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O ESTADO DA PARAHYBA E A REPRESENTAÇÃO DA REPÚBLICA: EPITÁCIO PESSOA E A (RE)AFIRMAÇÃO DA TRADIÇÃO FAMILIAR À ÉPOCA DO GOVERNO DE VENÂNCIO NEIVA (1889-1891). Iordan Queiroz Gomes 1 Os primeiros anos da república na Paraíba foram marcados por incertezas. Do ponto de vista da crônica política veiculada na época, durante esse período o estado atravessou “uma ruidosa situação em que o despenhou um bando de torpes aproveitadores”. Os redatores do jornal Verdade, por exemplo, estavam convencidos “de que o que se tem passado na capital, depois da proclamação da República, tem sido uma verdadeira continuação do decahido regime das immoralidades”. E que era preciso “medidas muito enérgicas para se collocar a Parahyba no verdadeiro regimen democrático”. 2 Por outro lado, a mesma crônica afirmava que em fins de 1889 a esperança do povo paraibano era depositada nos cidadãos que haviam sido nomeados para compor o governo de legítima origem democrática, sendo eles, o governador Venâncio Neiva, o seu chefe de polícia João Coelho Lisboa e o Secretário Geral Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa. 3 O entusiasmo logo cedeu lugar a desconfianças e dias depois o mesmo jornal mostrou- se reticente, afirmando que “na attitude de observadores”, era preciso aguardar o desenrolar dos fatos “em face dos actos do actual governador [Venâncio Neiva], para ajuizarmos de seu critério administrativo no melindroso período de reconstrucção em que entrou a nação brasileira.” Afirmavam que “o ilustre cidadão a quem foi confiado o encargo de gerir os nossos negócios públicos, encontra sérias dififculdades em sua missão, levantadas sobretudo por parahybanos degeneradosque supondo-se ainda as forças vivas que eram no passado regimem, não perderão ensejo de procurar fazer valer sua influência, actualmente inválida, a explotar a pureza de intenção de quem nutre o sincero desejo de ser útil a pátria. 4 1 Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia (PPGH/UFBA). Email: [email protected]. 2 Conferir Jornal Verdade, Areia, 7 de dezembro de 1889. 3 João Coelho Lisboa era natural de Areia, cidade de onde havia saído em 1884 para seguir carreira como advogado no Rio de Janeiro. Entre 1888 e 1889 destacou-se como um propagandista da causa republicana atuando no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul e no Espirito Santo. Durante os acontecimentos de 15 de novembro, Coelho Lisboa achava-se no Espírito Santo de onde foi chamado para o Rio de Janeiro por Aristides Lobo, então Ministro do Interior, e de lá voltou à Paraíba nomeado chefe de polícia no governo de Venâncio Neiva. Jornal Verdade, Areia, 3 de dezembro de 1889. 4 Verdade, Jornal, Areia, 10 de dezembro de 1889.

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O ESTADO DA PARAHYBA E A REPRESENTAÇÃO DA REPÚBLICA: EPITÁCIO

PESSOA E A (RE)AFIRMAÇÃO DA TRADIÇÃO FAMILIAR À ÉPOCA DO GOVERNO

DE VENÂNCIO NEIVA (1889-1891).

Iordan Queiroz Gomes1

Os primeiros anos da república na Paraíba foram marcados por incertezas. Do ponto de

vista da crônica política veiculada na época, durante esse período o estado atravessou “uma

ruidosa situação em que o despenhou um bando de torpes aproveitadores”. Os redatores do

jornal Verdade, por exemplo, estavam convencidos “de que o que se tem passado na capital,

depois da proclamação da República, tem sido uma verdadeira continuação do decahido regime

das immoralidades”. E que era preciso “medidas muito enérgicas para se collocar a Parahyba

no verdadeiro regimen democrático”.2 Por outro lado, a mesma crônica afirmava que em fins

de 1889 a esperança do povo paraibano era depositada nos cidadãos que haviam sido nomeados

para compor o governo de legítima origem democrática, sendo eles, o governador Venâncio

Neiva, o seu chefe de polícia João Coelho Lisboa e o Secretário Geral Epitácio Lindolfo da

Silva Pessoa.3

O entusiasmo logo cedeu lugar a desconfianças e dias depois o mesmo jornal mostrou-

se reticente, afirmando que “na attitude de observadores”, era preciso aguardar o desenrolar dos

fatos “em face dos actos do actual governador [Venâncio Neiva]”, para “ajuizarmos de seu

critério administrativo no melindroso período de reconstrucção em que entrou a nação

brasileira.” Afirmavam que “o ilustre cidadão a quem foi confiado o encargo de gerir os nossos

negócios públicos, encontra sérias dififculdades em sua missão, levantadas sobretudo por

parahybanos degenerados” que “supondo-se ainda as forças vivas que eram no passado

regimem, não perderão ensejo de procurar fazer valer sua influência, actualmente inválida, a

explotar a pureza de intenção de quem nutre o sincero desejo de ser útil a pátria”.4

1 Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia (PPGH/UFBA).

Email: [email protected]. 2 Conferir Jornal Verdade, Areia, 7 de dezembro de 1889. 3 João Coelho Lisboa era natural de Areia, cidade de onde havia saído em 1884 para seguir carreira como advogado

no Rio de Janeiro. Entre 1888 e 1889 destacou-se como um propagandista da causa republicana atuando no Rio

de Janeiro, no Rio Grande do Sul e no Espirito Santo. Durante os acontecimentos de 15 de novembro, Coelho

Lisboa achava-se no Espírito Santo de onde foi chamado para o Rio de Janeiro por Aristides Lobo, então Ministro

do Interior, e de lá voltou à Paraíba nomeado chefe de polícia no governo de Venâncio Neiva. Jornal Verdade,

Areia, 3 de dezembro de 1889. 4 Verdade, Jornal, Areia, 10 de dezembro de 1889.

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Venâncio era um personagem pouco conhecido na Paraíba, como diria um de seus

críticos, um político nondum natus erat entre os paraibanos, até então, um “simples juiz de

direito da roça, de mentalidade estreita”5. Ainda mais, era um político recrutado no meio da

antiga ordem, isto é, da ala dominante do antigo Partido Conservador na Paraíba.6 Fato que

influenciou para que Venâncio tentasse fazer um governo de coalisão, “procurando harmonizar

os grupos contrários, nascidos das divergências remanescentes do regime anterior”.7 A postura

de Venâncio Neiva desagradou a muitos correligionários e no estado assistiu-se “a mais

desbragada politicagem campeando em todos os setores da administração e da vida pública

paraibana”. 8

A situação agravou-se ainda mais quando o governador ensaiou uma efetiva

aproximação com os partidários do partido conservador, sobretudo com o barão de Abiaí.9

Embora “as intimas relações particulares e partidárias entre o novo governador paraibano e o

chefe do Partido Conservador do Antigo Regime, barão do Abiaí (dr. Silvino Elvídio Carneiro

da Cunha)” fossem “bem conhecidas”, elas não apareciam publicamente até aquele momento.10

O ex-chefe conservador havia deixado o Jornal da Paraíba, de sua propriedade, a disposição

para apoiar a nova situação política publicando o expediente do governo. Não demorou para

que Venâncio passasse a ser denunciado como um partidário da antiga ordem e que o estado

estava em “pleno domínio do partido conservador monarchico (sem monarquia)”.11

Foi quando acentuou-se entre os “próceres republicanos de então”, uma forte oposição

aos adesistas, principalmente contra os monarquistas. Para muitos, “o barão não ocultava os

seus sentimentos de monarquistas”,12 conservava as hostes do império, visto como “o velho e

5 A frase que caracterizou Venâncio como um “simples juiz de direito da roça, de mentalidade estreita”, foi de

Gama e Mello reproduzida por Coelho Lisboa em discurso proferido em 7 de maio de 1908 na tribuna do senado.

No mesmo discurso, Coelho Lisboa afirmou que Venâncio “não tinha existência política” entre os paraibanos

quando foi nomeado governador, “nondum natus erat”, isto é, não havia ainda nascido para a política. 6 Conta Lewin (1993, p. 208) que Venâncio Neiva era um ‘Conservador Silvinista’ – um membro da corrente

daquele partido, leal ao barão de Abiaí”. Apesar da relação com o barão, o seu mentor político era o irmão de

Abiaí, Anísio Salatiel Carneiro da Cunha. Foi Abiai quem lhe arranjou uma primeira “nomeação pública, como

promotor de Justiça em Teixeira. 7 Conferir Rodrigues (1989, p. 22) 8 Conferir Leal (1954, p. 209). 9 No caso do Partido Liberal, “em Areia, surgiu uma rebelião armada por ter ele substituído a elite do Partido

Liberal do Império pelos seus oponentes do antigo Partido Conservador”. Para Lewin (1992, p. 211) “se o

Imperador D. Pedro II tivesse permanecido no poder, o governo local e o governo da Província da Paraíba teriam

ficado sob o controle do Partido Liberal, já que aquele partido vencera as eleições apenas algumas semanas antes

da queda da monarquia. Famílias como os Dantas, de Teixeira, frustraram-se pela perda de prestígio político local,

circunstância devida diretamente à ascensão do Marechal Deodoro ao executivo nacional”. 10 O Barão já havia, antes de Venâncio, se aproximado da junta governista que se instalou na Paraíba dias após a

proclamação da República. Sobre isso, ver Trigueiro (1982, p. 10). 11 Gazeta do Sertão, Jornal, Campina Grande, 13 de junho de 1890, p. 3. 12 Nóbrega, (1950, p. 47).

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ilustre chefe do partido, uma figura tradicional e nobilíssima de fidalgo pela raça e pelo

coração”.13 O governo viu-se diante da tarefa de legitimar-se, uma condição necessária a sua

sobrevivência política. Em termos mais gerais, encarar o desafio da legitimação era uma

necessidade quando a própria republica, enquanto forma de governo, precisava ser reconhecida

no meio do povo.14

O Ex-senador Pedro da Cunha Pedrosa oferta um importante relato sobre a forma como

o governo empenhou-se na tarefa de legitimar-se entre os paraibanos. A época Juiz de Direito

da Comarca de Pilar – nas proximidades de Itabaiana –, conta Pedrosa que logo após assumir o

governo, esteve com Venâncio Neiva na capital. Venâncio, um cidadão “de quem ainda não

tinha ouvido falar no nome”, tratou-lhe de maneira “franca e delicada”, já “parecendo que

éramos velhos amigos”, e se apressou em recomendar “que fosse em meu Têrmo incutindo no

espírito do povo o sentimento republicano, para que se operasse com maior facilidade a

confiança no regime que, com tão bons auspícios, se inaugurava no Brasil. Assim o prometi”.15

De maneira sistemática, Epitácio Pessoa desenvolveu um papel fundamental na tentativa

de resolver a crise de legitimidade que enfrentava Venâncio Neiva nos primeiros meses de

governo. Para tanto, atuou em duas frentes. Primeiro, Epitácio trabalhou no sentido de separar

a imagem de Venâncio Neiva da representação que se tinha de Abiai. Segundo, empenhou-se

em criar uma imagem do governo e do próprio Venâncio Neiva como legítimos representantes

dos valores e princípios republicanos. No primeiro caso, Epitácio sabia como o jogo político

poderia figurar favorável aos personagens como o barão. O então secretário geral havia

aprendido, no caso em que se envolveu com o juiz Teixeira de Sá, a importância que recaia

sobre o prestígio pessoal e político desses personagens que, ligados a monarquia, aderiam de

última hora à situação dominante. Não bastava apenas afastá-lo do governo, era preciso destituir

o seu prestígio.

As pretensões de Epitácio Pessoa nesse quesito ficaram registradas em um diálogo entre

ele e proeminente jurista e escritor paraibano Ascendino da Cunha. Contou o escritor “que,

13 Conferir matéria de Ulysses Costa intitulada: Ego, Quoque! Circulado no Jornal A Notícia, Jornal, Parahyba do

Norte, 05 de Janeiro de 1916 (p. 2). 14 Carvalho (1990) analisou como a república no Brasil precisou ser legitimada mediante uma batalha de símbolos

em torno da imagem do novo governo. 15 Conferir Pedrosa (1963, p. 53-60). No retorno ao termo de Pilar, Pedrosa passou a organizar “festas cívicas”,

com o intuito de “prestigiar a ação do Governo republicano” no meio do povo. Eram “festas cívicas, que acabavam

com as danças no salão da Câmara Municipal; e eu me encarregava de mandar para a imprensa da Capital o

noticiário do que de mais importante se passava ali”. Essa era, sem dúvida, uma forma de demonstrar ao novo

Governo na Capital que o dedicado juiz havia de fazer bem o que lhe fora recomendado: incutir no espírito do

povo os valores e sentimentos do novo governo republicano.

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certa tarde, em Paris, recordando com o saudoso senador Epitácio Pessoa fatos do passado

paraibano, ventilaram o caso do rompimento de Abiaí com o governador Venâncio Neiva”.

Naquela tarde, “então, o antigo chefe da Nação [Epitácio Pessoa], que foi secretário Geral do

Estado na gestão do preclaro paraibano, disse-lhe sem reservas, que contribuira vivamente para

o dito estremecimento”. Na conversa “justificando o modo como agira naquela época, o dr.

Epitácio Pessoa dizia que era preciso desprestigiar o Barão para a necessária consolidação do

regime. Abiaí era chefe de indiscutível valor e prestígio pessoal e os seus brazões, evocavam

os tempos da monarquia de Pedro II”.16

1.1 O rompimento com a tradição monárquica: os primeiros sobrevoos de condor em

(re)reconhecimento no solo paraibano.

Não demorou para que Venâncio ensaiasse um distanciamento com o Barão do Abiai.

O afastamento se deu primeiramente através da decisão do governo em romper como o Jornal

da Paraíba, o que representava publicamente o distanciamento com o barão.17 Para suprir a

falta de um periódico que representasse o governo na divulgação do expediente administrativo,

Venâncio recorreu ao Jornal Gazeta da Parahyba. A Gazeta passou a funcionar como um

importante instrumento de defesa contra as críticas lançadas pelo Jornal da Paraíba, através de

uma série de artigos assinados por Epitácio Pessoa.

O expediente retórico usado por Epitácio já era conhecido do público, ao menos

daqueles que leram seu manifesto circulado pelo Diário de Pernambuco na crítica contra o Juiz

Teixeira de Sá. Embora, pelas páginas da Gazeta, o conteúdo da crítica mostrou-se bem mais

sofisticado no sentido de opor monarquia e república em termos de pares antitéticos,

denunciando os males da primeira enquanto defendia os princípios e valores da segunda. Os

artigos assinados por Epitácio alinharam o editorial da folha “na luta simbólica entre

monarquistas e republicanos, que estruturaria o debate público brasileiro dos anos 1890”. 18

16 Ver Nóbrega (1950, p. 50). 17 Em carta redigida no “Gabinete do Govenador do Estado da Paraíba” e datada de 26 de fevereiro de 1890, o

próprio Venâncio Neiva expos as suas razões para romper com o Jornal e o seu proprietário. Na missiva, assim

expressou o governador do estado: Tendo me parecido inconveniente à República a marcha que levava o “Jornal

da Paraíba” e a as manifestações ostensivas de monarquistas de coração por parte de seus redatores, resolvi

reincidir o contrato para a publicação do expediente. Meu ato nada tem de pessoal. Entendi e entendo que assim

procedendo, cumpri rigoroso dever. [Grifos meu]. Conferir carta de Venâncio endereçada a Anísio Salatiel – irmão

do Barão do Abiaí – em 26 de fevereiro de 1890 em Nóbrega (1950, p. 49). 18 Ver Alonso (2008, p. 2).

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Em Abril de 1890, por exemplo, sob o título “Visões do ‘Jornal’”, Epitácio publicou

matéria em que acusa o Jornal da Paraíba de ter “ultimamente enveredado pelo caminho de

mesquinhas alusões pessoais: assoberbado por incomensurável despeito ao ver iludidos os seus

planos de dominação, ao reconhecer que o Dr. Venâncio Neiva resiste às pequeninas

conveniências da política exclusivamente conservadora”, proclamada pelo Sr. de Abiaí. No

centro das críticas feitas pelo Jornal da Paraíba estavam as acusações de Venâncio ter

“exageradamente elevado as despesas públicas com o aumento das cadeiras e a concessão

indevida de aposentadorias”, em suma, enfatizando “falta de economia determinada por

inexperiência ou incapacidade”19 do governante republicano. Para rebatê-las, Epitácio declarou:

Admire agora o público.

Na administração que corre foram criadas: duas cadeiras [de ensino] nesta Capital

(uma do sexo masculino e outra no Externato) e reestabelecidas (não o ensino) as de

Tambaú e Cabedelo: total quatro.

Foi suspenso os ensinos nas de São João do Rio do Peixe, São José das Pombas,

Lagoas, São Tomé, Mataracas e suprimida as de música e religião: total sete20.

Epitácio justificava ao leitor que “o ilustre Governador do Estado não fez supressões de

cadeiras na justa proporção das novas criadas, como se dava por satisfeito o JORNAL [da

Paraíba], mas na razão dupla”. Não se dando por satisfeito em esclarecer o que chamava de

legitima ação do governo, Epitácio tentou mostrar os impactos das medidas sobre o orçamento

do Estado. Para ele, diferente de trazer aumento, os números apontam:

Com escolas suprimidas despendia o Govêrno............................................. 4:636$000

Com as criadas despende atualmente........................................................... 4:468$000

Economia............................................................................... ....................... 168$000

Desta sorte a administração, provendo mais convenientemente às necessidades do

ensino, realizou ainda assim uma economia anual de 168$00021

A ação de Venâncio era então tratada como uma medida de “incontestável alcance

econômico” nas finanças do Estado. Além dela, a fundição das “diretorias da Instrução Pública,

do Externato Normal e do Liceu Paraibano em uma só” foi tida como outra ação admirável de

contenção de despesas. A medida, formalizada mediante decreto nº 6 de 23 de dezembro de

1890, trouxe uma “diminuição de despesas na importância 1:200$ anuais”. De forma paralela,

suprimiu-se ainda nos dois estabelecimentos “os lugares de secretário e um lugar de bedel,

19 Gazeta da Paraíba, Jornal, Parahyba, abril de 1890. In. EPITÁCIO, Pessoa (1965a, p. 57). 20 Idem, (p. 58). 21 Ibidem.

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economizando assim 2:500$000”.22 Em conjunto, tratavam-se de medidas que aliviavam o

orçamento do estado, sem “prejuízos ao ensino”.

De outra ordem, os cortes econômicos na instrução pública atingiam principalmente as

“ajudas de custo e gratificações tão largamente exploradas outrora em benefício de cabos

eleitorais e alcoviteiros políticos”. Neste ponto, atingiam diretamente a antiga ordem e seus

representantes da Paraíba acusados de usar o estado para resolução de interesses particulares

e com isso angariar apoio político. O simbolismo das medidas residia na oposição as antigas

práticas de governistas, fazendo com que fossem representadas como oriundas das ações

enérgicas de uma administração interessada em moralizar a prática política e, por conseguinte,

voltada à defesa dos interesses públicos.23

Para reforçar o argumento, Epitácio não deixou de notar que os ataques do Jornal da

Paraíba provinham da consciência de seus redatores de que “o Estado não é mais uma feitoria

do chefe de sua redação [barão do Abiai], que em todas as suas administrações distinguiu-se

pela inépcia pedante e pelo patronato político” e, portanto, “não busca meios, não escolhe armas

para atassalhar, para deprimir aquele [Governador] que não o quis acompanhar na sua política

imoral de contemporização dos gatunos”.24 Nesse embate, os redatores da Gazeta da Paraíba,

incluindo o próprio Epitácio, põem-se do lado da novidade republicana, “levados apenas pelo

amor da verdade e da justiça”.25

1.1.2 Em defesa do regime republicano: O Estado do Parahyba e a moralização da coisa

pública.

22 Ibidem. 23 Cabe nota a polêmica gerada pela imprensa quando Venâncio Neiva suspendeu contrato de concessão e isenção

de impostos por 20 anos concedido a firma Cahn Frères e Cia (Fábrica de Tecidos) pela última administração

monárquica em 1889. A fábrica explorava a indústria de fiação de tecidos na Capital paraibana. O contrato foi

suspenso sob a alegação de que violava a lei em vários artigos o que revelava ter sido um contrato feito a partir de

um “verdadeiro acúmulo de favores que se procurou mascarar com o título de encargos, juntando assim o

esquecimento do interesse público ao escárnio lançado à face do povo”. Do ponto de vista jurídico, Epitácio

explorou nas matérias os vários artigos que o contrato violava. A suspensão do contrato, contudo, revela outro

traço da estratégia de consolidação do regime, neste caso, atentando-se à justificativa da ação do Governo. Sobre

a polêmica ver artigos da Gazeta da Paraíba de 19, 20, 23 e 25 de abril de 1890. In. EPITÁCIO, Pessoa (1965a,

os originais figuram nas páginas: 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66 e 67). 24 Conferir Jornal Gazeta da Paraíba, Jornal, Parahyba, s/d, Abril de 1890. 25 Os redatores daquela folha, incluindo Epitácio Pessoa, passavam a ser tratados como legítimos defensores do

“interesse público”, movidos pelo “desejo de arredar pérfidos tropeços a uma administração que se procura

deprimir sob a capa esburacada de falso patriotismo e nunca provada lealdade”. Vestindo a capa esburacada da

tradição política conservadora estavam os que “não discutem, respondem aos argumentos com a graçola boçal,

às observações as mais judiciosas com o assobio bandalho”; eram “os paquidermes do JORNAL” [da Paraíba]

que “só nos poderiam responder atirando-nos a lama que suinamente se revolvem”. Gazeta da Paraíba, Jornal,

Parahyba, abril de 1890. In. EPITÁCIO, Pessoa (1965a, p. 58).

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Para alargar o campo de atuação, Epitácio incentivou Venâncio Neiva a criar o jornal

Estado do Paraíba, passado a ser o seu principal redator e polemista político. O Estado passou

a difundir a plataforma propositiva do governo que incluía a valorização da coisa pública,

remetendo à adesão, a tolerância e, sobretudo, a confiança depositada nas forças políticas que

se desenhavam no início da República na Paraíba. Pelas páginas do jornal, Venâncio Neiva

começou a ser publicamente representado como um governante dotado de “conduta liberal,

inteligente e justa” e que sob o seu espírito não pairava “a menor prevenção, no seu ânimo o

mais leve ressaibo das antigas políticas.”26

Ao criar o jornal Estado do Parahyba, autodeclarado Órgão Republicano, e transformá-

lo no principal órgão do governo, Epitácio dava sinais a seus opositores de que um dos palcos

escolhidos para promover a campanha de interiorização dos valores republicanos era a

imprensa. O resultado consistia em formar uma opinião pública disposta a reconhecer os

valores, instituições e representantes da nova ordem política.27 Prova disso é que uma intensa

disputa propagandista ganhou forma pelas páginas dos jornais, opondo de um lado os

republicanos, assim convertidos após a proclamação, e do outro os partidários da antiga ordem

alijados do poder político na Paraíba. Fato que relava como a arena política da Paraíba do

período em tela também foi marcada por um drama político encenado publicamente nas páginas

dos principais jornais do estado e em ocasiões especificas, a exemplo das aparições públicas e

comemorações em defesa das instituições republicanas.28 Nesse drama, os grupos oligárquicos

distribuíam papeis entre os seus personagens que entravam em cena para ganhar e/ou manter

uma posição no jogo político.

26 Ver, PESSOA, Epitácio (1965a, p. 74) o rebate das críticas da Gazeta do Sertão contra as medidas de Venâncio. 27 Em sua primeira Edição, o jornal Estado do Paraíba assim intitulou-se, isto é, com a forma masculina. “Epitácio

oralmente antepunha ao nome do Estado o artigo feminino, mas escrevendo muitas vezes usou o masculino”. Ver

Nota explicativa In. PESSOA, Epitácio. Primeiros Tempos, (1965a, p. 68). O jornal surgiu como um “Orgão

Republicano” epiteto, estampado em sua primeira página, seguido da orientação redatora: “Periódico Político,

Social e Noticioso”. Estampava ainda o lema “An indestructible union of indestructible States”, cuja tradução,

aproxima Uma indestrutível união de Estados Indestrutíveis, reforçando a sua orientação política em uma clara

adesão ao ideal republicano, representante dos interesses do Estado da Parahyba enquanto unidade federativa da

República dos Estados Unidos do Brazil. Exemplo disso é que a segunda edição do jornal, extraída originalmente,

do Arquivo da Fundação Joaquim Nabuco, aparece a forma feminina Estado da Parahyba. Ver, Estado da

Parahyba, Jornal, Parahyba, de 9 de Julho de 1890. 28 Segundo Lewin (1993, p. 207), “na primeira década da República Velha, quando a consolidação nacional era

ainda bastante frágil e eram praticamente inexistentes os recursos materiais na Paraíba ou os provenientes do

governo federal, a principal questão na política do estado dizia respeito a quem iria governar”. A questão abriu

precedentes para que, além do jogo da política e sua relação com a parentela e da disputa no interior das famílias

dominantes, os grupos oligárquicos elaborassem diversas estratégias de afirmação do poder, entre elas, a

competição pela imprensa.

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1.1.3 O ator entra em disputa pelo papel na cena: o jóquei Epitácio Pessoa.

O embate travado pela imprensa deu a Epitácio Pessoa a visibilidade necessária para

começar a aparecer como um político atuante na Paraíba. Já não era mais um jovem bacharel

desconhecido pela maior parte dos conterrâneos, recentemente exonerado da promotoria do

Cabo em Pernambuco, transformava-se em um polemista político de nome reconhecido,

defensor do governo, valores e instituições do novo regime. Dava, portanto, os primeiros

sobrevoos de condor em busca de (re)conhecimento no solo paraibano. Além da capacidade

retórica, atestada através da escrita nos jornais, as aparições públicas funcionaram como um

importante vetor, amplamente usado por Epitácio Pessoa no esforço em fazer-se reconhecer

como um legítimo defensor do ideal e instituições republicanas. Vistas sob o ângulo

comunicação política, tais aparições eram autênticas chances de prestígio em que Epitácio

Pessoa aproveitava para apresentar ao público as suas qualidades políticas.29

Uma dessas aparições públicas ocorreu no dia 01 de julho de 1890, logo após circular

pelo estado as notícias vindas do sul informando da aprovação do primeiro projeto da

constituinte republicana. Naquele dia, a mando do governador, as repartições públicas foram

fechadas e as ruas da cidade animadas pela música do corpo da polícia. Uma passeata circulou

as principais ruas da cidade, passando pelo palácio do governo, onde “levantaram vivas ao

estylo do governador do estado e outros cidadãos, o que reproduziu-se na rua do general Osório,

em frente a typografia do Liberal Parahybano”.30 A manifestação foi noticiada nas páginas do

O Estado do Parahyba em sua primeira edição, informando que os participantes seguiram até

o quartel, “onde terminou a festa do dia por um certâmen oratório em que tomaram parte os

mesmos oradores, salientando-se o Dr. Epitácio por um arrebatado discurso e o Dr. Cunha Lima

[nomeado chefe de polícia] pelo seu valor cívico revelado a par de indizível modéstia”.31

29 Haroche (1998, p. 98) nos mostra que a apresentação de si, levada a efeito enquanto uma estratégia de

autopromoção da imagem pública por parte dos governantes, revela “a importância atribuída aos emblemas, aos

signos exteriores”. Num jogo de aparências, “as palavras mudam, adquirem conteúdos diferentes, mas remetem a

uma constante fundamental do poder político: monárquico ou republicano, o poder deve comunicar”. A

comunicação política figura como uma chave para se entender o sentido das aparições públicas dos governantes,

posto que objetivam “conferir significados à autoridade, ao poder, ao prestígio, à hierarquia com o auxílio de meios

não-violentos”, sendo eles os cerimoniais, rituais ordenados, protocolos e/ou, no caso aludido, passeatas públicas.

Trata-se de um instrumento que pode ser pensado como estrategicamente reivindicado com o objetivo de fazer

“mostrar-se para impor, impor-se”, ou ainda para “seduzir, envolver, fascinar, fixar pelo olhar, pela expressão,

pelas disposições psicológicas inscritas no rosto e expressas pelo corpo”. 30 Conferir Gazeta da Parahyba, Jornal, Parahyba do Norte, 2 de julho de 1890. 31 Ver Estado do Parahyba, Jornal, Parahyba, 8 de julho de 1890. In. PESSOA, Epitácio. Primeiros Tempos,

(1965a, p. 68).

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Certamente, um bom momento para testar a postura, o comportamento e a capacidade oratória

do jovem secretário no meio dos conterrâneos.

No dia seguinte a sua publicação, a notícia virou alvo de severas críticas feitas pelos

redatores da Gazeta da Paraíba que assumia uma postura de distanciamento do governo. De

maneira direta, a Gazeta ironizou o certâmen, afirmando, dentre outras coisas, que “não

sabíamos dessa corrida oratória em que foram jóqueis vencedores os Drs. Epitácio e Cunha

Lima”. Para os redatores da Gazeta, tratava-se de uma imagem montada, leia-se, uma peça

retórica fabricada pelos redatores do Estado para promover a imagem pública dos distintos e

prestigiados oradores. Apesar de questionar a representação atribuída aos dois representantes

do governo, a crítica atingiu em cheio Epitácio Pessoa posto que dias antes a Gazeta chegou a

mencionar a presença do honrado chefe de polícia na manifestação do dia 01 de julho, enquanto

que o nome do secretário geral foi silenciado.

Apesar de publicamente afirmar que não sentia-se ressentido com a tentativa de

desprestigio de suas qualidades e imagem pública pelos redatores da Gazeta, Epitácio foi

pessoalmente ter com eles na noite do dia 07 de julho, no que chamou de amistosa palestra. Na

ocasião, afirmou Epitácio que foi chamado ao assunto, onde “discutimos a propriedade ou

impropriedade da imagem. [...]. Separamo-nos como bons amigos que somos”. Na manhã do

dia seguinte, contudo, a Gazeta suspendia sua publicação e responsabilizava o então Secretário

Geral de não respeitar a liberdade de imprensa e ter censurado o comentário que punha em

cheque a sua capacidade retórica.32

O gesto de Epitácio em discutir a propriedade ou impropriedade da imagem veiculada

pelos jornais pode ser analisar sob dois ângulos. De um lado, revela uma silenciosa luta por

prestígio e posição, disputada de maneira consciente pela imprensa paraibana. De outro, aponta

como o secretário geral do Estado estava vigilante à promoção e negociação de sua imagem

pública que circulava na Paraíba. Em ambos os casos, a defesa de sua imagem era uma forma

de controlar o imaginário no interior de um importante mecanismo para promoção do poder,

isto é, a imprensa. No interior da estratégia de controle, estava a tentativa de fazer com que o

público reconhecesse a sua aproximação junto ao centro do poder da Paraíba republicana.

32 Mostrando-se surpreendido, a denúncia levou Epitácio a elaborar imediatamente uma nota que circulou no

Estado ainda naquele 08 de julho, esclarecendo ao público a contenda que envolvia o seu nome. Na nota, retirando

de si e do governo do Estado qualquer responsabilidade no ato, Epitácio não esqueceu de lembrar ao público que

era um defensor da liberdade de imprensa, para ele “a mais respeitável de tôdas as liberdades”.

Ibidem.

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1.2 Abriram-se os humbraes da carreira política: o talentoso secretário geral.

Na Paraíba as eleições para escolha dos representantes do estado para o congresso

constituinte de 1891 foram marcadas para o dia 15 de setembro de 1890. Nesse período houve

uma intensa movimentação dos grupos políticos para montagem das chapas. De um lado, os ex-

liberais não contemplados na administração de Venâncio arregimentaram-se em torno do seu

antigo adversário, o barão do Abiaí, para compor a chapa oposicionista. Eram nomes de

“considerável peso político-eleitoral como Irineo Ceciliano Joffily (eleito deputado Geral no

último – e frustrado – pleito imperial), Felizardo Ferreira Leite (cuja família, há duas gerações,

chefiava o Partido Liberal) e Aprígio Carlos Pessoa de Melo (de grande prestígio na área da

cana-de-açucar)”. A chapa recebeu ainda os nomes de “Anísio Salatiel Carneiro da Cunha

(irmão do Barão de Abiaí)”, candidato ao Senado e famoso por ter passado dez legislaturas no

Parlamento Imperial pelo Partido Conservador da Paraíba, dentre outros nomes de proa do

partido, a exemplo de Manuel Tertuliano Meira Henriques (candidato ao Senado).33

Já do lado governista, a chapa foi composta por “Almeida Barreto, João Neiva e Firmino

Gomes da Silveira, candidatos a Senadores; e por Pedro Américo de Figueiredo, Epitácio

Pessoa, Joaquim do Couto Cartaxo, João Batista de Sá Andrade e Joaquim da Silva Retumba,

candidatos a deputados federais”. Para além da forte presença da parentela e do arranjo

oligárquico, a escolha e composição da chapa apresentava certo simbolismo frente ao projeto

de legitimidade do governo, posto que os candidatos de Venâncio para as cinco vagas da Paraíba

para a Câmara dos Deputados e para as três do Senado “não incluíam ex-detentores de cargos

no Império, nem representantes da base política do barão, do litoral açucareiro”.34 Embora, por

33 Manuel Tertuliano Meira Henriques era membro da segunda maior família que compunha o Partido Conservador

na Paraíba. Além destes nomes compuseram a chapa “Apolônio Zenaide Peregrino de Albuquerque, João

Cavalcanti Pessoa Lacerda e Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque (Ministro da Justiça e Agricultura durante

o Império)”, candidatos às vagas da Câmara. 34 Para Lewin (1993, p. 209/10), as escolhas de Venâncio “para as cinco cadeiras de deputado federal pela Paraíba

resultaram suas fortes conexões políticas com as zonas sertanejas da Paraíba e com os militares”. Entre os cinco

candidatos, João da Silva Retumba foi o representante do exercício escolhido por seu irmão, João Soares Neiva.

Além deste, compuseram a chapa “um advogado dissidente de Cajazeiras, Antônio Joaquim do Couto Cartaxo,

que possuía uma descaroçadora de algodão no seu município natal no alto sertão; João Batista de Sá Andrade, um

jovem médico republicano da família dominante de Souza, cujo pai fora um ilustre deputado provincial; o famoso

pintor de Areia, Pedro Américo de (Figueiredo) Almeida [indicado por Almeida Barreto], parente longínquo de

Venâncio (uma indicação em parte honorífica e em parte um símbolo de reconhecimento nativista aos antigos

liberais de Areia)”; por fim, “Epitácio Pessoa, o jovem e talentoso secretário de governo de Venâncio, sobrinho da

mulher de seu irmão”. A análise da autora não deixa claro quem foi o responsável pela indicação de Epitácio

Pessoa, embora seja notória a influência da sua parentela no Rio de Janeiro, que incluía o barão de Lucena e o

próprio irmão José Pessoa. Já para as vagas à senatoria, Venâncio escolheu o próprio irmão, João José Soares

Neiva, nomeado “para um mandato de seis anos” e o general Almeida Barreto, que passou a ocupar “a posição

principal, de chefe da delegação federal paraibana, que conferia o mandato de nove anos”. Por fim, para um

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outro lado, a indicação do próprio irmão a senatoria fez o nome de Venâncio estivesse associado

a montagem da primeira oligarquia do estado, denunciada como um “nefasto regimen” de

continuidades.35

A inserção do nome do “jovem e talentoso secretário geral”36 na chapa governista revela

um episódio importante do exercício de ajustar, anos depois, a memória da sua atuação

parlamentar, reafirmando o argumento de que havia alçado aos postos da política não por

interferência da parentela, mas pelo esforço de méritos pessoais. Segundo o próprio Epitácio

Pessoa, a chapa foi escolhida em segredo via cartas e telegramas trocados entre Venâncio Neiva,

João Neiva e Almeida Barreto, “os chefes reconhecidos da Parahyba”, e manteve o seu nome

em suspenso até lançamento oficial. De acordo com Epitácio, ocorreu que certa noite “o

governador chamou-me a palácio e me pediu que escrevesse para o órgão do partido [Estado

da Parahyba] o artigo de apresentação dos candidatos, fazendo de cada um delles uma breve

mais e incisiva apresentação. E deu-me a lista. Lançando os olhos sobre esta vi meu nome”. 37

Ponderando a indicação, Epitácio afirmou que o “governador conservou-se em silêncio

por alguns instantes em seguida respondeu: ‘muito bem; mas como o assumpto é urgente,

escreva desde já a parte do artigo relacionado aos outros candidatos e traga-me [...]”. Atendendo

ao pedido do governador, Epitácio retirou-se do palácio e telegrafou ao João Neiva e Almeida

Barreto para acertar os detalhes da imediata publicação do artigo. O artigo foi preparado e

entregue para publicação que ocorreu em 11 de agosto de 1890. Consta que na manhã da

publicação Epitácio, curioso por ver a indicação do nome que lhe substituiria o seu nome

quando confirmou que a lista não havia sido modificada e que “ao meu artigo outra pena juntara

um tópico de referências ao meu nome”38.

mandato de três anos, a terceira vaga foi dada a “Firmino Gomes da Silveira, membro de uma família de prestígio

da zona do Sertão do Cariri que fora contemporâneo de Venâncio como juiz imperial nos sertões da Paraíba”. 35 Coelho Lisboa, em sessão no senado a 7 de maio de 1908, defende a sua posição em ter deixado o governo de

Venâncio Neiva em 1890, por ser contra “a primeira oligarquia que se formou no Brasil: a oligarquia dos Neiva

na Parahyba do Norte”. O argumento era solidário com Aristides Lobo, contrário desde 1889 a nomeação de

Venâncio Neiva e que meses depois da proclamação, lhe confidenciava em telegrama que não tinha “confiança

alguma no terreno de alluvião que se formou em torno da república”. Anais do Senado. Discurso pronunciado pelo

Senador Coelho Lismo em 7 de maio de 1908. 36 Lewin (1993, p. 210). 37 De acordo com o relato, a indicação foi ponderada por Epitácio que argumento ao governador que “na Parahyba

não havia partido republicano histórico; que no seu governo apenas começava, tacteando entre os dous partidos

monarchicos, se não hostis, pelo menos desconfiados retrahidos, e assim, mais razoável seria que a chapa fosse

buscar, entre os homens mais dignos desses partidos e mais symphaticos à nova ordem de cousas, os elementos

indispensáveis à aceitação e consolidação do regimen que se acabava de proclamar”. Anais do Senado. Discurso

pronunciado pelo Senador Epitácio Pessoa em 17 de novembro de 1925. 38 Ibidem.

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1.3 A peça eleitoral de 1890: a (re)apresentação dos defensores da ordem republicana na

Paraíba.

A primeira vista, a indicação do nome de Epitácio se deu como uma espécie de

recompensa pelos serviços prestados ao estado. Uma forma de ratificar a representação de que

em pouco tempo auxiliando o governo, Epitácio Pessoa passou a ser visto como “um

colaborador eficientíssimo e, mais do que isto, amigo sincero” de Venâncio Neiva, que lhe abriu

os “humbraes da carreira política”.39 Dramatizado ou não, o relato sobre como ocorreu a

apresentação dos candidatos, revela o envolvimento direto de Epitácio Pessoa na manipulação

do imaginário político na Paraíba republicana e como a sua imagem e representação política foi

montada ao passo que ia se tentando legitimar o governo de Venâncio. Como obra de Epitácio

Pessoa, o artigo de apresentação dos candidatos é um bom exemplo desse expediente.

Referindo-se, por exemplo, aos dois candidatos ao senado, isto é, ao General Almeida

Barreto e ao Tenente-Coronel João Soares Neiva – irmão de Venâncio Neiva –, Epitácio não

deixou de lembrar que “os dois primeiros representam o bravo e glorioso exército que,

esmagando nos dedos titânicos êste acúmulo de baixezas e vilipêndios que se chamou o govêrno

monárquico, assentou em nossa história o marco miliário de uma era de grandeza e prosperidade

e designou o nosso lugar no convício das nações libérrimas, atirando para longe o trono que

nodoava a terra americana”.40 De modo geral, a apresentação dos sete candidatos, apoiou-se em

três virtudes cívicas que lhes caracterizavam: o patriotismo, o caráter e o talento. Valores que

eram apresentados como privilégios por excelência do domínio da República, justificando a

exclusão na chapa de antigos representantes da velha ordem, que mesmo alguns deles fazendo

parte do governo, mostravam-se incompatíveis.41

Redigida pelo Dr. Silvino Gomes da Silveira, a apresentação de Epitácio não fugiu a

essa regra. De acordo com o manifesto, “o nome do Dr. Epitácio da Silva Pessoa fecha com

chave de ouro a lista dos candidatos à representação paraibana. Talento superior, espírito

grandemente cultivado, caráter adamantino, orador distinto, o simpático môço paraibano

representa a classe dos funcionários públicos, a que pertence e que abrilhanta”. Assim, “a

inclusão do seu nome na chapa dos que devem representar o estado da Paraíba no Congresso

39 Gabaglia (1951, p. 54). No discurso de 17 de novembro de 1925, legislando ao lado de Venâncio Neiva, Epitácio

negou a influência do barão de Lucena na indicação do seu nome, indagando que se havia alguém que naquela

ocasião lhe abriu “os humbraes da carreira política” foi “o nosso venerado colega, o sr. Senador Venâncio Neiva”. 40 Cf. PESSOA, Epitácio (1965a, p. 75-77). 41 Idem (p. 77).

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Nacional, dêsse nome laureado desde os bancos acadêmicos, onde era o nosso orgulho, é o

reconhecimento público de seu inexcedível merecimento ao mesmo tempo uma homenagem

àquela nobre classe de Servidores da Patria”.42

Oficializada a chapa, o próprio Epitácio assinou um artigo fazendo uma auto

apresentação de si e convocando diretamente os eleitores paraibanos para sufragar votos em seu

nome. O artigo, intitulado “Ao Eleitorado Paraibano”, circulou pela Paraíba em 27 de agosto,

e trazia uma mensagem de Epitácio afirmando que sentia-se honrado em ser candidato a

representação do “Estado ao futuro Congresso Nacional”. Dizia, para tanto, que detinha de

“títulos de família nem de vida política que me recomendem (se na época atual isto pode ser

uma recomendação) perante os eleitores dêste Estado”. Em sua descrição, a ausência dos laços

parentais, lhe tornava livre para o “exercício de minha atividade em prol dos interêsses da minha

Pátria nem compromisso que arremessam o meu esforço na defesa das ideias ou reformas que

julgue mais consoantes à constituição liberal e definitiva da República”. Dando a certeza de

que “no cabal desempenho de seu honroso mandato, caso me seja conferido, posso contudo dar-

lhe a certeza de que meu ânimo jamais se entibiará no empenho de tornar-me digno dele.”43

Naquele pleito, Epitácio Pessoa foi o candidato mais votado, obtendo 9.975 votos contra

os 2.730 votos de Apolônio Zenaide, o oposicionista mais votado. A vitória da chapa de

Venâncio, em conjunto, “se refletia o êxito dos esforços, no sentido de conciliar chefes políticos

interiores”, numa intensa disputa por apoio em que colaborou o jogo de imagens e discursos

que se veiculou pela imprensa. Já, no caso do sucesso de Epitácio, não resta dúvidas que a sua

vitória se deu em partes pelo apelo dramático por votos feitos dias antes, além da sua disposição

para criar uma representação de si junto a situação política dominante. Bastando lembrar que o

projeto de legitimação do governo fez das eleições de 1890 um ambiente propenso a

espetacularização.

Em tese, tratava-se do primeiro pleito aos moldes do governo recém instaurada,

momento adequado para se cultuar a própria república, além dos conceitos que lhe davam

sustentação, a exemplo, da democracia e da cidadania. Dias antes do pleito, Epitácio convocou

os eleitores da Paraíba chamando a atenção para a importância de participar do pleito e destacpi

“a gravíssima responsabilidade [do Governo Provisório] de dar ao país uma organização

[Constituição] política sólida, liberal e verdadeiramente republicana”. Para isso, completa “êle

42 No manifesto que circulou no Jornal Estado da Paraíba em 11 de Agosto de 1890, a apresentação de “Epitácio

Pessoa foi redigida pelo Dr. Silvino Gomes da Silveira, conforme nota manuscrita do autor, à margem do recorte

de Jornal que nos serviu de original”. 43 Cf. PESSOA, Epitácio. Primeiros Tempos (1965, p. 84).

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conta com o patriotismo nunca desmentido de todos os brasileiros; o povo paraibano, estamos

certos, não desiludirá essa honrosa confiança, não deixará de colaborar, com a nobreza e

desprendimento que lhes são próprios, na obra gigantesca de reconstrução da Pátria”44.

Convinha, para tanto, alertar o povo paraibano sobre a responsabilidade que lhes

recaiam e, para não contrariarem “o exercício daquele direito, o cumprimento daquele dever,

convém que os inspire no seu patriotismo para comprometer os seus votos com candidatos

infesos ou indiferentes à República, baldos de patriotismo e atufados de ambição pessoal”,

candidatos que “longe de auxiliar irão dificultar o afanoso labor dos grandes homens que

felizmente nos governam45”. Como cidadãos, investe o redator, o futuro da nação e, por

extensão, da província estava em suas mãos, na capacidade de escolher os legítimos

representantes da república, dotados de patriotismo, de espírito público, condições indeléveis

para construção do novo Brasil.

Eleito para representar uma nova geração de parlamentares paraibanos, preocupados

com a defesa dos interesses legítimos do estado, Epitácio continuou a usar as páginas do jornal

Estado do Paraíba ao longo da década de 1890. Elaborou, para tanto, uma coluna que circulou

entre 1891 e 1894, em que enviava para a Paraíba uma espécie de boletim informativo trazendo

um resumo dos debates e discussões que travava na tribuna da Câmara em defesa do seu estado

natal. Além das notas na imprensa oficial, ao longo desse período Epitácio garantiu que alguns

dos meus discursos corressem impressos em avulsos.

Considerações finais.

O sucesso da trajetória política de Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa foi muito bem

trabalhado quando se analisou na Paraíba o vínculo existente entre a política e a parentela que

naquele estado sobreviveu com potencial vigor durante toda a primeira república. Para Lewin

(1993), Epitácio foi um produto direto da parentela, apesar do esforço direto do político

paraibano para expandir o poder da sua família política. Mas, permanece comigo algumas

perguntas: Teria a família Pessoa, e por extensão, o próprio Epitácio Pessoa se projetado na

política estadual e nacional apenas com base na força da parentela e do arranjo oligárquico?

Não teriam eles, os líderes do epitacismo na Paraíba, de alguma maneira se apoiado em formas

44 Ver Estado do Paraíba, Jornal, Paraíba, 12 de Julho de 1890. In. PESSOA, Epitácio. Primeiros Tempos (1965a,

p. 72). 45 Ibidem.

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mais sutis de representações para colaborar na projeção de suas carreiras políticas? Teriam eles

inventados uma tradição onde o prestígio e a fama política eram justificados em meio a

discursos e práticas ajustadas em determinadas situações?

São perguntas, a meu ver, válidas que permitem ao menos pensar a possibilidade de

traçar outros caminhos teóricos e metodológicos para apreensão de um objeto em particular:

como se formou a tradição familiar Pessoa na Paraíba da primeira república. Essa busca talvez

se apoie na crença de que as vidas dos sujeitos são móveis e adaptáveis dentro de configurações

em constante transformação. Nesse caso, é preciso ainda lembrar que, como sujeito, o

personagem da nossa história criou imagens de si e as usou, ao passo que também era

representado sob a lente de seus contemporâneos, correligionários, entusiastas, intelectuais e

políticos. Isso fez com que Epitácio Pessoa figurasse em meio a uma constelação de imagens

justapostas, combinadas de modo a justificar a sua existência lendária. Fato que nos leva a

imaginar como Epitácio drenou para si um conjunto de representações culturais a fim de criar

um lugar de poder e nele legitimar-se.

Estratificadas, essas imagens nos põe diante de uma espécie de encruzilhada, cujas rotas

revelam traços diversos do imaginário coletivo e político que se formava na Paraíba daquele

período. Deve-se acrescer a isso que tratam-se de imagens nem sempre concordantes, evocadas

para preencher funções opostas e que vão assumindo significados diversos de acordo com as

circunstâncias históricas. Portanto, é possível que no curso dessa análise histórica se possa

encontrar vários “Epitácios” e múltiplos “Pessoas”, que, mesmo sendo historicamente

definíveis e possuindo traços singulares, podem ter sido objetos de desacordos acerca do seu

significado histórico.

REFERÊNCIAS

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publicidade e divisão de imprensa oficial, 1950.

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Pessoa: EDUFPB, 1989.