Jorge Luis Borges.

MILONGA DE MANUEL FLORES (Música: Vitor Ramil) Manuel Flores va a morir, eso es moneda corriente; morir es una costumbre que sabe tener la gente. Y sin embargo me duele decirle adiós a la vida, esa cosa tan de siempre, tan dulce y tan conocida. Miro en el alba mis manos, miro en las manos las venas; con estrañeza las miro como si fueran ajenas. Vendrán los cuatro balazos y con los cuatro el olvido; lo dijo el sabio Merlín: morir es haber nacido. ¡Cuánto cosa en su camino estos ojos habrán visto! Quién sabe lo que verán después que me juzgue Cristo. Manuel Flores va a morir, eso es moneda corriente: morir es una costumbre que sabe tener la gente. Milonga del Marfil Negro (Música: Julian Plaza) Alta la voz y animosa

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como si cantara flor, hoy, caballeros, le canto a la gente de color. Marfil negro los llamaban los ingleses y holandeses que aquí los desembarcaron al cabo de largos meses. En el barrio de Retiro hubo mercado de esclavos; de buena disposición y muchos salieron bravos. De su tierra de leones se olvidaron como niños y aquí los aquerenciaron la costumbre y los cariños. Cuando la patria nació una mañana de Mayo, el gaucho sólo sabía hacer la guerra a caballo. Alguien pensó que los negros no eran ni zurdos ni ajenos y se formó el Regimiento de Pardos y de Morenos. El sufrido regimiento que llevó el número seis y del que dijo Ascasubi: "Más bravo que gallo inglés". Y así fue que en la otra banda esa morenada, al grito de Soler, atropelló en la carga del Cerrito. Martín Fierro mató a un negro y es casi como si hubiera matado a todos. Sé de uno que murió por la bandera.

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De tarde en tarde en el Sur me mira un rostro moreno, trabajado por los años y a la vez triste y sereno. ¿A qué cielo de tambores y siestas largas se han ido? Se los ha llevado el tiempo, el tiempo, que es el olvido.

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HOMERO ODISSEIA

A FIDELIDADE DE ARGOS, O CÃO DE ULISSES

(Transcrição para prosa de excertos dos versos da Odisseia de Homero, em tradução de Odorico Mendes e outros escritos correlatos).

Ali deitado um cão de orelhas hirtas levanta a cabeça. Atende por Argos. Hoje está exangue, mas outrora o próprio Ulisses o alimentava, até o dia que embarcou. Argos era um animal esperto, costumava caçar pelas matas e campos nos arredores de Ítaca. Tendo o dono partido, foi repudiado pelos demais e viveu seus últimos dias fraco e quase cego, infestado de pulgas e carrapatos, tendo como cama estercos de bois e burros. Mesmo assim, logo que fareja a presença do seu dono, as orelhas se eriçam, o corpo freme, agita leve o rabo. Porém, agora Argos está tão fraco que não pode se aproximar, saltando sobre seu dono, como é comum aos cães. Eumeu, que recebe Ulisses anônimo, disfarçado de mendicante, enxuga uma lágrima às escondidas.

Ulisses comentou: “Um cão tão belo, é de admirar que esteja nesse estado, vivendo num monturo. Com o garbo que aparenta ter, se vê que era um cão esperto e bem tratado”.

“Pertenceu ao herói roubado à pátria” – disse Eumeu. – “Sim, era ligeiro, forte e bonito. A caça avistada ou farejada por ele não escapava. Porém, morto o dono, Argos ficou enfermo e débil, os criados negligentes nem pensam nele. Os escravos se furtam às obrigações quando não ouvem a voz do amo”.

Aquele homem que nem sempre gosta do animal que o defende e o acompanha fielmente, faz muito mal. Os bichos têm mais coração e bondade do que certos homens e são fieis. Argos, o velho cão de Ulisses, era guarda constante do palácio do Herói desde pequeno. Mesmo agora, decrépito e enfraquecido, ainda se mantém de sentinela em frente ao seu pobre canil...

Argos, o velho amigo de sempre, comoveu Ulisses e Eumeu ao tentar se levantar sobre as patas trêmulas. No dia em que Ulisses partiu para Tróia, o

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deixou com imensa melancolia. Desde criança, o cão compartilhou todos os folguedos com o dono: corriam pelos campos, caçavam lebres, cabras selvagens, esquilos, veados. Ulisses dava-lhe de comer na mão e ai daquele que tocasse no menino. Logo o cão rosnava, ameaçava morder, ladrava decidido a afastar o agressor. Todos o estimavam para valer: tinha o pêlo lustroso e escovado, jamais faltava comida. Era como se fosse membro da família.

Mas, como tratariam hoje o velho Argos? A grande aflição que reinava na alma de Penélope e de Telêmaco não os deixava – bem se via – cuidar do animal. Trôpego, lazarento, magro e sujo, o cão envelhecera depressa. Deitara-se fora do canil, em cima do estrume, devorado por parasitas, quase cego. Mas, ao ouvir a voz de Ulisses, sacudiu a cauda, esticou as orelhas, fez esforços para se erguer. Mas o coitado não tinha mais energia para correr, latindo e saltando ao encontro do dono, como outrora.

Quem sabe então se lembraria das brincadeiras de outros tempos, a impetuosa caçada aos bichos bravios, a força com que dominava ladrões perigosos, o entusiasmo que o deixava ofegante ao subir montanhas num abrir e fechar de olhos, saltar sobre as valas, atravessar bosques na pegada de algum roedor.

Ulisses contemplou o cão prostrado, cheio de dor, sentindo vontade de chorar. Ao menos, para consolação derradeira, iria abraçá-lo e afagá-lo ternamente. Acercou-se dele, estendeu a mão para acariciá-lo, mas já não pôde tocar-lhe vivo. Ao senti-lo ao lado, o bom Argos, tentando ainda mover a cauda e segurar-se nas pernas débeis, sucumbiu para sempre, com um ganido surdo.

A emoção ao tornar a ver seu dono consumiu-lhe as últimas energias. Desmoronou de tanto sofrer resistindo à dor de vinte anos de ausência. Mas não sobreviveu ao júbilo inesperado da presença de Ulisses. Ao reconhecê-lo logo tentou festejar o seu regresso, mas não encontrou forças.

Eumeu era amigo de Ulisses e Telêmaco seu filho afetuoso e dedicado, mas estando diante de um mendigo andrajoso não souberam adivinhar a verdade que, embora tonto, frágil e cego, o fiel Argos de imediato pressentiu. Nesse momento Argos, ao contemplar seu dono após vinte anos, morreu em paz. Ulisses pranteou a sua morte como se fosse a do seu melhor camarada – e decerto por mais tempo a lamentaria se não se avizinhasse o momento do combate, da vitória e da justiça.

Essa é a parte mais comovente da história (ou tragédia) da Odisseia, de Homero. Narra a chegada de Ulisses à sua terra Ítaca, vestindo trajes andrajosos, quando só o seu cão Argos o reconheceu. A fatalidade com que o tempo apedreja o ser humano é chocante. Hoje essa inevitabilidade transporta Ítaca direto ao pesadelo interrompido, à metáfora da miragem, à terra que se alcançará somente pela utopia, quimera que apenas se descobrirá com o

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tempo.

Ítaca não estará distante da nossa São Saruê, do Eldorado, da Parságada de Manuel Bandeira. Mas delas se descola porque Ítaca não será o fadário, a terra da ventura, o desígnio da felicidade – tudo virá através do enfrentamento, sem dó nem piedade. Em Odisseia a ventura chegara pelo viés da travessia, não do advento alucinado ao destino final.

O poeta grego Konstantinos Kaváfis pegou o tema pelo cangote, quando escreveu o poema Ítaca, traduzido por José Paulo Paes. Ou você prefere a tradução mais abusada de Haroldo de Campos? Veja aí, faça a sua escolha.

ÍTACA (Tradução: José Paulo Paes)

Se partires um dia rumo à Ítaca Faz votos de que o caminho seja longo repleto de aventuras, repleto de saber. Nem lestrigões, nem ciclopes, nem o colérico Posidon te intimidem! Eles no teu caminho jamais encontrarás Se altivo for teu pensamento Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito. tocar Nem lestrigões, nem ciclopes Nem o bravio Posidon hás de ver Se tu mesmo não os levares dentro da alma Se tua alma não os puser dentro de ti. Faz votos de que o caminho seja longo. Numerosas serão as manhãs de verão Nas quais com que prazer, com que alegria Tu hás de entrar pela primeira vez um porto Para correr as lojas dos fenícios e belas mercancias adquirir. Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos E perfumes sensuais de toda espécie Quanto houver de aromas deleitosos. A muitas cidades do Egito peregrinas Para aprender, para aprender dos doutos. Tem todo o tempo ítaca na mente. Estás predestinado a ali chegar. Mas, não apresses a viagem nunca. Melhor muitos anos levares de jornada E fundeares na ilha velho enfim.

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Rico de quanto ganhaste no caminho Sem esperar riquezas que Ítaca te desse. Uma bela viagem deu-te Ítaca. Sem ela não te ponhas a caminho. Mais do que isso não lhe cumpre dar-te. Ítaca não te iludiu Se a achas pobre. Tu te tornaste sábio, um homem de experiência. E, agora, sabes o que significam Ítacas. ÍTACA (Tradução: Haroldo de Campos) Quando, de volta, viajares para Ítaca roga que tua rota seja longa, repleta de peripécias, repleta de conhecimentos. Aos Lestrigões, aos Cíclopes, ao colérico Posêidon, não temas: tais prodígios jamais encontrará em teu roteiro, se mantiveres altivo o pensamento e seleta a emoção que tocar teu alento e teu corpo. Nem Lestrigões nem Cíclopes, nem o áspero Posêidon encontrarás, se não os tiveres imbuído em teu espírito, se teu espírito não os suscitar diante de si. Roga que sua rota seja longa, que, múltiplas se sucedam as manhãs de verão. Com que euforia, com que júbilo extremo entrarás, pela primeira vez num porto ignoto. Faze escala nos empórios fenícios para arrematar mercadorias belas; madrepérolas e corais, âmbares e ébanos e voluptuosas essências aromáticas, várias, tantas essências, tantos arômatas, quantos puderes [achar. Detém-te nas cidades do Egito – nas muitas cidades – para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos. Todo tempo em teu íntimo Ítaca estará presente. Tua sina te assina esse destino, mas não busques apressar sua viagem. É bom que ela tenha uma crônica longa duradoura,

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que aportes velho, finalmente à ilha, rico do muito que ganhares no decurso do caminho, sem esperares de Ítaca riquezas. Ítaca te deu essa beleza de viagem. Sem ela não a terias empreendido. Nada mais precisa dar-te. Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu. Agora tão sábio, tão plenamente vivido, bem compreenderás o sentido das Ítacas.

Rio de Janeiro, Cachambi, outubro de 2014.

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ARRABAL, CERVANTES E OUTRAS RASTEIRAS

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CERVANTES: ESCRAVO, JUDEU, HOMOSSEXUAL, PROXENETA E PLAGIÁRIO?

Em 2015 completa-se os 410 anos (1605-2005) da publicação da primeira parte do romance de Miguel de Cervantes “Dom Quixote de La Mancha”. Centenas de livros saíram a lume, milhares de artigos, conferências, congressos, etc. Um merecido foguetório, para tornar real a profética sentença Post tenebras spero lucem, que Cervantes tomou emprestado ao Livro de Jó para atirar no Dom Quixote. Depois da morte, o sucesso, a fama!

E ainda hoje ressoa o foguetório das comemorações, das muitas edições e reedições de obras escritas por Miguel de Cervantes. Mas também mereceram destaque aquelas publicações destinadas a especular sobre a vida do audaz manchego. Muitas leituras focalizam não só as obras de Miguel de Cervantes, mas também o vasto repertório de obras correlatas, destinadas a esmiuçar o acervo literário e a vida do genial fidalgo.

Um dentre os milhares de trabalhos sobre Miguel de Cervantes é “Um escravo chamado Cervantes”, de autoria do escritor hispano-catalão-marroquino Fernando Arrabal. Não é obra recente (comprei num sebo), primeiramente foi lançada em 1996 na França, onde o autor é mais reconhecido por sua obra teatral e adaptações cinematográficas, para aportar três anos depois cá entre nós em edições e reimpressões (reimpressão é o modo que o editor brasileiro achou para passar a perna no autor, evitando a expressão “edição”) – o que é este caso.

Fernando Arrabal é autor que ficou conhecido pelo talento rebelde, explosivo, que caracterizou alguns autores nascidos sob a ditadura franquista. Desde o tempo das primeiras peças e filmes, criou fama como o inventor do Teatro do Pânico – é isso o que dizem de suas chocantes peças teatrais e roteiros para cinema – fama que carregou para toda a obra que produziu, sob o signo da reação cultural ao franquismo.

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Ser um rebelde revolucionário nas letras é ao, mesmo tempo, usufruir de certa liberdade, mas igualmente servir de telhado de vidro diante da pressão dos reacionários às suas ideias. Se, por um lado, lança um autor nos mares da fama de maneira espetacular, por outro, obriga-o a seguir uma estrada nem sempre gloriosa, porque cheia de balões de ar, vácuos indesejáveis: são os caminhos das terras de ninguém, de onde muitos saem vestidos num paletó de madeira.

Este “Um escravo chamado Cervantes” veio a lume baseado num documento, datado de 1569 e descoberto espetacularmente em 1820, segundo o qual se viria saber que Cervantes, em plena juventude (quando tinha só 21 anos de idade), foi condenado pelo rei da Espanha, a ter a sua mão direita amputada e ao desterro pátrio de dez anos. Essa condenação, segundo os cânones da época, equivalia à pena aos acusados de homossexualismo, nem mais nem menos! No entanto o jovem futuro escritor conseguiu que a dita condenação não fosse cumprida graças à cobertura que lhe deu um Cardeal amigo da família, que facilitou sua fuga para a Itália.

É claro que a partir desta explosiva descoberta – que muitos cervantistas ilustres se esforçaram por desmerecer e manter escondida – tudo ou quase tudo que se escreveu sobre Miguel de Cervantes teria que passar por severa e rigorosa revisão. Fernando Arrabal tomou para si a tarefa de exercer uma parcela dessa revisão. Se ele foi feliz ou infeliz nesta tarefa, dize-o a fama que o livro arrebanhou. Seja como for, mexer com Cervantes, sua obra e sua glória, é algo assim como condenar – o autor e a audácia – ao cadafalso.

Para classificar Cervantes como um escravo, Arrabal nos remete não só ao motivo direto do documento, comprovando, sim, que a escravidão se verifica não apenas sob os grilhões de ferro, mas igualmente sob a ditadura efetiva que a nobreza exercia sobre os súditos. Aliada dos poderes secundários da Igreja, cuja opressão se verifica como segundo degrau hierárquico da dominação, essa escravidão atingiu Cervantes diretamente no cerne do seu labor literário. Como autor ele não conseguiu romper a barreira dos intelectuais próximos do Poder e da Inquisição para levar a sua obra ao público. Antes, teve que gastar prestígio e artimanha para manter-se vivo e atuante.

Num segundo plano Arrabal perde muito tempo na busca dos antepassados mais longínquos de Cervantes para posicioná-lo como judeu de descendência cristão-novo. Parece um estigma: para os negros, todos os demais são negros; para os judeus, todos os demais são judeus. Alguns serão negros e judeus (Sammy Davis, Jr.). Mas, o que temos, na tese defendida por Arrabal, é que o cristão-novo jamais deixará de ser judeu, mesmo que decorridas várias gerações. Mas Arrabal no livro descreve uma exceção dessa regra de interesse: o Bispo de Burgos – depois também de Castilla – dom Pablo de Santa Maria, um antigo rabino da cidade.

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Dom Pablo, assustado pela imprevista matança e perseguição dos judeus, de imediato abraçou o cristianismo, e o fez com tal fé que logo alcançou a mitra de Burgos. A nova fé católica que o Bispo assumiu seria de tal maneira exacerbada por Dom Pablo de Santa Maria e de tal modo cruelmente exercida, que tanto o pai quanto – depois – o seu filho, Dom Alonso de Cartagena (que também viria a ser Bispo), se transformaram em ferozes implacáveis perseguidores de judeus!

Portanto, não há como explicar a obsessão que move Arrabal em “Um escravo chamado Cervantes”, tampouco a necessidade depressiva de demonstrar que a ascendência de Cervantes fosse ou não fosse judia, posto que, no caso, se trata do menor e menos importante pedaço da biografia do genial fidalgo de La Mancha.

Como se sabe, para fugir da pena a que fora condenado pelo Rei da Espanha, Miguel de Cervantes é mandado para a Itália. Ali chegando arranja abrigo, proteção e trabalho na casa do Monsenhor Giulio Acquaviva y Aragon, que Cervantes conheceu durante as pompas fúnebres de dom Carlos, filho de Filipe II morto prematuramente – assassinado pelo pai, dizem.

Mais uma vez aparece em cena o Cervantes escravo, desta vez de Acquaviva, também efeminado, segundo Arrabal. Para fugir da escravidão, da subserviência opressiva, Cervantes aproveita a convocação feita para compor o famoso exército de aliados e se inscreve sob o comando de João de Áustria para combater os otomanos em Lepanto.

Conta a história que Cervantes se arrisca destemidamente. Ele busca, de todas as maneiras, não só alcançar o perdão pelas loucuras que fez, mas também conseguir ascensão na nobreza, algo que ambiciona desde sempre, mas jamais verá realizado. Numa das refregas o agitado e valente soldado é atingido de forma violenta por fragmentos de granada. A explosão feriu todo o lado esquerdo do seu corpo, deixando os membros seriamente avariados.

Decorre daí a suspeita folclórica de que, se tivesse sido cumprida a primeira parte da condenação em que Cervantes perderia a mão direita e agora, ferido em batalha, tendo inutilizando todo o lado esquerdo, jamais o Dom Quixote de La Mancha teria sido escrito, perdendo a humanidade a criação da maior de suas obras primas. Ó crítica cruel...

Ao retornar para a Espanha após ter se recuperado das feridas – de posse de vários documentos atestando a sua bravura e recomendando o aproveitamento em cargos imperiais – o barco em que Cervantes viaja é sequestrado por piratas árabes: passageiros e tripulantes são feitos prisioneiros. No cárcere em Argel, Cervantes vive a planejar fugas espetaculares, na ânsia de chegar à Espanha e finalmente conseguir a posição social que tanto sonhara, ambição desta vez lastreada nas façanhas heroicas da batalha de Lepanto. Tudo em vão...

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Atestada por seus comandantes, a sua atuação na batalha teve o testemunho subscrito por nada menos que o próprio João de Áustria, comandante supremo dos exércitos e meio-irmão de Filipe II. Cervantes nada consegue nessas tentativas, e seu suplício só termina quando os parentes obtêm o dinheiro suficiente para pagar o resgate. São mais de três anos como prisioneiro – e mais uma vez escravo – do Manda-Chuva do país (Bey ou Sultão de Argel), ocasião em que também se torna seu amante, para não perder a viagem. Esse Arrabal...

No entanto Miguel está vivo e reencontra a família, estabelecida com um próspero comércio de pensão (hospedaria) montado em Madri. Cervantes usa seus conhecimentos e facilidades sociais para fazer publicidade e expandir o negócio. Viajantes vindos da Itália, da França, dos Países Baixos ali se hospedam. A recepção está aos cuidados da sua irmã Andrea Cervantes, que sabe envolver os hóspedes mais importantes com todas as regalias que a posição social merece.

Muitos deles deixam relatos agradecidos e gorjetas valiosas, o que registra a excelência do bom tratamento que receberam na pensão dos Cervantes. É neste momento que Arrabal, com um dom que só ele possui, consegue transformar Miguel de Cervantes em um legítimo proxeneta, capaz de deixar envergonhado o mais afamado cafetão da Lapa carioca – acusando-o de usar a sexualidade da irmã para atrair hóspedes. Andrea certamente tinha lá seus atrativos sensuais, seria amante fogosa, como – por fama – o são as espanholas, mas ninguém havia imaginado que vendesse tais ardores...

Mas... seria Cervantes um plagiário? É claro que todos os cervantistas conhecem as leituras e pesquisas que serviram de base para a feitura do romance. Também a elaboração da principal personagem do livro O Genial Fidalgo Dom Quixote de La Mancha já foi objeto de muitos estudos. No próprio romance Cervantes deixa algumas pistas – não são poucas – como no episódio em que são condenados e incendiados muitos livros de cavalaria da sua biblioteca. Quantos e quantos volumes esmiúçam os antecessores e inspiradores do Dom Quixote!

No entanto, a maior influência coube a Arrabal descobrir, na figura de Feliciano de Silva, antecessor de Cervantes em vários livros de cavalaria – os vários Amadis, os romances pastoris, as Celestinas – foi o autor mais admirado não só por Cervantes, mas também por muitas gerações de leitores, eis que suas obras eram muito traduzidas e sempre reeditadas. Arrabal capricha em localizar aqui e ali os sinais mais óbvios de que Miguel de Cervantes não só se serviu da obra de Feliciano de Silva como modelo, mas adquiriu uma cumplicidade tal, uma proximidade tão próxima, que só se pode chegar à fatal conclusão – plágio.

E se é Fernando Arrabal quem tudo isso diz, escreve e assina embaixo, quem sou para contradizê-lo?

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Quanto ao livro em si, “Um escravo chamado Cervantes” é de leitura muito difícil. Ou Arrabal transportou para esta pseudobiografia todas as loucuras inatas da escritura arrevesada que o levou a ser considerado um escritor maldito na melhor das tradições e escreveu mais uma obra indecifrável e cabalmente intraduzível – portanto, se traduzida, totalmente ilegível – ou Carlos Nougué é na verdade o pseudônimo de um desses programas de tradução simultânea que infestam a Internet com a pretensão de enterrar de vez o tradutor...

Porque – é sabido – Fernando Arrabal sempre foi um escritor “difícil”, isto é, autor de textos herméticos e de dupla ressonância. São dramas, romances, roteiros e outros etcéteras que possuem características próprias. Partindo de uma escola que se poderia traduzir surrealista, Arrabal descreve seus temas montando o texto sobre uma estrutura fractal. São textos que soam melhor no teatro ou no cinema, onde o diretor pode improvisar e recriar à vontade, segundo uma interpretação singular.

A maior parte dos resumos biográficos que circulam por aí tem o mesmo tom do exemplo que cito a seguir:

“Fernando Arrabal (Melilla, 1932). Dramaturgo, poeta, romancista, ensaísta, cineasta, entre outras atividades menores. Seu “Teatro do Pânico” descreve um mundo de vítimas e carrascos que se comprazem alternadamente no domínio e na servidão. Na obra de Arrabal a alusão política e a inspiração fantástica se mesclam continuamente”.

“Obras: O cemitério de automóveis (1966), O arquiteto e o imperador da Assíria (1967), O jardim das delícias (1969), teatro. Viva a morte! (1971), Irei como um cavalo louco (1973), cinema. Homenageado pela Academia Francesa pelo conjunto da obra teatral. Prêmio Nabokov de romance. “Um escravo chamado Cervantes” recebeu o grande prêmio da Societé de Gens de Lettres (França)”.

Por isso mesmo esta tradução jamais será entendida pelo leitor não iniciado em Fernando Arrabal. Até mesmo o tradutor mais experimentado pode cair nas armadilhas semânticas, embora se possa pensar que traduzir do espanhol para o brasileiro seja fácil. Não é. Daí a brincadeira acima que fiz com o Carlos Nougué, cuja tradução desta biografia cervantina “Um escravo chamado Cervantes”, de Fernando Arrabal, só vem demonstrar que desta vez quem foi traído foi o tradutor e não o traduzido.

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O GENIAL FILHO DE ALGO DOM COXOTE DA MANCHA

Em não havendo restrições quanto ao romance de Cervantes, obra prima

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consagrada ao longo dos seus 400 anos de idade, o foco literário volta-se para as traduções, como esta última anunciada na divulgação feita por Gustavo

Bernardo, saída n’ O Globo Prosa & Verso de 14/01/2006 [O engenhoso fidalgo D. Quixote da Mancha: Primeiro Livro, de Miguel de Cervantes Saavedra. Tradução de Carlos Nougué e José Luis Sanchez. Editora Record, 570 páginas].

Existe uma analogia com outras artimanhas: no futebol, por exemplo, o técnico se arvorou de maioral. Não é mais o jogador o centro das atenções, nem o craque, nem o goleador. Como por um milagre se descobriu que o futebol não existiria sem aquela figura que fica à margem do campo fazendo gestos e mímicas, inventando uma linguagem marginal, que só ele entende.

Vaidade das vaidades! Ora, mas no teatro também foi assim. Que seria de Shakespeare, de Moliére ou Brecht ou Beckett se não fosse a inventividade criativa e genial dos montadores? Pois, pois, cada nova apresentação é uma releitura não autorizada. Aonde se desemboca na pura verdade: a maioria das montagens modernas está tão distante da produção inicial que do autor mesmo sobram apenas o título e o texto.

Quanto ao contexto...

Assim é que as novas traduções, de uns tempos para cá, têm como objetivo principal caracterizar-se como a mais atual, a especial, a novidade. E para ser especial e vendável, tem de trazer em si algo de novidade que justifique não só a aquisição física do exemplar, mas que também traga prazer à leitura. Um objetivo secundário – ainda que seja anunciado nas primeiras linhas – é o de cooptar a linguagem quinhentista de Cervantes, trazendo-a para ser digerida e consumida nos dias atuais.

Isso já foi tentado com outros livros – a Bíblia – por muitas outras editoras, como na recente tradução feita para a Editora 34, segundo a qual aquele era, sim, o Quixote definitivo, atualizado e normalizado para o brasileiro dos nossos tempos. Mas também as traduções têm vida breve, como as mariposas. A singularidade é que esta edição, mais recente (2005), que provavelmente deu muito trabalho a seus produtores, outros já julgaram superada, descartável, de ontem e tome tradução! Vem coisa nova por aí...

Para isso é mister dar ares de modernidade, de coisa nova, assim como é propagado. Esta tradução, feita por brasileiro e espanhol, revela sutilezas da obra-prima Cervantes (sic). É como ressalta Gustavo Bernardo na divulgação. Baseados em quê os tradutores desvendaram tais sutilezas? Em busca da solução para três incógnitas, compactadas numa só: como escreveria Cervantes o Quixote no português de sua época, mas de modo tal que não perdesse o sabor hispânico de então e fosse compreensível para o leitor de hoje?

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Pois não é que sem querer Gustavo Bernardo coloca uma questão que bem pode ser aproveitada em quase todos os vestibulares vindouros? Sim, leiam bem, repitam a leitura mais uma vez, mais outra vez como se faz no vestibular e então respondam: como? Sim, como escreveria Cervantes o seu romance Dom Quixote no português de sua época, mas de modo tal que não perdesse o sabor hispânico de então e fosse compreensível para o leitor de hoje?

Em seguida a essa contundente questão – que se nos concebe irrespondível – Gustavo Bernardo enumera as enormes dificuldades e desafios enfrentados pela dupla de tradutores, que em essência são os mesmíssimos já enfrentados outrora por inúmeros outros tradutores de todas as partes do mundo. A viagem da tradução é uma odisseia sem fim. É, porém, assunto totêmico, próprio para tradutores, nunca para resenhistas...

Neste caso em particular, porém, nós, que somos simples admiradores da obra de Cervantes, temos a obrigação de meter o bedelho. Isto porque os tradutores Nougué e Sanchez ousaram em matéria que nenhum outro havia se atrevido: mexer no título da obra. Sim, porque desde longo tempo o título da obra vem merecendo algumas observações, muitas ressalvas, escassas contestações, até medo, mas ninguém havia ousado adulterá-lo como agora foi feito. O título original é: EL INGENIOSO HIDALGO DON QUIJOTE DE LA MANCHA. Antes de tudo, porém, quero que alguém me explique como, e por ordem de quem (do autor não foi, certamente), se adulterou o nome de Don Quixote para Don Quijote?

Vejam bem a imagem grudada aqui abaixo, pois se trata do frontispício da primeira edição do livro de Cervantes. Alguém está lendo ali Qui-j-ote – Quijote? Necas! Ali está Qui-x-ote. Sim, Quixote! Aliás, em todo o livro se vê escrita, de maneira claramente proposital pelo autor, uma mescla das linguagens faladas à época em toda a península. Português, Galego, Asturiano, Catalão, Valenciano, com exceção do Vasco.

Teria Cervantes a pretensão de dar ao livro um cunho europeu, visando o que seria a sua Europa? A Europa de seu tempo – Espanha, Portugal, Baleares, as terras fronteiriças da França de linguagem mesclada e entendível? Mas, a partir de certo momento algum espanhol de estirpe castellana resolveu adulterar Quixote para Quijote, em honra e glória do Reino de Castilla. Então fixou QUIJOTE...

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Depois, estamos diante da expressão Ingenioso, que aqui em brasileiro se traduz por Engenhoso. Este caso, por exemplo, já é merecedor de alguma discussão. A expressão ingénio, de onde vem o ingenioso, é irmão do nosso genioso (genial, turrão, teimoso), bem diferente do nosso engenho e, por extensão, do engenhoso que é sempre utilizado para traduzi-lo. Ingénio fragmenta-se em in-génio = gênio interior. Para evitar digressões que poderiam levar ao didatismo desnecessário, o resumo da ópera é o seguinte: ao rigor do pé da letra, uma das opções para traduzir o ingenioso para o brasileiro, seria a expressão genial. Então teríamos: O GENIAL FIDALGO DON QUIJOTE DE LA MANCHA.

O caso da palavra Fidalgo já foi vastamente esclarecido pelo escritor marroquino Fernando Arrabal no livro “Um escravo chamado Cervantes”, também da Record e também traduzido por Carlos Nougué. Fidalgo, segundo Arrabal, significa Filho de Algo [de alguém]. Passamos para a segunda versão, que seria: O GENIAL FILHO DE ALGO DON QUIJOTE DE LA MANCHA.

Até o nome do homem foi ameaçado. Vejamos a justificativa para tal, fazendo um flashback das palavras de Gustavo Bernardo: “Quijote” corresponde à peça da armadura que cobre a coxa e deveria ser traduzida para “coxote”, mantendo a terminação “ote” que, em espanhol, tem sentido depreciativo. Pois para mim, um leigo em espanhol, diria que Cervantes estava era fazendo uma gozação a si mesmo, ou seja, à sua condição de manco, coxo – portanto coxote... – mas, como disse, sou asno em espanhol!

Então fica só a provocação. Aí explicam o temor de mexer em expressões (quixote, quixotesco e outros derivados) que se tornaram proverbiais em nossa língua Graças a Deus os tradutores acharam temeridade adulterá-la. Caso

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contrário toparíamos com: O GENIAL FILHO DE ALGO DOM COXOTE DE LA MANCHA.

Mas, êpa! de La Mancha?? Aqui, sem querer, tocamos na principal execração de dupla de tradutores Nougué & Sanchez. Pois não é que ousaram modificar o título da obra aportuguesando o Don Quixote de La Mancha para Dom Quixote da Mancha?? Mas a justificativa para adulterar o de La Mancha para da Mancha é realmente trágica. Quem diz é Gustavo Bernardo:

“Mas contra as traduções anteriores, optaram ‘da Mancha’ e não ‘de La Mancha’, se em português se fala na Espanha Central como ‘a Mancha’.”

Péra aí! Eu disse que era leigo em espanhol, mas também não é tanto assim. Em algumas regiões da Espanha e de Portugal – principalmente na Galícia, noroeste espanhol – as cidades são realmente denominadas assim: A Coruña (La Coruña), A Estrada (La Estrada), Oporto (Porto) – nossa muito bem conhecida cidade portuguesa, aquela do vinho de lá mesmo.

Mas não me consta que La Mancha seja chamada A Mancha, porque La Mancha fica na região do antigo Reino de Castilla que, como todos sabem, se fala o castelhano, que é o espanhol culto tradicional. A partir de 1978 Castilla La Vieja se dividiu em duas comunidades autônomas: Castilla La Mancha e Castilla y León. Saibam mais:

“La Comunidad Autónoma de Castilla-La Mancha es una comunidad enclavada en el corazón de la Península Ibérica. Está formada por las províncias de Albacete, Ciudad Real, Cuenca, Guadalajara y Toledo, siendo ésta última la capital”. (http://www.uclm.es)

Mas se querem ousar, então vamos pelo menos obedecer à escrita regional, sem adulterá-la! Ainda mais com o apoio do Instituto Cervantes? O verdadeiro título que a dupla sertaneja de tradutores Nougué & Sanchez deveria usar é: O engenhoso fidalgo Dom Quixote de A Mancha (ou d’A Mancha). Ousem, mas ousem como cavaleiros, valentes, corajosos, assumidos.

Não chamem “La Mancha” de “Mancha”, pois é certo que os naturais da terra de Quixote não vão gostar nadinha de vê-la com tal nódoa, mácula, labéu, desonra, tacha...

Muito mais do que foi dito na resenha de Gustavo Bernardo mereceria outras reparações – por exemplo, a tradução de en cuanto pelo vicioso enquanto, tão em moda entre nossos literatos – entre outras coisinhas. Mas não virá a reparação deste escriba amador (que se entremeia aqui enquanto poeta), mas sim poderia vir de gente gabaritada e do mesmo nível que o autor da resenha, professor de Teoria da Literatura na UERJ.

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O meu caso pessoal e que motivou estas linhas, é mesmo com o senhor Carlos Nougué, Prêmio Jabuti de Tradução – seja lá o que for isso – que me fez sofrer a algum tempo atrás com a leitura de uma tradução catastrófica do livro “Um escravo chamado Cervantes” (Record 1999), de autoria do já mencionado escritor marroquino Fernando Arrabal. Até para se traduzir um porralouca como Arrabal é preciso algum talento.

Tenho a obrigação de fazer uma ressalva positiva, pois, ainda bem que os tradutores Nougué & Sanchez refrearam a dosagem de ousadia senão – segundo seus planos – estaríamos diante das aventuras de tal de Dom Coxote e em consequência aterrissaríamos em um novo título para a obra de Cervantes: “O GENIAL FILHO DE ALGO DOM COXOTE DA MANCHA!”

-3-

O CAPOEIRISTA FERNANDO ARRABAL

Logo no “Prólogo ao ocupado leitor” dá para reparar que Fernando Arrabal, ao escrever “Um escravo chamado Cervantes – Um retrato do criador de Dom Quixote”, compôs um texto polêmico a seu jeito e perfil. Desta vez a convite dos organizadores do I Congresso Internacional de Cervantistas, realizado em 1988 na cidade de Alcalá de Henares, terra de Cervantes. Portanto, seria texto para ser lido no congresso cervantista, oportunidade que Arrabal – ele mesmo o Salvador Dali das letras – não deixaria passar em brancas nuvens.

Fernando Arrabal aproveitou a espetacular oportunidade que lhe ofereceu o “destino caprichoso, quase prodigioso!” para especular sobre um documento que havia sido recém-descoberto – a “Ordem de Captura” contra “um Myguel de Cerbantes” (sic). Ora, escrever um texto para ser lido não é o mesmo que escrever um texto para ser publicado em livro. A oratória dá uma eloquência ao texto que a impressão não tem. É como tese de mestrado (sempre acompanhada do chatíssimo abstract), feita com base em estética pretensa acadêmica, com linguagem e itens obrigatórios, agradecimentos inclusive.

Assim é como fica uma palestra quando passa para a impressão, ademais de ter sido classificada como biografia pela editora – coisa que não é. Arrabal escreveu um texto especulativo e para isso recorreu à ficção. Para justificar a ousadia que permeia o texto, Fernando Arrabal se sustenta em obras e autores similares:

“Ruth Reichelberg estuda-lhe as origens em “Dom Quixote ou O romance dum judeu disfarçado”; Louis Combet examina-lhe a homossexualidade e o masoquismo em “Cervantes ou As incertezas do desejo”; Rosa Rossi analisa-lhe a personalidade e as raízes em “Escutar Cervantes”.

Arrabal cita também outros autores:

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Sarah Leibovici (1921-1991), verdadeira caçadora de judeus e sefarditas: “Mosaiques de notre memoire: les judéo espagnols du Maroc” (1982), “Noces judéo-espagnoles. Nuestras bodas en Tetuan” (1983), “Chronique des Juifs de Tétouan: 1860-1896” (1984), “Christophe Colomb juif” (1986).

Dominique Aubier (1922-2014), autora de “Don Quichotte prophète d'Israël” (1966), primeira obra a evocar a presença de tradições judaicas no Dom Quixote. No entanto, Aubier não encontrou apoio para sua tese, que foi refutada por Selon Ruth Fine, da Universidade de Jerusalém, afirmando que textos da tradição hebraica não estavam acessíveis à época de Cervantes. O professor Fine acha impossível que Cervantes tenha tido acesso à Cabala e à tradição esotérica judaica em época de Inquisição. Em análise feita entre o texto de Dom Quixote e as bíblias (hebraica e católica), Selon Fine chegou à conclusão que Cervantes usou a vulgata em sua versão tridentina.

Marthe Robert (1914-1996), autora que pesquisa Cervantes sob a ótica e ética psicanalítica em “Robisonadas e quixoterias”:

“Para que o romance abandone as franjas feéricas a que foi por muito tempo confinado, convém claramente que a Criança Perdida desperte para as exigências mais realistas do Bastardo edipiano, de tal modo que aprenda a ver o mundo como se apresenta e, voluntariamente ou não, dirija um olhar interessado às coisas do presente. Ele é Robinson, ou Dom Quixote, segundo tome um dos dois caminhos possíveis; na verdade sempre um pouco de ambos, ora mais lúcido, ora mais perplexo, um Robinson quixotesco ou um Dom Quixote náufrago. Porém, seja como for, o romance não existe mais sem a fissura que deve agora enfrentar; pelo menos não há mais história pretensa que não escolha como tema os conflitos do herói consigo mesmo no aprendizado da vida”.

Victor Malka (1938), escritor que já publicou centenas de livros de história, de anedotas e do folclore judaico;

Leandro Rodríguez (1934), espanhol cervantista, escreveu: “Miguel, Judío de Cervantes” (1978), “La vía de Don Quijote en Sanabria” (1981), “Documentos de crianza del sanabrés Don Quijote” (1983), “Cervantes en Sanabria”, “Ruta de Don Quijote de la Mancha” (2004), etc.

O marroquino Fernando Arrabal tampouco tenta dissimular a vaidade (logo quem!):

“E, quando mais exposto me julgava, aplaudiram-me de pé brilhantes eruditos: de Jean Canavaggio a Martín de Riquer, aos quais tanto li, com os quais, se me permitem, tanto amei” – diz ele ao fim do prólogo.

Jean Canavaggio (1936) é um famoso e premiado cervantista francês, enquanto

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que Martín de Riquer (1914-2013) foi um escritor catalão, que lutou ao lado do tenente nazista Francisco Franco na Guerra Civil espanhola e foi premiado com cargos públicos. Amigo de Arrabal, pois. Escreveu sobre Dom Quixote, Tirant lo Blanc, Amadis de Gaula e o trovadorismo espanhol.

Em não sendo caso para tratar neste artigo, a querela Antonio de Segura versus Miguel de Cervantes, está muito documentada, especulada e difundida, pode ser lida em milhares de textos históricos e fictícios pelo mundo afora. Só que Fernando Arrabal, muito esperto, separa a pena do crime.

O crime: “haver dado certas feridas a Antonio de Sigura, andante nestas cortes”.

A pena: “sobre o qual o dito Miguel de Cerbantes, foi condenado a com vergonha pública ter cortada a mão direita e em desterro de nossos Reinos por o tempo de dez anos e em outras penas contidas na dita sentença”.

O duelo entre Cervantes e Segura é fato histórico sobejamente conhecido e se a pena parece desproporcional é porque Antonio de Segura (Pintor de la corte de Filipe II.) era pessoa importante. O tema foi romanceado por Luis Garcia Jambrina, escritor contemporâneo, no romance histórico “La sombra del otro”, que enfoca a vida de Cervantes, desta vez sob a visão de Antonio Segura. O romance, sem disfarçar o pêndulo do favoritismo para Miguel de Cervantes, começa cercando-se de verossimilhança:

“Numa livraria de Toledo, um professor de literatura encontra, por acaso, uns papeis antigos escritos em caracteres arábicos. Trata-se da “confissão” de Antonio de Segura, inimigo dissimulado de Miguel de Cervantes, a quem inveja com toda sua alma e persegue de maneira implacável com a intenção de destruí-lo. Nela, Segura nos relata, do cárcere, como conheceu Cervantes na sua juventude e como foi ferido por ele durante um duelo, fato que mudará para sempre o destino de ambos”.

A cena faz parte das entrevistas dadas por Luis Garcia Jambrina, mas ninguém ficou curioso de saber por que Antonio de Segura estava em cana (desde la cárcel) – fato não biográfico, ao que parece.

“Aqui [na Plaza de Oriente] estava o Alcázar de Madrid, onde se encontra o Palácio do Oriente; em seu entorno, era crime desembainhar a espada. Cervantes o fez num duelo contra Antonio de Segura, a quem deixou gravemente ferido. Por este motivo o escritor de Dom Quixote teve que fugir para a Itália”.

Arrabal desvirtua a pena, levando-a para a legislação sobre homossexualidade, que condena a ser cortada a mão direita daquele que for condenado por sodomia.

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Cismei também com a tradução de Carlos Nougué que, juro de mãos postas, a princípio julguei ter sido feita através da tradumática, recurso muito usado em tempos de informática. Diante da crítica à tradução uma aluna do professor Carlos Nougué veio em sua defesa, mas eu não pude replicar porque o danado do livro simplesmente sumiu de minha vista. Agora, remexendo papeis velhos, o dito cujo apareceu e só então posso justificar o motivo do meu aborrecimento quanto à tradução.

Tenho a impressão que os tradutores se perdem ao esquecer que estão transferindo um texto estrangeiro para leitores comuns, não para seus próprios pares. Mas esse destino parece inevitável em literatura e nas artes em geral: poeta escreve para poetas, pintores pintam para pintores, músicos compõem para músicos, tradutores traduzem para tradutores – e todos vão discutir seus feitos geniais na Confeitaria Colombo...

Carlos Nougué está na internet www.cursos.carlosnougue.com.br, que propaga o seu trabalho: “Professor Carlos Augusto Ancêde Nougué. Professor de Filosofia. Professor de Tradução e de Língua Portuguesa em nível Pós-graduação(UGF), Lexicógrafo, Prêmio Jabuti de Tradução 1993”. A página também dá notícia sobre o curso: “Por uma filosofia tomista. Primeiro curso realizado pela CONTEMPLATIO. Curso on-line de 60 horas ministrado por CARLOS NOUGUÉ. As inscrições vão de 18 de setembro a 10 de outubro de 2013”.

Obs.: Por quais razões um beneditino, cujo princípio fundamental é “ora et labora” – reza e trabalha – bandeou para os complexos labirintos do tomismo? O tomismo é tratado como filosofia, mesmo contrariando os princípios de São Tomás de Aquino, que tinha por finalidade conciliar teologicamente a filosofia grega ao cristianismo. Da impossibilidade de alcançar esse objetivo é que sobrevivem, 750 anos depois, tais cursos...

São Bento abandonou todos os mosteiros que dirigiu. Por ser rigoroso quanto ao comportamento ético, muitos atentaram contra sua vida. Foi resgatado do deserto onde vivia como eremita para ter seu conhecimento adotado e reconhecido. As figuras de São Bento mostram, junto com o Santo, o livro “Regra”, o cálice quebrado pela serpente e um corvo, lembrando o pão envenenado que recebeu de monges invejosos.

Outro site www.questoesgramaticais.com.br, publica:

PARA BEM ESCREVER NA LÍNGUA PORTUGUESA CURSO ONLINE DO PROFESSOR CARLOS NOUGUÉ.

Alimenta a propaganda as citações:

A gramática de uma língua é a arte de [escrever e, pois de] falar corretamente.

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– Andrés Bello

A gramática é a arte de levantar as dificuldades de uma língua; mas é preciso que a alavanca não seja mais pesada que o fardo. – Antoine Rivarol

Mas a minha bronca com o professor Carlos Nougué – que traz no lombo a responsabilidade de ter sido educado no Colégio São Bento, o melhor do país – não tem caráter filosófico, apenas cismei com algumas frases que li no livro mal vertidas para o brasileiro, com inversões desnecessárias. Exemplifico:

pg. 21 – Miguel de Cervantes batizado foi; pg. 25 – Os tetravós de Cervantes convencidos estavam; pg. 26 – Precursor do nazismo foi; pg. 31 – o mais quixotesco de todos, da fogueira não pôde escapar; pg. 32 – em razão de eu ter escrito dissidente dedicatória; pg. 32 – a castração, longe de intimidar, a rebeldes asas lhes dá; pg. 35 – E faltar não podia. E assim segue a carruagem, até o final do volume. Ora, a tradução de um texto em prosa não exige figura retórica, não tem imagem poética, são frases curtas, de expressão direta, sem outras interpretações. O brasileiro não se expressa assim, como o professor acha. O brasileiro lê e diz: foi batizado, estavam convencidos, Foi precursor do nazismo; não pôde escapar da fogueira; dedicatória dissidente; dá asas a rebeldes; E não podia faltar, etc. etc. etc.

Neste caso faltou à educação do Carlos Nougué uma leitura dos modernistas, desde Menotti Del Picchia e Manuel Bandeira, a Mário e Oswald de Andrade – ou lá distante, no brasileirismo índio de Gonçalves Dias e, mais atrás, de José de Anchieta – fontes nas quais poderia beber sobre o falar e o escrever brasileiro.

Alguém poderá dizer: – Mas, e se o Arrabal tivesse escrito dessa maneira? Eu responderia: – Ainda assim, em não sendo livro que exija interpretação, o tradutor teria que escrever de modo que o leitor brasileiro entenda. Traduzir é trazer para a língua local o que foi escrito noutra língua de modo mais fiel, igual e inteligível.

Tirante isso calo-me porque vejo que o professor Carlos Nougué já arranjou muita sarna pra se coçar, quando caiu em polêmica com o velho Olavo de Carvalho. Quem tem um inimigo como Olavo de Carvalho, não precisa polemizar com um pé-rapado como eu. Vejam “Resposta a Carlos Nougué” – Olavo de Carvalho, em http://www.midiasemmascara.org.

E por que disse ali atrás que Arrabal tinha escrito uma ficção e não uma biografia de fato? Respondo com outra pergunta: – O que haverá de ter ainda para escrever sobre Cervantes? Por exemplo: Arrabal cita um sem número de

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cidades espanholas que avocam para elas, em vão, o registro do nascimento de Cervantes. Diz Arrabal sobre isso:

“Luís López Fernández, mais conhecido por ‘doutor póstumo’, assegura que em registros de batismos e de herança se encontram documentos com o nome Cervantes: ‘Homônimos, tão frequentes em sobrenomes patronímicos’”.

Então me pergunto por que também não seria um desses casos a ordem de prisão que deu o pontapé inicial para o livro de Arrabal? Logo de início se pescam duas divergências nos nomes: My[i]guel de Cerb[v]antes e Antonio de Si[e]gura. É cada uma que me aparece!

Ademais, Arrabal transita pelos séculos como se estivesse atravessando um sinal de pedestre. Personagens do Século XVI confraternizam com outros dos Séculos XIX e XX, fazendo com que se compreenda cada vez mais a intencionalidade (e vacuidade) com que Arrabal compôs o seu texto – brincando de pique-esconde com fatos, pessoas, histórias.

Mas, enfim, estava eu aqui matutando sobre isso quando dou de cara com o texto “La supuesta homosexualidad de Cervantes”, de Daniel Eisenberg (Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2003) para ficar com a estranha sensação de estar enxugando gelo. Ai meu Deus! Todo mundo já mexeu nisso! Mas foi bom, até justo, porque, já tendo o Olavo de Carvalho para cuidar de Carlos Nougé, agora encontro o Daniel Eisenberg para tratar de Fernando Arrabal.

O artigo de Daniel Eisenberg vem a respeito da discussão sobre a ‘suposta’ homossexualidade de Cervantes – uma heresia para todos os cervantistas do mundo! – tema que surgiu primeiro em artigo de autor inglês – os espanhóis engoliram a provocação em silêncio. Daniel Eisenberg constata:

“O único autor espanhol que se atreveu a tocar no tema plenamente é o repugnante – nesse aspecto – Arrabal”.

De fato, é ignóbil alguém supor que o ídolo e gênio da literatura espanhola seja um maricón. Para reafirmar o massacre a Fernando Arrabal, Daniel Eisenberg, se apossa das notas de Urbina y Diez para baixa o pau no livro “Um escravo chamado Cervantes”:

“Los errores y manipulaciones en el libro de Arrabal, analizado por Urbina y Diez, son espeluznantes. Según él [Arrabal] – y no hay documentación de ninguna de estas afirmaciones –

a) Cervantes fue desterrado por pecado nefando,

b) los padres de Cervantes montaron en Madrid una casa de prostitución,

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c) el maestro López de Hoyos enseñaba a sus párvulos la filosofía hispanomusulmana del siglo XII,

e) Cervantes tenía mucho interés en las figuras de Buda y Confucio,

f) Carlos V escribió un libro de caballerías.

Especialmente quisiera señalar que Arrabal no clausuró el I Congreso de la Asociación de Cervantistas, y que no le aplaudieron de pie Martín de Riquer y Jean Canavaggio, como ha sido confirmado directamente por este último”.

Mas – ¡carajo! – quem não conhece Arrabal? Quem não sabe a biografia de Arrabal, que desde os primórdios da carreira escolheu o campo da polêmica, da invenção e da mentira para se expressar? 90% do que Arrabal fez e escreveu são invenções – só 10% são mentiras! (obrigado Manuel de Barros). Dessa maneira, estando tudo explicado, tudo em seu devido lugar, tiro o peso do lombo e vou cuidar de outras coisas mais amenas.

Rio de Janeiro, Cachambi, 8 de abril de 2015.

***

El Padre Zarco, en su obra Pintores españoles en San Lorenzo el Real de El Escorial, refiere a «Antonio de Segura, pintor, natural de San Millán de la Cogolla, en La Rioxa». Astrana Marín cuenta que el autor del Quijote, hacia el año 1568, en una reyerta causó varias heridas a un andante en corte llamado Antonio de Sigura. Cervantes, para huir de la justicia, marchó a Italia. Declarado rebelde, se le condenó a que le fuese cortada la mano derecha y a destierro del reino por diez años.

Carlos V en su codicilo había dejado encargado que se hiciera el retablo de la capilla mayor del Monasterio de Yuste. Antonio de Segura se compromete a ejecutarlo tal y como lo desea el rey don Filipe II. El rey loa y confirma y tiene por bueno el contrato celebrado entre Antonio de Segura y Martín de Gaztelu.

El retablo ha de ser de madera, de la altura y tamaño señalados por Juan de Herrera. Ha de representar el juicio final conforme a la pintura de Tiziano que está en El Escorial. Tendrá cuatro columnas corintias con su pedestal. Sobre éste habrá una custodia y en el frontispicio un escudo con las armas del Emperador. Ha de pintar, dorar y estofar el retablo. Además se compromete a labrarlo en el Monasterio de El Escorial, conducirlo al Monasterio de Yuste y colocarlo en la capilla mayor.

Todo lo ejecutó Antonio de Segura a satisfacción del rey, el cual, según Ceán Bermúdez, le nombró maestro mayor del Alcázar de Madrid, del Pardo y de la Casa de Campo en las enfermedades y ausencias de Francisco de Mora. Añade

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el Padre Zarco que Antonio de Segura murió en Madrid en 1605 y que Filipe III concedió a la mujer del artista dos reales diarios, pensión que, a la muerte de ésta, otorgó luego a María de

Segura, su hija. (In “Riojanos Ilustres”)

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O QUIXOTE DE AVELLANEDA

SEGUNDO TOMO DEL IGENIOSO HIDALGO DON QUIXOTE DE LA MANCHA, que contiene su tercera salida; y es la quinta parte de sus aventuras.

Compuesto por el Licenciado Alonso Fernández de Avellaneda, natural de la Vila de Tordesillas.

Al Alcaide, Regidores, y hidalgos, de la noble villa de Argamesilla, patria feliz el hidalgo Cavallero Don Quixote de la Mancha.

Con Licencia, En Tarragona en casa de Felipe Roberto, Año 1614.

Vale a pena ler esse maravilhoso romance ‘apócrifo’, que descreve com humor e ligeireza a continuação das façanhas de Dom Quixote, até então escamoteadas pelo seu criador Miguel de Cervantes. Essa publicação veio cair sobre a cabeça de Cervantes, como se fosse a estrela anunciadora do nascimento de Cristo. O milagre se deu: nenhuma campanha publicitária serviria tanto aos propósitos de exorcizar o estresse e a depressão que naquele momento abatia Cervantes, deixando-o derrotado para a arte de escrever.

Depois disso Cervantes despertou mais gênio do que nunca, completou o Dom Quixote, sem deixar de se mostrar exímio espadachim – duelou com Avellaneda com honra e glória. Sabiamente, preservou o Dom Quixote ‘apócrifo’ de maior dano (que poderia advir com algum processo) e assim protegeu o seu romance, legando para a posteridade o tríptico literário de maior genialidade erigido até hoje. Hoje o Dom Quixote de Cervantes só deve ser lido tendo de entremeio o livro de Alonso Fernández de Avellaneda.

Isso porque, tecnicamente falando, o Dom Quixote de Alonso Fernández de Avellaneda não deixa a desejar a nenhuma das publicações da época. Quem

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escreveu, ao contrário do que dizem alguns críticos, conhecia a técnica dos textos produzidos num tempo em que a novela crescia, tornava-se adulta, paria o romance, “gênero literário de natureza narrativa, do grupo ficção, em que se narra um episodio ou incidente da vida, em geral fictício”. (Afrânio Coutinho).

Além das raízes mais antigas (a epopéia e as gestas medievais), o romance moderno firmou-se esteticamente submetendo-se ao poder da novella italiana de Bocaccio, Bandello, Fiorentino e Masuccio, desembocando no romance picaresco (Lazarillo de Tormes, Guzmán de Alfarache, el Bucón, El diablo cojuelo), que definitivamente são as fontes do romance de costumes e de aventura tais como Dom Quixote, de Cervantes, o Gargântua, de Rabelais, Astreé, de Honoré d’Urfé e por aí afora.

Pois o livro apócrifo de Dom Quixote enquadra-se perfeitamente na estética daquela época, fato reconhecido por Miguel de Cervantes, cujas críticas ao volume foram amenas. Na tradução brasileira o crítico Lucílio Mariano Jr. em nota de orelha, observa esse detalhe:

“O livro apócrifo, sem ter a genialidade do modelo, possui inegável valor literário, desde que considerado como uma farsa, uma paródia da história escrita pelo “manco de Lepanto”. Suas situações são sem dúvida hilariantes, além de possuírem como marca registrada o tempero forte de uma linguagem bem mais desabusada, que às vezes atinge níveis rabelaisianos de grotesco e de “grossura”.

Pode-se acrescentar que a “dureza de pedra” à qual Cervantes alude no texto de Avellaneda, deve-se ao fato do mesmo ter sido obrigado a seguir o roteiro previsto no tomo I, o que limita o campo de ação do narrador e dos personagens. Voltando a Lucílio Mariano Jr.:

“Alguém asseverou certa vez que o livro de Avellaneda seria considerado uma verdadeira obra de arte... se nunca tivesse havido o livro de Cervantes. (...) é um livro bem escrito – isto é fora de questão.”

Lucílio Mariano Jr. observa a falta de grandiosidade em Dom Quixote o a ausência de pureza em Sancho Pança, “mas isto é porque Avellaneda (...) preferiu realçar o lado pior de ambos, acentuando a loucura do fidalgo e tornando Sancho um misto de bufão e de glutão”. E para concluir: “Se o dramático saiu perdendo, o cômico pôde ser potencializado, sucedendo-se situações engraçadíssimas, uma após outra”.

Como Cervantes reagiu ao romance? Vejamos como o livro de Avellaneda se encaixou bem no espírito de Cervantes. Logo de cara serviu de provocação e estímulo para que ele mesmo saísse da letargia e partisse para pôr no papel a segunda parte da história, que havia prometido ao encerramento do primeiro

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romance, “a fim de tirar a náusea causada por outro Dom Quixote, que, com o nome de segunda parte, se disfarçou e correu pelo orbe”.

Cervantes, que andava demasiado inepto, enclausurado nos limites das suas moléstias, deu graças a Deus ter surgido, assim do nada, um motivo para reviver as aventuras de Dom Quixote, cujas edições se expandiram e replicaram rápido, como fogo na palha, por toda a Ibéria, Portugal, França, Itália e Inglaterra. A continuação do Quixote medrava em sua cabeça como erva no campo.

Não só o Dom Quixote II foi assim induzido ao sucesso. Cervantes não deixou passar em branco a menção às Novelas Exemplares e replicou a lembrança: “Mas, efetivamente, agradeço a este senhor o dizer que as minhas novelas são mais satíricas do que exemplares, porque isto mostra que são boas e não o poderiam ser se não tivessem de tudo”.

Tudo é publicidade... bem sei que são tentações do Demônio, que uma das maiores é meter-se-lhe a um homem na cabeça que pode compor e imprimir um livro com que ganhe tanta fama como dinheiro e tanto dinheiro como fama Talvez aconteça o mesmo a este historiador, que não se atreva a tornar a soltar a presa do seu engenho em livros que, em sendo maus, são mais duros que pedras.

e pouco me importa que haja ou não haja imprensas no mundo e que se imprimam ou não contra mim mais livros do que letras têm as coplas de Mingo Revulgo.

Não se parecerem com as dele são as razões desta história, que se prossegue com a autoridade com a qual ele começou, e com a cópia de fiéis relatos chegados a sua mão.

mas que se queixe de meu trabalho pelo ganho que lhe tiro de sua segunda parte; pois não poderá, pelo menos, deixar de confessa termos ambos o mesmo fim, qual seja o de desterrar a perniciosa lição dos vãos livros de cavalaria, tão encontradiça em gente rústica e ociosa.

Não só tomei por meio entremear a presente comédia com as ingenuidades de Sancho Pança, evitando ofender a quem quer que seja ou fazer ostentação de sinônimos desnecessários, embora pudesse fazer bem o segundo, e mal o primeiro.

Só digo que ninguém deve espantar-se de pertencer a autor diferente esta segunda parte, pois não é novidade pessoas diferentes prosseguirem a mesma história. Quantos não trataram dos amores de Angélica e de seus sucessos? As Arcádias, diversos as descreveram. A Diana não é toda de uma só mão.

Em algo esta segunda parte se diferencia da sua primeira, porquanto tenho

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humor oposto ao seu, e, em matéria de opiniões quanto às coisas da História – e tão autênticas quanto esta – cada qual pode dar as que melhores lhe parecerem, mormente se para tanto lhe abre campo dilatado a cáfila dos papéis que para compô-la ele leu, e que são tantos como os que deixei de ler.

Não me venha quem quer que seja murmurar que não deveria permitir a impressão de semelhantes livros, pois este não ensina a ser desonesto, ma sim a não ser louco. E permitindo-se tantas Celestinas, que já andam mãe e filha pelas praças, bem s pode permitir pelos campos um Dom Quixote e um Sancho Pança, a quem jamais se conheceu vício; antes mui bons desejos de desagravar órfãs, desfazer tortos, etc.

Com esse prólogo cheio de prevenções contra o que viesse de ataques ao seu atrevimento, Alonso Fernández de Avellaneda inicia o livro, sabendo de antemão que deveria a obra ter a mesma altura do talento e simplicidade de Cervantes. E assim foi. Não é mau o livro, diverte, é fiel, espalha-se derramando as aventuras como se o Quixote tivesse dois pais, iguais em talento.

DUELO IMAGINÁRIO ENTRE DOIS PRÓLOGOS

Avellaneda: – Como é quase comédia a história de Dom Quixote de La Mancha, não pode nem deve sair sem prólogo. Assim, no princípio desta segunda parte de suas façanhas, sai este, menos cacarejado e menos agressor de seus leitores do que aquele que na primeira parte escreveu Miguel de Cervantes Saavedra e mais humilde do que aquele saído em suas novelas, mais satíricas que exemplares, se bem que não pouco engenhosas.

Cervantes: – Valha-me Deus! Com quanta vontade deves estar esperando agora leitor, ilustre ou plebeu, este prólogo, julgando achar nele vinganças, pugnas e vitupérios contra o autor do segundo Dom Quixote; quero dizer, contra aquele que foi gerado em Tordesilhas e nasceu em Tarragona! Pois em verdade te digo que não hei de te dar esse contentamento, pois ainda que os agravos despertam a cólera nos mais humildes peitos, no meu há de ter exceção esta regra. Quererias que eu lhe chamasse asno, atrevido e mentecapto, mas tal coisa não me passa pelo pensamento. Castigue-o seu pecado, engula-o a seu bel prazer e que não lhe provoque engulhos.

Avellaneda: – Não será estranho a ele o tom e as razões desta história, que se continua com a autoridade que ela a começou, com a cópia de fiéis relatos que à sua mão chegaram. E digo mão, pois confessa de si que tem só uma. E falando tanto de todos, vamos dizer dele que, como soldado tão velho em anos quanto moço em brios, tem mais línguas que mãos. Porém é certo se queixar do meu trabalho pelo ganho que dele tiro da sua segunda parte...

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Cervantes: – O que não pude deixar de sentir foi que me chamasse de manco e velho, como se estivesse na minha mão retardar o tempo, fazer que parasse para mim ou como se tivesse saído manco de alguma rixa de botequim e não do mais nobre feito que viram os séculos passados, presentes e esperam ver os vindouros. Se as minhas feridas não resplandecem aos olhos de quem as mira, são estimadas, pelo menos, por aqueles que sabem onde se ganharam. Que ao soldado melhor parece morto na batalha do que livre na fuga. E tanto sinto isto que digo que, se agora me propusessem e facilitassem o impossível, antes quisera ter estado naquela peleja prodigiosa, do que curado das minhas feridas sem lá ter ido. As cicatrizes que o soldado ostenta no rosto e no peito são estrelas que guiam os outros ao céu da honra e ao desejar justo louvor.

Avellaneda: – Uma coisa não poderá, pelo menos, deixar de confessar: que temos ambos um fim, que é desterrar a perniciosa lição dos vazios livros de cavalarias, tão comum na gente rústica e caseira. Se bem que nos meios diferenciamos, pois justamente tais livros celebram as nações mais estrangeiras e a nossa deve tanto a eles, por haver entretido, honestíssima e fecundamente tantos anos os teatros da Espanha com estupendas e inumeráveis comédias, com o rigor da arte que pede o mundo, com a segurança e limpeza que de um ministro do Santo Ofício da Inquisição se deve esperar.

Cervantes: – Sendo assim como é não tenho motivo para perseguir nenhum sacerdote que, de mais a mais, seja também familiar do Santo Ofício da Inquisição. E se ele o disse referindo-se a quem parece [Lope de Vega], de todo em todo se enganou, que desse tal adoro eu o engenho, admiro as obras e a ocupação contínua e virtuosa. Mas, efetivamente, agradeço a este senhor dizer que as minhas novelas são mais satíricas do que exemplares, porque isto mostra que são boas e não o poderiam ser se não tivessem de tudo.

Avellaneda: – Não só tomei por meio entremesar a presente comédia com as simplicidades de Sancho Pança, fugindo de ofender alguém e de fazer ostentação de sinônimos inventados, apesar de saber fazer muito bem o segundo e mal o primeiro. Peço que ninguém se espante de ver sair de diferente autor esta segunda parte, pois não é novidade o prosseguir uma história diferentes pessoas. Quantos têm falado dos amores de Angélica e suas aventuras? As Arcádias, diferentes autores têm escrito. A Diana não é toda de uma só mão.

Cervantes: – Sabendo que não se deve acrescentar mais aflições ao aflito e as que este senhor deve ter são enormes sem dúvida, pois não se atreve a aparecer em campo aberto e com céu claro, encobrindo o seu nome e falseando a sua terra como se tivesse feito alguma traição de lesa-majestade. Da minha parte não me tenho por agravado, bem sei que são as tentações do Demônio e uma das maiores é meter na cabeça de alguém que pode compor e imprimir um livro com que ganhe tanta fama como dinheiro e tanto dinheiro

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como fama. E para confirmação disto quero que com todo o donaire e graça lhe contes este conto: "Havia em Sevilha um doido que deu no mais gracioso disparate e teima que nunca se viu. Fez um canudo de cana pontiagudo e apanhando um cão na rua ou em qualquer outra parte, prendia uma pata com os pés, com a mão levantava a outra e, como podia, lá lhe adaptava o canudo no lugar em que, soprando, o deixava redondo como uma bola. Quando ficava desse jeito dava duas palmadinhas na barriga e soltava dizendo aos circunstantes, que sempre eram muitos: – Pensarão agora vocês que é pouco trabalho inchar assim um cão?" – Pensará agora você que é pouco trabalho fazer um livro?

Avellaneda: – Também Miguel de Cervantes, já tão velho como o castelo de São Cervantes, anda pelos anos tão descontente, que tudo e todos o enfadam. Por isso está tão carente de amigos que, quando quiser adornar seus livros com sonetos campanudos, terá de solicitá-los - como ele mesmo diz - ao Preste João das Índias ou ao Imperador de Trapizonda, porque não encontrará autor, quiçá em toda a Espanha, que não se ofenda de que mencione seu nome. Como permitirão tantos ter os seus versos no princípio dos livros do autor de quem murmura? Rogue a Deus que também o deixe, agora que se recolheu à Igreja e foi consagrado! Contente-se com a sua Galatea e as comédias em prosa, que apenas isso é a maioria de suas novelas.

Cervantes: – Dizes que ando muito acanhado e que me mantenho demasiadamente dentro dos limites da minha modéstia. Convém advertir que não se escreve com cabelos brancos, mas sim com o entendimento, que costuma aprimorar-se com os anos. Se este conto não se enquadrou, conto outro que também é de orate e de cão: "Havia em Córdoba um doido que tinha por costume carregar na cabeça uma pedra de mármore ou um pedregulho. Ao topar com algum cão descuidado, aproximava-se e deixava cair o peso em cima dele. O cachorro se machucava e ladrando e ganindo corria tanto que não parava nem em três ruas. Acontece que entre os cães atacados um deles era o cão dum chapeleiro, que o estimava muito. O doido atirou a pedra na cabeça do cão que desatou a ganir dolorido, quando o dono viu tudo e tudo sentiu, agarrou na vara de medição, foi ter com o doido e não lhe deixou uma costela inteira. A cada paulada que lhe dava, dizia: – Ah! ladrão! Ah! cachorro! Pois não viste, cruel, que o meu cão era podengo? E repetindo o nome “podengo” muitas vezes, enfim largou o louco, depois de ter deixado seus ossos num feixe só. Se lamentando da sova que levou, o doido sumiu e por mais de mês não saiu à praça. Ao cabo desse tempo voltou com a mesma invenção e com maior carga. Chegava aos cães, olhava fixo para eles por muito tempo e sem querer nem se atrever a descarregar a pedrada, dizia: – Este é podengo! Cautela!" E efetivamente, quantos cães topava, ainda que fossem sadios e fortes, dizia que eram podengos e nunca mais disparou o pedregulho. Talvez aconteça o mesmo a este historiador: que não se atreva a tornar a soltar a presa do seu engenho

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em livros que, em sendo maus, são mais duros que pedras.

Avellaneda: – Não me canses. São Tomás ensina que a inveja é a tristeza do bem e do progresso alheio, doutrina que tomou de São João Damasceno. A este vício dá por filhos São Gregório na exposição e detração do próximo, gozo dos pesares e pesar das alegrias. E bem se chama este pecado inveja a non videndo, quia invidus non potest videre bona aliorum. Efeitos todos tão infernais como sua causa, tão contrários aos da caridade cristã, de quem disse São Paulo, charitas patiens est benigna est, non emulatur; non agit perperam, non inflatur, non est ambitiosa, congaudet, veritati. Desculpem os erros das citações da primeira parte, porque o fato dele tê-la escrito entre companheiros de cárcere, não pôde deixar de sair tisnada deles, nem menos queixosa, murmuradora, impaciente e colérica, igual ficam todos os presos.

Cervantes: – Senti também que me chamasse invejoso e me descrevesse como a um ignorante. Qualquer coisa que seja a inveja, verdade, verdade, de duas que há eu só conheço a santa, a nobre e a bem-intencionada. Viva o grande Conde de Lemos, cuja cristandade e liberdade bem conhecida, contra todos os golpes da minha aziaga fortuna, me conserva de pé. E viva para mim também a suma caridade do ilustríssimo [Cardeal-arcebispo] de Toledo. Pouco me importa que haja ou não haja imprensas no mundo, que se imprimam ou não contra mim mais livros do que letras têm as coplas de Mingo Revulgo. Estes dois príncipes, sem que a minha adulação solicite, nem outro gênero de aplauso, só por sua bondade tomaram a seu encargo favorecer-me. E nisso me tenho por mais ditoso e mais rico do que se a fortuna pelos caminhos ordinários me tivesse posto no pináculo.

Avellaneda: – Em algo diferencia esta parte da primeira sua; porque tenho o humor também contrário ao seu. E em matéria de opiniões em coisas de história, tão autêntica como esta, cada qual pode caminhar por onde melhor pareça. Ainda mais dando para ele tão dilatado campo, a cáfila dos papéis são tantas, tanto quanto os que deixei de ler.

Cervantes: – Digo-lhe também que a ameaça que me faz, de que me há de tirar os lucros com seu livro, nada se me dá que, acomodando-me ao entremez famoso de A Perendenga, lhe respondo que viva para mim o vinte e quatro meu senhor e Cristo para todos.

Avellaneda: – Não me murmure nada de que se permitam impressões de semelhantes livros, pois este não ensina a ser desonesto e sim a não ficar louco. E permitindo-se tantas Celestinas, que já andam mãe e filha pelas praças, bem se pode permitir pelos campos um Dom Quixote e um Sancho Pança, dos quais jamais se conheceu algum vício, antes somente muitos desejos de desagravar órfãos e desfazer os tortos da vida.

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Cervantes: – A honra pode-a ter o pobre, mas não o vicioso. Pobreza pode enublar a fidalguia, mas não escurecê-la de todo. Mas como a virtude dá alguma luz de si, ainda que seja pelos inconvenientes e vestígios da estreiteza, vem a ser estimada pelos altos e nobres espíritos e, portanto, favorecida. E eu quero dizer mais a ti leitor, senão advertir-te, que esta segunda parte de Dom Quixote que te ofereço é cortada pelo mesmo oficial e no mesmo pano que a primeira e que te dou nela Dom Quixote dilatado e finalmente morto e sepultado, para que ninguém se atreva a levantar-lhe novos testemunhos, pois já bastam os passados e basta também que um homem honrado desse notícia destas discretas loucuras, sem querer de novo entrar com elas. A abundância das coisas, ainda que sejam boas, faz com que se não estimem e a carência, ainda que das más, alguma coisa se estima.

Rio de Janeiro, Cachambi, 8 de janeiro de 2015.

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HERMANN HESSE MUITAS ALEGRIAS

“Pequenas alegrias” (Editora Record - 1977)

Com o advento dos megamercados e praças de comércio formados pelos shopping centers, a feriadagem anda disseminada por todo o ano, de tal modo a formar uma corrente contínua, isto é, mal acaba um dia de promoção e logo se inicia outro. Nos entremeios do Natal, Reveillon, Carnaval, Páscoa, Dia das Mães, São João, Dia dos Namorados, Dia da Criança, Dia dos Pais, existe tanto dia disso e dia daquilo que a gente perde a conta. Assim é que desde o dia 1º de janeiro – Dia Mundial da Confraternização – até o dia 31 de dezembro, que é o Dia Mundial do Reveillon, passa um sem número de dias das mais diversas festividades, entre tais temos: Dia do Carteiro (25/01), Dia de Iemanjá (02/02), Dia do Sogro e do Telefone (10/03), Dia da Mentira (01/04), Dia da Fraternidade Brasileira (13/05), Dia da Raça (10/06), Dia da Pizza (10/07), Dia da Injustiça (23/08), Dia do Encanador (27/09), Dia do Contato (21/10), Dia do Trigo (10/11) e, finalmente, o Dia Nacional do Samba (02/12). Pois bastou passar o Dia de Finados (02/11) e os lojistas apressadinhos já iniciaram as promoções de Natal.

Portanto, já é Natal!

Estava perdido nesses pensamentos, meditando no imenso volume que se gasta de palavras no mês de dezembro para recauchutar a alma nossa e a dos outros, com mensagens animadoras, figuras de retórica, fantasias. Pensava também em escrever algo que comova o leitor, que faça a gente tentar uma reforma nos hábitos, que ajude a melhorar nosso dia-a-dia, enfim, como se diz no popular, passar uma mensagem melhor e maior do que todas as outras mensagens. Mas o que ainda não se escreveu nessa data? O que todos ainda vão escrever? Quantas mensagens de Natal virão encher a minha caixa de e-mail? E todas com mensagens belíssimas, repetitivas, a eterna busca da Paz e da Felicidade? Pois bem, estava assim, assim, ruminando o dilema, quando bati a vista no artigo “Natal” de Hermann Hesse escrito em 1917.

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Essa leitura me comoveu do mesmo modo que me comovem as mensagens escritas em nosso século – e são muitas e sábias as mensagens de nossos poetas e escritores. Hermann Hesse foi escritor de uma geração que, por força do destino, teve a desventura de passar por duas guerras mundiais. Se pudéssemos classificar o que foi a literatura, a cultura e a arte, que permearam a Europa entre o final dos anos 1800 e a primeira metade dos anos 1900, sem dúvida só podíamos chamá-la de Época de Ouro.

Mas para enfear tudo o que de belo se escreveu, compôs e pintou naquela época, vieram as guerras e com elas o sacrifício de vidas inocentes, centenas de cidades destruídas e famílias desfeitas. Muitos artistas sofreram na carne essa catástrofe e sucumbiram diante do desastre inexorável que assistiram e se recusaram presenciar a repetição do mesmo. Para muitos o suicídio foi a saída e entre nós tivemos o exemplo da extensão do ato trágico na fatalidade de Stefan Zweig, que se negou a presenciar o sofrimento que o seu povo e a sua terra passavam, suicidando-se em 1942 na cidade de Petrópolis.

Sim meu amigo, você que acha trágico um conflito de vizinhos por causa de uma galinha morta, se chateia com alguém que te chamou de feio, briga porque a cerveja tá quente, você que acha que o bolinho de bacalhau tem muita batata, há de meditar o que significa o horror de passar por dois conflitos mundiais, nos quais milhões de seres humanos perderam a vida. E também há de imaginar o que se passou na cabeça desses escritores, pensadores de um mundo melhor, gente que se lembrou de pedir e lutar pela felicidade dos homens, porque o conflito da alma dói tanto quanto o sofrimento físico.

Droga! Acho que me perdi e esqueci de tomar o rumo do texto de Hermann Hesse. O artigo foi escrito, como disse, em 1917. A Europa sofria com o desastre da Primeira Grande Guerra, que duraria de 1914 a 1918. No entanto a palavra do escritor aparece serena, com apelos de paz, um chamamento aos homens de boa vontade. Não se dirigia, claro, aos políticos donos de todos nós, mas ao habitante comum, ao lavrador, ao pedreiro, ao comerciante, ao professor, ao artista, a todos, enfim, que fazem parte da massa informe, mas imprescindível para que a humanidade possa caminhar, apesar de tudo.

Então, sem mais delongas, leiam e inspirem-se nesse texto, escrito sob o troar das bombas que caem nas cabeças daqueles que nada têm a haver com a diarreia que cala o cérebro dos políticos e militares...

NATAL – HERMANN HESSE

Mais uma vez chega o Menino Jesus, é sua quarta visita desde o início da guerra. E se há sinais de que essa guerra esteja chegando ao fim, hoje ainda não se pode prever o quanto esse dia vai demorar.

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Todos os que de alguma forma se tornaram vítimas da guerra, sobretudo os muitos prisioneiros em países inimigos, possam celebrar este Natal como uma festa de melancolia, de recordações de amadas coisas perdidas, pátria e infância, paz e felicidade tranquila. E neles ressoará como profundo desejo o “Paz na Terra” apregoado pelo evangelho de Natal.

Entrementes, não esqueçamos que o Natal não é só a festa infantil e as vozes dos anjos que anunciaram o nascimento de Cristo não são apenas uma bela música para as crianças ou um dolorido consolo para os oprimidos.

O Natal não deve nos trazer apenas lendas natalinas, por mais belas que sejam, nem somente brilho de árvore de Natal ou cantos infantis. O pensamento cristão, que em tantos credos encontrou expressões tão diversas, tem para cada um de nós o valor de um novo e elevado estímulo, uma exortação importante.

Não importa que imagem se tenha duma salvação do mundo, o essencial é que cada um de nós tenha presente a ideia de uma salvação através do amor.

Procurar por ela é algo que não só o coro dos anjos de Natal nos recomenda, mas as vozes de todos os grandes pensadores, escritores, artistas, e o profundo valor dessas vozes todas está unicamente em que anunciam uma realidade, um caminho, uma possibilidade que vive no peito de cada ser humano.

Por isso, o Natal não nos deve ser, como qualquer festa, um mero olhar para trás, mas um novo impulso de toda a nossa boa vontade. Pois “aos homens de boa vontade” se dirige a promessa.

Não temos boa vontade quando apenas choramos coisas perdidas, ou lembramos o irrecuperável. Temos boa vontade quando tomamos consciência do que há de melhor, mais vivo em nós mesmos, e seguimos a voz dessa consciência.

Quem pensa nisso seriamente, quem se renova nesse juramento de fidelidade ao melhor de si, este se encontra no estado de espírito legítimo para celebrar tal festa.

E só então os sinos festivos, as luzes dos círios, as cantigas e os presentes terão adquirido seu verdadeiro brilho e valor.

(Tradução Lya Luft)

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A LANTERNINHA DE PIRANDELLO

“O falecido Matias Pascal” (Livraria Martins Editora - s/d)

No seu romance mais famoso “O falecido Matias Pascal”, Luigi Pirandello introduz um personagem desses que se encontra todo dia: o filósofo da vida. Hospedeiro de Pascal (já incorporando Sr. Meis), Anselmo Paleari, para distraí-lo enquanto convalesce da operação que consertaria o olho desviado por má formação, arrancha-se ao lado da cama do doente, que – indefeso – é obrigado a participar das ideias filosóficas. O capítulo que registra o tema é “Quarenta dias no escuro” e começa com a lamentação de Pascal-Meis sobre o período em que teve de permanecer nas trevas.

“Coroada de êxito, oh!, coroada de grande êxito, a operação. Nesse entrementes, sim, no escuro, durante quarenta dias, no meu quarto.”

Antes da invasão do filósofo Anselmo Paleari, porém, é o personagem que monta o seu próprio pensamento: “Pude verificar que o homem, quando sofre, forma uma ideia particular, sua própria, do bem e do mal, isto é, do bem que os outros deveriam fazer, para ele e que ele reclama, como se, de seus sofrimentos, derivasse o direito à compensação; e do mal que ele pode fazer aos outros, como se, igualmente, através dos seus sofrimentos, se habilitasse a isso. Se os outros não lhe fazem o bem, quase que por dever, ele os acusa; e, de todo mal que ele faz, quase por direito, facilmente se desculpa.”

Sem mais nem menos, “Depois de alguns dias daquela prisão cega, o desejo, a necessidade, de ser confortado de algum modo, cresceram até à exasperação. Eu bem sabia que me encontrava numa casa estranha, e que, por isto, até devia agradecer os meus hospedeiros, pelos cuidados delicadíssimos que tinham para comigo. Entretanto, aqueles cuidados já não me bastavam mais, ao contrário, até me irritavam, como se fossem proporcionados por despeito. Sem dúvida!”

E a tábua de salvação para tanto estresse chegou logo: “Para me consolar, o Sr. Anselmo Paleari desejou demonstrar-me, através de um longo raciocínio, que a escuridão era imaginária.

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– Imaginária? Esta escuridão? – gritei-lhe eu.

– Tenha paciência. Vou explicar.

E desenvolveu uma sua concepção filosófica, especiosíssima, que provavelmente se poderia denominar lanterninhosofia.

De quando em quando, o bondoso homem interrompia-se, para me perguntar:

– Está dormindo, Sr. Meis?

E eu via-me tentado a responder-lhe: – Sim, muito obrigado. Estou dormindo Sr. Anselmo.

Visto, porém, que a intenção dele, no fundo, era boa, pois trata de me fazer companhia, eu respondia-lhe que, ao contrário, aquilo me interessava muitíssimo; e pedia-lhe para que prosseguisse.

Mas na verdade Pascal-Meis se preparava para uma maratona pseudo-filosófica, que, se não fizesse bem, mal mesmo é que não faria...

“E o Sr. Anselmo, prosseguindo, demonstrava-me que, para nossa desgraça, nós não somos como a árvore que vive e não sente, e à qual a terra, o sol, o ar, a chuva, o vento, não se afiguram que sejam algo que ela não é: coisas ou amigas, ou nocivas. A nós, os humanos, ao contrário, coube, ao nascermos, um triste privilégio: o de sentir que vivemos, com a grande ilusão que daí resulta: isto é, com a ilusão de que devemos admitir, como uma realidade fora de nós, este nosso sentimento interior da vida – sentimento que é mutável e variável, de acordo com os tempos, os casos e a sorte.”

E finalmente, surge a persona filosófica que faltava: “E este sentimento da vida, para o Sr. Anselmo, era, precisamente, como uma lanterninha que cada um de nós traz consigo, acesa. uma lanterninha que nos faz ver a nós mesmos como seres perdidos à face da terra, fazendo-nos ver, igualmente, o mal e o bem. uma lanterninha que projeta, ao nosso redor, um círculo mais ou menos amplo de luz, além do qual existe a sombra negra, a sombra apavorante que não existiria se a lanterninha não estivesse acesa em nós, mas que nós vemos obrigados, infelizmente, a considerar verdadeira, enquanto ela se conserva viva, acesa em nós. Quando, por fim, a lanterninha se extingue, a um sopro, o que nos acolhe é a noite perpétua, depois do dia famoso da nossa ilusão. ou será que ficamos, ao contrário, à mercê do Ser, que então terá apenas desfeito as formas vãs da nossa razão?”

No entanto, o Sr. Anselmo, não querendo piorar ou atrasar a convalescência e a pronta recuperação do olho enfermo, prometeu “não entrar muito profundamente na Filosofia” – antes – “Vamos procurar, ao invés, acompanhar,

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por entretenimento, os vaga-lumes perdidos, que seriam as nossas lanterninhas, na escuridão do destino humano.”

E continuando: “Eu diria, antes de mais nada, que elas se apresentam de muitas cores. que é que o Sr. diz a isto? De acordo com o vidro que nos proporciona a ilusão, grande mercadora, grande vendedora de vidros coloridos. A mim, afigura-se-me, porém, Sr. Meis, que, em determinadas idades da História, como em certas fases da vida individual, bem que se poderia determinar o predomínio de uma dada cor, não é mesmo? Em todas as idades, com efeito, costuma-se estabelecer, entre os homens, uma certa harmonia de sentimentos, que dá luz e cor aquelas enormes lanternas que são os termos abstratos: Verdade, Virtude, Beleza, Honra, sei lá o que mais!...

A ideia das lanternas associadas às cores fascina o “filósofo” Anselmo: “E não lhe parece que deve ter sido vermelho, por exemplo, a lanterninha da Virtude pagã? De cor violeta, cor depressiva, o da Virtude cristã. A luz de uma ideia comum é alimentada pelo sentimento coletivo. se, entretanto, este sentimento se cinde, continua, por certo, de pé, a lanterna do termo abstrato; mas a labareda da ideia crepita, fagulha e soluça, dentro dela, como sói acontecer em todos os períodos que são considerados de transição. Ademais, não são raras algumas lufadas violentas, que apagam, de súbito, todos aqueles lanternões. Que prazer! Na escuridão subitânea, então, torna-se indescritível a barafunda das lanterninhas singularmente consideradas. há as que vão para aqui, há as que vão para acolá; há as que vão para trás, e há as que dão voltas; nenhuma delas encontra mais o caminho: todas se abalroam. elas se reúnem, por um momento, em grupos de dez, de vinte; mas não podem entrar em acordo; voltam, pois, a dispersar-se em grande confusão, numa fúria angustiosa: como as formigas, quando elas deixam de encontrar a entrada do formigueiro, obstruída, por brincadeira, por um momento cruel.”

E o fantástico paralelismo chega ao momento em que ambos se encontram: “Parece-me, Sr. Meis, que nos encontramos, agora, num de tais momentos. Grande escuridão e grande confusão! Apagados todos os lanternões. A quem é que devemos dirigir-nos? Devemos ir para trás, talvez? Recorrer às lanterninhas supérstites, àquelas que os grandes mortos deixaram acesas em cima dos seus túmulos? Lembro-me de uma bela poesia de Niccoló Tommaseo:

La piccola mia lampa Non, come sol, risplende, Né, como incendio, fuma. Non stride e non consuma, Ma con la cima tende Al ciel che me la diè. Stará su me, sepolto, Viva. né pioggia o vento,

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Né in lei età potranno. E quei che passeranno Erranti, a lume spento, Lo accenderan da me. Minha pequena lâmpada Como o sol, não esplende, Nem, como incêndio, esfuma Não cega e não se consuma, Mas sua labareda pende Para o céu que a mantinha. Viverá sobre mim, sepulta. Nem a chuva, nem o vento, Nada a abala, agora e antes, E os que passam errantes, Sem fulgor no firmamento Acendem a chama na minha. “Mas como poderá ser isso, Sr. Meis, se, à nossa lâmpada, falta o óleo sagrado, que alimentava a do Poeta? Muita gente ainda vai à igreja, para prover, do alimento necessário, as suas lanterninhas. Compõem essa gente, em sua maior parte, de pobres velhos, de pobres mulheres, aos quais a vinda mentiu, e os quais vão para a frente, na escuridão da existência, com aquele seu sentimento aceso como se fora uma lâmpada votiva. toda essa gente protege, com fervoroso cuidado, a sua lâmpada, contra os efeitos do sopro gélido dos últimos desenganos, para que ela continue acesa, pelo menos, até lá, até à orla fatal, para onde se apressam, mantendo os olhos fitos na labareda, e pensando continuamente: Deus me vê! E assim essa gente procede para não ouvir os clamores da vida ao redor, que ressoam aos seus ouvidos como igual número de blasfêmias. – Deus me vê... porque é aquela gente que O vê, não apenas em si, mas também em tudo o mais – até mesmo na sua miséria, nos seus sofrimentos, para os quais haverá um prêmio, afinal. A luz fraca, mas plácida, destas lanterninhas, desperta, sem dúvida, alguma inveja em muitos de nós. e a muitos outros, ao contrário – que se julgam armados, como se fossem numerosos Júpiteres, do raio dominado pela ciência, e que, em lugar daquelas lanterninhas, levam em triunfo as lâmpadas elétricas – inspira apenas uma desdenhosa comiseração.”

E a lanternihosofia cresce como objeto de orgulho para quem o cotidiano é uma grande festa: “Mas eu agora pergunto, Sr. Meis: E se toda esta escuridão, todo este mistério enorme, em torno do qual os filósofos primeiro especularam, e que, agora, mesmo renunciando à sua investigação, a ciência não exclui, não passar, nu fundo, de um engano como qualquer outro? De um engano da nossa mente, de uma fantasia que não se colore? Se nós, finalmente, nos

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persuadíssemos de que todo esse mistério não existe fora de nós mesmos, mas tão somente dentro de nós, e, necessariamente, devido ao famoso privilégio do sentimento que nós temos da vida, isto é, da lanterninha, de que até agora venho falando? Se a morte, em suma, que nos causa tanto medo, não existir, e for tão-somente, não a extinção da vida, e sim o sopro que apaga dentro de nós esta lanterninha, o desventurado sentimento que nós temos dela – sentimento penoso, assustador, porque limitado, definido por este círculo de sombra fictícia, além do breve âmbito da luz escassa, que nós, pobres vaga-lumes, perdidos, projetamos ao nosso redor, e no qual a nossa vida permanece como que encarcerada, como se fosse excluída, por algum tempo, da vida universal, eterna, em que nos parece que deveremos reentrar um dia, ao passo que já nos encontramos nela, e nela sempre nos conservaremos, mas sem mais este sentimento de exílio, que nos angustia? O limite é ilusório. é relativo à pouca luz nossa, da nossa individualidade. na realidade da Natureza, não existe.”

Por fim, a lanternihosofia do Sr. Anselmo não se mostra pior do que tantas outras teorias carnais ou espirituais que rondam nossa terrena existência. Isso avaliza o diálogo do mestre Pirandello que, em muitas outras criações, seguiu o roteiro humanista que escolheu para ser a lanterna de sua obra. Assim prossegue o Sr. Anselmo: “Nós – não sei se isto poderá causar-lhe prazer – nós sempre vivemos, e sempre viveremos, com o universo. mesmo agora, nesta nossa forma, nós participamos de todas as manifestações do universo; mas não o sabemos, não o vemos, porque, infelizmente, este maldito lumezinho choramingão nos permite ver apenas o pouco até ao qual chega o seu minguado clarão. Se, pelo menos, nos fizesse ver isso como isso é, na realidade! Mas, não senhor: esse lumezinho o colore a seu modo. faz-nos ver algumas coisas que nós devemos, na verdade, lamentar, por Deus!, porquanto, numa outra forma de existência, talvez não tenhamos mais boca para rir a bandeiras despregadas, a propósito delas. Rir, Sr. Meis, de todas as aflições, vãs e estúpidas, que esse lumezinho nos tiver proporcionado, de todas as sombras, de todos os fantasmas ambiciosos e estranhos que houver feito aparecer adiante e ao redor de nós, em consequência do medo que nos provocou!”

Mas quando o Sr. Anselmo Paleari pretende acender na cabeça do Sr. Meis uma outra lanterna para as suas experiências espíritas, encontra sérias objeções: “Não era já demais a lanterninha que lá existia?”

O tema retorna em círculos, como a visa em muitas vezes é círculo. Queremos que a chamada luz da existência pode servir para nos fazer ver a vida própria. Para nos fazer ver além desta vida, ela não serve de modo algum. É ilusória. Não serve para iluminar o descobrimento de outras leis, outras forças, outras vidas na Natureza. Não serve para forçar e ampliar a compreensão que os sentidos, em si mesmos limitados, nos dão de todas as coisas.

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E desta vez é o próprio Pirandello que mete o bedelho para encerrar essa discussão sem fim:

“O Sr. Anselmo, entretanto, sentia-se mais do que convencido e não tinha necessidade, de forma alguma, daquelas experiências, para reforçar a própria fé. Como homem de bem, que era, indiscutivelmente, não conseguia supor que o fossem enganar com outro fim em mente. Quanto à mesquinhez aflitiva e pueril dos resultados, a Teosofia encarregava-se de lhe dar uma explicação plausibilíssima. Os seres superiores do Plano Mental, ou de mais para cima, não podiam descer, para se comunicar conosco por meio de um médium: era preciso, pois, que nos contentássemos com as manifestações grosseiras de almas de trespassados inferiores, do Plano Astral, ou seja, do plano mais próximo do nosso. Aí está.

E quem é que estava em condições de dize-lhe que não era assim?

“Fé – escrevia o Mestre Alberto Fiorentino – é substância de coisas que se esperam; constitui argumento e prova de coisas não aparecíveis”.

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ANATOLE FRANCE JUSTIÇA E INJUSTIÇA

“A justiça dos homens” (Civilização Brasileira - 1978)

É no livro de contos “A justiça dos homens” que Anatole France publica o seu famoso libelo contra um dos três poderes que, em nome da democracia, oprime e sufoca o cidadão comum: o aparelho judiciário ou, no popular, a Justiça. “Crainquebille” – esse é o nome da peça – na palavra de Mario da Silva Brito “é um libelo, um requisitório, comovido e comovente, sobre o comportamento do aparelho jurídico e judiciário em relação aos desvalidos, aos pobres diabos – o desvalido ou pobre diabo que qualquer um, dependendo das circunstâncias, poderá vir a ser diante da majestade das leis. Todos somos Crainquebilles em potencial.”

Só a orelha de Mario da Silva Brito é suficiente para incitar a todos a leitura da obra, porém não a indicamos a juristas, advogados, juízes e rábulas, porquanto seria malhar em ferro frio... Porém, “Crainquebille” não vinga sozinho no volume. Outros contos de igual repercussão acompanham-no na coletânea. Entre as histórias, todas recheadas de humanismo e humanidade, salta o conto “Putois”, que vem logo a seguir. A figura de Putois nasce de uma mentira – um motivo plausível – inventada pela família Bergeret, para justificar a ausência a uma indesejada (e, ao que parece, chata) reunião familiar.

“Lamento muitíssimo, cara tia, mas não nos será possível. Domingo estarei esperando o jardineiro.” O diálogo prossegue incluindo todas as minúcias necessárias a justificar a mentira. Quem é, quem não é, pois nas vilas se conhece tudo ou quase tudo o que se passa. E por fim vem a pergunta fatal:

“Como se chama o teu jardineiro?”

“Putois”.

Pronto, a mentira foi batizada e portanto passou a existir. Mas como fazer existir o que não existe? Da mesma maneira que a criatura toma posse do criador. Uma vez lançada no mundo até uma ficção vira realidade. E lá pelas

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tantas, quando a própria enganada resolve também admitir o jardineiro a seu serviço, Putois vê a sua invisibilidade ameaçada. A mentira cresce, torna-o esquivo, difícil de encontrar, além de tudo é um mau caráter, um mandrião. Mas, de repente, um dia...

“Acabo de ver Putois.”

“Não diga!”

“Sim, eu vi.”

“Tem certeza?”

“Absoluta! Estava andando depressa. Perdi-o de vista.”

“Era ele mesmo?”

“Sem a menor dúvida. Um homem duns cinquenta anos, magro, encurvado, parecendo um vagabundo, com uma camisa encardida.”

“De fato, a descrição pode aplicar-se a Putois.”

Agora que a figura é palpável, o mau-caratismo cresce. As coisas desaparecem? Foi Putois. Roubos ocorrem? Foi Putois. Até mesmo uma cozinheira, tida como beata, foi seduzida e violentada. Por quem? Putois. A existência de Putois vira caso de polícia. Agora é procurado e perseguido por seus pequenos delitos. Seu destino final parece claro – a cadeia. Mas quis o destino que assim não fosse. Um corpo com a mesma descrição de Putois é encontrado. E assim dá-se fim a uma ficção que virou realidade e morreu. Morreu mesmo? Antes que o desaparecimento de Putois se fizesse por total, a pessoa que lhe deu vida, sua criadora pois, “certa feita chegou a sentir que o sangue lhe fugia, imaginando que ia ver a sua mentira materializar-se diante dela.” Foi no dia em que a nova criada veio anunciar que estava à porta um homem queria vê-la.

“Quem é?”

“Um homem de macacão.”

“Não disse o nome?”

“Disse, madame.”

“E então, como se chama?”

“Ele disse que se chama Putois.”

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Quando a criada, enfim, foi à porta, não tinha mais ninguém. Só que a partir daquele momento, a criadora da farsa passou a crer que Putois tivesse existido mesmo e que, afinal, talvez ela não tivesse mentido... Até aí morreu o Neves! Na sequência do livro o próximo conto é “Riquet”. E lá vou embarcado numa viagem de destino desconhecido, como costumam ser os livros. Mas quem é Riquet? Nada mais nada menos que o cão de Bergeret, figura do conto anterior! Personagem, aliás, cuja existência não tinha sido mencionada! Bom, em resumo é o seguinte.

O senhor Bergeret tinha resolvido mudar-se com a família da velha casa, para morar num apartamento moderno. Nesse cenário, aos poucos invadido pelos homens da mudança e se torna devastado, vaga a figura de Riquet, o cão. Sem entender o que está se passando, vê os móveis e objetos aos quais tanto se afeiçoou sendo retirados. “Ele deplorava em silêncio o descalabro da casa e procurava em vão, de quarto em quarto, um pouco de sossego.” E no dia da partida, “vendo as coisas piorarem de hora em hora, ele se desesperou.” São muitas as provações pelas quais passa um cão em mudança. Só quando o próprio Bergeret veio em socorro e, apesar de tudo, o levou a um passeio, ele se acalmou. Do outro lado da rua, o homem e seu cão admiravam o lamentável espetáculo dos móveis, objetos domésticos, livros, estantes, tudo espalhado pela calçada à espera da mudança.

“Então, Riquet esfregou com as patas as pernas do dono e levantou para ele seus belos olhos aflitos”, que diziam: “– Será que tu, até bem pouco tempo, tão rico e poderoso, te tornaste pobre? Será que te tornaste fraco, ó meu senhor? Deixas que homens venham invadir a tua sala de visitas, o teu quarto de dormir, a tua sala de jantar, revirar os teus móveis e carregá-los para fora, arrastar pelas escadas a tua bela poltrona, a poltrona em que descansávamos os dois todas as noites e muitas vezes de manhã, um ao lado do outro? Eu a ouvi gemer nos braços daqueles homens mal vestidos, aquela poltrona que é um precioso Fetiche e um gênio benfazejo. Não te opuseste àqueles invasores. Se não tens mais nenhum dos espíritos que enchiam a tua morada, se perdeste até aquelas pequenas divindades que calçavas de manhã quando te levantavas da cama, aqueles chinelos que eu por brincadeira mordia, se és agora indigente e miserável, ó meu amo o que será de mim?”

Até aí – de novo – morreu o Neves! Meus amigos, olhem o que acontece na sequência, porque o próximo texto é – tcham, tcham, tcham, tcham! – “Pensamentos de Riquet.” Pois, pois, eis, que um personagem que nem havia sido citado já percorre o itinerário de três estórias... E quais são esses pensamentos do cão filósofo? Zaratustra que se cuide!

I – Os homens, os bichos, as pedras aumentam de tamanho quando se aproximam e ficam enormes quando chegam junto a mim. Eu não. Continuo sempre do mesmo tamanho, onde quer que esteja.

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II – Quando o meu dono me estende sob a mesa bocados do alimento que ele vai meter na boca, é para me tentar e castigar-me se eu sucumbir à tentação. Pois eu não posso acreditar que ele se prive por mim.

III – O cheiro dos cães é delicioso.

IV – Meu dono me mantém aquecido quando eu fico deitado atrás dele em sua poltrona. Isto é porque ele é um deus. Há também na frente da lareira uma laje quente. É uma laje divina.

V – Eu falo quando quero. Da boca do meu amo também saem sons que forma um sentido. Mas são sentidos bem menos distintos do que eu exprimo pelos sons da minha voz. Na minha boca, tudo tem um sentido. Na do amo há muitos ruídos vãos. É difícil, se bem que necessário, adivinhar os pensamentos do amo.

VI – Comer é bom. Ter comido é melhor. Pois o inimigo que nos espia para arrebatar-nos o alimento é lesto e sutil.

VII – Tudo passa e se sucede. Só eu permaneço.

VIII – Eu estou sempre no centro de tudo: os homens, os animais e as coisas, hostis ou favoráveis, dispõem-se ao meu redor.

IX – Quando se está dormindo, se vê homens, cães, casas, árvores, formas amenas e formas assustadoras. Quando se desperta, essas formas desaparecem.

X – Meditação: Eu amo o meu senhor Bergeret porque ele é poderoso e terrível.

XI – Uma ação pela qual se foi espancado é uma ação má. Uma ação pela qual se recebeu carícias e comida é uma boa ação.

XII – Quando a noite cai, potências malfazejas rondam em torno da casa. Eu, com meus latidos, advertimos o meu senhor, para que ele as expulse.

XIII – Prece: Ó meu senhor Bergeret, deus do massacre, eu te adoro. Terrível, sê louvado! Propício, sê louvado! Eu me arrojo a teus pés, lambo-te as mãos. Tu és muito grande e majestoso. Tu és grande e majestoso quando, com um movimento do dedo, transformas a noite em dia. Guarda-me em tua casa à exclusão de todos os outros cães. E tu cozinheira, divindade excelsa e bondosa, eu te adoro e venero para que me dês bastante de comer.

XIV – Os cães que não mostram devoção para com os homens e que desprezam os fetiches reunidos na casa do senhor levam uma vida errante e miserável.

XV – Um dia, um cântaro furado, cheio d’água, atravessando a sala de visitas, molhou o assoalho encerado. Acho que o porcalhão deve ter sido surrado.

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XVI – Os homens têm o poder divino de abrir todas as portas. Eu só consigo abrir um pequeno número delas. As portas são grandes fetiches que não costumam obedecer aos cães.

XVII – A vida de um cão é cheia de perigos. Para evitar sofrimentos é preciso estar vigilante todo o tempo, durante as refeições e até durante o sono.

XVIII – Nunca se pode estar certo de ter procedido bem em relação aos homens. Cumpre adorá-los sem procurar compreendê-los. Seus desígnios são misteriosos.

XIX – Invocação: Ó Medo, Medo augusto e paternal, Medo santo e salutar, penetra-me, invade-me no perigo, para que eu evite o que possa me ferir e para que eu não venha, lançando-me sobre o inimigo, a sofrer por minha imprudência.

XX – O mundo é cheio de coisas hostis e assustadoras.

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RABINDRANATH TAGORE O POETA ESQUECIDO

“Antologia” (MEC - Serviço de Documentação - 1961)

“EDIÇÃO DO SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA EM COMEMORAÇÃO AO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE RABINDRANATH TAGORE. RIO DE JANEIRO – BRASIL – 1961”

Neste ano de 2011 comemora-se os 150 anos de nascimento do poeta, dramaturgo, escritor, pintor e músico Rabidranath Tagore (1861) e a memória dos 70 anos de sua morte (1941). Esses eventos, até a presente data, passam-se em silêncio e é provável que só sejam lembrados por aqueles que mantiveram vivo o nome de Tagore, seja nas associações e clubes culturais ou com as publicações particulares, de caráter e circulação restritos apenas aos iniciados. Tudo bem diferente das comemorações pelo centenário de seu nascimento, quando, em todos os continentes se promoveu algum tipo de homenagem a Tagore. Aqui mesmo entre nós, em 1961 foi publicada, de modo oficial, uma ampla seleção de sua obra, que incluía textos e excertos em prosa, teatro e verso, dos seguintes livros:

De: “COLHEITA DE FRUTOS”

ORDENA-ME e colherei meus frutos e os trarei em cestos transbordantes para o teu pátio, embora alguns estejam perdidos e outros ainda verdes.

Porque a estação se torna pesada na sua plenitude e há na sombra o som queixoso da flauta de um pastor.

Ordena-me e far-me-ei à vela no rio.

O vento de março está agitado, levantando as lânguidas ondas em murmúrio.

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O jardim deu tudo o que era seu e na cansada hora da tarde, da tua casa na praia, ao crepúsculo, vem o teu apelo...

MINHA VIDA, quando jovem, era qual uma flor – que solta uma pétala ou duas da sua riqueza e nunca lhes sente a falta, quando a brisa primaveril vem mendigar à sua porta.

Agora, no fim da mocidade, minha vida é como um fruto, que nada tem em excesso e espera para oferecer-se inteiramente, com a carga de toda a sua doçura.

ACORDEI pela manhã e encontrei sua carta.

Não sei o que ela diz, porque não sei ler.

Deixarei o sábio entregue a seus livros, não o perturbarei, pois ninguém tem certeza de que ele sabe ler o que a carta diz.

Deixa-me encostá-la na fronte e apertá-la de encontro ao coração.

Quando a noite emudecer e as estrelas surgirem uma a uma, abri-la-ei em meu regaço e ficarei silencioso.

As folhas sussurrantes a lerão alto para mim, o riacho murmurante a modulará e do céu as sete estrelas sábias a cantarão para mim.

Não posso achar o que procuro, não posso entender o que desejara aprender.

Mas esta carta, que não li, aliviou minha carga e transformou meus pensamentos em canções.

A DOR foi grande quando as cordas estavam sendo afinadas, Senhor!

Começa a tua música e deixa-me esquecer a dor e sentir em beleza o que tinhas na mente através desses dias despiedosos.

A noite que vai morrendo demora-se à minha porta.

Deixa-a despedir-se em canções.

Em melodias que desçam das tuas estrelas, Senhor, derrama teu coração nas cordas da minha vida.

De: O JARDINEIRO POR sobre os arrozais verde-amarelos, rápidas

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lá vão passando as sombras das nuvens outonais, perseguidas do sol – célere caçador. As abelhas se esquecem de sugar o mel e, embriagadas de luz, doidas, rondam e zumbem. Sobre as ilhas do rio, à toa, sem motivo, grasnam patos contentes. Ninguém vá para casa, Irmãos, esta manhã ninguém vá trabalhar. Vamos tomar de assalto o céu azul: saqueemos a amplidão a correr! Flutua o riso no ar como a espuma no mar. Dissipemos, Irmãos, esta nossa manhã em inúteis canções. NÃO guardes, ó minha amiga, para ti somente esse segredo do teu coração... dize-o baixinho a mim, a mim unicamente, tu, que segredas tão suave e docemente... os meus ouvidos não o escutarão: há de escutá-lo, sim, meu coração... A noite está profunda. A casa está silente. Os ninhos com seus pássaros estão de sono amortalhados. Conta-me em lágrimas de hesitação, através de sorrisos perturbados, leve rubor, leve aflição, esse segredo do teu coração... COMO ave do deserto, achou meu coração o seu céu nos teus olhos... Eles são o berço da manhã e o reino das estrelas. Minhas canções se perderam na sua profundidade. Consente apenas que eu me eleve nesse céu, na sua solitária imensidade...

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Deixa-me só fender-lhe as nuvens e espantar minhas asas no seu fulgor solar... De: PÁSSAROS PERDIDOS Se à noite choras pelo sol, não verás as estrelas.

Em teu caminho, água que danças, a areia mendiga a tua canção e a tua fuga. Não quererás levar contigo essa leviana?

O seu rosto anelante persegue os meus sonhos como a chuva durante a noite...

Sonhamos uma vez que não nos conhecíamos e despertamos para ver se era verdade que nos amávamos.

Não deixes o teu amor sobre o precipício...

Nesta manhã, sento-me à varanda para contemplar mundo. E o mundo, viageiro, detém-se um instante, saúda-me e parte.

Não sou eu quem escolhe o melhor: o melhor é que escolhe a mim.

Aquele que carrega a sua lâmpada costas, não lança adiante senão a sua sombra.

Meu coração se entristece em silêncio, não sei dizer por quê... São coisas pequeninas que ele nunca pede, nem, entende, nem recorda...

Quando caminhas de um lado para outro, mulher, nas lidas caseiras, o teu corpo canta feito uma fonte serrana entre as pedras.

Que derradeiro adeus deixa no oriente o sol, ao ir-se afundando no mar, ao crepúsculo!

O peixe é mudo na água; o animal, ruidoso na terra; o pássaro, canoro nos ares. Mas o homem tem em si a música dos ares, o tumulto da terra e o silêncio do mar.

Ao precipitar-se através das cordas do nosso coração preso às coisas, o mundo chora a música da tristeza.

Como as gaivotas e as ondas, nós nos encontramos e nos unimos. Vão-se as gaivotas, voando, as ondas vão-se, a rolar, e nós também nos vamos...

Acabou-se o meu dia. Sou como um barco na praia ouvindo, no meu anoitecer, a dança da maré.

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Por amor ao imperfeito o perfeito se adorna de formosura.

Deus cansa-se dos reinos, mas não das florezinhas...

O bem pode resistir às derrotas, o mal não.

Modula a cascata: "Embora um pouco da minha água baste ao que tem sede, com que alegria a entrego toda a ele!".

Como sente o meu coração solitário o suspiro deste viúvo anoitecer de névoa e chuva!

A névoa, roçando o coração dos montes; arranca-lhes, tal se fora o amor, surpresas de formosura.

Lemos mal o mundo, e logo dizemos que o mundo nos engana.

Se cerrares a porta a todos os erros, impedirás a verdade de entrar.

Atrás da tristeza do meu coração há suspiros e rumores, mas eu não posso compreendê-los!

Chuvoso anoitecer, como o teu vento inquieto, agitando os ramos, me faz meditar na grandeza de todas as coisas!

Quando eu ia e vinha, sem ir-me, que cansaço davas, ó caminho! Mas, agora que me levas a todos os lugares, somos como dois namorados.

Deixa-me crer que uma destas estréias guia a minha vida pelo obscuro mistério!

Mulher, quando tocaste a minha vida com a graça dos teus dedos, a ordem surgiu em mim, tal a música.

Tristonha voz, que tem o seu ninho nas ruínas dos anos, canta-me pela noite: "Eu te amei... "

Como entra pelas fendas da vida esburacada a música triste da morte!

De: A LUA CRESCENTE

NA PRAIA

As crianças se encontram nas praias dos mundos sem fim.

O céu infinito está imóvel lá em cima e a água inquieta está revolta. Na praia dos mundos sem fim as crianças se encontram entre gritos e danças.

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Constroem as suas casas de areia e brincam com suas conchas vazias. Tecem de folhas secas os seus botes e, sorrindo, os largam a flutuar no vasto mar. As crianças se divertem na praia dos mundos.

Não sabem nadar, não sabem lançar redes. Os pescadores de pérolas mergulham em busca de pérolas, os mercadores navegam em seus navios, enquanto as crianças ajuntam seixos e os espalham de novo. Não procuram tesouros escondidos, nem sabem lançar redes.

O mar encapela-se entre risos, e, pálido, fulgura o sorriso da praia do mar... As ondas que trazem a morte cantam para as crianças baladas sem sentido, tal a mãe que embala o berço de seu filho. O mar brinca com as crianças, e, pálido, fulgura o sorriso da praia do mar...

As crianças se encontram na praia dos mundos sem fim. A tempestade vagueia pelo céu sem caminhos; soçobram navios nos ínvios mares; a morte anda às soltas, e as crianças brincam. Na praia dos mundos sem fim é que se dá o grande encontro das crianças.

A FIGUEIRA

Ó figueira de fronde áspera da margem do lago; já esqueceste a criancinha, como os pássaros que fizeram ninho nos teus ramos e te abandonaram?

Não te lembras como sentava à janela e ficava admirada das tuas raízes emaranhadas, que mergulhavam debaixo da terra?

As mulheres costumavam vir encher os seus jarros na lagoa e a tua enorme sombra negra movia-se na água como o sono que luta por acordar.

A luz do sol dançava nas ondulações da água como pequenas lançadeiras inquietas tecendo uma tapeçaria de ouro.

Dois patos nadavam sobre suas próprias sombras junto à margem coberta de ervas daninhas, e a criança ficava sentada, silenciosa e pensativa.

Ela queria ser o vento e assoprar entre os ramos sussurrantes; ser a tua sombra e alongar-se com a luz do dia sobre a água; ser um pássaro. e pousar no teu ramo mais tenro e mais alto, e flutuar como aqueles patos entre as ervas daninhas e as sombras.

A DÁDIVA

DESEJO dar-te alguma coisa, meu filho, porque vamos arrastados na torrente do mundo.

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As nossas vidas serão levadas para lugares diversos, e o nosso amor será esquecido.

Mas não sou tão tola que espere poder comprar o teu coração com as minhas dádivas.

A tua vida é jovem, longo o teu caminho, e bebes de um trago o amor que te trazemos, e viras-te, e foges de nós.

Tens os teus brinquedos e tens companheiros com quem brincar.

Que mal há em que não tenhas tempo nem qualquer pensamento para nós?

Na verdade, temos na velhice lazer de sobra para contar os dias que se foram e acariciar no coração o que nossas mãos perderam para sempre.

O rio corre veloz a cantar, rompendo todas as barreiras. A montanha, porém, fica e recorda, e acompanha-o com o seu amor...

A MINHA CANÇÃO

ESTA minha canção enleará sua música em torno de ti, meu filhinho, como os braços apaixonados do amor.

Esta minha canção tocar-te-á a fronte como um beijo de bênção.

Quando estiveres sozinho, ela se assentará ao teu lado e segredará ao teu ouvido; quando estiveres no meio da multidão, criará uma barreira de distância em torno de ti.

A minha canção será como um par de asas para os teus sonhos.

Transportará teu coração às bordas do desconhecido.

Será como a estrela fiel lá em cima, quando a noite escura tombar sobre a tua estrada.

A minha canção pousará nas pupilas de teus olhos e levará a tua vista até o coração das coisas.

E quando a minha voz emudecer na morte, a minha canção falará no teu coração vivo.

(Tradução: Abgar Renault)

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De: PURAVI

ÚLTIMA PRIMAVERA

ANTES que o dia termine, consente-me este desejo: vamos colher flores da primavera pela última vez. Das muitas primaveras que ainda visitarão tua morada, concede-me uma, – implorei. Todo este tempo, não prestei atenção às horas, perdidas e gastas à toa. Num lampejo de um crepúsculo, li nos teus olhos agora que meu tempo está próximo e devo partir. Assim, ávido, ansioso, conto um por um – como o avarento o seu ouro – os últimos, poucos dias de primavera que ainda me restam. Não tenhas medo Não me demorarei muito no teu jardim florido, quando tiver de partir, no fim do dia. Não procurarei lágrimas nos teus olhos para banhar minhas lembranças no orvalho da piedade. Ah, escuta-me,

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não te vás. O sol ainda não se esconde. Podemos permitir que o tempo se prolongue. Não tenhas medo. Deixa que o sol da tarde olhe por entre a folhagem e se detenha um momento brilhando no negro rio do teu cabelo. Faze o tímido esquilo, perto do lago, fugir de repente ao estrépito de teu riso que irrompe com descuidosa alegria. Não procurarei retardar teus rápidos passos, sussurrando esquecidas lembranças aos teus ouvidos. Segue teu caminho depois, se teu dever é seguir, se tens de seguir calcando folhas caídas com teu andar apressado, enquanto as aves que voltam povoam o fim do dia com o clamor dê seus gritos. Na escuridão crescente, tua distante figura irá fugindo e apagando-se como as últimas frágeis notas do cântico da tarde. Na noite escura, senta-te à tua janela, que eu passarei pela estrada, seguindo o meu trajeto, deixando tudo para trás.

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Se te aprouver, atira-me as flores que te dei pela manhã, murchas agora ao fim do dia. Isso vai ser o último e supremo presente: tua homenagem de despedida. TROCA ELA me trouxe flores de alegria eu tinha comigo os frutos da minha tristeza. Quem sairá perdendo, perguntei-lhe, se trocarmos? Encantada e risonha, ela disse: "Então troquemos: minha grinalda é tua e aceitarei teus frutos de sofrimento". Olhei para o seu rosto vi que era de uma beleza implacável. Bateu palmas, alegre, e apanhou minha cesta de frutos enquanto eu suspendia sobre o coração sua grinalda de flores. Ganhei, disse ela sorrindo e retirando-se logo.

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O sol subiu para o alto do céu e fazia muito calor. No fim do dia sufocante todas as flores murcharam e perderam as pétalas. (Tradução: Cecília Meireles)

O volume traz também os textos Minha bela vizinha, Conto, Mashi, O carteiro do rei e A fugitiva.

A tradução e adaptação ficaram a cargo dos poetas Abgar Renault, Cecília Meireles e Guilherme de Almeida. Nem precisa dizer que estávamos num tempo em que escritores traduziam escritores. Não havia o tradutor profissional, nem tampouco se imaginava que os robôs da tradumática viriam a substituí-los de maneira tão dramática e que, até, fizessem versões de melhor qualidade, o que muito tradutorzinho saído da universidade com diploma debaixo das axilas não consegue.

No texto introdutório, não assinado, se lê:

“Este volume, com que o Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura se associa às homenagens universais prestadas a Rabindranath Tagore, por ocasião do Centenário de seu nascimento, compõe-se de traduções de algumas de suas obras feitas por três poetas brasileiros: Abgar Renault, Cecília Meireles e Guilherme de Almeida. Não são as únicas traduções realizadas por esses três autores. E nem são eles os únicos tradutores brasileiros de Rabindranath Tagore.

“As páginas aqui apresentadas pretendem dar apenas uma idéia da versatilidade de Rabindranath Tagore em diferentes gêneros, idéia reduzida (à maior modéstia), quando se consideram a prodigiosa fecundidade literária do grande poeta hindu e, por igual, a multiplicidade dos sentidos da sua obra, que nos depara um pensamento religioso, dominado pelas meditações sobre a natureza essencial de Deus e a sua presença em todos os aspectos da vida; um pensamento ético, que flui, tal água da fonte, do pensamento religioso, é dele prolongamento ou resultante e se espraia e alcança até as mínimas coisas do cada dia de cada homem, desdobrada em regras de procedimento moral expostas em alegorias e símbolos de beleza profunda, que oscila entre o obscuro e o fulgurante; o pensamento idílico, que, às vezes, se confunde de maneira singular, com o pensamento religioso, se transforma, com frequência, numa

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densa expressão sincrética do próprio mistério da vida, e, quando a quando, assume surpreendentemente a claridade e a graça mediterrâneas que caracterizam os poetas líricos do Ocidente; e um pensamento educacional, que não se exprimiu em fórmulas técnicas nem na ação do educador apenas, mas encontra forma poética no maravilhoso livro intitulado A lua crescente – obra educacional no sentido mais fundo e mais alto que essa palavra alcança.

“Esses quatro sentidos da obra de Tagore fundem-se, ao cabo, numa só expressão filosófica, que destila uma força, um sumo de doçura, uma sensibilidade, uma graça consoladora, uma exaltação de Deus, da natureza e da vida, um perdão total, uma ternura para com os seres humildes e as coisas pequeninas deste mundo – sabedoria humana de que não temos notícia em outro poeta.

“Mas este livro é, acima de tudo, uma presença ocidental nas comemorações do Centenário de Rabindranath Tagore, que tanto desejou uma união afetuosa e compreensiva dos dois hemisférios e o seu intercâmbio espiritual, para a dignificação e felicidade da criatura humana.

“Sua obra vastíssima, em prosa e verso, compreende poesia, teatro, romance, conto e ensaio. Deixou centenas de canções com música de sua autoria. Em pintura, é considerado, na Índia, um dos grandes renovadores. Como educador, foi também um pioneiro, em seu país, tanto no espírito como nos métodos de educação.”

Também não precisava registrar (mas o faço) que houve um tempo em nosso país que no Governo Federal havia um Ministério da Educação e Cultura, que – pasmem – promovia a educação e a cultura! Hoje temos dois ministérios, um só para Educação, outro só para a Cultura, que não promovem absolutamente nada e, quando tentam fazer alguma coisa, sempre tudo dá errado, sempre tudo é maculado pelo vírus da corrupção.

A cultura e a educação se privatizaram, se transformaram em comércio, capitalizaram-se – de tal maneira que tudo só se promove visando o lucro, mesmo que não seja o ganho financeiro, mas qualquer lucro, o lucro do poder, o lucro da influência, o lucro da promoção pessoal, inclusive – e mais frequente – o lucro eleitoreiro...

Rabindranath Tagore obteve reconhecimento universal, porque as suas obras trataram de libertar a Índia das tradições literárias regionais, tornando-se uma cultura não mais apenas exótica, dos sultões e palácios, dos faquires e brâmanes. Ao igualar a cultura de sua terra aos traços aceitáveis no Ocidente, Tagore incorporou não somente todo o acervo histórico e cultural, milenares, mas também conduziu à modernidade a linguagem culta e os costumes populares de seu povo.

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REFLEXÕES SOBRE KONSTANTINOS KAVÁFIS

“Reflexões sobre poesia e ética” (Editora Ática - 1998)

Numa dessas livrarias especializadas em vender encalhes de editoras, atraiu-me o livrote Reflexões sobre poesia e ética (Editora Ática, 1998), de menos de cem páginas, atribuído ao poeta egípcio de língua grega Konstantinos Kaváfis (não compre).

Em tradução e introdução de José Paulo Paes, cuja apresentação toma logo a metade do volume, sabe-se que as notas “interessam, antes do mais, pela singularidade de serem praticamente os únicos textos em prosa” do poeta (não compre).

São cerca de trinta e poucas notas que Kaváfis escreveu, muitas das quais poderiam ser receitas de bolo ou de quitute da culinária egípcia – se não o fossem não faria diferença alguma. José Paulo Paes se esforça em executar bem o seu trabalho, porque sua introdução é legível e traz dados interessantes sobre o poeta (não compre).

No entanto, em todo o texto de Kaváfis a mais importante nota é a de número 1: “Nunca vivi no campo. Tampouco lá passei, como outras pessoas, breves temporadas. Entretanto escrevi um poema no qual celebro o campo e digo que a ele se devem os meus versos. Esse poema de pouco valor não é a coisa mais insincera que já se escreveu: é pura mentira”. Depois dessa afirmação o texto é só interrogação: “Não mente sempre a arte?” E se completa algumas notas depois: “Existem mesmo a Verdade e a Mentira? Ou existem apenas o Novo e o Velho – sendo a mentira simplesmente a velhice da verdade?” (não compre).

As notas de Kaváfis vão seguindo nesse diapasão, são mais um mea culpa para serem lidas e relidas intimamente, mais um mea culpa por ter nascido de família abastada, do que notas para serem publicadas – e nesse caso publicá-las foi como uma traição. Algumas vezes isso fica bem claro como na nota número 10: “Um jovem poeta veio visitar-me. Era muito pobre, vivia do seu trabalho

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literário e me parecia pesaroso de ver a boa casa em que eu morava, o meu criado que lhe trazia um chá bem servido, os meus trajes cortados por um bom alfaiate. Disse: Que coisa terrível é ter de lutar para ganhar a vida, andar à cata de assinantes para a tua revista, de compradores para o teu livro”.

Kaváfis completa este pensamento de modo tão óbvio, ou seja, tenta mostrar (a si mesmo) que a vida abastada e a função de funcionário público bem remunerado eram um empecilho – e não uma vantagem para a sua literatura! Como todos sabem, ser rico é uma chatice (não compre)...

Konstantinos Kaváfis sofreu não só com a imprecisão dessa relação com a arte, mas penou também com a ambiguidade do fato do que era ser grego, nascido no Egito, ter vivido quase a vida toda em Alexandria (uma cidade pequena, segundo ele), ter sonhando com a vida que “homens como eu – tão diferentes – precisam antes de uma grande cidade. Londres, por exemplo”.

Tendo como língua mãe provável o inglês do Egito, a língua pátria o grego dos pais, a língua de adoção o árabe egípcio, lastimava não ter sido educado na França e por não escrever em francês, coisa que naquela época Freud já explicava. Não, não compre, ou melhor, se quiser comprar que compre, não tenho nada com isso, mas acho eu que botei dinheiro fora, isso acho sim.

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WILLIAM SOMERSET MAUGHAM A ARTE DE ESCREVER

“Primeira pessoa do singular” (Editora Record - 1980)

Somerset Maugham é um escritor daqueles cuja técnica de contar histórias lembra os alfarrabistas orientais: ora é o memorialista, ora o narrador onipresente, ora o fabulista. As histórias se espelham continuadas vezes, andam em zigue-zague, dão respiros inesperados e por vezes parecem devaneios. Nada daquela definição de um crítico que li no Caderno Literário do jornal O Globo, de que o conto deve ser como uma porrada! São histórias curtas que se desfibram e correm amenas como as águas do riacho.

Maugham começa o Prefácio com a seguinte advertência: “Rogo ao leitor que não se deixe iludir pelo fato de estas histórias serem contadas na primeira pessoa do singular, supondo que elas tenham acontecido a mim”. Assim, pensa ele livrar-se de vez do vínculo com que a primeira pessoa do singular agarra o narrador à narrativa. No entanto, como que para deixar o leitor desconfiado com essa absolvição, Maugham entremeia as narrativas com singulares enxertos, quando o narrador acaba por confessar a sua atividade de escritor.

Esse estilo lembra em muito o diretor Alfred Hitchcock que promovia aparições rapidíssimas em seus filmes, a ponto de deixar os espectadores sempre em suspense também por esse detalhe. No mais puro estilo Onde está Willy? os seus admiradores ficavam apostando em qual sequência ele apareceria. Ali, numa fila de entrada do cinema, outra vez subindo os degraus do ônibus, sentado num banco de praça lendo o jornal, numa cadeira de engraxate lustrando os sapatos. Com essas súbitas aparições, nas quais a expressão era sempre tão misteriosa quanto o próprio filme, o narigão empinado para o alto, Hitchcock divertia os espectadores ao mesmo tempo em que se divertia.

Também Somerset Maugham aparece de relance nas suas novelas. Outras vezes busca citar outros escritores, fazendo-os personagens da história. Então levanta-se a dúvida, o mistério: deve ou não o leitor acreditar que as histórias contadas na primeira pessoa do singular são autobiográficas? Porque ao mesmo tempo em ele pede “ao leitor que não se deixe iludir” pelas histórias “contadas

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na primeira pessoa do singular, supondo que tenham acontecido a mim”, o texto está constantemente contaminado com referências literárias, tanto diretas quanto indiretas.

Na novela “Para inteirar a dúzia”, lá pelas tantas se lê o seguinte diálogo:

“– Mr. Saint Clair lhe envia os seus cumprimentos e pergunta se o senhor não podia fazer o favor de emprestar-lhe o Almanaque Whitaker.

– Fiquei assombrado.

– Por que julgará ele que eu tenho o Almanaque Whitaker?

– Bem, a gerente disse-lhe que o senhor é escritor.”

De entremeio aparecem Thackeray, Trollope, Dickens e William Black. Os diálogos se sucedem:

“– Desculpe, senhor, mas é verdade que estou falando com o conhecido novelista?

– Sou novelista – respondi – mas que foi que o velou a supor isso?

– Vi o seu retrato nos jornais ilustrados.”

Assim as citações vão se sucedendo, eis algumas delas:

“Não era um humorismo de ideias, nem mesmo de palavras; era algo muito mais sutil ainda, um humorismo de pontuação: num momento inspirado ela havia descoberto as possibilidades cômicas do ponto-e-vírgula, de que fazia abundante e primoroso emprego. Sabia colocá-lo de tal forma que, em sendo o leitor uma pessoa de cultura dotada de um agudo senso de humor, não digo que desatasse às gargalhadas, mas soltava risinhos deleitados, e quanto mais cultura tinha maior era o seu deleite. Diziam os seus amigos que essa forma de humor fazia com que todas as outras parecessem grosseiras e exageradas. Vários escritores tinham tentado imitá-la, mas em vão: qualquer que fosse a opinião que se fizesse de mrs. Albert Forrester, era forçoso confessar que ela sabia extrair do ponto-e-vírgula até a última gota de humor e ninguém lhe chegava aos pés nessa especialidade.” (O impulso criador)

“Minha mocidade lá se foi, tornei-me um homem maduro e não estava longe o dia em que me caberia o qualificativo de idoso; escrevi livros e peças, viajei, tive aventuras, amei, desamei.” (A semente exótica)

“Li os dois livros. Acho que é obrigação profissional do escritor manter-se ao corrente do que os seus contemporâneos escrevem. Estou sempre disposto a aprender e pensei encontrar neles alguma coisa útil para mim. Foi uma

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decepção. Gosto que as histórias tenham começo, meio e fim. Tenho um fraco pela intenção. Admiro a atmosfera, mas a atmosfera sem outra coisa é como uma moldura sem quadro: não tem grande significado. Entretanto, é possível que eu não pudesse apreciar os méritos de Humphrey Carruthers por causa dos meus próprios defeitos e, se descrevi sem entusiasmo os seus dois contos de maior sucesso, a causa talvez esteja na minha vaidade melindrada. Sim, porque eu sabia perfeitamente que Humphrey Carruthers me considerava um escritor sem importância. Estou convencido de que ele jamais leu uma palavra escrita por mim. Bastava a popularidade de que eu gozava para persuadi-lo de que eu não merecia a sua atenção.” (O elemento humano)

“–Bobagem! Por que não escreve uma história e respeito?

– Eu?

– Sabe que essa é a grande vantagem que o escritor tem sobre as demais pessoas. Quando alguma coisa o faz sofrer horrivelmente, quando se sente torturado e infeliz, pode pôr tudo numa história e é surpreendente o conforto e o alívio que retira daí.

– Seria monstruoso. Betty era tudo no mundo para mim. Eu não poderia cometer ato tão vil.

Calou alguns instantes e o vi refletir. Percebi que, apesar do horror que a minha sugestão lhe causava, ele considerava por um minuto a situação do ponto de vista do escritor. Sacudiu a cabeça.

– Não por causa dela, mas por mim. Afinal eu tenho algum amor-próprio. E além disso, aí não há material para uma história.” (O elemento humano)

Por essas e por outras que esse é um prefácio que vale a pena conferir. Com a palavra Somerset Maugham:

“Há, para o escritor, três maneiras de contar uma história. Pode fazê-lo do ponto de vista Divino, como quem sabe tudo que é possível saber a respeito de seus personagens. Vê todas as suas ações e deles conhece os pensamentos mais íntimos. Foi neste plano que se escreveram muitos romances entres os maiores da literatura mundial e foi também nele que se colocaram Maupassant 1 e Tchecov 2 para escrever muitos dos seus melhores contos. É um método simples e bom. Seu inconveniente está na impessoalidade, pois o autor falta ao compromisso, quando começa a comentar pessoalmente os personagens, os respectivos problemas ou atitudes, como o fizeram muito amiúde Trollope 3 e Thackeray 4. Nesse caso ele passa a fazer parte da história exatamente como se fosse um de seus atores. A objetividade dá muitas vezes uma leve sensação de aridez. A objetividade completa é coisa talvez inatingível. Com efeito, ela daria, em resultado, romances de tamanho excessivo e tornaria quase impossível a

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história curta. Todos os personagens são considerados do seu próprio ponto de vista, pois que cada um de nós se reveste de suprema importância para si mesmo e não há razão para que o autor dê mais atenção a este do que àquele. No momento em que escolhe uma pessoa entre várias para fazer uma descrição mais pormenorizada, deixa de ser rigidamente objetivo. Logo que a sua simpatia entra em jogo, ele se torna parcial. É, provavelmente, o interesse dirigido que torna legível uma obra de ficção. “A educação sentimental” de Flaubert 5 é, creio eu, um dos raríssimos exemplos em que o autor alcançou a objetividade completa. Mas o efeito geral é de tédio, porque ao invés de concentrar o nosso interesse ele o dispersou com toda a imparcialidade. Outra dificuldade do método está no sem-número de coisas que o autor deve saber ou fingir que sabe. Seria preciso ter na unha todos os conhecimentos armazenados na Enciclopédia Britânica e estar familiarizado com as profissões de todas as suas personagens. Como isso é impossível, nota-se nele a tendência de se limitar aos ambientes de que tem experiência própria e colocar as suas personagens nos quadros sociais que conhece pessoalmente.

“Outro método de contar uma história – método que por algum tempo gozou de considerável preferência – é fazê-lo do ponto de vista de uma das personagens. Pode ser esta uma das que representam papel essencial na história ou um simples observador – a este último chamarei o método Seu-Amigo-Carlos. Seu-Amigo-Carlos faz o papel do coro dos dramas gregos. Observa e comenta. Está ali para que lhe exponham circunstâncias de que o leitor deve ter conhecimento e de vez em quando toma parte discreta e secundária na ação. É um mensageiro útil. Pode servir para complicar uma situação ou deslindar um mistério. Para o autor, ele apresenta a vantagem de poder ser caracterizado. Existe, contudo, o perigo de que ele lhe dedique demasiada atenção, tornando-o tão interessante que obscureça as pessoas e incidentes sobre os quais está encarregado de lançar luz. Além disso, como ele deve estar envolvido em todas as questões e, no interesse da marcha da história, conservar os ouvidos abertos a tudo que se passa, corre muitas vezes o perigo de parecer um bisbilhoteiro e um intrometido chato. Henry James 6, que fez uso do método com grande perícia, dando-lhe assim a fama de que ele já gozou, nem sempre soube evitar esse escolho. Talvez seja preferível o outro plano, que consiste em narrar uma história através de uma das suas personagens principais ou mesmo do protagonista. É muito natural focalizar neste o interesse e, vendo pelos seus olhos tudo quanto se passa, atraímos para ele a simpatia do leitor. Isso limita o assunto de maneira muito conveniente, pois, quer contemos a história do ponto de vista do protagonista, quer de Seu-Amigo-Carlos, não precisamos dizer ao leitor senão aquilo que a personagem em apreço sabe. Encaramo-la pela face interior e às demais, pela exterior. Só nos interessam as suas impressões sobre elas. É um método cuja economia agrada e a unidade de efeito que dele resulta possui uma elegância formal. O único defeito real que percebo aí é a unilateralidade. Facilmente se tem a impressão de que as outras pessoas da história não são

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tratadas com espírito equitativo. Isso constitui uma desvantagem quando sentimos a necessidade de conhecer o pensamento das outras personagens. Ao chumbar os seus dados o autor provocou o nosso descontentamento.

“Em terceiro lugar, uma história, seja ela comprida ou curta, pode ser escrita na primeira pessoa, e, também neste caso, o narrador pode ser o protagonista ou apenas um observador. O primeiro desses métodos tem sido grande favorito dos autores, desde que se começou a escrever ficção e alguns grandes romances foram escritor dessa forma. Sempre gozou de grande estima na narração de aventuras. Tem muita vivacidade. Sua forma direta é sedutora. Com efeito, quem poderia conhecer melhor os fatos do que aquele que foi seu ator principal? Demais, o efeito de verossimilhança que daí resulta é incomparável. Sempre teve, porém, um pequeno inconveniente: parecia um tanto impróprio de um herói contar seus atos de bravura comprazendo-se nos pormenores e era-lhe difícil expor as conquistas de corações femininos que lhe valeram o seu encanto pessoal e a sua galanteria. Os escritores esfalfavam-se por mostrar, através da boca de um herói, que este era valente, belo, inteligente e generoso. Mas o maior defeito do processo estava em que o narrador tinha grande dificuldade para ganhar vida. Coisa singular: embora ele falasse, amasse, lutasse, estivesse constantemente agindo e contando o que fazia, seus contornos não se definiam. As pessoas a quem encontrava podiam ser criaturas vivas, fáceis de reconhecer, fortemente individualizadas, enquanto ele permanecia estranhamente vago. Tomemos um exemplo apenas: David Copperfield 7 é, sem dúvida, a figura menos notável da vasta galeria em que se diz a personagem principal. Talvez isso não tivesse grande importância em se tratando de livros de aventuras: sentimo-nos tão empolgados pelo que acontece a Gil Blas que não nos preocupamos com o fato de nunca chegarmos a descobrir que espécie de homem ele é na realidade. Quando, porém, o interesse de escritores e leitores começou a se voltar para o romance psicológico, esse defeito tornou-se sério. Quando nossa atenção se focaliza nos estados mentais de preferência aos fatos físicos, não ficar individualizando o protagonista é uma imperfeição fatal. É a isso que atribuo o ter caído em desfavor, nestes últimos tempos, o romance escrito na primeira pessoa hipoteticamente pela personagem principal.

“Só nos resta considerar, pois, o método em que o narrador não é parte essencial da história, mas apenas uma testemunha. É de acordo com ele que estão escritos os contos contidos neste livro. É verdade que, como o método Seu-Amigo-Carlos, expõe o narrador a assumir a aparência de um ocioso intrometido e se ele logra a verossimilhança visada, de forma que o leitor aceite como a mais santa verdade o que lhe dizem, afigura-se muitas vezes aos ingênuos que ele está traindo indignamente segredos alheios. Esta é uma acusação que ele deve estar preparado para receber de bom grado. Por outro lado, como não conta nada a respeito de si mesmo, não há ofensa à modéstia e, visto que o leitor não precisa conhecer coisa alguma acerca do narrador, o fato de ele ser um simples

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manequim não tem importância. O método também tende a estabelecer intimidade entre leitor e escritor. Permite a este introduzir na história um pouco do encanto peculiar do ensaio. Será uma qualidade ou um defeito? Isso é questão de opinião. Quanto a mim, parece-me que quando o fazemos com felicidade, isso estabelece um clima de palestra, um certo “sans façon” capaz de aliviar a tensão de uma história construída em rígida obediência às regras. Também aqui o escritor não tem pretensões à onisciência: limita-se a contar o que sabe e, quando o móvel de uma ação lhe é obscuro ou desconhece um fato, confessa-o francamente. Pode, assim, dar à história um ar de plausibilidade que de outra forma talvez lhe faltasse.

“Descobriram os romancistas que é possível emprestar à revelação gradual do caráter de uma personagem toda a emoção de uma novela policial. É este um elemento relativamente novo na ficção e, para muitos, constitui o seu maior interesse. Se o romancista é onisciente, porém, está fazendo o leitor de bobo quando lhe oculta fatos importantes só para mantê-lo em suspense. Nada há mais exasperante do que ter de esperar trezentas páginas para descobrir uma coisa que o autor já conhecia desde o começo. Mas neste processo, como também no Seu-Amigo-Carlos, o escritor caminha de mãos dadas com o leitor. Não lhe diz senão o que sabe e o leitor compartilha com ele a satisfação da descoberta gradual.

“Ele tem, no entanto, um grande defeito. Em toda história existem cenas a que nem o narrador nem Seu-Amigo-Carlos poderiam ter assistido e diálogos que não lhes seria possível ouvir. Embora se admita que os incidentes tenham sido relatados de forma que ele possa tornar a contá-los com bastante exatidão, é incrível que seja capaz de reproduzir, baseado no que ouviu de terceiros, as palavras textuais que uma pessoa disse a outra. Se for ao ponto de descrever o aspecto das personagens na ocasião em apreço e o que elas sentiam, o leitor estaca abruptamente, tomado de incredulidade. As conversações, ainda quando o narrador esteve presente e tomou parte nelas, são difíceis de aceitar. – Como é possível que ele se lembre de tudo isso? – perguntamos. Mas quando conta uma historia de forma indireta, isto é, quando transmite um caso que lhe foi narrado por outrem, não podemos crer que este narrador, um delegado de polícia, por exemplo, ou um capitão de navio, fosse capaz de se exprimir com tanta felicidade e tanta arte. Rudyard Kipling 8, pelo uso abundante da linguagem dialetal e de um modo de falar que tinha grandes visos de verossimilhança, tratava de encobrir ao leitor o admirável sentido da forma e o instinto quase milagroso do efeito dramático que possuíam os seus simples soldados. Ninguém, cultivou com mais meticuloso cuidado do que Henry James o método Seu-Amigo-Carlos. Alguns acharão, talvez, que não valia a pena dar-se tanto trabalho e que seria mais preferível fazer como Joseph Conrad 9, por exemplo, não tratando a convenção com mais respeito do que ela merece. O capitão Marlowe é inteiramente inverossímil e contudo o leitor razoável acredita nele.

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“Toda convenção tem suas desvantagens. Estas devem ser disfarçadas na medida em que tal coisa for conveniente, mas quando não o podem ser, senão em detrimento de fatores mais importantes, torna-se forçoso aceitá-las. O autor pega então o leitor pelo gasganete e o obriga a engoli-las. Por sorte, encontra-o geralmente disposto a fazê de muito bom grado.”

NOTAS:

1 - Guy de Maupassant (1850-1893) um dos maiores contistas de todos os tempos. Sua obra é conhecida pelas situações psicológicas e pela crítica social. Maupassant foi, nos últimos anos do século XIX, o escritor mais lido no mundo. Rico e famoso, ele teve muitos casos amorosos, mas a sífilis o atormentou por mais de uma década, causando pesadelos, angústia e alucinações. Em 1892, Guy de Maupassant tentou o suicídio. Morreu em Paris no ano seguinte, aos 43 anos de idade, sendo enterrado no cemitério de Montparnasse. 2 - Anton Tchecov (1860-1904) Um dos mais famosos novelistas e dramaturgos russos, considerado um dos mestres do conto moderno. Em 1888 foi publicado o seu romance "A Estepe". No ano seguinte a tuberculose se agravou e ele perdeu o seu irmão Nikolai, vítima de tifo e tuberculose, tornando-se melancólico e pessimista. Em 1904 faleceu na Alemanha, vítima de tuberculose. Foi sepultado no cemitério Novodevichy, em Moscou.

3 - Anthony Trollope (1815-1882) foi um dos mais respeitados novelistas ingleses da época vitoriana. A obra mais apreciada de Trollope, conhecida como As novelas de Barchester, gira em torno do condado imaginário de Barsetshire, mas ele também escreveu novelas penetrantes sobre conflitos políticos, sociais e sexuais de sua época.

4 - William Makepeace Thackeray (1811-1863) considerado como o segundo melhor novelista da literatura vitoriana, depois de Charles Dickens. Sua obra mais lida é A feira das vaidades (Vanity Fair). Nesta novela, que continua sendo muito lida, foi capaz de satirizar a natureza humana de forma suave e carinhosa.

5 - Gustave Flaubert (1821-1880) um dos mais famosos escritores franceses, prosador importante, marcou a literatura de seu país com a profundidade da análise psicológica e o senso de realidade. Também com o seu estilo marcante, em grandes romances (“Madame Bovary”, “A educação sentimental” e “Salambô”), que Flaubert descreveu, com lucidez, o comportamento social da época.

6 - Henry James (1843-1916) sua literatura tem três etapas: a primeira, na década de 1870, relata o confronto entre o Novo Mundo e os valores do Velho

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Continente; a segunda, ele escreveu novelas de conteúdo político e social, sobre reformadores e revolucionários. Depois publicou peças de teatro, encenadas sem êxito e voltou à prosa com "A Morte do Leão" e "A volta do parafuso". Na última e mais importante etapa, explorou a consciência humana. A prosa torna-se densa, a sintaxe intrincada, características de grandes obras como "As Asas da Pomba", "Os Embaixadores" e "A Taça de Ouro".

7 - David Copperfield, famoso romance de Charles Dickens (1812-1870). A história narra a vida de David Copperfield da infância à maturidade. David nasceu em 1820, órfão de pai. Sete anos após, sua mãe se casa com Edward Murdstone. David não simpatiza com o padrasto, que o espanca. Muitos elementos descritos no livro se parecem com a vida de Dickens, sendo considerada a mais autobiográfica de suas obras. No prefácio da edição de 1867, Charles Dickens escreveu "… like many fond parents, I have in my heart of hearts a favourite child. And his name is David Copperfield".

8 - Rudyard Kipling (1865-1936) foi o primeiro britânico a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Deve sua fama aos contos, fábulas e romances de aventura. Como jornalista na Índia, descreveu suas experiências em estilo impressionista e ganhou popularidade com os romances “O Livro da Selva” e “Kim”. Elogiava o imperialismo britânico e defendia a existência da Comunidade Britânica e a missão civilizadora de seus compatriotas.

9 - Joseph Conrad (1857-1924) Józef Teodor Konrad Korzeniowski nasceu na Ucrânia, de família patriota, empenhada em libertar a Polônia do domínio russo. Em 1878 mudou-se para a Inglaterra, fez carreira na Marinha e ganhou cidadania inglesa, com o nome Joseph Conrad. Um dos maiores estilistas da prosa, Conrad nunca chegou a dominar a língua inglesa. Seus principais livros são: “Lord Jim”, “Nostromo”, “O Agente Secreto”, “Sob os Olhos Ocidentais” e “A Linha de Sombra”.

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WILLIAM STYRON SHADRACH

“Uma manhã em Tidewater” (Editora Rocco - 1997)

É o próprio William Styron quem explica ao leitor a natureza dessa reunião de três novelas:

“Cada um destes relatos espelha a experiência do autor aos vinte, dez e treze anos de idade. As novelas compreendem uma reconstrução imaginativa de eventos reais e estão ligadas por uma cadeia de lembranças.

São reminiscências de um único lugar: Tidewater, na Virginia dos anos 30. Era uma região ocupada com os preparativos para a guerra. Não se tratava da lendária Velha Virginia, pacata, mas parte do movimentado Novo Sul, onde a indústria e a presença de militares começavam a transgredir os limites do jeito bucólico de viver.

Por ironia, tal intromissão, sem dúvida, ajudou muitas pessoas, brancas e negras, a sobreviverem aos piores momentos da Grande Depressão”.

São três novelas: “Dia L”, “Shadrach” e “Uma manhã em Tidewater”, que dá título ao volume. O mais impressionante desses relatos é sem dúvida o que retrata a figura de “Shadrach”. Vamos mergulhar na experiência desse estranho personagem...

Como se viu no prefácio, é em “Shadrach” que William Styron relata a estranha e inesquecível experiência que sobreviveu em sua memória de dez anos de idade:

“Meu décimo verão na Terra, no ano de 1935, jamais deixará meus pensamentos, por causa de Shadrach e da maneira como iluminou e escureceu minha vida, então, e desde então. Ele apareceu como se saísse de lugar algum, chegando no meio da tarde do vilarejo onde cresci em Tidewater, Virgínia. Ele era uma aparição negra de uma antiguidade extraordinária, débil e paralítico, desdentado e sorridente, uma caricatura de uma caricatura numa época em que todo negro ancestral, rangente, posto de lado, era (aos olhos da sociedade, não

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apenas para os olhos de um pequeno garoto branco sulista) uma mistura de Stepin Fetchit e Uncle Remus.”

NOTAS:

[Stepin Fetchit (1902-1985) – Ator negro, de controversa atuação, mas talentoso, cujo sucesso o fez milionário.

Uncle Remus – Um dos muitos “Tios” negros que permeiam o folclore norte-americano. Uncle Remus ganhou vida em mãos de Joel Chandler Harris (1848-1908), criador de histórias que o fizeram famoso. Entre nós, porém, o “Tio” mais conhecido é Uncle Thomas, o Pai Tomás do romance e filme “A cabana do Pai Tomás”). “Naquele dia, quando pareceu materializar-se diante de nós, quase como se houvesse surgido do nada, nós jogávamos bola de gude. (...) Assim, entre outras coisas, minha lembrança de Shadrach está presa à sensação de cristal lapidado das bolas de gude e o cheiro da terra fria e nua debaixo de um plátano, num dia quente, abrasante (...).”

“Shadrach apareceu então. Nós percebemos de alguma maneira sua presença, olhamos para cima e o vimos ali. Não o tínhamos ouvido se aproximar, chegara silenciosa e portentosamente como se tivesse descido em algum aparato celestial operado por mãos invisíveis. Era estarrecedoramente preto. Nunca vira um negro com esse matiz impenetrável: era uma negritude de tamanha intensidade que não refletia qualquer luz, conseguindo uma obliteração virtual dos traços faciais e adquirindo uma nuance misteriosa que tinha o cinza azulado das cinzas. Debruçado no pedaço de uma porta, estava sorrindo para nós da carroceria enferrujada de um Pierce-Arrow aos pedaços.

NOTAS:

[Pierce-Arrow – Automóveis fabricados em Buffalo (NY) entre 1901 e 1938]

“Era um sorriso abençoado que desvelava gengivas vermelhas mortas, os cotocos amarelados de dois dentes e uma ágil língua molhada. Por um bom momento não disse nada, mas, continuando a sorrir, esfregando contente a virilha com uma mão entortada e enrugada pela idade: os ossos se mexiam por debaixo da pele preta, mostrando claramente o desenho do esqueleto. Com sua outra mão, segurava firmemente um cajado.

“Foi quando me vi perdendo a respiração maravilhado com a sua idade, que era com certeza incomensurável. Ele parecia mais velho que todos os patriarcas do Genesis cujos nomes inundaram minha memória numa litania na escola

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dominical: Lameque, Noé, Enoque e aquele sempiterno fóssil judeu, Matusalém.”

Styron maneja a memória como se fosse ficção. Para dar suporte à figura de Shadrach ele inclui na lembrança os seus vizinhos – os Dabneys – típica família sulista, residente numa chácara, composta de quatro meninas “louras, cheirosas com seus perfumes Woolworth, viçosas, com seus traseiros luxuriantemente cheios. (...) Ah, aquelas belezas desaparecidas...”

NOTAS:

[Perfumes Woolworth-Referência aos produtos que levavam a marca da F. W. Woolworth Co., fundada por Frank W. Woolworth (1852-1919), cujos estabelecimentos resistiram aos modernos shoppings até 1997, quando sucumbiu ao dinossauro Wal-Mart]

Por outro lado, a família incluía três meninos (três “Toupeiras” por apelido) dos quais o mais jovem deles, Toupeira Pequena, era o companheiro de brincadeiras e jogos que vinha à lembrança.

“Era com o mais jovem dos três Toupeiras com quem estava jogando bola de gude, quando Shadrach fez sua aparição. Toupeira Pequena era uma criança de uma feiúra assombrosa, compartilhando com seus irmãos uma mistura de olhos saltados devido à tireóide, nariz amassado, parecendo uma colher, e uma mandíbula saliente a qual (falo em retrospectiva), poderia corresponder graciosamente à descrição de Cesare Lombroso de fisionomia criminosa.”

NOTAS:

[O controverso médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909), cujas teorias sobre criminosos se iniciaram com a publicação de “O homem delinquente” em 1876. As ideias de Lombroso, no entanto, influenciaram e modernizaram a polícia científica.]

Com “Uma manhã em Tidewater” William Styron honra a tradição das letras norte-americanas em que sobressaem grandes contistas, como Edgar Allan Poe, Mark Twain, Sherwood Anderson, William Saroyan, Barry Hannah, J. D. Salinger, Ernest Hemingway, uma lista enorme, sem fim. Não devemos esquecer que a literatura brasileira tem excelentes contistas, todos à altura dos maiores nomes do conto universal.

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STEFAN ZWEIG ESTÁ DE VOLTA

Apesar de nunca ter sido totalmente relegado ao esquecimento, Stefan Zweig passou muito tempo sem ter sua obra reeditada de modo consistente. Em razão dessa descontinuidade era natural ficar fora das livrarias, dos suplementos culturais, das resenhas literárias. Para não dizer que foi enterrado e esquecido de vez, os seus livros, no entanto, sobrevivem em quase todos os sebos, principalmente em edições saídas na década de 40. Agora se pode dizer com certeza: Stefan Zweig está de volta.

Se quisermos detectar o elemento detonante desse acontecimento, chegaremos, sem dúvida, à biografia escrita em 1981 por Alberto Dines. A importância de “Morte no paraíso” para a bibliografia sobre Stefan Zweig foi tão marcante que obrigou o seu autor a se manter em permanente atividade, coletando novos dados para uma nova edição. Com significativas inserções, muito aumentada, atualizada com informações inéditas sobre o escritor austríaco e editada pela Rocco em 2004, a nova edição de “Morte no paraíso” se transformou em best-seller. A última informação é que a tradução para o alemão já foi lançada e corre Europa.

O livro de Alberto Dines serviu de base para duas realizações no cinema, ambas do diretor paranaense Silvio Back. Ademais disso tudo, a casa onde Stefan Zweig passou seus últimos dias – na Rua Gonçalves Dias nº 34, no bairro Duas Pontes em Petrópolis (Rio de Janeiro), para onde se mudou em 1941 – foi tombada e está sendo transformada no Espaço Cultural “Casa Stefan Zweig”, projeto que também é capitaneado pelo incansável Alberto Dines.

Quanto às suas obras, após algumas reedições promovidas pela Record (uma homenagem do editor Abraão Koogan a Stefan Zweig), começam a sair as edições de bolso da L&PM Pocket, com as novelas mais populares, com textos revisados, atualizados e mesmo traduzidos diretamente do alemão. Nada mais auspicioso: tanto a homenagem do primeiro editor de Zweig no Brasil, quanto as edições de bolso da L&PM fazem justiça ao escritor austríaco que passou para a história literária do Brasil como o primeiro best-seller estrangeiro em nossas terras.

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As sucessivas e descontroladas reedições que a Editora Guanabara lançou nas livrarias durante as décadas de 1930 e 1940 deixaram espantado até mesmo o escritor, que ajuntou mais esse significativo detalhe ao seu estranho caso com nossa terra. Até hoje as várias explicações sobre esse sentimento entre Zweig e o Brasil se ajuntam aos milhares de textos sobre o escritor. Mas nenhum deles fixa de fato qual a raiz, a razão determinante, o anelo espiritual, o tipo de paixão, a magia que se incutiu na mente de Stefan Zweig, que o fez finalmente escolher o Brasil como sua última residência. Há indícios que a escolha foi pensada, coerente com seu desejo de harmonia e paz.

Haveria decerto o sentimento milenar que todo judeu carrega na alma, que é o chamado incontrolável ao êxodo, a vagar pelo mundo em aventuras, a errar de terra em terra e todos os demais elementos que alimentam a utopia da terra prometida. Stefan Zweig acompanhou de corpo presente, no nascedouro, a ideia do Estado Judeu Independente encetada por Theodor Herzl. Mesmo que em princípio Herzl predicasse a mudança de mala e cuia para a Palestina, haviam algumas perspectivas que direcionadas para a África (Uganda, então colônia inglesa, foi sugerida pelos britânicos). Depois, já em 1939, o próprio Zweig andou, em viagens que pretendia deixar em segredo, cortejando o Portugal de Salazar – tentando fazer decolar a ideia de fundar uma colônia judaica em Angola.

É totalmente possível que nesse mesmo ano de 1939 Stefan Zweig tenha dado uma esticada até o Brasil. Todos os sonhos precisam de esperança! Já na época o Brasil havia se tornado para ele a real e verdadeira Ein Land der Zukunft – Uma terra para o amanhã. Mas quem estava dirigindo esses países era, por um lado, o heteromórfico Oliveira Salazar, que pendia entre os interesses da Inglaterra, Alemanha e Portugal, impossível de ser cooptado. Por outro lado, o Brasil era governado pelo ainda ditador Getúlio Vargas, que se sustentava sem base democrática, herança de uma revolução por muitos considerada ilegal e que, ademais, recebia alguns afagos da Alemanha.

Zweig viu a ideia de Herzl prosperar entre os pobres, os perseguidos, entre aqueles que já não tinham nenhuma esperança. Mas viu também o amigo – que acolheu seus primeiros trabalhos literários – enfrentar a oposição dos banqueiros ricos, dos grupos que se opunham à ideia do semitismo, daqueles que tinham crença na vertente da assimilação e dos religiosos ortodoxos. Para estes dizia a tradição histórica que somente o Messias poderia conduzir o povo de Israel à Terra Prometida.

Mas parece que a ideia de Zweig sobre o Brasil não era somente direcionada nesse sentido. Quando em 1936 aceitou participar da reunião do Pen Club Internacional, em Buenos Aires, uma das razões foi a curiosidade e a vontade que ele tinha de conhecer o Brasil. De fato, nessa primeira viagem mais importante em sua biografia não foi o encontro de Buenos Aires e sim as visitas

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que ele fez ao Brasil. Mesmo rapidamente pôde conhecer São Paulo e Rio de Janeiro, algo do Nordeste também – o que desde logo deixava uma visão elástica da demografia brasileira.

Stefan Zweig – que já conhecia os EUA – pôde muito bem perceber como o Novo Mundo se apresentava em possibilidades para os judeus escorraçados da Alemanha e Áustria, desde o pogrom inicialmente ocorrido no Leste Europeu, com raízes polacas e ucranianas, até chegar à política radical e agressiva do Nacional-Socialismo. Os EUA foram invadidos pelos judeus capitalistas que trataram de se concentrar em Nova York e os que viram na nascente Hollywood um eldorado da arte e da fama. Na Argentina encontrou uma Pequena Europa, uma réplica total do europeísmo, nova, mas muito branca e capaz de repetir os azedumes da discriminação.

Quando chegou ao Brasil, porém, deu-se a iluminação. Um clarão de novidade penetrou-lhe a alma. O povo acolhedor, o suor, a intimidade imediata que existia, o respeito ao estrangeiro, aquele sentir-se desde logo uma pessoa local, um nativo. Tudo isso não só aumentou as esperanças de Zweig quanto ao Brasil, mas também confirmou os sentimentos, inicialmente teóricos, que tinha sobre essa estranha terra. E mais: aqui tudo estava cru, muita coisa ainda por fazer, um mundo por criar, o desconhecido por explorar. Era o paraíso, o Éden urbano, que a ele se anunciava em pleno processo de criação.

Foi assim, a partir dessa primeira viagem, encantado com a solução social e racial que no nosso país havia sido imposta – não por governos e sociólogos, mas pela própria população – que Stefan Zweig iniciou seu encantamento pelo Brasil. Ao conhecer essa mistura de sabores, raças, cores e sons, jamais por ele vista em nenhuma parte do mundo, ao constatar que era verdadeiro aquele sentimento trazido na alma, não se sabe de onde, tudo isso deixou Stefan Zweig completamente enfeitiçado, fazendo alinhavar-se de corpo e alma com a terra brasileira.

Pois agora que as editoras nos prometem uma nova leitura das obras do primeiro best-seller estrangeiro no Brasil, podemos saudar com alegria:

– Bem vindo à sua terra Stefan Zweig!...

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VINCENT VAN GOGH CARTAS A THEO

“Cartas a Théo (L&PM Pocket - 2007)

Vocês certamente conhecem aqueles prefácios feitos para irritar o leitor. Pois a editora L&PM, nesta nova edição de “Cartas a Theo”, dá uma contribuição ao tema, num prefácio que não está sequer assinado. Não pelo entrecho em si: o prefácio trata de resumir a vida do pintor e sua relação fraternal e amorosa com o irmão Theodore van Gogh, um vínculo cuja importância na vida de Vincent mostrou-se transcendental. No entanto, lá pelas tantas, o prefaciador resolve extrapolar e – vaidade das vaidades! – parte para criticar a escrita de van Gogh.

Ora, em princípio pergunta-se: a correspondência é uma obra literária passível de crítica? Fica logo claro que não é – quem escreve uma carta está transmitindo uma palavra pessoal, um sentimento íntimo, algo que não deve ultrapassar as margens do papel, nem as fronteiras da privacidade. São preocupações imediatas, muitas das quais ganham vida e morrem no mesmo instante que a comunicação se completa. Uma carta não é escrita com a preocupação literária e mesmo a maioria daquelas que comportam essa intenção morre inédita, transformada em pó pela corrosão fatal do tempo.

Não obstante o prefácio concorrer para a visão da vida e da comoção pela qual van Gogh passou, lutando para ser reconhecido – não por seus contemporâneos – mas por si mesmo (não se trata de um sofisma), lá nos entremeios vem o tranco:

“Como nas cartas anteriores, escritas em holandês, seu texto continua duro, ruim. Este grande pintor jamais teve o dom da palavra. Em seu estilo entrecortado e reticente, ele fala de suas idas e vindas, de seu método de trabalho, das características da região, do grande sol, dos hábitos das pessoas, de suas leituras, de sua casa e finalmente de seu sonho de fundar com os amigos um ateliê comum. Nelas também seguimos o despertar de uma crescente exaltação, sob a ação de um sol ardente”.

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É ou não é um tratamento irritante? Num mesmo parágrafo o prefaciador condena o “grande pintor [que] jamais teve o dom da palavra” e logo em seguida ignora que a matéria-prima de um pintor deve ser a pintura e não a escritura! Sem dúvida uma típica atitude ultracrepidária... Vocês certamente se lembram daquela história que redundou na célebre frase: “Sapateiro, não vá além da sandália”, alusão feita ao incidente que, segundo Plínio, o Velho ocorreu com Apeles, famoso pintor da Grécia.

Apeles, que costumava expor suas pinturas na porta do ateliê para observar a reação dos passantes, notou que um sapateiro examinava o pé de uma figura. Ao indagar-lhe o que tanto atraiu sua atenção, foi avisado que tinha se enganado quanto à fivela da sandália. Apeles agradeceu o reparo e apressou-se a corrigir o erro. Porém, o sapateiro não conteve a vaidade e começou a fazer outras censuras ao quadro, mas Apeles o criticou com a frase que se tornou lapidar.

Não vamos exagerar com o ilustre prefaciador, posto que ele mesmo se redime ao longo da introdução, contrapondo textos que realizam interessantes efeitos sobre a vida de van Gogh. Mas o que exigir que um pintor escreva? Um romance? Peça a um padeiro que escreva sobre sua profissão e veremos que o exercício de fazer um pão se tornará uma obra de arte. Pois van Gogh consegue transformar as “Cartas a Theo” numa verdadeira universidade sobre a arte de pintar. E aqui o que menos se vê é a descrição da técnica apurada, mas a excelência do primado de ser artista desde a raiz até ao fruto.

Van Gogh trata de exercitar todas as sensações que antecedem uma obra de arte, analisar todas as tentações que a facilidade da primeira impressão traz, as impossibilidades do artista que se abstém de rabiscar, iludindo-o sobre a realização em si – a tudo isso ele resiste, não se deixa enganar, parte para os estudos, alguns dos quais atesta que poderiam já ser apresentados como uma obra de arte. Mas van Gogh resiste e resiste. Procura a cor, discute sobre a mistura, trata da perspectiva, dos tons, busca, antes de tudo, educar o olhar para a arte de pintar como um compositor educa o ouvidos para as sonoridades.

“Vêem-se aqui, ao redor dos jardins, dos campos e das lavouras, aquelas sebes de espinho negras, como em nossa região no Brabante se vêem as matas de corte e pequenos bosques de carvalho, ou na Holanda, cercas de troncos de salgueiro. Com a neve destes últimos dias, isto dava o efeito de escrituras sobre papel branco, como as páginas do Evangelho...”

Isso é quase poesia, diria, isso é poesia. Pois, como achar que o homem não tinha o dom da palavra? Podemos dizer que van Gogh é um padeiro das cores?

“Quando misturo vermelho e verde até chegar ao verde avermelhado ou vermelho esverdeado, obtenho, acrescentando o branco, o verde-rosa ou o rosa

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esverdeado. E, se você quiser, acrescentando o preto, obtenho o verde-castanho, ou o castanho esverdeado. Está claro ou não?”

Van Gogh discorre com o irmão a participação dos pintores antigos na história da arte e inclui os contemporâneos entre aqueles que influenciaram seu trabalho. Com o irmão ele discute a cor, o preto, o branco, a dificuldade inicial que tem em traduzir para a tela o pensamento e a visão da paisagem extemporânea. Essa mesma dificuldade que tem o escritor, o poeta, em transpor para o papel toda a gama de imagens que correu o cérebro em busca da frase perfeita.

Como disse van Gogh na última carta:

“Pois é, realmente [os pintores] só podemos falar através de nossos quadros. (...) em meu próprio trabalho arrisco a vida e nele minha razão se arruinou em parte.”

Deixar de lado as discussões fúteis, comprar, ler e andar a descobrir o interior mais profundo desse pintor que não teve o dom da palavra, mas que em 652 cartas que escreveu deixou um legado que nenhum pintor de nenhuma época pode recusar a aceitar, tantas são as informações, técnicas, estéticas, éticas e morais sobre as quais trafegam todas as artes, inclusive a pintura.

“Cartas a Theo” traz ainda um importante índice cronológico e um glossário minucioso, adendos que configuram todos os indícios que negam a fama de gênio e louco – e vice versa – com que a figura de Vincent van Gogh chegou até nós, se é que se pode chamar de gênio um pintor que avançou o seu tempo e chamar de louco alguém cuja lucidez se manteve até nos últimos momentos de vida.

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GARCIA MÁRQUEZ POETA, REPÓRTER, ROMANCISTA

“Viver para contar” (Editora Record - 2003)

Vivir para contarla, part one. Assim poderia se chamar o livro de memórias de Gabriel Garcia Márquez. Aliás, se você já o conhece das diversas obras de ficção e reportagens que circulam por aí, prepare-se para reler tudo de novo, tudo por causa deste livro autobiográfico. Nele Gabo – como é chamado pelos íntimos – pretende desmemorializar seus primeiros passos como escritor de reportagens e editoriais – e também a vivência, o entrelaçamento social, os entraves políticos ou não, em que se viu enredado durante a juventude, nos primórdios da vida literária. Primeiro como poeta, por supuesto...

Pecado inominável: a edição sai sem nenhuma nota de pé de página nem índice remissivo. Sem esse oxigênio, imprescindível alimento para as obras memorialistas, sua maior virtude passa a residir nas raras, mas importantes dicas sobre o ato da criação, tanto de ficção (sobre a qual Gabo confessa jamais ter total domínio), até nos afazeres domésticos, como deve o escritor proceder, deveres e obrigações para com a vida jornalística. A gente entra no livro de chofre – como se fosse uma de suas ficções – quando termina se tem a impressão de estar na plataforma do metrô à espera do vagão com a part two.

Gabriel Garcia Márquez, por não conseguir se mostrar igual aos demais autobiografadores, relata esta parte de sua vida de modo tão confuso quanto suas ficções. “Viver para contar” não é nem memória nem autobiografia, é uma reportagem sobre o passado. A história começa não se sabe quando, dá voltas ao seu mundo em oitenta ou mais dias, circula sobre rodas como um skatista, um calendário einsteiniano...

Nessa volta e meia o leitor vai sendo absorvido, digerido, assumindo vozes de autor e personagem. Sem carecer de demônios interiores basta a Gabo discorrer sobre as entidades vivas – parentes, afins, vizinhos, aderentes –

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circulam nas casas, nas ruas, nas igrejas, nos rios, nas cidades eternas, para realizar o tempo passado. Aracataca é o campo arado, a seara e a colheita.

Durante toda a existência Gabo foi perseguido por uma congênita timidez. Por isso sempre se saía bem no jornalismo, em matérias informativas e editoriais feitas coletivamente, ao abrigo do anonimato. Essa timidez incurável faz com que considere os seus contos imperfeitos e traz dificuldade de narrar a própria vida existida – que afinal é a dele mesmo.

O resultado é que algumas passagens se mostram dúbias, indefinidas, no lusco-fusco, como nas estranhas ficções do mago colombiano. Nessas relembranças o espaço tempo não obedece a nenhum ritual senão o da imaginação e resulta que as memórias de Gabo seguem num zigue-zague perpétuo, assim como vai esta croniqueta. Elucidem-na.

Capítulo a parte merece a tradução. O espanhol tem sutilezas capazes de atropelar qualquer tradutor mais distraído. Esta edição, definitivamente feita às pressas, na ânsia de dispor a obra nas livrarias no ano do lançamento, minou a tradução com traças e cascalhos, alguns quase invisíveis, outros quase insensíveis. Quem leu a edição brasileira do inesquecível romance Cem anos de solidão na tradução impecável de Eliane Zagury, há de concordar que Gabo merecia coisa melhor. O paradoxo é que essas memórias são imprescindíveis para conhecê-lo. Comprar, ler... E aguardar a parte II.

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MEMÓRIAS SÃO COMO BALAS

“Confesso que vivi” (Editora Bertrand Brasil - 2010)

Pablo Neruda aproveitou bem esse seu contar de memórias, que começa com as andanças de um jovem buscando a vida nas florestas chilenas, até chegar ao senhor barrigudo exilado que retorna para morrer na “pátria doce e dura”.

Antes mesmo de ler esse ‘Confieso que he vivido’, escrevi algures um artigo no qual redescobria o lado mais humano da poesia de Pablo Neruda. Na verdade o escrito refletia ardorosa reação a uma referência de Floriano Martins, qualificando Neruda como “um grande mal poeta”...

No artigo citado (Pablo Neruda ou a Poética do coração) eu dizia:

“Como se mede um poeta? Como se mede, a uma distância considerável o poeta e sua obra? Retiram-no do espaço e tempo a que estava confinado, do qual fazia parte? Exclui-se a geografia física, foco da paisagem em derredor? Elimina-se a ideologia que entendeu, teve afinidade e abraçou? Apaga-se a utopia da igualdade social que fere e machuca quando se torna consciente? Destrói-se a construção política que assimilou, o sonho que erigiu a sangue e suor? Como se mede o poeta sem misticismo, sem religiosidade, sem eternidade? A imortalidade de Neruda vai durar porque, no momento em que lhe foi dada a bênção das musas, soube interpretar como nenhum o anseio da terra e dos povos em derredor. No momento certo trouxe à lembrança todo o mal que o invasor (especialmente o espanhol), causou. Sem leviandade.

Essas considerações vêem empiricamente após leitura do artigo de Floriano Martins “Neruda”. Parece que para alguns o poeta chileno representa um ícone – mas também um incômodo. O que se pretende é destotemizá-lo. Não se pode derrubar o altar de qualquer um senão daquele que conseguiu abalar a estrutura da poesia hispânica. Frívolo, inconsequente, desmesurado. Tudo que Floriano Martins escreveu e citou de uma dezena de críticos importantes a respeito de Pablo Neruda é absolutamente verdadeiro”.

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Pablo Neruda ampliou as fronteiras da poesia latino-americana. Ninguém reconhece oficialmente, mas existe um abismo entre a poesia brasileira e a poesia hispano-americana – como de resto na política e nas artes em geral. Com uma voz ao mesmo tempo índia e européia, o poeta dedicou-se a cantar o continente – Canto General – sem esquecer as raízes ibéricas. Por ocasião da impressão dramática do seu livro Espanha no coração – sobre o qual Neruda dedica nas memórias todo o Caderno 5 – o poeta assiste à derrocada da república espanhola para as tropas do general Franco. Na mesma ocasião que Federico Garcia Lorca é fuzilado em Granada, todo o batalhão formado por artistas, poetas, escritores, pintores, abandona a as trincheiras partindo para o exílio na França. Entre nós, o poeta Manuel Bandeira reflete de imediato o sentimento universal de liberdade que desponta naquela poesia:

NO VOSSO E EM MEU CORAÇÃO Manuel Bandeira Espanha no coração: No coração de Neruda, No vosso e em meu coração. Espanha da liberdade, Não a Espanha da opressão. Espanha republicana: A Espanha de Franco, não! Velha Espanha de Pelayo, Do Cid, do Grã-Capitão! Espanha de honra e verdade, Não a Espanha da traição! Espanha de Dom Rodrigo, Não a do Conde Julião! Espanha republicana: A Espanha de Franco, não! Espanha dos grandes místicos, Dos santos poetas, de João Da Cruz, de Teresa de Ávila E de Frei Luís de Leão! Espanha da livre crença, Jamais a da Inquisição! Espanha de Lope e Góngora, De Goya e Cervantes, não A de Filipe Segundo Nem de Fernando, o balandrão! Espanha que se batia Contra o corso Napoleão!

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Espanha da liberdade: A Espanha de Franco, não! Espanha republicana, Noiva da revolução! Espanha atual de Picasso, Do Casals, de Lorca, irmão Assassinado em Granada! Espanha no coração De Pablo Neruda, Espanha No vosso e em meu coração! (Belo Belo) E continuo, no meu artigo, tentando entender o porquê de comparar Neruda a Vicente Huidobro, um poeta que não tinha a mínima ligação emocional com as raízes índias do Chile – que são fundas. Pois neste Caderno 5 das Memórias o próprio Pablo Neruda elucida, sem mágoa, essa contradição, quando descobre as intrigas que Huidobro fazia, enchendo a cabeça de César Vallejo ‘de invenções contra mim’...

Além do mais, existe a necessária contradita temática, tão necessária à poesia:

“O próprio Floriano Martins o reconhece ao citá-lo, quando comparado com o classicismo moderno de Vicente Huidobro. Mas, dá para imaginar a leitura de Gonçalves Dias sem a ótica edênica e indígena que sempre o acompanhou? Como chegaria até nós a leitura de Casimiro de Abreu sem a viagem feiticeira de uma só via? Como seríamos capazes de ler Joaquim de Sousândrade sem a contingência intercontinental a que foi submetido, impregnando-o de um futurismo paranormal? E mais próximo a nós, como ouviríamos Mário de Andrade, se excluído do urbanismo erótico desenfreado a que se escravizou como um sacrificado? E ler Brecht sem o marxismo dialético? Eis um exercício que se pode fazer ad infinitum, à exaustão, esgotando todas as fábulas possíveis. Finalmente, como não se pode falar mal de un pequeño malo poeta, vamos crescer à custa de un gran malo poeta – pois tudo tem princípio. Em frente!”

No entanto, essa digressão cai por terra quando se lê o Caderno 11 das memórias “A poesia é um ofício”. A criatura supera a criação? Não neste caso, porque Pablo Neruda, em pleno exercício de sua profissão, refletiu muito sobre os poetas e a poesia de seu tempo. Escolheu com a cabeça fria (se pode dizer-se isso de Pablo Neruda) o caminho que, como poeta, tinha escolhido para trilhar. O mundo e o homem estavam em sua agenda poética, a política e o humanismo, o espírito e a vida, o sonho e a utopia. Como sempre a escolha recaiu sobre o tempo vivido.

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Diz o poeta numa nota introdutória:

Estas memórias ou lembranças são intermitentes e, por momentos, me escapam porque a vida é exatamente assim. A intermitência do sonho nos permite suportar os dias de trabalho. Muitas de minhas lembranças se toldaram ao evocá-las, viraram pó como um cristal irremediavelmente ferido.

Eu:

Neruda traz na poesia a tradição dos payadores, poetas populares cuja matéria prima é a emoção.

Pablo Neruda:

As memórias do memorialista não são as memórias do poeta. Aquele [o memorialista] viveu talvez menos, porém fotografou muito mais e nos diverte com a perfeição dos detalhes: este [o poeta] nos entrega uma gaveta de fantasmas sacudidos pelo fogo e a sombra de sua época.

Talvez não vivi em mim mesmo, talvez vivi a vida dos outros.

Eu:

Algo que se pode dizer de Neruda – um tiquinho parecido com Mário de Andrade – é que poeta como ele não existe mais. Ninguém mais adota a poesia do coração, que parece com o evangelho: uma poética estranha e familiar, ao mesmo tempo ingênua e amiga. Ninguém faz a poesia que significa “amor à beleza”, essa beleza que se confunde com o bem. O que diremos da poética do coração? A poética do coração é essencialmente a interpretação contemplativa da vida. Simplificando e fazendo abstração das diferenças, pode-se dizer que a poética do coração opõe a corrente ativa, à corrente intelectualista e monástica, sem deixar de colocar a liberdade como fundamento. Preconiza fundamentalmente um caminho mais curto e mais fácil de poética, de volta ao reino interior, para se impregnar de expressões familiares. O método não se diz inédito, invoca toda uma tradição, menos concernente à vida poética solitária, em favor da solidariedade. O poeta “reconduz o espírito ao coração” e “une-o à alma”. Variante de fórmulas clássicas atualizadas em nosso tempo, a poética do coração não é algo novo e sim baseado em perspectivas anteriores. Trata-se de “guardar o coração pelo espírito” e “reconduzir o espírito da razão para o coração”.

Pablo Neruda foi uma decepção para esses críticos, que são tenazes e intransigentes na análise técnica e erudita, mas que se mostram bem fracotes quando esbarram naqueles que escapam do academicismo tipo cu-de-ferro e alcançam um nível de popularidade. Pablo Neruda – popular e ao mesmo tempo erudito – ganhou o Prêmio Nobel como uma comenda de guerra. Em suas

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memórias ele confessa ter preferido viver a vida de seu tempo, defender a sua pátria e o seu povo, a submeter-se à tirania, tanto literária quanto política, que lhes eram impostas de cima para baixo.

Do que deixei escrito nestas páginas se desprenderão sempre – como nos arvoredos de outono e como no tempo das vinhas – as folhas amarelas que vão morrer e as uvas que reviverão no vinho sagrado.

Minha vida é uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta.

Não é preciso dizer mais nada, mas, sim, totalmente necessário continuar lendo as poesias de Pablo Neruda, que já fazem parte do poemário popular latino-americano e se completam com suas memórias.

Rio de Janeiro, Cachambi, 23 de janeiro de 2012.

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BORGES

DOIS RETRATOS

Incluí no meu blog esses dois textos – até então inéditos – de e sobre Jorge Luis Borges, como se fosse mais um retrato do escritor suíço-argentino – anexando os cúmplices Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo – que tanto buliu na literatura latino-americana, quanto Pablo Neruda, Jorge Amado e Garcia Marquez. Acredito que toda a geração seguinte à de Borges e todos os seus contemporâneos carrega consigo algum tipo de influência desse trio. Recordo apenas a figura da poetisa e mestra em literatura Sandra Pien, que descarregou num grande e belo poema-site “MiBorges.com” todo o peso do importante aporte literário que Jorge Luis Borges legou às letras latino-americanas. Traduzi.

I - 16 CONSELHOS PARA QUEM QUER ESCREVER LIVROS

Adolfo Bioy Casares contou num número especial da revista L’Herne que Borges, ele mesmo e Silvina Ocampo projetaram escrever a seis mãos um relato ambientado na França e cujo protagonista seria um jovem escritor de província. O relato não chegou a ser escrito, porém daquele intento ficou algo que pertencia ao próprio Borges: uma irônica lista de dezesseis conselhos acerca do que um escritor não deve nunca pôr em um livro. Aí vai este curioso inédito borgiano:

Em literatura é preciso evitar:

1 - As interpretações demasiado inconformistas de obras o de personagens famosos. Por exemplo, descrever a misoginia de Don Juan, etc.

2 - Os pares de personagens grosseiramente dessemelhantes ou contraditórios, como por exemplo, Dom Quixote e Sancho Pança, Sherlock Holmes e Watson.

3 - O costume de caracterizar os personagens por suas manias, como faz, por exemplo, Dickens.

4 - No desenvolvimento da trama, o recurso aos jogos extravagantes com o

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tempo o com o espaço, como fazem Faulkner, Borges y Bioy Casares.

5 - Em as poesias, situações ou personagens com os quais possa identificar-se o leitor.

6 - Os personagens suscetíveis de converterem-se em mitos.

7 - As frases, as cenas intencionalmente ligadas a determinado lugar ou a determinada época; ou seja, o ambiente local.

8 - A enumeração caótica.

9 - As metáforas em geral, e em particular as metáforas visuais. Mais concretamente ainda, as metáforas agrícolas, navais ou bancárias. Exemplo absolutamente desaconsejable: Proust.

10 - O antropomorfismo.

11 - A confecção de romances cuja trama argumental recorde a de outro livro. Por exemplo, o Ulysses de Joyce e a Odisea de Homero.

12 - Escrever livros que pareçam menus, álbuns, mapa de itinerários ou libretos de concertos.

13 - Tudo aquilo que possa ser ilustrado. Tudo que possa sugerir a ideia de ser convertido em um filme ou peça teatral.

14 - Nos ensaios críticos, toda referência histórica ou biográfica. Evitar sempre as alusões à personalidade ou à vida privada dos autores estudados. Sobretudo, evitar as psicanálises.

15 - As cenas domésticas nas novelas policiais; as cenas dramáticas nos diálogos filosóficos. E, enfim:

16 - Evitar a vaidade, a modéstia, a pederastia, a ausência de pederastia, o suicídio.

II - LA TUMBA DE BORGES

Manifestações, marchas, vandalismo “antiglobalização” em Genebra. A pequena cidade calvinista junto ao lago Leman, nunca havia visto algo igual. Os neutros e formais suíços observam boquiabertos como bandos de anarquistas atacam suas lojas de relógios, arrancam as tábuas com que cobriram as vitrines, e com essas mesmas madeiras fazem em pedaços seus vidros, saqueiam, incendeiam. Tudo para protestar porque o G8, grupo dos oito países mais ricos do mundo, se reúne a portas fechadas, não longe daqui. Por minha parte, eu não faço caso.

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Fiel ao princípio borgiano de que o escritor deve resistir à realidade, me dedico, entre as pedradas, os slogans e as cargas dos policiais antimotins, a buscar uma tumba. A tumba de Borges, precisamente, no cemitério de Plain Palais, em Genebra. E nem uma revolução poderá impedir-me!

Já que não há ônibus, nem bondes, nem nada que se pareça a um táxi disposto a atrever-se entre as turbas revolucionárias, decido cruzar a cidade a pé. É uma longa e excitante caminhada com muitos desvios, entre as fogueiras, as barricadas de pneumáticos e algum ou outro tijolaço. Uma caminhada que me dá tempo para meditar. Que terá dado na cabeça de Borges para vir morrer e enterrar-se aqui, na ordenada e pequena cidade em que buscaram refúgio Voltaire e Rousseau, tão longe de seu Sul? Alguém dirá que foi a nostalgia: quis morrer no lugar aonde havia passado os anos mais felizes de sua adolescência, aonde havia descoberto o francês e aprendido o alemão. Outros abrigam teorias conspirativas (quase não há teorias que não sejam conspirativas nas letras latino-americanas) relacionadas com seu tardio matrimônio e sua herança.

Pode ser isto ou aquilo. Porém eu tenho para mim que veio morrer na pacífica e neutra Suíça, deliberadamente, porque queria repousar o mais longe possível dos exageros argentinos e latino-americanos; porque queria fugir de nosso sentimentalismo, de nossas revoluções e nossas corrupções, porque queria descansar numa terra onde a cultura não é um discurso escolar e sim assunto de educação cívica, comunal, municipal. Um país aborrecido e civilizado, onde os trens, os relógios e até mesmo as vacas cumprem seus horários. Anti romântica por excelência, apesar de suas montanhas e lagos «sublimes», que os românticos descobriram, a Suíça é a única nação europeia, ou quiçá do mundo, que não tenha ido à guerra em mais ou menos 300 anos. Um país, em suma, onde, diferente da nossa Hispanoamérica, o exagero é desconhecido.

Ou o era... Porque - pensando em meu morto e seu enterro -, de pronto me vi metido na mais enfática das passeatas. Um grupo de manifestantes antiglobalizadores armados com pé-de-cabra arranca de pronto um ponto de ônibus e o atravessa no meio da rua. A polícia responde disparando gases lacrimogêneos. Em poucos segundos me encontro chorando com os olhos esbugalhados e fugindo com una turba de encapuzados, para refugiarmos todos no único lugar possível: entre as tumbas de um idílico cemitério. E eu, logicamente, busco meu refúgio detrás de uma lápide em particular: «Jorge Luis Borges, 1899-1986», está gravado sobre o medalhão de pedra, onde uns guerreiros germânicos, quase tão feios como os policias que nos disparavam há pouco, fazem voar suas tochas inflamadas. Abaixo do o relevo tem umas palavras em alemão antigo: “e não teve medo de nada”, creio que diz.

De repente, tapando meu nariz com um lenço, me vem um ataque de riso. Não sabia que se podia chorar e morrer de riso ao mesmo tempo, porém é isso exatamente o que se passou. Pode ser que seja um efeito especial dos gases

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suíços, porém suspeito que tenha mais a ver com Borges. Com o velho caturro e ingênuo que foi o Borges póstero. O que quis enterrar-se o mais distante possível do orgulho e dos exageros da América Latina e acabou nesse dia pisoteado e «globalizado» por esta turba de europeus revoltosos. E por este chileno sentimental e gazeado, que chora e morre de riso.

http://www.espacioluke.com/2008/Marzo2008/inesotros.html http://www.lendo.org/16-conselhos-sobre-como-nao-escrever/

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ISABEL ALLENDE CONVERSAS COM PAULA

“A soma dos dias” (Editora Bertrand Brasil - 2009)

Estava eu lendo o livro Fazes-me falta, da escritora portuguesa Inês Pedrosa, já em adiantado espírito de chateação e estresse (vide o blog anterior sobre o livro), quando minha irmã me emprestou este A soma dos dias, da chilena Isabel Allende. Fazes-me falta me levou, sim, à chateação máxima, porque o livro de Inês Pedrosa foi publicado no Brasil em português lusitano, não sei se por exigência da escritora, ou resultado de uma imitação burra da atitude burra de seu conterrâneo José Saramago. Enfim, sou muito capaz de ler um texto escrito em espanhol, mas não sabia que traz um estresse imensamente maior ler um livro em português lusitano. Por isso, não leio mais – e pronto!

Neste A soma dos dias, Isabel Allende retoma o diálogo imaginário que manteve com sua filha Paula e resultou no livro de igual título. Com a publicação de Paula, Isabel Allende provocou uma reação brutal e sem precedentes na história da literatura contemporânea. Uma avalanche de cartas, artigos, visitas e manifestações de diversos matizes, explodiram de repente.

O volume de correspondência foi tão grande que acabou por resultar em outro volume, Cartas a Paula, uma coleção representativa dessa correspondência. Esse movimento nunca acaba e se mantém vivo até hoje representado por milhares de cartas que chegam pelo correio, pelo grande volume de e-mail enviado à escritora e pelas manifestações pessoais que recebe.

Essas memórias são, pois, ainda uma consequência daquela tragédia visceral que abalou a vida da escritora em 1996. Ao dirigir a conversação para a memória de Paula, Isabel Allende expõe a vida que se seguiu a partir daquela data. Só que desta vez, estando a alma já em repouso, o texto flui de modo menos agressivo, mais terno e mais pensado. Agora trata-se de falar de pessoas vivas, de exteriorizar fatos muito recentes, de tentar resolver incompreensões, de expor dramas familiares. Trata-se de mostrar os problemas (que atingem

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também a população familiar periférica) e chegar às soluções de um modo sereno, que não agrida a ninguém.

Sob a fórmula de memórias, Isabel Allende preferiu manter o método da conversação íntima, embora muitas vezes a narrativa exceda as fronteiras do simples diálogo. No entanto, tanto por se tratar de memória recente, quanto por fantasiar a conversa com Paula, Isabel Allende se desloca dos fatos em si para relatar o drama eterno que sempre acompanha o show da vida.

É com esse deslocamento que ela transporta o leitor consigo e o leva a medir o peso da história contemporânea, a tragédia política, a guerra terrorista, os ataques contínuos – de ética e de moral – a que são submetidos os emigrantes latinos em terras do Tio Sam, para tornar legítima a sua aspiração. Sob esse aspecto a narrativa de Isabel Allende encontra o auge de expressividade, tornando-se, senão única, uma das primeiras na literatura contemporânea.

Isabel Allende começa a narrativa discutindo com a sua editora sobre a conveniência ou não de escrever memórias de pessoas vivas.

– Escreva algumas memórias, Isabel.

– Já escrevi, não lembra?

– Isso foi há treze anos.

– Minha família não gosta de se ver exposta, Carmem.

– Não se preocupe com nada. Se for preciso escolher entre contar uma história e ofender os parentes, qualquer escritor escolhe a primeira.

Isabel Allende sabe que – para o escritor e, por extensão, para o artista – a liberdade de criação é maior que todas as liberdades.

– Não falta drama em minha vida e me sobra material de circo para escrever.

A soma dos dias começa justo no espaço de tempo em que a vida física de Paula terminou:

– Na segunda semana de dezembro de 1992, assim que parou a chuva, fomos em família espalhar tuas cinzas, Paula, cumprindo as instruções que você deixou numa carta escrita muito antes de cair doente.

É o tipo de narrativa que alguns escritores odeiam quando estão na iminência de ter a obrigação de realizar. E a regra é esta: nada de apascentar ovelhas. Muitos críticos e compêndios ensinam que o escritor deve, logo de início, pegar o leitor pelo gasganete e assim levá-lo até a última página.

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Isabel Allende pouco liga para esses terroristas da literatura. Não só escreve com a paciência dos pastores, como aceita de maneira livre interferência extraordinária:

– Minha amiga Celia Correas Zapata, professora de literatura, que havia trabalhado com meus romances durante mais de dez anos e estava escrevendo um livro sobre eles, Vida e espírito, ficou uma noite para dormir no quarto que você ocupava e acordou à meia-noite com um intenso cheiro de jasmim, apesar de ser inverno.

É a presença de Paula que atravessa os anos e permanece arquivada na memória, guardada nos armários do quarto da menina, espalhada pelas roupas, pelo ambiente em forma de aroma, de cheiro, de perfume.

– Também mencionou os ruídos, mas ninguém deu muita importância a isso tudo até que um jornalista alemão, que ficou para fazer uma longa entrevista comigo, jurou que vira a estante se afastar quase meio metro da parede, deslizando sem barulho e sem alterar a posição dos livros. Aceitamos a idéia de que você costumava nos visitar, embora essa possibilidade deixasse a faxineira muito nervosa.

Quando a escritora Isabel Allende muda de roupagem para personificar a avó – do mesmo modo quando vestia a fantasia de mãe – o principal elo de contato continua sendo a narrativa. A avó insistia numa promessa íntima feita pela escritora, de oferecer um romance inventado especialmente para os netos. Foi após publicar Retrato em sépia, que a escritora sentiu haver chegada a hora de cumprir a promessa.

Os aventureiros seriam os próprios netos revestidos de heróis, o cenário estava na cabeça da escritora desde o dia em que visitara a Amazônia, tendo por base a cidade de Manaus. Mas não foi bem assim, conforme ela explica:

– Poucas semanas depois de ter começado o primeiro volume da trilogia, compreendi que era incapaz de fazer a imaginação voar com a audácia que o projeto requeria. Custava-me muito vestir a pele desses adolescentes que viveriam uma aventura prodigiosa, ajudados por seus ‘animais espirituais’, como na tradição de algumas tribos indígenas.

Isabel Allende agora se depara com o enigma da presunção: como elaborar uma narrativa para adolescentes na qual os espíritos teimam em participar ativamente como personagens? Mais do que aparenta, a tradição indígena é cheia de entes de força espiritual, que abrange não só o folclore da figura humana, mas também a poderosa magia do meio-ambiente, a floresta, os rios, a chuva, os animais, o sol e a lua.

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– Lembro os terrores de minha própria infância, quando não tinha nenhum controle sobre minha vida ou o mundo que me rodeava. Temia coisas bem concretas, como que meu pai, desaparecido fazia muitos anos, a ponto de seu nome ter-se perdido, viesse me buscar, ou que minha mãe morresse e eu terminasse num sombrio orfanato, alimentada com sopa de couve, mas temia muito mais as criaturas que povoavam minha própria mente.

Agora se percebe como que os seres extraordinários sempre trataram de travar duros embates, ao povoar de obstáculos – muitos deles inexpugnáveis – a vida daquela que veio ser a escritora Isabel Allende. Trata-se de uma perseguição que não terá fim, senão com a regurgitação contínua, para o papel, das cidades e dos seres que nela habitam.

– Acreditava que o diabo aparecia de noite nos espelhos, que os mortos saíam do cemitério durante os tremores de terra, que no Chile são muito comuns; que havia vampiros no forro da casa, grandes sapos malévolos dentro dos armários e almas penadas entre as cortinas do salão; que nossa vizinha era uma bruxa e que a ferrugem nos canos era sangue de sacrifícios humanos. Estava certa de que o fantasma de minha avó me mandava mensagens cifradas nos farelos do pão ou nas formas das nuvens, mas isso não me dava medo, era uma de minhas poucas fantasias calmantes.

Mas agora a artista sente a necessidade do camaleão, a de se transfigurar vestindo a roupa de cada ambiente que frequenta:

– Para escrever meus romances juvenis não podia lançar mão de minhas macabras fantasias dessa época, já que não se tratava de evocá-las, mas de senti-las nos ossos, como se sentem na infância, com toda a carga emotiva. Precisava voltar a ser a menina que havia sido um dia, a menina silenciosa, torturada por sua própria imaginação, que perambulava como uma sombra pela casa do avô. Tinha de demolir minhas defesas racionais e abrir a mente e o coração.

Faz tempo que Isabel Allende não se questiona mais sobre o porquê sua infância – como todas as infâncias normais – não fora povoada de duendes, fadas, dragões bonzinhos, feiticeiras e príncipes encantados. As histórias que ouvia não eram fábulas, nem contos da carochinha, nem as aventuras de Alice ou Branca de Neve. Mesmo assim em sua existência existe um componente sublime e inexplicável, difícil de ser decifrado, mas que nem ela mesma se esforça em conhecê-lo.

Eis quando a vida se transforma em caminhada, uma jornada que não temos como escolher nem a serenidade do lago ou das noites do deserto, nem a violência da erupção vulcânica ou do terremoto. Esse misterioso

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deslumbramento vai seguindo paralelo à sua vida, como um sopro, uma nuvem, uma lembrança e dele não se livrará jamais:

– Desde a tua morte, Paula, costumo me perder em tua mata de sequóias, em calmas excursões em que você me acompanha e me convida a examinar a alma. Em todos esses anos sinto que foram se abrindo minhas cavernas lacradas e, com a tua ajuda, a luz entrou. Às vezes, mergulho na saudade e me invade uma tristeza surda, mas isso não dura muito, logo sinto você caminhando ao meu lado e me consola o rumor das sequóias e a fragrância do alecrim e do louro.

Só em alguns raros momentos tudo se torna plácido, pois são esses o exato momento em que devemos transformar a celeridade em calma, a correria em passos medidos para que não se percam:

–...se você veio buscar Vovó Hilda, espero que não se esqueça de fazer o mesmo comigo. Esses passeios me fazem bem. Quando acabam me sinto invencível e agradecida pela tremenda abundância de minha vida: amor, família, trabalho, saúde, uma grande alegria.

Isabel Allende recebeu o dom medieval e divino para representar a forma mais antiga de intercomunicação. Porém, o mais importante nesse processo enigmático é a forma de agir de quem recebe esse dom, porque a passividade ou a negativa do agente receptor, de repente interrompe esse processo e a pessoa volta para a vida dita “normal”. Isabel Allende simplesmente se encaixou nesse processo, entregou sua vida orgânica, transformou-se em antena para receber e transmitir a sua vida, seu eterno relacionamento com Paula:

– Descrevi em meus romances o amor romântico, esse que dá tudo, sem escamotear nada, porque sempre soube que existia, embora talvez nunca estivesse ao meu alcance. O único vislumbre dessa entrega sem restrições eu a tive com você e com teu irmão, quando eram muito pequenos; somente com vocês senti que éramos um só espírito, apenas em corpos separados.

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50 POEMAS DE SANDRA PIEN

“Aquí no duele” (Ed. Vinciguerra, 2010)

Somente agora, dois anos depois que tive a alegria de receber o livro “Aquí no duele”, de Sandra Pien, consigo dar uma mirada mais atenta sobre os versos belos e singelos que compõem esse volume.

É que, ademais das muitas cascas que nos envolve a vida, todavia estava ainda eu prisioneiro daquele vulcão que foi o “MiBorges.com”, cuja força foi tamanha que cometi a ousadia de traduzir para o português brasileiro.

Creio que também a poetisa estava enredada nas fortes correntes que foi a influência devastadora que el poeta mayor de Buenos Aires teve sobre todos nós, pobres leitores latino-americanos.

Em Aqui no duele, Sandra Pien redescobre o prazer e a força da poesia em toda a sua plenitude:

Cada uno busca en su camino el aleteo del otro la mirada murmurante la impiadosa ilusión. Sin parpadear encuentra el otro lado de la lluvia sólo susurro de pasos el arqueo de su sombra en vacío y exceso. Ocorre que a poesia também me abandonou, sentado numa cadeira, em pleno deserto, nu de toda vaidade, pois que tive a audácia de querer libertar-me daquelas garras que costumam escravizar o poeta para sempre: a palavra.

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Agora que o tempo tirou-me o peso dessa influência e deixou meu corpo bem mais leve, sinto-me capacitado a desfrutar essa bela poesia que Sandra Pien escreve, também ela liberta das amarras que inspiraram aquele longo poema.

Es la verdad del agua el día que siempre ríe de mis labradas manos cortas y un eco distante en la piel espeja sólo desiertas burbujas en despellejados oídos. O consagrado “MiBorges.com” encontra-se já inscrito entre as maiores manifestações poéticas das letras portenhas, cuja estética está bem fincada no mais avançado e moderno veículo que as letras ganharam neste século 21, a internet. Agora, porém, desfrutamos a poesia por inteiro, em toda a sua plenitude, e convém aproveitar esse momento sem pressa, passo a passo, como a subir os 365 degraus da Igreja da Penha, em pagamento de alguma promessa.

Tendo alcançado o cume de sua produção, Sandra Pien agora cumpre suas obrigações com a musa e desfila em 50 poemas a lírica mais perfeita e justa que o poeta pode exprimir.

Cronista siempre para alumbrar historias escondidas en palabras navegantes y náufragas Digo aqui que valeu a pena ter cometido essa grave falta com a minha admirada Sandra Pien, falta que me deixou com o espírito livre para desfrutar em plena ascensão a lírica moderna dessa grande poeta argentina. Repasso a meus poucos e especiais leitores uma seleção de “Aqui no duele”, feita pela própria autora, no idioma original, posto que o espanhol argentino é muito mais delicioso e incomum quando lido assim.

Desfrutemos, pois, uma seleção da belíssima poesia de Sandra Pien.

I Para aprender del filo de la ausencia pequeño surco de salobre esperanza. Y entre el horizonte y el mar la travesía. II Improvisar realidades reinventar apuntes

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por un amanecer templado de besos apostar y perder toda la llanura desde la puerta entornada. III ¿Hacerle caso al obsceno hastío del día a día? El cielo y el infierno y en el medio el ser y seguirle la huella al alarido de la luz para atrapar el viento. IV Y sobre él juego de círculos la mismidad del claroscuro disperso soplo de sal dibujado en la arena. V Es la verdad del agua el día que siempre ríe de mis labradas manos cortas y un eco distante en la piel espeja sólo desiertas burbujas en despellejados oídos. VI Fosforece una árida voz cansado perro de presa casi vislumbre de la mañana. Es repetir y golpear márgenes y es siempre insistir para poder volver a las trampas sin memoria al retrato en tornasol hecho trizas. VIII Qué extraña condena es el alma curioso el dolor allí sutil punzante intangible y no poder atreverse siquiera a desterrar los llantos de un infinito día que se alimona. IX Sentidos y contrasentidos

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cada cambio de marea se mece siempre a solas entre escapar e insistir casi sin palabras. En el aire aceitunado el pudor perfuma polvo de tierra seca entre los dedos y entre los resquicios y entre las urgencias se diluye la tarde. X Cada uno busca en su camino el aleteo del otro la mirada murmurante la impiadosa ilusión. Sin parpadear encuentra el otro lado de la lluvia sólo susurro de pasos el arqueo de su sombra en vacío y exceso. XI Desenfado y frescura y cierta osadía afinada y ese asomo de tristeza azul y ser adolescente asidua. Tramposa ingenuidad sonrisa llena de gracia y sol eternidad de juegos seductores severa soledad cantada. La última vez que la vi instruía quimeras arbitrario destino pura visión de azar. Desde la terraza del caserón talismán de inocencia libre encandilada al filo de la porfía daba tiempo al tiempo echando raíces en la incertidumbre. XII Me dicen encender los fuegos de la casa simple temblor de felicidad me dicen levantar la cabeza y mirar alrededor y recibir al viajero de la arena fina

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y dar refugio a flor de piel. Y en el límite convocado ofrecer los pezones del poema. XIII Pero me atraen los muelles inútil resistencia humana la de los besos tormentosos noctilucos en el delirio del dolor del deseo. Sólo yo y la noche y él a kilómetros y en mí. ¿Yo soy yo? No lo sé. Ni penumbra ni sombra me anudo al silencio. XIV Leo poesía en la calle la luz del sol sobre el papel franquea las puertas hacia lo vertical en el eco de sus manos feliz espacio fuera del afuera. Le robo tiempo al tiempo esperándolo. XV Hay días en que estoy tan cansada en que el mayor descubrimiento es el silencio en que se enmaraña la misteriosa entrega en que el mundo ordenado se desvanece. Y voces y murmullos que se abren camino el ojo desnudo en el antiguo arte de recordar naderías y soledades. Y el diario dice que llueve. XVI Desde siempre amo la noche ese estar fuera del tiempo muda oscilación memoria de la certeza de la luz de mañana del olor a herbaje recién cortado

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de que el destino es una celada de la realidad. XIX He venido desde tan lejos y viajo y viajo con sed de búsqueda hasta que llego hasta que viene a mí y estoy siempre en puerto en sus manos. XX En tránsito de ilusiones perfume de piel de limón y sacar de debajo de la tierra cuánto de luz hay en la oscuridad cuánto de oscuridad hay en la luz. XLVII Cada tanto asoma un día soplo de primavera estela de palabras en impresionista luz y realismo sin vocación. Cuando un fuego ancestral se enciende la gente se acerca a esa ventana de la vida. XLVIII Se trata de que no duela tanto abismal quietud veloz para que no duela tanto esta noche en pleno día este azar sin fronteras. Convierte tu muro en un peldaño decía Rilke la apariencia que asume la realidad. XLIX Sangra la desolación de las certezas duelen las vacilaciones de fragmentos abordan los manotazos de mejor aire renuncia la respiración artificial grisea el rastro humano en estéril olvido cruje el alumbramiento de angustias.

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Sin embargo se escapa cincuenta veces cincuenta sigue siendo se filigrana húmeda mi escritura bajo la piel. L Cronista siempre para alumbrar historias escondidas en palabras navegantes y náufragas habitadas desde las raíces de los ojos inicio de lo que no inicia ni concluye por la sola certeza de esperar el color y así amparar el dolor en el agua enramar el silencio dulcificar la soledad develar la sombra pasionar e iluminar las nuevas manos y ver qué nos trae hoy la marea para salir siempre al camino.

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REDESCOBRINDO SALIERI

Antonio Salieri (Legnago 1750-Viena 1825), músico italiano, compositor oficial da Corte de José II, Imperador da Áustria, foi bastante popular na sua época. Há lendas a respeito do seu relacionamento com Mozart, com quem conviveu em Viena até a morte deste.

Criado no seio de uma família próspera de comerciantes, Salieri estudou violino e espineta com seu irmão Francesco, que era aluno de Giuseppe Tartini. Após a morte prematura de seus pais, mudou-se para Pádua e a seguir para Veneza, onde estudou com Giovanni Battista Pescetti. Nesta cidade conheceu Florian Leopold Gassmann em 1766, que o convidou a servir na corte de Viena, onde o instruiu em composição baseada na obra de Johann Joseph Fux, Gradus ad Parnassum.

Permaneceu em Viena até ao fim da sua vida. Em 1774, após a morte de Gassmann, Salieri foi nomeado compositor da Corte pelo Imperador José II, quando conheceu a sua esposa, Therese von Helfersdorfer, dessa união nasceriam oito filhos.

Em 1788 Salieri tornou-se Mestre da Orquestra Imperial, cargo que manteve até 1824. Foi presidente da Sociedade dos Artistas Musicais, de 1788 a 1795, vice-presidente após 1795 e responsável pelos seus concertos até 1818. Alcançou elevada posição social, sendo frequentemente associado a outros célebres compositores, como Joseph Haydn ou Louis Spohr.

Antonio Salieri desempenhou papel importante na música clássica do Século XIX, foi professor de compositores como Beethoven, Carl Czerny, Johann Hummel, Franz Liszt, Giacomo Meyerbee, Franz Schubert e Franz Xaver Sussmayr.

Foi professor também do filho mais novo de Mozart, Franz Xaver.

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Salieri foi enterrado no Matzleinsdorfer Friedhof em Viena. No seu serviço fúnebre, o seu próprio Réquiem em Dó menor - composto em 1804 - foi executado pela primeira vez. Posteriormente seus restos mortais foram transferidos para o Zentralfriedhof. (Fonte: Wikipédia)

O nome de Salieri chegou até nós em virtude de um retrato histórico que confronta Salieri – músico experimentado e dominante na corte – a Mozart, jovem e talentoso compositor que buscava espaço na sociedade vienense. A vida breve de Mozart, sua morte em abandono, o funeral barato, a tumba sem identificação no cemitério de São Marcos (ninguém sabe onde ele foi enterrado), alimentou a capacidade inventiva dos fãs da música, cujo ápice foi a notícia de que Antonio Salieri teria sido o porta-voz da misteriosa encomenda do Réquiem de Mozart, magistralmente reconstruído e finalizado por seu ex-aluno Franz Sussmayr, não esqueçamos.

Mas na verdade o comprador do Réquiem era o Conde Welsegg, que tinha o hábito de encomendar músicas para depois mandar executá-las com o seu nome. Outra suspeita levantada, que passou para o folclore histórico – essa até

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certo ponto criminosa –, atesta que Salieri envenenou a Mozart para proteger sua posição na Corte da ascensão fulminante daquele intruso, talentoso, sarcástico e brincalhão. Tantos foram os boatos que surgiram após a morte de Mozart que a verdade ficou atolada nas lamas da sepultura, até hoje desconhecida, onde seu corpo foi enterrado.

Toda essa insensatez resultou na peça do escritor Peter Shaffer, que virou filme sob a batuta de Milos Formam e rendeu algumas estatuetas na festa do Oscar de 1984. Ou seja, tudo é carnaval.

Ouvir hoje as músicas de Salieri é descobrir um compositor longevo que não se perdeu no caminho e soube compartilhar seu conhecimento com outros talentos que iniciaram a transição musical de Bach a Beethoven, permitindo a ascensão de Brahms, Bruckner, Richard Strauss, Stravinsky, Mahler, Debussy, Manuel de Falla e outros bem mais próximos.

Graças aos bons serviços da internet, a gente já consegue ouvir as obras de Salieri. Encontrei na rede, com certa facilidade, o Concerto para Flauta e Oboé, La Tempesta di Mare, a Piccola Serenata em si bemol maior, a Variazioni Sulla Folia di Spagna, a Sinfonia Veneziana in do, a Abertura Il Moro e o belíssimo Réquiem in Do, que flui com leve beleza, justamente executado pela primeira vez em seu próprio féretro.

Mas sei que existe por aí um belíssimo CD gravado pela cantora italiana Cecília Bártoli só com canções de Salieri. Aliás, Cecília Bártoli se distingue das demais musas da ópera justo por redescobrir e eternizar as belíssimas árias de tantos compositores hoje comercialmente esquecidos.

Ave! Cecília Bártoli! É uma obra gigante que merece louvores e reconhecimento. Com isso tudo ganha a música e os demônios que não sabem viver sem as estranhas notas que os compositores conseguiram harmonizar para nos dar alegria.

Longa vida a Mozart... e a seu legendário "desafeto" Antonio Salieri!

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50 ANOS DE DITADURA MUSICAL!

Estava finalizando este artigo quando descobri o interessante texto de Marcos Napolitano “A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981)”, do qual extraí a parte abaixo, que bem cabe como citação:

“O campo social da vigilância e do controle, dentro da lógica da segurança nacional implantada pelo golpe militar de 1964, era enorme: entidades da sociedade civil, espaços de sociabilidade e cultura, atuação pública de personalidades críticas, todo o tecido social e os espaços públicos eram virtualmente vigiados (...) a vigilância sobre a sociedade civil era constante”.

“Um outro caso de suspeita muito peculiar foi o de Caetano Veloso. As posições políticas de Caetano, sempre críticas em relação à arte engajada de esquerda, já conhecidas no final dos anos 60, acabaram gerando uma série de conflitos entre sua personalidade pública e o público de esquerda, que o qualificava como “alienado”.

[Marcos Napolitano - Departamento de História - UFPR - A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981) - Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, nº 47, p.103-126 – 2004]

Cinquenta anos que começaram nos famosos festivais da canção da TV Record e depois da TV Globo. Esses festivais que mobilizaram a população cultural da época foram bem canalizados pela mídia, rádio, jornais, TV e revistas se uniram num só grupo empresarial para explorar a mina de ouro em que se transformaram. Quando a míngua chegou – era de se esperar – sobreviveram apenas àqueles mais cruéis, os predadores, apoiados pelos mais frios e calculistas empresários, caçadores de sucesso, fabricantes de mais vendidos, donos ou representantes de gravadoras internacionais, que abocanharam também as rádios, as revistas ‘especializadas’, os jornais.

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Por trás dessa cruel ditadura musical ficou o rasto de terra arrasada, jovens cadáveres, dizimados pelas drogas, pela depressão, pelo álcool, abandonados pelo simples desprezo, o esquecimento conveniente, as traições. Todos os que estavam bem ali, ao lado, dando o apoio, trabalhando duro nos anos difíceis, nos atropelos do começo de carreira, da sacrificada luta pela sobrevivência, se viram um dia defenestrados, atropelados pela máquina cruel da ambição, destrambelhados pela ausência de princípios morais, éticos, de amizade e até de religiosidade, inexistentes no meio em que viviam.

Em sequência, alguns muitos vieram a mamar nas tetas do dinheiro público, seja por meio de amizade, seja por meio da aderência ao sistema, usando o poder de governos – ditatoriais e democráticos (a ambição não tem ideologia) – elegeram-se deputados, senadores, assumiram secretarias, ministérios, outros ocuparam cargos praticamente invisíveis, mas sempre com salários altíssimos, tudo remunerado e sustentado com nosso dinheiro, o dinheiro público, quer dizer, com a miséria de muitos.

50 anos de ditadura musical – demorada, mas rentável – mais, muito mais, do que durou a ditadura militar; mais, muito mais, do que demoraram os governos de milicos africanos, dos quais todos nós reclamamos e lutamos para extinguir.

Todos os chefes desse implacável assenhoramento da nossa música são hoje dignos, ricos e eloquentes septuagenários – além do ganho com a ditadura musical abocanharam também grandes bocados das ‘indenizações’ com que o governo brindou os perseguidos pela redentora – mesmo sabendo de que todos nós fomos perseguidos, vigiados, doentes de depressão, de diarreia, de dengue, dor de cabeça, sofremos desemprego – as causas e os efeitos da ditadura atingiram a todos, sem distinção.

Quem não se enturmou ficou à margem, foi vender água de coco na praia, foi vender livros nos bares e boates da noite, enrustidos com medo do pau de arara. Ah, sim, eles também infernizaram os nossos pobres ouvidos com algumas músicas bem podres, além de deixar de fora, com o conluio de produtores, gravadoras e rádios e tevês, os novos sons que apareciam em nosso rico país, porque talento nós temos de sobra. Os sons novos e experimentais, que deveriam nos levar ao futuro da música, ficaram para alegrar os anjos no paraíso.

Charlatães do labirinto das palavras, letra e música, dos sons repetidos à exaustão, mágicos, ilusionistas, nos fizeram de bobos, nos fizeram acreditar que era música a cantilena monocórdia que hipnotizou por mais de 50 anos toda a população brasileira, num casamento infernal contratado como núpcias interioranas: com a declaração formal “até que a morte nos separe”. Ah sim, eles infernizaram milhões de ouvidos, deixando de fora os novos compositores que traziam a esperança de salvação de nossas almas penalizadas.

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Aproveitando-se da fama de ‘perseguido pela ditadura’, erigiram e solidificaram a carreira com base nesse renome, posando de vítimas ad-æternum, subterfúgio inventado pela mídia por interesse financeiro, apenas pra faturar, apenas pra fazer o pé-de-meia crescer e crescer e crescer.

Ao mandar para a câmara de gás, para o limbo do purgatório, aquelas vozes que realmente traziam algo de novo, ideal como idealizamos o som novo, a música do tempo hoje, enterrando para sempre a ilusão da palavra e do som mexido como flautas indianas que enfeitiçam serpentes, atraparam o modernismo da MPB que foi preterido sempre, sempre com a anuência dos donos de nossos destinos, como uma repetição saatiana, enterrando-nos na pré-história da música do século XX, porque de lá eles nunca saíram.

Muitos irão me repudiar, lembrando que eles nos legaram belas canções – é verdade. Mas a que custo? E o quanto essas canções se transformaram em canto de sereia? As sereias eram entidades capazes de encantar qualquer um com o seu canto. Diz a lenda que os marinheiros que ouviam seu mavioso e hipnótico canto, perdiam o rumo, o tino e assim descuidados naufragavam. O sábio Homero afirmou que elas podiam prever o futuro, o que condiz com a minha indignação.

Nós nos deixamos enfeitiçar? Nós sucumbimos ao canto das sereias? Então tudo aquilo era fingimento? Isso porque, quando o futuro chegou, nos demos conta de que também nossos cantores e compositores ‘perseguidos’ pela ditadura, como as sereias, anteciparam de maneira sábia o que viria ocorrer: mesmo que a maioria deles não precisasse, porque vinda de berço de ouro, o futuro lhes trouxe muita e muita grana...

Para o resto, os demais, os jovens descendentes, as “entidades da sociedade civil, espaços de sociabilidade e cultura, atuação pública de personalidades críticas, todo o tecido social e os espaços públicos [que] eram virtualmente vigiados, [pois] a vigilância sobre a sociedade civil era constante”, ficou a estranha sensação de que serviu apenas de pano de fundo para essa tragicomédia sem fim que os governos militares legaram ao teatro de nossa existência.

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DADOS BIOGRÁFICOS

Nascido no ano de 1942, o escritor e poeta

Salomão Rovedo tem sua formação cultural em

São Luis (MA). Reside atualmente no Rio de

Janeiro.

Participou de movimentos poéticos e políticos

nas décadas 60 a 80, tempos do mimeógrafo, das

bancas na Cinelândia, das manifestações em

teatros, bares, praias e espaços públicos.

Textos publicados: Abertura Poética (Antologia),

Walmir Ayala/César de Araújo (1975); Tributo (Poesia), edição do Autor (1980);

12 Poetas Alternativos (Antologia), Leila Míccolis/Tanussi Cardoso (1981); Chuva Fina (Antologia), Leila Míccolis/Tanussi Cardoso-Trotte (1982); Folguedos, com

Xilogravuras de Marcelo Soares (1983); Erótica, com Xilogravuras de Marcelo

Soares (1984); 7 Canções (1987).

E-books do escritor: A Ilha, Chiara, Gardênia (Novelas); A apaixonada de Beethoven, A estrela ambulante , Arte de criar periquitos, O breve reinado das donzelas , O sonhador, Sonja Sonrisal (Contos); 3 x Gullar, Leituras & escrituras, O cometa e os cantadores / Orígenes Lessa personagem de cordel, Poesia de cordel: o poeta é sua essência, Quilombo, um auto de sangue, Viagem em torno de Cervantes (Ensaios); 20 Poemas pornos, 4 Quartetos para a amada cidade de São Luis, 6 Rocks matutos, 7 Canções, Amaricanto, Amor a São Luís e Ódio, Anjo pornô, Bluesia, Caderno elementar, Erótica (com xilogravuras de Marcelo

Soares), Espelho de Vênus, Glosas Escabrosas (com xilogravuras de Marcelo

Soares), Mel, Pobres cantares, Porca elegia, Sentimental, Suíte Picassso (Poesia);

Cervantes, Quixote e outras e-crônicas do nosso tempo, Diários do Facebook, Escritos mofados (Crônicas); Cancioneiro de Upsala (Tradução e notas), Meu caderno de Sylvia Plath (Cortes e recortes), Os sonetos de Abgar Renault

(Antologia e ensaios), Stefan Zweig - Pensamentos e perfis (Seleção e ensaios);

Inéditos: Geleia de rosas para Hitler (Novela), Stefan Zweig - A vida repartida

(Ensaio).

E-books de “Sá de João Pessoa” (Pseudônimo): Antologia de Cordel 1, Antologia de Cordel 2, Antologia de Cordel 3, Antologia de Cordel 4, Macunaíma em cordel, Por onde andou o cordel? Folhetos de cordel; jornalzinho de poesia

Poe/r/ta.

Colaboração esparsa: Poema Convidado (USA), La Bicicleta (Chile), Poética

(Uruguai), Alén (Espanha), Jaque (Espanha), Ajedrez 2000 (Espanha), O Imparcial

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(MA), Jornal do Dia (MA), Jornal do Povo (MA), Jornal Pequeno (MA), A Toca do (Meu) Poeta (PB), Jornal de Debates (RJ), Opinião (RJ), O Galo (RN), Jornal do País (RJ), Leitura (SP), Diário de Corumbá (MS) – e outras ovelhas desgarradas.

E-books disponíveis em: www.dominiopublico.gov.br - www.projetolivrolivre.com

Endereço: Rua Basílio de Brito, 28/605 - Cachambi - CEP 20785-000 - Rio de Janeiro, Brasil -

Telefone: (21) 2201-2604.

Contato: [email protected], [email protected], [email protected]

Blog: http://salomaorovedo.blogspot.com.br/

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