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VERDADES E QUIMERAS Livro I: Razão e razões Prefácio Em nossos tempos, a ousadia e a coragem estão intimamente ligadas às buscas do ter, do prazer e do poder, todavia, em nenhuma delas, o ser humano se encontra satisfeito. Almeja sempre mais e, com isso, pensa estar dando sentido à sua existência. E o que é existir num mundo capitalista? É ter a sua funcionalidade definida pelo fator financeiro, é renunciar a muito para conquistar pouco, é esperar pelo futuro que, observado à distância, parece bem melhor do que o presente; enfim, é esperar pelo futuro do futuro do futuro... Não é necessário ser um grande observador para se deparar com essa realidade. O Ser já não parece ter a sua existência em si mesmo, depende de algo que lhe dê “legitimidade”. Mas é preciso ter cautela quando se analisa a sociedade: há diversos críticos sociais, mas poucos revolucionários. Ser um cético não muda em nada a situação daqueles que sofrem, como também não muda em nada, ser somente um crente. Aqui, porém, a análise não tem visões revolucionárias, seu intuito é o Ser do homem e da mulher em um mundo cujas mudanças sociais interferem diretamente em sua vida e, conseqüentemente, em suas decisões. Assim, a liberdade se transforma na angústia da opção, na insegurança diante do incógnito, na permanência do Umbral. Diante da angústia da escolha, a liberdade é limitada por meios que, consciente ou inconscientemente, direcionam o ser humano a aceitar as convenções sociais estabelecidas, como um ator que simplesmente representa aquilo que outros determinaram sem se perguntar sobre o verdadeiro sentido de sua existência, pergunta fundamental para que se adquira a verdadeira direção na altiva busca da felicidade. Desde o nascimento, o ser humano é levado a agir e a pensar de acordo com o que foi estabelecido pela sociedade como certo ou errado. Educar passa a ser sinônimo de alienar, aliás, a própria necessidade de ser “educado” é algo que parte de um mundo no qual este novo ser deve ser introduzido gradativamente. Com o passar dos anos, o ser em questão começa a possuir os primeiros sinais de sua “humanização”. O uso de certos tipos de roupas, as atitudes relacionadas ao “momento propício” e a adesão de seres mistificados o colocam numa trilha cujos desvios são punidos de acordo com o seu grau de “conscientização”. No estágio intermediário, o novo ser começa a perceber que uma belíssima capa dourada cobria uma grande quantidade de dejetos; sua primeira atitude é a revolta. Esta, já esperada pela sociedade, é apaziguada por racionalizações que lhe darão uma ilusória sensação de alegria cujos efeitos voltarão a cercear a sua busca de liberdade; afinal de contas, quem se desvia de caminhos ‘tão certos’ (ou, pelo menos, aceitos como tais) não é verdadeiramente livre, é um demente, um libertino, um alienado... (entenda-se a ironia destas palavras). Eis a maior razão pela qual parece não valer a pena se desviar: o preço a ser pago por tal atitude é muito alto.

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VERDADES E QUIMERAS

Livro I: Razão e razões

Prefácio

Em nossos tempos, a ousadia e a coragem estão intimamente ligadas às buscas do ter, do prazer e do poder, todavia, em nenhuma delas, o ser humano se encontra satisfeito. Almeja sempre mais e, com isso, pensa estar dando sentido à sua existência. E o que é existir num mundo capitalista? É ter a sua funcionalidade definida pelo fator financeiro, é renunciar a muito para conquistar pouco, é esperar pelo futuro que, observado à distância, parece bem melhor do que o presente; enfim, é esperar pelo futuro do futuro do futuro... Não é necessário ser um grande observador para se deparar com essa realidade. O Ser já não parece ter a sua existência em si mesmo, depende de algo que lhe dê “legitimidade”. Mas é preciso ter cautela quando se analisa a sociedade: há diversos críticos sociais, mas poucos revolucionários. Ser um cético não muda em nada a situação daqueles que sofrem, como também não muda em nada, ser somente um crente. Aqui, porém, a análise não tem visões revolucionárias, seu intuito é o Ser do homem e da mulher em um mundo cujas mudanças sociais interferem diretamente em sua vida e, conseqüentemente, em suas decisões. Assim, a liberdade se transforma na angústia da opção, na insegurança diante do incógnito, na permanência do Umbral.

Diante da angústia da escolha, a liberdade é limitada por meios que, consciente ou inconscientemente,

direcionam o ser humano a aceitar as convenções sociais estabelecidas, como um ator que simplesmente representa aquilo que outros determinaram sem se perguntar sobre o verdadeiro sentido de sua existência, pergunta fundamental para que se adquira a verdadeira direção na altiva busca da felicidade.

Desde o nascimento, o ser humano é levado a agir e a pensar de acordo com o que foi estabelecido pela sociedade como certo ou errado. Educar passa a ser sinônimo de alienar, aliás, a própria necessidade de ser “educado” é algo que parte de um mundo no qual este novo ser deve ser introduzido gradativamente.

Com o passar dos anos, o ser em questão começa a possuir os primeiros sinais de sua “humanização”. O uso de certos tipos de roupas, as atitudes relacionadas ao “momento propício” e a adesão de seres mistificados o colocam numa trilha cujos desvios são punidos de acordo com o seu grau de “conscientização”.

No estágio intermediário, o novo ser começa a perceber que uma belíssima capa dourada cobria uma grande quantidade de dejetos; sua primeira atitude é a revolta. Esta, já esperada pela sociedade, é apaziguada por racionalizações que lhe darão uma ilusória sensação de alegria cujos efeitos voltarão a cercear a sua busca de liberdade; afinal de contas, quem se desvia de caminhos ‘tão certos’ (ou, pelo menos, aceitos como tais) não é verdadeiramente livre, é um demente, um libertino, um alienado... (entenda-se a ironia destas palavras). Eis a maior razão pela qual parece não valer a pena se desviar: o preço a ser pago por tal atitude é muito alto.

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No último estágio, o ser humano é realmente aceito como tal. Sua “humanização” foi concluída. “Agora, ele será livre para pensar e agir”. Todavia, seu pensamento foi formado de maneira condicionada e, o que parece seu, na verdade pertence à execrável sociedade. Sua certeza é impingida e sua liberdade é ilusória. Quando só se tem um caminho, não há o que escolher e, toda opção parece acertada. Dessa forma eliminou-se a angústia da dúvida e, com ela, a liberdade da escolha.

“Razão e razões”, longe de ser uma “tentativa milagrosa” de livros que oferecem pílulas de bem-estar aos seus dependentes, faz de suas análises intrínsecas a cada fato do cotidiano uma possibilidade de construção de um caminho consciente. Por que se falar em caminho? Por que se falar em consciência? Quando escolhemos um caminho, temos em mente somente o seu destino, não o seu trajeto. A decepção que aflige a muitas pessoas, não é o que se alcançou, nem mesmo a diferença (determinada pelos sentidos) daquilo que se almejou, mas, sim, os desafios que são inerentes a todo caminhar. É neste momento que a consciência age, mostrando ao peregrino quais são as pedras que devem ser escaladas, desviadas e, por que não, ignoradas: há muitas pessoas que tomam decisões precipitadas sem ter em mente o que se vai enfrentar, mas há outras que nunca tomam decisões por que têm em mente desafios que ‘pensam’ que enfrentarão. Estas últimas buscam razões (motivos) sem utilizar a razão.

Em “O fogo celestial de uma vida em vivência” um jovem relata as lembranças de sua vida a partir do momento em que iniciou a formulação de sua visão de

mundo. Já na adolescência, é forçado a enfrentar o diferente devido a diversos fatores socioeconômicos. A sua linguagem, o seu modo de encarar os problemas, a sua falta de iniciativa, a sua aceitação passiva do acaso, a invenção de diversos subterfúgios para explicar suas decisões ou relutâncias são exemplos de atitudes humanas relacionadas ao Ser e à Liberdade. Mas este é somente o ponto de partida para um julgamento mais aprofundado.

Em “Liberdade ou solidão”, o personagem é um jovem cujas buscas sempre acabam no vazio. Suas reflexões abrangem diversos pontos de vista já conhecidos, todavia não se inclinam a defender nenhum deles: teses são refutadas a todo instante, mas não deixam de propiciar ao Ser Humano um crescimento, principalmente para o mundo hodierno onde pensar é perder tempo, e tempo é dinheiro. A criança, em sua visão de mundo, anseia pela liberdade que um dia conquistará ao se tornar adulta. O adolescente inicia a sua busca tentando se desvencilhar daqueles que lhe inseriram os conceitos convencionais da sociedade: seus familiares; mas quando se torna jovem, percebe que formou as suas próprias convenções e delas se tornou prisioneiro. Desta forma, o jovem chega ao Umbral mencionado acima: a escolha de um dos vários caminhos ou a escolha da não-escolha. Em nada poderá fugir, estará condenado a ser livre e terá saudades dos tempos nos quais se achava um joguete do destino.

Em “Aprendendo a viver”, reflexões feitas anteriormente são retomadas em forma de versos. Seus temas abrangem às atitudes humanas que tornam a vida mais, ou menos deleitosa: de acordo com a conseqüência da liberdade. Seus versos, apesar de parecerem certezas,

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são questionamentos. A simples aceitação das convenções sociais pode livrar o homem da angústia da escolha inerente à liberdade? Liberdade é sinônimo de felicidade? Podem as convenções sociais dar sentido à existência humana e, ao mesmo tempo, limitar a sua liberdade?

Enfim, “Razão e razões” não tem a pretensão de ser uma pequena obra filosófica, não há uma fundamentação contínua e bem embasada para isso. Ela é apenas uma faísca que pode originar um grande fogaréu, mas como em potencial nada não é nada, não é possível atribuir à faísca o resultado devastador do grande fogo.

No momento, limitemo-nos a concluir o óbvio: somos atores e representamos uma peça cujo final, trágico ou feliz, dependerá de nosso grau de consciência que deflagrará com veemência no peito, mas poderá conferir ao Ser Humano a genuína liberdade.

Primeira Parte: O Fogo celestial de uma vida

em vivência

Prólogo

Há no mundo diversas procuras: da pessoa ideal para a companhia do dia-a-dia, de um emprego cuja reciprocidade vá além das características financeiras, daquilo que se perdeu, daquilo que não mais existe fora da lembrança, enfim, da felicidade. Em todas essas procuras há um sentido, mas nem por isso, há um encontro. Procurar algo, não significa necessariamente

encontrá-lo. Procuramos porque temos a esperança de encontrar, mesmo que todas as procuras anteriores não tenham resultado em nada. E, assim, vamos vivendo a vida, de encontros e desencontros, de perguntas respondidas e perguntas sem respostas, de desesperos e esperanças.

Só pode ser percebido como ausente aquilo que um dia esteve presente de alguma maneira, ainda que somente na imaginação. Os sentimentos antagônicos têm essa função em nossa vida: fazem-nos valorizar aquilo que tínhamos perdido e reconquistamos. Dessa forma, a lembrança tem um poder incomensurável, já que, torna presente aquilo que já não existe, mas a sua influência é eterna.

Em “O fogo celestial de uma vida em vivência” há uma tentativa de abstração feita na intenção de translocar o leitor para o âmago de um adolescente que vive a situação vivida por muitos outros: o êxodo rural ocasionado, principalmente, por fatores sócio-econômicos. Este acontece em um ambiente de angústia em deixar uma vida toda direcionada e planejada para a vivência de uma vida incerta: eis o “medo do diferente” que acompanha a todo ser humano; afinal de contas, quem nunca teve medo da mudança? Toda opção vem acompanhada de renúncias, mas pode também determinar realizações que acontecem paulatinamente. O ser humano, muitas vezes, estima demasiadamente os momentos não vividos e as renúncias feitas, esquecendo-se de valorizar a felicidade presente em cada momento: porque esperar um momento futuro para ser feliz? Este é o horizonte no qual se deve mirar para que se entenda a mensagem de “O fogo celestial de uma vida em

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vivência”. Este fogo é a felicidade encontrada pela Esperança, pela Liberdade e pela complementaridade do Amor. Deve-se ter em vista, não somente os fatos, banais como todo acontecimento da rotina diária, mas a reflexão dos mesmos para a vida em vivência.

Curiosidade

Caminhava em uma rua de Petrópolis numa manhã em que o sol desfazia a neblina do dia anterior dando aos transeuntes uma beleza natural e deslumbrante. Passeava tranqüilamente admirando os monumentos sempre vistos por mim na correria dos dias. Enquanto reparava nas formas de um prédio, antigo Seminário Lazarista construído em 1897, avistei um jovem que parecia ter em média uns vinte anos de idade. Segui aquele jovem com um olhar perscrutador, não parecia ansioso nem estranho no caminhar, mas chamou-me a atenção por carregar consigo uma agenda apertando-a no peito com força; quando passou sobre uma ponte, atirou-a no córrego. Em seguida, respirando profundamente, correu sem olhar para trás. Como não satisfizesse a minha curiosidade, desci ao córrego e, com um bambu, puxei a agenda que flutuava na água, mas não seguia a direção das pequenas correntes, estava agarrada entre duas pedras. Não me lembro do que pretendia encontrar ali, mas sei que desejava saber o motivo de tal atitude. Abrindo aquela agenda rapidamente, observei que se tratava de uma história cuja veracidade não era aparente de imediato, apesar das páginas estarem datadas como em um diário. Levei-a para casa e deixei que secasse sob o sol.

No outro dia, quando voltava do trabalho, avistei na janela do ônibus que passava o rosto do jovem que vi no dia anterior. Com certeza estava de partida. Chegando em casa, peguei a agenda e, com dificuldade, li aqueles escritos manchados pela água que contavam a seguinte história...

Perspectivas da Cidade Grande

Quando descrevemos um fato nunca deixamos de nos lembrar dos detalhes ocorridos e o florimos de acordo com o estigma de emoção que ainda se faz presente. Se assim não fosse, nada do que foi teria a magia da qual é envolvido simplesmente por não mais ser. Exagero se dirá de certos detalhes, mas o que se vive é inefável e pertence a uma ocasião no presente que se tornou passado e que nunca mais voltará a ser o que foi. Eis a origem da magia da ausência.

Era verão, mas o sol já não parecia transmitir o seu brilho de antes. Sentia a falta de todo o ar puro que me acompanhava nas idas e vindas do interior. O silêncio de um tranqüilo povoado fora agora substituído por um intenso barulho de carros, fábricas e pessoas em contínua pressa e movimento, já que, naquela grande cidade, tempo era dinheiro. As pequenas casas do interior que forneciam um conforto inigualável foram agora substituídas por vultosos edifícios nos quais pessoas vivem em apartamentos (que deveriam se chamar apertamentos, já que nestes, lutava-se continuamente pela falta de espaço). As sombras aconchegantes das árvores, o despertar, ao amanhecer, com o canto do galo que

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reboava facilmente no silêncio e antecipava o lindo arrebol, o cantar harmonioso dos pássaros, a orquestra sinfônica dos sapos, dos grilos e demais animais ao anoitecer, enfim, tudo o que fazia parte de minha vida dando-lhe a harmonia que, somente agora, valorizava verdadeiramente, desaparecera. Tudo era tão diferente!

Ninguém parecia se preocupar com um lazer tranqüilo, quando aquelas pessoas paravam para isso, somente buscavam os lugares de grandes complexos como estádios, shows e, quando sós, pareciam ter medo do silêncio, pois a televisão e o rádio não paravam de funcionar e, o que é pior, em alto volume.

Os momentos mais frutuosos de amizade, amor e afeto pareciam não mais existir, o que fez com que eu achasse que minha vida naquele lugar seria por demais monótona.

Eu, no momento sem nada poder fazer, ficava estupefato com tanta correria e, mais ainda, com tanto individualismo. Imaginava o que estariam aquelas inúmeras pessoas pensando e para que tinham tanta pressa! Corriam atrás de algo que nunca encontravam e, nesta correria, só se preocupavam consigo mesmas. Era a rotina das grandes cidades que esperava mais um representante para a sua busca de sentido e, algo me dizia que, o próximo candidato para tal seria eu.

Como já não bastasse, nem mesmo consegui despedir-me de meus amigos, pois sua tristeza pela morte de um querido padre não deixava que um pouco de atenção fosse em mim despendida. Tudo isso me fazia colocar como incógnita o que poderia me acontecer. Preferi sair silenciosamente e correr atrás de meu futuro,

ou melhor, do futuro projetado a partir de então; já que hoje posso dizer com segurança que ele não existe e que a vida é um mistério, planejamos algo, mas nossos projetos são frustrados por inúmeros imprevistos e, o mais certo deles, a morte, chega de uma maneira tão imprevista quanto os demais imprevistos, porém ninguém a espera como uma amiga. Ela chega devagar e, por mais que tenhamos certeza que dela participaremos, nunca aceitamos encará-la frente a frente. Ela é a maior surpresa que se pode ter numa vida tão cheia de planos como a do ser humano: pessoas que nunca andaram de avião de repente morreram em um acidente causado por um avião que caiu em suas casas, crianças que nunca andaram em brinquedos perigosos, de repente, morrem por um leve tombo que atinge uma região fatal. Todas estas reflexões colocavam como incerto não somente o meu futuro, mas também, o tempo que ainda teria para construí-lo.

Tudo isso me inquietava e me deixava na perspectiva de uma vida tão agitada que não me daria nenhuma chance para viver em sintonia com as pessoas. Vida esta, tão embrenhada na rotina da cidade grande, que poderia acabar me deixando na solidão em meio àquela multidão.

Lembrança de viver

Lembro-me de toda aquela vida deixada no interior: “aquilo que era vida!” Trabalhávamos a semana toda, mas sabíamos que nosso esforço seria recompensado por um descanso que, agora, não seria menos merecido. Dizia eu a mim mesmo, nestas horas de

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deleite nas quais planejava o meu futuro, olhando o horizonte de uma preguiçosa rede: “Ah Vítor! Um dia nestas roças estarão seus filhos trabalhando felizes, satisfeitos com a vida tranqüila que terão. Sua esposa, bonita e feliz, olhará com você este horizonte que parece não se acabar. À noite, uma viola cantará melodias infinitas aproveitando as noites de luar. Sonhe Vítor, sonhe! Sonhar vale a pena, não custa nada!”. Olhar de criança, olhar de esperança.

Morávamos em uma pequena fazenda próxima de um povoado sem nenhuma infra-estrutura. Todos os dias, pela manhã, levantava às cinco horas para tirar leite, cuidar das criações e, depois de tudo, entrar na lida de um agricultor que trabalhava mais pelo prazer do que pela necessidade. Meus pais eram estudados, tinham ambos o ensino médio, mas depositaram naquela região suas esperanças, até que alguns fatos vieram abalar a confiança que tinham no futuro. Lembro-me, como se fosse ontem, de meus pais discutindo para sair da situação na qual nos encontrávamos nos últimos dias:

- Lourdes, temos que arrumar uma forma de não cairmos na miséria. Produzimos pouco, a seca de meses atrás e a geada dessa semana me fizeram perceber que não temos muitas saídas. Além disso, o governo que nunca pensa nos pequenos agricultores tomou medidas que favorecem somente os grandes latifundiários.

- Toda essa situação é piorada ainda mais com a dificuldade de criarmos nossos filhos para o futuro. A escola mais próxima fica a vinte quilômetros e já não possui mais estrutura para comportar tantos meninos que aparecem todos os dias. Sabemos que até mesmo com

estudo é difícil alguém conseguir muita coisa começando do zero, imaginemos como nossos filhos enfrentarão as dificuldades que estão aparecendo dia a dia. Nosso filho, Vítor Augusto, já está com catorze anos e ainda não terminou o primeiro grau. Nossa filha, Eulinda, já está com dezoito anos e, até hoje, nunca pensou em namoro e, seus irmãos, Marcelo e Cristian, nunca pisaram numa sala de aula que não fosse para o catecismo. Ah! George, se pudéssemos voltar à época da qual reclamávamos, mas na qual as coisas eram mais fáceis!

- Nós ao menos demos a sorte de, em nossa época, não ter estado tão difícil a sobrevivência. O mundo que o homem constrói, parece que está fazendo deste um escravo seu e, o que é pior, nenhuma mudança volta atrás.

- Parece não haver outra solução, a não ser, irmos para a cidade e tentarmos fazer a vida lá. Faremos isso pensando mais em nossos filhos que em nós mesmos. Vitória parece uma cidade que poderá dar recursos para continuarmos com nossa difícil missão: criar nossos filhos para o mundo.

Não sabiam eles que eu estava atrás da porta escutando toda a conversa e, naquele momento, simplesmente, chorei. Todos os projetos que eu tinha acabaram caindo no chão juntamente com minhas lágrimas.

O futuro já não era tão certo como outrora e, todas as raízes que ali a família Bresser plantara, agora, como que atingidas pela mesma seca de meses atrás, não poderiam mais produzir. Mas o sulco deixado na terra não se fecharia jamais. É o estigma de quem é levado a

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enfrentar os dilemas da liberdade mesmo contra a vontade.

Decidi então, viver mais intensamente aqueles dias, o que não conseguiria fazer sem muito lamentar.

Corrida contra o tempo

Depois de sair dali, comecei a pensar em minha triste sorte. Percebi que tudo o que havia planejado para o futuro havia se tornado nada mais que gotas d’água numa panela quente. Minhas sensações alternavam-se entre tristeza e alegria. Alegria por descobrir coisas recônditas sobre minha vida naquele lugar e tristeza por deixar uma vida cujo futuro parecia de concretização de todas as esperanças.

Aqueles com os quais sempre reparti meus projetos nem imaginavam o que se passava em meu interior. Procurei camuflar minha tristeza, mas não consegui, precisava desabafar. Contei primeiramente a Suzy que, calada, escutava. Parecia nem prestar atenção no que eu falava, pois seu olhar fixava-se perdido no horizonte. Para minha surpresa escutei com voz chorosa a triste exclamação:

- O homem faz, Deus desfaz! A sua tristeza não é maior que a minha, pois nunca tive um amigo como você, e você possui vários amigos e, com seu jeito, conquistará muitos outros. Gosto tanto de você! De seu jeito, de sua agradável conversa: uma mistura de saber desinteressado e assuntos do dia-a-dia. Percebo que mesmo estando perto de você agora, parece que já o vejo a quilômetros de distância.

Depois daquelas palavras tão sinceras e comoventes chorei disfarçadamente, pois não desejava causar mais comoção. Nunca havia percebido quão grande era a amizade de Suzy por mim. Pena que precisei sair para tão longe para, então, perceber algo que era tão explícito em nossas conversas debaixo de árvores que nos ofereciam chuvas de flores a cada carícia do vento primaveril.

Quando as lágrimas secaram em meu rosto, suspirei e, com a alegria de uma grande amizade que só agora eu havia descoberto plenamente, misturou-se à tristeza de não mais poder estar perto de quem gostava tanto de mim. Lamentei mais uma vez a minha triste sorte e me senti como alguém que tinha alguma importância na vida de outras pessoas. E, daquele momento, não saiu nem uma vírgula sequer. As palavras de Suzy, que muito me cativaram, ficaram tão gravadas em meu coração quanto um esculpido sobre um diamante:

- Não se esqueça de mim Vítor. Porque, quanto a mim, por mais que eu tente, não esquecerei de você. O meu consolo, nas horas de recordação de nossos preciosos momentos, será saber que alguém ainda pensa em mim da mesma maneira que eu penso nele.

Aquele momento foi um dos quais sempre darei glórias a Deus. Sabia que seria bem menos doloroso sair sem falar nada com ninguém, mas era preciso que tivesse um motivo bem justo para explicar tanta tristeza que transparecia em meu rosto naqueles dias.

Sempre tinha inspirações para fazer comparações e poemas que expressavam de uma maneira toda especial o que sentia, mesmo na tristeza (achava que tinha

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vocação para poeta). Desta maneira, nos momentos em que alguém, querendo testar o meu humor, pedia-me para recitar algo, dizia-lhe com toda entonação uma poesia que fiz juntamente com meu pai:

Nos momentos de tristeza

Procuro algo que me demonstre beleza,

Nos momentos de dor

Procuro algo que me demonstre amor,

Nos momentos de solidão

Procuro algo que me demonstre a razão,

Nos momentos de alegria

Procuro algo que sirva aos outros de valia.

Naquele momento, porém (voltando a falar do momento em que conversava com Suzy), não posso explicar o que senti. Sabia que nenhuma palavra sairia de minha boca facilmente. O silêncio foi a melhor forma de dizer o quanto me cativaram aquelas palavras. E foi dessa forma que dela me despedi, apesar de faltarem ainda alguns dias para mudarmos para a cidade. Se eu tivesse algum motivo que determinasse a minha ida para outro lugar, se dependesse de mim, Suzy seria o motivo suficiente para que eu ficasse.

Na volta, encontrei amigos com os quais eu partilhava um divertimento numa “pelada” durante os sábados no pasto. Parecia ter visto um fantasma e estar

sofrendo, até então, os efeitos do susto. Breno, que nunca tinha me visto num estado tão deprimido, me perguntou:

- O que entristece você? Você parece outro? Não joga mais com aquele ânimo que nos impulsiona mesmo quando nosso time perde de tantos gols! Diga-me, o que está acontecendo?

Não era necessário ser um bom psicólogo para perceber que algo me incomodava. Sabia que aquelas palavras não partiram do nada, mas sim do que transparecia, de uma mente que não sabia fazer outra coisa a não ser sofrer por algo que ainda estava para vir. Não podendo mais esconder, discorri de forma melodramática:

- Não sei se devia adiantar uma notícia tão triste para mim, mas tão breve de se realizar quanto a chuva que sabemos que vai cair já pelas nuvens a se formar...

Contei-lhe então todo o diálogo que escutei de meus pais e sua decisão. Atentamente me escutou como alguém que poderia me ajudar de alguma maneira, mas sabia, no entanto, que nada que fizéssemos mudaria uma decisão tão irreversível quanto a metamorfose de uma lagarta.

O sarcasmo dessas comparações é tão eloqüente quanto a dor que sinto ao relembrar esses acontecimentos que pungem com veemência em minha alma. Evidentemente, não usei esta mesma linguagem com a qual recordo o passado. De fato, sempre recorro a estes artifícios para não me banhar em lágrimas e não molhar com elas o papel no qual escrevo o que se encontra marcado em minha memória.

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Filipe, meu melhor amigo, foi o único que não notou o estado em que eu me encontrava. Isso, naquele momento, não me chamou a atenção: preocupava-me, somente em relatar toda a minha angústia, pronto para receber um retorno, o qual não veio.

Por um instante, ao anoitecer, parei e pensei na maneira egoísta com a qual ele conversou comigo: só falava de si, de suas angústias, de suas esperanças e de suas indecisões, mas, ao parar para refletir, percebi que o egoísmo que a ele atribuí, na verdade era meu; por um anseio de satisfação de meus desejos egoístas, queria que todos estivessem ao meu redor lamentando a minha partida. Não percebi que meu amigo estava passando por momentos tão decisivos em sua vida quanto os meus: Luanda, sua namorada, queria que ele tomasse uma decisão séria em relação ao seu futuro, ou o casamento ou o término do namoro. Ele não sabia o que fazer, afinal de contas, tinha apenas dezoito anos e nem sequer tinha um emprego que garantisse a formação de uma família, porém angustiava-se ao se ver sozinho, sem aquela que amava. Ela? Só pensava em sair de casa e ficar livre de seus pais que não deixavam que desse um espirro sem sua permissão. Veio então Filipe a seu melhor amigo (apesar da grande diferença de idade entre nós) para relatar a sua indecisão, mas eu me preocupava somente com meus interesses. Minha atitude egoísta fez com que eu chorasse amargamente mais uma vez, não por causa do que antes me preocupava, porém por ser tão vulnerável a erros que poderia, em uma semana, perder não somente a presença física de meus amigos, mas, também, toda a amizade que por mim ainda teriam, mesmo após a minha partida.

Um dia de tantos acontecimentos foi aquele que, por nele pensar, fiquei até as duas horas da manhã sem dormir. Parecia que uma tomada tinha sido ligada em minha mente e não desligava. Por mais que eu tentasse dormir, pensando até mesmo no que sonhar, não saía de minha mente tudo o que naquele dia se passara. Para tentar dormir, resolvi rezar o terço, devoção que cultivei desde criança. Neste momento, o sono chegou juntamente com a décima Ave-Maria, razão pela qual não terminei de rezar e, dormi em cima do terço, acordando com o mesmo, no outro dia, grudado em meu rosto.

Você já percebeu a infinidade de coisas engraçadas que acontecem quando estamos tristes? Pena, que não as podemos enxergar, a não ser no futuro quando delas nos lembramos. Somente quem as vive sabe como elas realmente se fixam, por mais banais que pareçam.

Hábitos do cotidiano

No interior, tínhamos vários costumes. A vida era tranqüila e solidária. Quando alguém necessitava de algo e contava com a ajuda de outro, imediatamente, todos se juntavam e seu problema era resolvido à medida do possível. A solidariedade era uma característica marcante em nossa vida, participávamos sempre de mutirões. O povo tinha algo que o unia em profundidade, não sabia o quê, nem de que forma. Imagino que a religião era uma das causas disso. A simplicidade devota daquele povo fazia-o colocar em Deus toda a sua segurança.

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Toda semana, aos domingos, íamos à missa e dela participávamos alegremente. Este era um dia diferente: a rua se encontrava repleta de crianças brincando; os bares cheios de jogadores que desfrutavam, depois da dura lida da semana, de um lazer agradável com os colegas; das casas ressoavam sons de rádio ou de viola. Nada poderia estragar aquele dia. Algumas vezes, excessos na bebida causavam brigas, mas, na semana seguinte, tudo voltava ao normal, pois lá quem não vivesse em harmonia, não conseguiria nunca fingir a inexistência de seus inimigos num lugar onde todos se conheciam e se viam todos os dias.

Até mesmo a forma de nos vestirmos era diferente. Durante a semana mamãe não se preocupava com a roupa que vestíamos a menos que estivesse suja ou rasgada, mas, aos domingos, nos vestia com as roupas mais novas que possuíamos. Era o dia mais alegre da semana e o mais esperado. Realmente aquele dia era dia de festa!

Durante a semana, íamos a diversos terços. Minha mãe, mulher devota de Nossa Senhora da Conceição, não perdia um terço sequer. Ora para rezar a pedir por um doente, ora por causa do falecimento de um amigo, lá estava ela rezando, cantando e louvando a Deus.

Naquele ambiente fui criado sem me preocupar com o futuro, apesar dos inúmeros planos que para ele fazia. Era extrovertido e falava muito. Buscava a atenção das pessoas em todo momento. Diziam que eu era um garoto especial. Tudo isso me fazia acreditar em minhas próprias capacidades e, com orgulho, exclamar sempre a mim mesmo: “ah Vítor, Você chegará longe!”. Apesar

disso, buscava ser humilde e acreditava que só conseguiria alcançar meus objetivos se fosse ajudado por uma ‘força superior’.

Naquela última semana, até mesmo os terços eram diferentes. As orações se voltavam para a incerteza do futuro de nossa família na cidade grande. Meus pais não tinham a ilusão de resolver todos os problemas ao tomar aquela decisão; vários amigos nossos, depois de algum tempo na cidade grande, voltaram cabisbaixos falando das dificuldades enfrentadas. Alguns deles chegaram até mesmo a mendigar para conseguir o dinheiro necessário para voltar. Para minha família, no entanto, aquela decisão era tão necessária quanto é necessário respirar para sobreviver (talvez nem tanto, mas era o que parecia). Tudo isso era objeto de muita oração e ansiedade.

Chegada à cidade grande

Finalmente chegou o dia da partida. Passamos todo o dia anterior preparando a mudança. O sol ainda não tivera coragem de aparecer, eram apenas três horas da manhã e a natureza parecia dormir, pois nada nela demonstrava o lamento de nossa partida. Meus pais escolheram esta hora para fugir das despedidas ao passar pela pequena cidade. Muitos amigos nossos, como nós, também não gostavam de despedidas, mas, ao partir, não conseguiam esquivar-se das dolorosas e comoventes

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partidas. Nós, porém, partimos sem que ninguém ainda estivesse acordado. Algumas horas depois todos se dariam conta de que já não estávamos em seu meio, mas talvez não nos julgariam mal por aquela atitude.

Viajamos cerca de seis horas até Vitória. Um vento gelado entrava pela janela do caminhão. Meus irmãos dormiam tranqüilos; eu, porém, ansiosamente, olhava para toda a paisagem como se dela me despedisse. Nada do que eu imaginava parecia com aquela cidade que agora contemplava. Toda aquela correria, todo o movimento, as imensas construções, deram-me um enorme sentimento de insegurança. Sentia-me como um cachorro a correr com medo dos fogos de São João. Evidentemente eu não latia, nem mesmo corria. Estupefato perguntava a mim mesmo: o que vai ser de mim neste lugar?

Primeiros dias de aula

No interior, freqüentei a escola poucas vezes. A professora depositava em cada aluno, além do desejo de crescimento, uma amizade materna. Minha mãe sempre dizia que ela seria a nossa segunda mãe, afinal de contas, metade de nosso dia era passada com ela. Quanta saudade tinha daquela professora com a qual tantas vezes demonstrei rebeldia para atrair-lhe à atenção sobre mim. Não sei o que mais me fazia relembrar saudosamente dela: sua tão doce voz ou a paciência com que nos ensinava.

Naquela cidade, porém, ao meu modo de ver de criança, os professores pensavam estar falando com gravadores. Falavam como quem espera que o outro já saiba. Quando alguém fazia uma pergunta, por mais bem formulada que fosse, era o próximo candidato às chacotas da sala pelos berros da professora. No primeiro dia de aula, uma professora, com ar sisudo e com inúmeros livros de matemática, entrou, fechou a porta e, sem nada dizer, deixou o quadro repleto de operações matemáticas. Ninguém perguntava nada, alguns cochichavam: “essa é aquela professora!”. Automaticamente todos copiavam. Todas aquelas atitudes pareciam técnicas para impor respeito à turma. Mais tarde percebi que ninguém aprendera realmente aquela disciplina. Todos a estudávamos com o maior empenho, mas nenhuma das questões das provas parecia semelhante às questões que mecanicamente decorávamos.

Na aula de história, um professor de olhar penetrante, encantou as alunas da sala que, imediatamente, puseram-se a lhe fazer diversos elogios. Primeira pergunta do dia:

- Quanto você quer tirar num ano letivo cuja maior nota é cem.

Para minha infelicidade, fui o primeiro a responder:

- Cem!

Todos me acompanharam dizendo o mesmo. Quando o último aluno respondeu, imediatamente, escutamos o professor gritando de forma irada:

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- Nunca pensei que teria alunos tão ambiciosos e orgulhosos. Onde foi parar a humildade que aprenderam? Se seus pais não lhes ensinaram a ser humildes, eu vou lhes ensinar.

Um aluno, alto e magro, cujos óculos descia a todo o momento ao escorregar pelo nariz levantou-se e sentou-se novamente por medo de ser mandando para fora da sala de aula; mas, tremendo, disse:

- Sempre aprendi que não devemos ser medíocres.

- Você está me desafiando? Lembre-se de que o professor sempre tem razão, mesmo que esteja errado. Ele é seu superior e sabe a hora certa de dizer a verdade ou escondê-la.

Eu me sentia o culpado de toda aquela confusão e, por isso, perguntei com voz baixa:

- Professor! Tem hora que falar mentira é certo?

Para minha surpresa ele me respondeu no mesmo tom e, agora, com calma:

- Às vezes procurar a verdade é mergulhar num oceano de inquietações.

Não compreendi o que ele me disse, mas percebi que era melhor não questionar demais para não ser mal visto por ele.

Nada daquilo era compatível com a minha realidade. Levei um grande susto quando a professora de matemática iniciou operações com hambúrgueres. Esta palavra era mais estranha para mim quanto um

extraterrestre o é para o ser humano. Com voz estridente, virou-se para mim e disse:

- Diga Vítor! Você tem três hambúrgueres, sua prima tem o dobro e seu irmão tinha o triplo, mas acabou de comer um. Quanto dá a soma dos hambúrgueres seu, de sua prima e de seu irmão?

Pensei em várias alternativas para escapar àquele problema. Poderia falar que minha prima não gosta de hambúrguer. Pensei tanto que acabei me esquecendo que na matemática o que importam são os números e perguntei:

- O que é um hambúrguer?

Naquele momento, mesmo os que pareciam dormir durante toda a aula, dispararam a rir. Eu não sabia qual era o motivo da graça, mas percebi que aquele não era o momento certo para fazer aquela pergunta quando ouvi ao meu lado um cochicho: “ele é doido, não sabe com quem tá brincando!”. Todavia a professora nada disse, fixou os olhos em mim e mandou-me ao quadro escrever enquanto ditava:

- Xis mais duas vezes xis mais, abre o parêntesis, três vezes xis menos um é igual...

Outra dificuldade que enfrentei foi a adaptação de meu jeito extrovertido e alegre. No interior, as pessoas pareciam muito mais alegres e davam mais abertura ao humor pelo humor. Na cidade, havia algo que mais tarde defini como: síndrome da tristeza; pois, o riso só era permitido quando fosse causado por uma satisfação sádica de chacota aos outros. Por estar risonho a todo instante, a turma me cognominou com vários apelidos aos

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quais eu reagia com certo nervosismo. Percebi que quando damos valor ao que os outros falam de nós ou ao que eles querem fazer de nossa pessoa, neste momento aproveitam-se para liberar suas potencialidades sádicas. Então, resolvi não mais dar ouvidos ao que falavam a meu respeito.

Certo dia, percebi que um colega chorava. Não sabendo do que se tratava perguntei-lhe o que havia que, se virando, me empurrou dizendo:

- Te espero após aula. Vou encher a sua cara de socos.

Ao sair da escola, fizeram uma roda em volta de nós esperando a briga iniciar. Gritavam como loucos, pareciam um bando de peruas num alvoroço. Recebi um soco no braço direito. Senti-me importante por atrair tanta atenção e, por isso, não reagi, ao contrário, dei altas gargalhadas. Percebi que isso deixou o meu colega mais irritado e falei:

- Você não me fez nada, nem eu lhe fiz coisa alguma; por que estamos brigando?

Na mesma hora todos se afastaram e, de longe, escutava as vaias e os gritos. Nenhum deles, porém, me deixaram irritado; ao contrário, fiquei feliz por ver os valores que cultivei desde criança estarem agora me servindo de valia. O que ganhei com tal atitude? Mais chacotas, contudo, mais um amigo.

O desconhecido bate à porta

Na vida de todas as pessoas um dia aparece esse desconhecido. Todo ser é por ele dominado e nenhuma de suas ações acontece sem ele. É uma voz que chega devagar e possui a pessoa por completo, convida-a a nele encontrar sem restrições, sem medo de ser feliz, toda a sua realização. E, por mais que a pessoa tente escapar, ele a captura de uma maneira tal que ela já não vive em si mesma; seus pensamentos viajam por montanhas e colinas e, por isso, seu corpo é algo que já não a segura no local onde jaz. O mundo parece se reduzir a ele e o tempo é o único inimigo: corre rápido quando se quer que demore uma eternidade e corre devagar quando a ansiedade não deixa o momento presente ser vivido. A pessoa já não é mais a mesma, o que antes estava nela escondido, agora aparece como um tesouro oculto no fundo do mar, um sentimento recôndito no fundo da alma, uma necessidade semelhante ao ar que se respira ou ao alimento que a sacia. Sutil, penetra nos corações sem que estes possam percebê-lo e, depois que isso acontece, a pessoa se entrega a ele voluntariamente. Na mitologia grega, esse desconhecido foi tomado como o mais velho (pelo valor de sua sabedoria) e o mais jovem (pela sua beleza) de todos os deuses. A própria vida é obra deste grande artista. Todos o conhecem, mas não sabem como explicá-lo. Sua vultosa força faz com que toda pessoa dele participe, mesmo que não o demonstre em suas ações ou não o admita como parte inerente a todo ser. Por isso, ele é o fator mais conhecido empiricamente no mundo, já que ninguém foge ao seu poder e também o mais desconhecido entre os homens, pois sempre age de uma forma distintamente nova. Seu nome resume bilhões de palavras que o tentassem explicar. Entre os Gregos

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contava-se uma história na qual talvez se espelhe todo homem diante da inelutável força deste desconhecido, o amor: Na origem, os homens eram dotados de órgãos duplos. Eram extremamente ousados. De tanta ousadia que, certa vez, resolveram atacar o próprio Olimpo. Os deuses, enfurecidos, resolveram vingar-se. A partir de então, os homens foram separados em duas metades. O amor nasceu daí: é a eterna procura, o eterno desejo que os homens sentem de procurar a outra metade que um dia perderam. Quando alguém a encontra, encontra também a felicidade.

Repito: nenhuma pessoa escapa ao seu poder, nem mesmo eu escapei. Até então, sentia-me tranqüilo, porém, numa vida rotineira e num crescente individualismo. Vivia somente em função de mim e de meus projetos. Quando pensava em formar uma família, fazia-o sem cogitar a existência de uma pessoa que me completasse, família para mim, era uma instituição convencional da qual ninguém escaparia. Planejava a felicidade, mas somente a minha felicidade. Já acostumado aos moldes capitalistas da posse, imaginava conseguí-la como uma dona de casa que vai à feira e escolhe as frutas de boa qualidade. Atitudes egoístas rodeavam meus planos e os faziam acontecer até que fui tomado pela inefável força do amor.

O que fez com que eu me tornasse tão diferente? Fiz muitas amizades, sorria em todo momento. Ocasionalmente escutava: “há um bom tempo lhe conheci, mas só agora percebo como você é realmente, que bom seria se não julgássemos pelas aparências!”. Na verdade, aquelas palavras eram a prova incontestável de

meu isolamento, mas o que afinal aconteceu para ocorrer uma mudança tão repentina?

Faces da paixão

Já havia passado dois meses de aula e ela chegou. No princípio, sentou-se em uma das carteiras do fundo da sala de aula e não conversou com ninguém. Nada falou quando lhe apresentaram aos alunos da classe. Mas, no passar de três dias, já havia feito amizade com todas as alunas. Seu nome era Jéssica Sousa e tinha 14 anos de idade. Nunca havia contemplado beleza tão rara: seus cabelos castanhos, soltos ao vento, irradiavam a luz do sol como se fizessem parte de sua essência luminosa; seu olhar de criança era tão penetrante que parecia saber o que estava escrito na alma de cada pessoa; seu sorriso, sempre presente em todos os momentos que a via, demonstrava uma alegria que contagiava a quem dela se aproximasse.

Sempre a via rodeada de amigas, mas uma presença me intrigava: Willian, nosso colega de classe. Ele não a largava nem mesmo um minuto à hora do recreio. Sempre os via voltar para casa juntos. Aquilo era o martírio para mim. Que destino o meu, apaixonar-me por uma garota que já tinha namorado! Todavia, nem mesmo isso me fez esquecê-la. Olhando no dicionário, a folheá-lo distraidamente, encontrei: Paixão – entusiasmo, ardor, amor, sofrimento... Pensei: “tudo iniciou no entusiasmo da primeira vez que a vi, seguiu-se o ardor de

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não me esquecer dela nem um segundo sequer, já estava, tendo as primeiras noções do que seria o amor e deparei-me com o sofrimento”.

Certa vez, fizemos uma excursão, fomos à praia para conhecer o mar e analisar geologicamente as diferenças entre costas altas e costas baixas. Para minha tristeza, Jéssica não foi, estava com uma forte gripe. Chegando lá, percebemos a realidade degradante do ser humano que destrói o mundo em que vive. Exatamente no local para onde fomos, encontramos inúmeras redes de esgoto deixando na praia uma gordurosa mancha de dejetos cujo mau cheiro era sentido à distância. Imediatamente, fomos para outra parte, onde grande número de pessoas desfrutava das belezas naturais naquela tarde de sufocante calor. Contemplamos aquela magnífica paisagem, mas não entramos n’água imediatamente. Uma das professoras quis dar um sentido de pesquisa àquele passeio e dividiu-nos em duplas para que fizéssemos uma redação sobre a poluição litorânea. Chamou-nos dois a dois e deu-nos uma prancheta para que nela descrevêssemos a sensação que tivemos ao deparar com os dois lugares cujas diferenças só dependiam das conseqüências das atitudes humanas. Para minha surpresa, ela me chamou e disse:

- Você Vitor, irá fazer o trabalho junto com o Willian.

Quis pedir a ela que me deixasse fazer aquela redação com outra pessoa, mas não teria argumentos para justificar tal preferência. Pegando a prancheta, fui para um lado da praia, esperando ser seguido por aquele que era a razão de meu ciúme para com Jéssica. Foi assim que

o senti bater-me, como um amigo, às costas e pensei em descarregar a ira que tinha acumulado instantaneamente naqueles últimos dias, mas ele me disse:

- Ali há um quiosque. Vamos para lá e, enquanto escrevemos, pago-lhe um refrigerante.

Aquele balde de água fria fez com que eu respondesse calmamente:

- Não precisa se preocupar, eu já trouxe tudo em minha mochila.

Lá, escrevemos rapidamente nossa redação. Tínhamos opiniões iguais em tudo. Até mesmo me esqueci dos sentimentos que acumulara contra ele anteriormente. Quando terminamos um lanche, encorajei-me e perguntei:

- E Jéssica, por que não veio?

Eu sabia perfeitamente qual era motivo de Jéssica não haver ido àquela excussão, pois vi o bilhete de sua mãe nas mãos da professora, mas queria saber o que havia entre ela e Willian. Ele, abaixando a cabeça, disse:

- Mãe não a deixou vir. Na verdade, nem mesmo quis que eu viesse, mas Jéssica insistiu para que ela me deixasse vir e, depois eu lhe contaria o que eu vira. Nem nossa irmã mais nova, Liliane, pôde vir...

Meu coração queria saltar do peito ao ouvir aquilo: Willian era irmão de Jéssica. A partir deste momento, tudo o que ouviram de mim naquele passeio foram anedotas, altas risadas e pieguices. Uma professora, quando voltávamos, disse sarcasticamente:

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- Ah, Vitor! Viu passarinho verde, hein!

Se Jéssica tivesse ido àquela excussão, não sei quanto tempo mais, eu viveria na dúvida de outrora, mas tudo aquilo determinou a emoção que se entranhou em meu ser e, a partir daqueles dias, a paixão voltou a significar ardor.

Obra do acaso

Estávamos no mês de maio, já haviam passado três meses desde que a conheci, ou melhor, desde que a vi pela primeira vez, pois, até então, nunca tinha tido a coragem de dela me aproximar.

Distraía-me quase sempre durante as aulas, não me juntava à roda dos bagunceiros da sala e, nem mesmo me importava com as chacotas que faziam a meu respeito. A vida que antes planejara tornou-se banal e os sonhos povoaram as minhas noites como por um encanto. Provavelmente outras mudanças viriam por em risco novamente a minha felicidade ilusória. Por mais que tentasse escapar aos pensamentos, neles me deleitava. O sabor daqueles pensamentos dava-me uma sensação estranha, a de um conflito entre forças opostas: alegria e tristeza, êxtase e angústia, ansiedade e preocupação...

O melhor dia da semana passou a ser a segunda-feira. Os dias mais angustiantes de minha vida eram os do final de semana. Passava-os definhando-me em pensamentos ansiosos e reflexões sem sentido. Aos

outros, parecia que algo muito sério me preocupava. Todos me perguntavam o que havia acontecido ao meu constante bom humor, mas nada me tirava daquela sensação de solidão. Todos os pensamentos eram direcionados para ela e, por mais que eu soubesse que, de nela pensar, só me angustiaria, não fazia outra coisa a não ser isso.

Apesar da força de meus sentimentos, não fui capaz de procurá-la nem mesmo para conversar. Deixei-me levar pelo pensamento de que aquilo era algo passageiro e fui vivendo meus dias na procura de voltar à estabilidade emocional na qual me refugiaria. Na verdade, aquela era a forma que encontrei para justificar a minha falta coragem. Além de tudo, sabia, ou melhor, imaginava que ela não sentia o mesmo por mim. Dessa forma, passavam-se os dias, mas nenhuma iniciativa de minha parte era tomada. Preferi ficar na falsa segurança de nunca escutar um não, a arriscar dar um passo para a minha felicidade.

Certa ocasião, na escola, a professora de matemática organizou grupos de trabalho. Nomeou na sala aqueles que tinham maior facilidade em sua disciplina para que ajudassem aos outros. Novamente, uma professora me ajudaria mesmo sem tal intenção, a me aproximar de alguma forma daquela que fazia parte de meus sonhos de garoto apaixonado. Fui designado ajudante do grupo de Jéssica e, nesse dia, as esperanças se tornaram mais vivas do que nunca. O Grupo era composto por pessoas muito interessadas, o que facilitou a minha atuação. Jéssica era muito arguciosa, não sabia eu o que fazer para ajudar uma pessoa que até mesmo me corrigia em minhas somas. Havia algo que fazia com que

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eu não me concentrasse quando iria ajudá-la. Evidentemente, não é necessário falar o quê.

A partir daquele grupo, uma amizade, jamais imaginada por mim, crescia como uma flor regada com água e com muito amor. Ao pronunciar o seu nome, eu estremecia da cabeça aos pés com o receio de que ela não me escutasse. Aquela insegurança foi com o tempo superada, mas eu ainda não tinha a coragem de dizer o que sentia por ela.

Período obscuro

Às vezes eu me achava o homem mais feliz do mundo por ter uma amizade tão linda com uma pessoa tão bela como Jéssica. Nossas oportunidades de conversas aumentaram paulatinamente. Sempre, ao sair da escola, ela me esperava para que juntos conversássemos sobre a aula, sobre os planos para o que restava do dia e para, junto com alguns colegas, cantar e contar anedotas. Insistia eu em sempre me lembrar de algo que pudesse interessá-la. Todo silêncio era inquietante: deixava-me numa sensação de vazio e, o melhor que eu poderia fazer quando acabavam os assuntos era despedir-me.

Um dia fiquei sabendo que ela escutava um programa de rádio às onze horas da noite e, como eu estudava até esse horário, passei a escutá-lo. Quando ouvia músicas que eram oferecidas por amigos, namorados e parentes, imaginava escutar o meu nome. Sonhava com o dia em que, no meio de uma programação, escutaria uma mensagem de Jéssica a mim

dirigida. Um dia resolvi oferecer-lhe uma música pelo rádio. Fiquei acordado até as doze e quinze da noite até escutá-la. No outro dia, esperava que Jéssica viesse a mim e, com um simples sorriso comentasse sobre isso, mas quando a vi, não sorriu e nem falou coisa alguma. Naquele dia não parou após a aula para conversarmos. Aquela atitude nunca fora explicada. Fiquei durante todo o dia a imaginar o que teria acontecido. Teria estragado nossa amizade ou ela simplesmente não havia escutado à programação daquela noite. Em outro dia, perguntando-lhe sobre isso, nada me respondeu. Não se lembrava de tal dia. Essa é uma das coisas que o presente ao se tornar passado toma de nós: a realidade sem mistificações ou esquecimentos.

Em muitas ocasiões, Jéssica dizia querer falar algo após a aula. Naquele dia, todo empenho para concentrar-me era inútil. Meus esforços somente se dirigiam para a tentativa de descobrir o que ela queria me falar. O tempo passava devagar e, após a aula, subíamos juntos o morro que levaria tanto à minha casa como à dela. Nessa subida, falávamos sobre os vários assuntos de sempre, mas nunca sobre o que ela gostaria de me falar (era o que eu imaginava). No final do caminho eu perguntava:

- O que é que você disse que gostaria de falar comigo?

E ela respondia com um sorriso inquestionavelmente convincente:

- Não se preocupe, não é nada importante!

Naquele dia, não conseguiria fazer mais nada a não ser pensar no que ela poderia ter falado a mim. Mais

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uma vez, continuaria me definhando na procura de meios para afastar-me daquela sensação de alegria triste, angústia macabra e morbidez tétrica que todo silêncio me transmitia. E nesse dia, meus versos eram desprovidos de rimas e muito estranhos:

Meu espírito está tão mórbido, como um enterro;

Minha sorte parece dar ouvidos às vozes da sexta-feira 13;

Meu dia parece nublado apesar de tanto sol;

Os únicos amigos que me restam são o vinho

E o gato preto que encontrei hoje na encruzilhada

A devorar um despacho por mim oferecido.

Muitas vezes alguém lia versos como estes sobre a minha mesa e me perguntava qual era a razão de tanto pessimismo e eu, tentando disfarçar, respondia sorrindo:

- A rapadura é doce, mas não é mole, meu amigo. É a vida que nos faz sermos o que somos e estar como estamos e isso é só o que eu tenho a lhe dizer.

E escutava como resposta:

- Seja otimista, a rapadura é dura, mas é doce! Se está passando por um momento difícil faça de conta que está numa canoa furada remando contra a maré só para exercitar.

- Eu já ouvi isso em algum lugar!

- Então deixe que essas palavras façam reviver seu otimismo! Veja, não é preciso fechar os olhos, basta olhar a realidade de outra forma.

Agindo contra o sentimento

Certa ocasião, no último dia de aula do semestre, Jéssica disse novamente que gostaria de falar comigo. Já haviam passado quatro meses desde que com ela conversei pela primeira vez. Desta vez, imaginava que nada impediria que ela falasse o que realmente tinha a me dizer: seus olhos demonstravam indecisão, sua fala fora cortada como se tivesse levado um susto, seu sorriso tão constante já não aparecia com a mesma facilidade. Eu já não estava tão ansioso como das outras vezes, algo parecia me dizer que aquele não era o meu dia de sorte, apesar de que a mesma parecia bater em minha porta. Após a aula, como de costume, encontrei-a tão ansiosa para falar como nunca e perguntei sorrateiramente:

- O que você queria me falar?

Sem precisar insistir ela começou a andar devagar e falou:

- Vítor! Você é a única pessoa na qual tenho tanta confiança. Já disse a você várias vezes que não tenho iniciativa para nada. Aliás, no mundo de hoje, pobre da mulher que tem iniciativa e diz o que sente a alguém...

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Imaginei: “esta indireta deve estar se referindo a mim”. De repente ela silenciou como se esperasse uma resposta, mesmo sem ter perguntado coisa alguma. Como eu também nada dissesse ela prosseguiu:

- Você sabe o que as pessoas dizem de nossa amizade? Dizem que somos apaixonados um pelo outro. Não sei, mas...

Por mais que eu tentasse, nada consegui dizer. O silêncio pairou, este incomodava tanto a mim quanto a ela. Ambos esperávamos uma iniciativa um do outro. O que fazer? O que dizer? O acaso havia feito a sua parte, mas eu não conseguia fazer a minha. Andamos silenciosamente cerca de três minutos até que ela disse:

- Último dia de aula é tão cansativo. Os professores insistem em lançar matéria, mesmo com todas as notas fechadas. Não sei se estou cansada por causa da aula ou do sono, esta noite dormi uma hora da manhã...

Notei que ela conseguira um bom meio para cortar aquele assunto que parecia não ter fim. Eu tremia por inteiro e não sabia o que dizer, só esperava escutar. Ela falava como uma mulher que coloca remendos aqui e ali numa roupa rasgada. Mudava de um assunto para outro sem que nenhum deles tivesse relação entre si. Mas, de repente, escutei algo que preferiria não ter escutado:

- David, aquele meu colega da aula de música que você conheceu outro dia, pediu para namorar-me. Pedi um tempo para pensar e, agora, encontro-me nessa indecisão. O que você acha?

Aquelas palavras foram duras demais para mim. Pelo seu olhar ou pelo meu orgulho sabia que naquela interrogação estava incutida uma indagação: “Se você não quiser namorar-me, aceitarei namorar o David”. Pensei: “Se ela estivesse realmente gostando dele, não teria indecisão alguma!”. Eu, naquele momento, com a coragem mais minguada do que sempre, agia como se fosse uma pessoa à parte daquela história. Não queria que ela fosse influenciada por meus sentimentos e achei que seria melhor esperar que o tempo demonstrasse a ela o que eu sentia. Como já não bastasse não ter um pouco de ousadia em falar-lhe, disfarcei minha angústia aconselhando a ela:

- Veja quais são as intenções de David, talvez ele seja a pessoa que você tanto procura!

Não posso explicar o que me fez agir daquela maneira. Sei somente que esperava que ela não concordasse comigo como das outras vezes. Infelizmente, desta vez não pude evitá-lo.

Jéssica se despediu e foi para casa. Seu olhar, outrora indeciso, agora parecia esconder uma tristeza. Seria a decepção do que eu lhe dissera ou a indecisão diante da proposta de David? Talvez era simplesmente a aparência do cansaço que relatara. Não sei se fiz o certo, mas, mais uma vez, fui castigado por omitir o que sentia e não aproveitar as chances que me foram dadas pelo acaso. Mas não há nada tão ruim que não possa piorar mais um pouco.

Agora eu lamento por não ter feito o que quis,

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Lamento profundamente

Por não ter sido eficiente

Em minha busca de ser feliz.

Coincidência ou azar?

Terminaram as férias. Era chegado o momento de me reencontrar com aquela que já fazia parte de meu viver, apesar de, talvez, não estar ciente disso. Jéssica havia viajado, visitaria alguns parentes no interior. Isto fez com que eu deixasse de aproveitar do descanso que me era apresentado.

Tentando ludibriar o tempo, trabalhei excessivamente, mas, nada do que fiz, fez com que o tempo agilizasse em seu trajeto. Cada minuto parecia um século. A inimizade entre o tempo e eu era vigente por minha ansiedade. Ansiedade em revê-la, ansiedade em falar-lhe, ansiedade em saber o resultado de nossa última conversa: teria lhe perdido? Não tive coragem de me declarar a Jéssica, contudo alimentava a esperança de não perder a sua amizade, esta era a única motivação a favor de minha falta de iniciativa. O que aconteceria se eu realmente tivesse me declarado a ela? Quem saberia, quem saberá?

Chegou o dia tão esperado. As aulas iniciariam no meio de uma semana, pois o primeiro dia letivo, também era o primeiro do mês. Naquele dia, acordei uma hora

antes que o de costume e, quando abriram os portões da escola, lá estava eu. Professores que me viram chegar, falavam de mim, em voz baixa, entre si, mas eu pude escutar uma das frases que dizia: “viu aquilo que lhe falei? Há ainda alunos interessados que esperam ansiosos por voltar às aulas!”. Quando entrei na sala de aula, ri daqueles que pensavam saber o que ia escondido dentro de minhas atitudes.

Para aumentar mais ainda a minha ansiedade, Jéssica não compareceu àquele primeiro dia de aula. Aliás, nem mesmo metade da turma comparecera. Os professores ocuparam o tempo, conversando sobre as férias e todas as coisas banais que sempre fazemos quando não temos mais nada para fazer. Naquela semana, não pude matar minha saudade, ela é quem quase me matou. No final de semana, resolvi sair de casa. Meus colegas, que não me viram em nenhum dia das férias a passear pelo centro, estranharam ao ver-me naquele domingo. Ficaram comigo até as oito horas da noite num shopping. Quando foram embora, resolvi assistir a um filme no cinema que começaria às dez horas. Ao chegar em casa regulei o rádio-relógio para despertar no horário em que eu pudesse sair com tranqüilidade para a aula no outro dia. Os sonhos daquela noite foram uma mistura de vários elementos desconexos e sem nenhuma ligação entre si: Jéssica e eu fomos ao Shopping e, lá, dois garotos nos pediram autógrafos. Não importávamos em dá-los, pois, neste sonho éramos atores de teatro. De repente Jéssica me chamou, tínhamos que fazer uma gravação para um filme que seria passado em duas horas. Eu estranhei tal atitude, mas não questionei. Quando entramos no cinema, percebi que no lugar do palco estava

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o quadro negro e no lugar das cadeiras acolchoadas estavam as carteiras ocupadas pelos alunos. Iria começar a aula e o novo professor entrou: era David que, com uma régua repreendeu o irmão de Jéssica que me perguntava quantas horas eram. Ao olhar para o relógio, percebi que eram seis e meia. Nesta hora acordei. Quando olhei para o rádio-relógio, não pude saber as horas. No meio da noite, com certeza, por algum motivo, foi interrompido o fornecimento de energia elétrica e meu rádio-relógio piscava marcando doze e trinta. Levantei-me e fui à cozinha onde vi relógio de parede que marcava sete e meia. Não havia mais tempo, não poderia entrar na escola naquele horário.

Pensei que teria pelo menos um subterfúgio para encontrar Jéssica naquele dia: saber que matéria o professor tinha lecionado; mas, quando bati à porta de sua casa, sua mãe atendeu e, simultaneamente, saía trancando a porta. Perguntei-lhe:

- Jéssica está? Eu queria...

- Não repare. Eu já estou de saída. Jéssica foi à aula de música com um amigo.

Quando disse as últimas palavras já estava do outro lado da rua. Aqueles dias realmente não pareciam meus dias de sorte. Indo para casa, liguei o rádio. Esperava me distrair um pouco. Quando aumentei um pouco o volume, escutei minha mãe a gritar do quarto: “desligue essa porcaria, quero silêncio, estou com dor de cabeça!”. É estranho uma pessoa pedir silêncio a gritar. Ri quando nisso pensei, mas, quando o silêncio voltou, senti-me inquieto, precisava fazer algo para disfarçar o

vazio que aumentava gradativamente pelas obras do acaso.

Conseqüências de um agir

Na terça-feira, não faltei à aula. Por prevenção, coloquei para despertar-me, além de meu rádio-relógio, um pequeno relógio famosíssimo pelo seu alarme. Muitos naquela cidade o possuíam. Eu não sabia onde fora fabricado, alguns diziam que era produto de contrabando paraguaio, outros, que era um material de refugo japonês, apesar da gravação: fabricado em Manaus. Não me importava de onde vinha, mas, naquele dia, fez com que eu não deixasse de ir à aula. Infelizmente, ele durou somente uma semana. Contudo, eram os dias nos quais eu achava que precisaria mais dele.

Cheguei à escola dez minutos antes, não conseguia controlar o meu nervosismo. Quando lá cheguei, não esperava encontrar, tão cedo, aquela que esperava ansiosamente em rever. Lá estava ela, mais bela do que nunca. Sua face demonstrava o efeito que as férias tiveram sobre ela: sorria como uma criança que acaba de ganhar em seu aniversário o brinquedo que tanto esperava. Sua animação era grandiosa, principalmente quando gesticulava contando os fatos de suas animadas férias juntamente com suas primas. Após a aula, como esperava, Jéssica me chamou. Conversamos seguindo o trajeto até nossas casas. Nesse dia, nenhum de nossos colegas seguiu com a gente. Falava alegremente de seu descanso e de suas aventuras. Mas uma atitude deixou-me

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inquieto: quando falava sobre algo relacionado às conversas que tivera com suas primas, fixava seu olhar no alto do morro e mudava repentinamente de assunto. Parecia que me ocultava alguma coisa.

Na sexta-feira daquela semana, saímos mais cedo. A professora de matemática não pôde comparecer, estava de licença por um motivo que eu desconhecia. Pensei que poderia ficar mais alguns minutos ao lado daquela que era a razão de meus sonhos, mas, quando a avistei, notei que abraçava alguém. Não aproximei, ao contrário, afastei-me fingindo não tê-la visto, andando rapidamente ia à frente deles. Não sabia quem a acompanhava, eu estava cego de ciúme, porém sabia que não era Willian seu irmão, este não fora à aula naquele dia. A curiosidade venceu o ciúme, comecei a andar vagarosamente, esperava escutar a voz de meu algoz. Foi assim que escutei Jéssica gritando:

- Que pressa é essa? Vai pegar um avião ou tirar o pai da forca?

Quando me virei, avistei a razão daquela sensação: David. Eu não sabia o que dizer, nem como me portar diante de Jéssica. Gaguejando, dei uma desculpa esfarrapada:

- É que eu estava querendo... Ou melhor, são vocês que estão andando devagar. Nessa vagareza almoçaremos às duas horas! Mas deixa pra lá. O almoço já deve estar esfriando lá em casa.

Não pude conter o ciúme que se manifestou através de várias racionalizações. Antes, todas as vezes que conversávamos após a aula, não nos preocupávamos

com o tempo. Não era difícil entender o porquê de tanta pressa. Acredito que Jéssica entendia, porém disfarçava numa indiferença. Mas se sabia, porque me colocou contra a parede daquela forma? Nem mesmo os donos das atitudes têm certeza do porquê destas.

Naquele dia senti como se o meu coração tivesse sido congelado, atirado ao chão e quebrado, formando partículas tão minúsculas como o vidro de uma lâmpada fluorescente quebrada. Tentei achar o lado positivo de tudo isso pensando: “quem ama quer ver a pessoa amada feliz”. Quis fazer desta frase um escudo para combater minha aflição, mas meu escudo derreteu, seu brilho cristalino não vinha do diamante, mas da água. Belíssima frase, mas seu efeito durou pouco: quem deseja a felicidade do outro não pode deixar de pensar na própria felicidade. Seria egoísmo de minha parte? A vida deu-me um escorregão e eu procurava argumentos em sua defesa, agi como uma vítima de um assassinato que ressuscitasse e declarasse a inocência de seu assassino.

Surpresa inesperada

Poderia parecer estranha uma surpresa que não fosse inesperada, já que toda surpresa é uma surpresa e não a concretização de algo já previsto. Todavia, há surpresas que somente são surpresas pela incerteza que temos de que algo irá acontecer; a surpresa vem do fato de que este algo, previsto, mas incerto, acontece repentinamente. Por exemplo, se um menino brinca com

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uma faca, pode ser surpresa que ele se machuque, mas não imprevisão. Naquele dia, porém, deparei-me com uma surpresa realmente inesperada.

Karine, minha colega de classe, havia me chamado para ajudá-la nas lições de escola. Seu irmão, Douglas – dizia ela – também precisava de minha ajuda. Combinamos que estudaríamos, nós três, no final daquela semana. Na sexta-feira resolvi compor algumas músicas; nunca fui um bom violonista, mas sabia me divertir com aquele hábito. Até as duas horas da manhã, escrevi diversas melodias e sentia-me feliz, cada vez que a elas voltava para aperfeiçoá-las com um novo acorde ou solo. No sábado, ao amanhecer, acordei às nove e dezessete. Virei-me para dormir mais um pouco e, como se tivesse levado um choque, levantei-me da cama e comecei a trocar de roupa. Havia combinado com Karine que as oito da manhã estaria lá para estudarmos.

Subi o morro às pressas. Chegando à casa de Karine, chamei-a do portão e escutei lá de dentro sua voz:

- Pode entrar!

Ao entrar na sala, notei, espalhados pelo piso da sala, vários cadernos e livros. Karine, deitada sobre o chão, escrevia as respostas de alguns teoremas. Aquilo era o sinal de que estava realmente interessada em aprender.

Sentei-me no chão ao seu lado e esperei que ela me perguntasse algo em relação às dúvidas que dizia ter. Ela não parava de escrever. Nem mesmo levantou a cabeça, olhou para mim somente quando terminou o que fazia. De súbito, reparei que estávamos a sós e perguntei:

- Onde está o seu irmão, Douglas? Ele também não precisava de minha ajuda?

Ela respondeu imediatamente, como se já tivesse, minutos antes, a resposta pronta para a pergunta que eu lhe fizera:

- Ele e meus pais foram passar o dia de hoje no sítio de nosso tio. Disse a eles que precisava estudar, por isso não se importaram em me deixar aqui sozinha.

Apesar de estranhar tudo aquilo, disse-lhe:

- Então, mãos a obra! Pergunte o que quiser e eu vou tentar ajudá-la.

- Não tenho dúvidas em nenhuma disciplina da escola. Minha ansiedade vem de outra matéria para a qual eu não consegui até hoje nenhum professor eficiente.

Naquele momento, comecei a compreender o real motivo de minha ida até ali. Sem que eu lhe interrompesse, continuou:

- Estou gostando de um jovem rapaz e tenho medo de falar a ele o que eu sinto. Ajude-me, por favor. O que devo fazer para isso?

Seus olhos azuis brilharam demonstrando a grande expectativa pela resposta que eu lhe daria. Evidentemente ela escolhera a pessoa errada para dar-lhe sugestão naquele assunto: não tive coragem de falar a Jéssica o que sentia por ela e, agora, deveria ajudar uma outra pessoa a fazer o que eu não consegui. Para disfarçar meu conflito interior tentei exclamar dissimulando tranqüilidade e convicção:

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- Graças a Deus eu não precisarei falar isso a ninguém, a menos que...

Senti-me perdido, como se tivesse falado algo além do que deveria. Mas ela se interessou:

- Continue!

- A menos que eu crie um pouco mais de coragem, apesar das circunstâncias nas quais a pessoa de quem eu gosto se encontra.

Começaram então vários questionamentos no intuito de saber quem era a pessoa da qual falava. A estes eu respondia com muito cuidado para tentar encobrir a angústia na qual vivia nos últimos dias.

- Ela mora na mesma rua que você mora?

- Não.

- Ela mora neste bairro?

- Sim.

- Estuda na mesma escola que nós estudamos?

- Sim.

- Na mesma sala?

- Sim.

- Como ela é? É loura?

- Não.

Repentinamente ela parou de questionar e falou com um ar de desapontamento:

- Deixa pra lá. Isto não é de minha conta mesmo!

Voltei ao assunto anterior e lancei-lhe os mesmo bombardeio de mísseis que ela lançou contra mim:

- E o jovem para o qual você quer declarar-se? Como ele é?

Ela já não queria falar mais no assunto e, somente após muita insistência, disse-me:

- Ele mora na mesma rua que eu, estudamos na mesma escola, e seus cabelos e olhos são castanhos.

Aquela descrição não dava margens a certezas. Na escola em que estudávamos havia mais de cem alunos com estas mesmas características. Insisti:

- Diga-me de uma vez, se é que quer que eu lhe ajude. Qual é o nome dele.

Tentando alongar ainda mais aquela conversa que não levava a lugar algum disse, como se brincássemos de cruzadinha.

- A primeira letra do nome dele é V e a última é R.

Naquele momento, tremi como as cordas de meu violão, minhas mãos se esfriaram ao imaginar que ela falava da pessoa que eu mais conhecia com aquelas características peculiares. Todavia, dissimulei impaciência e perguntei novamente:

- Ainda não respondeu o que eu lhe perguntei!

Karine gritou impaciente:

- É tu!!!

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Não sei que reação eu teria tido se imaginasse qual era a intenção de Karine, mas, como resposta à sua maneira ríspida de me esclarecer o que pretendia, disse-lhe em tom de segurança:

- Eu já imaginava! Você é realmente muito calculista. Chamou-me para estudar matemática, mas os problemas que queria resolver eram outros.

Ouvindo isso, Karine abaixou a cabeça como se sentisse arrependida. Pensei no que lhe falei e voltei a tremer. Senti-me culpado por falar tão rudemente com alguém que demonstrava tanto afeto por mim. Meu corpo se endureceu e eu não saí do lugar. Ela, respirando profundamente, levantou-se e seguiu para a cozinha. Eu não sabia o que dizer, não sabia o que fazer. Levantei-me sem fazer barulho e deixei aquela casa com uma estranha sensação: uma mistura de arrependimento por ter dito a ela o que sentia por outra pessoa e de alegria por me ver cativado por alguém que, daquela forma, demonstrava gostar de mim.

Em outra ocasião pensei e não agi, agora, porém, havia acabado de agir sem pensar. Concluí que a verdade é um hábito terrível para certas ocasiões e passei a compreender o que havia dito o professor de história um ano antes.

A força da palavra

Em várias ocasiões encontrei com Karine após aquele dia. Sentia uma forte necessidade de sempre dela me lembrar. Aquelas palavras não saíam de minha cabeça: “é tu”. Eu permanecia longas horas pensando no que ainda faltava para que fôssemos felizes e, sem medo, pudéssemos sempre estar juntos.

No princípio, por causa daquela para quem anteriormente meus pensamentos se voltavam, não mergulhei naquela repentina paixão. Sabia plenamente que aquele sentimento que agora experimentava era a conseqüência de duas palavras escutadas em todos os momentos nos quais me encontrava sozinho com Karine: “te amo”.

Tantas vezes escutei Karine dizendo que me amava, que passei a acreditar na banalidade do amor. Imaginava até então, um poder transcendental que seria a razão de minha entrega. Não acreditava na paixão, desejava amar sem ilusões. Por isso, relutava para não me precipitar.

Tinha receio das pedras que poderiam surgir em meu caminho. Não acreditava no que estava acontecendo. Quando algo é integralmente alvissareiro nos dá a sensação de insegurança. Era o que eu sentia. Um dos receios que povoou a minha mente era a não aceitação de meu namoro com Karine, pelos seus familiares; por isso, visitava-a várias vezes na semana, desejava aproximar-me deles e descobrir quais seriam os desafios a serem enfrentados.

Um dia, estávamos Karine, sua mãe e eu assistindo às programações de domingo na televisão. Conversei durante alguns minutos com a mãe de Karine,

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falávamos da péssima qualidade dos programas de televisão, em especial os reservados ao domingo. Num determinado momento, a mãe de Karine se levantou e foi para a cozinha. Sentei-me então ao lado de Karine, no chão. E olhei em seus olhos tentando penetrar-lhe a alma. Imediatamente ela exclamou:

- Ah! Vítor! Tome cuidado, a carne é fraca.

Eu o sabia. Por isso, continuei a instigar-lhe para que tomasse uma iniciativa que, de minha parte não sairia a menos que eu tivesse certeza plena de que não seria podado em tal. Ela olhou-me com o mesmo olhar que o meu e nos abraçamos apaixonadamente. Meu coração que antes parecia morto, agora dava sinais de vida querendo escapar-me pela garganta. Ela, curvando-se sobre o meu ouvido, disse baixinho:

- Te amo.

Estas palavras nunca me provocaram nenhuma reação. Escutava-as como um ruído repetido continuamente por máquinas. Naquele momento elas significaram algo mais, uma força extrínseca a elas. Penetraram no fundo de minha alma, ali reboaram como um grito do alto de uma montanha. Não posso explicar o que senti, talvez nem aja explicação. Sei somente que respondi como se tivesse sido movido por um encanto.

- Eu também Karine, eu também te amo!

Surpresa, Karine olhou para mim com os olhos mais reluzentes que duas esmeraldas ao sol e disse:

- Até que enfim! Há quanto tempo espero uma correspondência ao que sinto por você!

Após aquelas palavras, nos abraçamos novamente. E a união de nossos lábios levou-me para o infinito.

Nem um segundo sequer daqueles dez minutos em que a mãe de Karine foi à cozinha, poderia ser esquecido. Representaram a eternidade, representaram o princípio de um romance jamais cogitado por mim.

Coincidências

Numa manhã de domingo, Karine e eu fomos a um bairro próximo. Queríamos, como todas as pessoas que para lá se dirigiam, fugir da rotina diária. Caminhávamos tranqüilamente a escutar os pássaros que, com uma melodia inigualável, tornavam sublime e solene o nosso passeio. Despreocupadas, as pessoas caminhavam para todas as direções. O vento debelava a poluição apesar de que o parque se localizava no centro da cidade. Quando me recordo disso, penso naquilo que me faz recordar tanto de um momento tão trivial: os acontecimentos não têm poder em si mesmos, nós é que lhes destinamos o valor de acordo com a emoção que nos sobrevier em determinado instante. Aquele era o instante da paixão, aquele era o momento que a vida proporcionou a mim e a Karine.

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Caminhamos por todo o parque em busca de um lugar aconchegante e o encontramos. Sentamos debaixo de um coqueiro, mas logo deixamos aquele lugar por causa de dois incidentes inesperados: uma galha caiu sobre minha cabeça e, como já não bastasse, Karine sentou-se em um formigueiro. Saímos soltando altas gargalhadas, nada poderia estragar aquele dia. Continuamos a caminhar sem nos cansar, conversando sobre vários assuntos de nenhum interesse pré-estabelecido. Aquele domingo me trazia à lembrança a vida deixada no campo, porém, não mais com o lamento de antes: nada era mais importante para mim que estar ali e, principalmente, com Karine.

Passamos todo o dia naquele parque, vez por outra, comprávamos algo para comer nas inúmeras barracas que lá eram armadas em todos os domingos. Quando percebemos que a hora já estava avançada resolvemos deixar o parque, mas, ao sair, encontramos Jéssica e seu namorado, David. Nunca poderia descrever a sensação que tive ao vê-la ali, a me olhar daquela forma. Contudo, Karine parou para conversar com ambos. Decidiram então voltar ao parque e sentar um pouco para conversar.

Não pude ir embora, não poderia dizer o real motivo de minha pressa. Resolvi acompanhá-los em silêncio. Falavam sobre vários assuntos, mas insistiam em lembrar fatos da escola. Sentia-me incomodado: estudávamos a semana inteira, encontrávamos com os mesmos rostos exigentes de professores muitas vezes insatisfeitos com a profissão que escolheram e, para completar, desperdiçaria um fim de tarde de domingo a falar sobre isso? Este incômodo somava-se à angústia de

ver Jéssica ao lado de outro. Estava perdidamente apaixonado por Karine, mas não conseguia aceitar... Aliás, quem nunca se arrependeu por aquilo que deixou de fazer?

Jéssica não parecia indiferente. Olhava-me com o mesmo olhar penetrante de sempre parecendo envolver-me de questionamentos, apesar de nada perguntar.

David e Karine perceberam que aquele assunto já tinha se tornado enfadonho. Acho que observaram quando Jéssica e eu silenciamos como se nem mesmo soubéssemos do que falavam. Foi Karine que interrompeu a David dizendo:

- E por falar em dormir na aula de matemática, veja como estão estes dois. Parecem que dormem enquanto falamos!

Naquele momento, percebi que falavam de Jéssica e eu. Tive receio, pensei que poderiam deduzir que havia algo entre nós dois. Todavia, fomos embora sem que houvesse qualquer desentendimento. Pegamos o ônibus que nos levaria ao nosso bairro.

Naquele dia, prometi a mim mesmo, evitar que um novo encontro com Jéssica e seu namorado viesse me trazer aquela sensação. Desejava viver a vida ao lado daquela que, agora, parecia interessada em ser feliz junto comigo. Se a felicidade era a aceitação do destino – pensava eu – estava no caminho certo.

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Ciúmes

Após saber realmente o que sentia, resolvi falar aos familiares de Karine sobre minha decisão de namorá-la. Desejava ter maior liberdade em estar a sós com ela. Depois disso, tudo mudou. Karine já não era a mesma, adquirira um ar de ironia em seus traços femininos. Insistia em ficar ao lado de sua mãe quando poderíamos estar a sós e, diante de seus familiares, fazia inúmeras brincadeiras ao meu respeito deixando-me desconcertado e tirando-me as poucas iniciativas que ainda cultivava para a vida.

Sua mãe era bastante conservadora e nem imaginava que sua filha já havia namorado vários rapazes da escola, mas às escondidas. A imagem que tinha da filha era bastante protetora. Para conseguir algo, Karine se utilizava de racionalizações bem elaboradas e quase inquestionáveis. Eu conhecia a sua capacidade intelectual em elaborar planos convincentes o bastante para conseguir o que quisesse.

Karine se tornou estranha. Quando estávamos sozinhos, agia como se eu fosse a pessoa mais importante do mundo, algo de valor inestimável que não possa ser perdido, o homem mais visto por todas as mulheres do mundo e, por elas, idolatrado: um Dom Juan. Eu tentava encontrar naquelas atitudes algo de positivo: se ela desejava provar algo a mim, o fazia pelo medo de perder-me, pois eu significava muito para ela. Porém, com o passar do tempo, as conversas sobre “as outras mulheres” tornaram-se carregadas de incômodo. Decidi então deixar

que ela mesma tomasse qualquer iniciativa e, às acusações de traição feitas contra mim, responder simplesmente com o silêncio, a melhor resposta para aquele que já sabe qual é.

Karine demorou a perceber a diferença de meu comportamento em relação a ela. Escreveu-me uma carta e, carinhosamente, mencionava que nunca mais iria incomodar-me com aquelas acusações “sem pé e nem cabeça”. Eu sabia que aquele jeito inseguro de agir não desapareceria por uma simples força de vontade, mas não custava nada tentar.

Como imaginava, aquelas atitudes não cessaram. Karine voltou a demonstrar o ciúme doentio de antes, ou melhor, aumentou a sua intensidade. Foi o que percebi quando, numa tarde em que lhe deixei sem graça diante de seus familiares respondendo ironicamente a uma de suas brincadeiras de mau gosto, me disse:

- Você não gosta de mim. Agiu daquela forma, pois já está querendo se livrar de mim. Sei qual era a sua paixão de tempos atrás, apesar de você não haver me contado. Jéssica nunca sairá de seus pensamentos!

Karine descobriu o que estava guardado em meu interior, trancado a sete chaves. Não sei como, mas ela falou acertadamente quando disse: “Jéssica nunca sairá de seus pensamentos”. Eu não tinha as esperanças de antes em relação à Jéssica, desejava me dar bem em meu relacionamento com Karine e, dessa forma, deixaria o passado ser enterrado deixando fora da terra a cruz de sua lembrança. Por isso, repensei as palavras que escutei e concluí que as atitudes de Karine não eram atos de amor, mas atos de insegurança ou de falta de confiança na

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pessoa que se ama. O que é de nós hoje é a conseqüência do que nos aconteceu ontem. Karine não tinha o direito de mexer em meu passado a menos que este interferisse em nosso presente. Nunca procurei dar motivos para que ela me repreendesse daquela forma. Mas seu ciúme era contraditório: se achava que eu ainda gostava de Jéssica, por que manifestava um ciúme doentio com as demais mulheres do mundo?

Com o passar do tempo, comecei a me acostumar com a idéia de ser o centro das atenções. Já não tinha medo de ofendê-la com o meu falar. Falava de tudo e de todos sem me preocupar: das mulheres que fizeram amizade comigo, das festas que fui sem levá-la, dos passeios que fiz solitariamente no parque da cidade. A partir de então, não demonstrava mais ciúmes, agia da mesma forma que eu, como se quisesse voltar à lei de talião: “olho por olho, dente por dente”.

Alguns dias depois, Karine voltou a agir de outra forma. Comparei-a a lua que ora está nova, ora crescente, ora minguante, ora cheia. Agora, falava de maneira chorosa, colocando-se como vítima em tudo, demonstrava a insatisfação com seu cabelo, seu rosto, suas mãos, seu peso... Depois se colocava como a mulher mais desejada por todos os homens da cidade, como o ícone da beleza e da juventude... Estas últimas atitudes doíam-me no fundo da alma, pois havia aprendido, na escola do acaso, a gostar dela. Já não me via sem ela em meus projetos e planos para o futuro. Eis a ironia do destino.

Traição

Já haviam passado quatro meses desde que comecei a namorar Karine. Na realidade, a nossa convivência não era tão boa quanto parecia aos olhos das pessoas. Em casa – o único lugar no qual as pessoas sabiam a realidade – começávamos conversando no quarto e acabávamos brigando e discutindo. Depois íamos para a sala como se todos tivessem que saber de nossas brigas e decepções...

Percebi que pouco a pouco Karine se afastava de mim. Achei estranho como uma paixão tão grande acabava-se assim, tão repentinamente. Preferi deixar de lado o orgulho de ser a pessoa mais importante em sua vida e voltar a permanecer em silêncio em qualquer discussão que iniciássemos. Desta maneira, pensava que conseguiríamos sair daquela instabilidade relacional.

Certa ocasião, fui a uma festa juntamente com alguns amigos. Neste dia não levei Karine. Combinamos que não iríamos levar nossas namoradas, pois desejávamos reatar os laços de amizade que deixavam de existir cada vez que um de nós iniciava um namoro.

Naquela festa, desejava descobrir o que havia em comum entre nossos relacionamentos. Talvez encontraria a solução para os problemas que surgiam como uma reação em cadeia. Todavia, os diálogos que escutei tinham a sua peculiaridade em cada caso:

- Minha garota é demais. Faz tudo o que pode para me agradar. Não esconde o seu ciúme, mas sabe controlá-lo.

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- Tome cuidado. Muitos casamentos não dão certo porque as pessoas mistificam a pessoa amada de tal forma que ela deixa de ser humana e, após o casamento, o fetiche desaparece. Lembre-se que as dificuldades financeiras também podem aparecer...

Silenciosamente, escutava tudo. Meus pensamentos pegavam o ônibus da esquina e iam à casa de Karine, lá encontrava o medo do futuro presente no diálogo de meus amigos. Mas ali, ele não correspondia ao futuro, mas ao presente. Subitamente meus pensamentos, voltaram, mas à velocidade da luz. Aquele não era o futuro que me esperava, aqueles fatos iriam acontecer, mas de uma forma madura, quando conhecêssemos melhor um ao outro. Conhecia muito pouco sobre Karine, mas já descobrira a maneira engenhosa pela qual ela encobria minhas desconfianças através de inúmeras mentiras. Não nos conhecíamos, não confiávamos um no outro, não agíamos como se acreditássemos na fidelidade de nosso relacionamento. Naquela mesma festa, algumas garotas desejaram me conhecer. Apresentei-me a elas, mas, conhecendo as suas intenções através de um amigo, não lhes alimentei as esperanças: quem quase se afoga num rio, não deve mergulhar no mar.

Ao voltar daquela festa, mais ou menos às doze horas da noite, resolvemos passar em uma praça do bairro e curtir um pouco mais a alegria daquele momento tão raro nos últimos tempos. Eu já tinha certeza do que fazer. Sabia que eu também era o culpado pelo mau andamento de meu namoro com Karine. Tracei planos, desejava voltar à primeira paixão. Achei que com ousadia e determinação, passaria por cima de todas as pedras do caminho sem precisar de delas me desviar. Meu espírito

estava tranqüilo, parecia ter encontrado a solução, todavia, quase saltou do corpo quando eu escutei um de meus colegas que me perguntou:

- Veja lá! aquela não é Karine? O que ela faz com o Carlos? Você não me disse que haviam terminado!

Aquelas inúmeras interrogações não foram respondidas por palavras, mas por gestos. Ninguém no mundo duvidaria de que meu olhar era uma perfeita manifestação de ira e ciúme. Contudo, controlei-me; não me aproximei e, virando-me, deixei meus amigos na praça, talvez a se perguntar o que realmente acontecera.

Entendi, a partir daquele momento, inúmeras coisas: a tranqüilidade de Karine quando avisei que iria a uma festa sem ela, sua autodefesa com acusações mentirosas e fraudulentas a meu respeito e o aumento de seu orgulho antes camuflado numa falsa humildade. Senti um certo alívio, quando novamente me vi livre das brigas e desentendimentos, isto amenizava o meu ciúme e a minha decepção.

Desmascarando

No outro dia, Karine veio ao meu encontro dissimulando uma grande tranqüilidade e uma enorme alegria ao me ver. Percebi que meus amigos lhe ocultaram o que eu sabia a seu respeito da noite anterior. Não é necessário relatar ‘que bela noite’ tive após aquela decepção. Karine falava entusiasmada, como se nada

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tivesse acontecido. Olhava-me como alguém que olha admirado para uma obra prima em um museu. Pensei: “Sonho ou realidade?”. Com certeza ela não mudara da noite para o dia, havia algo escondido, ou melhor, tentava esconder o que eu já havia descoberto. Inesperadamente ela se aproximou e me beijou, parecia realmente interessada em comprovar a nova força de sua paixão. Pensei em esquecer o que havia acontecido e tentar voltar a ponto de partida, mas não pude: meu orgulho foi amordaçado e ferido. A hemorragia estancaria, mas a cicatriz me faria sofrer novamente a dor do dilaceramento. Com um olhar severo disse a Karine:

- Viram você e o Carlos ontem na praça, o que me diz disso?

- Ah! Não sabia que você tinha amigos tão fofoqueiros. Estava na praça com o Carlos, mas só conversávamos. Ele tem alguns problemas com a namorada e veio...

Fingi não ter visto o que vi, ainda tinha esperanças que Karine, com a verdade, se redimisse. Contudo, para maior decepção de minha parte, cinicamente exclamou:

- Se falaram algo mais, peça a quem lhe disse tal mentira que venha aqui e fale em minha frente!

Parecia ter uma resposta pronta caso isso chegasse aos meus ouvidos. Tinha várias frases, previamente formuladas e bem justapostas. Realmente ela era muito inteligente quando se tratava de formular racionalizações bastante convincentes, entretanto, não estava preparada pra o caso de eu mesmo tê-la visto na noite anterior. Como ela não parasse mais de tentar se justificar, falei,

tremendo por medo de perdê-la, apesar de tudo, e por tamanha indignação que ultrapassou este medo:

- Nunca mais conseguirei acreditar em você, mentiu para mim da forma mais vil existente. Como confiar em alguém que contradiz até mesmo aquele que a acusa de algo por tê-lo visto concretamente? Ninguém me contou. Se tivessem me contado, talvez eu ainda colocaria o último voto de confiança em você. Porém, eu próprio vi o que digo e sofro até agora por tal fato. Não tente me enganar. Você enganou a si mesma. A mim não mais enganará, pois, a partir de agora, está tudo terminado!

À medida que eu falava, ela chorava. À medida que ela chorava eu quase me embarcava em remorsos pelo que dizia, mas, ao lembrar da cena da noite anterior e das inúmeras acusações injustas que ela fazia contra mim, voltava a falar com a convicção de que não haveria conserto para aquela situação. Desabafei toda a mágoa ressentida e, prontamente, parei esperando escutar algo de sua boca após o desmanchar de suas máscaras. E ela falou:

- Realmente você não é como eu imaginava. Você, na verdade, nunca gostou de mim. Só quis passar o tempo ou esconder o seu medo da solidão. E, agora que encontra uma oportunidade, termina comigo como se eu fosse a vilã dessa história! Ponha a mão na consciência e veja qual de nós dois está errado.

Aquelas palavras foram duras demais para mim. De juiz passei a réu. Mesmo depois de tudo o que fez comigo, ela ainda conseguiu me ferir mais uma vez. Aquela era uma maneira bem geniosa de sair ganhando. Preferi calar e me retirar, pois sabia que acusações em

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cima de acusações poderiam gerar um ódio destruidor. Foi o que fiz. Demonstrei estar convencido de minha hombridade, mas, quando me afastei, não pude conter as lágrimas e, nem mesmo, desvencilhar-me do sentimento de culpa em mim inserido por aquelas últimas palavras de Karine.

Uma semana depois, ao passar em frente à casa de Karine, lá estava ela, mais alegre do que nunca, ao lado daquele com o qual finalizou a tarefa de se livrar de quem ela dizia gostar. Ao ver isso, o sentimento de culpa incutido em mim desapareceu e eu, mais seguro de que havia feito a coisa certa, voltei à tranqüilidade de outrora.

Determinação

A vida continuou a me trazer surpresas, como traz a todo ser humano, sejam elas boas ou ruins. No princípio, ansiamos por algo e, com todas as nossas forças o desejamos. O tempo, infinito para a mente, nos dá a solução esperada: desfaz os nossos projetos como uma tecelã que desfaz um ponto mal feito. Mas a vida volta a nos dar esperanças daquilo que se perdeu misteriosamente.

Já havia retomado minhas forças para continuar a caminhar sem ter receio de ser feliz. Várias melodias, antes sem sentido para mim, agora me pareciam descrições de minha vida. Em quantas ocasiões, fiz crítica acirrada a diversos tipos de música. Para mim, elas eram

o fruto de gostos convencionados e representavam a impessoalidade do ser humano que se deleita naquilo que os outros lhe dizem que faz parte da moda. Todavia, ouvindo o rádio, escutei várias vezes a mesma música, repetida a todo instante. Irritado com tal insistência desliguei o rádio e saí, desejava aproveitar o fim de tarde. Entre os prédios, avistei a lua cheia, tinha uma cor avermelhada. Muitas pessoas paravam para observá-la, mas eu não parei. De repente, ao atravessar a rua, ainda olhando para o alto, escorreguei e caí num bueiro aberto; somente meus braços ficaram ao lado de fora. Algumas pessoas me ajudaram a sair, muitas riam e outras perguntavam preocupadas: “Você está passando mal?”. “Machucou-se?”. Não senti vergonha alguma, pelo contrário, comecei a rir daquela situação. Voltando para casa, com as costas à altura dos rins, dolorida e arranhada, comecei a cantar:

♫“Agora vou viver sem ter medo de ser feliz,

O que passou, passou, como o ditado diz;

Vou seguir meu caminho, sozinho, não volto atrás

Só sei que seu amor, não quero mais.”♫

É interessante notar como aquilo que nos desagrada nos atormenta mesmo ausente, o pensamento é a sua arma, pois não se esquece daquilo que se quer esquecer. Contudo, aquela música representava bem mais que uma simples revolta contra as convenções sociais, era a exposição da convicção da nova vida que adotaria a

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partir de então. Já não temia a vida, os golpes que ela nos dá são certeiros, mas que ganha o homem em angustiar-se com os mesmos? A solução é “esperar pela tarde para ver se o dia é belo”, como dizia Sófocles. Esperar contra toda desesperança e unir-se àqueles que vivem a vida por saberem a sua essência.

Naquele dia a vida me reservou uma nova surpresa, surpresa essa, que parecia defini-la dali para frente. Alguém já disse: “todo momento de prazer vem quando o êxtase há muito terminou”, acho que vi esta frase num filme. Seja lá de onde ela surgiu, ela define exatamente os acontecimentos que estavam por vir: não mais vivia o dia em contínuas ansiedades, não mais me interessava por tantas distrações e estudos a fim de buscar neles algum conforto para a minha alma solitária. Aquelas atitudes haviam desaparecido temporariamente de minha vida. Mas por quê temporariamente?

Em certa ocasião, saí de casa à procura de um emprego, fui a vários mercados e deixei meu currículo. Com uma estranha paciência respondia com um “muito obrigado” a quem, bruscamente me falava: “É estudante e está bem adiantado, mas não têm experiência nenhuma. Somente admitimos funcionários com, no mínimo dois anos de experiência”. Ao sair, não me sentia revoltado, mas ria da ironia de uma sociedade capitalista onde todos querem lucrar sem pensar humanitariamente. Como poderia ter experiência se nem mesmo conseguia arranjar o primeiro emprego? Deve ser por este motivo que os meninos de rua, assaltam desde crianças, quando maiores, já possuem experiência claramente comprovada!

No ônibus que peguei ao voltar para casa entrou uma jovem de andar elegante. Não me virei para vê-la, observei-a de costas pelo reflexo do vidro, pois estávamos de pé e não havia lugares para sentar. Suas roupas eram semelhantes às de um homem, mas seus cabelos expressavam a sua sensualidade feminina a cada momento que passava por eles os dedos bem esmaltados. Observei naquele momento que talvez não seria casada, pois não usava nenhuma aliança ou anel. À minha frente, levantou-se uma senhora e, quando me curvei para sentar, levantou-se o senhor ao seu lado. Sentei-me no lugar próximo à janela e surpreendi-me quando aquela mulher que antes eu observava, sentou-se ao meu lado e perguntou-me: “quantas horas, por favor?”. Quando me virei para responder ambos falamos ao mesmo tempo: “Você aqui!”. Era Jéssica. Havia algum tempo que não a via (fugindo ao assunto, é até engraçado aos ouvidos esta frase anterior!). Desde o dia em que a encontrei no parque juntamente com o seu namorado, nunca mais a vi. Um forte vento entrava pela janela dos lugares da frente, o ônibus estava cheio, por isso não pedi que a fechassem. Jéssica prendeu os cabelos com uma caneta. E contou-me que estava fazendo um curso profissionalizante em outro colégio e, por isso, passava uns tempos com seus tios durante a duração do curso. Falou-me de diversas outras coisas de uma forma jovial. Sua face resplandecia uma beleza agora mais reluzente, o brilho de seus olhos estava tão penetrante como da última vez em que a vi, seus cabelos, agora presos, venciam a força do vento que, de forma impetuosa, lançava-se sobre eles e tinham algo novo: uma mecha descolorida. De repente, um curioso sentimento tomou conta de mim. Lembrei-me de David e

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de Karine, aqueles que fizeram com que nossas vidas tomassem rumos tão diferentes. Nada me intimidava a interrogar-lhe sobre as muitas curiosidades a seu respeito, contudo, em nenhum momento, perguntei-lhe sobre o seu namoro com David.

Descemos do ônibus e seguimos o nosso caminho conversando. Relembrávamos as inúmeras vezes que passávamos por ali sem nos preocupar com o tempo ou o assunto. A saudade daqueles tempos tomou conta de mim e, acredito, que também de Jéssica. Ela falava de si, mas de vez em quando, perguntava-me algo sobre mim. Quando me perguntou sobre o meu namoro com Karine, contei-lhe todos os detalhes, como se estivesse sob juramento num tribunal. Ao terminar, senti que chegara o momento oportuno para satisfazer a minha principal curiosidade, e perguntei: “e vocês, como vão?”. Falou-me então dos últimos acontecimentos em seu relacionamento com David e, para ser direto, deixou-me esperançoso: havia terminado o namoro meses atrás.

Naquele dia, ao deitar, rememorei todos as vicissitudes de minha vida. Perdi o sono, mas não ansiava em dormir, a volúpia deixava-me em êxtase. Ligando o rádio, escutava as programações de uma hora da manhã. A conversa daquela tarde originou uma esperança viva e renovada. Durante quase toda noite, virava de um lado para o outro na cama e imaginava-me ao lado de Jéssica. Havia muito tempo não tinha aquela sensação; para mim, era a plenitude de meus desejos.

Quando acordei no outro dia, não sentia cansaço algum, num salto e já estava de pé arrumado para ir à escola. Os sonhos que tive no curto espaço de tempo em

que dormi, concretizavam minha esperança. Sabia que não veria Jéssica lá, ela já teria voltado à casa de seus tios. Contudo, nada naquele dia me faria perder o humor, nada me pareceria adverso, tudo no mundo parecia existir com um único objetivo: transmitir-me felicidade.

O dia quase D

Uma boa nova se apresentou a mim. Jéssica, em busca de maior aprofundamento para uma entrada na faculdade, deixou o curso profissionalizante em que estava. Uma semana depois estávamos novamente na mesma sala de aula. Naqueles dias, reativamos a nossa antiga amizade. Jéssica mudara em muitos pontos, mas, em nenhum deles, para pior. Estava mais segura de si. Eu, ao contrário, parecia nada ter aprendido: voltei a angústia de meses atrás, encontrava-me em todo momento confuso, sem saber como fazer o que eu mais desejava, sem perda de tempo, sem correr o risco de perdê-la novamente, sem deixar que o acaso interceptasse o meu caminho rumo Jéssica.

Na terça-feira daquela semana, ao voltar da escola, encontrei Mércia que desejava me falar algo. Pelo seu estranho sorriso, temi voltar a cometer os erros do passado. Pensei em inventar uma desculpa e escapar do que ela poderia me dizer, ou melhor, de qualquer coisa que me fizesse mergulhar em novas dúvidas. Mas, como somos indubitavelmente condenados à liberdade, decidi escutar o que Mércia desejava me falar, com certeza seria

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melhor do que passar meu precioso tempo a imaginar o que seria.

- Posso lhe fazer uma pergunta sem que você se zangue?

- Claro! Mas lembre-se que não existem respostas para todas as perguntas que fazemos.

- Sei disso. Mas, para as perguntas que lhe farei, não são necessárias respostas longas. Responda-me: sim ou não.

- Então deixe de rodeios e pergunte logo!

- Você tem namorada?

Tudo levava a crer que eu estava certo, o conteúdo daquela conversa levava ao mesmo ponto de partida: eu. Pensei: “Devo tomar muito cuidado com o que vou dizer”.

- Não! Mas estou tranqüilo. O que estiver reservado para mim virá às minhas mãos.

- Porém é preciso tomar cuidado, há pássaros que fazem seu ninho e nem mesmo nele permanecem.

- O que você que dizer com isso?

- As oportunidades vêm, mas é preciso agarrá-las como se agarra um copo preste a cair da mesa.

- Continuo não compreendendo!

- Mas vai compreender: há uma garota que está apaixonada por você, mas, há muito tempo, espera uma iniciativa de sua parte. Ela tem medo de perder a sua amizade, por isso nunca se declarou.

Pensei: “Mércia não pode estar falando de si mesma, nós nunca fomos amigos tão próximos”. E lhe disse:

- Diga-me logo, quem é esta?

- Jéssica!

Novamente se faz desnecessária qualquer descrição do que senti. Percebi que meu caminho estava traçado sob medida para minha passagem. Agora, tinha certeza de que qualquer iniciativa de minha parte seria bem vinda a Jéssica. Mesmo assim, não queria precipitar as minhas atitudes, tentei criar um momento para falar a Jéssica de tudo o que senti por ela desde o primeiro momento em que a vi, mas não consegui, seu irmão não a deixava um minuto sequer a sós comigo, parecia imaginar as minhas intenções. Se antes, sozinho com ela, não conseguia lhe falar sem esconder o que sentia realmente, agora tudo era dificultado por essa nova companhia.

Na sexta-feira daquela semana, cheguei em casa cansado e nervoso, havia dormido mal na última noite e não fiz uma boa avaliação na escola. Ninguém na minha família se atreveu a perguntar o que havia, todos se calaram e me fizeram enxergar a minha ignorância. À noite, resolvi comentar sobre meus propósitos. Não foi uma boa idéia de minha parte, todos relacionaram os fatos daquele dia ao que agora desabafava e pensaram saber o motivo de minhas atitudes. A tentativa se deu por frustrada completamente quando minha mãe falou:

- Vítor, Vítor, o que é que você foi me arrumar. Você sabe que não tem condições nem mesmo de estudar numa escola de qualidade!

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- O que isso tem a haver com o que pretendo fazer? Uma escola pública como a minha é mais procurada pelas pessoas de classe média do que as escolas particulares.

- Você sabe que não é disso que eu estou falando! Estes namoros, quando não são planejados, acabam em um casamento precipitado. Você está quase se formando e, quando isso acontecer, poderá trabalhar com seu tio no Rio.

- Agora foi você que saiu do assunto. Não estamos falando de escola...

- Não se faça de desentendido e cultive um pouco mais de respeito ao se referir a mim, não se diz você, se diz senhora! Sabe que se houver algo que lhe prenda aqui, será difícil arranjar outro emprego como este. Você sabe a minha opinião, aja como quiser.

Aquela última frase fechou a discussão. Minha mãe sempre arranjava meios para me deixar confuso apelando para costumes que não mais cultivávamos em nossa família depois que viemos para esta cidade.

Aquilo foi um choque para mim. Estranhei a maneira pela qual todos em minha família me tratavam. Acho que, na verdade, tinham medo que eu acabasse entrando no mesmo dilema do namoro anterior. Mas esta nova pedra em meu caminho poderia ser retirada facilmente, bastaria a compreensão de que tudo na vida tem o seu momento. Com o passar do tempo - pensava com meus botões - ao ver-me feliz ao lado de Jéssica, não mais me incomodariam com sua irritante mania de pensar conhecer o futuro por um simples sinal do presente.

No outro dia, após aquelas repreendas de meus familiares, resolvi procurar Mércia a fim de que ela me ajudasse com alguma sugestão já que, falando-me de Jéssica, tornou-se minha amiga. Resolvi contá-la toda a minha história desde o dia no qual me apaixonei. Mércia chorou, dizia nunca ter escutado de um homem, tantas palavras imbuídas de sentimentos tão sinceros. Para ela, os homens eram uma espécie de máquina, calculistas e frios, agiam satisfazendo seus impulsos imediatos e buscando seu interesse. Depois, como um sábio que proclama a sua doutrina, disse em tom sereno e calmo:

- Você pensa demais. Por que não falou a Jéssica o que sentia por ela? Não se arrependa de não ter feito o quis, não tenha medo de ser feliz!

Muito mais me falou Mércia, mas aquela frase de tom poético, fixou em minha mente definindo claramente para mim as atitudes óbvias a serem tomadas.

Jéssica fora ao sítio de seus parentes e voltaria na segunda-feira. Mesmo que ela não fosse à aula, estava disposto a procurá-la em sua casa. Nada me impediria de lhe falar o que guardava comigo havia mais de um ano. Quando a vi entrar na sala de aula, percebi que o destino havia feito a sua parte. Peguei um livro e fingi estar lendo, tinha medo de olhar em seus olhos. Ela passou em minha frente e disse sorridente:

- Bom dia, Vítor!

Respirando profundamente disse-lhe:

- Bom dia! Depois da aula, eu gostaria de conversar com você.

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Quando terminaram as aulas daquele dia, Jéssica encontrou seu irmão na porta da escola, mas disse-lhe que fosse na frente, pois precisava conversar comigo. Subindo o mesmo morro de sempre, perguntou-me:

- O que queria falar comigo?

Não hesitei, cada minuto aumentaria mais o meu nervosismo.

- Queria? Não é à toa que esta conjugação é do pretérito imperfeito! Vamos ao presente que é o indicativo da realidade. “Quero” lhe fazer uma pergunta: você gosta de mim tanto quanto eu gosto de você?

Sem nenhuma surpresa por aquela interrogação, respondeu:

- Não é preciso lhe dizer. Eu sei que você sabe e você sabe que eu sei o quanto nós gostamos um do outro!

Cheio de entusiasmo perguntei imediatamente:

- Então... se você sabe...quer namorar comigo?

Ela, sem nenhum entusiasmo – o que me surpreendeu – me disse que queria um tempo para pensar. Estranhei aquela atitude, quem não estranharia uma pessoa tão decidida manifestar aquela incerteza? Pedi-lhe uma explicação, mas ela simplesmente me falou:

- Preciso de um tempo para pensar. Depois você vai saber o porquê disso. No momento, peço que não me pressione.

- Mas, o tempo é infinito, qual é a partícula dele da qual fará uso? Um dia ou dois?

Ela sorriu e disse:

- Você é demais! Deve estar divagando muito nas aulas de filosofia. Tome cuidado para não ficar louco! Lembre-se: “Deus fez os loucos para confundir os sábios!”.

Percebi que ela fazia uma digressão em sua fala. Estava tentando escapar de minhas interrogações, todavia, eu não desejava viver, mais outro tempo indefinido naquela angústia da espera.

- Deus fez os sábios para confundir aqueles que acham que não são loucos! Mas você está querendo escapar-me por entre os dedos. Diga-me, o que mais pode impedir que sejamos felizes juntos?

- Daqui a uma semana você saberá!

Havia esperado tanto e, agora era intimado a esperar mais um pouco. Meu espírito parecia trilhar o incógnito, mas não sei dizer o que realmente sentia: novamente, sensações antagônicas tomavam conta de mim.

O dia D

Não sei por quê todo aquele que ama tem que sofrer. Não sei por quê todo sofrimento vem exatamente quando pensamos que tudo vai dar certo. Não sei por quê devemos esperar tanto para sermos felizes. Na história, a segunda chance que a vida deu aos seus agentes, quase sempre terminou em fracasso: Luís Bonaparte, ao imitar o

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18 Brumário do tio para formar um novo Império Napoleônico em 1851, fracassou ao ser derrotado pelas forças militares da França; Getúlio Vargas ao retornar à presidência do Brasil com uma política populista em 1950 acabou sendo levado ao suicídio devido às pressões opostas às suas ações governamentais; a Itália, inspirada no Antigo Império Romano, une-se à Alemanha num expansionismo imperialista, mas, em 1944, no dia D, o projeto de sua história muda de rumos com a repressão soviética, americana e inglesa. Também eu tive meu dia D, D de destruidor dos novos projetos que fiz esperançoso na segunda chance que a vida parecia me dar.

O que mais me inquietava era o medo de que Jéssica e eu não tivéssemos a mesma amizade antes. Mesmo que não estivéssemos juntos como namorados, não suportava a idéia de vê-la longe de meus projetos. Tentava, como sempre fiz, desviar meus pensamentos, porém todo esforço era inútil. O rádio, a televisão, os comentários de colegas, tudo me fazia recordar daquela responsável por tanta inquietação. Todos agiam com o mesmo propósito: aumentar minha ansiedade e torná-la torturante.

Naquela semana, apesar de estudarmos na mesma sala de aula, não me aproximei de Jéssica, desejava deixá-la em paz para melhor refletir. Nossos encontros eram sintetizados num “bom dia!” ou “bem?”.

Chegou o dia esperado. Novamente, chamei Jéssica para conversar. Ela repetiu as mesmas atitudes da semana anterior pedindo que seu irmão fosse adiante. Eu já não me encontrava tão ansioso, não me sentia nervoso,

mas estava disposto a descobrir, qualquer que fosse a sua resposta, o motivo de sua relutância ou de sua decisão. Quando me vi a sós com ela disse-lhe em tom de brincadeira:

- Desembucha! Diga qual é a sua decisão e o porquê de tal!

Ela me olhou como jamais me olhara e disse com voz chorosa:

- Vítor, você sabe qual seria a minha decisão se nada nos impedisse, mas vejo que terei muitos problemas pela frente e poderei lhe trazer muitos outros. Não quero ser causa de divisão em sua família e nem ser um estorvo em sua carreira. Gostaria que todos concordassem com o meu jeito e com as suas decisões, entretanto, vejo que isso não corresponde à realidade.

Percebi que alguém já lhe tinha falado sobre a opinião de minha família a seu respeito e sobre os planos que todos faziam para mim. Perguntei a ela quem havia lhe contado, argumentei que fatos são passados de boca em boca e aumentados consideravelmente. Sabendo o porquê de minha curiosidade, Jéssica me respondeu em tom de censura:

- Ninguém, que não fosse da sua família, veio falar comigo. Seu irmão Cristian me alertou para a situação que eu iria deparar ao namorar você. Talvez tudo isso possa ser temporário, porém desejo a sua felicidade mesmo longe de mim e não quero que você perca a união com sua família por minha causa.

Tentei alterar aquela situação através de várias indagações que demonstravam uma certa independência

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de minha parte em relação aos meus familiares. Ela, querendo me poupar o esforço, disse-me decidida:

- Um dia você vai me agradecer por isso!

- Mas, Jéssica, ninguém pode interferir em minha vida dessa forma! Isso aqui não é “Romeu e Julieta” e não precisaremos morrer por amor. Você está fazendo “tempestade em um copo d’água”. Os planos que fazem não são meus...

- Quem sabe um dia! Por enquanto vamos ser apenas amigos!

Tinha medo de perder a amizade de Jéssica, mas agora compreendia como era difícil ser amigo de quem eu tanto gostava. Senti-me como uma criança assustada procurando abrigo nos braços de sua mãe e lhe disse:

- Me abrace!

Apesar de tudo Jéssica era tímida, e demonstrou isso quando, desconcertada, respondeu:

- Aqui? Já não lhe abracei tantas vezes...

Em certas ocasiões da vida temos atitudes de criança e agimos como se fossem normais tais atitudes. Transformei aquele momento num conto de novela de final dramático. Dissimulei uma saída dizendo:

- Esqueça!

Ela, percebendo a minha desilusão, chamou-me e abraçou-me como jamais havia abraçado. Quem passou por aquela rua e nos viu, com certeza pensou: “vejam só os dois pombinhos!”. Mas ninguém, além de Jéssica e eu,

saberia o que significava aquele abraço: o adeus da despedida.

Esperança

Acabo de voltar de um enterro. Um grande amigo acaba de deixar esta vida, para o incógnito. Meu eufemismo é mais realista: como posso afirmar que deixou esta para melhor? Fora do horizonte da fé, não posso concebê-lo. Todavia, não consigo aceitar a dura realidade do ser humano: buscar a felicidade na terra e morrer na esperança de encontrá-la em outro lugar. Mas, se eu disser que a felicidade não é possível, perderei o sentido para a existência. Será que somos realmente os maiores responsáveis pelo nosso destino? Será que a nossa liberdade é o sinônimo da angústia originada pelas escolhas cotidianas? Será que a paixão é como o fogo da vela que observei há pouco: dá a ela um sentido, mas a consome pouco a pouco? Será... Talvez... Se... Ó incerteza que definhais o ser humano! Até quando o atormentareis?

A dor daquele dia plantou morada em meu ser e me acompanha a em todo momento de minha vida até agora. Hoje, recordo da grande possibilidade que tive de ser o homem mais feliz do mundo. Tenho notícias de Jéssica, mas a nossa amizade nunca mais foi a mesma: eis a única certeza que possuo. Tomamos rumos totalmente opostos e as lembranças são as únicas que ainda me fazem companhia.

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Vivi solitário, saudoso e desanimado. Todos os planos que fiz foram parar no poço das recordações. Aquele grande amigo me perguntava antes partir: “ainda tem esperanças?” E eu lhe respondia: “A esperança é a última que morre, darei a ela uma chance de me tornar feliz!”. Mas ele partiu primeiro que a esperança e me deixou a contemplar a execrável condição humana: a vida do homem é efêmera e a da esperança é imensurável, pois, nascer é esperar, viver é esperar, morrer é esperar. Enfim, buscar nem sempre é alcançar, mas ter a certeza de que sem trilharmos o caminho obscuro do mistério, em nenhum lugar poderemos chegar. “Que ele ocupe um bom lugar”, dizia a uma amiga no velório e ela me respondeu: “o espírito não ocupa lugar no espaço!”.

Lá fora, uma chuva incessante me traz a recordação dela. Cada gota de chuva que cai na poça d’água que se formou no passeio em minha frente atrai-me ao fundo, mergulhando-me no oceano dos desejos. Cada desejo é uma palavra dos versos que escrevo. Volto a pensar na realidade humana: há realmente uma força inefável que rege o universo e o faz dar voltas sem cessar. A gota que cai é a mesma que subiu aos céus. A esperança que retorna a mim é a mesma de tempos atrás. Mas que força é essa que me reconforta neste momento?

Durante muito tempo deixei de viver a vida lamentando o que não aconteceu. Vou sair, vou atrás de algo que me tire dessa solidão, chega de esperar, vou dizer adeus ao passado, vou entregar-me ao presente!

Descoberta de um tesouro

As folhas daquela agenda haviam terminado e, com elas, a história de Vítor. Na contra-capa estavam os seguintes versos:

Agora lá fora chove,

Na hora em que se chora foge

A angústia amiga e inimiga

Que cultivo e que quero matar.

Pode até parecer mentira

Que a saudade que me causa intriga

Comece agora a germinar.

A chuva, que o calor externo

Veio agora matar,

Maldosamente, este calor interno

Deixou a me sufocar.

Estes versos não são de um poeta

E o único que os atesta

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É quem os está a escrever.

Eles não são nem mesmo uma seta,

Pois espero de Deus com paz inquieta

O futuro que eu quero saber.

Não conheço aquele jovem, nem reconheço a veracidade desta história, mas, mesmo sem conhecer-me, deu-me o que eu havia perdido: a capacidade de me admirar com o que outros pensam.

Segunda parte:

Liberdade ou solidão

Prólogo

Geralmente, quando começam a ler um livro, as pessoas tendem a julgá-lo segundo a visão do mundo capitalista do “tempo é dinheiro”. Procuram fórmulas mágicas que lhes dêem solução para seu vazio interior, assim como um enfermo que procura um remédio. Caso a leitura não corresponda às suas expectativas ou caso não compartilhem da mesma idéia do autor ficam apáticas. Quando isso ocorre, muitos abandonam a leitura por julgá-la chata e tediosa, não conseguem suportar o

desafio assumido no princípio. Na vida as pessoas tendem a fazer o mesmo: mal decidem algo, refutam o que decidiram e voltam a ponto de partida. É claro que todos são livres para decidir entre continuar o desafio ou relutar em fazê-lo. No entanto, ficarão a vida toda como pessoas que fraquejaram e, depois que o desafio não mais existir, terão saudades do mesmo e desejarão ardentemente voltar no tempo e agir de outra maneira.

Liberdade ou solidão é uma narrativa onisciente de um jovem que busca sentido para a sua vida. Quem nunca se perguntou para o sentido da existência? É a primeira pergunta que se faz quando se toma consciência de nossa condição humana. O jovem nessa busca, com sua rebeldia, e muitas vezes diante de moldes alienantes, dá sinônimos ao que pensa ser a liberdade e, no entanto, de todos os períodos da vida, é o que mais se sente sozinho. Mas é bom lembrar que se sentir sozinho não implica necessariamente em estar sozinho.

É preciso estar atento aos seguintes fatos: A modernidade está fazendo com que o ser humano perca a sua capacidade de admiração. O imediatismo faz com que ele deixe de viver a vida como um processo e, o hedonismo faz com que ele, em sua ânsia de prazer, deixe de viver a alegria presente nas pequenas coisas.

Viver é aprender a viver, sonhar é aprender a buscar, sofrer é aprender a contornar os obstáculos e chegar é sempre ter a coragem de partir.

Lembrança persistente

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Se não somos sujeitos ao destino, eis a comprovação de nossa liberdade; se, do contrário, a ele somos sujeitos, nele encontramos o rumo para nossas

vidas sedentas de sentido.

Sempre fui o último dos primeiros, regozijo-me por não ter sido o primeiro dos últimos. À minha frente, as letras do livro de química estão embaçadas por estas palavras que fazem eco em minha mente e não me deixam em paz enquanto não as coloco neste papel. Não sei nem por quê me ponho a escrever, afinal de contas, qual é a semelhança disto com Criometria?

Na verdade, enquanto leio, o que me inquieta é a lembrança de uma pessoa que insiste em ditar fatos que cogito. Já que cogitar é existir, darei provas de minha existência ao falar da existência desta pessoa...

Vítor já estava se acostumando com sua melhor amiga: a solidão. Trabalhava, estudava, sonhava... Buscava no mundo sentido para a sua existência, existência lograda por vários fatos de sua vida. Sentia-se como o centro do mundo, o centro de todas as atenções. Seu coração não deixava o seu corpo descansar, suas reflexões a respeito do que as pessoas pensavam dele o deixavam numa angústia recôndita que se manifestava em todos os momentos nos quais se encontrava sozinho no jardim ou no quarto antes de dormir. Tinha ânsia pela liberdade que buscava paulatinamente em vários momentos de sua vida ao introjetar sentimentos de solidão e independência diante das pessoas. O preço de

sua liberdade parecia solidão, no entanto, sempre que se angustiava com a mesma, se dirigia a várias alternativas de sociabilidade: “ninguém é uma ilha”. Buscava nas pessoas, nas torcidas de jogos de futebol, nos clubes, nas festas, na música escutada ao último volume, em sua guitarra e nos momentos de religiosidade, algo que pudesse preencher seu vazio interior, alguma emoção que pudesse dá-lo o sentido para a vida. Seu ego não tinha alegria e nem tristeza, somente vazio. Tentava buscar na razão, algo que pudesse convergir sua vida.

Como no mundo estamos sujeitos ao contínuo vir a ser, a vida de Vítor passaria por mudanças que mais tarde demonstraram a ele que tudo converge para a realização. Mas como não podemos erguer uma casa a não ser do chão, ou chegar ao último degrau a não ser pelo primeiro, trilhemos os degraus de sua preciosa existência.

Sistema da verdade vital

A primeira forma de conhecer uma estrela é a sua luz, nunca se poderá conhecer as pessoas a não ser por

suas atitudes.

Um dia, sozinho no jardim, Vítor parecia sonhar. Sua mente elevou-se às alturas. Este êxtase durou horas. À noite, contemplando o céu, viu uma estrela solitária, mas brilhante. Pensou consigo. “Talvez esta luz que aqui

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chega seja de uma estrela que já não brilhe mais. Assim deveriam ser as pessoas, fontes de luz que se irradia mesmo na ausência”. Movido por um ímpeto de inspiração correu para dentro de seu quarto e, tomando de uma caneta e um papel, escreveu até que chegasse a uma conclusão aparentemente plausível:

Deparando-me com os vários propósitos filosóficos, estabeleci dois pressupostos às vezes considerados díspares e outras vezes considerados imanentes em um único ser: a consciência e a emoção. Tais elucubrações foram feitas no intuito da busca da verdade universal que rege a vida do Ser Humano.

Primeiro analisei a diferença de intensidade dos sofrimentos do gênero humano de uma pessoa para outra. Verifiquei que o mesmo ocorre com maior intensidade naquelas pessoas que o desejam por um sentimento sado-masoquista que acompanha a todos os seres. Muitas pessoas não têm nem mesmo a consciência desse fato, o que faz com que elas, pela simples adesão à ciência de si mesmas, possam encontrar a solução para a maior parte de seus problema. Este é o grau da consciência de que todo o destino se concentra na mão de quem para ele se dirige.

Muitos acontecimentos encadeiam-se contrariamente à vontade do ser humano, no entanto, o que permanecem são somente os reflexos destes acontecimentos que fazem com que o Ser tenha atitudes de acordo com o seu grau de consciência. Se a pessoa se encontra apática em relação ao mundo, qualquer acontecimento inesperado, por menor que seja, pode

causar um grande descontrole emocional, já que ela não está imunizada contra ele. Portanto, o sofrimento não pode ser universalizado como tal, na mesma intensidade e com as mesmas atribuições para todas as pessoas. Ele existe, mas pode ser deletado pela consciência ou apenas minguado. Lembro, porém, que poder, não significa ter vontade de, ou ter necessidade de, pois isto varia de indivíduo para indivíduo. Na verdade, a emoção torna-se necessária na vida dos seres, pois, para experimentar emoções alegres, é preciso ter como referência as emoções tristes. É exatamente por este fato que muitas pessoas só se dão conta de que muitos sofrimentos são minúsculos quando se deparam com um sofrimento de maiores graus. Daí é que se originam os vários sofrimentos causados pela lembrança de uma vida onde muitos dizem a famosa exclamação: “eu era feliz e não sabia!”.

Deve-se tomar precaução, porém, contra o fato de que qualquer emoção (boa ou má) não turve a razão. Isto acarretará maiores descontroles para a vida do indivíduo. Neste sentido, a emoção e a consciência revezam-se como o dia e a noite.

Intrínseca à consciência temos a vontade que vai propiciar ao indivíduo o sentido da existência, já que o mesmo, por causa da consciência, pode ser perdido ao se descobrir as inúmeras futilidades às quais o indivíduo estava atribuindo um inestimável valor. A vontade, imbuída da esperança, irá fazê-lo escolher um dos vários caminhos que podem levá-lo à realização.

A liberdade aqui, não consiste em escolher todos os caminhos possíveis, mas sim, dentre os vários

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caminhos, escolher o melhor. Assim, escolhendo o caminho mais eficaz, o homem entrega-se a ele integralmente sem restrições ou indecisões que poderiam fazer com que ele não se realizasse plenamente. Todavia, de nada adianta conhecer, escolher e não agir. É preciso ter coragem para assumir este caminho. Esta coragem fará que ele aja sem o receio de ofuscar a visão com a claridade da verdade, sem o demasiado valor atribuído às renúncias que fará.

O amor neste Sistema é o valor supremo, é o horizonte sempre visto e sempre buscado, é o ponto de partida e o destino para o qual tendem todas as ações.

Desse modo, o Sistema da Verdade Vital, também pode ser chamado de Sistema Vital da Verdade, pois, da mesma maneira que a vida só terá sentido quando se tiver uma verdade-guia, esta verdade somente terá sentido se for utilizada para a vida, verdade e vida estão em dialética. Sua composição é feita de três atitudes intrinsecamente ligadas: Consciência, Vontade e Coragem; e de três valores regentes destas atitudes: o Amor, a Esperança e a Liberdade.

Sensação desconexa

O passado aos olhos do presente é como o sol, cuja beleza é extraordinária, mas dificilmente pode ser

contemplada.

Vítor achava que todo sofrimento só teria sua intensidade realmente cognitiva se a pessoa o permitisse. Mas a si suas teorias não serviram de maneira eficaz. Abriu um livro no qual dizia: “médico cura a ti mesmo”. Estas palavras ressoavam em sua mente como alguém a lhe dizer que outro regia sua vida. Vítor voltou à sua teoria falando com seus botões: “Sou dono do que sinto”. Na verdade queria sofrer; sua vontade de viver emoções fortes e sua ânsia pelo futuro davam a ele um prazer inefável.

Um dia fez uma viagem à sua terra natal. Lá reviu velhos amigos e parentes. Emotivamente tudo parecia perfeito, todos lembravam o passado com os olhos do presente. Lembrar o passado não nos deixa tristes enquanto o fazemos; este, por pior que tenha sido, sempre nos dá uma sensação de fortaleza. Vítor se sentia orgulhoso por haver passado por tantas vicissitudes e em ter superado os seus momentos difíceis. Mas há acontecimentos que não nos tornam melhores. Ao voltar, Vítor foi tomado de um sentimento de nostalgia; lembrava das pessoas que tinha, sem intenção, magoado. Ao rever estas pessoas percebeu que nada tinha ficado da mágoa que o martirizara por anos; no entanto, a lembrança de seu erro, insistia em macular os momentos felizes que revivera. Queria voltar ao passado e agir de outra maneira (quem não o deseja), mas o passado não existe, apenas insiste.

Ao voltar à sua casa e à rotina diária, já estava começando a voltar àquele estado de vazio no qual se recolhia. Ao passar próximo a um amigo, uma angústia tomou conta de seu ser. Aquele amigo de tantas horas não o cumprimentara. Estaria magoado com ele? Não o tinha

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visto? Decidiu por fim àquela amizade? Ofendemos as pessoas sem este propósito, isto fazia com que Vítor acreditasse na primeira das hipóteses. “Médico cura a ti mesmo”. Começou então a imaginar o que as pessoas pensavam dele, pois se soubesse qual seria a reação das pessoas diante de qualquer palavra ou atitude sua, poderia falar e agir com segurança. Nem mesmo os seus escritos o aproximavam mais das pessoas, pois não desejava ser refutado no que dizia, apesar de conhecer a ineficácia de suas teorias na prática.

- Interessante na teoria, - dizia um amigo, numa mesa de bar, após Vítor ler em voz alta para seus colegas do ensino médio, o “Sistema da Verdade Vital” - mas difícil e quase impossível na prática.

- Adalberto, como pode dizer ser quase impossível algo que em nem propus? Não coloco propostas para uma vida plena, só falo, como ela seria se...

- Não se engane Vítor, você coloca uma proposta sim, e o que é pior, muitas vezes se confunde ao analisar as atitudes humanas. Veja só: para eu me sentir feliz tenho como referência a tristeza? Você se esqueceu de um detalhe, não é a presença do sofrimento que origina em sua ausência a alegria, mas a alegria em si mesma. Os seres valorizam a ausência, é por isso que, ansiosos e saudosos, não conseguem viver o presente intensamente.

- Tudo bem, aceito a discordância, realmente proponho atitudes a serem tomadas, mas o que poderia confirmar a ineficácia de tais atitudes?

- Não coloque palavras em minha boca, eu não falei que as atitudes propostas são ineficazes para uma

vida melhor, só mencionei a confusão que você fez ao analisar o homem de forma behaviorista. Na verdade, sou empirista, o que você propõe é algo que ainda não possui comprovação, por isso, ainda não é plausível.

Estavam no bar e todos contemplavam a eloqüência de Adalberto ao contradizer o que Vítor falava em êxtase. Nenhum dos outros entrou na discussão, preferiram ser expectadores. Os três tinham suas próprias opiniões, mas se reduziam ao movimento da cabeça afirmando, o à sua inércia discordando; esta última atitude foi observada com mais freqüência enquanto Vítor falava. Ao reparar nisso, Vítor sentiu-se como uma ave que leva um tiro e cai no chão sofrendo, anteriormente à queda, a dor que punge por causa do tiro. A formatura se realizaria em três dias e decidiram não desfazer aquele círculo de amigos, porém este, naquele dia, perdeu um componente por causa de seu orgulho ferido.

Somos humanos e se não aceitamos nossas limitações, nunca poderemos seguir adiante sem ter medo de ser felizes. Vítor, por não saber disso, isolou-se das pessoas. Queria conhecer a si mesmo, mas pensava que a solidão era a única maneira de fazê-lo. Fisicamente estava diante das pessoas, mas esquivava-se quando o assunto era a sua pessoa. Decidiu nunca mais dizer aos outros o que realmente sentia; o que só foi possível por pouco tempo, já que os sentimentos fazem do corpo um turbilhão como a água o faz ao ferver dentro de uma panela de pressão. Precisava liberar suas emoções de alguma forma...”Médico cura a ti mesmo”. Imaginava-se numa vida totalmente desregrada, sem nada que o impedisse de ser livre, sem sofrer as conseqüências dessa liberdade. Seu conceito de liberdade ultrapassava todas as

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teorias que insistem em afirmar a Liberdade Humana. Seu conflito interior juntado às constantes leituras deu origem a várias reflexões que se alternavam em momentos de lucidez, de loucura ou êxtases. Escrevia, não sabia para quem nem para que, mas escrevia. Brincava com as palavras e teorias dos grandes filósofos da antiguidade e tentava encontrar um caminho próprio, o verdadeiro caminho para a sua única meta: a felicidade.

O tempo: incógnita de nosso existir

Silêncio e inércia: primeiros sinais da morte, eis a razão para o pavor que estes insistem em injetar no ser

humano.

Durante a formatura, Vítor saiu fora de si, estava exultante com todas as festividades e homenagens que sua turma, a mais promissora nos últimos dez anos, recebeu naquele dia. Em uma celebração ecumênica lhe deram o certificado de conclusão do ensino médio, contemplava-o como se contemplasse seu futuro; naquele

momento, sua alegria transformou-se em esmagadora angústia diante da incerteza do futuro a partir de então.

Terminou satisfatoriamente o segundo grau, mas não sabia o que fazer. Em outras ocasiões, aquelas férias seriam aproveitadas integralmente na esperança de retornar no próximo semestre aos estudos com a mesma tenacidade. Contudo, agora, não havia mais volta, era preciso decidir. O que fazer? Quem não é livre anseia por ser, e quem o é, enfrenta o dilema da existência na escolha do próprio destino. A ausência da rotina, que o libertara das grades, deixou-o no meio do deserto no qual se viu perdido. Seus escritos continuavam manifestando a certeza que desejava ter, a visão daquilo que somente ele parecia enxergar...

Na modernidade, a dúvida mais contundente talvez seja em relação ao fator tempo. O ser humano vive atrás de tempo para fazer tanto e, no final das contas, acaba se perdendo no emaranhado da vida, de rotinas, problemas e, o que é pior, de muito vazio interior.

Parece que ninguém mais sabe parar e descansar. É admirável depararmos muitas vezes com o exemplo de muitas pessoas que, deixando a rotina fatigante, param para descansar debaixo de uma árvore ou que se retiram em algum lugar de muito silêncio; atitude que pode parecer estranha para o mundo de hoje, um mundo materialista (onde tempo é dinheiro), de ação, de movimento (onde ficar parado é atrasar-se diante da corrida capitalista), e do barulho (onde o silêncio é escasso e causa sensação de desconforto).

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Quando o ser humano pára para um lazer é bombardeado por inúmeras alternativas que só lhe trazem barulho e movimento. O jovem é a maior vítima desta realidade intrínseca ao modernismo. Ao procurar o descanso ou a diversão, sai de si através de músicas que devem ser escutadas em alto volume, de filmes e notícias que têm o toque sadista da violência e da morte. Vive um outro mundo que parece semelhante ao seu, mas, se comparado, lhe dá uma sensação de triunfo pelo mesmo fato de não estar vivendo momentos tão dolorosos quanto os que estão sendo passados. Esquecem-se de sua realidade por alguns minutos, para viver realidades afrontadoras e dizer: “minha vida poderia ser pior!”.

Quando sobrevêm o silêncio e o momento estático, juntamente, aparecem os sentimentos de insegurança diante do futuro, a ansiedade por este futuro e, o deslocamento do presente certo para o futuro incerto. O ser humano vive o medo do silêncio, pois está acostumado ao movimento que não deixa que se encontre consigo mesmo. Quando isso acontece, verifica quão vulnerável é e, quanto caminho ainda está à espera de seus pés de peregrino, peregrino da vida. “o caminho se faz ao caminhar”, é o que deve animá-lo a sempre parar, descansar, levantar-se e prosseguir.

O ser humano se preocupa tanto com o seu futuro que se esquece de viver o momento presente (isso, supondo que este possua um espaço). Pinta um futuro multicor onde não há tristeza, sofrimento, nem dor, mas, ao chegar ao momento esperado (o futuro que se torna presente), cai numa decepção tal, que o faz exclamar, novamente e com ironia: “dias melhores virão”. É certo que depois da chuva vem a bonança, mas a preocupação

com o futuro só o faz esquecer todos os dias, horas, minutos e segundos de sua vida, de que vive para viver, não para planejar. O futuro é algo a ser construído com o presente, mas como fazer isso se não se vive o presente pensando no mesmo futuro? Com certeza a fantasia do pensamento é o que torna a vida mais cheia de ansiedades. O ser humano se esquece de que o futuro não existe e que não é ele que impulsiona a vida, mas sim a idéia que se tem dele. Constrói uma casa de mármore com alicerce de barro porque nunca parou para construir o alicerce com segurança. Preocupa-se tanto com o telhado da casa (futuro) que se esquece de sua base (o presente).

Outro erro é refugiar-se num passado de contradições, dúvidas e de momentos não vividos (já que estes foram preenchidos por preocupações e formulações para o futuro). Deixa-se de viver o momento presente novamente. Os questionamentos deixados para trás, agora são válvulas de escape a uma sensação de inquietação, de morbidez e de sentimento de culpa. Espera-se por algo, deixa-se de viver o momento presente e a saudade se faz permanente.

Como vemos, o tempo e a situação do homem neste são o que mais dirige o ser humano ao seu caos. Todo sofrimento proveniente desse caos poderá tornar-se crescimento para uma deleitosa realização pessoal se bem direcionado, mas, se não, poderá mergulhá-lo em maiores sofrimentos e angústias. Oxalá o homem caminhe em concordância com o tempo e com o amor, único alternativo para uma verdadeira realização.

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Dias de festa

Não há nada de novo no mundo para aquele que se apega ao constante vir a ser da matéria, tudo é novo

para aquele que acredita no poder das emoções transformadoras.

Vítor sempre acreditou na força do amor, mesmo sem saber como defini-lo. Se este era entrega, era preciso descobrir a quem ou a que. Sabia que o amor possui forças incomensuráveis, no entanto tinha medo de agir. Sua visão limitada da vida fazia com que ele cerceasse as oportunidades que lhe apareciam. Sentia-se terrivelmente só, mas se deleitava nesta solidão. Na verdade, aspirava à liberdade, mas desejava ter uma marca estigmatizada no mundo. Conseguiu emprego numa escola da periferia dando aulas no ensino primário e se orgulhava de dizer a todos a sua profissão. Adiou, por um tempo, a angústia que o atormentava retornando à antiga rotina de estudante. Assim que o ano terminou e a rotina se afastou novamente, voltou a encontrar-se consigo mesmo no dilema de sua existência.

Enquanto todos se preparavam para as comemorações de final de ano, Vítor foi tomado de uma sensação inquietante. Dissimulou tão bem uma aparente alegria, que não deixou que ninguém percebesse seu estado de espírito. Na verdade, não tinha nada lhe desagradar, mas todas aquelas comemorações, pareciam-lhe sem sentido. Silenciosamente, deixava a todos e, trancado em seu quarto, punha-se a escrever:

21 de dezembro: é interessante a tendência que temos em guardar tudo o que possuímos, principalmente aqueles objetos que nos lembrem uma atividade exercida em algum período especial de nossa vida. Este caderno em que escrevo, por exemplo, recorda-me todo este ano de luta na licenciatura. Algumas páginas tomadas por planejamentos de aulas recordam-me a reciprocidade do trabalho exercido, e isso, é tudo o que me alegra. Sem pensar, acumularia pilhas de papéis pensando na sua utilidade para o futuro. Talvez eles nunca seriam vistos novamente. Talvez, outra pessoa os veria, porém não se deleitaria nem um pouco com eles, como eu o faço nesse momento. Cada vez que olho para as coisas que me cercam, vejo-as com outros olhos. Parece que já não é a mesma cama, mesma mesa, mesma televisão, mesmo rádio...Parece que em minha volta, tudo se modifica a cada segundo em que volto o olhar. O passado insiste em aparecer, o presente insiste em ser tomado de lembranças e ansiedades e o futuro...o futuro? Este nunca chega, sempre é esperado, mas nunca é vivenciado. O passado pode até mesmo ser pior que o presente, mas é sempre mais valorizado que este.

Momentos de depressão

Nem tudo o que existe possui um sentido aparente; há coisas que não é necessário ao ser humano

conhecer para que passem a ter sentido existir.

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Por um ano investiu suas forças na educação de crianças e adolescentes. Sentia-se feliz neste trabalho, mas nunca deixou a impressão de que algo lhe faltava. O sofrimento humano, muitas vezes, só aparece quando sentimos que algo que não é, poderia ter sido. Desta forma, Vítor tinha atitudes que demonstravam certeza diante do caminho a seguir, mas, interiormente, era perturbado por correntes em sentido contrário, como um barco em um oceano em plena tempestade. É evidente, que possuía motivos de sobra para festejar, mas não estava satisfeito consigo. Quem poderia entender tal atitude?

Madrugada de 25 de dezembro: é Natal. Todos festejam e eu, automaticamente, ponho-me a analisar as atitudes humanas. Todos pensam saber o que querem. Todos pensam estar realmente vivenciando um momento de emoção. Na verdade tudo é ilusão. Tudo o que procuramos encontrar na aparente emoção vista nos acontecimentos vivenciados por outros, é apenas o aumento de nossa mente que sempre busca aquilo que não se tem. Quando pego no violão e toco várias músicas a respeito de minha situação, quando pego na caneta e escrevo o que sinto, esvazio o meu ego e não tenho mais nada a dizer. O que antes era o objetivo, já não tem importância alguma. O que antes era o sentido para a existência tornou-se um poço de recordações. Os homens fingem saber o que querem, mas, na verdade, ninguém sabe sequer por quê se existe, a única certeza que se tem é que se existe. Porém, se existir não tem sentido, nada do que almejo tem sentido. Talvez nunca ninguém chegue a ler o que agora escrevo; o certo é que escrevo por escrever e o sentido para escrever está neste mesmo ato.

Deixar de viver procurando sentido para este viver é o que faz com que fiquemos a vida inteira procurando porquês para o que não há, ou nunca se encontrou sentido: a vida.

Momento de lucidez

Quando não se pode argumentar a ausência da felicidade é que se percebe os momentos que realmente

são importantes.

Há pessoas que quando se embriagam ficam mais pessimistas que outrora. Outras quando se embriagam parecem ter certeza de todas as decisões a serem tomadas. Há também as que agem totalmente diferente que o de costume. Vítor, na tarde daquele dia de comemorações, parecia bem mais otimista que à noite anterior. Não tomara nenhuma bebida alcoólica, mas parecia inebriado de uma alegria vinda das frases que escutara naquele dia. Na Igreja, nas ruas, tudo parecia mudado. Nem mesmo os

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mendigos que interceptavam seu caminho em outros dias estavam presentes ao longo da estrada. Uma força misteriosa punha na boca de todas as pessoas um sorriso cheio de esperança. Pensou consigo: “de onde vinha o sentimento que me mergulhava na angústia na noite passada? De onde vem este sentimento de felicidade que envolve os corações neste dia?”. E registrou:

Tarde do dia 25 de dezembro: se prestássemos atenção em cada um de nossos atos, passaríamos a vida inteira em reflexões fúteis que não nos levariam a nada. Por exemplo: por que comecei a escrever estas linhas há dias atrás? Na verdade, um ego vazio procura preencher-se de alguma forma. Todos buscamos algo que nos infle o ego. Todos julgamos os outros que, de alguma forma, parecem estar ilusoriamente preenchidos. Não só julgamos como afirmamos ser apenas ilusão o que essas pessoas pensam e sentem no exato momento de nossa percepção. Somos livres, mas não sabemos o que é a liberdade; somos conscientes, mas insistimos em turvar nossa razão; temos vontade, mas não temos coragem para assumir esta vontade; esperamos por algo, mas insistimos em nos entregar ao egoísmo que busca a felicidade sem o amor. A vida converge para a realização, mas nós insistimos em torná-la mais sinuosa que as estradas ao longo de uma cordilheira. Insistimos em viver a vida ou as emoções vividas por outros. É evidente que desejamos exatamente aquilo que não temos, só animamos a agir quando não podemos mais fugir. Com certeza, todos nós temos um pouco de “Maria vai com as outras”. É imprescindível que vivamos nossa vida, que tenhamos iniciativas transformadoras que partam de nós mesmos, que apliquemos a nossa liberdade, a nossa esperança e o

nosso amor à consciência que descobre nossa real vontade e, com coragem inigualável, age.

De volta ao sentido

O acaso é a forma que a vida encontrou de trazer ao ser humano possibilidades às suas atitudes, mas ai daquele que lhe outorgar a chave de sua felicidade.

É verossímil como a facilidade de estar num mar de vazio e solidão é tão incidente quanto o aglomerado de preocupações que podem rodear a vida de uma pessoa, mesmo que esta não corra atrás dos problemas. Quando a emoção e a razão se desequilibram, o homem encontra-se desgovernado e sem sentido para a vida. Mas Vítor se sentia feliz. Pressentia que algo de novo, viria trazer um novo ingrediente para a sua vida rotineira. Acostumara a conviver com sua companheira de todos os tempos. Não se estranhe! Já falei sobre ela outras vezes: a solidão.

Um dia, por ocasião do aniversário da empresa na qual agora trabalhava, voltou mais cedo para casa, tomou o violão e foi para a praça distrair-se naquela bela tarde. O sol brilhava com intensidade, mas o calor não era sufocante. Um delicioso vento acariciava a quem se dispusesse a sentar sob a sombra daquelas árvores. Eis o maravilhoso cenário no qual iniciava mais uma história que marcaria sua vida.

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Do violão saíam melodias belíssimas, mas nunca ouvidas. Vítor tocava nas cordas, como um mago ao pronunciar palavras mágicas. Cada nota penetrava em seus sentidos com desenvoltura e formou uma imagem em seu pensamento, a bela imagem de uma mulher que outras épocas tentou namorar. Sua lembrança persistia e Vítor percebeu que estava novamente apaixonado por ela. “Mas como?” – pensou – “há anos que não a vejo. Agora ela já deve estar terminando o primeiro período na faculdade de Psicologia. Mesmo que ela quisesse voltar a essa possibilidade, poderia ter receio de prejudicar seus estudos...”. Essas idéias não lhe enleavam o espírito. Antes, o deixavam numa sensação de arrebatamento a um plano supra-sensível por lembrar-se daquela que gostava, mesmo sabendo da impossibilidade de tê-la ao seu lado.

O acaso sempre prega peças ao ser humano, mas é necessário sempre tirar proveito delas para que a vida se torne mais agradável. A magia daquela tarde não se manifestava somente pelos fenômenos da natureza, manifestava-se pelos sons produzidos em seu violão e, mais ainda, no que estava por acontecer. Viu que no banco de trás, sentara-se uma mulher taciturna, todavia não se virou para ver quem era, sabia que era uma mulher pelo perfume inebriante que exalava no ar. Continuou tirando notas do violão que faziam virar-se para ele todos os que passavam e lhe dizerem com um sorriso: “boa tarde!”.

Quando silenciou. Notou que já estava escurecendo, pois já eram seis horas da tarde, então se virou para guardar o violão e seus olhos não puderam acreditar no que estavam vendo: Jéssica estava no outro

banco a escutar todas as melodias produzidas por ele. E, mexendo nos cabelos, virou-se e disse:

- Não pare. Já estava quase chegando aos céus com esta melodia.

- Já é tarde e, além do mais, não quero você longe de mim. Prefiro-a aqui na terra – Vítor estranhou a si mesmo, parecia ter a resposta formulada para qualquer indagação de Jéssica, apesar da surpresa de a estar vendo após tantos anos.

Jéssica, com um sorriso forçado, disse com um tom de marasmo:

- Pelo menos alguém no mundo não me quer mandar para o espaço!

Com essas palavras Vítor sentiu nela uma sensação de vazio interior. Talvez ela estivesse se recuperando de alguma mágoa ou ressentimento. Aproximando-se e sentando-se, perguntou delicadamente:

- O que está acontecendo com você? O que a aflige?

Jéssica, olhando sempre para o chão, disparou a falar como se estivesse esperando que alguém perguntasse por isso há anos.

- Sinto que, de tanto buscar sentido para a vida, vivi sem sentido, não porque esta não o tivesse, mas porque o seu sentido não pode ser encontrado fora da vida. Para tudo buscava respostas racionais, para toda ação buscava sentido plausível. Quando uma ação não correspondia a uma lógica aparentemente racional, pensava ser uma ação fútil que me levaria ao mesmo

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ponto de partida, apenas alargando o caminho a percorrer. Por tudo isso, várias vezes, tive possibilidade de mandar embora a solidão, mas, por aderir à dicotomia entre a razão e a emoção, não o fiz...

Vítor escutava atentamente a tudo e via nela o reflexo das mesmas inquietações de seu íntimo e, voltando-se para sua amiga, por medo de se arrepender como das outras vezes em que não agiu, atirou ao mar todos os seus temores e disse procurando achar-lhe os olhos que ainda se fixavam numa formiga do chão:

- Sinto o mesmo que você. E, talvez, não me sentiria assim se você tivesse dito sim a uma proposta que lhe fiz há algum tempo atrás. Portanto, se você se sente sozinha é porque você mesma quer.

- Agora é diferente. Tudo na vida tende a mudanças. Eu mesma, quando entrei na faculdade, notei que minha vida estava se tornando muito rotineira e monótona. O entusiasmo do início foi se apagando e agora vejo que realmente ainda falta alguma coisa em minha vida. Não sei se você me entende!

- Nunca deixei de esperar que esta ocasião surgisse em minha frente. Talvez, você me queira como a um amigo em quem confiar as suas decisões, angústias e incertezas, mas não posso deixar de dizer o que sinto. Se você disser que não, continuaremos amigos, mas, se disser que sim...

Enquanto dizia essas palavras, os olhos de Jéssica voltaram-se para a lua cheia – nenhuma outra noite seria tão magnífica para aquele momento – e, interrompendo Vítor que ainda falava disse:

- Claro que sim Vítor. Sei o que sente, é o mesmo que sinto. É por isso que vim aqui. Não pude mais resistir à vontade louca de estar ao seu lado!

Vítor não sabia o que fazer. Sempre foi cheio de iniciativas no que se tratava do trabalho. Sempre teve respostas para qualquer enigma que as pessoas lhe apresentassem, porém, quando tinha que falar o que sentia ou agir de maneira que tivesse reciprocidade em sua ação, cogitava os meios, fadava os caminhos e, só depois, agia. Foi o que aconteceu após aquele sim. Mas, nessas horas, não se pode superestimar a razão, é preciso deixar a emoção agir. Ela, demonstrando sua timidez, falava sobre assuntos que nada de importante tinham para o momento. Vítor, olhando para os seus olhos que fugiam e se aproximando de seus lábios, consumou o que deveria ter feito bem antes. Nesta hora não se pode definir a sensação, já que o intelecto parece ser guiado a um lugar supra-sensível onde os seres alados não têm medo de perder as asas e despencar no abismo, um lugar onde a magia transcendental é de poder incomensurável: era o amor dando sentido novo para tudo. Qualquer outra definição seria mais tola ou mais brega que esta.

Vencidos pelo banal

Na vida tudo está sujeito à ordem da fugacidade, não por causa efemeridade das situações, mas sim, porque

almejamos à eternidade.

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Geralmente, quando fazemos um relato de algum acontecimento, deixamos nossa emoção agir e falamos dos detalhes mais insignificantes. Estes, quase sempre fizeram parte daquilo que se tornou a realidade, mas um verniz místico faz com que transformemos uma simples casa em um grande cenário de acontecimentos que por mais corriqueiros que fossem, deixaram seu ferrete sobre a vida; um pobre jardim torna-se o mais suntuoso e rico em espécies floríferas jamais visto em nenhum castelo de realeza inigualável. É bom lembrar que o verniz protege nossa história, mas, muitas vezes, esconde o real. Bom seria se, ao relembrar algum fato, os sentidos estivessem aguçados tanto para os acontecimentos alegres quanto para os tristes.

Como todos estamos sujeitos às vicissitudes da vida, Vítor não poderia prever o que estava por acontecer. No princípio, tudo era maravilhoso. A curiosidade e o mistério eram os combustíveis para os diálogos de Vítor e Jéssica. Por alguns meses, a distância um do outro era algo extremamente penoso aos dois. Partilhavam tudo. Vítor falava de seu trabalho, de suas conquistas e de sua insegurança devido ao corte de gastos na empresa. Jéssica falava de suas aulas na faculdade, dos acontecimentos engraçados que lá se passavam e de seus familiares. Parecia que formavam o perfeito par.

No entanto, com o passar do tempo, surgiram o marasmo e as decepções provindas da rotina e das desconfianças. Neste mundo, duas pessoas que se amam, deveriam tomar um manual que ensinasse as atitudes devidas nas diversas circunstâncias do relacionamento.

As pedras atiradas pelo caminho, não foram obras de inimigos, mas de amigos. Perguntaria você: “como amigos verdadeiros poderiam fazer mal a duas pessoas que se amam”. Mas não se pode esquecer que as palavras possuem o seu poder diversificado e conspícuo em cada ocasião em que são pronunciadas. Um simples comentário pode gerar desconfianças, apesar da boa intenção do mesmo...

- Vítor, você não me disse que iria para casa ontem quando daqui saiu?

- Sim Jéssica, mas quando passei pela rua de Douglas, este me chamou para participar da confraternização de aniversário de sua irmã e, não achei, nada demais parar um pouco. Além do que, você não quis sair comigo ontem à noite.

- Ah! Então admite que foi à festa de sua ex-namorada por vingança a mim?

- De forma alguma, você sabe muito bem que ainda somos amigos apesar dos pesares.

- Não pode haver amizade entre um homem e uma mulher, ainda mais, quando estes um dia disseram um ao outro que se gostavam.

- Nunca dissemos isso. Meu namoro com ela foi uma forma infantil que encontramos de afastar a solidão. Você mesma sabe disso; por que desconfia de mim?

E assim passavam horas em discussões fúteis que a nada levavam. Ambos se sentiam presos e, para Vítor que colocava a liberdade como um dos patamares da realização, isto significava o caos. Para ele, o amor

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levaria à liberdade, não à escravidão, logo, se eles não se sentiam livres, na verdade – pensava ele – não se amavam.

Vítor desejava muito mais do que encontrar Jéssica nas situações triviais do dia-a-dia. Queria viver momentos mais expressivos de emoção, fantasiados pelo que ele imaginava ser realmente a alegria a dois ao lado daquela com a qual imaginava que dividiria o restante de sua vida. Jéssica, porém, acostumada ao cotidiano vulgar, presa em seu quarto a ler e a escutar canções de sua situação, não apreciava esses momentos esperados e, além de tudo, nunca acolhera mudanças. Quando Vítor, aproveitando as férias da faculdade de Jéssica, a chamava para passear em algum lugar ou participar de alguma festa, ela secamente lhe dizia:

- Eu não quero ir, se você quiser, vá sozinho.

Vítor, tentando disfarçar sua desilusão, falava dissimulando um romântico apaixonado:

- Sem você, nada tem graça!

E ficavam os dois em silêncio, sem nada dizer. O silêncio inquietava a ambos e, enquanto Vítor observava Jéssica, notava a sua ansiedade e mecanicidade em olhar a todo o momento o relógio. Era como se pensasse: “o tempo não passa!”. Sentindo-se desprezado, Vítor deixava aquela casa mais só do que quando lá chegara.

É estranho como duas atitudes antagônicas podem ser ao mesmo tempo nocivas para um relacionamento. No princípio de suas dificuldades, a pedra no caminho era a desconfiança. Quando se desconfia de algo, esta

desconfiança pode ter duas faces: a do ciúme possessivo na qual um se acha dono do outro e do ciúme mascarado na qual um joga suas incertezas nos possíveis deslizes do outro. Em ambos, pelo menos, Vítor pensava: ”Tenho algum valor para aquela que tem medo de me perder”. Mas, quem ama verdadeiramente, não tem medo de perder a pessoa amada, já que o amor é o sentimento que faz com que duas pessoas, por mais separadas fisicamente que estejam, sintam-se unidas eternamente. Agora, Vítor começava a enxergar a realidade “nua e crua”, como ela lhe aparecia. Se antes seus passos eram motivos de seus desentendimentos, agora a dor da indiferença era a causa de seu penar. Primeiro o ciúme, depois a indiferença, pedras que juntadas a outras, cada vez mais bloqueavam o caminho de Jéssica e Vítor.

É necessário, não deixar de analisar ambas as realidades. Bem diz o ditado: “quando um não quer, dois não brigam”. Se por um lado Vítor se sentia desprezado, por outro, Jéssica se sentia um fantoche em suas mãos. Jéssica também era alvo das desconfianças de Vítor. Sua beleza não o deixava em paz, pois, todas as vezes que saíam juntos, olhares se voltavam para ela atraídos por um estranho encantamento. Este era o motivo de seu determinismo em não sair acompanhada de Vítor. Quando ia à casa de algum parente, ao chegar de lá, era bombardeada por inúmeras interrogações. E, para completar, era obrigada a escutar todas as lamentações daquele que se achava o centro das atenções. Já não podia dizer o que sentia sem mentir, já não podia falar de seus amigos ou amigas sem ser alvo de desconfiança, já não podia falar de seus estudos, pois estes não mais

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interessavam a Vítor. Ambos atiraram pedras ao caminho, e, as atiradas por Vítor foram o orgulho e a desconfiança.

Passavam os dias. Vítor decidira arrastar aquela situação, pois acreditava que o tempo era o melhor remédio para que as coisas se ajeitassem. Chegando à casa de Jéssica, como de costume, encontrou-a saindo do banho. Ela não o viu, mas o perfume do banheiro difundiu-se por toda a sala e seus cabelos e ombros ainda molhados realçavam-lhe ainda mais a beleza. Saindo do quarto, com um vestido exuberante, ela se dirigiu à porta, para onde Vítor acompanhou-a. Parada e encostada no marco da porta, fixou os olhos na lua nova entre as nuvens e disse:

- Vou sair com minhas amigas.

E Vítor, fingindo não entender, disse:

- E aonde vamos?

- Nós vamos a uma festa. Uma amiga me deu um convite! – e frisou – vou com minhas amigas.

Vítor já havia decidido não mais criar intrigas. Entendeu perfeitamente que ela desejava ir sozinha à festa, mas, apesar do ciúme a aflorar, não disse nada; apenas, curvou-se para dá-la um beijo e sentir o maravilhoso perfume que exalava do corpo de Jéssica. A volúpia que se inflamou em seu corpo o fez esquecer de todos os desentendimentos dos últimos dias. Ela, desviando o olhar e os lábios, disse friamente:

- Preciso de um tempo para pensar.

Vítor caiu em si e percebeu que toda aquela abstração de minutos atrás não correspondia à realidade.

Tentou descobrir o motivo de tal decisão fazendo a ela várias perguntas para as quais pedia respostas com o olhar fixo no seu. Nada o convenceu da separação. Sabia que pedir um tempo para pensar é uma maneira delicada e desonesta de dizer adeus. Vítor saiu sem olhar para trás, sem vontade chorar, não desejava fazer nada.

No outro dia, as conseqüências eram-lhe visíveis. Ao sair para o trabalho, ia vagarosamente. Atravessando uma avenida, nem mesmo reparou que o sinal vermelho para pedestres piscava, preste a abrir para os carros. Quando estava no meio da avenida, o sinal de trânsito abriu e uma moto interceptou seu caminho. Vários carros iam e vinham sem parar. Perplexo, não conseguia sair do meio da avenida até que um motorista, percebendo o seu perigo, parou o carro a fim de dar-lhe passagem. Atitude exaustiva para este que teve seu carro amassado por uma caminhonete que vinha logo atrás. Continuando o caminho, passou no corredor de um mercado de discos e escutou uma música que lhe fez lembrar dos acontecimentos dos últimos dias. As lembranças insistiam em atormentar-lhe o espírito. Seus olhos, ainda sob ação da noite mal dormida, viam Jéssica em todas as mulheres que passavam. Na verdade, ele tinha a esperança de encontrá-la em alguma rua na qual entrasse lhe dizendo que havia se arrependido de “pedir um tempo”. Como um autômato, Vítor pôs-se a correr. Tinha vontade de aplicar murros a paredes e liberar toda aquela amargura, mas sabia que mesmo se o fizesse nada mudaria. Sentiu-se fraco e sem coragem para enfrentar mais um dia de trabalho e ligou avisado que não compareceria por motivo de saúde. Voltou para casa. Uma apatia o acompanhou durante todo aquele dia. A vida continuava a lhe pregar

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peças e, em meio àquelas sensações, ria sem motivo. Sentindo apetite depois deste longo dia resolveu comer algo. Comia como um selvagem, pegava os pedaços de carne com as mãos e rasgava-os com os dentes. Tamanha era a distração que, juntamente com o último pedaço de carne, mordeu o dedo indicador. Riu como um louco e, sem qualquer motivo, rompeu em prantos. Tudo isso era a prova de que, novamente, um vazio se instalara em seu ser e a esperança de afastar a solidão esvaiu-se como uma gota d’água num deserto.

Ter vontade de fazer tudo

E não conseguir fazer nada,

Eis a sensação que não refuto

Após o desprezo de minha namorada.

Tentativa frustrada

Feliz aquele que, mesmo passando por momentos difíceis, sabe mostrar aos outros que a

felicidade é possível; tanto o peregrino quanto o caminho chegam ao destino.

Vítor voltou à mesma vida de antes. Quase nada do que aconteceu nos últimos meses correspondeu às suas expectativas. Resolveu não mais lamentar pela sua solidão. Pelo menos algum amadurecimento aqueles

acontecimentos lhe trouxeram. Percebeu que novamente deixara suas emoções turvarem a sua razão e atribuiu a elas o amargor que agora sentia.

Apesar de quase sempre estar pensativo ou até mesmo pessimista diante da vida, todos os que com ele conviviam procuravam-no, a fim de resolverem seus problemas. Ele, sem nada dizer, escutava atentamente e, somente depois, com um sorriso incessante, dizia algo que pudesse clarear o caminho de quem o procurara. Sempre recebeu elogios por essa simples atitude e nunca soube realmente porque nele depositavam tanta confiança. Talvez a solidão estivesse moldando um ser desvencilhado de si mesmo e voltado para os outros. Sabia que a falsa humildade, utilizada para arrancar elogios das pessoas, é pior que o orgulho declarado; pelo menos este age. Mas nunca deixou que o orgulho tomasse conta de si nessas ocasiões. Preferia agir sem argumentar em nada poder ajudar, sabia que a simples escuta do outro é uma das maiores ajudas que podemos dar a quem nos procura.

Quando alguém lhe perguntava sobre a fonte daquela felicidade que dele se irradiava, respondia: “finjo que sou feliz e acabo sendo”. Mas, o que não podia negar, é que a esperança nunca o deixou. Esperava ardentemente por algo novo, mas não sabia o quê. Tinha reminiscências de uma outra vida, totalmente diversa da que tinha verdadeiramente. Em sonhos apareciam-lhe imagens de atitudes extravagantes, porém dotadas de grandes emoções. Ao acordar, todas as lembranças se apagavam de sua mente. Esforçava-se todo o dia para lembrar o sonho da noite anterior, mas nada conseguia. Por fim, declarou todos os sonhos banais, forma que encontrou

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para não mais se ocupar em constantes esforços mentais na tentativa de lembrá-los.

Durante o dia trabalhava numa multinacional, durante a noite lecionava numa escola da periferia. Trabalhando desordenadamente começou a construir a sua vida num projeto que parecia envolver mais alguém, só não sabia quem. Comprou um lote e nele construiu uma pequena casa. Projetava todo o seu desejo de consumo numa tentativa de preencher-lhe o vazio interior no qual se encontrava. Comprou aos poucos os eletrodomésticos e móveis que iriam equipar sua nova casa, comprou um carro e uma moto. Para quem busca uma estabilidade financeira, aquela seria uma situação ideal para um homem que não tinha mulher e nem filhos.

Trabalhava incessantemente e, dessa maneira, procurava não cogitar sobre o sentido da vida ou sobre o destino para o qual tendem todas as coisas... Enganou a si quando pensou que poderia enganar ao tempo. Sua falta de sentido e a ausência de um horizonte no qual pudesse se mirar o deixavam cada vez mais inseguro. Tinha receio de encarar novos desafios. Mas o tempo instigava-o a agir e, para isso, contou com a colaboração de um amigo. Quem poderia vencê-los? Nenhum ser humano, por mais determinado que seja, pode se livrar das garras desses dois feiticeiros da vida: o Tempo e o Tédio.

Incógnita

Sonhar é descobrir que o pensamento tem o poder de transformar o imutável.

Em um dia de feriado, Vítor saiu em seu carro sem saber para onde. Queria simplesmente sair e embrenhou-se em caminhos jamais imaginados por ele. Após algumas horas, entrou em uma estrada deserta. Esta seguia longas distâncias sem se desviar para nenhum dos lados. De repente, uma estranha sensação tomou conta de seu corpo, seu pensamento voava para lugares que desconhecia, sua alma parecia estar acima de seu corpo a observá-lo e a estrada já não parecia existir. Esqueceu-se do tempo e até mesmo da razão do que fazia. Seu pé afundara no acelerador de modo que o carro voaria longas distâncias, caso fosse dotado de asas. Seus olhos bebiam o crepúsculo com um esplêndido deslumbramento até que se escureceram e em sua mente eram passados fleches, como um filme mal acabado ou um sonho estranho de quem cochila diante de uma televisão. Mas não podia compreender como isso aconteceu, aliás, nem mesmo procurava fazê-lo. Aquela visão era maravilhosa, nunca poderia deixar de contemplá-la. Seu corpo viajava pelo espaço como um espaço-nave. Rapidamente viajou pelo universo passando por astros e planetas, desviando de asteróides que vinham em sua direção, aproximou-se de Saturno e ultrapassou Plutão, avistando gigantescas estrelas cujo tamanho muito superava o Sol. Dentro de alguns instantes, estava sendo atraído para um buraco

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muito além da Via-láctea. Era um buraco negro que sugava tudo ao redor. Tentou desviar-se do mesmo, mas não pôde escapar. Sua vista escureceu de forma desoladora e tudo se apagou de sua mente.

Vítor acordou em um lugar estranho. Parecia continuar a sonhar, pois tentava mexer-se e não conseguia. Apesar de acordado, não conseguia abrir os olhos. Era como se estes estivessem colados. Forçava-os tentando abri-los e nada conseguia. Quando se acalmou. Acordou. Teria sonhado que tinha acordado ou ainda estava dormindo? Não podia compreender o que estava fazendo ali. Na verdade, não se lembrava de nada do que acontecera. Estava perdido, mas sabia o que fazer. Tomado por uma sensação de segurança sentou-se na relva. Próximo dali, uma cigarra cantava tão alto que parecia estourar-se. Uma forte neblina não deixava que Vítor visse um metro à sua frente. Levantou-se e passou as mãos pelo corpo na tentativa de enxugá-lo um pouco.

Seguiu a estrada logo em frente. Conhecia aquele lugar e, agora, já sabia aonde iria. Caminhou por uma hora continuamente e chegou a um barraco onde era esperado. Era um barraco pequeno, possuía somente um cômodo de seis metros quadrados. Era feito de pinhos tirados dos caixotes encontrados nos passeios da cidade, e de barbantes. Não resistia à menor chuva que houvesse, por isso, ele era sempre reconstruído num trabalho exaustivo de catar caixotes dos passeios próximos aos grandes mercados de frutas.

Mas, o que estaria fazendo ali? Quem eram aquelas pessoas? Por que o esperavam tão ansiosos naquele local de condições subumanas? Vítor não tinha

dúvidas, sabia exatamente a resposta para todas essas perguntas.

Vida desregrada

Não se pode se esquivar da realidade da sociedade simplesmente argumentando que todos têm a vida que

querem; quem, sendo livre, não optaria pela paz?

Vítor, olhando para os companheiros, percebeu a inquietação de seus amigos. Já passavam das dez horas da noite e todos o esperavam para mais uma noite de aventuras. Vítor era chamado de Mancara pelo grupo e era seu líder, apesar de não ser o mais velho. Os demais eram seis adolescentes que pareciam manifestar sua revolta contra o mundo a todo instante. Suas roupas maltrapilhas não lhes tiravam a coragem, antes a davam. Não tinham vergonha delas, era a marca registrada que os fazia serem temidos e, para eles, este temor era sinônimo de respeito. Quando Vítor chegou, fizeram o maior alarde e, Medero disse a ele:

- Onde você tava? Nóis só tava te esperando. Aonde a gente vamos dessa veis.

Mancara disse efusivamente:

- Vamo descê a alameda que termina no centro e largar brasa nas moda dos clube. Lá eu vou dizê o que a gente fazemo.

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E todos gritaram:

- Vamo nessa!

Desceram então pelo caminho combinado, completamente bêbados, gritando e derrubando latões que estivessem à frente. Todos, totalmente seguros do que iriam fazer, entraram no clube, acompanhando uns aos outros, depois que o primeiro deles deu um soco certeiro no recepcionista deixando-o desacordado. Todos se afastaram quando eles entraram, afinal de contas, ninguém teria coragem de interromper o trajeto da turma dos “Boca de inferno”.

Por muito tempo infundiam terror a todos e, os poucos que os enfrentaram, quando sobreviviam, deixavam a cidade para nunca mais voltar. Todos nasceram e cresceram nas ruas e as visitas na cadeia onde, vez por outra, um “tirava férias”, serviam-lhes de utilidade para aprender alguns truques necessários para a vida e para a morte; também foi lá que aprenderam a ler para ajudar aos traficantes na conexão de narcotráfico.

Dentro do clube dividiam-se em dois grupos: Batola, Cotego, e o mais novo, Biboco ficavam próximos à portaria e, Medero, Patoca e Tanoy iam para o fundo. Mancara, como chefe do grupo, divertia-se como os demais, atento a qualquer “urgência”. Quando entravam em algum clube, eram os “reis do pedaço”. Comiam e bebiam de quem lhes aprouvesse tomar. Agarravam à força qualquer garota que lhes interessasse e roubavam-lhe um beijo tácito de terror. Não se preocupavam com os Gambés (apelido dado aos policiais). Quando um deles provocava uma briga, todos se atiravam em cima do infeliz que se metera com eles. Quando viaturas de

polícia, bem equipadas, apareciam, escapavam por entre os dedos dos policiais. Todavia, não se preocupavam em fugir. Dessa vez, iriam a outro clube onde tudo iria começar tudo como antes. A noite era uma criança e o dia não existia para eles. O tédio era enfrentado com as drogas que conseguiam facilmente através das muambas que eles próprios contrabandeavam.

Veja o que vive na rua,

Fruto da sociedade;

Que na violência ele atua

Não é nenhuma novidade.

Tenha limpa a consciência:

“Outros são os culpados, não eu!”

Omita sua deficiência

Sendo religioso ou sendo ateu.

Não se trata de religião

Falar, pensar e agir,

Pois, na hora da confusão,

Não conseguirá fugir

E essa revolta contra o mundo

Terá que admitir.

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Os revoltados também amam

Ah! Se todos realmente admitissem o poder do amor, não existiria o preconceito que exclui e aumenta os

males da sociedade.

Mancara falava pouco. Um simples sinal que desse era o suficiente para que todos agissem, um olhar seu impunha o respeito do grupo. Todos o tinham como o exemplo da perfeição e da segurança, embora isso não correspondesse ao que acontecia em seu interior. Apesar de tanta ação e emoção, apesar de tantas garotas que seduzia e usava como um objeto, apesar de tanto reconhecimento e soberania, tinha no íntimo um enorme vazio. O êxtase temporário proporcionado pelas drogas, as noites de aventuras e, tudo que envolvia a vida nas ruas, não era o suficiente para afastar a solidão em que vivia. Mancara, apesar de tudo isso, era um ser humano e, como nenhum ser humano consegue fugir da inexorável força do amor, este para ele, não era algo démodé. Mancara amou, isso é prova de que amar não é privilégio de somente alguns, ser amado sim. Apesar de sua vida não parecer admitir um amor verdadeiro, Mancara amou incomensuravelmente e, para surpresa sua,, também foi amado.

O nome dela era Lísia e não tinha nada de especial se a compararmos com as demais garotas, mas, para

Mancara, algo lhe emanava do ser e lhe preenchia o íntimo com a essência embriagante do amor. Por ela, Mancara prometeu deixar aquela vida, constituindo uma família que seria o ícone de todos que seguissem o mesmo ideal. Mas como tudo na vida não chega à perfeição sem a persistência humana, aquele relacionamento tinha os seus dias contados.

Mancara não era aceito pelos familiares de Lísia e, de todas as maneiras, fizeram tudo que puderam para separá-los. A família de Lísia também era pobre, mas não aceitavam o relacionamento de Lísia e Mancara, pois sabiam de onde Mancara provinha e não acreditavam que ele fosse capaz de trocar aquela vida por outra. No princípio, tinham uma certa confiança em Mancara, mas ele, acostumado ao estilo de vida anterior, traiu essa confiança. E a confiança é como um vaso raro, porém frágil, uma vez destruída, nunca mais é recobrada.

Muito fez Mancara para sair daquela situação, propôs a Lísia que fugissem e construíssem suas vidas longe dali, mas Lísia, apesar do amor a Mancara, não podia deixar de amar os seus pais. Optou pela serenidade, mesmo correndo o risco de nunca mais vê-lo. O espírito de Mancara não foi forte o bastante para agüentar aquela pressão dos familiares de Lísia. Sempre fora determinado a conseguir o que quisesse, mas, quando o assunto é amor, não se pode dominar. O amor não é um animal que possa ser preso em uma jaula até sua domesticação, pelo contrário, é ele que domina a pessoa e a faz trilhar os caminhos da plena liberdade: eis o paradoxo. “Racionalista” como tentava ser, decidiu não se deixar mais dominar pelo amor e abandonou Lísia. Nunca tantas

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barreiras haviam se interposto em seu caminho como agora.

Meses depois, folheando um jornal do dia anterior, viu nele a foto do carro do pai de Lísia. Havia muito tempo que não se fabricavam carros daquele modelo e, naquela região, nunca se vira um carro daquela mesma cor. Mas o que estaria fazendo no jornal? Rapidamente procurou a página na qual se encontrava a seguinte matéria: “família morre em acidente de carro...” Forte como era, chorou amargamente. Sentiu-se pusilânime diante da vida. Como um poder dos céus poderia permitir tal acontecimento desastroso? Como resposta, sentiu-se confortado por uma força provinda do infinito e, concomitantemente, pôs-se a rezar a quem quisesse escutá-lo nos céus. E em sua memória se desenhava o rosto de Lísia, sublime e majestoso.

Inconsciência

Tudo na vida tem um porquê, mas nem todo porquê é cognoscível.

Pensando no destino que levara aquela que realmente amou com as forças de sua alma, Mancara entrou no ônibus e, do contrário das outras vezes, passou pela roleta pagando a passagem. Neste dia, resolveu colocar as roupas que conseguira meses atrás para se encontrar com Lísia. Não eram caras, mas o faziam

respirar aliviado nos locais onde passasse, sem que ninguém escondesse a bolsa ou desviasse de seu caminho. Sentou-se atrás de um painel no qual notou uma das tiras metálicas solta. Seus olhos absorviam o conteúdo do jornal nele afixado: “Governo repreende, com violência policial, passeata de grevistas”; “Dez pessoas são vítimas de um tiroteio na favela”; “Corrupção e narcotráfico andam juntos”; “Movimento de sem terras acaba em morte”; “Empresa privatizada demite funcionários em massa”; “Elefante que nasceu no jardim zoológico passa bem”. Riu alto e seu riso era uma mistura de ironia e ira. O ser humano regrediu a tal ponto de não mais ser valorizado em si e suas atitudes não podem mais ser chamadas animalescas, já que os animais parecem ser os únicos responsáveis pelo equilíbrio do planeta.

Um executivo de baixa estatura e queixo erguido, ricamente trajado, entrou no ônibus e sentou-se ao lado de Mancara. “O que estaria fazendo naquele ônibus, um senhor que talvez possuísse inúmeros carros?” Mancara se perguntava. Não havia mais lugares e, por isso, antes de sentar-se, titubeou em seguir para o fundo, mas, para sua triste sorte, não o fez. Sentou-se e, imediatamente, abriu o computador portátil que trazia. Uma estranha sensação tomou conta de Mancara, alimentou um profundo ódio àquele senhor. Nunca o havia visto, mas seu ego dizia que aquele era o seu inimigo mortal. Como se desvencilhar de tais pensamentos? Era preciso superá-los. Seria possível não dar crédito a eles? Mas, o fator psicológico é o ápice do real. Vítor tanto cogitou sobre seu ódio àquele desconhecido que não pôde mais se dominar, arrancou a tira metálica que havia observado minutos antes e encravou-a no pescoço daquele senhor.

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Aproveitando-se da gritaria das pessoas que não conseguiam entender o que havia acontecido àquele executivo cujo sangue escorria pelo ônibus, Mancara passou por entre todos e saiu pela porta traseira do ônibus, aberta para o embarque de passageiros.

Correu durante horas, tentando descobrir o porquê daquilo que havia feito. Sempre viveu nas ruas e muitas pessoas foram mortas por ele, mas nunca sem motivo aparente. O crime é semelhante a um parafuso colocado sempre no mesmo lugar: no princípio o parafuso deve ser forçado até que seja introduzido, com o passar do tempo ele é facilmente colocado e tirado; assim acontece no crime, o pesar na consciência sempre acompanha os principiantes. No mundo das ruas, muitas vezes a lei é esta: matar ou morrer. Quando porventura, alguém era morto nas ruas por ele, imaginava Mancara estar fazendo três favores: um à vítima, que já não sofreria mais com a constante incerteza do dia-a-dia, outro a si, já que em todas as vezes sua vida era ameaçada e, por fim, à sociedade, que se veria livre de mais um daqueles que lhe causavam pânico e terror. Agora, porém, a sangue frio, ferira ou, até mesmo matara um senhor que nunca tinha visto, mas do qual, com certeza, a sociedade não iria deixar de pedir contas. Estranhou-se, não estava sob efeito de drogas e nem mesmo de álcool. Corria como um louco que se imagina correndo de uma locomotiva. O céu coriscava, uma tempestade cairia em algumas horas.

Mancara, totalmente molhado pelo suor, com a garganta seca, tonto de cansaço e com dores por todo o corpo, parou e observou estar em cima de um viaduto. Pensou em pular dali, todavia não alimentou tal pensamento, aquele viaduto era baixo demais. Não temia

a morte, mas temia a invalidez. Descendo, atravessou a avenida sem se preocupar com os inúmeros carros que iam e vinham buzinando, dos quais motoristas gritavam:

- Quer morrer idiota?

Entrou em um prédio de trinta andares e chamou o elevador. No segundo andar entrou uma bela moça cuja beleza era tão notável quanto a sua vaidade. Por ironia do destino, o elevador enguiçou com os dois no décimo quinto andar. Uma corrente de pensamentos macabros tomou conta de Mancara. Teve ímpetos de estuprar aquela moça e, logo depois, matá-la sufocando-a. Traçou todo o plano de forma que ninguém descobrisse o que realmente acontecera, a não ser, tarde demais: diria a quem estivesse ao lado de fora que ela não havia agüentado a falta de ar no elevador e desfalecido. Tudo planejado, só faltava agir. Mas aquela moça, sentindo-se incomodada por estarem presos no elevador, disse delicadamente:

- Vamos pedir a Deus que mande alguém que venha logo para nos ajudar!

Aquelas palavras foram como um oceano derramado sobre um palito de fósforo aceso. Fizeram com que Mancara, paulatinamente, voltasse a refletir sobre a razão de suas atitudes. Não era a volta à lucidez, pois não sabia o que isso significava, era uma inquietação semelhante a um remorso de ter feito algo que não correspondia ao seu instinto. Era um desassossego pela possibilidade da existência de um poder superior que estaria a registrar todas as falhas humanas e atitudes desumanas. “Haveria um Deus no céu que assistisse a tudo aquilo sem nada fazer para impedir o livre-arbítrio

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do homem?”. Falar em Deus foi a salvação daquela moça que com ele estava presa no elevador, infelizmente, ela nunca saberia disso.

Quando o elevador voltou a funcionar, Mancara sentiu-se aliviado por não estar mais próximo daquela que parecia ser a testemunha ou juíza de seus crimes. Nunca, em sua vida, uma palavra fizera tanto efeito na mudança de alguma atitude sua. Pensou: “se a palavra ‘Deus’ era tão poderosa, o que seria do homem diante deste ser inefável?”.

Tragédia ou alívio?

Não se deve julgar as pessoas sem reconhecer as circunstâncias que realmente desencadearam uma ação,

conclusão: nunca se deve julgar.

Quinze minutos depois Mancara se encontrava no plano superior do prédio. Caminhou até a beirada e sentou-se em cima da mureta de proteção. Olhando lá de cima, viu todas as pessoas e os carros que passavam na avenida, eram semelhantes a brinquedos de crianças de condições financeiras estáveis. Inusitadamente, fluíram em sua mente pensamentos de revolta contra tudo e contra todos: “Porque havia tanta miséria em lugar de tanta riqueza? Porque algumas pessoas já nasciam sabendo que o sofrimento era a única coisa a esperar de sua vida até a morte? O que fizeram aqueles sofredores das ruas para merecerem tal destino? Quem era realmente

o culpado por aquela situação? Que sentido tinha a vida para aqueles que a viviam realmente ou para aqueles que apenas sobreviviam?”. Mancara não encontrava sentido algum para nada. Tudo parecia ilusão.

Olhando para a avenida lá embaixo, reparou que nela passava uma carroça. Engraçado e estranho era, numa cidade grande como aquela, costumes tão antiquadros ainda estarem presentes; mas não pensava nisso. Comparou a sua realidade à da carroça. Pensou: “sou como aquela carroça que carrega pedras e é puxada por um cavalo ao longo da avenida. Da mesma forma que a carroça segue em diante apesar da sua figura contrastante com a cidade, eu sigo. Da mesma maneira que ela é puxada por um cavalo, eu sou guiado pelo acaso. Enquanto segue, leva consigo muitas pedras, enquanto a vida é vivida comporta em si todo o sofrimento originado pelas atitudes humanas. Se a carroça fosse destruída, todo o fardo seria deixado no meio da caminho. Mas outra carroça deveria levá-lo. Seria necessário realmente a existência do sofrimento?”. Se Mancara pulasse dali, sabia que não haveria volta. Também não haveria mais sofrimentos, pois a carroça de sua vida não mais existiria. “A morte seria um alívio?” – pensava – “quem é o responsável por minha existência? Não sou dono de minha vida?”.

Assim permaneceu por mais de uma hora até que apareceram vários policiais que gritavam afoitos, apontando armas em sua direção:

- Pensou que nos escaparia dessa vez, não é mesmo? Sabemos que foi você o responsável pelo assassinato do ônibus.

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Mancara nada disse em sua defesa. Não sabia como descobriram-no ali, mas resolvera uma das dúvidas de horas atrás, o senhor que ferira no ônibus não sobreviveu à sua investida. Não tinha medo da prisão, já havia passado por ela várias vezes e, vendo-se encurralado de todos os lados, estava pronto a se entregar quando, contudo, por um desequilíbrio na mureta em que estava, caiu do alto do prédio.

Como se houvesse algo a ser feito para impedir aquela tragédia. Todos os policiais desceram fugazmente. Quando chegaram à avenida onde Mancara caíra, cobriram o que restou de seu corpo com vários jornais e isolaram a área. Muitas pessoas, que haviam assistido a tudo aquilo, gritavam desesperadas e foram levadas aos pronto-socorros mais próximos em estado de choque. Repórteres oportunistas fotografavam tudo o que podiam e entrevistavam pessoas que, apesar de nada terem visto do que acontecera, contavam a sua versão daquela catástrofe.

Quase nada restara daquele que era o símbolo da coragem e dos destemidos, conhecido por toda a polícia e devotado pelos meninos de rua. Somente restavam as inúmeras lembranças e a pergunta: quem é o responsável pelo destino das pessoas, o indivíduo ou a sociedade? Eram seis horas da tarde, uma nuvem escura formou-se naquele lugar. Todos voltavam para casa com as suas consciências limpas pelos subterfúgios do preconceito.

Astúcias

O ser humano merece consideração, não por seus grandes feitos, não por sua ausência de infrações às

convenções, somente, por ser humano.

Quando estavam em uma loja de eletrodomésticos, Patoca e Tanoy viram grande quantidade de pessoas que se aglomeravam em frente a uma televisão na qual passavam notícias da última hora. A televisão, em si, nunca trouxera a eles nenhuma notícia prazerosa. Sempre que assistiam a algum programa de humor pensavam: “como pode o ser humano brincar com a realidade de muitos que sofrem?”, quando assistiam a algum filme ou novela, sonhavam com a realidade sabendo que nunca poderiam realizar os seus sonhos. Como já era de se esperar, a notícia pela qual todos ansiavam era a morte daquele que lhes ensinou a enfrentar o mundo que os rejeitou como uma escória produzida por ele mesmo. Imediatamente, foram avisar aos outros do acontecido. Todos eles não puderam acreditar no que havia acontecido e sua coragem quase inexorável foi abalada por uma dor: o sentimento de tornarem-se órfãos diante dos futuros desafios.

Rapidamente vinham na lembrança todas as peripécias do líder daquele grupo. Não saíram, nem mesmo se deitaram, prestaram homenagem àquele querido mestre recordando seus feitos de sagacidade e falando sobre eles como quem fala da pessoa mais

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importante que até então viveu, ou melhor, esteve no mundo...

Um dia, houve uma falha na conexão que repassaria a droga contrabandeada a outros traficantes. Mancara tomou todo o fardo para si como se fosse o único responsável por isso. Os traficantes, revoltados com perda de milhares de dólares, pois a droga não chegou ao seu destino conforme o combinado, decidiram matar Mancara. Este e seus companheiros sabiam que nada lucrariam naquele combinado e decidiram repassar a muamba a outros traficantes, obtendo um lucro incomparável. Então planejou uma estratégia: deixou a maior parte do dinheiro do contrabando com seus companheiros e embarcou em ônibus cujo destino era Bom Depacho em Minas Gerais. Fez tudo isso aos olhos dos comparsas do grande mafioso que estava à sua procura. Sabia que ninguém o mataria enquanto não soubesse o paradeiro do dinheiro que obteve com a venda que realizara. Alegrou-se quando viu um carro acompanhando o ônibus no qual se encontrava. Era o carro de um chefe de polícia do Rio que mantinha relações de contrabando com vários mafiosos, inclusive com o que estava na espreita de Mancara. Pensou consigo: “Logo, logo eles me procurarão em Minas Gerais!”. Quando passou pelas primeiras cidades de Minas Gerais, reparou que o carro não mais o seguia, mas não arriscou. Esperou chegar em Bom Despacho, onde, imediatamente, comprou a passagem de volta. Assim – pensava ele – os traficantes o perseguiriam inutilmente imaginando que ele nunca voltaria ao mesmo lugar de onde fugiu. Para quem se utiliza do óbvio como solução de camuflagem, aquele plano parecia o mais eficaz,

porém quem poderia imaginar o que se passava na mente de quem o perseguia? Voltar ao lugar onde tudo começou não era sinal de coragem, nem mesmo de demência, era a certeza de que tudo saíra conforme o planejado. Evidentemente muitas vezes estima-se em excesso a certeza que pode ser ilusória e deixa-se de lado a dúvida que é sempre certa...

Ao voltar, Mancara não imaginou encontrar lá aqueles que o perseguiam, mas lá estavam eles, como um leão que sente a presença de sua presa. Antes que o vissem, quebrou os vidros de um carro e, pulando dentro deste, tratou logo de fazer uma ligação elétrica com a qual fizesse o carro funcionar para nele fugir. Mal ligou o carro, os traficantes o viram e começaram a atirar em sua direção. Perseguiram-no até uma estrada deserta que parecia não ter fim. Mancara nunca esteve por aqueles lugares, mas tinha a impressão que esta estrada tinha-lhe algo familiar, algo que realmente fazia parte de sua vida. Percebendo, Mancara, que o combustível estava no fim, tratou logo de pular do carro e correr embrenhando mato adentro. Após quinze minutos, corria sem rumo no meio da mata, mas sabia que era perseguido e poderia a qualquer momento ser encontrado. Ia fugaz como um coelho, mas percebeu que passara inúmeras vezes no mesmo lugar, então se arriscou e seguiu numa só direção. Algum tempo depois, estava diante de um grande lago. Suas forças estavam escassas, mas tinha que nadar até o outro lado do lago ou logo o alcançariam. Enquanto recuperava o fôlego, sentiu uma forte dor no braço esquerdo e concomitantemente o sangue escorreu e uma grande sede tomou conta de si. Os traficantes já o haviam alcançado, mas não os via. Não teve escolha, pulou no

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lago e nadou até o meio onde as balas não o pudessem alcançar facilmente. Parou de nadar e deixou seu corpo livre sobre as águas. Era a última tentativa de ludibriar os traficantes. Estes, ao chegarem até a beira do lago, nem mesmo entraram, pois sabiam que o tinham ferido e vendo o corpo flutuando sobre as águas, deduziram que Mancara não agüentara atravessar o lago e acabou por se afogar. Ao perceber a ausência de seus inimigos, Mancara saiu do lago, rasgou a camiseta e estancou a hemorragia com um torniquete até que pudesse cuidar do ferimento e voltar ao convívio dos seus.

Durante um mês, Mancara se escondeu em Petrópolis para dar certeza de sua morte aos traficantes. Quando soube que seus inimigos partiram para a Colômbia, não hesitou mais em voltar ao convívio dos seus. Quando Biboco o avistou, gritou aos outros e correu em sua direção dando-lhe um forte abraço. A enorme algazarra era acompanhada de inúmeras interrogações como: onde estivera? Como fugira? O que fizera para escapar das mãos dos mafiosos? Respondidas todas as perguntas não havia mais dúvida de que aquele era o exemplo de sagacidade que os fazia sentir cada vez mais corajosos na pugna da vida.

Estes acontecimentos eram memórias sempre presentes daquele que, para eles, era líder, companheiro, pai e irmão. Não puderam esconder as lágrimas. Choravam como crianças que se tornaram órfãs. Juraram nunca esquecer de pedir ao deus dos sofredores por aquele que consideravam o santo dos que crescem nas ruas e daqueles que lutam contra o mundo.

A alguns quilômetros dali, uma borrasca espalhava o sangue de Mancara pelo asfalto interditado. O espírito das pessoas que passavam se enleava e uma tênue satisfação dava aos policiais a sensação do dever cumprido.

Camuflagem social

Cada um de nós tem suas próprias razões, mas há no mundo alguma razão que nos faça desdenhar a

verdade?

Aquela noite foi longa para aquele grupo. Nunca tiveram planos para a vida, viviam cada dia em si mesmo sem se preocupar com o futuro. Mas, agora, sentiam-se inseguros. Esta insegurança, porém, não era manifesta por palavras e sim pelo silêncio que, vez por outra, era quebrado por uma recordação de uma grande atitude ardil de Mancara.

No outro dia alguém deixou no barraco onde se escondiam um jornal que continha em primeira página a foto do corpo de Mancara coberto por um lençol e a seguinte notícia:

Marginal suicida mata executivo

Foi morto ontem, às três horas da tarde, o gerente do banco

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American-brazil: Valentino Yega. Testemunhas afirmam que um marginal, conhecido pelas redondezas por Mancara, tentou assaltar o executivo que, corajosamente, reagiu à investida. O marginal, não se dando por satisfeito, tirou um punhal que carregava consigo e golpeou o executivo várias vezes.

Acredita-se que o crime se deu por vingança e que o marginal foi pago para eliminar aquele que se candidatava a sócio do banco em que trabalhava, com inúmeras especulações financeiras na compra de ações do mesmo.

Destaca-se, neste momento, o magnífico trabalho da polícia que imediatamente seguiu o criminoso na fuga. Um dos policiais, que estava no ônibus em trajes civis, reconheceu o marginal, mesmo estando este bem

vestido para disfarçá-lo em seu intuito.

Seguindo-o, silenciosamente, várias viaturas estiveram à sua espreita para agir em um lugar seguro onde não houvesse um tiroteio no qual corressem perigo as inúmeras pessoas que circulam pelo centro da cidade.

Testemunhas do local da abordagem afirmam terem sofrido ameaças caso dissessem onde o marginal se encontrava e ressaltam que este entrou no prédio portando uma 765 automática atirando para todos os lados. Dizem também que o criminoso, quando se viu encurralado, atirou-se do alto do prédio Júlio Palace. Dizem também duvidar da intenção suicida do mesmo, pois este estava drogado e não tinha noção da altura na qual se encontrava.

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Tudo isso mostrou que a marginalidade está sendo combatida com todo o empenho policial e com a coragem da população que pode colaborar no crescimento de nossa cidade, tranqüila e confiante na segurança que lhe é proporcionada pela diligência de quem sabe que ser cidadão é antes de tudo ser livre.

A fraqueza recôndita de outrora foi manifesta. Todos gritavam como loucos, discutindo e brigando entre si. Não estavam drogados e nem alcoolizados, mas sentiam tontos pela obscuridade do futuro que, mais uma vez, se lhes apresentava e do presente que sofrera um golpe do destino. Horas depois, Tanoy se levantou e disse:

- Não percebem? Sempre fomo inimigo do mundo e agora deixamo abater! Será que tamos dando razão pr’ estes que falam de Mancara como o terror do homem livre? Algum da gente sabe o que é liberdade?

Ditas estas palavras, todos se sentiram mais seguros e uma grande revolta dava-lhes forças para continuar. Era a prova de que o grupo sentia-se maduro e a fraternidade entre eles era a força maior que nenhuma máscara social poderia esconder.

Dilema de família

O acaso, mesmo que não seja o fator determinante do destino humano, não pode jamais ser subestimado.

Lourdes, mãe de Vítor, se sentia aliviada. Quantos meses se passaram no sofrimento, na angústia que somente quem é mãe é capaz de definir, mas não com palavras. Olhava o filho na cama dormindo. Quanto tempo não acordava? Quantos meses sem que ele lhe dirigisse uma única palavra? O médico que cuidou de Vítor durante todo esse tempo disse com ar confortador:

- Agora vocês já podem descansar, ele está fora de perigo.

- Doutor José, gostaria de lhe mostrar uma coisa.

- Tenho outros pacientes à minha espera, não posso demorar.

- Não precisa ficar – dizia lhe entregando um caderno repleto de poesias e outros escritos – quero que leia, é de Vítor, talvez o senhor saiba como me ajudar.

Ele tomou o caderno e guardou-o em sua bolsa saindo às pressas. À noite, antes de dormir, lembrou-se de Vítor e da provável interrogação de sua mãe a respeito dos escritos deste. Acendeu uma luminária, retirou o caderno da bolsa e o folheou até uma página datada como

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um diário. Seus olhos lacrimejavam, estava cansado, mas precisava corresponder à amizade e confiança nele depositadas.

O tempo e a liberdade

Tempo é o nome que os homens dão às grades de sua prisão fabricadas pelas suas próprias mãos.

Mas afinal, o que é ser livre? O que faz do tempo insubstituível um aglomerado de passados irrealizáveis e futuros incertos: ou de passados saudosistas e futuros inexistentes? Como viver o momento presente se este, como o passado que já se foi e o futuro que ainda não veio, também não existe? O que causa no homem o sentimento de felicidade ou de vazio?

A psicologia explicou de vários modos as causas das várias neuroses a que o ser humano está sujeito; classificou as várias etapas da vida do ser humano num desígnio insubstituível. A Igreja remeteu o sentido da existência a um futuro vir a ser metafísico no qual se alcançará a plenitude, não desprezando uma certa busca de realização terrestre, porém utópica. A ciência denominou o ser como ciclos intermináveis de substâncias em contínua transformação. Nada disso, porém, satisfez o homem plenamente.

Acreditar que seja possível alcançar a plenitude pode não ser tão fácil quanto parece. Se buscarmos explanação da psicologia, veremos que a felicidade é algo impossível, a realização algo apenas desejado e a liberdade algo totalmente inexeqüível. Se a vida é algo já preestabelecido, como se pode dizer que o sujeito pode ser livre sendo ele prisioneiro da prisão mais imperecível de todas: a sua própria consciência?

Na verdade, até mesmo aquelas pessoas que dizem ter encontrado o caminho para a verdadeira liberdade, ao receberem um corte epistemológico em seu dizer, apelam para a mais vil racionalização. Se este é o único caminho que acham para dissipar toda dúvida, como podemos dizer que essa pessoa é livre?

A Igreja e o esoterismo nos remetem a vivermos o momento presente, construindo um mundo onde todos sejam felizes. Infelizmente não existe um homem no mundo que esteja satisfeito com o que possui. Em quem então se mirar? Alguém já disse que “a felicidade não existe, o que existem são apenas os momentos felizes”. Além disso, o que é o momento e, principalmente, o momento presente? Agora? Mas que agora é este? Qual é a sua duração? Quando podemos afirmar que o futuro se tornou presente, ou ainda, que o futuro existiu antes que existisse o presente? Além do mais, o passado é mais real que o futuro, pois, quando se diz presente, ainda se espera pelo futuro, já que, o futuro, deixando de ser futuro também não é presente. Daí se conclui que nem mesmo os momentos felizes podem ser pensados como tais, já que só nos damos conta de sua existência quando eles se tornaram passado e o passado, evidentemente, não existe mais. A utopia acompanha a todos os que acreditam na

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existência de um futuro, é ela a sua meta final e seu impulso inicial.

A ciência, analisando a matéria, percebeu o contínuo “vir a ser” de sua existência, colocando o homem como um simples componente material de um mundo onde nada se perde e nem se cria. Algo move tudo o que existe, algo imperecível, algo infinito em potência e princípio de todas as coisas. Porém, a pergunta derradeira ainda se prossegue: qual é o sentido da existência?

O homem é um ser incompleto. Conhece o mundo, porém não conhece a si mesmo. Engana o próximo, mas também engana a si mesmo. Destrói o mundo e, conseqüentemente, destrói a si mesmo. Afirma que a liberdade está na aceitação de sua condição, porém não aceita a mais clara referência sobre si: é limitado.

Infelizmente o ser humano tem necessidade de aceitação até mesmo de outras pessoas, por mais vulgares que estas lhe pareçam. Quando quer provar que não precisa nada provar, já fica preso a esta necessidade. Quando reconhece que não sabe nada para atingir o conhecimento (como Sócrates) já possui uma dúvida ou certeza, portanto um raciocínio: “eu sei que nada sei”. Quando age de maneira cética duvidando de todas as coisas, possui ao menos uma certeza: “de nada tem certeza”.

É comum associar a idéia da liberdade à visão de um campo aberto no qual a natureza demonstra a harmonia extinta e procurada, imagina-se uma gaivota em seu vôo alçado, ou ainda um peixe na imensidão do mar. No entanto, por mais que se queira, ninguém consegue emancipar-se de todos. O homem é um ser social. Como

o falado “ninguém é uma ilha”. Se procura se isolar sempre achará alguém que com ele irá se preocupar e se procura sociabilizar sempre achará alguém que o vai excluir e isolar. É bem verdade que a gaivota tem um vôo livre, porém este vôo só será exercido enquanto suas forças durarem. É bem verdade que o peixe tem um imenso oceano para nadar livremente (pelo menos até as margens terrestres), porém só sairá de seu habitat se as circunstâncias o obrigarem. Este é o limite anteposto a nós como um invólucro impermeável de uma liberdade inacessível. Por isso nunca se chegará a uma definição da liberdade enquanto na mente configurar-se a idéia do infinito.

O tempo é o maior limite. Quando nele se pensa, nele se abstrai, quando dele se tenta esquecer, ele surge com as maiores surpresas. Na verdade, de tanto esperar pelo futuro, de tanto recordar o passado, de tanto procurar qual é o momento presente, deixa-se de fazer o que a real liberdade, se existisse e fosse encontrada, permitiria: viver.

De volta do incógnito

Talvez se possa conhecer o que o que vai escondido nas atitudes humanas, talvez não.

Vítor acordou, mas não conseguiu abrir os olhos, pois a claridade da tarde ofuscava a sua visão; quando o fez, olhou em sua volta, mas não sabia onde estava.

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Fechou os olhos novamente e se viu no meio de alguns jovens de rua que dele falavam com orgulho e saudade. Não compreendia o que estava acontecendo, mas esforçou-se por descobrir onde estava. Tudo era alvo: suas roupas, a cortina, o armário, o piso, o teto... O que estava fazendo ali? Não se lembrava nem mesmo de seu nome verdadeiro. Não se lembrava de nada. Estaria num hospício? Morrera e estaria em um lugar de outra dimensão? Sentia-se cansado e um sono inelutável fez com que dormisse novamente.

Quando acordou, observou as constelações pela janela do quarto no qual se encontrava. Neste momento, verificou que já conhecia aquele local. Levantou-se com dificuldade e, escorando na parede, chegou à janela. Olhou a rua movimentada, os carros e os arranha-céus a fazer um grande contraste com aquela casa de estilo barroco, sentiu algumas lembranças fluírem gradativamente em seu consciente: aquela era a casa de seus pais e aquele era o seu quarto, com um novo aspecto, mas era ele. Lembrava-se disso, mas não conseguia configurar a imagem de ninguém. De pé, diante da janela, virou-se para trás e viu a maçaneta se mexer e uma mulher, trazendo algumas roupas disse:

- Filho, vá descansar. O médico recomendou-lhe repouso absoluto. Somente depois que você se recuperar, poderá, se quiser, voltar à vida de antes. – e puxando-o pelo braço fez com que se deitasse.

Vítor não ousara perguntar nada. Deitou-se e, quando ela saiu, concluiu detalhes óbvios, todavia que lhe pareciam novidades: “meu nome é Vítor e aquela é minha mãe, mas a que ‘vida de antes’ ela se referia?” O que

aconteceu para que ele estivesse ali? De que estava se recuperando? Sua mãe falava como se continuasse um diálogo iniciado um pouco antes. Vítor não entendia nada, mas não se atrevia a sair do quarto, pensou que da mesma maneira que descobrira o seu nome e quem era a sua mãe, descobriria as demais coisas. Se ela o tratava com tanta amabilidade, chamando-o pelo nome, com certeza não descobrira a sua amnésia.

No outro dia, seus irmãos foram buscá-lo para o café. Vítor saiu do quarto e, descendo as escadas, ia recordando de tudo. Os móveis, os costumes e a maneira de lhe falarem fizeram com que Vítor se reintegrasse de parte do que lhe fora tirado por aquele “profundo sono”.

Vítor falava pouco, tinha medo de perguntar o que lhe acontecera. Aproveitou-se da indiferença de todos e, através da observação das palavras que lhe eram dirigidas, paulatinamente ia recobrando a memória. Estando à mesa do café, iniciaram um assunto:

- Vítor foi sortudo demais. Nenhuma cicatriz lhe ficou nas partes descobertas.

- Ainda bem que o acharam. Naquela estrada, durante meses, poucos carros passam por ela.

- Ser conhecido, também é bom – e virando-se para Vítor continuou – aquele senhor que lhe socorreu é irmão de nosso vizinho.

- Sorte maior foi ter reconhecido a Vítor, pois do carro nada restou. De lá foi levado diretamente ao ferro velho.

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Vítor olhava para eles dissimulando entender toda a história. Mastigando um pedaço de pão, concordava com eles balançando a cabeça afirmativamente. Em menos de um dia já podia se lembrar de todos e descobrira, mesmo sem interrogar a ninguém, o que acontecera a ele para que lhe dessem tantos cuidados.

Durante o dia foi visitado por inúmeros parentes, vizinhos e amigos que diziam sempre o mesmo de formas diferentes: “rezei por você todos dias, sabia que você sairia dessa. Você é forte e seu anjo da guarda também é!”. Vítor limitava-se a escutar, mal respondendo as perguntas que lhe eram feitas.

Quando anoiteceu, percebeu como fora longo aquele dia. Não conseguia dormir, mas suas incertezas estavam, paulatinamente, sendo resolvidas. As recordações fluíram em sua mente como uma bóia, antes presa em uma pedra ao fundo do mar, que se solta. Lembrou-se de sua vida de vazio e solidão. E foi traçando todos os acontecimentos que precederam àquele acidente. E, em sua mente, formou-se a imagem de seus bens, de sua moto e de sua casa. A partir daí, pôde analisar atitudes de outrora. De quando direcionou suas metas simplesmente à satisfação de seu desejo de consumo. Quando o relógio de parede, relíquia de Dom Pedro II, tocou, adormeceu profundamente. Já ultrapassava a meia-noite.

Raízes do problema

O passado é o presente transformado em memória: se ruim, crescimento, se bom, saudade.

Ao acordar na manhã seguinte, Vítor percebeu que havia uma pessoa estranha em seu quarto. Aquele era o médico que dele cuidou durante o tempo em que esteve inconsciente. Pedira à família de Vítor que deixasse que ambos conversassem a sós. Sentado em uma cadeira, ao lado de sua cama, nada falava, parecia esperar a iniciativa de Vítor. Trazia à mão um livro que se intitulava: “os remédios genéricos”; foi o que fez com que Vítor deduzisse o que o trazia ali. Quando resolveu sentar-se na cama o médico perguntou-lhe:

- E aí Vítor, já está começando a se recordar das coisas?

Vítor estranhou, pois era a primeira vez que alguém lhe perguntava a respeito de seu estado mental após o acidente. Até então, todos agiam de maneira indiferente sem notar-lhe a amnésia. Então, tomando coragem disse:

- Começo a me recordar de alguns fatos. No princípio não me lembrava nem mesmo de minha mãe, mas a casualidade fez com que eu deduzisse muitas coisas.

- Isso tudo é normal, pois a região atingida por uma das ferragens em seu cérebro é muito delicada e,

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dependendo da gravidade, pode até causar amnésia crônica. O seu caso foi diferente. Quando aqui chegou, ainda sob a ação de alguns medicamentos, chamou a todos pelo nome, mesmo que não se lembre disso. Foi o que fez com que eu acreditasse em sua rápida recuperação mnemônica. Não disse nada à sua família, pois achei que, sem precisar de sofrer por uma possível deficiência causada pelo acidente, eles lhe ajudariam a se lembrar de tudo. Não valorizei em excesso esta possibilidade que era incerta. Pelo que vejo, fiz bem, pois, em menos de dois dias, você já consegue se lembrar de tudo.

- Não exagere doutor! Ainda há muito que não sei ou não consigo lembrar-me. O que eu fazia em um carro numa estrada tão deserta? Que profissão eu exercia antes do acidente? Há quanto tempo estou me recuperando?

O médico não estava surpreso diante daquelas inúmeras perguntas. Percebeu que tudo o que previra estava acontecendo. Tal atitude transferiu a Vítor uma grande tranqüilidade. Serenamente e com toda a calma disse-lhe o médico:

- Vítor, se você não conseguisse se lembrar de nada, eu não poderia dizer-lhe nada também, pois estaria assim cerceando o seu esforço mental, mas vejo que já voltou ao seu estado normal. Vou dizer-lhe parte do que sei sobre o que lhe aconteceu: você se encontrava muito solitário em um barracão que você próprio construiu com seu trabalho frenético. Também agia febrilmente adquirindo bens de toda espécie. Não sei, mas acho que estava compensando alguma mágoa reprimida. Mas vamos aos fatos: Já naquela época, seu pai, grande amigo

meu, estava preocupado com o seu isolamento. Por quê você o fazia, não posso dizer-lhe, mas, talvez, você saiba. O que não se pode refutar é que você precisava de ajuda, mas ninguém sabia como ajudá-lo. Você se trancou em si mesmo. E, dessa forma, desapareceu por dois dias. Todos lhe procuravam por toda parte até que um amigo de sua família trouxe-lhe a um hospital em que trabalho e logo o reconheci apesar da situação lastimável. Dizia que lhe havia encontrado a uma grande distância daqui. Você deu sorte de alguém lhe, socorrer a tempo, o acidente havia acontecido algumas horas antes. Mais uma hora sem cuidados médicos e o acidente seria fatal. Quando você chegou, imediatamente, avisei aos seus familiares que passaram a dar-lhe assistência. Para pagar o seu tratamento, venderam o seu barracão e a sua moto. Apostaram tudo em sua recuperação. Você ficou em estado de coma durante seis meses e cinco dias. Havia muitos cortes em seu corpo, como você pode ver pelas cicatrizes. A minha principal preocupação era um corte em sua cabeça que poderia ser fatal. Para cuidar de você foram chamados alguns especialistas. O afundamento do crânio atingiu uma região muito delicada do cérebro. Felizmente, o acidente não deixou nenhuma seqüela...

O médico falava pausadamente. Esperava que Vítor fizesse alguma pergunta e logo prosseguia. Não parecia ter pressa, falava como quem muito sabe, mas deseja confirmá-lo. Vítor ficava admirado por uma pessoa saber tanto de sua vida, mais do que ele mesmo sabia. Percebeu que, por mais que se isolasse, todos ainda se preocupavam com ele. É verossímil que fazia tudo inconscientemente. Sua sede de consumo, seu trabalho febril e seu isolamento não puderam preencher o vazio

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interior que possuía antes daquele acidente. Virando-se para o médico disse:

- O senhor é também psicólogo?

- Não Vítor. Na medicina, optei pelo corpo, não pela alma. Mas sei o que o corpo não é uma máquina, há algo superior a ele que o faz funcionar em ordem. Todos temos um pouco de psicólogos, pois é mais fácil reconhecer o que vai escondido dentro das atitudes das pessoas, do que conhecer a nós mesmos – e, levantando-se, disse – Até logo! Tenho que voltar ao trabalho.

- Mas doutor, nem mesmo perguntei o seu nome!

- Eu me chamo Carlos José. Mas prefiro que você não me chame nem de doutor, nem de Carlos. Pode me chamar de José. E conte sempre com a minha amizade. – Dizendo isso, saiu apressado.

Vítor começou a pensar em tudo o que tinha ouvido e se lembrou de todos os acontecimentos que culminaram no acidente. Percebeu naquele novo amigo um carisma para a profissão que exercia. Uma segurança pairava no ar a cada palavra que dele escutava. Tomou um lápis e um papel, e escreveu: “ideal”. Sentado na cama olhou para esta palavra e sua vida estava diante de si como uma fada a esperar o pedido a ser feito.

Passando pela sala, José entregou o caderno de Vítor à sua mãe e tranqüilizou-a quanto ao conteúdo deste dizendo ser ele o anseio de um jovem que leva a vida à sério demais. Ao sair da casa, passou a andar vagarosamente esquecendo-se dos compromissos seguintes, e pensava: “há pessoas que têm coragem de afirmar que temos que enterrar o passado. Não o podemos

fazer, este está intrínseco à nossa existência. Dele depende todo o presente que, por um espaço de tempo incógnito, também se torna passado. A memória do passado é o suporte da vivência presente”.

Reminiscências

Relacionar o sonho e a realidade é como tentar separar o carro e suas rodas; as rodas, com diferentes tipos de forças, fazem o carro avançar, assim como o

sonho, com diferentes possibilidades, o faz com a vida.

Na mitologia grega encontramos inúmeras histórias triviais como qualquer fábula que acaba transmitindo um conceito ético ou moral. Mas, de todos eles, um parecia realmente traduzir as sensações de Vítor diante da vida: o mito da reminiscência. Por ele explica-se toda a ânsia da alma que busca a beleza na multiplicidade de sensações unidas pelo raciocínio. Segundo ele, a alma desdenhava os seres, hoje chamados reais e contemplava o ser verdadeiro. Caindo no que chamamos de corpo, ela busca negligenciar as coisas do mundo. Os que negligenciam totalmente a realidade terrestre são chamados de loucos porque a realidade de perfeição não pode ser compreendida nem mesmo pelos que a experimentam, pois, enquanto ser mortal, não se pode possuir a percepção bastante distinta.

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Vítor se recuperou e voltou a lecionar. Sua força de vontade fez com que ele recobrasse todo o aprendizado de outrora. Sempre gostou da leitura como alternativa de crescimento e, apesar do acidente que sofrera, nunca deixou este hábito.

Agora trabalhava de forma ponderada, mas a vida continuou a inserir em sua mente pensamentos que questionavam toda a existência humana. Não se contentava com o óbvio. Pretendia ir mais a fundo no oceano da vida para encontrar a pérola escondida da verdade.

Sempre sonhou com um grupo de jovens de rua do qual fazia parte. Numa ocasião era o líder e sempre tinha alternativas para a ação do grupo. Em outra ocasião, navegava em seus pensamentos e notava neles a saudade que dele tinham. Visualizou sua própria morte enquanto Mancara e os efeitos dela na sociedade. Quando acordava, no outro dia, relembrava todos os fatos que vivera em seus sonhos e, num devaneio, conseguia descrever com precisão tudo o que se passava em neles. Nada do que fazia o deixava, porém menos inquieto.

O que significavam aqueles sonhos? Seriam resquícios de delírios dos meses em que esteve inconsciente? Eram reminiscências de outra encarnação? Seriam previsões do futuro ou de uma futura encarnação? Vítor, que nunca se interessara por estes assuntos devido às crenças de sua família, agora pesquisava tudo quanto podia, tentando conhecer todas as teorias que o poderiam levar a alguma conclusão. Leu vários livros espíritas com teses bem fundamentadas de Alan Kardec, leu tudo o que encontrou sobre parapsicologia e psicanálise. Quando

encontrava com algum profissional destas áreas, nunca deixava de perguntá-los sobre o verdadeiro significado dos sonhos que tinha. Discutia, argumentava e, apesar de todas as teorias parecerem ser verdadeiras por serem lógicas, nenhuma delas explicava-lhe sem racionalizações o sentido daquelas reminiscências. Para ele, toda teoria, apesar de conter uma dose de verdade, era uma adaptação à realidade. Como não se conhece o objeto da pesquisa, é fácil afirmar, incólume de refutações, a veracidade de uma teoria qualquer. Não se considerava um cético, mas precisava reconhecer um fundamento epistemológico para, a partir daí, se aprofundar no conhecimento do que o inquietava. O espiritismo atribuía tais sonhos a uma outra vida, numa circunstância totalmente adversa da que se encontrava, como um menino órfão crescido nas ruas e juntado pelo acaso a outros meninos de rua na mesma situação. A parapsicologia atribuía aqueles sonhos a uma codificação telepática com o líder de um grupo de jovens de rua que possuía uma afinidade de pensamentos e idéias semelhantes às de Vítor. Mas como explicar a visualização dos pensamentos daqueles jovens. Se fosse a reminiscência de uma encarnação anterior explicaria assim, até mesmo a presença do passado em forma de lembrança na sua mente enquanto Mancara. Se fosse uma linguagem telepática com um dos chefes de um grupo de rua, poderia viajar pelo âmago daqueles jovens mesmo após a morte de seu líder. A resposta que procurava não parecia ser dada por nenhum ser humano. Para ele, a verdade era como o ouro, difícil de ser encontrada, mas, uma vez uma vez encontrada, não restariam dúvidas de que aquela seria a verdade suprema, de beleza

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contagiante que enleva a todos que a procuraram para dela se deleitar na alegria plena.

Não se admire se lhe parecer pieguice estas descrições das sensações de Vítor! Subterfúgio plausível: ele só falava da verdade desta forma quando estava levemente embriagado por uma garrafa de rum!

Abstração Filosófica

Louco é aquele que se diz conhecedor da verdade tomando como referência as medíocres atitudes humanas.

Vítor já não podia ter certeza de nada. E se aquela vida que pensava estar vivendo é que era a ilusão de uma vida real? Quem era ele? Vítor jovem comum da cidade ou Mancara, jovem nascido e criado nas ruas? Será que tudo aquilo correspondia à realidade? Sua existência foi cercada de dúvidas. Não perdeu o sentido para a mesma porque na verdade nunca o encontrou. Nunca soube qual era a existência real. Parecia que sua vida era intercalada entre o dia e a noite com duas realidades ligadas à sua razão de ser. Há sonhos que parecem tão reais que passam a fazer parte de nossa existência. O tempo se encarrega de nos fazer esquecê-los, porém, em nossas atitudes, sempre somos influenciados por eles. Não é à toa que as pessoas tendem a chamar suas metas e planos de sonhos. Na verdade, sonhamos acordados por aquilo que, por mais difícil que seja, poderá tornar-se realidade.

Logo os sonhos são a cópia da verdade que poderá, um dia, tornar-se a origem da realidade.

No entanto, aqueles sonhos ou visões de Vítor, não correspondiam a planos. Afinal de contas, quem planejaria viver uma vida tão cheia de sofrimentos quanto a dos que moram nas ruas? Vitor buscara algumas vezes, alternativas emocionantes de viver a vida, mas nunca se imaginara como um “inimigo do mundo” na pessoa de Mancara. Sempre optou pelo convencional, porém admirava os loucos, não os dementes patológicos, mas aqueles que entregam a sua vida pelo ideal que almejam, sem restrições, sem medo de serem felizes, assumindo a sua liberdade até o limite da capacidade humana. Estes são chamados pelo mundo de loucos, mas para Vítor, eram os ícones da coragem inexorável.

Um fato inusitado fez com que Vítor analisasse a existência de outra forma. Caminhando em uma rua tranqüilamente, antes de ir ao trabalho, pensava no medo que o homem tem de ser livre. A liberdade é algo que ultrapassa as convenções, mas Vítor percebia nas atitudes humanas, desde a linguagem até os costumes apreendidos uma aceitação inquestionável de tudo. O homem é preso a tudo, até mesmo ao tempo. Quem criou o tempo para que fosse seguido ininterruptamente? Poderia o homem alcançar a felicidade sem ser livre? Ao longe, avistou um homem maltrapilho que vinha em sua direção e gritava frases desconexas. Quando dele se aproximou, algo lhe paralisou as pernas e não seguiu adiante. Parecia hipnotizado por aquele homem cuja origem ninguém sabia. Ao vê-lo, aquele homem se aproximou e arregalou os olhos. Vítor se espantou com tal atitude, mas não saiu do lugar. Durante alguns segundos a cena se congelou e

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todos que passaram viram os dois, como estátuas no meio da rua. Repentinamente, aquele estranho homem soltou um forte grito:

- Já devias estar contente, já devias estar contente...

E saiu repetindo esta mesma frase a todos os que passavam. Era como um disco arranhado a repetir a mesma sinfonia. Aquele demente saiu, porém deixou suas marcas. Suas palavras instalaram-se no íntimo de Vítor que passou a repeti-las a si mesmo: “já devias estar contente”. Mas, de repente, seu devaneio, transformou-se em inquietação. Ele, escravo do tempo, não poderia se esquecer de seus compromissos, mas aquele fato fez com que Vítor se esquecesse de tudo o que tinha a fazer. Olhava em todo momento para o braço, mas não sabia porquê. Analisou assim, a mecanicidade das ações humanas. Quando se lembrou já não havia mais tempo, o ônibus que o levaria para uma escola da periferia já havia passado. Perdeu o dia de trabalho na escola, mas não perdeu o dia.

Busca do saber pelo saber

Todos somos amantes do saber, viver é estar em contínua busca do conhecimento dos fatos, do mundo,

das pessoas, enfim, de nós mesmos.

Um dia, Vítor decidiu prosseguir seus estudos e cursar o nível universitário. Iria fazê-lo, não pelo retorno financeiro que obteria, mas pelo retorno no que se refere ao pensar. Por este motivo, não teve dúvidas ao preencher o requerimento de inscrição com o curso: filosofia. Já havia tido uma introdução nesta área, mas agora tinha a oportunidade de embasar seus conhecimentos em algo mais categórico. Riu das primeiras manifestações filosóficas que vieram em contrapartida às pessoas que davam supremacia ao pensamento mítico. Pensava: “grande coisa dizer que o mundo não surgiu, como se pensava, da teogonia dos deuses, para atribuir sua origem à incerteza da matéria ou do infinito”. Percebeu uma verdade plausível, mesmo nos mitos escritos por Homero e Hesíodo, pois tentavam dar uma explicação ao mundo que observamos ao nosso redor. Mas, para Vítor, nenhum filósofo, por mais sábio que fosse, era tão astuto quanto Sócrates. Platão, seu discípulo, descrevia inúmeras sagacidades deste que, se utilizando da ironia, dizia nada saber e, assim, aquele que considerasse sua verdade irrefutável era mergulhado em inúmeras dúvidas ao ser questionado por Sócrates; era a maiêutica dando a luz a uma verdade ou a uma dúvida.

Diante de tais estudos, Vítor se deliciava pelo prazer de quem sabe que nada no mundo tem sentido sem o Saber. Tudo era motivo de admiração. Observou que no universo tudo tende a se repetir. Todos os dias o sol nascia e se punha e, poucas eram as vezes que alguém se dava conta da beleza da aurora e do arrebol. As flores cresciam e poucos tinham a capacidade de admirar-se com a sua beleza. A vida se extinguia, a vida ressurgia. Tudo parecia novo para Vítor que sempre achava estas

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reflexões banais. Mas percebeu que, com o subterfúgio de buscar a realidade, dela se afastou. Todos observam o cachorro que antes de urinar num poste o cheira, a galinha que antes de se deitar num local o cisca, a ovelha que antes de ser sacrificada se ajoelha. Brincava com essas banalidades e dizia a seus colegas, tentando descontraí-los:

- Tudo parece ser regido segundo uma ordem universal.

Sua brincadeira foi uma faísca num palheiro. Vítor se assustou quando irrompeu uma discussão:

- Isso é importante, aliás, a única coisa importante é o pensamento, pois ele é a base do conhecimento ou da existência. Por isso, toda ação deveria ser julgada por padrões externos ao cotidiano: uma realidade superior.

- Nada disso! Não se pode esquecer os efeitos que uma ação produz neste mundo, elas são tudo o que importa para seu valor ético.

- Mas quando vou agir, tenho em vista minha liberdade. O valor ético de uma determinada ação deve ter uma raiz na razão, não na observação. Os efeitos de uma ação no mundo não importam neste caso, seria preciso observá-los para chegar a uma conclusão e, para cada ação, há efeitos posteriores conspícuos. Como aplicar a ética a reações a posteriori?

- Você partiu da ética para a metafísica. Mas, mesmo assim vou lhe mostrar como estou certo. O conhecimento inerente na razão é superior a tudo que poderia ser observado. Logo, aí se percebe que o

pensamento é o único meio de se chegar a um conceito ético claro.

- Não querendo ser empirista...

De súbito um deles se virava para Vítor e perguntava:

- E você Vítor? O que acha disso?

Vítor se confundiu ao tentar acompanhar o raciocínio de seus colegas e estes, a qualquer palavra sua, iniciavam uma nova discussão que abordava diversos temas da filosofia: ética, metafísica e epistemologia. Cada um não era adepto apenas de uma corrente filosófica, faziam uma mistura das diversas correntes que lhes aprouvessem, não eram ecléticos, pois rejeitavam aquilo que consideravam banal ou inverossímil. Pareciam superiores em tudo, mas, mesmo assim, Vítor arriscou a falar:

- Se ética e liberdade andarem juntos, neste caso posso opinar. Para mim, o eu humano e os valores humanos são ficções inevitáveis, mas a liberdade existe indubitavelmente. E meu pensar baseia-se apenas nisso, buscar a liberdade.

- Você acredita em liberdade, mesmo tendo as reflexões que colocou agora há pouco? Segundo a sua observação o universo e tudo que ele contém segue um padrão fixo ou pré-determinado!

- Sim, acredito. Mesmo num universo determinista a liberdade existe, o homem está condenado a ser livre. Heidegger e Sartre me mostraram isso...

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Essas discussões duravam horas e não terminavam formando nenhuma dialética entre elas. Na verdade, os defensores de cada ponto de vista, faziam da verdade algo maleável e acabavam por afirmar o que anteriormente tinham negado. Mas todas elas davam a Vítor a sensação de que havia algo a mais que ainda esperava por ser descoberto. Mas era difícil caminhar numa só direção ou corrente de pensamento: verdades eram refutadas a todo instante, isso dava a Vítor um sentimento de ansiedade que o fazia por os pés no chão e perceber a limitação de todo ser humano. Vítor aprendeu a lidar com essa limitação percebendo os limites da razão. Concomitantemente aos livros de filosofia, lia comédias ou críticas que o faziam se deleitar com o sabor do saber: Ao ler a “República” de Platão, lia também “As Nuvens” de Aristófanes; ao ler Aristóteles e os autores helênicos lia também as comédias de Luciano como “Diálogo dos mortos” e “eu Lúcio, um burro”; ao ler Tomás de Aquino, Duns Scotus e os demais filósofos medievais, lia também “Elogio da loucura” de Erasmo de Roterdam; Ao ler Descartes, Leibniz e outros metafísicos, lia também “Candido, ou otimismo” e “Dicionário Filosófico” de Voltaire. “Se todo filósofo é doido,” pensava, “ao menos eu serei um doido alegre e sorridente”.

Eu só sei que nada sei,

Mas quem não queria saber

O que vai acontecer

Com certeza algum dia.

De nada temos certeza,

Os céticos têm toda a razão,

Neste mundo onde as coisas

Parecem não ter solução.

Sair a caverna não é fácil,

Melhor é viver no escuro

Que deparar com isso tudo

Que ofusca nossa visão como o raio.

Encontro do caminho

Quando já se conhece o caminho, não se teme a ausência da luz.

Certa ocasião, Vítor leu a seguinte história narrada por Sidarta Galtama, o Buda: “Havia um homem que andava pela floresta juntamente com seus companheiros até que levou uma flechada. Imediatamente, todos se

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puseram a agir, tentando salvar-lhe a vida, mas ele pediu que não chamassem o médico e nem o tirassem dali enquanto não descobrissem de onde a flecha partira, porque o atacaram e inúmeras outras perguntas que dificilmente seriam respondidas. Aquele homem, dessa forma, acabou morrendo sem ter respostas para nenhuma de suas dúvidas”.

Vítor comparou-se àquele homem. Grande parte de sua vida perdeu-se em elucubrações que não o levaram a lugar nenhum. Percebeu que deixou de viver a vida por não encontrar sentido para tal. Mas queria se entregar por algo realmente nobre. Queria que sua vida significasse algo que prevalecesse, mesmo após a sua existência. Algo que ultrapassasse a barreira do tempo e da matéria.

As palavras têm um grande poder na vida das pessoas, podem matar ou ressuscitar, podem transformar ou conservar, podem afirmar ou negar, enfim podem transmitir ódio ou amor. Percebendo isso, Vítor passou a dialogar mais com seus companheiros. Deixou o isolamento e aprendeu tudo o que deixou de aprender em tanto tempo que vivera isolado. Rapidamente, o sentimento de solidão o deixou. Seus amigos lhe trouxeram a paz que sempre buscou. Aos olhos de todos, sua vida sempre fora tranqüila, todavia seu interior era turbulento. Estes novos amigos eram de uma comunidade de frades cujo trabalho era devotado a meninos de rua, idosos, mendigos... Um dia, Vítor lhes disse:

- Admiro o trabalho de vocês. Vocês são pessoas ótimas, mas não seria errado consertar os estragos de nosso governo? Este trabalho que exercem nunca poderá abranger a todos os lugares, e, pobres sempre teremos.

Um dos frades, meio corcunda, mas muito sorridente e seguro disse-lhe:

- Ah, Vítor! Conheces os argumentos de quem prefere esquivar-se da responsabilidade da igualdade social. Acreditas realmente que devemos esperar uma atitude do governo?

- Além do mais – disse o outro – não agimos de acordo com o paternalismo. Fazemos com que os pobres sejam sujeitos de sua própria libertação dos grilhões da exclusão. Eles é que se libertam pelo seu trabalho. Lembre-se que os excluídos nem sempre são as vítimas, sabemos disso. Somos apenas setas que vão indicar eles o caminho a ser seguido.

Vítor percebia o empenho de todos estes amigos. Como poderia dizer que eles eram apenas setas? Eles faziam muito pela comunidade e, sem eles, com certeza inúmeras crianças teriam crescido nas ruas tornando-se marginais, inúmeros idosos teriam a morte antecipada, inúmeros pais de família nunca teriam oportunidade de emprego, inúmeros mendigos nunca sairiam das ruas... Vítor percebeu a grandiosidade daquelas atitudes. Era o maior exemplo de doação que presenciara em toda a sua vida. Percebeu que, por mais simples que fossem aqueles trabalhos, eram realmente dignos de admiração.

A ilusão diante do desconhecido

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Os seres são o testemunho da liberdade, os olhos que os enxergam, o amor; nada se pode enxergar a menos

que se abram os olhos, nada parecerá a liberdade a não ser pelo amor.

Vítor aprendeu muito com vida, aprendeu muito com a solidão, aprendeu muito mais com a convivência. A adesão às convenções sociais fez com ele ao menos não sucumbisse por caminhos mais tortuosos, como o das drogas. Deixou de buscar na simples negação dessas convenções aquilo que denominava liberdade. Assim como o êxtase, o vazio o deixou. Encontrou a pedra preciosa que buscou por toda a vida.

Agi constantemente na procura de meu eu. Parecia que me distanciava de mim mesmo cada vez que me aproximava da verdade, ilusoriamente, por mim, considerada absoluta.

Quando tudo parecia claro, descobri que tinha mais a descobrir. Descobri que o fato de achar explicação para algo fez com que eu me distanciasse da verdade lógica que me guiava na descoberta. Eis o risco de quem procura a verdade sem enrijecer os meios que levam a esta. Vi que para chegar a uma verdade, deixei no caminho inúmeras interrogações com o intuito de respondê-las assim que chegasse a algo concreto do que eu procurava. Cheguei, mas estas inúmeras interrogações, imprudentemente deixadas para trás, fizeram deste algo concreto um palácio no meio do deserto.

A única explicação para tudo é transcendente a mim mesmo. Não posso afirmar que somente o que é experimentado é verdadeiro, mas como afirmar algo como sendo verdadeiro sem embasá-lo? Ou como embasá-lo se não encontro meios para isso?

Tentei experimentar de várias maneiras a reação dos homens diante do desconhecido, mas nenhuma delas é tão eficaz para mostrar a essência humana quanto a solidão.

Na solidão física verifico mais concretamente como reajo ao sentimento de estar só que se torna insuportável quando vem acompanhado da solidão moral. Ouço vozes, mas nenhuma delas dirige alguma palavra a mim. Duas pessoas dialogam sobre os últimos acontecimentos do mundo em constante transformação, e o que é pior, em contínuo caminhar para a sua própria destruição. Eu? Só escuto. Minha voz é inacessível a essas pessoas, por mais que eu grite. Entre nós não há somente um abismo físico, há uma parede intransponível do tempo, do saber e do mistério. A presença dessas pessoas somente agravou a minha solidão. Se elas nunca tivessem se aproximado, eu me sentiria mais eu comigo e, por isso, menos só.

Senti que permanecer calado em certas ocasiões seria mais difícil que gritar até que minhas cordas vocais se arrebentassem, mas esse grito em nada mudaria o meu tédio. Sinto que algo acontece de diferente ao meu redor e eu não posso fazer nada para impedir. Ainda bem que não passam de sentimentos e os sentimentos nos mergulham em contínuas angústias toda vez que lhes atribuímos valor inestimável.

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Correr...Para onde? Procurar...o quê? Aceitar...como? Nada que eu fizer me tirará desta escuridão. Liberdade...não a conheço, pois apesar de não ser submisso a ninguém, sou escravo de mim mesmo e, o que é pior, escravo de um ser vulnerável, fraco e inseguro de seu futuro.

Já sei!!! A única escapatória para não cair no desespero é entregar-me ao amor. Ele é a única forma de dar sentido a esta existência sedenta...

Neste momento, sons ritmados, como que de uma orquestra de três mil componentes ressoam, vozes cantam o hino mais belo que possa existir, raios cortam os céus acompanhados de trovões tão fortes que fazem toda a terra tremer, mas, de repente, faz-se um silêncio que me inquieta e, depois deste extraordinário espetáculo de som, beleza e vigor, tudo volta para a sua monotonia do tempo e da rotina fatigante.

Como já amanhece, ao despertar deste profundo sono, levanto-me da cama, me arrumo e saio, na procura de viver profundamente mais um dia de buscas, derrotas e conquistas.

Princípio da caminhada

Mesmo a mais bela pedra preciosa precisa ser lapidada.

Vitor finalmente encontrou o caminho que o levaria, passo a passo, à felicidade almejada. Iniciou um trabalho leigo juntamente com seus amigos. Nas simples atitudes em benefício dos excluídos da sociedade obtinha os remos para o barco da vida, mas era preciso remar. Encontrar o caminho não é tudo, é preciso caminhar. Nunca mais se deixou levar pelas correntezas do acaso. Não era o presidente do Brasil, nem mesmo um herói que entregou sua vida pela nação, seu nome não estaria nos jornais como o “Salvador da Pátria”, não seria lembrado em celebrações religiosas como um santo que deu seu corpo às chamas por causa da fé, mas seu trabalho renderia frutos de libertação. Disso tinha profunda certeza. Assim como uma semente não dá frutos imediatamente, as atitudes de Vitor não renderam frutos imediatos. No princípio, impacientava-se, mas aprendeu a esperar, pois seu íntimo lhe dizia que nada que fizesse em benefício das pessoas seria em vão. Não que esperasse uma recompensa para si. Sua recompensa era a própria alegria alheia. Sabia que aos sentidos tudo é minúsculo, como é minúscula uma pequenina bola de chumbo; porém, o peso de atitudes como as suas era também semelhante a essa pequena bola; afinal, o que pesa mais? Uma bola de chumbo ou dez bolas de isopor de mesmo tamanho? Todavia há coisas inefáveis só compreensíveis a quem as experimentam.

Em todos os finais de semana Vítor se juntava a vários grupos desprovidos de interesses próprios, voltados integralmente para o bem estar do próximo. Eram grupos provindos de diversos setores da sociedade: eram espíritas, católicos, evangélicos, pobres, ricos... E várias outras denominações. Mas ninguém se considerava

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mais importante. Todos se tratavam igualmente. Evidentemente, alguns atritos surgiam inusitadamente, mas logo se dissipavam, já que o único interesse era comum a todos: trazer dignidade àqueles que a perderam. Vítor colaborava nesses projetos incansavelmente. Pela manhã, acompanhado por muitas pessoas do grupo, percorria várias casas da cidade numa tentativa de sensibilizar a população a respeito do problema da desigualdade social. Não tinha pressa, parava, conversava, respondia perguntas e até debatia com argumentos convincentes a quem se interpunha àquele projeto colocando-se fora do padrão da responsabilidade social. Tais diálogos eram anotados assim que chegasse em casa. Esperava encontrar neles novas orientações para as novas atitudes a serem tomadas. Certa ocasião, enquanto preparavam o “Natal dos Excluídos”, mergulhado em tais reflexões, numa reunião do grupo a que se juntara, falou em tom desafiador:

- É preciso fazer mais pelas pessoas. Combatemos a pobreza, mas nos limitamos a podar a planta do sistema social. Rapidamente ela brota, e outros ramos, mais numerosos surgem. É preciso cortar o mal pela raiz.

Todos do grupo sentiram-se constrangidos com tal afirmação. Afinal! Já não faziam tudo o que podiam para diminuir o sofrimento de inúmeras pessoas com problemas tão diversos? E foi assim que uma mulher, idosa e doente, porém sempre animada a ajudar no que fosse preciso, disse sem se levantar do banquinho no qual sentara:

- Ora, Vitor! Já não fazemos o bastante. Conte nos dedos, quantos jovens drogados, pais desempregados,

alcoólatras, meninos de ruas e tantos outros foram atendidos por nosso empenho. Você mesmo é um dos maiores responsáveis por tais maravilhas. Deixe de ser pessimista!

O diálogo parecia tomar o rumo de uma discussão, mas Vítor logo explicou:

- Sei do empenho de todos, mas se os números são a prova comprobatória da veracidade do que digo, contem quantos jovens fugiram de nossas mãos para voltar ao convívio das ruas? Acham-se livres por não conhecerem a verdadeira liberdade. Quantos alcoólatras e drogados se deixaram tombar novamente pelo vício? Quantos pais de família nunca mais voltaram a trabalhar apontando inúmeros subterfúgios para não fazê-lo? Nosso trabalho é belo, mas não pode parar no assistencialismo. É preciso ir além. Sei também que muitos aqui vêem nessas pessoas objetos de sua salvação. Não podemos canonizá-las!

Durante longo tempo durou aquela discussão. Ao sair dali, ninguém se sentia desanimado. Todos se perguntavam sobre a melhor forma de agir sem cometer os mesmos erros de outrora. A partir daquele dia, porém, alguns deixaram aquele grupo. Mas o trabalho continuou sem atropelos. Era preciso caminhar, parar no tempo esperando uma solução eficaz seria imprudência. Da mesma forma que um náufrago num barco desorientado deve arriscar uma das direções para não ficar toda a vida no oceano, assim deveria ser feito com o projeto do grupo. Apoiaram-se no ditado: “o amanhã pertence a Deus”, mas sentiam que precisavam fazer a sua parte.

Tudo fazia Vítor parar e se encontrar consigo mesmo. Pela introspecção, percebeu que já não se sentia

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sozinho, mas tinha inúmeras dúvidas das decisões a serem tomadas. E, a pior delas era essa: “deveria injetá-las naqueles que, com tanto empenho semeavam sobre as pedras na tentativa de colher alguns frutos?”. Quando se age de uma certa maneira, ou se valorizam os frutos ou se valorizam os espinhos que machucam os frutos impedindo-os de serem totalmente belos. Vítor, absorto, contemplava a ambos e viajava para as profundezas de seu oceano pessoal:

Mais uma vez encontro-me numa encruzilhada: O que fazer? Para onde ir? Todos me dão sugestão do melhor caminho a ser tomado. Indefinidamente ninguém consegue me dar uma única direção. Esta liberdade que agora respiro é a angústia de viver e ter que optar. Não sei se é imaturidade de minha parte, mas às vezes sinto-me tranqüilo como se a melhor alternativa fosse deixar o barco navegar de acordo com a corrente. Outras vezes, como agora, sinto que minha liberdade será exercida cada vez que navegar contra a corrente. Mas como navegar contra a corrente num mar onde várias correntes vão em várias direções. Se pelo menos as pessoas nas quais confio a minha insegurança tivessem unanimidade em indicar um determinado caminho! Todavia a dúvida permaneceria: aceitar estes conselhos ou refutá-los? Analisando o processo que me levou a estar aqui neste momento, voltado para meu ego, ansioso pela felicidade, percebi que decidi estar aqui por vontade própria. É bem verdade que pedi sugestão a amigos que muito me incentivaram em tal intuito, mas o primeiro impulso foi o meu; afinal de contas eu poderia permanecer estático, deixando que tudo ocorresse de acordo com o acaso. Mas

não, percebi que a ausência de algo é melhor forma de valorizá-lo. Voltando atrás, descobri que o fato de não estar bem seguro do que decidi é que me levou a duvidar de minha decisão e a mergulhar em contínuos dilemas. Do contrário, combateria qualquer vento que viesse em outra direção. Se meu destino fosse determinado, ao perceber ventos contrários, abaixaria as velas e esperaria que estes voltassem a ir à direção que escolhi. Porém, como meu barco não é forte, deixei que o vento me levasse para o meio do oceano no qual me encontro agora. Navegar de acordo com a corrente, nem sempre é seguro, há correntes que têm seu fim em um lugar do qual partem correntes em várias direções. Na verdade, acredito que o que me fez decidir não foram os outros, mas meu receio em afastar cada vez mais das praias nas quais repousava tranqüilo. Só Deus é quem sabe o que farei, onde meu barco irá chegar. Na vida é preciso de um sentido, assim como ao navegante é preciso de uma referência. Mas como fui imprudente, saí para o mar sem saber ler no céu a posição na qual me encontro, levei uma bússola que se perdeu quando enfrentei os primeiros tubarões. Agora nada me resta a não ser navegar, mas preciso de uma direção única, do contrário navegarei em círculos e sempre chegarei de onde parti.

Essa tempestade me impede de enxergar um palmo de distância à minha frente. Mas o que busco enxergar no meio de um oceano? O céu se encontra com a terra, tudo parece o mesmo. Querendo alcançar o céu, percebi que este já estava junto de mim. E agora, que pretendo retornar à terra, percebo que os desafios de nela permanecer se ampliaram. Isso já era de se esperar, talvez a previsão dos mesmos é que foram a maior motivação

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para que eu partisse. Sinto que não retornar, é a covardia diante dos desafios vindouros. Ambos os destinos podem me trazer desafios, não há opção que não venha acompanhada de renúncias, mas é preciso optar por aquele cujos desafios são intrínsecos à minha natureza. Juntar a emoção e a razão na resolução deste dilema é tão difícil quanto misturar a água e o óleo. Se a água é a razão e o óleo é a emoção, só há uma única solução: deixar que a água purifique para que o óleo possa ungir.

Graças ao bom Deus, a tempestade já se foi, não pode chover o tempo todo. A razão me diz que a única forma de não me arrepender depois é não me precipitar baseado nos sentimentos de aprovação ou reprovação das pessoas, de mistificação do real ou do medo da solidão. A emoção me diz que todos os caminhos levam a ela. Logo, concluo que ficar aqui parado esperando que a solução para este dilema caia do céu, é entregar-me ao desalento e à pusilanimidade; é perder o sentido, ou melhor, é deixar de dar o sentido para a vida. É deixar de ser livre e entregar meu direito de escolha às circunstâncias ou a seres cuja existência é tão efêmera e cheia de incertezas quanto a minha. A estes a minha única motivação para uma decisão qualquer será: somente procuro o mesmo que você: a felicidade na terra e no Céu.

Vítor buscava, mais do que nunca, a sua própria felicidade, mesmo quando agia de forma altruísta. Não era egoísta, mas sincero consigo mesmo.

Ajudando a se ajudar

Não há caminho no mundo isento de pedras, mas há pedras que não precisavam estar no caminho, se estão,

alguém que nele passou antes de nós, as colocou, mas, nem sempre, intencionalmente.

Vítor não queria se envolver exageradamente naquele novo trabalho de gratuidade e fraternidade, mas a ele foi atraído cada vez mais. A reciprocidade era inigualável. Aqueles aos quais se juntou, possuíam histórias semelhantes à sua. Não formavam uma instituição formalizada nos moldes governamentais, tinham medo de serem interceptados num agir que se opusesse aos grandes poderosos da sociedade. Diante disso, Vítor reconheceu formas de combate aos males sociais cujo resultado seria realmente louvável. Percebeu que muitos excluídos eram dos altos escalões sociais, o que significava algo mais que uma simples questão financeira. Um dia conversava sobre isso com um rapaz, psicólogo recém formado que trabalhava juntamente com os demais num apoio a diversos deficientes: excepcionais, cegos, mudos, surdos, aleijados... E lhe disse:

- Daniel! O que você faz com os relatórios que produz durante as entrevistas com os beneficiados pelo nosso trabalho.

- Levo para casa e reúno com minha esposa e uma amiga, ex-colega da faculdade. Estamos juntos escrevendo um livro que trata das diversas questões

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relacionadas ao psíquico dos diversos ramos da sociedade. Mas estou dedicando especial apoio aos ajudados pelo trabalho de nosso grupo; afinal de contas, estes não têm quase ninguém por eles. Precisamos ajudá-los, mas, antes, fazer com que cada pessoa no mundo reconheça a parcela de responsabilidade em todos os males sociais.

- Falando dessa forma, você parece um líder sindical.

- Deve ser a convivência. Jéssica, minha amiga de que falei há pouco, é filha de um empresário e se envolveu num movimento sindical. Evidentemente foi expulsa de casa. Agora está morando num apartamento que comprou. Lá também, montou seu consultório de psicologia.

Aquelas últimas palavras fizeram o coração de Vítor bater forte. Era como se tivesse encontrado novamente aquela a quem, tempos atrás, dedicara grande parte de seus poemas. Pensou: “seria muita coincidência, afinal de contas ela decidiu mudar-se para outra cidade... estaria ela envolvida em movimentos populares, não, creio que não”. Vítor se distraiu e, por alguns minutos não respondia a nada que seu amigo lhe perguntava até que, estralando os dedos, Daniel chamou-lhe à atenção falando:

- Conhece a Jéssica? Ficou estranho quando dela falei!

- Não, não sei se estamos falando da mesma pessoa.

- É fácil descobrir. Como ela é?

Vítor tentou de todas as formas dissuadi-lo a não prosseguir naquele assunto, mas, seu colega, usando dos estratagemas de seu curso, fez de tudo o que pôde e acabou convencendo-o.

- A Jéssica que conheci há alguns anos é filha de um gerente de uma multinacional que estava prestes a se aposentar. Não é alta, seus olhos são castanhos, seus cabelos são compridos e...

- Talvez estejamos falando da mesma pessoa, afinal de contas tudo muda neste mundo. Mas, minha colega Jéssica, além do que já lhe disse, tem os cabelos loiros e curtos...

- Definitivamente não estamos falando da mesma pessoa. Jéssica nunca cortaria seus cabelos, orgulhosamente exibia-os como quem exibe um troféu, além do mais, nunca se envolveria em movimentos sindicais...

Aquela conversa durou somente mais alguns minutos, pois, já era tarde e, no outro dia, Vítor faria uma visita juntamente com uma freira a dois lugares para os quais, olhares preconceituosos se voltavam com asco: um meretrício e uma prisão. Despediu-se de seu amigo e foi-se embora. Não mais se perguntou onde estaria aquela que lhe retornara à lembrança naquele dia. Afinal de contas, que dúvidas poderia o simples pensar eliminar?

Fugaz como o amor

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Não existe no mundo nada que seja completo, isso é o que dá a todos a alegria de sempre buscar. O que é

bom sempre pode ser melhor, o que é ruim sempre pode ser melhor; ‘piorar’ é um verbo sem conjugação.

Vítor sonhou naquela noite que estava numa cadeia a gritar pedindo água. Inesperadamente, surgiu dentro de sua cela uma mulher vestida com roupas de prostituta, mas cuja beleza parecia intocável. Sabia que não poderia se mexer e nada falou. Vagarosamente ela entornou um cantil de água que trazia e, no chão, formou-se a figura de um mapa. Ela lhe disse: “Nunca encontrarás consigo mesmo sem percorrer as terras de seu eu. Os mapas de seu mundo são os fatos. Leia nos sinais que lhe apresento todos os dias o caminho a ser seguido; mas lembre-se nunca caminhe sozinho”.

Quando acordou, Vítor se lembrava nitidamente de todas as palavras ditas por aquela mulher de seu sonho, mas não sabia o que elas significavam. Quando rememorou as grades da prisão, lembrou-se dos personagens dos sonhos de outrora: ele sob o cognome de Mancara e seu bando. “O que significavam aqueles sonhos?”. “Seriam a previsão da vida ativa e transformadora em favor dos marginalizados? Mas se não eram, que diferença isso faria?”. Foi assim que descobriu o significado das palavras marcantes do sonho daquela noite: não poderia perder tempo em pensar estaticamente, pois os projetos não têm sentido se não forem concretizados, mas diante do primeiro passo de concretização já são dotados de tal sentido. Era como se dissesse: você está no caminho certo, siga em frente sem

se preocupar, tenha um horizonte em sua mira e descobrirá que rumo tomar. O barco de sua vida, agora navegaria sobre as águas de um rio calmo e silencioso em direção ao oceano da realização.

Naquele dia, como era de se esperar, passou por muitas experiências emocionantes. Descobriu que, apesar de defender idéias liberais, possuía a sua dose de preconceito. Isto ficou mais claro para ele diante de dois diálogos; um no meretrício: “Já sei o que vocês vêm falar: que eu tenho que entregar meu coração pra Deus e que minha vida vai mudar. Mas, saibam que não tenho por quê fazer isso. Meu pai é rico e se estou aqui é porque quero viver minhas aventuras. Há aqui mulheres que têm que se entregar pelo dinheiro, mas eu, somente quero a minha liberdade para vingar-me daqueles que se achavam donos de minha vida!”; e o outro na prisão: “Você não passou, nem mesmo pela metade do que eu passei. Quando eu sair daqui, vou infiltrar bombas por toda a cidade. Todos vão pagar pelo que fizeram a mim!”.

Em geral, todas as prostitutas eram atenciosas e choravam amargamente a sua condição. O mesmo acontecia aos presos que prometiam mudar de vida, caso saíssem dali. Aqueles dois, porém, eram pessoas rudes e não se mostravam nem um pouco interessados em qualquer conselho que lhes fosse dado. Achavam-se os donos de seus destinos. Isso mostrou a Vítor, que nada no mundo é simplesmente o que aparenta aos nossos olhos. Quem poderia realmente descobrir o que ia escondido nas atitudes daquelas pessoas? Quem poderia ajudá-los?

No final da tarde, encontrou-se novamente com Daniel e, com ele conversou longas horas sobre as visitas

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realizadas naquele dia. Escutando atentamente, Daniel anotava tudo e, com um forte suspiro, disse:

- Acabo de escrever o meu livro.

Vítor queria fazer inúmeras perguntas a respeito de seu livro, mas não o fez. Preferia saborear a novidade que poderia trazer-lhe aquele a quem confiou muitas de suas dúvidas. Assustou-se quando, repentinamente, Daniel falou:

- Mudando de assunto... Vítor, você nunca sai de casa? Só envolve nestes trabalhos?

- Na verdade sim. Além de minha profissão a minha única ocupação é o “Projeto”.

- Mas não tem namorada ou alguém com quem vá fazer algo diferente durante os finais de semana?

- Não! Quem precisa disso para ser feliz?

- Não precisa iniciar suas elucubrações filosóficas. Só quero saber, porque não tem namorada! Se é por medo de enfrentar uma nova responsabilidade nesta área ou se é porque não encontrou a pessoa certa.

- Fico com a segunda.

- Foi o que eu pensei. Mas como vai encontrar alguém se não sai senão a trabalho. Lembre-se ninguém vai atrás de você, ninguém tem estrela na testa. Mas se espera por alguém, me diga como que o ajudarei.

Vítor sentiu-se incomodado com aquelas interrogações. Aquele se tornara um de seus melhores amigos havia muito pouco tempo e já começava a opinar sobre sua vida. Mas lembrou-se do sonho da noite

anterior e, levantando-se, balançava as mãos ao ar como um poeta ao recitar um soneto a um grande público:

- Quero uma mulher que seja sorridente, mas que seu sorriso seja sincero; quero uma mulher que seja sincera, mas que a sua sinceridade seja humilde; quero uma mulher que seja humilde, mas que sua humildade seja sublime; quero uma mulher que seja sublime, mas que na sua nobreza seja carinhosa; quero uma mulher que seja carinhosa, mas que seu carinho seja sinônimo de liberdade!

Batendo palmas, Daniel se levantou e disse:

- Bravo! Bravo! Mas sonhador, seria possível imaginar algo de acordo com a realidade?

- Escute o que agora eu lhe digo. As coisas magnânimas da vida acontecem quando menos esperamos, mas nunca tarde demais se as soubermos aproveitar.

Vítor falava como quem tem convicção no que diz e, com um sorriso aberto, despediu-se de Daniel. Este sentiu uma sensação que há muito não experimentava. Queria analisar as atitudes de Vítor, mas não sabia explicar o que agora sentia. Uma força inexplicável partira das palavras de Vitor. Como poderia um jovem solitário emanar tanta alegria? Mais adiante, Vítor caminhava lentamente, porém, agora se sentia vazio como um jarro que derramou toda a sua água para dar vida a uma flor. Mas, porque aquela sensação alojou-se em Vítor? De qualquer forma, achava ter cumprido a missão daquele dia.

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Poder do amor

O hoje nos pertence não deixemos que ele se torne ontem para chorar por ele amanhã.

Quando lemos ou escutamos um desenrolar de fatos, sentimo-nos senhores do universo. Uma história sempre é concluída com a realização de todas as procuras de quem a tem vivido, mas isso aos olhos de quem não a vive. Lamento informar, que o futuro é imprevisível e que não se pode iludir com a vida. Somos responsáveis pelo nosso destino, em conjunto, isto é, ninguém é capaz de determinar as suas realizações, isolado dos demais seres. A harmonia está na multiplicidade. Em outras palavras, a nossa liberdade é condicionada. Eis o paradoxo da existência. Estamos sozinhos no mundo, todavia nada podemos sozinhos.

Vítor, durante muito tempo, envolveu-se em combates contra as divisões geradas pelos homens. Não queria um lugar de destaque, mas ajudando aos outros, acabou ajudando a si. Não dedicava todo o seu tempo em benefício dos outros. Na verdade, a maior parte do tempo que lhe sobrava utilizava escrevendo suas memórias.

Muito poderia relatar sobre Vítor, mas o que tenho são lembranças de alguém que aqui esteve e deixou a sua marca. Quando foi visto pela última vez, estava partindo com sua esposa para um trabalho voluntário no sertão

nordestino. Vítor acabara de se formar em medicina e pretendia pôr-se a serviço dos flagelados da seca.

O futuro é imprevisível, mas isso não lhe confere a peculiaridade do terror. Se os infortúnios são imprevisíveis, o que se diria dos fatos alvissareiros? Todos sabemos que não há tristeza, somente os momentos tristes, mas insistimos em supervalorizar estes a aqueles. Vítor percebeu isso depois de muito tempo, mas não tarde. Agora sabia o que era amar, agora experimentava a liberdade. Juntou-se a uma mulher que também o aprendera com a vida e juntos deram as suas forças numa entrega de si mesmos àqueles que não sabiam o que era viver, àqueles que eram o sentido para suas existências sedentas de justiça.

Imagino que você esteja se perguntando quem tocou o coração de Vitor com o fogo do amor. Imagino que você já imagina, mas adianto-lhe que não gosto de finais felizes, aliás, não acredito que a felicidade seja finita. O final é triste, simplesmente por ser um final. A alegria não pode ser colocada sob os fatores paradigmáticos do tempo e do espaço. Por isso, o que direi de Vítor? O que ele viveu ou o que ele sentiu? Direi que entregou sua vida pelos que amava com um amor ágape. Direi que entregou a sua vida a uma causa, à causa da liberdade. Sabia que se alcançasse a felicidade perderia o sentido para existência, se soubesse qual é, perderia a vontade de buscá-lo, se o alcançasse sem esforço não o teria por algo tão valioso. Foi isso o que fez com que Vítor amasse Jéssica de maneira infinita desde o primeiro momento em que a viu. Acredito que você não está surpreso com esse desfecho! Não é meu interesse surpreendê-lo, mas sim, mostrar que na vida tudo é regido

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pela lei dos ciclos: a matéria se transforma, o tempo traz o passado que já é parte do presente, os planetas giram ao redor do sol, a lua gira ao redor da terra, a vida gira ao redor dos projetos... Muitos desvios os rios de suas almas tiveram, muitos leitos estreitos os fizeram transbordar, mas, agora, juntos no oceano da plenitude, podiam gozar da grande vida tranqüila que lhes era reservada. Entretanto, poder nem sem sempre é querer, tranqüilidade não é sinônimo de felicidade. Juntos pretendiam mais, juntos alcançaram mais e muito alcançariam se não fossem interceptados pelo destino.

Quando se aproximava o natal Vítor e Jéssica comemoravam, juntamente com vários pequenos agricultores, um assentamento de terras conquistado mediante reivindicações pela reforma agrária. Sabiam que agora começaria a mais árdua luta, mas sentiam-se felizes. Não possuíam muito se olharmos com os olhos humanos, mas possuíam tudo o que alguém possa querer na vida, se olharmos com olhos divinos. Ao voltar para casa, um dos filhos de um antigo latifundiário, ex-proprietário das terras agora divididas, veio ao encontro deles e apontou-lhes um revólver, mas não atirou. Mandou que implorassem a salvação dos céus, pois seus minutos na terra eram contados. Chamando um dos capangas deu-lhe ordem para que atirasse. Covardia igual, Vítor nunca presenciara em toda a sua vida. Quando viu apontar a arma para Jéssica pulou em sua frente na tentativa de salvá-la.

Até hoje, quem passa naquela rua e vê duas cruzes belamente ornadas diz com tristeza e determinação: aqui jaz um homem e uma mulher que misturaram seu sangue para fecundar a terra de nossa libertação.

E o amor eternizou suas buscas.

Terceira parte:

Aprendendo a viver

Prólogo

Quem é que na vida não busca a felicidade. Ela é o sentido da vida e está distribuída nos vários momentos, por mais simples que pareçam. O prazer é a alegria concentrada, porém efêmera. No corre-corre do cotidiano, muitas vezes não percebemos essa alegria. O homem (entenda-se humanidade) é um eterno ansioso e saudoso, mas isso não pode impedir que ele continue discernindo o caminho consultando o seu coração e agindo com coragem. A esperança é o combustível. Urge nesse mundo uma parada para observá-lo, este belo mundo originado por obra divina e modificado dia-a-dia pelo ser humano. Este é amante da ausência: ama aquilo que já não é, ama aquilo que ainda não é. Age como um peixe que lamenta nunca ter conhecido a água.

Se assistirmos aos telejornais e novelas, poderemos viver emocionantes momentos de violência, sexo e corrupção e dormir acreditando que nossa vida poderia ser muito, mas muito pior. Apesar disto, não

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deixamos de lamentar os azares (como se azar e sorte realmente existissem sem os criarmos).

- Mas o que quer dizer este poema? – perguntou-me alarmada a boa senhora.

- E o que quer dizer uma nuvem? Respondi triunfante.

- Uma nuvem – disse ela – umas vezes quer dizer chuva, outras vezes bom tempo...

Mario Quintana

A música, os sonhos, as superstições, as virtudes, as deficiências, a eterna busca, enfim, a vida fazem parte do horizonte cultural destes versos. Não há como interpretá-los de uma única e incontestável maneira. Basta viver para saber o que significam.

Voltando ao ponto, percebemos que a vida não é só de alegrias, mas o que ganha o ser humano por continuar a propagar as angústias e incertezas do dia-a-dia? Deparando-se com seus limites o homem descobre que é humano e, devido a isso, imagina a felicidade como uma ilusão, por esse motivo, faz-se necessário a crença em um poder superior capaz de proporcionar ao ser humano as possibilidades para a realização de seus objetivos. Apesar dos versos referentes a este se limitarem ao cristianismo, não se deve desdenhar a colaboração das demais correntes de pensamento que originaram várias outras crenças que ajudam na vivência humana.

Há um tempo para tudo. É preciso caminhar para frente, parar quando necessário, mas nunca voltar. Subir nas pedras que nos tornam mais altos, andar mais rápido com os tropeços da vida e reconhecermo-nos limitados fará com que buscando o máximo, alcancemos o mínimo. Assim, não apenas lutaremos para sobreviver, mas sim, para viver a vida na sua plenitude. Audácia? Utopia? Ilusão? Quem se finge de realista, na verdade não aponta outra solução. O acaso é o nome dado às vicissitudes inopinadas no medo de nunca tentar ser feliz. O amor é a entrega total seja a alguém ou a um ideal., é a total liberdade experimentada, é a fonte de tudo o que fará com que realmente aprendamos a viver.

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Felicidade

Um elogio da pessoa amada,

Uma prece feita com fé,

Do meu time uma vitória suada,

Um bom banho e uma xícara de café.

Ganhar tempo a contar anedotas,

Andar sem rumo só por andar,

Escrever muitos versos e prosas,

Demonstrando como é bom amar.

Um bom livro lido com calma,

Um dedilhar no violão,

Tudo o que alegra a minha alma

É a felicidade que parte de meu coração.

Esperança

O sol bate à janela,

A vida se mostra outra vez,

E eu aqui sem ela

Nesta cela de xadrez.

O dia passa devagar,

O tempo é meu inimigo,

Nada há para apaziguar

A mágoa deste coração ferido.

Mas a esperança me ajuda

A não deixar de amar

Como uma criança madura.

Um dia sei que vou voltar

E travarei uma luta

Para tê-la novamente a me olhar.

Corrida

Da janela de um ônibus

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Avisto pessoas alegres e tristes,

Todas elas carregam o ônus

De não saber por quê se existe.

Correm atrás do tempo,

Param para descansar,

E o seu maior lamento

É não saber aonde vão chegar.

Não se faz o que se quer,

Não se sabe o que se faz,

Só se sabe não saber.

Venha o que vier,

Aconteça aquela paz

Sonhada no viver.

Infância

Volto ao passado

Reconstituindo a minha vida,

Tudo parece mudado

Até mesmo as mágoas sofridas.

Do ápice dos fatos

Vejo tudo com superioridade,

Meu destino foi traçado

Desde a mais tenra idade.

Sou autômato do destino,

As águas de um rio,

Poço de solidão,

Apesar dos desatinos,

Vou como um andarilho

A procurar uma paixão.

Mar

Reflexos do sol,

Sol do meio dia;

Dia sem igual,

Nenhum lugar o via.

A força inexorável

Que daquelas águas vem

É a prova incontestável

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Da pequenez do homem.

Voluptuoso mar

A nos mostrar

Incomensuráveis ondas,

Tão bom quanto amar

Que me faz respirar,

Pois agora tu me rondas.

Antíteses

Liberdade condenada,

Amar sem ser amado,

Esperança desesperada,

Futuro que é passado.

Querer sem ter vontade,

Agir sem conseguir,

Enxugar-se na tempestade,

Chorar de tanto rir.

Antíteses da vida,

Paradoxos do amor,

Serenidade invadida.

Vida numa flor

Que agora foi colhida

Para ir aonde eu for.

Busca interminável

A paixão nos torna vulneráveis

Propensos a muitos desatinos,

Destruindo as proteções quase inexoráveis

Que à angústia não davam retintos.

Deixamos de ouvir a voz da razão,

Ficamos ansiosos sem necessidade,

Damos inestimável valor à emoção

E deixamos de viver a realidade.

Perdemos tempo do nosso viver,

Ficamos sempre a sonhar

E admitimos: querer nem sempre é poder!

Este é o mal de quem não sabe amar

Quase nunca se satisfazer

Com quem o quer acompanhar.

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Presente ausência

Na vida penso naquilo

Que sempre deixei de fazer,

Penso em tudo o que eu digo

E no que eu deixei de dizer.

No trabalho almejo descanso,

No descanso penso no trabalho,

Na multidão quero estar só

E na solidão acompanhado.

Valorizo o que não tenho,

Desprezo o que me sobra,

Voltarei de onde venho.

Mas a vida é que recobra

Todo o meu lamento,

Pois ser feliz é o que importa.

Máscara

Olhos que perscrutam os pensamentos humanos

E descobrem os mais recônditos sentimentos,

Presentes em todo ser não insano

Que dá supremacia aos lamentos.

Desdenha o que há de bom sobre a terra,

Em milhões de estrelas, uma a se extinguir,

A única esperança que havia se enterra,

Um verdadeiro amor, não acredita existir.

Diz-se realista de corpo e alma,

Acha toda reflexão banal,

Perde em pouco tempo toda a calma.

Mas na verdade é pessimista e a todos igual,

Pois a sua originalidade presente é um amálgama

De um invólucro protetor de seu pensar trivial.

Insônia

Quando o sono não vem

É difícil não ser frugal,

Pois nesta tácita noite não se tem

A ilusão de ser imortal.

Estranho a ausência da loquacidade

E de todos os movimentos lacônicos,

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Cogito sobre toda a voluptuosidade

Da palavra "homem" e seus sinônimos.

Aproveito para escrever versos,

Leio um livro na prateleira esquecido,

Reflito sobre passos incertos...

Lembro-me daquele abraço efusivo,

Dos vários caminhos que foram abertos

E do amor sempre tênue e furtivo.

Humor inextinguível

Já superados os supersônicos

Há computadores dos mais avançados

E os atos humanos, sempre cômicos,

Não deixam de ser engraçados.

Para superar a rotina

E o sentimento de solidão,

O homem busca a alegria não extinta

Encontrada se procurada ou não.

Um gato que cai do telhado,

Coisas fúteis por um bêbado ditas,

Um homem sempre azarado.

As cenas repentinamente vistas

São provas de que o inusitado

Traz mais humor às nossas vidas.

Redundâncias

O tempo não dá tempo

De sair para fora

Ao entrar para dentro

Da morada onde se mora.

Amar a amada,

Subir para cima,

Vida vivenciada,

Ensinamento que ensina.

Redundâncias da vida

Do ser humano em seu falar

Conclusão já concluída.

Mas apesar de tanto falar

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A comunicação ainda é infringida,

Pois não se chega onde se quer chegar.

Destruição

Diante de algo tão real

Devemos estar atentos,

Pois não é reflexão banal

O meu falar, os meus lamentos.

O homem transforma o mundo

E o destrói ao mesmo tempo,

E se pensarmos bem profundo

É responsável por seus tormentos.

Computadores, supersônicos, tecnologia,

Tudo criado para satisfazer

A sede de prazer, poder e alegria.

Mas é bom refletir para ter

A consciência de que um dia

Poderemos não ter, nem mesmo, onde viver.

Ilusão

Cada vez que eu observo

As coisas ao meu redor,

Tudo diferente eu enxergo,

Pra melhor ou pra pior.

A cada olhar tudo se muda,

Pois a emoção nos sobrevém,

Isto é algo que não se refuta,

É a impressão que se tem.

Uma pedra em uma hora não é nada,

Em outra tem grande valor,

Pode ser a lembrança da amada

Ou sinal de muita dor,

Principalmente se for atirada

Como prova de desamor.

Árvore dos desejos

Relutei muito para não falar algo desconexo,

Quis fazer um gabo à alegria apesar da tristeza

Presente na vida a nos deixar perplexos,

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Que nos faz desdenhar o dia e sua beleza.

Cogitei sobre a árvore dos desejos,

Sobre seus galhos que dão sentido ao viver,

Pois ao meu redor todas as pessoas que vejo

Só pensam em cumprir o seu dever.

Toda situação é abstrata,

A razão de viver pode ser ilusória,

Mas dará sentido para o nada,

Pois desde os tempos mais remotos da história,

A vida do homem é determinada

Para a busca, a conquista e a vitória.

Se

Se isso não tivesse acontecido,

Aquilo seria diferente,

Se a vida não tivesse tempo definido

A morte não despertaria o que se sente.

Se aquilo se realizasse,

Isso não teria acontecido.

Se a ambição do homem cessasse,

Não haveria este dizer arrefecido.

Buscar ser racional

É falar com subterfúgios

Diante de nossa realidade,

É sempre ser igual

Àqueles que buscam refúgio

No que gostariam que fosse a verdade.

Decisões

Existem decisões fáceis de serem tomadas

Como tomar banho em um dia de calor,

Há outras que sempre vêm acompanhadas

De angústia, desespero ou temor.

Há decisões que parecem irrefutáveis

Ou que acontecem paulatinamente:

Um barco em meio a ondas incomensuráveis

Que navega de acordo com a corrente.

Todavia nem tudo decidimos,

Não podemos ter essa ilusão,

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Pois somos diante do mundo pequeninos.

Talvez aceitar a condição

De sermos joguetes do destino

Fará com que a vida nos dê a solução.

Mort...

Não tenho certeza de nada,

Alguns têm certeza da morte,

Para mim ela é misteriosa e abstrata,

E em nos planos sempre dá um corte.

Não se sabe sua hora exata,

É isso que me chama a atenção,

Pois apesar de já tê-la predeterminada,

Não sabemos para que ocasião.

Para quem vai é um alívio,

Para quem fica muita dor,

Pode ser que seja o princípio.

Mas seja lá como for,

Mesmo que eu caia em um precipício

Ainda restará o que plantei: o amor.

Rotina embriagante

Rotina que intercepta meus sentimentos,

Vida movimentada, porém não vivida;

Ordens de chefes que me fazem ficar atento,

Desejo reprimido, ambição escondida.

Poluição atmosférica, sonora e visual,

Vontade de fugir para longe,

Mas até mesmo a lua inóspita é igual,

A um lugar onde nada se esconde.

O jeito é esperar um momento propício,

A ocasião para me reencontrar,

Em órbita com os astros no espaço.

Tão exato quanto o solstício,

No universo a cronometrar...

Até ignorei o que faço!

Lembranças de viver

Um dia a mais para comemorar,

Um dia a menos para viver,

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Pois se até agora não soube amar,

Não perca tempo, para isso, querer é poder.

Reconstituir um passado vivido,

Acreditar em um futuro multicor,

Viver o presente esquecido

E desdenhar toda dor.

É hora de levantar e seguir,

Escolher um caminho certeiro,

Ter consciência do que está para vir.

Ter vontade este é o primeiro

Desejo presente no agir

Que muda o ser do homem por inteiro.

Julgamento da justiça

Alguns a consideram execrável,

Outros sinal de apostasia,

Há quem diga ser ela inexpunhável

Talvez utilizando ironia.

Muitas vezes seu sinônimo é vingança,

Pois em vários momentos ela é cega.

Se não for cega ela é manca,

Pois é sempre lenta onde trafega.

Quem a acha perfeita venha em sua defesa

Como quem a um palheiro fogo iça,

Mas aja sempre demonstrando clareza.

Num país onde tudo acaba em pizza

Tente encontrar a beleza

Desta palavra chamada justiça.

Referência

Há sentimentos maléficos que possuem

Também o seu lado positivo,

Há sentimentos bons que contribuem

Um pouco para o comodismo.

O ódio é o combustível da guerra

Como a raiva o é da coragem,

Pois tudo o que existe na terra

Tem um motivo para existir de verdade.

A quem diga: “só o amor constrói”

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E nos dão esta simples solução

É a riqueza que nunca se corrói,

Mas seja a resposta ou não

Para quem acha que o ódio só destrói:

Ele é o paradigma da razão.

Perdido

Sem ele me perco no tempo,

Nada do que vejo me distrai,

Olho para o braço a todo o momento,

Não sei explicar a sensação que me recai.

Avisto um homem de esperança dissipada,

Não sei se filósofo ou demente,

Grita apontando a quem está na estrada:

"Já devias estar contente".

Falta uma parte de mim

Neste relógio que se faz ausente

Nunca pensei sentir sua falta assim.

Por isso, na vida, tudo o que se sente

É a reafirmação do nosso sim:

Sim à vida, sim ao presente.

Sabedoria

Era bom demais para ser verdade,

Notícias ruins sempre correm rápido,

Mas não há necessidade

De lamentar o que é tácito.

Há males que vêm para o bem,

Deus escreve certo em linhas tortas,

O importante é valorizar o que se tem,

O que já não é, já não importa.

Reflexos da sabedoria do povo

Numa vida a se desenrolar

Convergindo para um mundo novo.

É prova de que o pensar

Não é privilégio de poucos,

Pois todo ser humano sabe cogitar.

Renúncias

Toda opção é acompanhada de renúncias,

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Mas pode determinar uma realização,

Pois mesmo numa época de abundância

Tem-se que escolher entre o sim ou o não.

O que não se faz é como magia,

Pois tem valor inestimável.

Ou é noite, ou é dia;

Entre os dois escolha o mais agradável.

Não existe meio termo das decisões,

É necessário saber escolher

Uma das várias opções.

O ser humano, desde o nascer,

É predestinado a pesar suas ações

Aprendendo a aprender pelo não fazer.

Suficiência

Amor, esperança, bondade,

Entusiasmo, equilíbrio, animação,

Fé, pureza, caridade,

Paz, virtude, doação.

União, coragem, certeza,

Emoção, obstinação, liberdade,

Fidelidade, ternura, beleza,

Gratidão, confiança, afabilidade.

Meta, audácia, vitória,

Justiça, maravilha, glória,

Persistência, grandeza, fraternidade,

Sensatez, sublime, sabedoria,

Verdade, força, alegria,

Façanha, júbilo, eternidade.

Deus

De todos os lugares ouvem-se aclamações,

Em nenhuma parte Ele é pouco louvado,

Uma verdade universal que rege as civilizações,

Sua grandeza é de tamanho ilimitado.

Das planícies até os cimos das montanhas

Eu percebo como Ele é admirável.

Uma força que determina todas as façanhas;

Seu poder é incomensurável.

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Liquida com a maldade do mundo,

Une os corações em um segundo,

Zelador onisciente, onipotente e onipresente.

Nada sem Ele possui suprema beleza,

O princípio único da natureza,

Sabedoria plena que nunca se faz ausente.

Esquecendo de esquecer

Quem nunca foi sua vítima venha me falar,

Pois desde o princípio ele é o cerne do viver.

Mesmo aquele que vive sempre a pensar,

Não poderá escapar de um dia algo esquecer.

Esquecer algo ruim pode ser benéfico,

Neste caso o querer não determina o possível,

Nunca esquecemos aquilo que é trépido;

Lembrar-se de esquecer é impossível.

Lembrar de lembrar é o não ao esquecimento,

Esquecer de esquecer: conta do sentimento,

Esquecer de lembrar: do cotidiano faz parte.

Mas não há ninguém que refute

Esta idéia magnitude:

Não se esquece o que em nosso peito arde.

Intento

Planejar o dia a dia é um agir meio prolixo,

Pois diante do presente tudo muda de figura.

No imaginário tudo é certo, ordenado e fixo,

Mas na lida nova realidade se configura.

Porém agir sem planejamento

Também seria imprudência,

Mesmo que algo saia do intento

Devemos ter esta imponência.

Portanto planejar a vida

É dar vazão à esperança

E ter coragem persuasiva.

Assim seremos como uma criança

Que sente uma força expressiva

De que quem espera tudo alcança.

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Mistério

Quem nunca foi de guerra se vê a pugnar,

Um egocêntrico se põe a servir,

Um desleixado se acha a elucidar,

Um andarilho pára de seguir.

Uma viúva cessa suas lágrimas,

Deixa de latir um cachorro,

De funcionar param todas as fábricas

E eu sempre estático de repente corro.

Tudo o que sempre foi deixa de ser,

Aquilo que já não é deixa de ter

Todo o poder de dominar.

Para muitos esta é uma noite sem fim,

Contudo não é senão para mim

A hora de parar e descansar.

Acaso

Se atribuirmos ao acaso

O que nossa vida oferece em liberdade

Dizendo: "Sou um azarado",

Não admitimos nossa subjetividade.

Se olharmos para alguém bem sucedido

Dizendo: “a sorte com ele está!”,

Deixaremos de acreditar no que pode ser vivido,

Escamoteando a consciência do sempre buscar.

Porém se mudarmos nosso pensamento

E o fixarmos em nossa meta,

Não existirá mais lamento.

É nosso pensar que decreta

Todo o incitamento,

Pois o desejo é uma seta.

Remédio

Em um mundo de tanta vida

Ainda há algo que é preciso

Que a tristeza liquida,

Este é o poder de um simples sorriso.

Procuro olhares na rua,

Todos passam cabisbaixos,

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Ninguém repara a bela lua,

Retraídos, só olham para baixo.

Não é difícil deduzir

Que já é noite por aqui,

Ninguém quer perder tempo.

Todos desejam em casa chegar,

Tomar um banho e descansar,

Mas se entregam ao desalento.

Coisificação

As garotas de alto a baixo examinam

Apreciando suas curvas e pernas,

De repente em grupos se vangloriam

Dizendo: "sempre consentirão elas!".

Coisificam um ser tão sensual,

Usam de seu corpo como objeto de prazer,

Mas algum tempo depois tudo é banal,

Não há mais encanto em seu ser.

Se isso por sinal é ser viril,

Para mim esta atitude não tem nexo,

Sou um homem que a sociedade baniu.

Vejo na união dos corpos em um reflexo

Que a plenitude do amor se esvaiu

E os seres estão perdendo toda a magia do sexo.

Livre para amar

O amor às vezes é ambição,

Desejo por aquilo que não se tem;

Pode se tornar obsessão

Na qual a angústia nos sobrevém.

O amor é a brisa que refresca

Numa tarde cujo sol arde,

Mas pode ser o fogo que aqueça

A quem se entrega e não é covarde.

Amar não é privilégio de alguns

Como ser amado o pode ser,

Pois dar nem sempre é receber.

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Na verdade homem nenhum

Vive sem ter ao menos um

Amor para realmente viver.

Alegoria da chuva

Podemos a chuva prever,

Mas não impedir que ela caia;

Até mesmo de suas águas esconder

Sob um telhado de palha.

Sabemos o que nos acontecerá,

Mas não de que maneira.

Um dia o destino virá

Com uma flechada certeira.

Deixemos a chuva cair,

O futuro se tornar presente,

Sem nos perdermos no ir e no vir.

Abracemos a vida de frente,

Assim poderemos curtir

A liberdade no amor imanente.

Novo milênio

Novo milênio é chegado,

Novas esperanças florescem;

O presente se fez passado,

O mundo persiste, mas as vidas se perdem.

Determinação e ousadia

É o que se espera da humanidade

Para que se chegue algum dia

A um mundo de paz, justiça e igualdade.

É preciso sonhar com a alegria

Já a fazendo acontecer,

Este é da vida o compromisso.

Escatologicamente todo ser,

É sedento de um paraíso

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Onde o crer sempre antecede o poder.

Verbosidade

Até quando perderemos energia

Em discussões que não nos levam a nada,

Tornando nossa alma vazia

E sinuosa nossa estrada?

Não me importa quem ganhou,

Um dia é da caça e outro é o do caçador,

Pois neste momento em que aqui estou,

Ainda me recupero de uma antiga dor.

Mesmo que haja algo inopinado

Minha alegria é exeqüível,

Pois na ilusão não estou embasado.

Assim com o espírito níveo

Chego a um supremo estado

Onde tudo é imarcescível.

Fases

Não podemos nos iludir

Com o poder das emoções,

Pois poderemos cair

Num precipício de decepções.

Na vida para tudo,

Duas fases conspícuas existem;

É necessário ser astuto,

Pois estas frugalidade exigem.

Há o período de "lua-de-mel"

Em que tudo é maravilhoso,

Onde até as trevas são belas.

Em outro se finda o céu,

Onde se fica ansioso

Por se ver livre de uma "cela".

Deslumbramento

Suspensos no ar com ar de majestade,

Para eles se voltam olhares curiosos.

O meu olhar também se volta, mas na verdade,

Observo quem os governam: seres ociosos.

Não sei por que razão se perde tanto tempo

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A manusear um instrumento à distância

Que se guia, livre no ar de acordo com o vento,

Que sentido posso achar neste ato da infância?

Não sei quem é o dominador ou o dominado,

Pois até quem é seu criador parece extasiado

Por este objeto que também possui o seu poder.

É capaz de influenciar até quem não se admira

Com as coisas da vida: a morte e a mentira,

Esta pipa ou papagaio que daqui estou a ver.

Boêmia

Não sei o que aconteceu,

Tudo se multiplicou,

Formas duplicadas vejo eu

E não sei o que fazendo estou.

Ando e falo com dificuldade,

Penso com certo calculismo,

Sem querer uso sinceridade

Sinto-me como se caísse em um abismo.

Tento preservar a impressão

De estar aos olhos de todos sóbrio,

Mas todo esforço parece vão.

Subitamente demonstro que o ódio

E a insegurança também estão

Presentes neste momento de ócio.

Beleza

Novamente estou a cogitar

Sobre esta fonte de riquezas

Presente em todo ato de amar,

Amor ao que se chama beleza.

Alguns a têm no interior,

Outros valorizam somente a externa,

Mas um dia percebe-se a dor,

Pois esta última nem sempre é eterna.

Há pluralidade de gostos

E a singularidade de todos

Faz com que nada não seja nada.

Para tudo que há no universo

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O que já disseram repito num verso

"Belo é aquilo que visto agrada".

Especulando com um inseto

Me impede o sono seu zunido,

Cubro a cabeça com a coberta,

Mas ele encontra o meu ouvido,

Sabe onde me incomoda e a hora certa.

Um inseto tão pequeno,

De tanto incômodo é causador,

Seja por seu ruído que é intenso

Ou por sua picada de coceira e dor.

Uns o conhecem por muriçoca,

Alguém o define pernilongo,

Mas o seu nome não me importa...

Pois uma atitude agora tomo:

Acendo a luz e, abrindo a porta,

Percebo que gigantes vulneráveis todos somos.

Afastamento

Neste insólito alijamento

Percebo um futuro diáfano e alvissareiro,

O inaudito pulula, é meu sentimento

E sobeja o que é lépido num viver ronceiro.

Urge em nós um momento de letargia

Que não é um ato de estúrdia para o mundo,

Titubeamos pelo tempo perdido num dia,

Mas a resposta nos vem em um segundo.

Eis o meu alvitre: "sursum corda",

Buscai o furtivo e o inusitado,

Não vos preocupeis com o passar das horas.

Não olvidais o mundo e nem o inopinado,

Sem imediatismo, mas de maneira peremptória,

Incólume aos desatinos, ficareis admirado.

Tropeçar

Aquele que vive se perguntando

Sobre o que pensam a seu respeito

Num oceano sempre acaba mergulhando:

Futilidades que pungem veementes no peito.

Mesmo que algo execrável lhe pareça,

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De sua parte em um ato involuntário,

Não se pode desprezar a beleza,

De quem erra, mas depois prova o contrário.

O sol não deixou de brilhar,

A chuva não deixou de cair,

Ainda se vêem as ondas do mar.

Há tempo para seguir,

Pois ainda está no limiar,

Aquele que pensa não conseguir.

Alternativa

Há pessoas que se voltam a um poder superior

Somente na hora da necessidade

Em que se encontra um vazio interior

Que impede de se viver de verdade.

Um pronto-socorro para a vítima,

A aspirina para a dor-de-cabeça,

Sua função é nítida,

Estar presente dependendo do que aconteça.

Entretanto sua presença

É sempre indiscutível,

Sem ele não há quem vença.

Assim como a percepção do ar é possível,

Ele antecede ao que se pensa

Mesmo não estando aparentemente visível.

Sementes

Egoísmo e ambição, males do século,

Só se volta para o próximo na necessidade;

A conseqüência é a solidão, o que é benéfico

Para se cultivar um pouco de humildade.

Ofensas e intrigas, sinais de jactância,

Onde se maldiz alguém que esteja ausente;

Aquele que escuta extingue a confiança

Que tinha neste ser iníquo anteriormente.

Quem semeia vento colhe tempestade,

Se se pisa nos outros só se tem a perder,

Porque sempre prevalece a verdade.

Plantar o amor é a missão de todo ser,

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Sem parcimônia para que toda a humanidade,

Volte a ter alegria de viver.

Certeza

Quem nunca na vida buscou ser ardil

"ex toto corde" quis ser famigerado

E de repente pusilânime se sentiu

Por um alanhar no destino alapado?

Certas vicissitudes nos servem de aprendizado,

Pois nem tudo no mundo pode ser pernóstico.

Com o "hic et nunc" é difícil não ficar alienado:

Muitas vezes os outros é que nos dizem o que é lógico.

O invólucro que envolve nossa liberdade

É uma realidade factual de se admirar,

Quem pode outorgar-se a plena verdade?

Porém um vaticínio pode extirpar

Com estas visões que a todos persuade:

O ser humano é livre somente para amar.

Procura

Procurei à minha frente

O que atrás de mim se encontrava,

Saí de um rio de águas transparentes

E bebi águas turvas onde passava.

Busquei onde tinha luz achar

Algo perdido na escuridão.

Estive ao meu redor a procurar

O que se estava em meu coração.

Penetrei em emaranhadas florestas,

Mergulhei em profundos oceanos,

Estive em meio a pessoas em festa.

Utilizei-me dos recursos humanos

E a conclusão a que chego é esta:

Buscar-me fora de mim é um engano.

Horizonte

É preciso caminhar sempre

Buscando o sol no horizonte,

Mas como aquele que aprende

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Que o sol existe atrás do monte.

A felicidade é nossa vocação,

Para alcançá-la na união devemos caminhar,

Mas não podemos ter a ilusão

De partir sem saber aonde chegar.

O desejo é infinito,

Mas a alegria é possível,

É realidade e não um mito.

Não há referências ou um nível,

Preste atenção no que agora digo:

A felicidade existe, mas nem sempre é visível.

Adrenalina

Há pessoas que vivem correndo riscos

E tratam a vida como mera brincadeira,

Por qualquer motivo se tornam ariscos,

Não refletem, agem de qualquer maneira.

Dizem serem amantes da adrenalina

Que lhes demonstra todo o vigor.

Eu prefiro as doses de endorfina

Produzidas pela alegria, não pela dor.

Pessoas como eu são ditas covardes

Diante de qualquer banal demonstração

Que punge feridas e arde.

Na verdade para mim só existe uma emoção:

A de estar vivendo cada dia com a coragem

De ser o que sou e saber dizer não.

Espelho

"Conhece a ti mesmo",

O sábio Sócrates nos dizia,

Assim terás sempre bom esmo

Das ações de cada dia.

O nosso espelho é o próximo

No qual observamos qualidades e defeitos,

Refletindo em nosso ego máximo

A razão do que temos feito.

Côncavo, plano ou convexo,

Ele sempre vai ser o reflexo

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De alguma coisa em sua frente colocada;

Assim o próximo representa o que somos,

Reflete nosso âmago e sonhos

Às vezes de maneira deformada.

Solução

Uma multidão está ao teu redor

Falando dos fatos que abalam o mundo,

Mas te sentes terrivelmente só

Um frívolo ser, um vagabundo?

Sai do que te rodeia pela imaginação,

Faz uma viagem em teus pensamentos,

Encontra-te contigo na solidão

E terás o mais benéfico preenchimento.

Todavia não te isoles,

Seguro de ti tens que ser,

Um ser que as suas emoções controle.

Ajuda aos outros sempre a ter

Fé na vida e não ignores

Que nada se ganha se tudo se temer.

Divagação

O sol já se foi embora,

O dia terminou,

E já faz mais de uma hora

Que aqui estou.

Não sei por que motivo

Ele não veio na hora certa.

Meu penar está furtivo,

Mas minha impaciência já se atesta.

Quando o ônibus atrasa

Angustio-me neste banco de praça

Esperando, como é ruim esperar!

E nessa escuridão devassa,

O meu espírito divaga

Com as estrelas e o luar.

Passageiro

Assim com uma nuvem

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Nunca forma a mesma figura,

Os fatos da vida sempre têm

Um novo molde, uma nova pintura.

A vida do homem é efêmera e fugaz

Como a chuva que era nuvem e agora desce,

Não sei de que este tanto corre atrás

Quando é só parar e se entregar à ascese.

Então veremos um mundo maravilhoso,

Todos os seres estarão sorrindo

E nos voltaremos para o que há de formoso.

Uma gaivota vai subindo

Para o céu antes nebuloso

E nova esperança vai surgindo.

No jogo da vida

A nossa vida redirecionamos,

Mas não desistimos de ser felizes;

Como num futebol no qual jogamos

Com regras, mas sem juízes.

Corremos atrás da bola

E, depois de tê-la ao nosso pé,

A chutamos como algo que incomoda

Para outro companheiro que vier.

A bola é a vida,

O gol é o ideal,

A regra é o que limita.

Trocamos algo banal

E de maneira decidida

Abraçamos o que é imortal.

Discernimento

A suprema sabedoria

Está em saber discernir,

Crescendo a cada dia

Almejando o que já está a vir.

É reconhecer na fraqueza

Uma verdadeira amizade

E se estiver na fortaleza

Sempre ter humildade.

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Deixando o egoísmo

Joga-se a solidão

E a tristeza em um abismo...

E a única ambição

É ter o determinismo

De se entregar de coração.

Alegria alvissareira

Não existe sofrimento nem tristeza

Somente os momentos tristes,

Em que o céu nublado esconde a beleza

De um magnífico azul que por trás existe.

A alegria é o Dom verdadeiro

Nunca a deixamos de buscar,

Mas devemos ter a consciência de primeiro

Reconhecê-la até no ato de respirar.

Não se pode confundir

Alegria e prazer,

Este é efêmero em seu existir.

Já a alegria de viver

É poder contribuir

Para que o outro alegre também possa ser.

Amizade verdadeira

Ás vezes ela é dita impossível

Ou meio de manter as aparências,

Mas ela na verdade é o combustível

Que rege a vida em suma consciência.

Como uma panela de pressão

Tem que liberar o seu vapor,

Do homem nenhuma emoção

Pode ficar reprimida em seu interior.

Para isso se conta com o amigo

Presente mesmo no sofrimento,

Que age incontinente e destemido.

Sabendo que não existe momento,

Planos ou pré-requisitos

Para escutar desabafos e lamentos.

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Sonho ou realidade?

Saber diferenciar realidade e sonho

É uma tarefa muito difícil,

Pois até mesmo estes versos que aqui ponho

Foram idealizados por algo supra-sensível.

A realidade é a concretização,

Mas o sonho é o precursor

De toda meta e ação

E não somente um estupor.

O sonho antecede a realidade

Assim como a idéia antecede o ser,

O infinito é o limite da liberdade.

De cada ato de coragem pode-se entender

Que o sonho já é uma possibilidade,

É um milagre a acontecer.

Devaneio

Árvores altas arrepiam,

Bruxas berram bruscamente,

Canções confraternizações criam,

Desdenham dilemas dementes.

Eu escrevo estupefato,

Forneço frívolas fórmulas

Gastando grandes garbos,

Hiperbólicas habilidades históricas.

Tentei cercear minha escrita

E meu espírito se encontra vazio,

Pois no pensamento nada se limita.

Agora o que sinto é um alívio,

Pois tudo o que se cogita

Pode transbordar como rio.

Perfeição

Há coisas que só fazemos com a mão esquerda

Como coçar o braço direito,

Dos vários caminhos, haverá uma ação que não perca

A consciência de que somente um é o perfeito.

A transformação acontece gradativamente

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Não é necessário esforço concentrado.

A alegria aos poucos se torna presente

E todas as inquietações terão passado.

Agora se quiser bater com a cabeça

Como bate em uma lâmpada um besouro

Tome a decisão que mais fácil lhe pareça.

Buscando a luz pressuroso,

Ainda persistirás mesmo que tudo escureça

Pensando que o passado ainda é vindouro.

Receio

Que me importa se o sol já não brilha

E um gélido clima substitui o calor,

Que me importa se crescem espinhos na trilha

E não sobreviveu nenhuma flor?

Se diante da luz os olhos fechamos,

Por que a escuridão temer?

Se belas flores sempre arrancamos,

Por que lamentar o joio a crescer?

Quando algo é bom

Temos medo de fantasiar

Dançamos sem luz nem som...

Pois sempre estamos a estimar

A nossa angústia ligada com

A covardia de continuar.

O bem que quero

Quis plantar o amor,

Mas a discórdia causei;

E nada apaga esta dor

De não ter alcançado o que busquei.

Quis trazer alegria

Sem tê-la em mim mesmo,

Mas já tinha tudo o que queria

Até aquilo que não mereço.

Olhei com mais firmeza

O norte que me satisfaz

E apreciei toda a sua beleza...

Pois ainda acho que sou capaz,

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Agindo com bastante firmeza,

De plantar o amor e colher a paz.

Superstições

Usa-se a lógica às vezes na hora errada

Formulando proposições quase excogitáveis.

Até um indefeso gato preto na encruzilhada

É culpado por um viver de situações instáveis.

Levantar com pé esquerdo,

Entrar por uma porta e sair por outra,

Atribuir a sorte a um pé de coelho

Ou a um trevo de quatro folhas.

Coincidências são efêmeras,

Mas podem se repetir

Nem por isso são teoremas.

Quem tem medo de algo conseguir,

Pode ficar preso a estes dilemas,

Não se abrindo à esperança a surgir.

Veneno

Não me importava com o que pensavam de mim,

Mas não esperava o destilar de um veneno

Que agiu rapidamente e por fim

Deixou em minha imagem um aviltamento.

Atraíram-me uma calúnia na perfídia

Que aos meus nobres amigos espanta;

A mentira pode até não ser dita por malícia,

Mas desmorona o prestígio e suspeita levanta.

Não desejo nada mais do que é meu,

Minha meta não é alcançada pela vingança,

Confio em mim, mas meu orgulho morreu.

Sigo com o otimismo invejável de uma criança,

Pois na corrida da vida a mentira perdeu

E sempre perderá, pois a verdade logo a alcança.

Ambição

Sabemos que ele não traz felicidade,

Mas sem ele não podemos viver,

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Andemos pela rua de uma grande cidade

E veremos pessoas a comprar e a vender.

A riqueza cujo cognome é o dinheiro

Não pode ter o supremo valor,

Que adianta ganhar o mundo inteiro,

Se não se realizar no amor?

Um amigo que trabalhava freneticamente

Disse-me: "isso é o que todo mundo diz,

Mas busca o que eu busco insistentemente

Não se deixe enganar, pois tudo o que fiz

Era a minha aceitação proeminente

De que serei milionário nem que seja infeliz".

Fugacidade

O que não se compartilha

Não tem sentido existir,

Uma estrela que não brilha

Não pode fazer ninguém sorrir.

O que é eterno não teve princípio,

Não há limites para o nada,

Seres antagônicos mantêm o equilíbrio,

A realidade do infinito sempre é buscada.

É impossível medir

A velocidade do pensamento,

Nem a luz o pode seguir.

Tão abstrato quanto o tempo

Nos deixa a nos dividir

Entre o conquistado e o intento.

Palavras

Certas palavras só têm

Duração até a revelação,

Se contarmos um segredo a alguém

Este passa a ter propagação.

Um mistério só é um mistério

Se algo lhe é oculto,

Desvendar é um deletério,

A esta palavra só resta o refugo.

Segredo e mistério são as fontes

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Cuja água límpida é o saber,

Para o infinito são as pontes.

É por isso que todo ser

Sempre observa o horizonte

Nunca alcançado, mas sempre a se ver.

Mãe

Sou fruto de teu amor imarcescível,

Desde a mais minúscula forma me conheces,

Fui crescendo em teu ventre, isto é incrível,

Nada seria se tanto zelo em mim não pusesses.

Mesmo depois de cortado o cordão umbilical,

Sou ligado a ti eternamente,

Nada que eu faça para ti é banal,

Conto-te minhas alegrias e te vejo sorridente.

Nunca poderei tirar-te da lembrança,

Se vivo é a ti que agradeço meu viver

Tu e meu pai revigorais minha esperança.

Sou livre, mas tenho que aprender

Que para ti serei sempre uma criança

Cercada de cuidados, pois nunca vou crescer.

Harmonia

Penetra em meus sentidos com desenvoltura

E faz minha alma dançar,

Cada nota é a certeza de uma vida segura,

Nada está fora de lugar.

Devaneio por montes e colinas,

De repente estou no meio de um oceano,

Cada gota d'água a tristeza elimina,

E percebo o que pode o ser humano.

A vida é como o pentagrama,

Suas notas dependem de nossa ação,

Seu ritmo de alegria nos inflama.

Seja lá qual for nossa opção,

Esta música seu fim só proclama,

Quando sua plenitude atingir o coração.

O Filho do Homem

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Dos céus há de descer a salvação

E encarnar-se neste mundo de tristeza,

Suas palavras escutadas em todo canto serão,

Mergulhando na vida em sua profundeza.

O mundo terá um rei e uma só nação,

Não haverá mais distinção da pobreza.

O Senhor para ti será perene luz,

Ovelhas sem pastor agora têm quem as conduz.

Ele é fonte inesgotável de sabedoria,

Restaurador da justiça e do direito,

Dos seus servos esplêndida alegria,

Os reconduz pelo caminho perfeito.

Penetra no coração de quem fugia

Tentando desviar-se de seus preceitos;

Neste momento principio a história

Do homem mais digno de toda glória.

O mundo esperava um messias

Que brotaria do ramo de Davi,

A terra com justiça governaria,

Sofrimento não mais haveria por aqui.

A lei do verdadeiro Deus restabeleceria,

A paz tão almejada iria vir,

Ninguém mais esperaria pelo céu

Trazido pelo Deus Conosco: Emanuel.

Um anjo apareceu a uma pura jovem

Chamada Maria e prometida a José,

O Espírito Santo com sua sombra a envolve,

"Para Deus nada é impossível, tenha fé”.

As dúvidas de seu esposo também resolve

A abrir caminho àquele que Filho de Deus é.

E assim se encarnou o Salvador

A maior prova de Deus e Seu infinito amor.

Como Rei por sábios magos foi aclamado,

Presenteado com ouro, mirra e incenso,

Por humildes pastores foi visitado

No meio de bois, vacas e jumentos;

É prova de que este Deus encarnado

Quis participar de nosso sofrimento.

Com Seu nascimento como nós se tornou,

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Verbo que se fez carne e entre nós habitou.

Mal nasceu já enfrentou dificuldades,

Por causa do poder o perseguiu Herodes;

Para um lugar longe daquela cidade,

No Egito ao colo de sua mãe ele foge,

Por um sonho José sabia dessa necessidade

Pois o menino, perecer não pode.

Para matá-lo o fizeram a crianças inocentes,

Longo lamento se ouviu de muita gente.

Avisado em sonho novamente foi José

Que podiam voltar, pois perigo já não existia,

Para a região da Galiléia na cidade de Nazaré

Levaram o menino e lá fizeram moradia.

Na Providência Divina esperaram com fé,

Pois Ela sempre nos auxilia.

Salvos já podiam ter tranqüilidade

De construir nova vida naquela cidade.

Como primogênito foi consagrado ao Senhor,

Levado ao templo para a circuncisão,

Um ancião pegou-o nos braços com amor

E deu glórias a Deus, seu nome era Simeão;

Sabia que Jesus também causaria dor,

Pois seria sinal de contradição;

De uma profecia Maria foi avisada,

Seu ventre teria a dor como a de uma espada.

Aos doze anos de idade foi levado a Jerusalém

Para comemorar a Páscoa junto com seus pais.

Quando eles voltaram notaram, porém,

Que junto deles Jesus não estava mais.

Depois de três dias encontraram-no como quem

Discutindo com os Doutores sabe o que faz:

"Por que estavam a me procurar?

Das coisas de meu Pai devo me ocupar!”.

No belo cenário da vida surge João

Que batiza anunciando o Messias esperado,

Com a água chama todos à conversão;

Jesus também por ele foi batizado

E se ouviu nas proximidades do rio Jordão:

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"Este é o meu filho amado".

Jesus agora com o fogo do Espírito irá batizar

A quem se dispuser à própria vida entregar.

Repleto pelo Espírito Santo Jesus foi ao deserto

E, como nós, também sofreu a tentação,

Mas tinha consciência do plano de Deus, o certo

E resistiu até mesmo à falta de pão.

Com isso novo caminho foi aberto,

Pois o poder de Deus estava em sua mão.

Somente o filho de Deus com tal proeza

Conseguiu provar toda a Sua Realeza.

Indo a Nazaré onde fora criado,

Como era Sábado foi à sinagoga;

Deram-lhe o livro onde Isaías havia falado

Que aos pobres se destinaria a Boa Nova:

"Hoje acontece o que foi proclamado",

Isto causou a todos muita revolta,

Mas Jesus já sabia que não tinha jeito

De em sua própria terra ser aceito.

Jesus desceu à cidade de Cafarnaum

E na sinagoga ensinava com autoridade,

Diante Dele espírito impuro nenhum

Deixava de reconhecer sua divindade.

Sabiam que antes dele por homem algum

Tais prodígios eram feitos naquela cidade,

Mas Jesus sabia que a sua missão

Não poderia se limitar a uma só região.

Próximo ao mar da Galiléia viu dois irmãos

Que a noite inteira não pescaram nada,

Jesus subiu na barca com André e Simão

E longe da margem à multidão Ele falava.

E quando jogaram as redes, após a pregação,

Grande quantidade de peixes era apanhada

E junto com seus amigos João e Tiago

Deixaram tudo e seguiram Jesus de imediato.

Em toda a região da Galiléia Jesus pregava

E se espalhava de tal maneira sua fama

Que ao deserto para orar se retirava.

Um leproso curado a todos proclama,

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Um paralítico descido do telhado perdoava

E o faz andar depois do: "levanta-te e anda".

Todos glorificavam a Deus e professavam sua fé:

Que enviado seria este Jesus Cristo de Nazaré?

Cristo, aos de virtude e sofredores, anunciou

A graça expressa para os bem-aventurados.

Nas parábolas do sal e da luz mostrou

Que nossas obras tornam o Pai glorificado.

Reafirmando a lei e os profetas confirmou

Que quem a praticar, grande será declarado,

Toda a lei não deixará de ser cumprida

"mínimo" é o que a faça ser transgredida.

Mostra que a cólera é o homicídio por palavras,

É preciso ter cuidado até mesmo com o pensamento,

Tem culpa quem faz sua mulher repudiada.

Em ocasião alguma é aceitável o juramento,

A violência em troca da mesma não leva a nada,

O amor aos inimigos da paz é um instrumento.

Assim se alcança do Pai a perfeição

Tratando todos como iguais para reinar a união.

Diante dos homens e de seu reconhecimento

É preciso ter cautela e humildade,

Deus vê o que está oculto no sentimento

Com a oração, o jejum e a caridade.

Ele providencia com nossa parte o alimento,

De ajuntar tesouros não há necessidade.

Ajuntemos as riquezas que ninguém rouba:

O amor que aumenta quando não se poupa.

Não julgar para não ser julgado,

Para os porcos pérolas não atirar,

O que se pedir a Deus será dado,

Ser-se-á tratado como aos outros se tratar.

Largo e fácil é o caminho errado,

Uma árvore é reconhecida pelos frutos que dá.

De que adianta falar belo da verdade

Se nas ações só se comete iniqüidade?

Um centurião se achou vil de em sua morada

Entrar o salvador que iria curar o seu servo,

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Porém acreditou que bastaria uma palavra,

Não necessitava que Jesus chegasse perto;

Em Israel igual fé não foi encontrada

Um novo tesouro então foi descoberto.

Em todo o mundo Sua Mensagem irá salvar,

Basta crer e dela nunca se desviar.

Para seguí-lo mostra que é preciso se despojar

Da família e de toda propriedade,

Pois não têm onde a cabeça repousar

E dos parentes não sabe novidade.

Noutra ocasião Jesus dorme a navegar

Com os discípulos em meio a uma tempestade,

Quando acordou provou que até mesmo a natureza

Reconhece a Sua Voz e Realeza.

“São os doentes que precisam de remédio”,

Jesus declara e chama Mateus a lhe seguir;

Ele é o noivo e dá aos discípulos o privilégio,

De numa nova vida de alegria prosseguir,

Livres da lei da escravidão: antigo tédio,

Vinho velho e remendo velho vai banir;

Vinho novo em barris novos se conserva

É feliz quem se converte e persevera.

Jesus demonstra que da vida é Senhor,

Para quem nele acredita faz ver e falar,

O povo é como ovelhas sem pastor;

Percebe que falta operários para ceifar.

Envia seus discípulos para com o mesmo ardor

Fazer como Ele fez para seu amor proclamar.

É preciso ser simples, porém prudente,

Qualidades da pomba e da serpente.

Jesus prenuncia toda a perseguição

Pela qual os discípulos vão passar,

Assim como ao mestre perseguirão,

Aos discípulos o mesmo se pode esperar;

Mas aqueles que ao corpo matarão

Não podem com alma arruinar.

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Sempre é revelado o que é escondido,

Nada de oculto deixa de ser conhecido.

Nada que pelo irmão se tiver feito

Ficará sem a justa recompensa,

Quem exerce a justiça e o direito

Também será perdoado de sua ofensa.

Os desígnios do Senhor são perfeitos,

Revelados aos pequenos em essência.

Se na vida o fardo a carregar é pesado,

A humildade e a mansidão o fará aliviado.

“O bem do homem está acima da lei,

O Sábado foi feito para nós e não o contrário,

Se estou errado porque neste dia curei,

Por que hoje retirais sua ovelha do buraco?

Se não é por Deus que demônios expulsei,

Como tal reino persiste separado?”

Se árvores boas plantas com alegria,

Frutos bons colherás todos os dias.

Escribas e fariseus lhe pedem um sinal,

Mas Jesus lhes denota a atenção,

Pois falava com autoridade sem igual

E sabedoria bem superior à de Salomão.

É preciso se proteger do espírito mau

Que pode liquidar com essa geração.

Quem da família de Cristo quer fazer parte,

Para a conversão nunca é tarde.

Jesus é o semeador e o homem é o terreno,

A abertura à Sua Palavra do coração

Poderá trazer frutos em número imenso.

O Reino é como um joio na plantação

Que deve ser arrancado no devido tempo

Assim as sementes boas não se perderão.

O Reino é igual ao pequeno grão de mostarda

Do qual uma grande hortaliça é originada.

O Reino dos Céus a um tesouro é semelhante

Pelo qual se abnega de tudo para o obter,

É semelhante a uma grande pesca que antes

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De prosseguir dos peixes ruins se deve desfazer.

Jesus alimenta cinco mil homens e doravante

Todo ser, pela partilha, melhor vai viver.

Pedro vai a Jesus que caminha sobre o mar

Mas sua falta de fé o faz afundar.

Mostra que a lei de Deus supera a tradição

E o que entra pela boca nada pode fazer,

Pois os males saem é do coração.

Na Cananéia exemplo de fé ele pode ver:

Humildade de quem come migalhas de pão.

E na Galiléia quatro mil homens vai satisfazer.

“É preciso discernir os sinais dos tempos

Incólume aos fariseus e seu fermento”.

Pergunta Jesus o que dizem a seu respeito

E percebe que poucos entendem a sua missão,

Um dos seus lhe responde de modo perfeito:

Pedro, fundamento da Igreja, de nome Simão.

Mostra que da vida não se tira proveito

Se não a se entregar inteiramente ao irmão.

Anuncia que na cruz finalizará sua vida

E após três dias a morte será vencida.

Em Jerusalém como rei é aclamado

Em sua entrada triunfal em um jumentinho.

Tendo os vendedores do templo expulsado,

Foi louvado por cegos coxos e pequeninos.

Que os mortos ressuscitam foi comprovado,

Amar a Deus e ao próximo é o Caminho.

Jesus condena toda forma de hipocrisia,

Pois um cego a outro cego não guia.

Ele pede ao homem prudência e fidelidade

E que coloque em prática todos os seus talentos,

Quem na terra sempre teve caridade,

Receberá a vida eterna no julgamento.

Uma mulher em Betânia agiu com humildade

Ungindo Jesus para o sepultamento:

Jesus se utilizava de todo fato

E profetizou com o perfume derramado.

Na última ceia já sabia da traição

De um de seus discípulos: Judas Iscariotes,

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Pois já havia um plano de conspiração

Armado por anciãos e sumos sacerdotes;

Nesta ceia fez da Eucaristia instituição

E sua memória permanece com sua morte

Sabia que seu rebanho seria disperso,

Mas a glória de Deus estava perto.

No Getsemâni Jesus ora insistentemente

E pede aos discípulos para vigiar e orar.

Pede que o cálice de dor se afaste de Sua frente,

Mas estava disposto à vontade do Pai aceitar.

Era chegada a hora de se entregar livremente;

Várias vezes encontra os discípulos a cochilar

Todos os dias Jesus ensinava no templo,

Mas ninguém o prendeu naquele tempo.

No Sinédrio arranjaram falsas testemunhas,

Para matar a Cristo de um motivo precisavam;

"Diz-se filho de Deus", alguém expunha

É a morte que merecem os que blasfemaram.

À frente de Pedro alguém se interpunha:

“Você é um dos que com Jesus andavam”;

Ao negá-lo, Pedro chora amargamente,

De sua fraqueza foi avisado anteriormente.

Levaram Jesus ao governador Pilatos,

Mas este nenhuma falta nele encontrou;

Expuseram ao rei Herodes todos os fatos

Que a decisão final ao governador deixou.

Lavou as mãos, não se achava culpado pelo ato

Que soltou a Barrabás e a Jesus condenou.

E o Rei dos Judeus foi escarnecido,

Flagelado, zombado e cuspido.

Puseram-lhe às costas uma cruz

E em direção ao calvário caminharam,

Obrigaram Simão Cirineu a ajudar Jesus

E pelas Suas vestes sorte lançaram.

Um dos bandidos se volta para a luz,

E rouba o céu que outros profanaram.

Coisas extraordinárias vieram a acontecer

Quando Cristo estava à sua alma a oferecer.

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Mulheres que lhe seguiram desde a Galiléia

Todos os fatos à distância tinham olhado;

Um homem rico, José de Arimatéia

Lembrava da esperança de que Ele havia falado;

A Páscoa se aproximava então teve uma idéia

O corpo de Jesus por ele seria sepultado.

Temendo o que Jesus falara da ressurreição

As autoridades colocaram guardas de prontidão.

Ao amanhecer do primeiro dia

Houve um grande terremoto,

Um anjo que de relâmpago se vestia

Deixou os guardas estarrecidos como mortos.

O que viram Maria Magdala e a outra Maria

Aos discípulos deixou receosos,

Aparições a Pedro e aos discípulos de Emaús

Vieram comprovar a ressurreição de Jesus.

Fechadas as portas por medo dos judeus,

Jesus se pôs no meio deles e os cumprimentou,

E cada um o Espírito Santo recebeu,

Fruto do amor do Pai que Seu Filho enviou.

Em Betânia subindo aos céus desapareceu

E a alegria a toda a humanidade retornou;

O mundo inteiro conhecerá a sua divindade,

Quem viu deu testemunho desta verdade.

Ainda hoje esta mensagem de alegria

É boa nova que se espalha a toda a gente,

Uma esperança para este mundo de agonia,

Onde se busca a felicidade impacientemente.

É hora de construir um mundo em que algum dia

Todo sofrimento esteja ausente.

Filosofia ou religião são estes versos,

Mais do que isso: são a história do Rei do Universo.

Presente, passado e futuro

Deus não fica à toa,

Participa de nossas angústias:

Esperamos por algo,

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Deixamos de viver o momento presente

E a saudade se faz permanente.

Buscar a Deus acima do ser,

Quem é que não pretende?

Se isso acontecer

Ninguém se arrepende.

Eis o que se sente:

Não podemos viver,

Sem ter na mente,

Eternamente,

Deus presente.

Meu Deus e meu tudo,

Ajuda-me a viver o momento presente.

Procuro a tua vontade

Viver sempre fielmente.

Aos poucos alimenta

Esta sede de plenitude.

Faz-me viver em ti plenamente

Aos poucos pela busca da virtude.

Enfim obrigado Senhor

Por tudo que dia a dia me concedes,

Por teu infinito amor

Que faz a terra ser celeste.

Dimensões do tempo

Sempre ou nunca,

Agora ou depois,

Hoje ou amanhã,

Sozinho serei dois.

O “eu” que fui,

O “eu” que sou,

O “eu” que serei,

No futuro três “eus terei?”:

O que esperava que fosse,

O que lembrarei que era

E o que ainda espera.

Não sou poeta nato

Somente vivo presente

Recordando o passado

Que não sei se vai

Existir realmente.

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O passado é o que insiste

O presente: não sei se existe

É o futuro que controla

Tudo que faço agora.

Tudo que esperei,

O tesouro que ajuntei,

A vida que sonhei,

É a prova de que sei

Que o caminho que escolhi

Comportava uma lei

Daquilo que não vivi,

E do que nunca viverei.

Sede

Quando falta a inspiração

Pego nesta caneta em vão,

Nesta hora a solidão

Toma conta de meu coração.

O jeito é deixar esta forma pobre

Que os meus sentidos recobre;

Deixar que esta vida sem sentido

Siga sem ser sentida

E aquilo que eu teria sido

Não influencie em minha lida.

A consciência que me falta

Não seja propensa a nada,

Pois a liberdade é que restaura

Esta sede de viver;

Deixando sempre de lado

A dor de ainda não ser

Este é preço que se paga.

Razão

Imarcescível, incomensurável

É o amor,

Incrível, inexorável

És senhor,

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Verdade, liberdade

Tanto faz,

Eternidade, afabilidade

Dando paz.

Ousadia, perfeição:

Esperança,

Alegria, doação,

Confiança,

Andar com fé,

Em Jesus,

Olhar para o céu

E sua luz.

O tempo e o lamento

Ao tempo que sempre me incomoda

Venho agora me referir,

Uma palavra que está sempre em voga,

Do vocabulário dos homens a escapulir.

Não sei qual é a sua duração,

Para ser sincero não sei medi-lo.

De pouco adianta a minha opinião,

Aquilo que faço penso ou digo.

Se ele acelerasse na tristeza

E na alegria pela eternidade paralisasse,

A vida seria uma beleza

De um céu que nada no mundo afetasse.

Agora paro para escrever estas linhas

De pensamentos a se desenrolar,

Mas quem no mundo que as palavras minhas

Poderão um dia ajudar?

Já dizia alguém: o tempo é relativo,

A vida é curta se movimentada;

A morte um dia vem este é o destino,

Ninguém consegue driblá-la.

Mas enquanto se vive não se ocupa de viver,

Apressa-se, procura-se não sei o quê;

A única ocupação da qual ninguém escapa

É a de ocupar-se de morrer.

Se apresso em acrescentar outros versos

Em minha elucubração sobre o tempo,

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Não viajaria pelos desertos

Que o vazio forma em meu pensamento.

Se me perguntarem o que espero

Com estes versos que estou a escrever,

Falarei pouco, mas serei sincero:

Nada pretendo obter.

Porém se na vida me interrogarem

Sobre o que sente o meu coração,

Direi que nesta dura lida

Que apesar de tudo é querida

Só há um vazio: a solidão,

Só há uma dor: a paixão.

Ansiedades

Amo a vida pela qual estou a sonhar,

Vivo sonhando com a vida que quero viver,

Sonho vivendo a vida a querer.

Quero amar,

Sonho viver,

Vivo o querer,

Amo o sonhar.

Liberdade do presente

Pensando na liberdade recôndita

Nos estigmas de uma efêmera vida,

Percebi que a dor é crônica

E jocosa é toda lida.

O homem que anda impingido

Num futuro frívolo ulterior,

No corolário de um mundo desenxabido

Fixa num conspícuo amargor.

Diante da cerceadora barreira

Que restringe a ostensiva liberdade,

A saudade do passado foi a primeira.

Para se deleitar na altiva eternidade,

Basta crer na doutrina verdadeira:

Somente o presente é a realidade.

Fadado pelo amor

Oh! Sentimento de uma vida desregrada

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És o bálsamo que sustenta todo vício

De uma liberdade não ostensiva embriagada

Nas volúpias de um mundo desenxabido.

Oh! Lamento de uma vida realmente vivida,

És do sentimento da renúncia o reflexo,

Da meta no início pretendida,

De um fulgurante sonhar mas desconexo.

Voraz, como o leão, és amor,

Fonte de toda a criação,

Radiante estás na mente do criador.

Da serpente és veneno, és o fogo da paixão,

Recôndito nos estigmas da dor

Dissolves o lamento e a solidão.

Procurando

Andei, andei a procurar

Alguém igual a ti,

Foi inútil, cansei de tanto andar,

No meu cansaço parei a silenciar

Aí sim, eu pude encontrar.

Como Sócrates de nada eu sabia,

Como Descartes tentava pensar,

Será que como o Buda eu poderia

Todas as minhas dúvidas eliminar?

Vaguei vendo vultosas criaturas,

Parei para pensar:

Quem criou tão diversas estruturas?

Meu coração estava a interrogar.

Vi-te nas aves, em seu cantar,

Nas plantas da terra.

Vi-te no imenso mar, no seu oscilar,

E em tudo o que ele encerra.

Andei, andei a procurar,

Alguém igual a ti,

Foi inútil:

Somente te encontrei,

Pois estás em todo lugar.

Ó Senhor amável e bondoso

Mais uma vez venho vos pedir

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A fé e um coração formoso

Para que eu possa melhor vos seguir.

Sei que minha fé é tão pequena,

Mas diante de vós ela aparece.

Sou como Tomé naquela cena

Ao ver-vos com fé amena,

Mas como o dele,

Meu coração também floresce.

A confiança em vós aumenta

E pelo seu exemplo

Ninguém de vós se esquece.

Nem que eu seja como Simão

Que ao vosso encontro caminhou no mar.

Que eu também encontre o meu irmão,

Ajude-o não só com a oração

Para assim minha fé aumentar,

Assim na terra também pela ação,

Poderei sempre a vós encontrar.

Sei que a fé de Pedro pouco durou,

Mas maior que a de muitos ela esteve.

Quando se pensava que a fé aumentou,

Andando no mar ele afundou

E de vossa parte uma ajuda ele teve.

Da mesma maneira vós nos ajudais

Para não afundarmos num mar como aquele.

Enfim, obrigado por tudo

Que hoje e sempre me concedeis,

Agradeço até mesmo pelo futuro,

Pois sem a vossa força nada serei!

Rosa revolucionária

Algo de novo aconteceu,

Não é extraordinário, mas é diferente:

Uma novidade apareceu

Em minha rua de repente.

Há uma grande multidão

Que a está a admirar,

Algo lhe toca o coração

E em meio a tanta confusão

Eu consegui me aproximar:

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Oh! Como é bela!!!

Quanto perfume exala!

Parece uma Cinderela

Numa realeza ilimitada.

Está resgatando o seu valor:

Como uma pessoa que é amada,

Quer que lhe reguem com o amor

De uma amizade que aos poucos é cultivada.

Eis uma linda flor

Que por sinal é muito formosa.

Como espantou a dor

Desta cidade triste e populosa?

Veja como é maravilhoso

O poder de uma bela e meiga rosa!

Fuga

Tente fugir para o deserto,

Embrenhe em um caminho incerto;

Corra, corra sem parar,

Mas não deixará de respirar

A essência presente em todo lugar,

Não visto, mas sentido como o ar;

Corra, corra, mas para onde for,

Nunca conseguirá fugir do amor!

Memória

A memória é um dom precioso,

Relíquia de inestimável valor,

Algo inerente ao ser,

Mas só se percebe como algo valioso

Quando se tem o temor

De alguma vez a perder.

Diante de toda reminiscência

Devemos ficar atentos,

Pois não é sinal de demência

Questionar os pensamentos.

É sinal de sabedoria

Buscar a realidade,

Pois nossa alma anseia

Pela suprema verdade.

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Quem sabe?

Talvez haja uma verdadeira felicidade,

Talvez não;

Talvez o ser humano saiba realmente amar,

Talvez não;

Talvez a dor seja efêmera na verdade,

Talvez não;

Talvez o destino pertença ao homem que sonhar,

Talvez não;

Talvez o que se pensa possa mudar a realidade,

Talvez sim, talvez não, mas não me posso ludibriar,

Ao menos desta vez, vou falar:

Talvez.

Convicções

Encontrar o caminho não é tudo

O que se espera da vida;

Ser simples, porém astuto;

Também é meta pretendida

Por quem sabe que o vulto

De quem passa pelo mundo

Não é sofrer a todo segundo,

Nem é a experiência vivida,

É o amor que foi plantado

Em solo bem fecundo,

Cuja fruta recolhida

Também será repartida

E trará novas frutas

Para a colheita bendita.

Contradições

O meu azar é não acreditar em sorte,

A minha sorte é não crer em azar,

Pois quem foge da vida procura a morte

E quem teme a morte limita o pensar.

O limite do infinito é a liberdade,

O princípio da eternidade é o seu fim,

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Usada de vários modos é uma só verdade,

O que é para todos não é para mim.

Numa vida cheia de vazio,

Para se ter alegria é preciso tristeza,

Apesar das pedras, desvio como um rio,

Encontro na razão um toque de beleza,

Pois na vida sempre confio

E de meu caminho sempre tenho clareza.

Way

I lost my way,

My life is mine

But I don’t Know

That to do

For my star to shine.

I find my way,

My life is astonishing,

My way is surprinsing

I found the happiness.

To love is to live,

To live is to dream,

To dream is to learn

That the life is a school.

Domingo de infância

Ligo a televisão que está em cima de tijolos empilhados na sala

Após escutar o plim-plim vou mudando de canal,

Meu corpo está cansado, minha mente mais ainda.

A quilômetros daqui, um rio, ainda não poluído, corre devagar

Enquanto alguém nele pesca em sua alegria serena e solitária.

Ouço o meu nome, minha mãe me chama para almoçar,

Que triste sina a das mães: dizerem quando os filhos devem estar com fome.

O cheiro que vem da cozinha me faz flutuar até lá,

Antes, porém, desligo a televisão de longe com um controle remoto.

Meu pai chega em casa e se senta num tamborete,

Enquanto solta os seus dois suspiros tradicionais liga a televisão,

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Da cozinha escuto novamente o plim-plim e me lembro: “hoje tem jogo do galo”.

Vou para a sala com o prato na mão e encontro meu pai alheio a tudo,

Segura absorto as contas que minha mãe lhe passou;

Que dura sina a dos pais: trabalhar para sobreviver

E fazer com que a família também sobreviva.

Na televisão anunciam novos aumentos,

Nessa onda, vão acabar cobrando impostos sobre o oxigênio.

Penso: “deveriam ser proibidas notícias como estas num domingo”,

Mas não falo nada.

Quando acabo de almoçar, vou para o quarto escutar Schumann e Tchaikowsky.

Enquanto meu pensamento viaja, encontra naquele rio o pescador já de saída:

Vai para casa sem levar nenhum peixe, mas leva a alma tranqüila e esperançosa.

Somente ser

Não quero a saudade

De um passado que eu nunca tive,

Não quero a ansiedade

De um futuro que não terei,

Não quero um ativismo

Que me faça desprezar o presente.

Quero poder parar

Sem que minha consciência mande: "ande".

Quero poder calar

Sem que minha consciência me force a falar.

Quero poder reconhecer que ‘o ser que sofre

Não sofre porque quer, mas porque é necessário’

Sem ser acusado de pessimista.

Quero buscar ser feliz

Sem que minha consciência me acuse de egoísta.

Quero poder contemplar o anoitecer

Sem me preocupar com o amanhã.

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Quero admirar, ao amanhecer, o arrebol

Sem me preocupar com o que fazer.

Quero poder ser, sem agir, nem dormir,

Só sentir, sem êxtase, o dia que passa levemente

Como o perfume de uma rosa levado pelo vento.

Quero estar em consonância com a natureza

Tal qual um ser outrora vivente

De cuja matéria outras vidas fazem uso.

Quero me entregar sem reservas, nem subterfúgios,

Tal como um peixe que se deixa levar pela corrente do rio.

E, no mais completo equilíbrio, não mais querer,

Reconhecer o criador e encontrar o sentido da vida.

História de qualquer um

Peço sua permissão

Para iniciar esta história,

Cuja prova comprobatória

Será a sua intervenção

Que dará a perfeição

A um ser que na verdade

Busca na adversidade

Esquivar-se da ilusão

Que compromete seu vigor

Aproveitando-se da dor

De quem sofre na solidão.

Quando pequeno já entendia

Que há sempre algo a aprender,

Nada se pode fazer

Para sair desta via:

Neste momento nascia

Meu senso de determinismo

Disfarçado no otimismo

Fingindo naquilo que dizia.

A partir daí então,

Passei a aceitar a convenção

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Que a minha sociedade estabelecia.

Não me julgue, por favor,

Se deixei de ser leal

Com o que não parece real,

Foi meu sistema defensor

Que me fez como um ator

Omitir o que sentia,

Pois certo me parecia

Envolver com bom humor

Toda dose de sofrimento,

Pois nada aproveito no lamento

Da ausência de um grande amor.

Como viu sou um ser humano

Que também possui suas incertezas

E apesar de grandes proezas

Também cometo atos insanos

Que mais parecem planos

Para me livrar das convenções

Estabelecidas pelas nações

E que causam desenganos,

Pois aceitas incondicionalmente

E inseridas em nossa mente,

São a razão de vários danos.

Pouco me vem à mente

Da primeira casa em que morei,

Dos brinquedos com que brinquei,

De meus primeiros dentes,

De quando falei corretamente

Algum vocábulo ensinado

Para que ficasse integrado

À comunicação com toda a gente.

Assim disparei a falar

Fiz amizades em todo lugar

Com meu jeito de criança sorridente.

Tudo era de se admirar

Para mim naqueles tempos:

Pipa, rio, jumento,

Tudo me fazia sonhar

Nesta hora veio despertar

A minha religiosidade,

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Pois sentia necessidade

De em algo me apoiar

Quando sentia medo

Ao lembrar, de manhã cedo,

De um pesadelo, ao acordar.

Quando fiz quatro anos de idade

Mudamos para um apartamento

E senti neste momento

Que perderia a liberdade,

Pois numa grande cidade

O espaço é limitado

E o dia-a-dia é programado.

Quando fui para a escola, o tempo,

Parecia da rotina sair,

Mas outra estava para vir

Como que trazida pelo vento.

Como era de se esperar

Muito pouco ali vivi

E, depois que dali saí,

Alguns fatos pude valorizar,

Como um ser que estima o ausente

E não os valorizava no presente

Passei a me recordar

Do padre, da catequista, dos amigos,

Da professora e de meus raros inimigos,

Mas ao passado não pude voltar.

Aqui, próximo à capital,

Minha vida parecia mudar

Mais do que eu poderia esperar

Da soma do que é trivial

Àquilo que não é normal.

Todos os dias aprendia

Como quem nada sabia

Do que no mundo é natural.

No lixo meus medos joguei

E a coragem que cultivei

Tornou-me a todos igual.

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Em busca de liberdade

Agi de outra maneira

Para que a independência financeira

Alimentasse a minha vaidade

Surgida já na pouca idade,

Mas a minha humilde condição

Fez-me desdenhar esta ambição,

Pois muita dificuldade

Minha família passava

E de mim ainda precisava:

Eis a minha realidade.

Nunca está satisfeito

O ser humano com o que possui,

E a ninguém retribui

O que conquista “por direito”,

Para seu único proveito.

Não consegui satisfazer

A sede de ter, prazer e poder,

E descobri que ser perfeito

É encontrar a alegria

Em cada momento do dia

Desde o acordar até quando me deito.

Voltado a um poder superior

Tomei uma decisão

Pensando ter vocação

De guia ou de pastor

Dos que sofrem com a dor

Da incerteza do futuro;

E buscando ser puro

Defini o que é o amor:

Entregar-se sem medida

Em toda circunstância da vida

Dando ao mundo o fraterno calor.

Nada é fácil, como sabemos,

Tal e qual como nos parece

E quando o entusiasmo desaparece

Surgem outros sentimentos

Que se transformam em lamentos

Do que não foi e poderia ter sido,

Da vida que poderia ter tido

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No surgir de novos intentos

Pela visão das várias opções

Que incentivaram novas ações:

Eis a fonte da liberdade que bebemos.

Epílogo

Em tempos nos quais o homem alcançou grandes conquistas principalmente no campo do saber, uma pergunta ainda paira no ar sem ter quem a responda incólume de refutações: o que realmente é a Felicidade?

Uns defendem que ela só poderá ser obtida em outra dimensão. Outros já a vêem presente no mundo. Não se pode cair no reducionismo de a considerar um simples desempenhar de funções, ou uma simples busca de prazer; “E, se os prazeres podem conduzir à felicidade, por que então não afirmaríamos que também os animais conhecem a felicidade, uma vez que todos os seus esforços tendem à satisfação de uma necessidade física” (Severino Boécio).

Há também os que defendem que a felicidade não existe, somente os poucos momentos felizes, mas como saber que momentos são esses? Como falar que a felicidade foi ou será? Isso seria admitir que ela não é. Afinal de contas, quantas pessoas ainda exclamarão com saudosismo: “Ah! Eu era feliz e não sabia!”; E quantas outras ainda viverão a ansiedade de uma felicidade que nunca se torna presente? E por falar em presente, já é tão difícil compreender o tempo (Agostinho, há muitos séculos atrás, já dizia: “tempo e eternidade são dimensões incomensuráveis”) como limitar a este a nossa tão precária noção de felicidade?

A constituição americana determinou como uma das leis o direito à busca da felicidade. Seria essa lei um auxílio nessa busca ao considerá-la como um bem

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comum ou uma maneira de reduzi-la ao hedonismo e ao egocentrismo visíveis no mundo de hoje. E como admitir tamanha ironia? Um país que, com seus ideais de globalização, massacra com inúmeros países para manter na hegemonia mundial. A ânsia na busca do prazer e o egoísmo não tornam o homem mais feliz, pelo contrário o mergulham no oceano da solidão cujas conseqüências são desesperadoras. Para Tomás de Aquino a felicidade do indivíduo, apesar de também ser refletida paulatinamente na vida pela delectatio, está ligada ao bem comum. Então, enquanto não se fizer justiça, não haverá felicidade. E como falar em justiça num mundo no qual grande parte da população vive sem as condições básicas para uma vida tranqüila? A antecipação consiste em fazer a terra ser um céu (desde que se entenda o céu como a plenitude da felicidade) e não se conformar com as convenções sociais mestres na arte de mergulhar as pessoas em felicidades ilusórias ou de fazê-las esperar por ela somente após a morte.

Para conquistá-la é necessário lutar fazendo com que a justiça predomine. É preciso não fechar os olhos para aqueles que são chamados de “perturbadores da paz estabelecida”. Será a verdadeira paz esta construída às custas da fome, da miséria e da exploração de grande parte da população mundial? Por isso, se dissermos que somos felizes, então deveremos admitir nossa alienação por não enxergar a situação do sofrimento dos que ajudam a construir o mundo ou, então, admitir o nosso egoísmo por vê-la e não fazermos nada para mudá-la. Para aquele que busca a verdadeira felicidade esta realidade deflagra e punge com veemência no peito.

Mas diante dos sofrimentos, não se pode desdenhar as pequenas coisas que atenuam a angústia de nossa incerteza diante da vida e dos questionamentos que esta comporta; já dizia uma professora de História da filosofia da PUC: “Os mesmos olhos que se fecham para a beleza da vida, também ignoram a miséria humana” (Sílvia Maria).

Dessa forma a Felicidade não é algo que depende de cada pessoa e ponto final, mas, é realidade buscada em comunhão para que aconteça na terra como reflexo da Plena Felicidade no céu. Do contrário, que sentido tem a vida se a sua vivência não estiver fundamentada em si mesma, mas se somente estiver sujeita ao incessante vir a ser? Em tempos de globalização há algo, que ao ser encontrado, deve se tornar global a toda humanidade: este algo é a Felicidade.

Livro II

Introspecção, loucura e devaneios

Primeira Parte:

Os cinco amores

Prólogo

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Olhemos para o passado. Com certeza não é simplesmente uma figura de linguagem dizer: “olhemos para o passado”. Na verdade, o enxergamos com mais nitidez a cada olhar, a cada experiência, a cada sofrimento. Contemplamos a ausência como se a tivéssemos mais presente que a própria presença. Olhemos para o futuro e nele enxerguemos tudo o que almejamos e que ainda não se faz presente.

Amemos ao proibido. Olhemos as convenções e experimentemos a sensação de nos desfazermos delas acreditando assim estar vivendo plenamente nossa liberdade e de repente ver-nos prisioneiros de nossas próprias convenções.

Sintamo-nos atraídos pelo diferente depositando nele nossa esperança de extinguir a monotonia da rotina e o tédio da mesmice. E, subitamente, percebamos as inúmeras pessoas que, seguindo nossos passos, acabaram por tornar o diferente generalizado na mesmice de antes.

Mergulhemos no incógnito pensando encontrar nele a explicação para as diversas perguntas que nos enlevam quando nos deparamos com a sensível realidade humana.

Devotemos ao efêmero a nossa existência dando a ela a contínua rotatividade do “ainda não - já se foi”.

Cinco amores, cinco tendências humanas que determinam suas atitudes.

Acaso ou providência?

Quanto mais escrevo, mais sinto vontade de escrever. Quanto mais falo, mais sinto vontade de falar. Quanto mais luto, mais sinto vontade de lutar. Quanto mais caminho, mais caminhos desejo percorrer. Percorri inúmeros países, tentando encontrar o sentido de minha existência. Existo, antes mesmo que vivesse, por isso, encontrei sentidos para a vida, mas não para a existência. Como falar de algo ausente se não fosse possível a sua presença? Pensava nisso todos os dias, vivia como um pássaro sem preocupações físicas, sondava o mistério.

Certo dia, depois de andar durante horas, eu avistei uma relva verde numa praça logo adiante. Seus arbustos eram pequenos e estavam cortados de modo a formar figuras geométricas. Sentei-me naquela relva calmamente, como se não quisesse machucá-la e, levantando os olhos para o céu, fechei-os imediatamente. O sol das três horas ardia sem cessar. Interroguei-me sobre a fonte da existência de fogo tão abrasador, e assim permaneci por mais algumas horas. De repente, aproximou-se um senhor maltrapilho aparentemente bêbado e me disse:

- Tu tem um dindim aí, ô chegado?

Repondi negativamente com a cabeça, mas, ao revirar os bolsos, encontrei uma moeda de dez centavos e entreguei-a àquele senhor, desejava me ver livre dele.

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Contudo, sentando-se ao meu lado, parecia adivinhar o que se passava em meus pensamentos e me disse:

- A fonte do calor é a mesma fonte da luz. Se você quer saber o que é a luz do sol, não é necessário ir até ele. Parece evidente, mas as pessoas nunca param para pensar no sentido da vida, mas, nem por isso, deixam de viver. Nem para tudo o que existe, mesmo que tenha sentido, é necessário que este sentido seja cognoscível.

Ao escutar aquilo, notei que aquele senhor não tinha hálito de um alcoólatra e não falava trocando as palavras como o faria se estivesse alcoolizado. Não tive coragem de lhe perguntar quem era, de onde viera, por que me dissera aquilo. Suas palavras jogadas ao ar fizeram eco em meu ser como o grito do alto de uma montanha.

Levantei-me, mas não fui embora, desejava escutar algo mais. Porém, como chegou, aquele homem foi embora e me deixou repleto de interrogações a seu respeito. Seria um profeta? Um sábio? Um louco?

Chegando em casa, tomado de ansiedade, me pus a escrever:

“Se pensarmos melhor a respeito das atitudes humanas perceberemos que todas elas são dotadas de incertezas ou, quando muito, de certezas ilusórias. Na verdade finge-se saber qual é o caminho mais certo ou engana-se em acreditá-lo como tal. Julga-se quem parece tê-lo encontrado, desta maneira supera-se o outro que parece tão indeciso num mundo onde somente alguns sabem o que é certo. Todos ficam atentos àquele que diz ter encontrado o seu caminho e estão prontos a, no

primeiro deslize, na primeira incerteza, dizer com firmeza de quem tudo sabe: “eu sabia que este não era o seu caminho!”. Todas as pessoas sabem qual não é o caminho do outro, mas ninguém indica qual é. O que não se pode refutar é a tendência constante em intrigar os outros com os seus medos camuflados numa aparente certeza. Portanto, é verossímil que é mais fácil descobrir o que não é a o que realmente é. Desta forma, uma bola nunca será um cavalo e um cavalo nunca será uma bola; mas o que é o cavalo? A definição nos vem à mente: “um animal quadrúpede usado como meio de transporte de pessoas e objetos”. Se ele é definido por sua utilidade, isso demonstra que num local no qual ele não serve a tal intuito ele não é tido como um cavalo, mas, se ele é definido como quadrúpede, após um acidente no qual perdesse ao menos uma de suas pernas, deixaria de ser um cavalo. Com tudo isso se conclui que a vida é dotada de mais incertezas que de certezas (se é que estas existem). Existe um universal por trás da existência?”.

Cochilei em cima das folhas nas quais escrevia como um bêbado a caminhar sem rumo. E sonhei com a praça onde estive naquele dia. Não tinha a mesma beleza, o sol não brilhava e, olhando para o céu, nada podia enxergar. No lugar da relva verde, havia um cascalho grosso e cheio de pedras pontiagudas. Tentei me virar, mas não consegui. Tentei voltar e, mergulhei no oceano. A água cobria todo o meu corpo e eu não conseguia me mover, como uma pedra ia para o fundo e, quando não pude mais prender a respiração, acordei. Estava todo molhado de suor e meus olhos ardiam. Com certeza estava com febre. Quando acendi a luz, caminhei lentamente até a cozinha, tropeçava em tudo, pois vista

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estava completamente embaçada como vapor de água em vidro. Bebi um copo de água e voltei para a cama.

Mergulhando em mistérios

Aquele dia não tinha nada de especial. O sol transmitia o mesmo calor do dia anterior, as pessoas corriam apressadas pelo centro da cidade e eu, cansado do trabalho fatigante que nada me levou além de minha sobrevivência, desfrutava o descanso de umas merecidas férias. Ao ir para o banheiro, visualizei-me no espelho e sorri. Neste instante pensei e falei em voz baixa: “quem me vir fazendo isso me julgará louco”. Todavia ao sair do banheiro sentei-me no sofá. Era sexta-feira e nada havia planejado para aquele dia. Continuei a refletir: “loucos são aqueles que não admitem certas ações julgando os seus autores, mas as praticam pensando estarem incólumes de julgamentos”. Então, lembrei-me do homem visto no dia anterior e pensei: “talvez o encontre naquele lugar, há pessoas que são prisioneiras de seu próprio metodismo”. Imediatamente saí, contudo não sabia o que desejava encontrar.

Caminhar é preciso, mesmo que não se saiba onde chegar. Mas ninguém pode negar que algo inquieta o ser humano e o faz trilhar por caminhos nunca imaginados. O dia estava nublado, o céu estava escuro, choveria em pouco tempo. Segui até a praça onde estive no dia anterior e deitei-me na relva até que apareceu um homem bem trajado e sentou-se ao meu lado. Sua aparência não

me era estranha, mas não o reconheci imediatamente. Aquele senhor, perguntou-me educadamente:

- Você poderia me dizer quantas horas são?

Respondi-lhe que saíra de casa sem relógio, pois não queria ser prisioneiro num dia de folga. E ele me respondeu:

- Você está enganando si mesmo se pensa conseguir se livrar desta convenção temporal, se reparar bem, verá que ausência de seu relógio lhe incomoda.

Naquele instante, reconheci o senhor que encontrei no dia anterior. Trajado garbosamente era quase irreconhecível para mim. Contudo, tornei-me mudo novamente até que ele me disse:

- Venha comigo!

Segui-o até um lugar estranho. Passamos por uma favela e vi crianças brincando próximas a um esgoto a céu aberto. Os bares estavam lotados e à porta de algumas casas duas ou três senhoras conversavam e riam altamente. Ele me disse:

- O que você vê?

E eu respondi:

- O que você quer que eu veja? Por acaso quer despertar em mim compaixão por essas pessoas?

E ele respondeu asperamente:

- Elas não precisam de sua compaixão; antes, você precisa da compaixão delas. Elas não sabem o que fazer da vida, mas o reconhecem sinceramente, contudo você

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finge saber o que quer da vida, mas está mergulhado em dúvidas a respeito de tudo o que acreditava fielmente.

Como poderia alguém saber tanto a meu respeito? Nem mesmo eu percebia em mim tais atitudes, mas, refletindo melhor, as reconheci claramente. Todavia tudo ainda era ofuscado por uma abóbada de mistério. A luz daquela verdade ofuscava minha visão. Ainda não tinha coragem de perguntar o que queria aquele senhor com aquelas atitudes, já que, nem mesmo eu saberia explicar o motivo que me levou a seguí-lo.

Seguimos adiante e atravessamos uma pinguela; ao chegar ao outro lado do córrego, senti um forte odor, estávamos no lixão da cidade. Então, avistei algumas crianças catando no lixo garrafas de plástico e tudo o que era reciclável. Senti uma enorme tristeza em perceber tão grande descuido social e disse:

- Onde está o governo numa hora dessas, não olha para a situação dessas pessoas!

Novamente, o senhor a quem acompanhava disse-me efusivamente:

- Já disse que não lhe trouxe aqui para despertar-lhe compaixão por essas pessoas. Aliás, delegar a outros a sua responsabilidade por esse mal não é compaixão, é hipocrisia.

Fiquei sem palavras. Novamente aquele senhor havia me mostrado a minha vil limitação. Mas continuava a me perguntar o que ele queria com aquela atitude.

Seguimos adiante e chegamos a uma cabana localizada num pequeno sítio próximo dali. O tempo

passara rapidamente e eu apresentava sinais de fraqueza pelo longo tempo que estive sem nada comer. Ali conseguia respirar novamente sem interferência da poluição nem do mau cheiro do lixão. Sentei-me numa pedra e notei que aquele senhor entrava na cabana. De lá saiu uma mulher jovem e me serviu um pedaço de pão que aceitei sem relutar, mesmo não gostando de pão. Silenciosamente ela olhava-me com olhos fulgurantes. E eu comecei a imaginar novamente o que estava me esperando. Comi aquele pedaço de pão e minha garganta estava seca. Sem que eu falasse, o senhor que me levou até lá, saiu da cabana com um copo d’água e lho entregou a mim. Aquilo parecia um manjar dos deuses, mas era o prenúncio do que estava a vir.

Começo das inquietações

Saímos daquele sítio onde, um pão e um copo d’água tomaram o grande significado da força para a caminhada. Caminhamos por horas sem parar. Eu, silenciosamente, temia falar algo mais e acabar tropeçando em minhas palavras como o fizera das outras vezes. Chegamos até uma caverna onde passamos a noite. Mal escurecera e eu caíra num sono de pedra. No outro dia, pelo amanhecer, continuamos a caminhada. Meu corpo não doía, o que me parecia estranho já que eu dormira sobre o chão de pedra.

Chegamos até a nascente de um rio. Lá, molhei as pontas dos pés exibindo minha onipotência diante de um rio que agora não tinha mais de um metro. Passamos pelo

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meio de um matagal e chegamos até uma cachoeira. Era enorme a altura na qual nos encontrávamos. E o rio que havia visto em algumas horas, agora tinha uns cinqüenta metros de largura. Pensei novamente e resolvi arriscar algumas palavras:

- Este rio é a prova do que alguém já falou: “os primeiros serão os últimos”. Lá atrás ele parecia um frágil córrego humilhado, mas aqui ele demonstra a onipotência de um grande rio que tudo pode arrastar.

Ele, novamente, olhou-me com ira, mas disse calmamente:

- Você se acha superior a tudo, pensa reconhecer a verdade que parece maleável ao seu bel prazer. O evidente não existe.

Irritei-me desta vez e parei imediatamente gritando. Minha voz fazia ecos pelas montanhas e, quanto mais eu gritava, de mais entusiasmo se apoderava minha voz:

- E você não se acha superior, conhecedor da verdade? Por que então insiste em refutar o que eu digo a todo o momento...

Ele não se virou. Parou e, naquele momento senti que reagiria ao que eu lhe dizia, todavia, após alguns minutos, continuou a caminhar. Não compreendi o motivo de tal atitude, na verdade, não compreendi nem mesmo o que me levou a seguí-lo novamente. Havia algo a ser descoberto por mim que aquele senhor compreendia perfeitamente, só não sabia o quê.

Quando saímos daquela floresta, chegamos novamente no sítio onde eu havia estado no dia anterior. A mulher que me servira o pão e a água veio nos receber à porta, estava linda, colocara um vestido cujo decote lhe realçara os seios e seus cabelos, agora soltos, me deixavam como se eu tivesse acabado de me transformar em pedra pela magia de Medusa. Entramos e nos sentamos à mesa. Grande número de pessoas se assentou conosco à mesa e, foi servido um grande banquete. Tudo acontecia tão rápido que nem mesmo pude notar que já estava me embriagando com o vinho servido cujo sabor despertava ao paladar a ânsia da insatisfação. Dancei com a mulher que nos recebeu, meus pés pareciam voar pelas alturas e, quando me sentei, novamente lembrei-me que nunca dançara em minha vida. Tudo era tão estranho, contudo, a quem perguntaria o que estava acontecendo? O que me responderiam? Por acaso você não sabe o que está fazendo aqui? Seria admitir que agi sem conhecer o verdadeiro motivo de minhas atitudes. Não, ninguém poderia saber a angústia da incerteza que se apoderava de mim numa festa onde todos sorriam e festejavam alegremente.

Paz na incerteza

No amanhecer daquele dia, fui despertado pelo canto de um galo. E me levantei assustado. Estava ao lado da mulher com quem dançara naquela festa, mas não me lembrava de mais nada, além disso. Levantei-me rapidamente passando as mãos pelas roupas amarrotadas e saí. O brilho do sol ofuscava minha visão e eu caminhei em direção a um pequeno lago. Lá permaneci por horas.

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Uma estranha paz tomava conta de meu espírito. Não questionava a mim mesmo sobre nada do que acontecera naqueles últimos dias, parecia que havia deixado todo questionamento pelo caminho enquanto caminhava. Até que surgiu o homem que me levou até aquele lugar. Parecia determinado a me dizer algo. Foi assim que minhas inquietações retornaram ao meu âmago.

- Acredito que já esteja pronto para escutar o que eu tenho a lhe dizer. Não deixe que perguntas sem sentido atormentem-lhe a alma. Você caminhou até aqui, mas até aqui não chegaria se parasse pelo caminho a fim de resolver as dúvidas que lhe surgiram no caminhar. Agora poderá compreender que não se conhece a sabedoria a não ser que se esteja maduro para conhecê-la. Assim como uma ave não pode voar antes que lhe nasçam penas, você não poderia conhecer a verdade sem que lhe nascesse o sentido para buscá-la e o sentido do sentido.

Compreendi então que realmente eu estava certo. Havia algo por ser descoberto por mim e aquele era o momento. Então perguntei:

- Diga-me o que guarda, a jóia da verdade é a mais almejada por mim, não ma esconda.

- Você tem penas para voar alto? Compreende que alcançar a verdade é como chegar até o sol: alcança-se o horizonte, mas nunca se retorna admirá-lo como antes?

- Explique-me melhor. Começo a não compreender o que quer dizer com isso.

- Eu não quero dizer, eu disse. Todo homem busca incessantemente alcançar o horizonte, o avista sonhador, navega e caminha sempre em sua direção, mas nunca o

alcança, pois se o alcançasse não mais o admiraria como antes a menos que voltasse atrás.

- Diz então, que não vale a pena encontrar a verdade? Ela não é o que mais se busca na face da terra?

- Não coloque palavras em minha boca. A verdade é como o sol, seu calor queima e punge, mas ela dá a consciência que antes não se tinha. Muitas vezes sentirá que era melhor viver iludido a reconhecer a verdade, mas não se arrependerá, pois quem se arrepende volta atrás e você não mais caminhará, pois o sentido do sentido foi encontrado.

Então meu espírito se animou e eu disse:

- Não há mais nada no mundo que me faça viver. Se eu não encontrar a Verdade prefiro morrer. Sou uma ave pequenina na verdade, mas já tenho as penas das quais me falaste.

- Prepare-se para uma viagem de ida sem volta. Para onde for não voltará nem sequer no pensamento, pois voltar no pensamento é voltar na realidade.

Naquele momento iniciou a mais eloqüente de todas as elucubrações. A verdade seria descoberta ou melhor, a mim manifestada, e seu fogo me queimaria.

Amor à ausência

- Pensando no cotidiano lembre-se das vezes em que se tende a valorizar a ausência. Aliás, o ser humano é um amante da ausência. Quantas vezes ainda ouviremos

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alguém dizer: “Eu era feliz e não sabia!”. Valoriza-se tanto aquilo que já não é, isto é, o passado; como também, valoriza-se aquilo que ainda não é, isto é, o futuro. Deixa-se de viver o presente para se apegar à saudade do passado, que hoje parece muito melhor do que foi; deixa-se de viver o presente para se apegar à ansiedade de um futuro incerto e que não cabe a ninguém decifrá-lo. Quantas pessoas hão de prosseguir em sua busca de um futuro que nunca chega? Enquanto isso, lotam-se as casas de tarôs e búzios, alegra-se ou entristece-se com a notícia dada pelo horóscopo do noticiário, atribui-se toda a vida dada a nós e que nos confere a verdadeira liberdade ao acaso da sorte ou do azar. Que outro exemplo poderíamos mencionar como “amor à ausência”? Quantas pessoas somente valorizam o ente querido após a sua partida para junto de Deus? (para os ateus ou agnósticos esta ultima frase fica na função de um eufemismo). É nítido nos velórios a mesma observação: “Fulano era tão legal!”. Depois que se morre todos são tomados por santos. Esta é a maior prova de que se ama a ausência. E mesmo se se admitir uma vida após a morte, estar-se-á dando a maior prova de amor à ausência, já que esta está fundada em algo um pouco obscuro à maioria das pessoas mesmo às mais devotas da ressurreição.

Então, aquele senhor que ousei seguir me empurrou repentinamente. Caí no lago e, como não sabia nadar, já estava quase me afogando quando com um pedaço de bambu ele me alcançou e eu pude sair. Tremendo de frio e de ira saí do lago e comecei a lhe jogar em face o meu furor. Ele não dizia coisa alguma,

seriamente deixava que eu acabasse com minha lamúria. Depois continuou:

- Você respira a todo o momento e não pensa o quanto é importante o ar que respira. Pela experiência de minutos atrás poderá contemplar em você o amor à ausência que o fez valorizar de tal maneira algo de que nem notou a importância a ponto de quase desistir de sua busca. Uma namorada ou namorado que se foi, um emprego que se tinha, a saúde de tempos de outrora, o ar tão abundante e tão escasso aos mergulhadores, alpinistas e náufragos, o passado que não volta mais, o futuro que nunca chega... tudo isso é prova de que a ausência é presença mais nítida do verdadeiro valor das coisas que são, que eram e serão. Afinal de contas, encontramos em todas elas a perfeição não perceptível anteriormente. Lembra o que lhe disse quando afirmava naquela praça que você não andava com relógio pelo subterfúgio de não ser prisioneiro do tempo num dia de folga? Várias vezes, durante nossa caminhada, notei que você olhava para o braço como se quisesse saber quantas horas seriam. A ausência de seu relógio o aprisionou mais ao tempo que a sua presença. Quando chegamos a esta casa, após caminhar longas horas, você bebeu um copo d’água e comeu um pedaço de pão dando-lhes um supremo valor. Verdadeiramente, não faria isso se não percebesse a falta que lhe fizeram a satisfação de sua sede e de sua fome.

- Como pode a ausência interferir tão fortemente a se tornar mais presente que a presença? Pode-se reconhecer a presença pela presença e não por sua ausência?

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- Certamente a mente humana não é capaz de compreender a presença, pois esta tem o espaço curto do salto do futuro para o passado. Mas isto não é ruim, é esta ânsia pelo futuro e este saudosismo pelo passado que são o combustível da vida do homem. Aquele que compreender o que você compreenderá paulatinamente neste momento, perderá o sentido do sentido, pois a busca terminará com o encontro do que se buscou.

O sol já estava a pino, eram doze horas. Aquele homem levantou-se do lugar onde sentara e eu, levantando-me em seguida do lugar onde permaneci por horas a escutar palavras que não tinham o tom do convencimento, pensei: “ninguém precisará me convencer de que esta pedra está aqui, eu mesmo a vejo. Não é preciso que eu acredite em algo evidente. As palavras que escutei não me persuadiram da verdade, apenas apontaram para algo que eu já observava desde a mocidade”. Alcançando aquele que se tornou um mestre para mim resolvi fazer-lhe uma pergunta que havia tempo estava guardada, como uma pedra de valor incógnito da qual não se abstêm nem mesmo nas grandes viagens:

- O ser humano é amante da ausência. Ama a tudo o que um dia esteve presente concretamente e ama àquilo que um dia se fará presente. Mas, como se poderia explicar a paixão com a qual lutaram os revolucionários enfrentando a morte e o sofrimento? O que buscam na verdade? Como explicar o ardor de suas atitudes por algo que não é presente e que nem mesmo tem-se a certeza de que um dia se fará presente?

Ele olhou-me pusilânime. Pensei ter dito algo fora de contexto em relação à abordagem feita anteriormente e

decidi não esperar pela resposta. Contudo, após alguns segundos, ele sentou-se no pasto no qual caminhávamos em direção à cabana e esperou que eu me sentasse:

- O que você sentiu quando olhou em meu rosto um ar de desaprovação do que eu falava?

- Senti que tinha dito algo desconexo.

- E o que faria se eu não lhe respondesse coisa alguma?

- Desistiria da pergunta para não me parecer tolo diante de você.

- Tolos sim são aqueles homens que almejam ao infinito, mas não param para contemplá-lo. Tolos são aqueles que no silêncio de suas incertezas permanecem como senhores da verdade. Você, ao desistir da pergunta que me fez, demonstrou amar a ausência, pois esta lhe seria mais cômoda. A ausência da resposta à sua pergunta não desfaria o sentido da mesma. Logo, pode-se concluir que a pergunta está embasada em algo ausente que nem mesmo se sabe se se tornará presente. A diferença de você e o revolucionário do exemplo que me propôs como questão é a paixão pela qual este busca o que almejou desde o início centralizando nisso todo o sentido de sua existência.

Senti naquele momento que fui incoerente com minhas idéias. Não fui capaz de resistir nem mesmo a alguns segundos de uma provável desaprovação do que dizia. Percebi que, na verdade, buscava camuflar minhas dúvidas pelo silêncio. Não fui sincero comigo mesmo, mas alguém foi capaz de me mostrar esta deficiência.

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Após alguns segundos, porém, entendi o porquê de minha atitude e disse rapidamente:

- Se eu desejava conhecer mais não poderia interromper aquela análise com perguntas vãs.

Ele olhou-me ternamente e me disse:

- Não há no mundo uma pergunta que seja vã. E podemos ir além disto, não há nada no mundo que seja vão: tudo, mesmo que não tenha resultado imediato ou o esperado, sempre serve como aprendizado. Que sentido tem o sofrimento? Alguém o busca? No entanto, através de quantas vicissitudes o ser humano ainda há de traçar novos caminhos e quantos deles só existiram na idéia de algo ideal, mas impossível de ser realizado? Suas perguntas, se forem sinceras e sem o orgulho de quem já sabe a resposta, revelarão a sabedoria recôndita em você.

Já era tarde, esqueci-me de que já havia horas que não comera nada. Lembrei-me de que dias atrás deixei a minha casa sem a ela retornar. Aquele homem reconheceu a minha decisão ao me acompanhar caminhando em direção à saída daquele sítio, agradeci a hospitalidade e fui para casa.

Amor ao proibido

Voltando para casa. Passei pelo caminho percorrido por mim e aquele homem. Um homem, no meio da rua, gritava louvores a um terrorista que derrubou duas altíssimas imponentes torres nos EUA. Como fiquei longe de casa durante dois dias, senti-me

perdido. Será que aqueles fatos que ouvira eram verdadeiros ou uma mera insanidade de um idealista? Senti uma enorme ansiedade em chegar em casa e comecei a andar mais depressa. Quando cheguei, quase perdi o senso da razão. Minha casa estava toda revirada e meus aparelhos: som, TV e computador, tinham sido levados. Minha vizinha diz ter pensado que eram parentes meus os que os levavam e nem mesmo imaginou uma possibilidade de roubo em plena luz do dia. Estupefato, olhava para a mesa e a estante agora vazios. Quase cheguei a culpar o homem que me fez ausentar dali por aqueles dias até que lembrei do que ele me disse naquele mesmo dia: “o ser humano é amante da ausência”. Estaria apegando-me à ausência de meus aparelhos, mais do que um dia apeguei à sua presença? Minutos depois, já não tinha a revolta de antes. Mesmo perdendo algo, pude conquistar muito, pois, de que vale no mundo tudo o que se ganha com suor se não se souber bem aproveitar? Estas reflexões amadureciam em mim e me faziam trilhar no pensamento por caminhos antes desconhecidos. Havia ganhado o sentido para tudo o que fazia e possuía e, nada no mundo, poderia ter valor semelhante.

No outro dia, levantei tarde, meu corpo doía e meu estômago queimava dando-me náuseas. Pensei em não encontrar o meu, a partir de então, mestre da vida, mas impacientei-me em ficar em casa deixando tantas dúvidas sem resposta. Rumei ao sítio; chegando lá, percebi que a cabana na qual estive, tinha algo diferente, não sabia explicar o quê, mas havia algo diferente. Perguntei à moça que me atendera das outras vezes e estava parada à porta chupando uma cana-de-açúcar:

- Aquele homem que me trouxe aqui está?

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- Não sei do que você está falando.

- Antes de ontem estivemos aqui. Aliás, fomos à floresta e passamos uma noite por lá, no outro dia, quando voltamos houve uma festa, eu dancei com você, dormi e acordei ao seu lado...

Fui contando tudo o que havia acontecido. Repentinamente, pensei: “se ela estava aqui por que é que eu estou lhe explicando o que aconteceu?”. Então perguntei:

- Não se lembra? Ou eu estou sonhando?

Naquele momento, meu mestre saiu da cabana e disse:

- Já é tarde, pensei que não viria.

Agora, eu é que não compreendia nada. Por que aquela senhora não confirmara o que eu dizia e nem sequer parecia se lembrar de mim. E foi essa a minha primeira pergunta. O mestre, olhando-me com olhar de sarcasmo, disse rindo:

- Até quando você vai se prender ao óbvio? A vida não é somente a visão que se tem dela. É preciso estar atento para não cair em armadilhas.

- O que você quer dizer com isso?

- Eu novamente não quis dizer, eu disse. Você, ao chegar aqui, buscava algo, mas não sabia o quê. Quando uma moça lhe serviu um pedaço de pão, aceitou-o sem cerimônias, mas não reparou em seus olhos. Quando voltamos da floresta, você dançou, se embriagou e

acordou ao lado de uma moça. Em verdade, nem mesmo você sabe o que aconteceu naquela noite.

De nada valia minha negação. Ele já havia compreendido muito mais do que eu imaginava. Contudo, eu desejava saber o por quê de tantos fatos fazerem parte de minha vida naqueles últimos dias e disse:

- Vejo que você me conhece mais do que eu mesmo posso me conhecer. Sabe que eu busco respostas e, para muitas obtive enquanto o escutei, por isso, explique-me: o que aconteceu? Já não agüento mais a ansiedade.

- Você continua preso ao tempo. Liberte-se, só assim você compreenderá que não há motivo para esperar o depois, ele acabará logo depois. Todavia, vou lhe satisfazer: quando chegamos aqui, minha prima lhe atendeu e, com ela você dançou durante a noite e dormimos todos no quarto. Éramos oito pessoas, mas todos foram embora mal o galo cantou. Hoje, quem lhe atendeu, foi a irmã dela, por isso não compreendeu o que havia acontecido.

Percebi então, como minha imaginação fabricara fatos que na verdade não aconteceram e perguntei:

- Então, não aconteceu nada... quero dizer...

- Não se aflija, eu sei o que você pensou e é sobre isso que vamos especular: o amor ao proibido. Mas antes você me responderá algumas perguntas. Você sabia quem era a moça que lhe serviu e que com você dançou?

- Não.

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- Passou-lhe pela cabeça que fosse minha esposa ou irmã?

- Não!

- Mesmo que você não admita, você se desvencilhou de tais reflexões a partir do momento em que viu outras possibilidades para satisfação de seus interesses. Dessa forma, todo ser humano acaba se perdendo pela sua tão precária noção de liberdade.

Então, tentando corrigir um erro involuntário, disse-lhe com ar de humildade:

- Compreendo que fui imprudente e, por momentos, deixei de pensar nas conseqüências de minhas ações.

- A humildade é necessária, mas não é tudo. É preciso juntá-la à sagacidade. Mas sua atitude demonstra nobreza, e me faz acreditar que você está pronto para escutar o que eu tenho a lhe dizer.

Senti uma estranha alegria tomar conta de meu ser. Era preciso que alguém me dissesse que eu estava no caminho certo e, de certa forma, animei a prosseguir por causa daquelas palavras. Sentando-me escutava-o como um filho que escuta os últimos conselhos do pai que está para partir.

- Aquilo que não é aceito convencionalmente é tomado por uma mitificação inigualável. Muitas pessoas por tentarem fugir às convenções são chamadas de loucas, mas, por assim agirem, são os maiores exemplos de liberdade experimentados. O que é a convenção social senão um cerceamento da liberdade? Aqueles que se

tornaram livres das pessoas muitas vezes caíram na pior prisão até então conhecida: si próprios. Estar preso a si mesmo é prender-se ao mundo, libertar-se de si mesmo é libertar-se do mundo e conferir à vida a genuína liberdade. Neste caso o Amor ao proibido é sinônimo de liberdade.

- Uma ave poderia por ventura voar desapegando de suas asas? Como posso ser livre se reconheço em mim as necessidades vitais ligadas à natureza humana?

- Depende do que é para você uma necessidade vital. Há coisas que contribuem para o prazer do homem, mas o escravizam. Por isso, existe outro tipo de amor ao proibido: nem sempre amar aquilo que é tomado por proibido na sociedade é em si a liberdade, antes se deve ter em mente que esta atitude é o impulso primeiro do ser humano. Na verdade, aquilo que não se pode fazer parece muito melhor que aquilo que é permitido. O reflexo é vigente: as traições aumentam paulatinamente apesar de tantas tentativas de moralização (todavia não podemos deixar de lembrar que muitas tentativas de moralização foram feitas por pessoas que na verdade escondiam algo em relação àquilo que tentavam “moralizar”), a sede em ter o que é do outro é disfarçada pela busca individual de realização pessoal e toda lei parece mais um convite ao desrespeito que à ordem social. Desta forma, amar ao proibido pode determinar a liberdade humana, desde que signifique o desprendimento das convenções pré-estabelecidas pelo mundo, ou a sua prisão aos primeiros impulsos imanentes em seu ser.

O dia correu rápido. Cada palavra daquele sábio homem mergulhava-me em reflexões antes feitas por

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mim. Já não desejava saber quem era aquele homem e com que autoridade conseguia persuadir-me da verdade. A partir daquele dia, passei a freqüentar o sítio em horários regulares: chegava assim que o sol despontava no horizonte e saía às doze horas em ponto (voltei a utilizar o relógio).

Amor ao diferente

Uma semana se passou e os monólogos daquele homem tornaram-se prolixos e pedantes. Já não compreendia o motivo que me levou a escutá-lo todos os dias como um aluno assíduo. Numa terça-feira, o dia amanheceu chuvoso e decidi não levantar da cama. O dia se passou em completo tédio. Tentei escrever, tentei distrair-me observando as crianças que brincavam na rua, tentei ler um pouco, mas nada consegui fazer, estava enfastiado de tudo. Quase no fim da tarde, comecei a refletir sobre aqueles últimos dias. Buscava respostas para inúmeras perguntas e acabei me deparando com outras pelo caminho. Quem na verdade era aquele homem? Por que o segui sem relutar? O que ele queria com aqueles discursos? Por que parecia reservar algo para mim?

Inquieto como estava, saí rapidamente e decidi ir à casa daquele homem e fazer-lhe todas as perguntas que deixavam meu espírito em enleio. Quando lá cheguei, encontrei-o sentado diante de uma árvore destruída por um raio na tempestade da noite anterior e lancei-lhe ao ar muitas perguntas diante das quais ele simplesmente balançava a cabeça afirmativamente como se esperasse

que elas aparecessem. Subitamente, percebi que fizera a ele perguntas relacionadas às minhas reações diante de suas palavras e dos fatos ocorridos. Alguma coisa dizia-me que ele me conhecia mais do que eu a mim mesmo. Subindo em uma das partes da árvore que tocava o chão disse em tom declamatório:

- Quer respostas? Quando lhe disse que era possuidor da verdade? Se me segue, você é que sabe por quê! Se me escuta, você é que sabe por quê! Sabe a resposta para a grande parte dessas perguntas, mas duas delas, só daqui a alguns dias lhe será revelada.

Inerte, não pude fazer-lhe mais perguntas. Pensei em dissimular uma saída para atrair-lhe a atenção e o interesse em responder sem tantos rodeios quem era e o que queria de mim. Mas percebi que nada disso o faria desistir do que decidira, desde o primeiro momento que o vi, percebi nele um homem determinado e certo do que fala. Sentei-me então na pedra onde ele estava quando cheguei e pus-me em posição de escuta. Ele, sabendo de minha disposição continuou no mesmo tom:

- Você veio tarde hoje! Com certeza estava cansado da rotina que tomou conta de nossos encontros.

Balancei a cabeça confirmando. E ele prosseguiu.

- Amor ao diferente! Ama a ele como todos o amam. A rotina que lhe traz segurança, muitas vezes é quebrada, mas ama aquilo que a quebra, sente que acordou para a realidade. Há alguma coisa que possa tornar o ser humano mais inquieto que os inesperados acidentes? No entanto, estes na vida são os momentos nos quais se percebe a verdadeira solidariedade despojada de

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interesses, nos quais os verdadeiros amigos se manifestam e, em muitos casos até mesmo, nos quais inimigos se reconciliam. Não se pode admitir uma visão positivista destes fatos. O acidente não deixa de estigmatizar o ser humano, todavia desperta manifestações peculiares. Mas porque este despertar de algo adormecido que derruba o orgulho na tentativa de cultivar a esperança?

- Talvez haja algo transcendental que interfira na vida do ser humano para despertar-lhe do sono da alienação.

- Belíssima frase! Mas totalmente equivocada. Como admitir o livre-arbítrio do homem se este delegar a outros a responsabilidade por sua vida?

- Dizendo isso, parece que o ser humano é responsável até mesmo pelo seu sofrimento. Aqueles que vimos dias atrás a recolher restos de comida no lixão, não escolheriam outra vida se fossem realmente livres?

- Com certeza escolheriam, mas este discurso é feito por aquele que deseja esquivar-se de sua responsabilidade social. Quem traz àquelas pessoas o sofrimento são os próprios seres humanos e não um poder incognoscível.

Percebi que nossa discussão tomava rumos diferentes do almejado. Quantas vezes, em mesas de bar, deliberei com amigos sobre tais assuntos e nunca acrescentei nada à minha concepção de sociedade, por isso calei-me na tentativa de não deixar aquela discussão tomar-me o resto da noite. Ele continuou:

- Porque o ser humano possui uma verdadeira atração pelo diferente? É fácil observar isso no dia a dia: os telejornais estão repletos de notícias desastrosas e que, nem por isso, perdem a sua audiência. As novelas vêm sempre imbuídas de conteúdos que mergulham o ser humano em mais dilemas como se não bastassem os dilemas relacionados à sua liberdade de escolha. Passeatas que envolvem multidões possuem pouquíssimos integrantes cientes de sua atitude. Muitos se arrastam de longas distâncias para verem de perto os seus ídolos. Outros sonham em alcançar um lugar de destaque como se fosse este o único sentido para a vida. O estrangeiro causa medo, mas também, uma grande atração por ser uma pessoa cujos valores sócio-culturais diferem do lugar onde se encontra. A moda estabelecida é sinônimo daquilo que é bom por ser reconhecido como tal: basta que algo entre na moda e todos o abraçam, basta que isso aconteça para que a moda deixe de ser moda. E por que deixa de ser moda, por que deixa de ser algo diferente perdendo a sua originalidade. Aliás, originalidade de alguma coisa é o que faz com que esta seja objeto de desejo e conseqüentemente, ao ser objeto já possuído deixa de ter sua originalidade perdendo o encanto antes imanente. As pessoas são como crianças que sonham em ter um determinado brinquedo e, ao possuí-lo, brincam algumas poucas vezes com o mesmo deixando-o desprezado ao chão.

A lua estava alta, tinha que ir embora. Caminhando pela mesma rua, agora iluminada para o natal, pensei nas crianças que vi nos dias anteriores. Pela primeira vez, senti-me responsável por seu sofrimento sem culpar a sociedade nem o governo. Alguma coisa

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puxou-me a calça, uma senhora, com um bebê, rogava-me algum dinheiro. Não tinha nada para dar a ela. O sentimento que brotou foi mais sincero que o dó manifestado ao despejar moedas nos chapeis dos mendigos da cidade. Mais adiante, num velório, um pastor declamava ao microfone ligado em alto volume para cinco pessoas os poderes do mal. Naquela noite sonhei com a senhora a quem não pude ajudar velando seu filho morto por um tiro de um policial numa invasão na favela. E, acordando de madrugada, não pude mais dormir. A lembrança daquela senhora mãe impregnou à minha mente, sentia minha cabeça pesada, seria a consciência?

Amor ao incógnito

Durante o restante daquela noite não dormi nem um só segundo. Meu coração batia acelerado após um tiroteio em minha rua. Não ousei nem mesmo abrir a janela após a balbúrdia, tinha receio de ser atingido por alguma bala perdida. Horas depois, quando me acalmei e pensei que iria descansar em paz escutei risadas altíssimas de mulheres que desciam a rua e, após alguns minutos, uma delas gritou: “mataram ele!”. Pelo desespero, imaginei ser a esposa da vítima, mas, nem assim, ousei abrir a janela. O restante da noite foi tomado com o barulho ensurdecedor das sirenes dos carros de polícia e motos a subir e descer a rua em alta velocidade. Como percebi que minha noite estava perdida, resolvi sair ainda no escuro e procurar o mestre. Enquanto andava,

percebi o dia clareando e, pela primeira vez, em anos que vivi naquele lugar, admirei o horizonte, o belo horizonte que deu nome àquela cidade. Chegando lá, entusiasmei-me ao ver o mestre já acordado e disse em tom de brincadeira:

- Deus ajuda quem cedo madruga! Ou será que você ainda não dormiu esta noite?

Ele olhou-me sem nada dizer e assim permaneceu por um longo instante até que eu lhe disse:

- Desculpe-me a brincadeira. Só estava... – e perdi as palavras. Ele, vendo-me desconcertado, disse seriamente:

- Bom dia para você também. Como passou a noite?

Pela primeira vez, desde que o conheci, ele me fez uma pergunta a meu respeito. Então, sentindo-me acolhido por sua condescendência, contei-lhe a terrível noite que passei. Lamentei muitas coisas, entre elas a dor de cabeça proveniente da noite mal dormida. Percebendo que ainda não obtivera nem uma palavra que confirmasse o aproveitamento do que dizia, continuei a falar do desespero das pessoas, do silêncio tétrico e da sensação que tomou conta de mim após aqueles acontecimentos. Ele, mexendo com os ombros, demonstrou que desejava dizer algo e eu me calei, pois já parecia conhecer os seus hábitos ao falar. E ele disse:

- Não existe nada mais certo que a morte após a vida, nem mais desconhecido que a vida após a morte. Exatamente por este fato somos levados a buscar

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explicações para aquilo que irá suceder a nossa existência terrestre se é que há.

- Falando dessa forma, você demonstra incerteza. Como pode falar de algo que não tem certeza?

- Não seja precipitado. Inicio um colóquio que explicará exatamente isto: o amor ao incógnito.

- Como podemos falar de algo que é incógnito?

- Não falaremos sobre o que é incógnito, mas sobre as vãs teorias humanas que insistem em apontar soluções fazendo com que aquilo que outrora era incógnito seja conhecido por partes. São inúmeras as correntes de pensamento que dizem ter encontrado a explicação para aquilo do qual ninguém nunca voltou para dizer como é. Por isso, é muito fácil dizer: “a verdade está comigo” já que ninguém pode refutá-la. Este é o argumento que apela para a ignorância: já que ninguém pode provar o contrário, a verdade sobre o que não é conhecido pode ser obtida por meio de alguns raciocínios que ocupam a mente e o que é pior, muitas vezes com elucubrações vazias.

- Você quer me dizer que tudo o que explica o além é elucubração vazia?

- Não coloque palavras em minha boca. Disse somente que se o que se procura é incógnito, a partir do momento que ele se torna conhecido ele deixará de ser incógnito, pois este ser é enquanto ausente o conhecimento, logo sua existência é baseada na ausência.

- Agora percebo que você não quer dar-me crenças, mas certezas e que o fato da vida após a morte

existir ou não, em nada mudará a atração que se tem por este fato incógnito.

Ele olhou-me com ar de aprovação e continuou:

- Outro exemplo deste amor ao incógnito é a procura do entendimento de um Poder Superior que aqui convencionaremos como Deus. Afirma-se que é preciso acreditar neste para conhecê-lo. Todavia se eu conheço a Deus não preciso acreditar em sua existência. Como por exemplo: se eu estou com uma chave no bolso não preciso acreditar que ela esteja nele. Eu não acredito que a chave está em meu bolso, se eu a coloquei neste e ninguém a tirou dele, eu não acredito que ela esteja em meu bolso, eu sei. Qual seria a resposta mais convincente à pergunta: Você acredita que Deus existe? Eu acredito ou eu sei? Acreditar é prova de que o ser humano prefere amar aquilo que ele não conhece àquilo que ele já possui pleno conhecimento.

- Então toda crença é baseada na ausência? E os milagres visíveis? E o próprio milagre da vida?

- Vejo que você está fugindo ao raciocínio proposto. Se algo é, não necessita da existência de outro para comprovar a sua própria existência. Eu sou enquanto existência e existo enquanto ser.

- Não compreendo perfeitamente o que me diz, mas, através de mais alguns exemplos talvez possa compreender.

- Como outro exemplo disso poderíamos citar os fenômenos de diversas explicações que envolvem comprovações científicas, a razão ou a crença. Uma pedra foi atirada ao telhado e ninguém foi visto. O cientista

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dirá: alguém a atirou e se escondeu; um parapsicólogo dirá: as ondas cerebrais relacionadas à tensão do indivíduo o fizeram atrair a pedra e um outro poderá afirmar: isso é obra das forças do mal. Em todos os três casos percebemos explicações que envolvem o incógnito: ora alguém que atirou a pedra e não foi visto e ora uma força cerebral ou maligna inexplicável.

- Percebo que ausência se faz presente de várias formas e o incógnito é força poderosa a mover o pensamento.

- De todos os amores este é o que mais se relaciona ao amor à ausência. Força poderosa é em verdade, mas seu poder pode destruir ou construir, depende de quem e como a utiliza.

- Compreendo e concordo.

- Para finalizar tomemos outro exemplo: o espaço. Quantas pessoas ainda se perderão a observar incontáveis astros e infinitas constelações? O ser humano sonha em ultrapassar fronteiras, descobrir outros planetas, mas este sonho só tem duração até o alcance do almejado. A partir daí novas buscas vão interpelar o ser do homem. “O espaço é infinito”, afirma-se constantemente, mas nada pode limitar a inquietação presente naquele que sonha desvendar os seus “mistérios”. Palavra esta que exprime ausência, mas que em verdade é presença, pois como se buscaria aquilo que não é? Mistério e incógnito são os nomes que os homens deram àquilo que sabem que existe, mas que ainda não podem explicar sem apelar para a crença.

- Mas não falávamos na presença da ausência?

- Sim, mas será que ainda não compreendestes que o ausente se torna presente e enquanto tal perde seu espírito?

Naquele dia, saí dali e, vagarosamente, fui para casa. Meus olhos estavam pesados. A noite que pensara ter perdido ganhei-a reconhecendo nela os fundamentos para o que escutei naquele dia. Chegando em casa, atirei-me à cama e dormi. Em um dos sonhos, viajava no infinito até que minha nave espacial bateu em uma parede negra e eu escutei uma voz que dizia: “daqui em diante não ultrapassarás, este é o mistério eterno”. Ao acordar, saí à rua e, percebi que havia ultrapassado uma barreira colocada pela polícia para investigações do assassinato ocorrido na rua. Como consegui ultrapassá-la sem perceber e sem ser barrado não o sei, mas sei que ultrapassei ao menos este limite.

Cedendo ao instinto

Já sentia que se aproximava o dia no qual saberia quem era aquele misterioso homem. Percebi que até então, na era da globalização e tecnologia fui levado a seguir como mestre um homem incógnito à sociedade. Muitas perguntas possuía a seu respeito, mas guardava-as para o momento oportuno. Desejava penetrar em seus pensamentos e reconhecer neles a certeza e a veracidade do que ele me dizia naqueles dias.

Aproximavam-se os dias em que, terminadas minhas férias, retornaria ao trabalho, então, decidi não

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mais adiar a pergunta que não queria calar em meu ego. Acordei cedo e rumei àquele sitio. Aquela que ele dizia ser sua prima atendeu-me à porta e disse:

- Já sei quem você procura. Ele deu uma daquelas saídas e, acredito que não volte antes do por do sol. Mas entre, vou servir-lhe um café.

Naquele momento, percebi a beleza daquela mulher. O vestido, tocando levemente o corpo, leve como a seda, dava-me ímpeto a alimentar-me o instinto carnal. Ela foi à cozinha e voltou com um copo de café e disse:

- O tempo está nublado, um cafezinho cairá bem.

Quando peguei a xícara de sua mão, toquei levemente em seus dedos e senti uma estranha sensualidade, como se uma magia tomasse conta de meu corpo por aquele simples toque na ponta de seus dedos. Tentei conter aquela sedução lembrando-me dos inúmeros ensinamentos religiosos que embasavam a maior parte de minhas atitudes e o café, ao cair no estômago, deixou-me nauseabundo. Repentinamente, lembrei-me de que não havia dito uma palavra sequer até o momento em que ali cheguei. Então, percebendo meu desconcerto e tentando dissimulá-lo, disse:

- Realmente, o dia está nublado. Talvez caia uma borrasca durante à tarde.

Tinha acabado de falar quando escutei os primeiros pingos caindo sobre o telhado. Quando me virei espantado com a repentina chuva, desequilibrei a xícara do pires que caiu sobre minha calça branca. Aquela mulher, prestativa, pegou um pano molhado e outro seco na cozinha e ofereceu para ajudar-me. Quando se abaixou

num relance vi seus belos seios livres sob aquele vestido alvo, mas, percebendo que não suportaria mais um toque de suas mãos sem que algumas reações orgânicas manifestassem em meu corpo, tomei o pano de suas mãos e disse:

- Deixe que eu mesmo limpo. Não tem problema, o café estava tão bom que resolvi tomar banho com ele.

Ela sorriu abertamente e, assim, pude perceber a beleza de seu rosto que já não apresentava o olhar e o sorriso tímido de minutos atrás. Quando acabei de me limpar, sem, no entanto, retirar totalmente a mancha de café, ela, pegando o pano de minhas mãos, perguntou:

- Você mora sozinho?

Aquela pergunta, no tom que foi feita, deixou-me desajeitado, mas respondi:

- Sim, moro sozinho. Morava no interior com minha família, e vim para cá atrás de emprego. Quando consegui, decidi permanecer por aqui.

- Mas você não se sente sozinho?

Ela estava tentando deixar-me realmente desconcertado. Mas tentei responder com a mesma naturalidade de antes. E assim, depois de várias perguntas, tudo fluiu gradativamente para uma tarde de amor sob o barulho da chuva que agora caía mansa sobre o telhado tocando uma bela melodia.

Já eram mais de seis horas quando a chuva terminou e parti. Despedindo-me daquela mulher notei em seus lábios um sorriso diferente, como alguém que acaba de ser saciado de uma sede. Não posso dizer qual

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era a feição de meu rosto, pois, em meu íntimo instalou-se uma estranha sensação: uma mistura de vazio e escrúpulo.

Amor ao efêmero

No outro dia, quando voltei ao sítio, encontrei desta vez aquele homem cujos ensinamentos eu seguia como um discípulo. Sua face translúcida refletia uma juventude, mas seus olhos demonstravam perspicácia e maturidade. Quando cheguei, tive ímpetos de procurar aquela mulher cujo nome, nem mesmo sabia, mas, disfarçando minha curiosidade a seu respeito perguntei:

- Ontem eu o procurei e sua prima me disse que você não estava aqui...

Ele, surpreso com todo aquele palavreado sem razão, disse em tom de lamento e espanto:

- Como? Aquela mulher com quem você dançou durante aquela festa e, com a qual acordou no outro dia?

O espanto dele foi transferido para mim e eu, sem saber que fim teriam aquelas perguntas, disse:

- Sim. Mas quando ela me disse que você não estava decidi voltar hoje e, por isso, aqui venho.

- Ontem eu não estava aqui por que estava no velório dela, da mulher que você disse ter visto ontem.

Pasmado, não sabia o que dizer. Deveria contar todo o resto? Por que aquele homem, tão certo de tudo o que falava, demonstrava tal espanto? Com certeza ele também não sabia o que estava acontecendo. Contudo, rapidamente ele se recuperou e começou a falar.

- A vida é dotada de momentos fugidios. Tudo passa, tudo volta a ser o que foi. Exatamente por isso a amamos com as forças de nossa alma.

- Nem todos. Como posso dizer que uma pessoa que despreza a vida pelo suicídio a ama.

- Quem poderá penetrar no pensamento de um suicida e medir seu amor à vida. Só por que vai perdê-la não significa que não a ame. A percepção desse amor será mais nítida quando houver a ausência como foi dito anteriormente: todos amam a ausência.

- Então, de uma forma ou de outra, todos amam a vida.

Quando disse isso, pensei naquela mulher. E olhei a calça que eu usava, a mesma do dia anterior e lá estava a mancha do café. E, cada vez que eu a via, uma enorme inquietação apoderava-se de meu espírito. Distante, escutava a voz que me falava:

- Amar ao efêmero não é somente amar a vida, mas também, amar a tudo que ela contém. Por exemplo: amar a beleza, ao prazer, ao êxtase, à cegueira da paixão e à matéria. Claro, não a beleza tida como a convenção social a supõe, mas sim aquela dotada da subjetividade de cada um. A beleza como tal é efêmera e é para ela que se voltam os olhares apaixonados. Você está me escutando?

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Como se tivesse caído do céu naquele instante disse rapidamente:

- Sim, estou.

- Percebo que está distraído. O que lhe inquieta?

- Aquela mulher, da qual falamos há pouco, ela morreu de quê?

- Ah! Então é isso. Eu não sei bem exatamente o que a levou, pois quando retornei de uma de minhas jornadas ela estava lá, estendida sobre a cama e, ao seu lado, a roupa de que mais gostava, dobrada como se estivesse pronta a ser vestida por ela para alguma festa. Na cozinha o café cheirava, talvez morrera apenas alguns minutos antes.

Toda aquela história me surpreendeu e eu não pude me conter e acabei derramando as lágrimas que contive durante toda aquela hora. Aquele homem silenciou e deixou que eu organizasse meus pensamentos, pois me encontrava completamente confuso. Então, como ruminasse cada palavra dita, levantei-me repentinamente e pensei no que ele me dissera: “Eu não sei bem exatamente o que a levou”. Onde estava a certeza que o acompanhava em tudo o que me dizia? Por que nos últimos tempos ele se demonstrava interessado nas minhas palavras que lhe pareciam sempre novidades? Quem afinal era ele?

Pensei em lançar-lhe todas aquelas perguntas, mas, novamente me contive e disse:

- Pode continuar, estou ouvindo.

Alguns minutos mais, ele permaneceu calado como se retomasse o fôlego para prosseguir com sua elucubração. Então, olhando-me com um olhar severo de acusação, porém, não intimidante disse:

- O prazer é a alegria concentrada, mas, por isso, efêmera. O êxtase é o ponto culminante do prazer e é mais efêmero que este. A paixão é a atração momentânea entre dois seres que leva a muitos a atitudes loucas ou louváveis...

Sabia ele do acontecido? Mas o que realmente aconteceu? Nem mesmo eu saberia explicar. Contudo, a reflexão tomou outros rumos e pude reconhecer o que me dizia sobre a atitude humana definida por ele como amor ao efêmero.

- A matéria em seu ciclo é efêmera, já que sua forma nunca é a mesma. Nunca poderíamos dizer que ela é eterna, pois a idéia da eternidade só é possível àquilo que a possui sem limites. A matéria, dessa forma, depende de tudo ao seu redor para que exista.

E disse em tom conclusivo:

- Aqui terminamos.

Pensei comigo: “só isso?”, mas não disse nada, minha feição demonstrou o que eu pensava. E ele, respondendo a esta atitude, perguntou:

- O que esperava encontrar? Respostas para perguntas que nunca formulou? Caminho para os quais nunca você disporá a caminhar?

Aquele tom de ironia deixou-me frustrado e revoltado. Então gritei:

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- Nunca me disporei a caminhar? E por acaso, você está dentro de mim sendo capaz de conhecer-me mais do que eu a mim próprio?

Sentando, mostrou-me que não prosseguiria enquanto eu também não me sentasse. Então, com voz mansa disse:

- Você não devia ser coerente com o que acreditava? Não estou em você para reconhecer o âmago inconsciente até mesmo aos seus pensamentos, mas você não está em mim para saber se estou ou não em você. Se deixou de agir por medo de minha reação, você não foi sincero com você mesmo; deixou de determinar um de seus caminhos, preocupado com os empecilhos; até quando permanecerá no ponto de partida? Você ainda se apega è efemeridade do ser, ainda se apega à presença imanente na ausência! Mas, ouça: Tudo o que lhe disse, não é a posse da verdade, encontrá-la seria morrer, pois somente o que não se move pode contemplá-la, pois, sendo imutável só pode ser revelada àquilo que não muda, à essência do que é.

Ele tinha razão, no outro dia voltaria ao trabalho e esqueceria de tudo o que ouvi. Encarnaria o amor nas formas que me foram apresentadas e acabaria por me confundir. Percebi que o sol se punha e temi nunca mais ver aquele homem. Então, respirando profundamente, disse vagarosamente a pergunta que não calou durante todo aquele mês:

- Quem é você?

Ele se levantou e uma forte ventania tomou conta de todo aquele sítio levantando poeira que me impediu de

vê-lo. Quando a poeira baixou, uma estranha transformação aconteceu: no lugar da casa estava uma capela, e em todo o terreno avistei cruzes enumeradas. Pensei estar ficando louco e fechei os olhos por alguns segundos; quando os abri, tudo permanecia como quando os fechei e reconheci ali o cemitério dos indigentes. Entrando na capela, avistei uma lápide com os seguintes dizeres: “Eu sou a origem das inúmeras perguntas surgidas desde o princípio da humanidade, eu sou a estranha forma observada de maneira embaçada pelos seres humanos na introspecção, eu sou o super-homem ao qual alguns buscaram por toda a vida, eu sou o ponto de reticências que dá eternidade às palavras, eu sou o umbral dos conflitos existenciais dos homens livres, eu sou aquele autor a quem o mundo inteiro designou como desconhecido nos diversos textos de minha autoria, eu sou o que sou, pois sou a própria existência”.

Segunda parte:

Autodestruição

Prólogo

•Não te revoltes ao ler o que segue, a revolta é o símbolo de tua fraqueza, subterfúgio de tua carência de sentido.

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•Se procuras inquietações para a tua vida sedenta de sentido lê-o, pois ele não é destinado àqueles que pensam saber o que querem, àqueles que pensam que sabem o que está oculto em suas atitudes.

•Se desejas a paz, não leias este livro, ele não é a ti destinado; conforme deduzirás, a paz não existe, somente a ilusão da qual a ausência faz uso.

•Se queres ser perfeito, não leias este livro, ele não é destinado aos imperfeitos, àqueles que sabem não haver mais saída para escapar às angústias e arrependimentos, àqueles que não desejam mais lutar por verem seus esforços minguados pela sociedade escravizante.

•Se procuras o amor do próximo, não leias este livro, ele não é destinado aos egoístas e egocêntricos, pois, se assim o fazes, nunca pensaste em amar, somente em ser amado.

•Nem tão pouco é destinado aos narcisistas, pois estes se encantam consigo mesmos e o destinatário deste livro não se encantaria nunca com nada.

•Se não desejas mais procurar, lê este livro, ele é o achado para aqueles que perderam o sentido para a busca e que não mais o almejam.

•Se desejas algo, não o leias, pois o desejo é o impulso para aqueles que acham que

conquistarão o mundo pela sua vã modéstia e vaidade disfarçada em humildade.

•Se queres fórmulas para justificar a tua revolta contra os parâmetros sociais pré-estabelecidos, não leias este livro, pois aquele que nega algo com paixão, demonstra o oculto amor que o revela.

•Se, no silêncio de teu quarto, lamentar a solidão, não leias este livro, ele não é o solidário amigo e companheiro destinado a lhe ditar fórmulas de bem estar tão efêmeras quanto a vida.

•Se reconheces em ti os males que acusas em outros, lê este livro, pois, nada encontrarás para confirmar ou refutar o que pensas de ti.

•Se a ambição, o orgulho e a vaidade são em ti e para ti aparentes, não leias este livro, pois, se percebes em ti estes males, para os outros eles se tornam virtudes, e um homem virtuoso não lê este livro.

•Se és prudente e sensato e sabes lidar com a tua liberdade, leias este livro, não tens o que temer, pois, estas ilusões permanecerão em ti tal qual como foram encontradas antes deste encontro.

•Se achas interessante a perspicácia de quem enleva os seus leitores com suas frívolas fórmulas de realce na escrita e na fala, não leias este livro, ele demonstra que a contradição é o principal sustento da vida e sentido da existência.

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•Se encontras prazer nos péssimos gostos da humanidade, não leias este livro, ele é o alimento que procuras impacientemente e o encontra azedado pelo tempo em que o estiveste procurando.

•Se o suicídio for a última saída, não leias este livro, pois, deixarás de realizar o que o seu orgulho de ser o centro do mundo lhe impulsiona.

•Se não procuras, não desejas, não queres, não leias este livro, pois será inútil para ti, algo que lhe demonstrará o que já conheces.

•Se queres saber se este livro é a ti destinado, não o leias, do contrário perceberás que ele não se destina a ninguém, pois não há sentido para o nada que há em ti e que procuras em outros.

•Se não desejas lê-lo, não o leias, para que seu arrependimento não o leve a lê-lo novamente.

•Enfim, se desejas não desejas, se queres não queres, se procuras não procuras, se lês não lês, pois o contrário e contraditório o são a outro e não si mesmos, todavia serão sempre o cerne de todo o ser.

1) Tudo ou nada

1.1. Tudo

Desde o nascer aspiras ao tudo. Choras quando não és alimentado. Choras quando não és limpo. Enfim,

choras quando não és satisfeito em tuas necessidades corporais. Choras, conscientemente, pois, do contrário, nada do que foste teria influência no que és. És testemunha de tua própria existência, não podes renunciar a isto. Estás mergulhado no tudo de teu eu, mas não te satisfazes. Almejas o que não depende de ti conseguir.

Diante de tudo isso, pensaste alguma vez, como és hipócrita? Imaginas ser o centro do mundo e, quando não és satisfeito, apela para várias atitudes: finge-te de coitado para atrair compaixão das pessoas que te rodeiam, ages contra a moralidade para determinar reações de pessoas a te colocarem em destaque... Tu nunca foste o que dizes ser. Nunca serás o que almejas ser. Escondes teu egoísmo com a máscara do amor ao próximo quando na verdade, mesmo que não pareça receber nada em troca do que fazes, és preenchido pela falsa paz originada por tua influência na vida de outro.

Mostras-te corajoso e destemido diante dos desafios da vida, mas és tu que os provocas. Enganas a ti mesmo quando supera um destes desafios, como se houvesse a necessidade da existência dos mesmos. Assumes um caminho cheio de pedras para envaidecer-se quando delas se desviar e, com isso, alongas a caminhada. Foges da convenção estabelecida socialmente, todavia tu acabas inventando uma convenção para ti e dela tu te tornas escravo. Inventas subterfúgios para o ocupar o que chamas tempo, inventas subterfúgios para esclarecer o seu curto espaço, como se pudesse medi-lo.

O Tudo é para ti nada, quando somente tudo puder ser o que aspiras.

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1.2. Nada

Imaginas o nada, caminhas para o nada. O nada, do contrário do que muitos falam, existe e é exatamente essa existência que torna possível a sua ausência. Como estar ausente algo que não poderia estar presente? Tu sabes disso, mas insiste em negá-lo por suas atitudes.

A morte não é para ti o fim da existência, mas a consumação plena da mesma, sabes disso, mas insistes em ludibriá-la. Foges dela como um bandido a fugir da cadeia, todavia para ela te orientas sempre que te sentes pusilânime diante dos fracassos nos desafios que tu mesmo inventaste.

A morte não é uma fatalidade, mesmo que venha antes que o esperado, mesmo porquê, como esperar alguma coisa sem hora marcada? És fingido quando dizes não temê-la e por ela esperar, quando na verdade sabes que ela não é tua amiga, pois és apegado a este mundo.

Quando pensas em suicídio, não te deparas com o nada, pois te tornas novamente o centro das atenções. Quando deixas de cuidar de teus interesses, não te deparas com o nada, estás satisfazendo a um de teus interesses: o de não lutar por teus interesses.

Lamentas o odre que secou, a planta que morreu, o passado que se foi, o futuro que não veio. Que proveito tiras de tudo isto? Se queres atrair para ti a atenção das pessoas, não lhes insufle o vazio que há em ti, elas já o possuem por si mesmas antes que tu respires para lhes proclamar o teu lamento. Antes de mais tudo, não busque o nada.

O Nada é para ti a impossibilidade inalienável de sua plena liberdade no conceito que a imaginas.

2) Realismo e pessimismo

Conheces a diferença entre o realismo e o pessimismo. Quando dizes: sou realista! Nunca o fazes mediante uma análise positiva, sempre negativa. És pessimista e usas este instrumento para mostrar aos outros o que não és. Este verniz que te encobre o faz parecer seguro diante da vida para as pessoas.

Não és um ser independente do meio social em que estás inserido. Todas tuas atitudes se voltam para os outros, mesmo que te isoles: pensas causar nas pessoas a sensação da tua falta e, para isso, enfrentas até mesmo a solidão.

És pessimista, não acreditas na vida antes da morte e nem após a ela. Nem mesmo a morte é uma saída para ti, nunca alcançarás o que procuras. Pois, na verdade, nada procuras.

O que é a realidade então? Não te responderei, nada do que eu disser te mostrará a tua vil condição de buscar aquilo que não sabes definir. És pessimista e, dessa forma, não conheces a realidade. Teu pessimismo não é sinal de serenidade, como também não o é o teu puro otimismo momentâneo quando dizes ter encontrado o caminho a seguir.

Não posso dizer o que não és. Seria mergulhar no infinito, contudo posso dizer o que és: um profundo pessimista.

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3) Revolta, carência de sentido

Revoltas contra todos os que não satisfazem ao teu ego. És fraco e necessitas da legitimação de quem se aproxima de ti para dar testemunho de tua existência. Se revoltas é porque preocupas com tua posição no mundo, mas, esta não existe separada das demais posições. És o que há de mais egoísta na face da terra, mas não consegues viver a tua solidão. Tens que dar contas aos outros de que és e, nada serias se os outros não fossem. Em outras palavras, tua existência está embasada no relacionamento, no ponto de referência ditado por outros, por isso, teu egoísmo te leva para os outros.

Com certeza exclamarás: “nunca fui egoísta!”; ou talvez “busco o meu próprio bem!”, mas qualquer que seja a tua atitude, te revelará que por trás do invólucro protetor que te envolve há a novidade do já visto.

Revoltas contra o mundo, não porque encontraste o caminho a seguir. Revoltas contra o mundo por que desta forma demonstras que tens opinião própria. Seu idiota, nada do que dizes pode afetar aos outros, pois, teu pensamento pertence a todos. Se revoltas, serás imediatamente tratado indiferentemente, pois, o que se esperaria ao se brincar com uma cobra venenosa? Mas não te esqueças que teu veneno é produzido por outros, tua consciência é formada por outros, tua idéia de liberdade é ditada por outros.

Tua revolta é o que mais agrada nos outros, é prova de se precisava para saber até que ponto chegou a tua alienação. Não te admires se um dia vires um

aforismo com o seguinte dizer: “se não posso resolver os problemas do mundo, tentarei ao menos, eliminar os meus”. É o reconhecimento de tua vil condição: nem mesmo a certeza de conseguir lhe acompanhará, pois de nada tens certeza.

4) Busca de felicidade

Como és fingido! Falas em liberdade, falas em felicidade e ditas formulas aos outros do caminho onde não percorreste. Dizes que a felicidade está imersa nas pequenas coisas da vida, todavia tu mesmo a buscas nas coisas extraordinárias. Queres um lugar de destaque, mas pregas a humildade; duvidas constantemente da fé que tens num poder superior, mas dás testemunho de uma fé firme inabalável; ditas fórmulas mágicas pelas quais as pessoas encontraram a felicidade, mesmo sabendo que a felicidade de cada uma delas não depende de ti.

Que outro adjetivo lhe daria se fosse pormenorizar todas as vezes que, em um curto espaço de tempo tu falaste de uma forma e agiste de outra, quando na verdade criticas aos outros que agem assim. Pode um assassino julgar ao outro?

És prisioneiro de si mesmo e tu insistes em falar de esperança, esperas por algo que não é a ti destinado como se fosses o dono de teu destino. Tua liberdade não consiste em usufruir da efemeridade das coisas? Como limitá-la ao tempo? Culpas a tudo que o oprime, mas tu és a causa de tua perdição, tua liberdade de escolher deu-lhe oportunidades para as quais escolhestes o fugaz. Não

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reclames de tua sorte, se pulais livremente em um abismo por que lamentais o seu fim?

5) Alienação camuflada

Os elogios que recebes sustentam a tua alienação, deles necessitas para sentires uma estranha liberdade com sabor de êxtase. Percebes o que há de mau nas pessoas que se deixam levar pela rotina, percebes o que há de mau em ti mas não o reconheces se não vires nisso uma forma de ser percebido pelas pessoas. Tua humildade camufla teu orgulho, os elogios que recebes camuflam a tua alienação. Constróis uma estrada e olhas para trás tentando reconhecer nela o teu trabalho, mas o que vês são somente tuas pegadas sobre um chão cujos desvios foram dados em volta de pedras que tu mesmo atiraste ao chão dificultando o caminho de quem por ela passar. Constróis tua estrada e olhas adiante e percebes que não sabes por onde abrir caminho. Dizes ter esperança, mas o que sentes é eterna ansiedade diante de um futuro que nunca chega. És a mais insegura criatura da face da terra; não conheces a liberdade e insistes em dizer que és livre, não conheces o amor e insistes em dizer em que ele consiste, não conheces a esperança e insistes em camuflá-la em tua ansiedade. Pedes sugestão daquilo que na verdade já decidiste, caminhas para ver o que haverá adiante, contudo percebes que não há nada de novo, tudo é o que já foi, mesmo que camuflado em novas emoções temporais. Enfim, caminhas por que cansaste de permanecer quieto no mesmo lugar, mas isso não lhe dá o direito de julgar quem não se pôs a caminhar. Caminhar nem sempre é saber aonde chegar.

6) Angústia do homem livre

És livre e tens que decidir o caminho a seguir, não és livre e anseias pela liberdade. Tomas decisões que sucedem a um momento de êxtase e lamentas o êxtase tão efêmero e intenso quanto o fogo em um palito de fósforo, tomas decisões quando o êxtase de outrora não se faz mais presente e sentes saudade do passado que aos olhos do presente é o precioso perdido.

Decides dar novo rumo à tua vida, mas és como um foguete sem combustível. Pedes opinião às pessoas daquilo que já decidiste e com ela tentas consolidar legitimidade às tuas decisões. Não és livre por que não queres ser livre, és prisioneiro das convenções. Até mesmo a tua revolta só se faz aparente se houver o combustível de uma reação. Vives a vida esperando que algo de novo aconteça e, com isso, te entregas ao destino ao qual poderás culpar no futuro quando vir que tua vida foi integralmente vivida em vão. Seu covarde! É melhor errar um milhão de vezes tentando dar rumo à tua vida do que se fazer de santo perante o mundo. Pensas que desta maneira chegarás a algum lugar? A resposta é muito simples: se mudares de atitude pelo que lês neste momento, comprovarás a tua falta de convicção; se não mudares mostrarás a tua falta de coerência. Não existem regras para um jogo em que jogas sozinho. Não és o centro do mundo e, mesmo se fosses, em nada isso lhe acrescentaria. Queres saber o que és? Não poderei ajudá-lo, se nem você mesmo sabe, como poderia eu saber? Desperta de seu sono, pára de sonhar! Olha em tua volta, há algo de novo surgido durante o teu sono? Se quiseres

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continuar a sonhar e não quiseres ser interrompido por pesadelos: feche os olhos para a realidade de sofrimento que se difunde no mundo e morra cheirando uma flor colhida há um mês atrás.

7) Eterna questão

Conheces o subterfúgio dos que desistiram de lutar: “a sina de cada um não pode ser negada”, conheces o subterfúgio dos que lutam sem saber por quê: “caminhando em direção ao destino, mesmo sem saber qual é, chegarei até ele e saberei o que busquei”. Revoltas com ambos e te achas consciente do que buscas. Dizes não acreditar em destino, mas te entregas a ele cada vez que inerte em teu estado saboreias a sensação dos que agora completaram a sua existência e sabes que para isso é necessário morrer. Se pulas da ponte na qual atravessa um rio não chegas ao outro lado do rio e não completas tua existência isto seria o suicídio moral. Se atravessas a ponte verás que o lado de lá é semelhante ao lado de cá do rio, se permaneces do lado de cá, vives ansioso por conhecer o lado de lá do rio. Aspiras à liberdade e com ela constróis as grades de tua prisão. O mundo que te rodeia te é inimigo, mas não encontras sentido para viver fora dele. Queres saber se há uma razão para tua existência na terra? Compreenderás no final desta busca que o fato de nada conseguir não despreza o esforço da luta. Tu não sabes nada a respeito de tua existência e, os outros, por mais que pareçam perscrutar teus pensamentos, também não sabem o porquê de suas existências e nem de tua existência. Só há uma certeza que ninguém refuta: todas as pessoas do mundo estão

sozinhas em meio à multidão que formam e, suas existências, quando não ludibriadas pela busca sem sentido, são a eterna questão jamais respondida.

Enfim, se dizes ser realista quando falas com pessimismo, não esperes a compaixão dos que te rodeiam. Imerso em tua angústia real e não somente aparente, perceberás quão vil é o ser humano que buscando demonstrar um sofrimento imanente em si atrai, assim, a atenção das pessoas. Se sofres silenciosamente, sofres sinceramente, pois não há maior sofrimento do que estar só.

Esperavas encontrar palavras que te direcionassem para a vida ou para a morte? Bobo! Não disse a ti desde o início, que nada disso seria possível? Sou mortal como tu, e minhas atitudes são como as tuas, como posso lhe dar o sentido que nem eu mesmo encontrei? Não me responda. Não serás para mim o que pensavas que eu poderia ser para ti. Nem sempre os melhores perfumes estão nos menores frascos; o mau cheiro também pode ser condensado. E seu odor permanece após sua ausência. Este livro é a prova disso. Refutas o que digo? Este problema é seu, não o transfira para mim.

As aparências não enganam, o ser humano é que se engana com as aparências. Mas que mania de transferir a outrem a responsabilidade da própria liberdade! Constrói as grades da própria prisão e sê livre.

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Terceira parte:

Realidade Insana

Prólogo

Realidade insana surgiu de uma tentativa de análise do mundo no que se refere à responsabilidade humana frente aos males sociais. A reflexão tende a responder o velho questionamento: o homem é produto do meio? Na verdade, este é o subterfúgio usado por aquele que esconde a sua culpa social. O meio é formado por cada ser humano e o todo não nega o particular.

Aconselharam-me a escrever de forma menos subjetiva sobre as coisas partindo assim para uma análise crítica da sociedade, mas não poderia deixar de reconhecer que esta análise partiria de meu eu e de minha visão enquanto parte da sociedade em questão e, por isso também responsável. Vejo nas formas expositivas atuais a grande tendência à crítica como forma de persuasão e adesão, porém, mesmo que nunca publique nenhum de meus escritos, deixarei que estes sejam moldados de acordo com a opinião pública. A verdade deve ser dita e provocar transformações e não somente servir como matéria prima que sustente uma crítica improdutiva da qual a humanidade já deveria estar farta. E volto a dizer: há muitos críticos, poucos revolucionários. Ver a realidade e nada fazer para melhorá-la é pior que não

percebê-la. Como falar da alienação dos outros se eu mesmo sou alienado a ponto de defender como meu o ponto de vista de outros que usaram de sagacidade para convencer-me deste?

É preciso analisar o ser do homem e da mulher que ama, se emociona, sofre com a solidão, anseia, sente saudades, é difamado, cansa-se do tédio e da rotina, enfim, que tem sentimentos que o direcionam para a principal certeza do ser humano: a morte. O ser humano, ao se reconhecer parte da sociedade, deve ser levado em conta como alguém que se faz presente com suas peculiaridades e não apenas como peça de engrenagem da grande máquina social. Mas sejamos realistas: quem é que não critica a fome, a miséria, a violência e outros males atuais? Então o que falta? Acordar do sono da alienação e enterrar a utopia.

Cristiano de Paiva Barroso

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Poderes imanentes nas palavras:

Há ocasiões em que as palavras fazem um turbilhão capaz de movimentar o corpo tão inerte quanto a rocha no fundo da terra que transformada em magma é expelida com imensurável poder;

Há ocasiões em que as palavras são poucas para expressar o que elas mesmas provocam ao ser humano;

Há ocasiões em que as palavras são capazes de formar vultosas construções inabaláveis;

Há ocasiões em que a palavra tem potencial arrasadora superior ao da bomba atômica e são capazes de destruir toda e qualquer inexorabilidade aparente;

Há ocasiões em que as palavras passam despercebidas, mas nunca deixam de maléfica ou beneficamente, construindo ou destruindo, cumprir sua missão, pois a eternidade é o tempo determinado para elas. Se o efeito não chega a quem é dirigida a palavra, mesmo assim, ela não deixa de ser, pois, para que ela exista, não é necessário haver quem a receba, mas sim quem a origine;

Para tudo o que há na terra há um sentido, para muitas coisas o sentido está imanente na própria existência, para outras ele se desloca para as demais existências.

À noite a realidade se configura tal como é:

Ilusão conformista

E Solidão libertadora

Para um solitário egocêntrico.

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Todas as formas fugidias das nuvens,

Ideal efêmero,

Prazer fugaz,

Porém frugal,

Tão banal

Quanto à respiração ofegante

De um ser desfalecendo-se

Em uma vida de desenganos

Camuflados em experiência,

Loucuras,

Arrependimentos,

Sofrimentos

E no final,

Para quem se finge de forte,

Nada mais trivial que a morte.

A rotina que traz a segurança vem acompanhada de seu amigo:

Quando o nada se apodera de mim

E o vazio toma conta de meu ser

Assim,

Querer

Não é sempre poder.

Ilusão

De outra vida que poderia,

Mas não pode,

Explode em pedacinhos,

Como o vidro

Ou o espelho,

Pois cada reflexo

É um pedaço desconexo

Do que sou.

Vou,

Mas não sei...

Estou,

Mas não quero...

Desespero.

Tudo é possível, até mesmo viver sem sentido;

Tudo é possível, até mesmo morrer sem sentido.

Quero andar nas nuvens,

Mas sou limitado;

Ser mais rápido que o pensamento,

Mas sou limitado;

Assumir minha liberdade,

Mas sou limitado;

Minhas decisões são volúveis

Porque sou limitado;

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A solidão é meu tormento

Porque sou limitado;

Posso amar, mas não posso fazer que alguém me ame,

Porque sou limitado.

Oh! Sentimento do umbral, por que me persegues?

E, me dizem:

“Não fale somente de si!”.

Mas como escrever sem subjetividade

Se falo do que sinto na realidade?

A quem é dado descrever o inefável?

O poeta não fala do que vive

Fala do que pensa,

Pois se vivesse o que pensasse

Sua vida seria um dilema.

Não fala de tudo o que sente,

Mas do que fala, não mente,

Pois sente o que vive,

Mas não vive tudo o que sente.

Enxerga outra realidade

Que os olhos não podem ver

Sem os óculos da simplicidade

E sem nenhuma vaidade

Demonstra ao menos saber

Que sabe do que sabe como um sábio

Que atravessa um rio sem temer,

Pois nem sempre o que há de diferente

O faz chegar ao outro lado;

O que enxerga é o mesmo lado modificado

Pela emoção daquilo que sente

Ao enxergar de diversos modos

O que há em sua frente,

Mas não mente!

Sente.

Ri vendo que na verdade

Ninguém pode ser feliz

Aspirando à eternidade.

Ao eterno e infinito

Dá o seu veredicto,

Mas não é vidente

E por mais que tente

Agir descaradamente

Não mente no que sente

É prudente.

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Olhando para o que ficou:

Um café que restou na garrafa e que não quero jogar fora;

Um aparelho que se estragou novamente, no qual muito investi;

Um grande amor que cultivei com ardor e agora foi embora;

A vida de muito sofrimento, porém com muitas batalhas que venci;

Os sonhos que alimentaram a esperança do que nunca conquistei;

O destino subterfúgio do irracional;

Um divertimento sádico;

Silêncio macabro;

Ironia orgulhosa;

Beleza monstruosa

De sabedoria imponente

Provinda do que sempre esteve presente,

Pois nem tudo que é evidente é convincente;

A falsa humildade daquele que descobre

Que a verdade mergulha as profundezas do ser

Do homem que não parece temer

O futuro nem sempre almejado, mas inevitável.

Para a vida uma mistura do bem e do mal:

Ser humano, ser mortal.

O vulnerável apodera-se do ser:

A viola sem corda;

O horizonte sem sol;

O carro sem roda;

Um demente que acorda;

O rio a secar;

Computador estragado;

Um fogão de madeira;

Uma casa sem telha;

Guarda chuva de açúcar;

Marreta de cera;

O fósforo queimado;

Uma roseira murcha;

Fugacidade do êxtase;

O fim da picada;

Um abismo na estrada;

O desmaio do atleta;

A ferida da flecha;

A ausência presente;

A manteiga bem quente;

A dúvida e a parada;

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O receio da morte;

A ânsia da vida;

Um furo no bote;

A mágoa reprimida;

A ira do boêmio;

Tristeza de um gênio;

Solidão do poeta;

Um empenado na seta;

O mal do milênio;

A alienação;

O fundo do poço;

Um quadro horroroso;

A dor da paixão;

O objeto que estorva;

Origem do terror;

A alucinação;

Palavras sem nexo;

O invertido reflexo;

A carniça do abutre;

Escravidão do vício;

O pranto inconseqüente;

Hipocrisia do vivente;

O fim do princípio;

A revolta do traído;

A ilusão do destemido;

A solução do gemido;

Existência sem sentido;

O grito do excluído;

O vazio que se sente;

A chave sem porta;

O ovo quebrado;

O canivete enferrujado;

Música de uma nota;

O amargo do fel;

A saudade do céu;

Uma noite sem sono;

Marasmo do derrotado;

O velho abandono;

O odor da bota;

A prisão do presente;

O passado que volta;

O futuro do doente;

Cabana sem dono;

Tétrico silêncio;

No lugar da calma,

A ira que se inflama;

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No lugar da alma,

A lama.

Enfrentando a ausência de sentido:

Se a vida é somente

Tudo isso que eu aturo,

Vivendo o presente,

Esperando pelo futuro,

Valorizando o que está ausente,

Quebrando este muro,

Que restringe a liberdade

De quem odeia convenções,

Manipulando a verdade

Ao bel prazer dos poderosos;

Deixarei que minhas ações

Não desviem da realidade

De meus desejos ambiciosos,

Deixarei que a morte

Dê sentido para a vida

E não a ausência de sorte,

Deixarei que o tempo

Faça-me cada vez mais forte

Para seguir os meus intentos,

Enfim deixarei a razão

Guiar os sonhos de outrora,

Para que os problemas de agora

Sejam um dia solução.

Se a morte não é o fim

De tudo o que sonhei,

Se sofrer um dor assim

É desdenhar o que busquei

Para os outros e para mim,

De nada mais lamentarei.

De que vale o palavreado

Como quem sabe do que fala?

Um sábio inerte em seu estado

É como um rio que secou,

Já não leva água ao mar;

Nem lago pode ser chamado,

Pois nem água lhe restou.

A quem a sabedoria é dirigida?

Quem é o mar deste rio?

De nada vale a experiência adquirida

Se ela é o subterfúgio do sofrimento,

De nada vale a vida não vivida

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Na espera do melhor momento.

A mim se antecipa o mundo,

Não sou mais que meus projetos;

E nestes caminhos incertos,

Caminharei qual vagabundo.

Afinal, quem é louco nesta história repleta de contradições?

Um homem atravessa o jardim e, pisando na grama, coloca um letreiro que diz: “Não pise na grama”;

O adolescente balconista de um bar passa por entre as mesas e prega na parede uma placa que diz: “É proibida a entrada de menores de vinte e um anos”;

O motorista do ônibus, fumando um cigarro, conversa ao volante com uma bela moça, acima uma placa diz: “É proibido fumar e conversar com o motorista”;

Um jovem seminarista leva para o quarto uma revista pornográfica e a folheia diante dos amigos ao lado de uma advertência que diz: “Deus te vê”;

O político que votou a favor do aumento do próprio salário aprova uma lei que diz: “Em vista de combater a corrupção...”;

Um policial repassa a cocaína apreendida a um grande traficante que usa uma camisa na qual diz: “Não use drogas”;

Um dirigente religioso entra em seu carro importado a folhear as partes de seu sermão que diz: “O Senhor me enviou para evangelizar os pobres”;

Um asmático compra na banca da esquina um maço de cigarros no qual diz: “Fumar causa problemas à saúde”;

Dois mudos conversam entre si e parecem dizer muito mais que os que têm a faculdade da fala, já que, neste mundo, tudo fala por linguagens excogitáveis, mas nada foge da contradição.

O mesmo ser humano de atitudes execráveis,

Complexo,

Limitado,

Que vive num mundo de situações instáveis

Reflexo de seu estado,

Demonstra o asco concernente ao ser:

Carnificina,

Abutres,

Morte que os fazem sobreviver,

Esterco de plantas.

Este ser alimenta-se da incerteza

De um não sei quando,

E se diz parte da natureza,

Esse é o mal do ser humano,

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Este é o mal de ser humano.

Nem sempre se percebe o que se vê,

Nem sempre se atenta ao que se escuta,

Nem sempre se sente o que se toca,

Nem sempre se gosta do que se prova,

Nem sempre se reage ao que se cheira:

Quão ingrato papel dos sentidos!

Preto, branco,

Mas nem tanto.

Cinza

Meio termo,

Ideal?

Normal?

E quem dita as regras?

Não há um ser que não seja completo,

Completo na ausência,

Completo na presença,

Ausência e presença a se completar.

Inteligível?

E há algo que possa ser completamente compreendido?

Nada é o que parece,

Mas o que se percebe, de onde vem?

Perguntas sem resposta

Que nunca serão respondidas,

Pois sempre estão postas

Diante das aparências,

Pois no fundo,

O mundo

É Camuflado em demências.

Quem pode afirmar com certeza que o universo é infinito?

Quem pode falar na realeza de um ser austero e destemido?

Alguém porventura poderia afirmar que a verdade é uma só?

Alguém na ventura diria que a busca do ser termina em pó?

Hipóteses,

Teses,

Antíteses,

Sínteses:

Tudo converge ao nada,

O nada se difunde em tudo.

Somos pó ao qual voltaremos?

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E poderia o pó juntar-se a formar novamente o que somos?

Se viemos do pó,

Não voltaremos ao pó:

O imprescindível precede à existência,

O inexeqüível nem sempre é sinal de insuficiência;

Se contrária a reação se faria,

Contrária à contrária a reação nos reintegraria.

Não viemos para onde vamos,

Nem mesmo sabemos onde estamos

Na escala do universo

E como formar uma ordem de situações tão conspícuas?

Perguntas muitas,

Respostas nenhumas,

Todas Hipóteses.

Mediocridade ou visão da realidade?

Angústia da incerteza,

Tristeza da certeza,

Verdade irrefutável,

Segredo indesvendável,

Incerteza da verdade,

Certeza de um segredo,

Sensação agradável,

Proporcionada pelo desapego,

Pois, neste mundo tudo é degredo.

Num hospital onde paciente não tem paciência:

O que fazer agora?

Estou diante de um dilema:

Se subo imediatamente

Atenderei este doente

Cujo corpo de febre queima,

Mas se subo para o andar

Deixo outros pacientes a esperar

Outros medicamentos que não poderei separar.

Se subo pelo elevador

Mais rápido chegarei para aliviar-lhe a dor,

Mas se ele está enguiçado

Subo pelas escadas apressado,

E quando chego em seu quarto

A enfermeira grita: “traga outro medicamento, rápido!”.

Quando desço pelas escadas

Vejo minhas forças minguadas,

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Mas ouço um telefonema

E recomeça o meu dilema.

Quem ajudou o paciente

Agora sofre a dor presente:

Várias veias estouraram

E as outras que sobraram

Podem estourar de repente.

De onde parte a arte que me faz sua parte?

Seus olhos penetraram em mim invadindo-me a alma; invasão ilícita, mas se toda invasão é ilícita como aceitá-la sem revanche?

Neste instante instável o espetáculo espera o ator ou o ator espera o instante?

Na noite de agonia um livro espera a vida ou a vida espera a agonia?

Diante do belo horizonte o quadro espera a tinta ou a tinta espera o horizonte?

Ao redor da beleza multidimensional a argila espera a forma ou a forma espera a beleza?

No cume da paixão a música espera a melodia ou a melodia espera a paixão?

Há algo que espera, há algo que é esperado,

Mas há muita gente que erra, esperando o que é passado.

Para tudo o que há na terra, a cultura tem seu traço,

O feio bonito se revela, pois, a beleza não está naquilo que se toca, se ouve, se vê, se sente, a beleza está na gente.

A cena em cena ensina

Que o que se encena

Também se ensina.

O fardo fadado ao já ofegante

É prova que comprova este instante

Em que o fardo do enfado a mim fadado

Desde o momento em que fui gerado

Gera a sensação da descrição do inefável:

Nele me perco, me encontro, tropeço,

Mas insisto em compartilhar com o mundo meus versos.

É chegado o momento no qual o inevitável torna-se precipitado

E o nunca feito torna-se sempre lembrado.

Chegando em casa, um desenho de criança que desperta o efêmero:

Flores do tamanho de casas,

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Casas fora de prumo,

Porta sem fechadura,

Uma ave de gigantes asas

Que quase chega ao sol.

Harmonia que dura

Numa paisagem sonhadora

De quietude e paz.

Nada está fora do lugar

Para quem sabe sonhar,

Pois a perfeição que ela traz

É a prova de que o inimaginável

Não existe debaixo do céu.

Devaneio no qual me enleio,

Fantasia que me faz viver

Num mundo quase perfeito.

Agora meu único receio

É me esquecer

Da matéria vil da qual sou feito.

Qual é a diferença

Entre o sonho e a realidade?

Entre a tristeza e a ilusão?

De que me importa a minha idade

Se já passei pelos desmandes da paixão?

Se há uma felicidade

Mesmo tratando com desdém a razão,

Se viajo estando parado,

Se sou feliz em meu enlevo,

Desprezo a realidade este pesado fardo

Que transforma minha vida em pesadelo.

Olhando para o céu a escurecer:

E quando nada mais me resta,

Senão esperar pelo anoitecer,

O dia se torna claro

E as dúvidas de outrora se dissipam,

O espírito em clima de festa

Esquece-se do corpo a sofrer

E um sentimento raro

Faz-me olhar para as estrelas

Que ainda não se avistam.

Quando a estrela-rainha

Esquecer de seu próprio brilho

Também aquela que caminha

Em direção do infinito

Mostrará seu brilho intenso,

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Mas seu calor imenso

Não chegará até aqui.

Aqui só chega quem é luz

E com magia me seduz,

D’outra forma não seria

Aquele que, um dia,

Disseram-me ser o firmamento.

Alta madrugada na qual os sentimentos recônditos se manifestam:

Na solidão o reconforto que espero,

Não vem do amor que ainda não tive,

Não vem do rancor que em mim retive,

Não tem o sabor daquele que não vive,

Não tem o horror desta noite de inverno,

Tem a angústia de esperar em vão

Apalpando no escuro para caminhar,

Tem o êxtase fugaz de uma canção

Que se ouve sem a cantar.

Tem o ódio reprimido disfarçado em paz,

Tem a esperança que disfarça a ansiedade,

E a ausência do que já não é disfarçado em saudade.

Enfim, o reconforto que espero

Ninguém nunca o trará

A menos que este alguém

Deixe de ser ninguém

Para em minha vida entrar.

Arrependimento ou remorso?

Antigo como o fóssil que vi no museu há três anos,

Assustador como o acidente que vi na estrada há três semestres,

Atraente como a mulher que vi no ponto há três bimestres,

Maligno como a injúria que sofri há três meses,

Embriagante como o licor que bebi há três dias,

Fantasioso como o filme a que assisti há três horas,

Nojento como a barata em que pisei há três minutos,

Súbito como a dor que senti há três segundos:

Enfado do pecado.

Um novo dia, uma nova ilusão:

Alvorada, arrebol, amanhecer,

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A noite da angústia terminou

Até parece que um novo ser

De meu corpo se apossou.

Já não demonstro a vida temer

E a amiga morte se distanciou.

Cogito novos planos para o dia

Cheios de otimismo e certeza

Com doses de louca paixão

Esqueço a solidão e a agonia

De quem despreza a beleza

Da noite fria de escuridão.

Meio dia o relógio bate

E eu já estou cansado,

Se o tempo disparasse

Faria-me um bem danado.

Já não tenho o ânimo de quem parte

Estou pusilânime, fui logrado.

E agora o que me resta

É pela tarde da revolta esperar,

Pois o dia não me parece belo

Quem se deleita de uma festa

Em que se arde de ira ao se notar

Sobre a areia da ilusão um castelo?

Oh! Noite quanta saudade senti

De teus véus negros enfeitados

De estrelas qual ouro que perdi

Que a mim agora deixam extasiado.

Neste dia em que quase sucumbi

Como não esperar o seu terno cuidado?

Venha amiga morte mostrar-me o sentido

Venha solidão companheira fiel

Venha agonia da hora do terror.

Já não lamento o que não foi vivido

Olhando para seu majestoso céu

Sinto-me no mundo como um medíocre ator.

O que fazer?

Decisões contínuas do viver,

Ambições que estão escondidas,

Sensações de ser imortal

Que foram reprimidas

Quando se deparou com a realidade banal.

Decisões mudadas a cada instante

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Voltando ao ponto de partida,

Fazendo uma curva na estrada,

Caindo no abismo do mistério,

Falando com os mortos no cemitério,

Desistindo por instantes da caminhada,

Voltando ao caminho determinado,

Na ilusão de que tudo está certo

E, quando o destino estiver perto,

Sentir-se ludibriado

Por não ser o que se esperava.

Voltar ao cruzamento anterior

E tomar outro caminho pensado

Entregando-se às volúpias do amor

E por ele ser injustiçado

Percebendo que não existe perfeição

Em amar sem ser amado

E, por ter novamente errado,

Voltar ao ponto de partida

Descobrindo outros caminhos,

Perfeitos no pensamento,

Aprazíveis a quem os percorre,

Mas novamente o destino

Traz o lamento

Da ausência,

Pois sua essência

Do caminheiro é alimento

Já que só se caminha com veemência

Se se tem o tormento

Do tédio e da angústia do ser.

E assim se vão anos após anos

E muitos fingem ter chegado

Ao destino tão almejado,

Mas por serem humanos

Devem esconder seus desenganos

Do tempo que passou

E os ludibriou,

Trazendo a grande amiga

Dos que sofrem nesta terra

E a grande inimiga

Do iludido que erra

Mesmo que no caminho

Cheio de espinhos

Nunca volte,

Enganou a si

Pensando ser eterno

E a realidade lhe traz a morte.

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A natureza reflete a humanidade sem humanidade

A terra vomitou, pela boca de suas placas tectônicas, o magma presente em suas vísceras;

Um Ascaris lumbricoides encontrou-se no vaso sanitário com seu colega asquelminto Enterobius vermicularis;

O vírus, este intruso sapiente, entrou na célula, parasitando-a e fazendo-a de concubina a reproduzir seu DNA;

O gene, diante da cultura machista, mostra que o cromossomo paterno é que irá definir o sexo da criança dando ao cromossomo materno X um outro X para originar uma mulher (pois ela não necessita de variedade) ou um Y para originar um homem;

O mundo da competição capitalista inicia-se no útero onde o espermatozóide mais esperto será o único a alcançar o horizonte buscado por todos os outros, o óvulo;

No habitat a Seleção Natural se encarrega de eliminar pela lei do mais forte aqueles que por ventura ainda chegaram à terra sem o “merecer”;

Várias espécies traduzindo o egoísmo humano se reproduzem assexuadamente sem a necessidade de quem lhes cobre a responsabilidade desse novo ser;

Outras espécies imitam a hipocrisia da humanidade parecendo ter atitudes de comensalismo e mutualismo, mas, agindo de forma parasita e predadora;

Um fato traz esperança de igualdade aos pequenos: ossos foi o que restou dos monstruosos seres que habitaram a terra por duzentos milhões de anos anteriores ao período Cretáceo da era Mesosóica;

Eu, um Homo sapiens sapiens, da família Hominidae, da ordem dos Primatas, da classe Mammalia, do filo Chordata, do reino Metazoa, vejo que não sou nada diante de toda esta complexidade repugnante, e, por falar nisso, nada poética!

O que é a fugacidade?

- Tomara que chegue o momento...

- Foi bom enquanto durou!

Como desdenhar o que foi vivido?

Não vou disfarçar minha revolta

Contra esta vil difamação,

Nem tudo que vai volta,

Nem todo pensamento é oração.

Não vou dilacerar a verdade

Numa falsa humildade,

Pois sou um ser humano

Dotado de razão e emoção.

Nem tudo o que querem de mim

Pode ser considerado tão bom assim,

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Pois quem me aconselha

Também é limitado

Como uma centelha

Que origina um grande fogo

E causa enormes estragos.

Nem tudo que brilha é diamante,

Mas a beleza deste instante

Não é porque venci minha ira,

Mas porque, com ela,

Dei novo rumo à minha vida.

Clareza de quem não mais oculta a hipocrisia da humanidade:

Há um homem na estrada que grita

Louvores a um terrorista:

“Bendito seja o destruidor

Da morte e da dor,

Maldito seja o sofrimento

Causado pelo conformismo do amor!”

Outros o querem calar

Por medo do que possa acontecer,

Pois quem a verdade mostrar

Grande perigo poderá correr.

Ninguém dorme de pânico

De que o revide do “bem” venha

Com um avião sobrevoando a favela

E, ao cair nela

Stshpó...

É engraçado o que a TV

Conseguiu provocar:

Mesmo quem não precisa temer

Não pára de se angustiar.

É a noite do lamento

De um mundo imerso na ilusão

Por medo de quebrar “a ordem estabelecida”.

E o que é vida?

O que representa a liberdade?

Angústia?

Esperança?

Tudo em vão.

Para que esperar outro dia

Se a vida repete o mal?

Péssimo gosto da humanidade

Aceitar como sendo a verdade

Aquilo que ameaça seu ser mortal.

E quem é chamado de louco

Não se finge mouco,

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Mas demonstra o pecado original,

Porém não culpa alguém no passado

Já que quem origina o pecado

É a desigualdade social.

Mas... quem é o culpado?

O Estado!

Então chamem-no para o interrogatório

E seu aprisionamento provisório

Dar-se-á imediatamente.

E quem é o Estado?

Perguntou-me assustado.

E respondi em tom acusatório:

A gente!

O professor finge que ensina,

O aluno finge que aprende,

O otimista finge que sua sina

É esperar sofrendo sorridente,

O padre finge que tem fé,

O médico que cura o doente,

O pessimista se finge de realista,

O moralista se finge de sapiente,

O adolescente finge que resiste,

O pobre finge que é rico,

A mulher finge que está triste,

O alpinista finge que chega no pico.

O caridoso finge que tem amor,

A viúva finge que chora,

O doente finge que supera a dor,

O caminheiro finge que vai embora,

O presidente finge que governa o país

E a gente finge que é feliz

Para terminar esta história.

E um paciente do hospital,

Tentando ser racional,

Chega à simples conclusão:

“E dizem que eu é quem sou louco

Nesta realidade de contradição”.

Minha vida, eterna amiga:

Na madrugada de intenso anseio

Em que tudo o que busco se concretizar

Ou que, ao menos, eu deixe de buscar,

Mesmo que os sofrimentos da vida ainda suporte,

Não me deixes pela vida em devaneio,

Leva-me contigo amiga Morte.

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Mas se na vida algum bem puder fazer

Por aquele que de mim se aproximar,

Limita-te a apenas me lembrar

Que o sentido de minha vida não é só meu

Para que assim eu não venha perder

A oportunidade que amiga vida me deu.

Se vieres acompanhada de dor

Permita que ao menos o sorriso em meus lábios

Seja para os que ficam conselhos sábios

De quem reconhece humildemente o que é a vida,

Mas que eu não seja simplesmente como um ator

Sofrendo calado a mágoa reprimida.

Chega suave, pois sem temor te espero,

Mas não deixes que minha luta seja em vão:

Quero que todos que de mim se aproximarão

Aprendam a viver a verdadeira felicidade

Vendo que diante de ti não me desespero,

Pois sempre agi em busca da verdade.

Que eu não deixe meu trabalho incompleto,

Quero plantar o amor nos corações de toda gente,

Quero ver brotar a verdadeira semente

E dar frutos dos quais eu mesmo provarei,

Pois seria comigo mesmo desonesto

Se não quisesse ver os frutos que cultivei.

Que somente aquilo que exprime a eternidade

Seja, para os que ficam, fundamento

De uma construção até o firmamento

Que se constrói com verdadeira união,

Porém não seja uma obra da vaidade

Daqueles que usam como escada o irmão.

Mostra também ao sofredor iludido

Que a amiga vida é a tua parceira

E quem a despreza e te receia

Certamente não ficará sem receber

De ambos um grande e cruel castigo:

Passar pela vida sem viver.

Quando finalmente se der nosso encontro,

Sê solícita aos que se aproximarem de meu caixão,

Que todos festejem, pois não vivi na ilusão

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De quem se esquece da amiga vida e sua beleza.

Amo-te por isso sei que sempre estarei pronto

Apesar de deixar a outra amiga na tristeza.

Eterno, esse é o tempo para ti,

Infinito, esse será da certeza o tamanho,

Pois no além não serei mais estranho

Da verdade que busquei insistentemente.

Nesta hora dir-me-á a amiga vida a me sorrir:

“Não me deixarás, para sempre serás vivente”.

Deixando o corpo minha alma se libertará,

Mas quero ser uma boa lembrança ao pensamento

Daquele que avistar minha cova em um momento,

Que escrevam num epitáfio belamente ornado:

“De minha carne a vida brotará

Nada impede o amor de ser cultivado”.

Começo do fim, fim do fim:

Para uma história alegre

O final é sempre triste,

Pois naquilo que segue

Alegria já não existe.

Para uma história triste

Todo final é alegre,

Pois tristeza não há no que segue.

Assim, o que causa dor

Nem sempre o é para todos;

Assim, o que representa o amor.

Nem sempre o é para todos.

Até para a morte inventaram um subterfúgio consolador:

Morreu, mas descansou.

E a esperança, a última a morrer

Morre de solidão, pois sozinha no universo

Não há mais sentido viver.

Quarta Parte:

Cartas para meu eu

12/08/2000

O que escreves?

Uma carta para Mim.

E o que dizes?

Não digo, escrevo.

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Sobre o quê?

Saberei quando a receber.

Caro Sr Mim, muitas pessoas vivem procurando por si mesmas e, mesmo sabendo onde elas podem se encontrar, relutam pelo receio de não agir corretamente. Estas mesmas pessoas se lamentam por não terem feito o que deveria ser feito e por não terem agido conforme o primeiro intento. Você sabe que não se pode precipitar, mas também é preciso ter cautela para não permanecer no ponto de partida.

Escrevo esta carta, pois sei onde você se encontra e desejo lhe conhecer de maneira mais íntima. Ao contrário de muitas pessoas que vivem enganando às outras mostrando-se corajosas e destemidas diante dos desafios da vida e, com isso, enganando a si mesmas, eu sei o quanto você procura discernir o caminho a seguir através da introspecção. Isso não é fácil, pois, a cada decisão, assume-se mais um fardo: a responsabilidade. Não se pode voltar atrás, não se pode permanecer no ponto de partida (é proibido estacionar). Pode-se, porém, pegar um atalho atingindo assim a estrada na qual deveria ter começado a caminhada.

Não se preocupe. A vida é infinita no ciclo da natureza, não há porquê se preocupar, pois o tempo é invenção dos homens. Pode ter anoitecido, mas o sol não deixou de brilhar. Que importância faz se uma estrela pode não mais existir? Lembre-se que por algum tempo sua luz ainda irradiará pelo universo e, quando nem

mesmo esta puder ser vista, ainda existirão outras que prosseguirão nessa missão.

Hoje você não fez nada de extraordinário, aí está a magnitude da vida: se todos os dias fossem aventuras poderiam cair da mesma monotonia da rotina. Perceba a importância do dia de hoje: você se levantou, entrou em sintonia com o artista do universo, planejou passos a serem dados, pesou ações, descansou da rotina e agora pensa em você mesmo, afinal de contas a primeira pessoa que deve estar feliz é você para que sua felicidade se irradie a todos que também a buscam.

Na hora em que os pensamentos insanos

São tidos como sábios,

Vejo que algo extraordinário

Promove a minha aceitação de humano;

Reconhecendo-me limitado

Depois de vários intuitos frustrados,

Escuto alguém a me dizer

Os passos a serem dados.

De quem será esta voz que fala?

Quão prazer eu tenho em escutá-la.

Não sinto o forte gosto do mel,

Pois, me deleito no meio-termo.

Não sinto o barulho ensurdecedor de um som,

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Pois me deleito no meio termo.

Esta voz é ideal,

Mas não sei se entra em meus ouvidos

Ou se sai de meu coração;

Mas sei que é real.

Serão meus desejos reprimidos?

Acredito que não!

14/08/2000

Por que lamentar o leite derramado? É um provérbio muito falado e pouco utilizado na íntegra. Alguns fatos não lhe satisfizeram, você esperava por algo novo e esta espera não foi satisfeita. Como um médico incapaz de curar a si mesmo tinha nas mãos o remédio para a sua ansiedade, mas não o conseguiu alcançar para si. Relembrar estes fatos pode parecer voltar a lamentar, lamentar por ter lamentado, como você mesmo diz: “o ser humano é um eterno ansioso e saudoso”. Você não pode se isolar do mundo, você é parte dele. A melhor forma de viver bem com a vida é entrar em sintonia com a realidade que o cerca e crescer cada dia mais, pois a sabedoria é infinita e, por isso, o sentido de sua vida. Em decorrência disso, sua vida terá sempre sentido.

Você também sabe, melhor do que ninguém, que o ato de desapegar-se do material (incluindo você mesmo) pode lhe trazer a plena liberdade, uma liberdade

que não seja limitada pela vontade de outros, mas que entre em consonância com todas as buscas no plano supra-sensível. Outro fato mostrou-lhe que o melhor argumento em certas ocasiões é o silêncio. O silêncio que analisa, traça planos e descobre o melhor caminho. Quando você silencia, não está deixando de expressar o que pensa, apenas o expressa de outra maneira, afinal de contas foi a sua vontade que determinou a vontade de não falar. Se sua liberdade fosse envolta por uma abóbada intransponível, ela seria limitada pela mesma e deixaria de ser o que é. Ela não tem limites, conseqüentemente, por onde se expande, é sempre atingida por outros. Quem lhe diz o que é a liberdade é a pessoa que o quer manter sob domínio, quem lhe interroga o silêncio é o que mais insatisfeito está com a situação na qual se encontra. Lembre-se: sua satisfação, seus desejos e seus passos não devem nunca ser pré-estabelecidos por outros, quem sabe o que é melhor para você senão você mesmo e o Deus que em você habita? Isso não é prova de egoísmo, mas de determinação.

Mas é difícil não dar ouvidos

A certas palavras que com veemência

Entram em meus ouvidos:

Calúnia e difamação

Sempre deixam uma ferida

Que dói e punge.

Olhando ao meu redor,

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A vulnerabilidade se apodera de mim,

Percebendo que buscando o bem,

Acabei por sofrer uma dor assim.

Ingratidão não doera tanto,

Incerteza, tampouco.

Mas acusado sem defesa,

Silencia por não saber

Como se defender

E nem sempre por optar

A com o silêncio argumentar.

A liberdade a que aspiro,

Não se baseia no material,

Por isso, para mim é banal,

O desapego comprobatório.

Quem sempre relembra a ausência,

Acaba tendo a presença,

Pois, o pensamento

É da realidade a essência

16/08/2000

Ninguém está livre de calúnias. É a prova de que todos somos notados. Você às vezes se sente o centro das

atenções, como se todo o universo só se preocupasse em lhe satisfazer. Como você pode conciliar a liberdade que aspira e o desejo de arraigar-se no pensamento das pessoas? Este desejo é o que faz com que apareçam as diversas opiniões a seu respeito, afinal de contas, expressar o que se pensa e falar o que se sente é desnudar-se perante o outro. Se você é acusado de algo que não fez não há por quê se preocupar, tudo se resolve em seu devido tempo. Você pode ficar consternado e, até mesmo, compungido, afinal, você é um ser humano que busca o melhor para si e para os outros e, na vida, toda busca que é frustrada deixa os estigmas que pungem por causa do vazio de algo não cumprido, um caminho não percorrido, uma meta não alcançada. Mas você sabe que fez o melhor! Se algo saiu dos planos é a prova de que o inesperado também deve fazer parte de seus planos. Se você foi caluniado e tem consciência disso não precisa se preocupar, pois você foi merecedor de uma atenção que lhe foi concedida, isto é, você não está sozinho. Se você plantou boa semente e não colheu bons frutos, isto significa que ainda não chegou a época da colheita, se você caiu é prova de que se dispunha a caminhar, se espera por boa colheita é prova de que semeou com amor. A coragem de agir se entregando totalmente a um ideal é nobre de sua parte. A vida não é uma pugna, mas nela sempre buscamos vitórias: podemos não ganhar a guerra, porém venceremos algumas batalhas. A escolha é sua: se vai esperar inerte em seu lugar pela derrota integral ou...

Se caminhar sem saber

Que caminhos percorrer,

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For uma busca em vão?

Ponho-me a caminhar

Para em momentos afastar

O tédio e a solidão,

Mas como prosseguir

Se não tenho algo a perseguir?

Posso olhar com gabo para o sofrimento

Que torna mais tortuoso meu caminho?

Quem muito caminha

Nem sempre sabe onde anda,

Quem se perde

Também pode caminhar com confiança,

Mas nem sempre se alcança

Um objetivo do passado.

Quem busca o inimaginável,

Quem inventa um desafio,

Poderá nele definhar,

E se porventura isso não acontecer,

Como se orgulhar de algo,

Criado para satisfazer

A ausência de sentido?

Se alguém comprova minha existência,

Aumentando as pedras de meu caminho,

Peço que me ignore,

Melhor será a dor da rejeição,

Do que ser reconhecido por espinhos.

Ao homem de muita ciência,

Pedirão para esclarecer,

O motivo de minha atitude,

E escutarão simplesmente:

“Primeiro sinal de demência”.

18/08/2000

A comunicação é o que rege a vida do ser humano. Já que o homem é um ser social ele precisa se comunicar de alguma forma: por um sorriso, por um gesto, por palavras, pelo silêncio que ora representa indiferença, ora inconsciência, ora não-concordância e ora conivência. Agora me comunico com você desta forma, mas teria infinitas maneiras de expressar o que aqui menciono. Havia guardado na memória tanta coisa para lhe falar, mas tudo parece mergulhado como uma pedra atirada ao mar; sabemos que ela se encontra lá, mas nunca vem à tona. Do mesmo modo, não me recordo o que guardei para lhe falar. Pode parecer algo banal, todavia no momento em que eu relembrar o que agora se encontra perdido nas inúmeras lembranças registradas em mim, lamentarei por não o ter feito antes.

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Hoje percebo que a falta de comunicação, ou melhor, a falta de percepção e atenção é o que traz a maioria dos males e que acaba desencadeando nos mais inopinados desentendimentos. Fala-se demais, porém, a todo o momento há uma interpretação diferente do que é falado: ora se contradiz, ora se torna redundante, ora se torna ambíguo, ora se perdem palavras inúteis na loquacidade. Você mesmo, se voltar a ler esta novamente, terá interpretações somadas às novas visões, a realidade lhe extinguirá o que antes era apenas o ideal e você terá quantas interpretações, quantas vezes voltar nessas palavras.

Pense: a vida seria talvez bem mais cômoda se nós não precisássemos fazer tanto para que o outro perceba sempre o que realmente desejamos: sua atenção, ou melhor, a atenção dele.

O silêncio se torna remédio

Quando não se tem o que falar;

Quando o silêncio se torna tédio,

Ao menos posso reclamar;

Se tudo o que vejo não me traz

Nada que me acrescente

Como posso ser sagaz

Nessa realidade do inconsciente?

Se algo é ruim não deixa

Que sua existência seja em vão;

Se algo é bom não deixa

De também produzir alguma ilusão.

Nem tudo é perfeito a ponto

De em nada deixar a desejar;

Todavia nem tudo é tão mal,

Mas também sua contribuição poderá dar

Para os seres que buscam se comunicar.

Palavras nem sempre têm

A missão que lhes é destinada,

Muitas vezes também

Poderão ser mal interpretadas,

E se, porventura, não produzirem

O mesmo efeito do pensamento,

Não deixarão de agir

Transformando o sentimento.

Sua existência não tem sentido

Determinado pela razão,

Sua eternidade tem efeito

Prolongado pela emoção.

Palavras nem sempre são

Inferiores aos atos,

Pois podem causar combustão

Construindo ou causando estragos.

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22/08/2000

Quando você não se sente o centro do mundo, você começa a refletir sobre a sua existência. Com certeza, pensar é comprovar a existência, porém não é necessário estar vivo ou acordado para existir. Há sonhos que se assemelham tanto com a realidade que chegam a nos confundir. Viajar nos sonhos é divagar no tempo, adiantar ou atrasar o relógio da vida. As pessoas que convivem com você são as primeiras a atestar a sua existência, mas você tem um receio: e se elas forem apenas personagens criados para satisfazer o seu ego solitário? Parece que você é um ser autômato e que todas as pessoas perscrutam os seus pensamentos. Parece que todos lhe conhecem mais profundamente que você mesmo e sabem qual será o seu destino. Perto de você todos parecem tão seguros do que querem e mais, parecem tão seguros do que você quer! A vontade que lhe dá é de pedir que lhe digam as atitudes a serem tomadas, todavia, se mil pessoas você perguntar pela opinião, mil respostas diferentes você vai obter! Que bom! Isso prova que todos os seus receios são somente impressão. Na verdade é necessário bem mais que um palpite para que alguém navegue em seus pensamentos. Você é ser que sente emoções, mas sabe controlá-las; raciocina com lógica e sabe o momento certo de utilizar este raciocínio. Como você, todos estão em busca de si mesmos. Todos confundem a felicidade com o prazer, a tristeza com os momentos tristes, o amor com a ausência, a liberdade

com a libertinagem, a omissão com a paz, a esperança com a ilusão e a precipitação com a coragem.

Nestes momentos de vazio

É quase impossível não ouvir

A voz das pessoas que dizem

Com certeza convincente,

Dando-me várias sugestões

Sobre o caminho a seguir.

Mas percebo em todas elas

A angústia do homem livre

Presente em todo ser vivente.

Se o vazio não é presença,

Não posso dizer que sou triste,

Nem mesmo que a alegria existe.

No dia que me disseram

Que todos têm suas próprias razões

Compreendi que não há erro

Quando se rejeita as convenções.

Aquele que me fala,

Certamente não declara

O que se passa em meu ser;

Não se fala da verdade

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Mostrando como ela é,

Mas como ela é vista

Aos olhos de quem pensa

Conhecer a realidade.

Se ausência não é presença

Por que se viaja no que se pensa?

O pensamento é que dá forma,

É o espírito da matéria,

É a razão de sua existência.

Então quem pensa que é feliz

E sabe dizê-lo sem ofensa

Não fica sem a recompensa

De quem sabe o que diz.

24/08/2000

Há dias em que você sente um certo desânimo, vontade de esquecer do mundo, do tempo, da vida. Mas parar não parece a melhor solução. Como se desligar de algo inerente à vida de todo ser humano: a rotina? Mesmo que você entre em um estado de inércia física, não poderá alcançar um estado transcendental se não se desapegar de todas as suas ambições. Não é necessário ser ambicioso para ser determinado. Você se preocupa demais. Que tal parar um pouco e imaginar-se em uma viagem

intergaláctica visualizando astros nunca vistos e formas de vida superiores ao ser humano. Veja como somos limitados e minúsculos diante desse universo incomensurável. Nem mesmo o que dissermos é integralmente cognitivo: um mistério nunca tem solução, um segredo nunca tem propagação, o infinito não tem fim, não se pode imaginar o nada. Quem poderia afirmar, incólume de refutações, o sentido pleno do mistério, do segredo, do infinito, do nada. Sabedoria dos loucos ou loucura dos sábios? Todavia alguma força rege este universo, alguma sabedoria o criou, um artista ao concluir uma obra prima chega a ficar escravo e senhor desta. O princípio único de todas as coisas poderia ficar submisso à sua criação? Não! O artista retrata o que sente e não o que vê sem a emoção. Já o poder superior é a força que equilibra o que não pode ser compreendido.

É evidente que o incógnito

É também inevitável,

E toda dúvida herdada

Parece propagada

Num tempo interminável.

Chegar a uma conclusão

E voltar ao ponto de partida

É perceber inúmeras dúvidas antes não percebidas.

Imaginar uma realidade perfeita

E nela mirar meus sonhos

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É perceber que a vida deve ser refeita

A partir do que agora exponho.

Se ninguém afirma com certeza,

Sem risco de refutações,

Uma verdade que além da beleza,

Seja dotada de minha ambições,

Delas me desfarei

Não por serem meras quimeras,

Mas por serem inalcançáveis na terra.

Uma noção do que é a verdade

Far-me-á caminhar sem rumo,

E se por acaso no mundo,

Encontrar algo mais aprazível,

Desprezo o sofrimento e me entrego ao impresumível;

Pois mais vale caminhar sem rumo reconhecendo-se perdido

Do que a decepção de nunca alcançar o objetivo.

Se agora parto esperançoso,

Não será para mim espantoso,

Um desespero repentino,

Já que quem erra o destino,

Nem sempre despreza o caminho percorrido.

Se depois volto a ter esperança,

Não serei incoerente como uma criança

Que nunca soube que queria,

Pois no momento só me resta apenas,

Viver bem cada dia.

26/08/2000

Você sabe quanto se esvai quando se entrega ao poder das emoções. Elas não podem estar ausentes de sua vida, mas não podem lhe impedir de enxergar claramente. A razão é permeada pela emoção, é ela que julga, que pesa, mas é a emoção que escolhe e determina o caminho a seguir. O que parece estranho é o fato de certas lembranças virem perturbar os seus pensamentos. Não se esqueça, amamos aquilo que não temos: o passado. Estas lembranças colocam você numa situação saudosa, porém poderosa. Muitas pessoas deixam para perceber tarde demais os momentos que são realmente importantes, você, porém, os viveu com intensidade no presente e não lamenta aquilo que deveria ter feito. Sabe melhor do que ninguém a conseqüência de seus atos. Então, como explicar o motivo destas lembranças lhe causarem inquietação? Eis a resposta: a vida acontece em ciclos, isto é, os fatos voltam a acontecer e o que mudam são somente as maneiras de encará-los. A maturidade, as “novas verdades” e até mesmo os diferentes graus emotivos para cada momento fazem com que tudo pareça

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diferente. Na vida não se prepara para os acontecimentos, se depara com os mesmos. Quantas vezes você planejou agir de uma certa maneira e agiu de outra? Isso não depende de você e não é peculiaridade sua porque a diferença entre a teoria e a prática é que na teoria agimos sem prever os imprevistos e se os prevemos, não serão imprevistos, não conseguimos superá-los, pois toda situação é inusitada e singular.

Buscando conhecer a verdade

Optei por agir com liberdade;

Buscando planejar minhas ações

Deixei-me tomar pelas emoções

E com os fatos inopinados

Pelo destino enviados,

Tive muitas decepções.

Agora busco apenas

Uma paz mesmo que ilusória,

Qualquer coisa desde que peremptória

Que me dê uma alegria amena.

Já não importam os males do mundo,

Já não me importa o que sou para este,

Mesmo que por um segundo

Eu tente com racionalizações

Demonstrar todas as razões

De minhas atitudes quase insanas,

Sou livre, pois determino

Que nada é determinado

Por minha limitação humana.

Navego de acordo com a corrente,

Caminho por caminhos planos e retos,

Se não há luz acendo uma lanterna,

Se não há calor acendo uma fogueira,

Se não há ânimo paro para descansar;

Nem sempre estou sorridente,

Mas deixando os caminhos incertos,

Percebo o quanto percorreram minhas pernas,

E sem deixar tampar meus olhos a poeira

Posso com as estrelas meditar.

Se me dizem que esta não é a verdadeira

Fonte de felicidade,

Mostro-lhe minha finalidade,

Apelando para a simplicidade,

Pergunto-lhe se é feliz.

28/08/2000

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Você tem que admitir: ainda está propenso a agir de acordo com o grau de aceitação das pessoas. É louvável que você perceba isso, mas não basta. Você tem que se lapidar dando novas formas às suas atitudes e se esforçar na prática da virtude. Mas o que é a virtude senão toda força que o faz agir sem interesses próprios, algo que não depende de seus gostos e opiniões e que o faz desvencilhar-se do reconhecimento das pessoas. Toda possibilidade vem acompanhada de algumas dificuldades. Você sabe que sentimento se apodera de você no momento em que demonstra direta ou indiretamente orgulhoso por ser ou ter feito algo. Não é fácil dar rumo à vida sem dar ouvidos a tantas opiniões que lhe jogam ora para um lado, ora para outro. E os acontecimentos? Não se pode prevê-los, mas suas decisões dependem de um determinado fato acontecer. Logo sua vida é norteada pelas pessoas que sugerem, pela emoção que seleciona, pela razão que escolhe e pelos futuros acontecimentos que confirmam o seu destino. Você é livre, mas esta liberdade não teria sentido algum se não fosse buscada na vivência entre os outros. A pior prisão que pode tornar a vida sem sentido é a solidão. Amar é se entregar a um ideal e não se apossar das chaves do domínio dos acontecimentos. O que virá depois do agora não depende de você. Até mesmo sua maneira de pensar faz com que você seja convicto de que todas as pessoas, apesar de não admitirem, sejam influenciadas por outras ou por algo provindo das mesmas.

Se não depende de mim

A previsão do imprevisto,

Se não depende dos outros

De minha vida o sentido,

Se não depende dos céus

Que me deram o livre-arbítrio,

Então o que determina

O caminho a seguir?

Qual é o combustível

Que vem minhas forças nutrir?

Desvencilhar-me do mundo tentei

Pensando encontrar a felicidade,

Mas agi como uma criança;

Nem mesmo um rei é rei

Sem quem o reconheça na verdade,

Esta foi minha ignorância.

Ser feliz sozinho,

É como tirar a uva do vinho.

Mas se não alcanço o que quero sendo só,

Isso não implica necessariamente,

Que com os outros deixarei de ser pó,

E voltarei a ser gente.

Sou e existo sem ter quem o diga,

Preciso de amor como todo Ser precisa,

Não minto que amando não busquei

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Também ser amado como amei;

Posso nalguma vez ser hipócrita,

Demonstrando um amor desinteressado,

Mas como dizer a todo o mundo,

Que também preciso ser amado?

Se buscando o meu bem,

Pude fazê-lo aos outros também,

Não sou hipócrita então,

Pois nunca menti,

Ao falar do que se passa em meu coração.

30/08/2000

Finalmente você tomou uma decisão. O gosto que se tem é uma mistura do sabor refrescante do sentido com o sabor amargo da renúncia. Escolher é renunciar, mas também se realizar. Não se pode abraçar o mundo! Quantas pessoas vivem lamentando a escuridão do céu na ausência numa noite de lua cheia? Optar é mais que apenas renunciar, é encontrar um rio de águas límpidas, para guardar a água deste é preciso jogar fora a água anteriormente retirada de um rio de águas turvas. Às vezes se tem a impressão de que a felicidade é algo conseguido fora da vida, que se realizar na realidade é muito difícil, que se encontrar em alguma verdade é quase impossível. Você sabe de que a sua decisão não

partiu somente de você. Você sabe o que quer, mas o que projetou para a sua vida só terá sentido definido quando as pessoas ligadas a estes projetos mostrarem-se receptivas; logo, o último passo para a concretização definitiva desta escolha, ainda não foi dado, não depende de você. O que fazer? Esperar ansiosamente pela consumação? Fazer de conta que a vida corre como antes? Não adianta se antecipar ao tempo e, nem mesmo, cobrir-se de indiferença. É necessário se entregar a um poder superior que lhe conhece mais do que você mesmo. Você não pode se contentar com a mediocridade, mas também não pode se entregar à ambição. Você escolheu andar por terras estranhas então por que lamenta a saudade da terra natal? Novas belezas você descobrirá se souber ser um bom observador e perceberá o tesouro guardado para os que se arriscam a simplesmente buscar.

É bem verdade que

Caminhando desejei,

Mas amo o que não tenho,

Eis o porquê

De tudo aquilo que busquei

E a saudade de onde venho.

Amo-te céus estrangeiros,

Amo-te verdade irrefutável,

Amo-te ó mundo inteiro,

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Amo-te ó vida inefável,

Amo-te êxtase passageiro,

Amo-te projeto irrealizável,

Amo-te verdadeiro amor,

Amo-te existência indefinida,

Amo-te passado sem sabor,

Amo-te futuro desta vida,

Pois tudo o que o meu corpo sente,

Faz-me desdenhar o agora presente.

Posso jogar fora a água turva

Que me saciou anteriormente,

Mas nada a me tirará da lembrança;

Mesmo que meus caminhos façam curvas

Desviando das pedras insistentes,

Sonharei sempre como uma criança

Que guarda os primeiros dentes.

Sei que sonhar nem sempre é realizar,

Sei que sem sonhos não há realizações,

Mas de onde vem a necessidade a se formar

Capaz de causar grandes transformações?

Decido por um novo caminho seguir,

Decido nova verdade buscar,

Mas somente desejava não mais desejar,

Decidir não mais decidir,

Para não tornar infinito meu caminhar.

01/09/2000

Conhecer a si mesmo é uma tarefa até a morte. Você não se conhece. Em certas ocasiões atribuiu a si a superioridade de quem, vivendo o presente, desdenha a ausência, contudo valoriza como todos aquilo que ainda não é, aquilo que já não é, aquilo que nunca será. Todavia, limite-se a este amor sem atribuir seu destino ao acaso como as pessoas que acreditam ser a vida um resultado de vários processos de azar e sorte. Limitam-se em dizer que os desacertos da vida foram causados por um momento de azar e que as alegrias por um momento de sorte. Sem querer, perdem o que é mais precioso no ser humano: o sentido da própria vida. Você não deve acreditar que estes fatos do acaso sejam obras de algo místico, supra-sensível. Sua vida é o que dela você faz, não o que os acontecimentos fazem dela. Estes podem confirmar uma direção tomada ou até mesmo desviá-lo, mas nunca decidir por você sobre a hora propícia de parar ou continuar. Na vida do ser humano há muitas coincidências: quando se fecha uma porta parece se fechar todas, quando um caminho se torna intransponível, todos os demais o tornam e assim poderíamos enumerar inúmeros fatos aos quais muitos chamam de azar; quando uma porta se abre, muitas portas são abertas, quando um

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caminho é atraente todos os demais o são, e diriam os homens: “é o momento da sorte”. Você, porém sabe que as coincidências não servem como prova incontestável da previsão futura a menos que não somente aconteçam várias vezes, como também, nunca deixem de acontecer. A ansiedade é o maior mal das pessoas que se apóiam no acaso. Ter coragem de seguir um caminho não implica em ignorar as renúncias, mas apenas pesá-las comparando-as à alegria proporcionada pelo destino a que este caminho o levará, mas depois de decidido deve-se buscar o horizonte, mesmo que seja noite, na certeza de que este terá a mesma semelhança no dia seguinte. “Ah! E se no dia seguinte este for impedido de ser visto por causa de uma tempestade?”. Lembre-se, porém, que a esperança de um dia voltar a vê-lo não deixará que você vacile, esta é a maior prova de que somos guiados, não pelo acaso, mas pela nossa sede de plenitude.

Não conheço a mim mesmo

Como desejaria conhecer.

As vezes parecem-me cabrestos

As opções que a vida vem me oferecer.

A liberdade a que aspiro com sede insaciável

Me dá o sentido de minha eterna busca,

Mas, de que me adianta saber para onde ir

Se não possuo forças para prosseguir?

Inúmeras vezes caí e me levantei,

Em outras ocasiões apenas tropecei,

Contudo ao sonhar com meu objetivo,

Quis permanecer na ilusão,

O êxtase que por vezes me trouxe impingido,

Pareceu-me ser a melhor solução

Para esquecer a dor da ferida,

Para superar a mágoa reprimida.

O sonho que me trouxe embevecido

Fez-me minhas forças recuperar,

Agora, se tenho uma dose de decepção,

É o preço que pago para continuar a caminhar

E não sofrer maior desilusão.

09/09/2000

Há alguns dias você não se encontra consigo mesmo. Você esteve tão feliz, mas também com pouco tempo para dedicar-se. Você ainda está confuso, muitas coisas acontecem sem que tenha que optar, outras exigem determinação por uma decisão imediata. Cuidado com o imediatismo! Seja prudente nas suas decisões para não se arrepender depois. Quem sabe o que é melhor para você é você mesmo, mas nada disso pode ser pesado se não for colocado na balança juntamente com a experiência passada por você ou por outro. Decidir é dar o veredicto. O julgamento da vida, ao contrário dos demais, tem influência sobre o próprio juiz. A busca pela liberdade faz

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com que você opte por aquilo que as pessoas não planejam para você. Mas é muito confuso. Você preferiria que elas não o apoiassem. Todo apoio tem um preço. Ninguém confia sem esperar o resultado de sua confiança. Você é o objeto do desejo escondido no âmago daqueles que lhe confiam essa missão. De novo volto a falar das aparências: o que não é lícito se torna mais chamativo. Será que isso ocorre porque as pessoas tendem para o mal? De maneira alguma! Se há uma razão para se coibir uma ação, há outra que determina que essa ação poderia gerar algo bom ou ruim. Se algo não é possível, por que motivo se proibiria este algo? O Ser humano é amante das possibilidades. O que parece impossível é refutado dia a dia por pessoas que provam o contrário. O que é possível no pensamento, também o é na realidade, mas não imediatamente, é um processo que acontece paulatinamente. Não se culpe por não ter alcançado o que buscou hoje. Talvez amanhã você consiga. Não deixe o combustível da esperança se acabar.

Se não alcanço o que busco,

Se procuro inutilmente,

Como posso aceitar do refugo

O que busquei anteriormente?

Sou amante das possibilidades,

Sofro pelos julgamentos

Que fiz até esta idade

Buscando ser feliz de verdade,

Desprezando outros intentos

Simples impulsos da vaidade.

Contudo não sou o que pareço,

Como nada no mundo é o qué,

Por ninguém eu padeço,

Nem é tão grande na vida minha fé.

Nem sempre reprimir a mágoa

É sinal de amabilidade,

Nem sempre esquecer as derrotas

É símbolo de humildade,

Pois quem não mostra o que sente

Pode ser chamado covarde,

E o derrotado não possui

Outra atitude prudente

A não ser rebaixar-se até o chão

Reconhecendo sua limitação.

Eis a vida que me dá uma só opção.

16/09/2000

Não se engane. Se você se questiona sobre algo é porquê este algo pode ter dois lados: um bom e um ruim. O seu questionamento é prova de que você está crescendo

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na capacidade de discernimento. Seu discernimento agora é mais maduro, pois é feito a partir de uma decisão, se não fosse, você ainda estaria no ponto de partida. A sensação da perda é a sensação de todo ser vivo que é livre. Você não tem medo de ser infeliz, mas tem medo de tornar alguma pessoa infeliz. Ah! Se você soubesse qual seria a reação das pessoas diante de alguma palavra ou ação de sua parte! Estes pequenos discernimentos são os que mais interferem na vida do ser humano: a hora certa de falar ou de calar, de agir ou de deixar acontecer. O que é mais difícil nestes momentos é o imprevisto, não se pode planejar tudo e, o que exige de você uma resposta imediata o faz se sentir inseguro. Não se preocupe, para quem acredita em um poder superior, nada no mundo deixa de ter solução. Por isso, sonhe, pois sonhar não é desvincular-se da realidade, é alimentar a esperança, combustível de toda ação. Logo, uma vida sem sonhos, é uma vida sem ideal, sem esperanças e na inércia. Viva seus sonhos. O melhor lugar do mundo é onde os seus sonhos estão. O melhor momento para sonhar é agora. Faça ao menos uma pessoa no mundo inteiro feliz: a você mesmo e notará como tudo ao seu redor também se transformará.

Fazer-me feliz é mais difícil

Que tornar todo o mundo feliz,

Para muitos basta a matéria,

Para outros o espírito,

Para mim a insuficiência

Está inerente a tudo,

Até mesmo é sinal de demência

O simples fato de ser astuto!

Nem sempre o merecedor

Conquista o prêmio final,

Nem sempre o ganhador

É o mais original.

Quase nunca nunca é nunca,

Quase sempre não é sempre,

O conquistado é apenas o combustível

Que alimenta o que realmente é almejado.

A água em qualquer estado,

Sólido, líquido ou gasoso,

Continua sendo o que é,

Da mesma forma as conquistas

Não dizem o que o ser humano é.

Todavia o que é a vida

Se não esperar pelo ainda não?

30/09/2000

Ah! Quanta coisa gostaria de falar neste momento. Quantas palavras reservei para dizer-lhe. Nada nos vem à

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lembrança. Mas, o que é a lembrança? Algo desvinculado de nossa capacidade de buscar na memória aquilo que ficou guardado por um tempo indeterminado? E o que é o tempo? Algo criado por um poder superior ou pelos homens? E o que é o ser humano? Um ser dotado de uma capacidade racional que o coloca como o governador do universo ou simplesmente uma parte para que o todo exista? E o que é o todo num aglomerado de informações e conceitos incapazes de definir o nada por si mesmo?

Questionamentos nos aparecem todos os dias, Questionamentos atraem questionamentos da mesma forma que o avarento é atraído pelo ouro. O que você questiona outros já questionaram, todavia, nenhum deles chegou a uma verdade incontestável. Mas, o que é a verdade num mundo onde muitos acreditam tê-la encontrado e, por estarem inseguros da mesma, não se questionam mais sobre esta por medo de perdê-la? A melhor maneira de comprovar uma verdade é vivê-la sem restrições. Você não impõe aos outros um fardo que você mesmo não consegue carregar. A melhor forma de repassar algo é demonstrar a influência deste em sua vida.

Em tese, se a busca do ser humano é a felicidade, tudo o que a limita deve ser rejeitado sem medo para que se evite o lamento futuro. Se as lembranças, as palavras, o prazer, os sonhos o deixam mais feliz, por que rejeita-los com o subterfúgio de estar agindo com consciência? Lembre-se: na vida, os semelhantes se atraem. As alegrias concentradas, mas efêmeras, é que dão sentido à sua vida. Eis a vantagem de ser racional: antecipar o que será bom, mas ainda não é vivido e alongar ao presente o que foi bom no passado.

Quando o tempo não é limite,

Quando o espaço não é alvitre,

Contemplo a realidade do homem livre

Que sabe o que quer mas não tem medo

De perder o que sabe

Por saber que só sabe

Aquilo que em seu intelecto é limitado.

Não quer conhecer a verdade

Pois sabe a responsabilidade de tal sapiência

Prefere se deleitar no que ela se mostra

Na ausência de toda ciência,

Na sombra que se forma

No fundo da caverna

E neste sentimento persevera

Sem quem lhe determine uma norma

Sem nada que se torne o tudo que buscou.

14/10/2000

Não é fácil elevar o espírito a uma realidade supra-sensível com os pés no chão. A morada do ser, o corpo físico é o que nos faz desdenhar esta realidade.

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Quem o consegue é dito demente já que não está de acordo com a convenção social estabelecida. Mas algo deverá alimentar a matéria para que continue alimentando o ser em sua busca da perfeição. O que se deve colocar em questão é até que ponto está a matéria limitando esta busca. Se você é o que as suas escolhas fazem de você isto não implica necessariamente que as suas escolhas sejam dissociadas da convenção estabelecida. Muitas vezes o que parece solidão é liberdade, o que parece conformismo é o desapego e o que parece alienação é a paz. Ah! Se toda estrada fosse retilínea e contínua! Um átomo ao ser exposto a uma fissão nuclear libera uma energia capaz de produzir uma reação em cadeia que prossegue esta fissão em inúmeros outros átomos. O átomo, até então, era a menor parte da matéria e, como tal, indivisível. Isso demonstra quão importante é cada decisão de sua vida, quanto pequena ela pareça. Há algo tão simples quanto o ato de se alimentar? No entanto este é de extrema importância para que outros atos se realizem. Há quem diga que quem se desvia é por que não estava no caminho certo, todavia, o que é se desviar senão mudar o trajeto a ser percorrido? Quantas pessoas tornam sua estrada cada vez mais sinuosa pela própria vontade! Apesar de tudo, há certos desvios que encurtam a estrada apesar de torná-la mais acidentada, cheia de buracos e pedras. Conseqüentemente estas pessoas acabam por retornar ao caminho deixado. Outros desvios podem ser sucedidos de desvios contrários. O que faz com que um desvio anterior para a direita seja compensado por um novo desvio à esquerda. Dir-me-á você: “mas o tempo não pára, atrasar-se-á ao destino se assim o fizer o caminheiro”, e eu lhe responderei: Se o tempo não pára,

por que correr atrás do mesmo? Você tem a eternidade em suas mãos. E você me dirá: “mas como esperar pela felicidade num tempo indeterminado?” E eu novamente mostrarei a verdade diante de seus olhos: O prazer da busca, a paz na caminhada, a força do amor não são maiores que a realidade almejada? Repare que a felicidade já é, a partir do momento em que foi esperada. Afinal, o que vale mais, os infinitos instantes anteriores à busca ou a conquista do almejado cuja duração é efêmera e fugaz? Pense nisso e perceberá ao seu lado esta a quem tanto procura.

Se agora possuo uma certeza

É somente uma e nada mais;

Agora eu já sei que sei

O que fazer para buscar a paz.

Não sei se ela é possível,

Pois não a conheço verdadeiramente,

Mas paz ilusória é inadmissível

Para mim que busco a verdade impacientemente.

Se busco o que outros buscaram,

Se percorro caminhos antes percorridos,

Se erro como outros erraram,

É porque não sou joguete do destino

E devo construir meu próprio caminho

Ao caminhar na incerteza.

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Mas a certeza de outrora

Me acompanhará nesta hora,

Em meus passos demonstrarei mais firmeza,

Não mais a fraqueza de quem parado chora,

Mas sim a certeza de que é preciso deixar a caverna

E descobrir o que se passa lá fora,

Deixando a certeza ilusória.

02/11/2000

O caminho a ser percorrido o atrai mais que o caminho em que se encontra neste momento. Não se preocupe, como todos os seres, você ainda ama a ausência. O diferente lhe atrai, mas lhe causa medo. Onde caminhará? Que desafios enfrentará? A única vantagem encontrada ao se retornar a um caminho trilhado anteriormente é o conhecimento de partes cujo acesso é dificultado pela escuridão. Quando se conhece o caminho, não se teme a ausência da luz. Você caminhará tranqüilamente na escuridão sem inquietar-se, afinal de contas, você deverá inquietar-se somente no momento em que retornar a presença da luz. Somente dessa forma você não se iludirá com algo aparentemente belo e atraente e não se inquietará com algo aparentemente desafiador. Nem sempre a mesma chave que se encaixa na fechadura poderá abrir a porta: há uma distinção entre o encaixe da chave e o segredo que a fará abrir a porta ao ser girada, da

mesma forma há uma distinção entre um caminho sempre percorrido entre desafios que lhe conferem sentido e outro largo, plano, claro que o faz desdenhá-lo inusitadamente. Um pano colocado sobre uma peça de inestimável valor pode protegê-la, porém, esconde a sua beleza; que sentido tem esta peça existir, melhor será ficar propensa a agentes que paulatinamente a destroem e, dessa forma, poder demonstrar livremente sua beleza. Melhor será a você o caminho que poderá fazê-lo sucumbir, mas também poderá levá-lo à felicidade, que o caminho desprovido de desafios, todavia, que não leva a lugar algum. Estão dadas as cartas, o final do jogo dependerá de sua sagacidade, mas lembre-se, você é o responsável por seu destino, este fator é o que determina a origem de todos os sofrimentos.

O sentido dos sentidos

Faz com que eu perca o sentido,

Pois os sentidos não antecedem

Uma realidade fatal,

Pois os sentidos nem sempre

São algo banal.

Se algo parece melhor

E não o é verdadeiramente,

O que fazer então

Para não me deixar levar pela ilusão?

Se a sensação de liberdade

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Impingida pela emoção

Não é a suprema verdade

A que busco sem restrição,

Se ser livre não é ser só,

Se estar junto não é ser livre,

Se um dia voltarei ao pó,

E deixarei a vaidade companheira de quem vive

Começo a perceber que a percepção

Não é o que a verdade é,

Mas não a contradiz totalmente,

Pois o que aspiro se é possível

Ao menos no pensamento se faz exeqüível.

Este ser execrável

Imbuído de ânsias,

Tomado por relutâncias

Ao menos sabe que

Nem todo ser que vive

Se faz livre.

22/12/2000

É chegado o momento de novas decisões. Você está novamente frente a um dilema: dois caminhos lhe

são novamente apresentados pela vida. Oh! Liberdade! Até quando vós sereis a causa de tantas relutâncias? Ambos os caminhos são desafiantes, ambos são alvissareiros, ambos exigem renúncias, ambos prometem a felicidade. O que fazer? Decidir imediatamente que rumo tomar? Deixar que o tempo determine a direção? O que fazer para não cair na decepção determinada pela precipitação? O que fazer para não deixar a vida passar sem ser vivida de maneira eficaz?

No momento só existem dúvidas. Não há saída para este dilema. Decisões a longo prazo são constantemente matéria de refugo já que podem ser a qualquer momento desprezadas por um fato ou golpe do destino.

Eis a solução: não há como decidir pelo futuro, esse não lhe pertence. Não há como decidir pelo presente, a menos que se saiba qual é a sua duração. Desta forma só há uma saída, decidir cada fração do tempo cognoscível e assim determinar paulatinamente o norte de sua vida. Não se iluda acreditando que sua vida está boa ou que a felicidade é algo simples de ser conquistado. Não é possível ser feliz enquanto se for solidário aos que sofrem. Uma lâmpada em uma emaranhada floresta não pode nada sozinha. Sua luz deve irradiar por escuridões, mas não pode se autogloriar por isso, já que nada será se não houver a quem iluminar.

Gosto da vista do sol

Mas não de ter sol na vista,

Há quem aprenda com o erro,

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Mas também há quem nele insista.

Gosto da chuva bem mansa

Que refresca e dá vida ao chão,

Mas nem sempre quem imita a criança

É humilde e tem bom coração.

Gosto da presença da luz

Na madrugada que está a expandir,

Mas nem sempre aquilo que me seduz

Dá-me a certeza se vou persistir.

Gosto do princípio da noite

Que meus ânimos vai apaziguar,

Mas nem sempre a presença de açoite

É sinal de que se vai apanhar.

Gosto de uma amiga presença

Que dá à minha vida um norte,

Pois ela dissipa toda a sua essência

E é conhecida por morte.

25/12/2000

Todos dizem não se importar com o que as pessoas dizem, mas, na verdade, mesmo que sua reação seja pacífica frente a algumas palavras ditas a você, elas

sempre despertam uma reflexão adormecida. Por isso, o que lhe dizem pode determinar não somente uma simples análise, mas pode culminar em uma decisão que norteará todo o restante de sua vida. Mas não adianta transferir a responsabilidade de sua decisão aos outros. Muitas vezes você ouvirá coisas que não gostaria de ouvir. Lembre-se também de que aqueles que habitam a terra estão sujeitos às mesmas limitações que você e, por isso, podem errar por ignorância da peculiaridade de sua situação ou, até mesmo, por não serem prudentes. Dizem por aí que tudo o que vem fácil, vai fácil e o que é difícil de ser conquistado é mais valorizado, no entanto, o esforço da busca pode minguar o prazer da conquista já que o almejado é infinitamente superior ao conquistado. Desta forma se conclui que nem sempre o caminho mais árduo e cheio de pedras é o melhor. Esta é a escolha daqueles que não possuem sentido para a vida e vivem criando desafios para dá-lo. Na verdade, basta estar vivo para encarar desafios, não é necessário que se criem mais situações desafiadoras. A única atitude a ser tomada é assumir os desafios como seus e não relegar a outros a responsabilidade pelas suas angústias e incertezas. A felicidade não é algo padronizado, o que é ser feliz para você não precisa ser necessariamente ser para outro. Por esse motivo és o sujeito e o único responsável por sua felicidade.

No próximo não vejo um espelho

Que me reflete o que sou perfeitamente,

Mas até mesmo o que em mim é receio

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Aparece neste ser transparente.

O desafio da vida é intrínseco

Mas possui também semelhança,

O próximo que interfere em minhas decisões

Formando o que sou desde criança

Na verdade é apenas o reflexo

Como um vidro que reflete minha vida.

O sentido da vida é o sentido do vidro,

No vidro transparência definida,

Na vida a visão do não vivido,

O vidro, frágil com a vida,

A vida pungente como o vidro,

No vidro passa toda luz,

Na vida ela é o sentido.

Como o vidro retém a água

A vida rejeita toda mágoa,

O vidro a farelo se reduz,

A vida ao pó se reverte,

Do pó o vidro se refaz,

Da morte nova vida surge,

E assim se prolonga o ciclo infinito,

Dando sentido à nova vida,

Definindo o novo vidro.

15/01/2001

Oh! Liberdade! Até quando inquietareis o ser humano. Em tua busca, muitos se perdem; na ilusão de tê-la encontrado, muitos perdem o sentido para a vida. És o sinônimo da felicidade, mas teus caminhos são catastróficos. Um simples ato pode determinar destinos totalmente diferentes. Eis o dilema da escolha de um dos vários caminhos possíveis. Dás ao homem a eternidade para a escolha certa, mas também, dás a ele a eternidade para o lamento do arrependimento daquilo que poderia ser e não foi. De que adianta ter a eternidade para escolher e, com isso, deixar de viver? De que adianta por nada optar e deixar de ser? Sabe-se que o homem é aquilo que fazem dele as suas escolhas, logo se conclui que de nada adianta esperar o momento certo, ou melhor, aparentemente certo. O agora é a parte do tempo mais certa já que não foi nem será, ainda é. Diante disso, há aquilo que ninguém pode refutar: quem vive as suas escolhas sem a emoção originada da alegria de quem fez a escolha certa não sabe o que é viver e quem as vive baseado unicamente na emoção desprezando as renúncias feitas não sabe o que é a vida. Ser livre não implica necessariamente em ser embriagado pela emoção, nem tão pouco em viver angustiado: é ser consciente daquilo que poderia ser e saber analisar aquilo que não é sob a ótica daquilo que é, ou seja, nada do que poderia ser é melhor do que o que é, já que também outros caminhos são dotados de desafios: curvas, desvios, e incertezas!

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Sendo livre construí minha prisão,

Sendo prisioneiro ansiei pela liberdade,

Sendo livre entreguei-me à paixão

De quem busca uma irrefutável verdade.

Procurando o que não conhecia,

Desconheci a necessidade

De fazer o que fazia.

Há necessidade de procurar a verdade?

Há necessidade de necessidade?

Meu interior me respondia:

Não é necessário procurar

Aquilo que já foi encontrado,

Se sendo livre tornei-me condenado,

Sendo condenado a ser livre,

A verdade não é um achado,

É o combustível de quem vive.

Se sou livre e vivo,

Nem sempre preciso de um sentido,

Para viver não é necessário um sentido,

O sentido é que precisa da vida para existir.

07/02/2001

Como é bom deleitar de ti, oh, Liberdade! Sei que não sou aquilo que gostaria de ser, sei que no mundo há inúmeros limites para as minhas escolhas, mas nada pode me afastar de ti. Tu és a única coisa que ainda me resta. Eu a conheço e a tomo por amiga já que tu és a única esperança para este coração. Na verdade, muitas vezes vens acompanhada de uma amiga cuja presença me incomoda, mas se não a posso ignorar, deixe-me pelo menos contemplar a tua beleza. Tu não és somente a sensação do suave vinho que exalta os sentidos, ou o efêmero prazer pérfido inimigo da eternidade, és o que há de mais agradável nos seres, pois se muito deixaram de fazer, muito fizeram, já que nada é nada e nada é tudo. A escolha da não escolha é somente uma de tuas numerosas faces. Dás ao homem o direito da escolha e destilas o veneno do dilema, mas, quanto mais rápido encontrar o antídoto, as chances de contemplar-te serão maiores. És o que muitos buscam deixando para trás os seus sonhos, não sabendo que neles tu estás. És a meta além do horizonte, mas também, a estrada que agora piso. O receio de perder-te, afasta-te de mim, mas a certeza de tua presença nada pode tirar a não ser aquele que te conquistou. Aliás, tu não és somente a conquista e a vitória, tu és a batalha a cada partícula do tempo indivisível. Se não posso afastar de tua amiga, ajuda-me a com ela conviver. Mas, se quiseres, afasta a solidão e peça que se jogue em um precipício, pois sua existência é a presença da ausência e do vazio.

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Dar um passo à frente

Nem sempre é o melhor a se fazer,

Pode ser que de repente,

Em um precipício cairei.

Voltar no caminho já conhecido,

Nem sempre é o mais eficaz,

Pois na volta não terei conhecido

O que procurei há anos atrás.

Minha meta é prosseguir,

Mas o dia está nublado,

O frio é intenso,

E o alimento está escasso;

Aquilo que é esperado

Nem sempre é perda de tempo,

Melhor do que um falso passo,

Melhor do que um futuro lamento.

Sou livre para continuar,

O sou também para parar,

Posso até mesmo me afogar no mar,

Mas somente quando deixar de respirar,

É que deixarei de ser o que sou

E voltarei ao pó que me formou.

16/02/2001

Às vezes você mergulha em reflexões que seguem caminhos corretos, mas lhe dão destinos errados. E você se pergunta: como pode um caminho certo tomado em devaneios originar uma decisão não tão certa quanto o mesmo. Você não pode esquecer, o mundo, o universo, têm sua atividade em ciclos. Indo adiante você poderá retomar o caminho anterior e verá que certas curvas se faziam necessárias mesmo que determinem o mesmo destino. Não é o destino em si o motivo de sua busca, isto é, sua busca tem seu valor imanente em si mesma. Por isso, apesar de não haver nada de novo debaixo do sol, o que muda é o olhar que se volta para tudo. Por isso, nada do que foi será visto da mesma forma como foi visto outrora. Como exemplo claro, perceba nas atitudes humanas os vários ângulos de uma mesma ação: quem fala o que pensa pode ser considerado sincero, todavia, será realmente sinceridade, dizer aquilo que necessariamente ofenderá a outros? Melhor seria se fosse tomado por fingido ou alienado. E assim vão-se somando atitudes que, vistas de pontos diferentes, são boas ou más. É para isso que existem as curvas do caminho, são elas o formão que irá modelar os pontos de vista das pessoas para que, ao chegar ao destino almejado, não ultrapassem o mesmo pensando nunca tê-lo encontrado.

Os pés que sustentam meu corpo

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São a base já enfraquecida

De algo que poderia ser minha vida,

Daquilo que serei ainda que morto.

Andarão por cima do passado,

Passarão por cima do presente,

Presenciarão o insólito e inusitado

E ao futuro rumarão como um vidente.

Mostrarão aquilo de que se tem necessidade,

Mas insistirão em continuar a caminhar

Sustentados por uma simples vaidade

Ou por uma dúvida que ainda paira no ar.

Entenderão que foi inútil caminhar

Se se buscou algo ainda ausente,

Mas pelo caminho aprenderão a amar

E deixarão o egoísmo evidente.

Que não é preciso caminhar para viver

É a evidência que se tornará novidade,

A novidade é que não há sentido para o viver,

O que ainda não é não pode ser a realidade:

“Somente no presente é que se encontra a felicidade”.

29/05/2001

Há quanto tempo não lhe falo. O tempo passou em suas definições convencionais, os fatos passaram, mas nada deixou de ser o que era sem deixar a sua marca. Dizer que o tempo passou é quase admitir a sua existência como manifestação em si mesmo, aceitar que os fatos passaram é colocar o ser humano como predicado de uma vida cujo sujeito é o acaso. Aliás, passar indica ação e, quem age nessa história? Somos sujeitos na voz passiva, mas não passamos, pensamos. Somos ou existimos? Penso logo sou ou penso logo existo? No mundo não há nada sem sentido, nem mesmo a palavra nada. Se nada é nada, tudo não o pode ser, nada não é nada. Teorias não são refutadas, são reformuladas. Se algo as superam, isso não lhes tira o crédito. Elas tiveram sentido, mesmo que se seu sentido fosse determinado pela ausência de sentido. Eis o sentido do nada: lembrar ao ser humano o real, pois somente na ausência de algo é que se analisa ou se percebe o que foi ou o que será este algo. Mas diante de tudo isso, dúvidas permanecem: o sentido é sentido: o objetivo é o ponto de partida ou de chegada? Não se estranhe! Não me contradisse. Se algo eu afirmei e agora o coloco em questão, comprova o que digo desde o princípio: as coisas deixam de ser, mas não de existir, sua existência é a marca mais profunda que permanece, a realidade da contradição o cerca de todos os lados. O ser é efêmero, a existência é eterna. Do contrário, com a destruição de um determinado ser, tudo o que nele se formou e dele se originou deixaria de existir. Somos e

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existimos, mas dias virão nos quais deixaremos de ser, mas não de existir. Outros serão por nós e nós existiremos por eles. Nada é nada, nada não é nada. O sentido para tudo é a eternidade fundada no infinito.

Como são belas as palavras que me aprazem,

Como são belos os caminhos que me aprazem,

Como são belas as pessoas que me aprazem,

Como são belos os gostos que me aprazem.

No entanto a beleza é tão fugaz quanto a concretização de um desejo.

No entanto o prazer é tão fugaz quanto o pensamento,

A realidade que meus ouvidos querem captar pode não ser

O que eles realmente querem saber,

A realidade que meus pés querem tocar

Pode não ser o que eles desejam conhecer,

A realidade que meus olhos querem ver pode não ser

O que eles realmente querem ter,

A realidade que meus sentidos querem sentir

Pode não ser

Aquilo que com a alegria irá me nutrir.

Invento um caminho a percorrer,

Por que me canso de ficar parado;

Paro para descansar

Por que me canso de caminhar,

Assim como se vive sem o saber,

Caminho e encontro mais chão a percorrer.

15/10/2001

Quanta ansiedade na madrugada passada. Será que você se arrependeu de não ter tomado outro caminho? Será que ainda anseia por retomá-lo? Você sabe que a vida é efêmera e fugaz, mas ainda não possui o sentido determinado para ela. Para outros você é ícone de espiritualidade, para si um corpo sem espírito. A saudade dos tempos de outrora se apoderou de você, mas você está consciente da magia pela qual são envolvidos no presente. A ansiedade pelo futuro se apoderou de você, mas você sabe que o tempo tem seu ritmo e a sua impressão momentânea. Mas de que adianta ao ser humano estar consciente disso? Às vezes você pensa que seria melhor estar alienado por moldes convencionais, pois a realidade é ofuscante aos seus olhos e os fazem arder. Você se equivocou, várias vezes, ao assumir uma determinada posição, será que ainda não está equivocado? Na madrugada em que todos dormem, você permaneceu acordado e viu passar os fantasmas do deserto. Quis segui-los, mas relutou. Para acompanhá-los era preciso não relutar, eles não esperam pelos indecisos, eles são a

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certeza que você busca a todo o momento. Nunca mais passarão em sua frente, todavia, não se desespere, outros guias lhe aparecerão. Não perca desta vez a oportunidade, que a vida lhe estará dando, de conhecer a verdade. Mas não se iluda, você poderá novamente relutar e não seguí-los, porém, se seguí-los não poderá voltar atrás. Parece difícil fazê-lo, não? Mas se o fizer, na verdade, não precisará voltar, pois encontrará o que tanto procura.

Se se tem pesadelos

Em estando dormindo

Melhor é permanecer acordado,

Se se tem sonhos estando acordado,

Melhor é permanecer acordado.

A ilusão não é somente o que é,

Às vezes ela é combustível

Que imprime forças à minha vida

Dando a ela um sentido.

Permanecendo parado lamento não caminhar,

Andando sem rumo, lamento voltar,

Lamentando, lamento lamentar

E, por fim, continuo a lamentar.

19/11/2001

Quantas vezes você deu lições de paz aos outros. Quantas vezes você comprovou que a revolta só aumenta o cansaço. Felizmente você não dita regras dizendo que as cumpre. Sabe mais do que ninguém a diferença entre a teoria e a prática. O que vem de fora o atinge e provoca grandes estragos. Mas você sabe que o ferido nem sempre é o dono do revólver. E se você se torturar dizendo que não deseja que esta bala seja retirada antes que quem a atirou seja atingido igualmente, sofrerá muito mais. A calúnia, a difamação, os maus-tratos, todos estes males que matam aos poucos, têm poder superior inimaginável, pois somente você pode curá-los se for por eles atingido. Estas balas não matam de uma só vez, torturam-no a ponto de perturbar-lhe a alma. Se a alma se encontra ferida, nem mesmo a cicatrização da ferida do corpo pode curá-la. Mas não se preocupe, quem determinará a sua cura será somente você e mais ninguém e, se algum dia, levar nova bala do mesmo revolver vil que a atirou poderá esquivar-se e dizer com certeza: esta não mais me atingirá.

O que vem de fora também me atinge,

Nem tudo depende de mim,

Quem vai embora também retringe

A liberdade que sonhei,

Pois a ausência se torna presença

Isto alguma vez já constatei.

Mas acabo de descobrir

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Quem é que me fala neste momento,

Não são as musas heliconíades,

Não é a alma na terra perdida,

É alguém que guia a minha vida

No momento que me proponho a caminhar,

Guia os passos meus,

E no momento que me ponho a dormir,

Ó Deus, espero que me ouças.

24/11/2001

Qual é a diferença de se caminhar sob a luz? Qual é a vantagem em se enxergar as pedras do caminho? Quando não se conhece o caminho a ausência de luz é angustiante. Acertar o dedo do pé em uma pedra não é menos doloroso do que imaginar onde estarão as pedras que possam causar feridas. Quantas pedras não existem no caminho e, devido a escuridão, são aí colocadas pelo caminheiro. O pensamento forma o real. O imaginário torna-se a razão de vários tormentos. A ausência incomoda mais que a presença, pois a presença é o que é, a ausência é o que não é, pois o pensamento faz uma viagem que nem sempre é determinada pelo viajante. O devaneio pode levar um segundo, uma hora ou diversos instantes. O tempo não existe para a ausência, pois, tudo o que ela não é por si mesma, é incógnito até o momento em que o pensamento age. Os passos são sempre iguais e

esta rotina torna-se, cada vez mais, causadora de tédio. Você às vezes caminha tão só que já não vê mais sentido em continuar a caminhada. Desprezou as convenções do mundo e, apesar de se sentir prisioneiro de suas próprias convenções, sente-se terrivelmente só. A realidade é insana, se você deseja ser sisudo, afaste-se dela, mas não reclame da solidão, ela é o preço que se paga. Contudo não confunda solidão e isolamento, busque sua felicidade sem esquecer que os outros também desejam ser felizes.

A realidade é feita de contradições: de que vive o médico? Não é de acabar com aquilo que dá sentido ao seu existir: a doença? De que vive o professor, não é de acabar com aquilo que dá sentido ao seu existir: a ignorância? O médico e professor só prosseguem em seu intuito porque acreditam que a doença e a ignorância são infinitas; todavia, que sentido há em lutar para liquidá-las se elas sempre existirão? Viver no mundo é estar destinado a um aglomerado de contradições. Certamente você, a partir disso, retoma a sua caminhada solitária ciente de que pensar é enxergar à distancia aquilo que os olhos não podem ver, mas perceber a distância que o separa de seu objetivo.

Quando comecei a caminhar senti a dureza do chão,

Mas desde o primeiro passo, eu tomo sempre uma decisão.

Quando numa pedra tropecei, senti grande decepção,

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Pois os obstáculos não avistei, quando escolhi uma direção.

Mas tropeçando caí para frente, e o caminho avistei novamente.

Levantando decidi prosseguir, mas tornei de novo a cair,

E desânimo até então ausente, tornou-me menos persistente.

Sonhei com outro caminho que no princípio não escolhi,

Mas me senti ainda mais sozinho,

Pois busquei nos outros o que estava em mim.

Enquanto sonhava tropecei e de novo caí,

Enquanto caía o devaneio se apartava de mim,

E quando a pedra, única realidade, se fez presente,

Senti-me como quem a si mesmo mente.

Agora que o sonho acabou, é hora de acordar,

E perceber que a felicidade, não é algo acabado,

Aquele que sonhou, sabe como é bom sonhar,

Mas não deseja viver eternamente

Num mundo imaginário.

Livro III

A vida tem dessas coisas

Prólogo

Em todo conto há um fundo de verdade, em todo conto há um fundo de invenção. A vida tem dessas coisas: hoje sofremos, amanhã rimos de nosso sofrimento; hoje rimos, amanhã choramos pela falta de prudência. Mas a vida não é curta, seu ciclo se prolonga ao infinito, pois ela é repassada às novas gerações com doses de emoção a moldar-lhe ao presente. O passado e o futuro se confundem num só tempo e percebemos que de nada nos vale a vida se não for vivida. Lembro-me neste momento daquele senhor que perguntou ao médico sobre a possibilidade de sua longevidade chegar aos cem anos e o médico, prestativo, fez-lhe várias perguntas: “Você fuma? Você bebe? Dirige em alta velocidade? Sai com muitas mulheres? Passa a noite em festas?”. A todas estas perguntas aquele senhor respondeu: “Não costumo fazer nada disso”. E o médico, meditativo, perguntou-lhe: “Então, para quê deseja viver até os cem anos de idade?”. Não que a vida seja somente isso, mas não podemos nos isolar do mundo, auto-suficientes com nossas existências solitárias; é preciso reconhecer que o sentido da vida não é somente nosso, mas também daqueles que nos rodeiam. A vida tem dessas coisas, coisas que nos fazem viver e que nos fazem olhar a vida com outros olhos. Deixemos de sonhar e vivamos; deixemos de lutar por aquilo que, apesar de nos proporcionar um efêmero êxtase, nos

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mergulha posteriormente num grande vazio. Conquistemos o mundo pela docilidade e pelo humor e, assim, o mundo se unirá para não nos deixar sofrer. Não que sejamos o centro do mundo, mas, a paz uma vez conquistada é propagada e sua ação é eterna.

Cristiano de Paiva Barroso

Memórias de uma prescrição médica

Nem sempre fui o que sou hoje, meu presente comporta um passado não glorioso, mas feliz. Afinal a existência é nada mais nada menos que a soma dos instantes vividos, mesmo que mal vividos.

Um dia, quando eu ainda era parte de minha árvore-mãe, avistei um homem baixo e gordo com uma moto-serra e gritei desesperada: “Não faça isso, pare, vai doer”. Mas ele respondeu de forma efusiva: “não, ainda não!”.

Cortando-nos em pedaços, separou-me completamente de minha árvore-mãe; então, me senti desidratada e frágil diante da ausência da seiva e disse tristemente: “Já não há mais volta, eu sei, todavia, deixe-me no chão do qual me tirou para que eu seja adubo a fecundar a terra de nossos descendentes; mas ele disse com ar de sarcasmo: “Não, ainda não”.

Tomando o tronco do qual eu ainda fazia parte, jogou-nos em cima de outros troncos na carroceria de um caminhão, quando sentimos que estávamos nos

movimentando, gritamos todas juntas: “Pare! Para onde quer nos levar? Deixe-nos, ao menos, nos decompor sob a ação de nossos irmãos: vento, chuva e sol”. Mas, aquele homem, com um sorriso no rosto ao receber um pagamento, disse sem se virar: “Não, ainda não”. Nunca mais vimos aquele estranho homem.

A alguns quilômetros dali nos levaram até um lugar onde me transformaram no que sou hoje, condenada a viver só. Fiquei amarela de pavor. O que ainda estaria me esperando? Perdi traços e ganhei novos traços - como tudo na vida. Mesmo assim, ainda não havia perdido a esperança, talvez o sofrimento que me fez chegar até aqui seria compensado.

Diziam que em algum lugar deste estabelecimento diversas pessoas nos esperavam com ansiedade recebendo-nos das mais diferentes formas: revoltadas com nossa a demora, alegres com nossa chegada, surpresas com o que estaria em nós escrito ou indiferentes. Minha ansiedade era a mesma. Que lugar seria este no qual nossa existência teria um sentido definido? Seria um mito platônico ou uma esperança escatológica?

Hoje senti que o dia tão esperado chegara quando um médico recolheu-me do armário. Todavia, após escrever algo em mim, escutou a enfermeira dizer: “falta o pedido antimicrobiano”. Não sei o que ela quis dizer com isso, só sei que, ao ouvir isso, o médico esmurrou a mesa com violência, mas doeu mais em mim do que nela aquele soco. Ela (a mesa de origem semelhante à minha), no entanto, continua ali, servindo de apoio a outras colegas na lida e, eu acabo de me tornar parte do lixo

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hospitalar vendo que não servi nem mesmo para aquilo a que fui destinada ao deixar de ser parte minha árvore-mãe. Pergunto-me se há alguém para me dizer que sentido teve minha existência e o vazio responde: “não, agora não”.

A decisão

Ela: “Finalmente chegou o momento vou encontrá-lo e dizer-lhe o que sinto”.

Ele: “Finalmente chegou o momento vou encontrá-la e dizer-lhe o que sinto”.

Ambos se encontrarão no restaurante do porto e, lá, falarão de si. Ele pega o seu carro de placa 1313, a supertição faz parte da sua vida. Ela pega um táxi e sai de casa as 13:13 hs, a supertição faz parte da sua vida.

Ambos chegam às 14:00h. São atendidos pelo garçom e pedem o mesmo prato. Ele gosta de música clássica e ela pede que toquem John Strauss. Os violinistas se aproximam e um beijo antecede o almoço, ambos não são apressados para comer.

Ele: Pensei se poderíamos dar um passeio após o almoço!

Ela: Pensei se poderíamos passear no parque municipal.

O relógio marca 17:00 h. Ele tem uma reunião com os acionistas de sua empresa, ela precisa encontrar suas sócias. Ele quer dar uma passada em casa primeiro. Ela precisa pegar alguns papéis em sua casa.

Ele: “Você vai em sua casa? Eu posso dar-lhe uma carona?”.

Ela: “Eu já ia lhe pedir exatamente isto, estou um pouco atrasada”.

Ele: “Eu também, minha reunião começa ás dezoito”.

Ela: “Minhas sócias chegarão neste horário”.

Ambos passam em casa. Ela troca de roupa e coloca um vestido preto. Ele, ao chegar em sua casa, toma um banho e coloca seu terno preto.

Dias depois os encontro em uma ópera. Ele a refletir sobre sua vida rotineira. Ela a meditar sobre os dias sempre iguais. Ambos chegam à minha frente e me cumprimentam perguntando por meu irmão. Ele diz que eu estou sumido. Ela diz que eu não tenho aparecido. E quando pergunto por eles, como vai o relacionamento entre eles, ambos me respondem ao mesmo tempo:

- Não deu certo somos muito diferentes.

Viagens

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Ambos eram amigos inseparáveis, viajavam para todos os lados, conheciam inúmeras pessoas, mas nunca deixaram suas manotas. Eram os conhecidos marangões. Desde o primeiro dia de viagem não evitavam cometer as barbaridades que antes não cometiam por falta de tempo.

Entrando num restaurante, elegantemente, Josito explicava a Zequéu a forma adequada de se portar à mesa. Viram uma placa: “Self-service”, e Josito explicou:

- Aquilo significa que você mesmo serve.

Zequéu se admirava com a inteligência do amigo e, rapidamente, pegava um prato e começava a se servir. Encheu seu prato de salpicão e, começando a comer após a pesagem dos pratos, riu quando escutou um palavrão dito por seu amigo que comia um pouco de maionese e pagava o dobro que ele.

Quando saíram, foram pegar o ônibus que já estava de partida. Numa das paradas, os dois amigos desceram e foram a uma lanchonete onde comeram sem perguntar o preço e gastaram o restante do dinheiro que possuíam. Quando voltaram, entraram no ônibus e notaram que seus lugares estavam ocupados. Zequéu, agindo como um touro bravo, deixava aqueles dois intrusos desmascarados diante dos demais passageiros. Aonde já se viu, roubar-lhes o lugar que pagaram para viajar! Novamente, acomodados, Zequéu se virava para Josito e exclamava altamente: “comigo é assim mesmo, direito a quem é de direito”. Todos os dois, já acomodados novamente, dormiram até chegar ao destino daquele ônibus. Ao sair, notaram que não estavam em Campos Altos, estavam Inhapim. Josito como sempre mais esperto que Zequéu exclamou desesperadamente:

- Zequéu, veja, pegamos o ônibus errado!

Estavam ali, sem dinheiro e sem roupas, suas malas foram para onde queriam ir. Josito teve uma idéia e, imediatamente, puseram-se a recuperar o dinheiro para voltar. Virando-se para um senhor de boa aparência, bem trajado, falou em tom de lamento:

- Mal cheguei aqui, já tive má impressão. Fui roubado em plena rodaviária. Sempre quis conhecer São Paulo, mas não pensava que seria desta forma....

Aquele senhor, antes atencioso, virou-se bruscamente e disse deixando-o a falar sozinho:

- Inhapim está em Minas Gerais!

Zequéu lhe disse:

- Mas você também hein! Quer ser ajudado, falando mal da cidade dessas pessoas? Se quer inventar uma história, cite outro nome de cidade.

E, correndo em direção a uma senhora, tentou despertar-lhe a piedade dizendo:

- Minha senhora, perdoe-me a revolta de minhas palavras, mas fui assaltado quando desci do ônibus em Barroso e, agora, não tenho um centavo para seguir viagem.

Aquela era uma boa senhora e se compadecera de Zequéu. Prontamente tirava uma nota de cinqüenta reais da bolsa quando escutou:

- Se não fossem aqueles pilantras daquela cidade nojenta, eu já estaria em minha casa!

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Aquela senhora, sem mais falar, entrou no carro em frente do qual estava, sem deixar-lhe a ajuda que parecia destinar-lhe. Quando o carro partiu pôde ver o motivo de tal atitude na placa do carro:

BARROSO – MG.

Ambigüidades

- Sabe a sua coluna?

- O que tem ela doutor?

- Nela você criticou o atendimento médico brasileiro!

- Ah! Que alívio!

- O que pensou que fosse?

- Algo relacionado à minha coluna vertebral.

- Não se preocupe, a sua saúde está a mil. Quem precisa cuidar mais de si é o seu irmão, do contrário poderá bater o seu carro novamente.

- O meu carro?

- Não! O carro dele!

- Isso aconteceu porque Roberto e meu irmão se enganaram.

- Mas por que Roberto enganou ao seu irmão?

- Não, ele não enganou ao meu irmão.

- Ah, então foi o seu irmão que enganou ao Roberto.

- Não eles não enganaram um ao outro. Eles se enganaram por imaginar que a rua na qual entraram era de duas vias e, na verdade, era contra-mão.

- Por isso chegaram tarde ao lançamento do livro de Roberto.

- E por falar nisso, visitei o Roberto para falar de seu livro. Ele me impressionou muito.

- Mas eu não gostei muito de seu livro, ou melhor, do livro dele.

- Eu também não!

- Então o livro a impressionou por este motivo?

- Não! Quem me impressionou foi o Roberto.

- Mas por qual motivo?

- Outro dia, o guarda o prendeu em seu carro.

- No meu carro?

- Não!

- Ah! No carro do policial?

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- Não! No carro do Roberto!

- Mas porque o guarda o trancou em seu próprio carro?

- Não! Ele não o trancou. Ele o prendeu sob acusação de assalto a uma livraria, o que parecia evidente ao policial que viu inúmeras cópias de seu livro no carro.

- Mas o policial também era escritor?

- Não! Eram os livros de Roberto, recém publicados.

- Mas por que decidiram inspecionar o carro?

- Foi a esposa do dono de uma livraria que, simultaneamente, mantinha um caso com Roberto.

- Mas eu não sabia que Roberto era bissexual!

- Não! Quem mantinha um caso com Roberto era a esposa do dono da livraria que, por ciúmes, aproveitou-se do incidente do roubo para vingar-se dele.

- Ah! E por falar nisso, outro dia vi sua foto no metrô!

- Mas eu nunca tirei foto no metrô!

- Foto do Roberto.

- Mas, pelo que sei, ele tem horror a metrô.

- Não é isso! A foto dele estava acima do anúncio do lançamento de seu livro.

- Do Roberto! É claro.

- Voltando ao assunto da coluna...

- Mas você não me disse que a minha coluna está ótima?

- Não! Eu estou falando de sua coluna no jornal...

Psicólogo

Luiza sempre fora destemida. Enfrentava os desafios que lhe apareciam com uma aparente serenidade. Não era de se esperar que uma moça provinda de família tão problemática seria tão lúcida e convicta. Sua mãe ficara louca quando o filho, envolvido em um relacionamento homossexual, suicidou-se por saber-se portador do vírus da Aids. Seu pai estava preso por tráfico de drogas. Mas, ela não parecia herdar nem mesmo uma gota de sangue tão vil e maledicente.

Num internato, pago pela tia, crescera sem almejar muito. Não sonhava. Aprendera com uma das freiras professoras que nada se tem a esperar da vida, ela é simplesmente um tempo efêmero e, por melhor que seja vivida, fugaz.

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Certa ocasião, Luiza resolveu procurar um psicólogo e contar-lhe tudo o que estava reprimido e recalcado em seu ego.

- Doutor, vim aqui para me livrar de um peso imenso que recai sobre minhas costas. Há anos que venho provar para mim mesma e para o mundo que sou capaz de enfrentar a vida e ganhar as suas batalhas, mas me vejo terrivelmente só, desesperada, e, muitas vezes, a um passo do suicídio...

Dizendo isso, Luíza deixou de olhar para um ponto distante na parede, e se virou para o psicólogo tentando reconhecer nele uma feição de aprovação ou desaprovação do que dizia. Mas, imóvel, ele escrevia sem parar. Luiza continuou: - Doutor, acho que ninguém gosta de mim. Todos se incomodam com minha presença. Quando vejo as pessoas em grupo imagino o que estão falando contra mim. E quando me aproximo percebo que mudam de assunto...

Novamente Luiza se incomodava. Olhava para seu psicólogo e não notava nenhuma mudança em seu semblante, contudo prosseguia.

- Quando tento ajudar às pessoas sou julgada como se tivesse me intrometendo em suas vidas. Só preocupo com o bem das pessoas, mas não tiro nem um proveito disso, talvez seja a visão que eles têm de mim. Será que tenho que ser como minha família? Ninguém pode me olhar com os olhos de quem consegue superar os seus desafios? Ninguém me compreende. Será isso complexo de inferioridade, doutor?

O silêncio do psicólogo foi quebrado com várias frases ditas em tom severo, mãos gesticulando acusação e olhar firme:

- Teu orgulho é evidente e tua hipocrisia aparente. Diante de tudo isso, pensaste alguma vez como és hipócrita? Imaginas ser o centro do mundo e, quando não és satisfeita, apelas para várias atitudes: finge-te de coitada para atrair compaixão das pessoas que te rodeiam, ages contra a moralidade para determinar reações de pessoas a te colocarem em destaque... Tu nunca foste o que dizes ser. Nunca serás o que almejas ser. Escondes teu egoísmo com a máscara do amor ao próximo quando na verdade, mesmo que não pareça receber nada em troca do que fazes, és preenchida pela falsa paz originada por tua influência na vida de outro.

Luiza não compreendia coisa alguma. Não esperava escutar aquilo. Mas, imediatamente, levantou-se e disse efusivamente:

- Doutor, mas você não pode negar que consegui superar muitos desafios em minha vida. Nada me pareço com aqueles com os quais sou confundida!

- Mostras-te corajosa e destemida diante dos desafios da vida, mas és tu mesma que os provocas. Enganas a ti mesma quando superas um destes desafios, como se houvesse a necessidade da existência do mesmo. Assumes um caminho cheio de pedras para envaidecer-se quando delas se desviar e, com isso, alongas a caminhada...

Luiza deixou aquele lugar, tremendo de raiva contra aquele homem. Não teve dificuldades em chegar à

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sua casa. Pensou em suicidar-se, mas deveria viver para provar a mais uma pessoa do que era capaz.

No outro dia, ao pegar o jornal, avistou em letras garrafais:

PSICÓLOGO MORRE DE ENFARTE EM SEU ESCRITÓRIO

Luiza não teve dúvidas. Era ele. Pegou um táxi e foi ao local do velório indicado no jornal, o próprio consultório. Chegando lá, rumou ao caixão. Quando se aproximou observou o rosto do psicólogo, o mesmo do dia anterior. Não havia muitas pessoas, nem desespero. Luiza sentou-se e se escorou na estante derrubando alguns livros. Quando apanhou um deles e ia colocando de volta à estante, reparou que se tratava de um livro que estava nas mãos de seu psicólogo no dia anterior, mas não o abriu, somente leu: AUTODESTRUIÇÃO – Cristiano de Paiva Barroso.

Cultura inútil

Estudara como um louco para terminar o magistério e, lecionando em uma escola primária esforçava-se por fazer cumprir à risca a educação das pessoas. Quando era irritado por um impertinente, não demonstrava impaciência, tomando de um giz, deixava o quadro repleto de frases soltas, sem conexão entre si. Embaraçava a todos os alunos que, diante da curiosidade despertada, silenciavam-se para escutar o que ele lhes

tinha a dizer. Foi assim que, após uma atividade extraclasse, iniciou a sua aula:

- Vejamos, o que vem a ser um vernáculo?

- Eu sei professor, uma cabana de inverno!

Todos os alunos admirados com a inteligência do colega não se atreviam rir até que o professor, sorrindo, disse:

- Não tem nada a ver com inverno. Vernáculo é aquilo que se refere à língua nacional. Em nosso caso, um vocábulo falado em português, é um vernáculo.

Enquanto falava notou que, a alguns metros, um aluno dormia tranqüilo e gritou:

- Zezinho venha ao quadro!

Zezinho deu um pulo de sua cadeira em meio à balbúrdia da sala e foi ao quadro.

- Se você fosse presidente, o que faria para acabar com a fome do país?

- Simples, eu distribuiria alimentos para toda a população.

- Mas, de onde tiraria tanta comida?

- Compraria, ora!

- Mas onde encontraria dinheiro para isso?

- Professor, eu não seria o presidente, eu teria dinheiro suficiente.

- Mas, quem plantaria o que você compraria?

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- Eu é que não, presidente não pega na enxada, sua função é outra! Mas professor, por que me fez tantas perguntas?

Não sei! Realmente não tem nada semelhante ao assunto sobre o qual falávamos. Só queria prender a sua atenção pois percebi a sua distração quando eu explicava o que é um vernáculo!

- Ah! Era só isso! Vernáculo é tudo aquilo que relativamente se utiliza concomitantemente de forma inexorável para combater o frio conspícuo ao período do inverno.

Aplausos da sala foram ouvidos à distância e o sinal do término da aula soava.

Enquanto todos saíram, Zezinho se aproximou da mesa de seu professor e perguntou:

- O que é vernáculo?

Nunca aparentou tamanha curiosidade ao perguntar algo. O professor, tirando um charuto, o acendia e, com um dos lados da boca, exclamava:

- Deixa pra lá!

Contágio

Lembro-me como se fosse há um minuto atrás. Ela entrou e sentou-se ao meu lado. O ônibus estava lotando aos poucos, mas o frio continuava intenso. Segui-

a com os olhos até que ela tocou em mim e pediu-me licença para sentar-se próxima à janela. Estremeci da cabeça aos pés, sua voz era tão doce quanto à da bala que comprei na mão de um garoto que as vendia dentro do ônibus com um conhecido discurso do “eu não sou ladrão...”.

Queria dizer algo àquela que tocou no meu coração sem se dar conta, mas não tinha coragem. Timidamente, olhava para o chão e para as pessoas que circulavam apressadas no passeio naquele fim de tarde, daquela grande cidade.

Pensei em lhe perguntar as horas, mas meu relógio estava visível em meu braço. Pensei em justificar minha pergunta pelo atraso de meu relógio, mas notei que ela não tinha relógio. Qualquer atitude de minha parte poderia ser tomada como um galanteio incômodo a ela, então decidi não fazer nada até que, virando-se para mim, perguntou-me amavelmente:

- O senhor poderia me informar as horas?

- Como?

- Eu perguntei se poderia me informar as horas.

- Mas não entendi o que quis dizer com “o senhor”, quantos anos acha que eu tenho.

- Uns vinte! Mas tenho este costume quando converso com pessoas desconhecidas.

- Ah! Se este é o problema, não serei mais desconhecido! Meu nome é Antônio e o seu?

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- O meu nome é Heloísa. Mas, me responda, quantas horas são?

- Desculpe-me, me esqueci! São seis e meia.

- Obriga...Atchim...desculpe!

- Saúde! Esta poluição da cidade grande também me faz mal.

- Não é a poluição, é gripe mesmo. Ontem, eu e meu marido pegamos um pé d’água e estamos, ambos, com sinais de resfriado.

Não tive mais assunto. O pé d’água que pegara no dia anterior, ela o guardou e o jogou em mim naquele momento. Só então, reparei em seu dedo a aliança de casamento.

Dormi tarde ontem e hoje não fui trabalhar. Não me animei a sair da cama. Nada guardei daquela bela moça, apenas este resfriado.

O garoto que lia o pensamento

Era um garoto que sabia ler o pensamento. Aliás, ainda não aprendera a ler, mas já sabia reconhecer o mais íntimo e imediato pensamento das pessoas. Quando o

percebeu tinha apenas cinco anos de idade, pensava ser uma potencialidade comum a todas as pessoas até que percebeu ser uma peculiaridade sua. Naquele mesmo tempo tentou dizer à sua mãe o que podia fazer, contudo desanimou-se de agir assim quando leu em seu pensamento: “crianças são crianças, imaginam o que querem e não sabem o que é a vida”. Pensou consigo: “se digo a ela o queria dizer, não reconhecerá nisso a realidade”. Quando entrou para escola, percebeu que nada havia a aprender, pois, quem lhe ensinava, pensava: “o tempo não passa”. Quando alcançou um grau mais elevado se deparou com a vil realidade de quem fingia saber o que ensinava. Por isso, nunca alcançou grandes notas apesar de poder ler o pensamento de quem elaborava as provas; as pessoas que o faziam pareciam esquecer de tudo ou nem mesmo se quer esforçar-se por lembrar-se. Um dia, durante uma prova, disparou a rir sem controle quando reconheceu no pensamento de sua professora uma melodia com a seguinte letra: “Amor I love you!”.

- Por que você está rindo! Está colando por acaso?

- Não professora, como poderia? A senhora não tira o olho de mim!

Na verdade esta era a sua limitação, só poderia ler o pensamento pelos olhos, porta da alma. Paulatinamente descobrira o que havia escondido dentro de cada atitude das pessoas. Mas não era feliz, sabia o que pensavam dele, preferiria nunca saber. Era solitário e assim cresceu sabendo que o que se pensa nunca é externado como se pensa e que era preciso fingir de bobo para viver.

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Reconhecia a hipocrisia humana, mas, quando a relatava, imediatamente e terrivelmente, sofria a conseqüência desse ato. Correu o mundo a fim de encontrar um homem que realmente fizesse e falasse o que pensava com sinceridade, mas não encontrou. E assim, chegando à margem do desespero, mergulhava no rio da morte pelo suicídio por intoxicação medicamentosa. E os últimos pensamentos que pôde ler foram: “se eu conseguir salvá-lo irei ser promovido!”.

O revolucionário pessimista

Era dia de greve. Todos iriam para as ruas e mostrariam ao povo a sua revolta por um emprego tão mal reconhecido. José Pulso Ferro comandaria a passeata até a porta da prefeitura. Silenciosamente toda a multidão de operários se avolumou à sua frente esperando um sinal ou uma palavra para que começasse a balbúrdia esperada. Havia até mesmo alguns estudantes que, desviando do caminho da escola, diziam estar dispostos a colaborar com um movimento por tão justa causa. Pulso de Ferro não dizia nada, caminhou lentamente e todos o seguiram. Alguns pensavam: “Belíssima estratégia, assim, sem algazarra, nem perceberão quando o prédio da prefeitura

estiver tomado por nossa gente e será tarde demais para nos fazer voltar atrás através de repressão policial”.

Pulso Ferro não dizia coisa alguma. Vez por outra tirava um cigarro do bolso para acendê-lo no próprio cigarro que acabava de fumar. Não parecia nervoso, mas seu rosto demonstrava a revolta de quem se sente ludibriado com um mísero salário que só dava para pagar os maços de cigarro e a comida. Todos estavam esperançosos e, mais ainda ficaram quando, ao chegar lá perceberam o palanque montado em cima de um caminhão da prefeitura. José Pulso Ferro não teve nem mesmo o trabalho de subir, todos o colocaram sobre o palanque e começavam a balbúrdia tão esperada.

Pulso Ferro não tinha escolha, ou melhor, era o escolhido para ser o porta-voz dos sem voz e a vez dos sem vez. Quando se aproximou do microfone ligou-o e um grande ruído de microfonia quase ensurdeceu a todos. Então falou num tom de revolta que muito incentivou àquela multidão de operários a gritar cada vez mais:

- O que viemos fazer aqui, viemos reivindicar o quê? Viemos reivindicar o que é do nosso direito. Mas o que é do nosso direito?

Ninguém silenciava, quanto mais Pulso Ferro falava sem chegar a lugar algum, mais a multidão alardeava:

- Berro, berro, berro, Pulso Ferro é o nosso berro.

- Viemos sim reivindicar, mas, meus companheiros, conhecemos a situação do país. Sabemos as milhões de especulações pelas quais nos tapearam fingindo estar pensando numa solução para a nossa

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situação. E agora, o que fazer? Chamar a população para estar ao nosso lado? Mas ninguém estará, pois a mídia já lhes incutiu uma imagem negativa do que somos. Estes estudantes que nos acompanham nem mesmo sabem o motivo que nos leva a fazer o que estamos fazendo agora, foram atraídos pela magia do diferente. E o prefeito, onde está? Não ouvirá nem mesmo uma gravação do que estamos reivindicando, pois já se encontra longe. Não se iludam meus companheiros, a história é a mesma: o leite das crianças, o arroz com feijão de cada dia, a construção de um cômodo para fugir do aluguel... Estas dificuldades nós continuaremos enfrentando porque é nossa sina...

Todos continuavam gritando. E sentiam uma enorme força surgir das palavras de Pulso Ferro. Realmente ninguém entendeu uma só palavra do que ele lhes dissera, nem mesmo os policiais que, para acabar com aquela algazarra, lançavam bombas de gás lacrimogêneo e prendiam Pulso Ferro. Um batalhão de choque com bombas e armas de fogo das mais avançadas enfrentava os manifestantes fortemente armados com pedras e paus.

Hoje, depois de longo tempo após aquela manifestação, outra manifestação foi convocada e, novamente, Pulso Ferro é colocado sobre o palanque e diz:

- Há vinte anos atrás, estávamos aqui, para reivindicar pelos nossos direitos. E quais são os nossos direitos? E quais são os nossos direitos?

A voz de Pulso Ferro se mistura com a voz do povo que grita sem parar:

- Berro, berro, berro Pulso Ferro é nosso berro.

E todos acreditam firmemente que não serão impedidos de proclamar sua revolta, pois Pulso Ferro é o seu berro.

O coveiro medroso

Quarenta anos trabalhou arduamente na rotina de furar e tapar covas. Nunca pareceu ter medo da morte, mas não ousava desafiá-la. Morava no Campo Santo, saía durante a manhã para comprar o básico para a sua sobrevivência solitária, mas voltava rapidamente. Parecia ter mais medo dos vivos que dos mortos.

Certa noite, quando acabava de furar a cova do enterro do dia seguinte, sentiu algo puxar-lhe a perna. E, com um chute certeiro, matou a galinha a lhe incomodar. Esta caiu na cova que acabara de fazer. Caminhou em direção ao cômodo em que residia e viu uma forte luz que se aproximava. Lembrou-se das últimas notícias vindas do sul de Minas que falavam da existência de um tal chupa-cabras cujo aparecimento procedia de uma semelhante luz no dito das pessoas, porém não hesitou, com uma picareta se punha de forma a defender-se contra qualquer coisa que viesse incomodar-lhe naquela noite de lua nova. Quando chegou perto, a luz se apagou e a escuridão tomou conta de tudo. Naquela manhã esquecera de comprar velas e a última já se acabava. Entrou em seu barraco e tentou acender as luzes, mas não havia energia

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elétrica. Apalpando no escuro as paredes, conseguiu encontrar a lanterna que usava, todavia as pilhas já estavam gastas. Resolveu deitar-se e esperar pelo amanhecer. A noite ia longa, o relógio também parou, dava cordas no mesmo sempre que ia se deitar, mas naquela noite não se lembrou. Tudo parecia anteceder a algo inimaginável. Seu coração batia forte, o medo ausente há tanto tempo, agora ressurgia como a alça de um caixão. Começou a rezar desesperadamente pulando de uma oração para outra, de uma ejaculatória para um pedido exacerbado de perdão a Deus pela vida que poderia ter sido e não foi. Nem seu gato, preto como a noite, aparecia para espantar a solidão que sentia.

De repente uma luz entrou pela porta, alguém ou alguma coisa se aproximava. Pensou: “se for alguma alma penada poderá me fazer companhia”. Todavia, sorrateiramente, entraram dois homens que, gritando, o deixavam estupefato. Era um assalto. Amarraram-no e iam juntando as poucas coisas que podiam encontrar em tão humilde habitação. E saíram rapidamente antes que alguém desconfiasse e chamasse a polícia. O coveiro desmaiou e só acordou no outro dia quando o desamarraram da cadeira e imobilizavam o seu braço quebrado pelo tombo. Um dos ladrões era socorrido pelos bombeiros ao afundar numa velha cova durante a noite e outro, ninguém sabe porquê, morrera misteriosamente abraçado com uma galinha e um gato preto dentro de uma cova que seria usada naquele dia.

Eram sete horas da manhã e o coveiro apanhou o jornal do dia anterior, que esquecera na porta de seu barraco, com os seguintes dizeres: “O racionamento de

energia elétrica não foi o suficiente para evitar o ‘apagão’ que acontecerá nesta noite”.

O puxa-saco

Ele era o famoso puxa-saco. Enchia de elogios a todos que encontrava tentando desta forma ser tido entre os amigos de quem era por ele elogiado. Era só encontrar o Zé da Viola e iniciava o seu bombardeio:

- Há quanto tempo? Não tem tocado mais no bar Du Gomes? Sentimos imensa saudade de seus acordes que fazem nossa alma bailar. Por que sumiu?

- Não tive novas propostas para tocar lá. O público diminuiu após minha ida para lá, acredito que nem todo mundo gosta de músicas como a de Zeca e Zaqueu, Antônio Juba e Maria das Covas...

- Infelizmente, é por isso que o país não vai pra frente. A Cultura pregada pelos meios de comunicação não é o resultado dos gostos das pessoas, mas é ela que determina os gostos das pessoas.

- Pode ser, mas isso não muda em nada a minha situação.

- Mas vai mudar. Violeiro como tu não tem na região.

Zé da Viola se despedia dizendo:

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- É, meu caro, se todos pensassem assim eu não estaria com tanta dívida.

Mau Zé da Viola se ia, o puxa-saco encontrava outro:

- Como vai Du Gomes! Há quanto tempo não vou tomar um aperitivo em seu bar? Como está o movimento?

- Estou começando a recuperar os clientes. Vários deixaram de freqüentar o bar quando inventei de chamar Zé da Viola para fazer show ao vivo.

- Mas você é criativo, se isso não deu certo há outras coisas que você poderá fazer. Na verdade, nunca vi pela região alguém que tratasse a freguesia como tu.

- Talvez eu consiga reverter a situação, mas de show ao vivo estou fora, isso já me deu prejuízo demais.

- O erro não está em fazer show ao vivo, mas em quem você chama. Afinal de contas, quem pode aturar escutar por mais cinco minutos: Zeca e Zaqueu, Antônio Juba e Maria das Covas...

O Vendedor de lenços

Godói já estava se desanimando de sua profissão. Durante anos vendera lenços em velórios, hospitais, teatros, enfim, onde pudesse encontrar alegria ou tristeza capazes de arrancar lágrimas. Tinhas todos os tipos de lenços para as diversas ocasiões. Se seus lenços pudessem

dizer qual era o verdadeiro sentimento de quem os usava, poderiam acabar com o mercado de lenços de Godói, ao mostrar o fingimento presente em muitas lágrimas hipócritas.

Correu o tempo e surgiram as máquinas avançadíssimas. As pessoas, preocupadas em seguir o ritmo da máquina, passaram a não se preocupar mais com a morte e nem com a vida. Todo sentimento se tornou banal diante de um mundo capitalista neoliberal e globalizado. Godói já não possuía os volumosos lucros que obtivera após a Segunda Guerra mundial, mas não perdia as esperanças: “sempre, em algum lugar, haveria alguém a sofrer e a chorar, ou a rir e se emocionar”: era a sua rima predileta. Mas, o negócio não ia bem. As pessoas continuavam sofrendo, emocionando, mas não choravam mais. Será que algum lenço preguiçoso dera com a língua nos dentes? Não sabia explicar o que acontecia. De uma crise e de outra as pessoas saíam, mas não mais colaboravam para o sustento de Godói.

Atônito, Godói contemplava os lenços espalhados pelo chão a trazer-lhe as lembranças dos tempos de outrora. Tempos bons aqueles, nos quais as mocinhas compravam lenços rendados para jogá-los ao chão propositadamente para serem apanhados por cavalheiros já não existentes, em que viúvas compravam lenços pretos e os exibiam em todas as celebrações como uma prova de seu sofrimento, em que os rapazes garbosamente vestidos os compravam como último toque de realce em seu terno... Ah! Tempos que não voltariam. Pensando nisso, Godói chorou e, pela primeira vez durante todos aqueles anos, usou um de seus lenços. Quando caiu em si, deu-se com sua realidade e, como um tiro de misericórdia

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àquele empreendimento que não iria adiante, juntou-os numa lata e pôs fogo. Os lenços em chama exibiam um fogo colorido e, com eles, queimavam o sentido que Godói dera à sua existência. Era o fim.

No outro dia, assistindo ao noticiário da tarde, escutou: “deputados e senadores choram emocionados após a tragédia americana que determinou a alta do dólar”. Decidiu mudar-se para Brasília, lá com certeza encontraria fregueses que, em certas ocasiões, exibiriam seus lenços como prova de seu caráter. Nem tudo estava perdido.

Uma freira num sexy-shopping

- Por favor, estou procurando uma loja de artigos eclesiásticos. Você poderia me informar onde poderia encontrá-la?

- É fácil irmã. Pegue aquela escada rolante e verá à sua esquerda uma entrada. Lá há cinco lojas de conveniências, não será difícil encontrá-la.

Pegando a escada rolante a pequena freira entrou em uma das lojas na direção em que lhe foi indicada para procurar um livro de novenas. Tinha o costume de andar de cabeça baixa, na verdade não era uma freira consagrada, ainda fazia o noviciado e, aprendera de sua superiora, Madre Gertrudes, que no convento, a humildade e a simplicidade devem atrelar-se a elas para que sejam observadas em todos os lugares a fim de

vencerem as tentações. Com efeito, esta noviça, desviava-se de tudo o que pudesse escamoteá-la pelo caminho, não entrava em bares e nem onde houvesse alguma balbúrdia, era tida entre as exemplares alunas. Quando resolveu levantar o olhar, estupefata, não pôde reagir a nada. Escutava alguns cochichos e olhares em sua direção, estava numa loja sexy.

- Vejam a fantasia sexual daquela, bem original. Vendedor, você tem aí um hábito desses, mas com uma abertura lateral?

- Me vê aí um pênis de silicone com ventosas!

- Calma pessoal, atendo a todos. Esperem um momento – e virando-se para a noviça perguntou – deseja alguma coisa?

O que dizer? Se dissesse quem era, aquelas pessoas poderiam pensar mal de sua Congregação. Se dissesse que entrara ali por engano, quem acreditaria? Então, teve uma idéia maluca:

- Sou de um grupo teatral e estou passando pelas lojas para conseguir arrecadações para nossos eventos feitos em hospitais, creches...

- Ah! Então você é uma atriz de teatro amador. Vejam só! Hoje eu levantei com o espírito desapegado dos bens materiais – e tirando cinco notas de cem reais da caixa registradora deu-lhe - tome aqui, isso deve ajudar.

- Não, não precisa!

- Mas você não veio aqui para isso!

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- Não, quero dizer, sim, mas não precisa de tudo isso.

- Não se preocupe, eu sei que é para uma causa nobre.

Não teve escolha, pegando o dinheiro, disfarçando seu asco, guardou-o. Nem se lembrou de passar na loja que viera procurar. Saiu às pressas e, depois de andar algum tempo rapidamente, parou e sentou-se num banco da praça. Sentia-se com um enorme peso nas costas: primeiro por ter entrado em local tão impuro, segundo por haver mentido, terceiro por haver pego dinheiro ganho com coisas profanas e quarto por aceitar por alguns instantes as tentações a invadir-lhe a alma no momento em que observa todos aqueles objetos eróticos. Não sabia o que fazer. Durante aquela tarde carregou sobre as costas aquele peso, mas, novamente, teve uma idéia: resolveu pedir ajuda a um padre e, para isso, pegou um ônibus que a levaria a uma distante paróquia. Chegando lá, aproveitou-se da confissão que estava sendo realizada anteriormente à celebração. Chegando a sua vez, disse:

- Padre, eu queria lhe confessar, ou melhor, lhe dizer, ou melhor, lhe pedir...

- Não se preocupe minha filha, desde o momento que a vi entrando naquela loja, sabia quem era você; mas não se pode espalhar para o mundo inteiro que, mesmo os consagrados, têm impulsos relacionados à natureza humana...

- Mas eu não entrei lá pra...

- Eu sei, não precisa explicar, é difícil admitir.

- Mas eu não...

- Não se preocupe, vá em paz. Vou celebrar agora.

A noviça, ainda trêmula, deixava o confessionário pior do que chegara. Fora mal interpretada em tudo. Quando o padre subiu ao altar, reconheceu nele o homem que olhava algumas revistas na loja. Imaginou-o apontando-lhe o dedo na mesma loja e acusando-a de infidelidade ao seu carisma. Que sorte a dela, ir para tão longe e encontrar o testemunha de seu ato involuntário... De repente, caiu em si e viu claramente o que estava acontecendo. Ao acabar a missa, entrou na sacristia e, com segurança em suas palavras, disse em tom de acusação:

- O que é que o senhor, um padre, estava fazendo num sexy-shopping?

- O mesmo que você, nada.

A ira é má conselheira

Ele nunca agira com desonestidade, mas se revoltava contra os homens que abusavam de sua situação para maltratar os outros. Quando falava, todos paravam para escutá-lo admirados com o caráter de quem sabe o que fala e tem certeza do que faz.

Certa ocasião, ao passar em frente de uma loja de revólveres, avistou um belo calibre, mas nada entendia sobre suas classificações. Entrou e observou a todos os

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revólveres presentes na loja. Todos eles eram belíssimos e ficariam muito bem em sua cintura. Mas não alimentou a vontade de possuí-los. Quando fez menção de sair, o vendedor parou em sua frente e cumprimentou-o fervorosamente:

- Mas vejam só se não é o Senhor Otávio! Finalmente veio conhecer a minha loja!

- Não se vislumbre com isso, só estava de passagem e, me senti revoltado contra o dono de uma loja de armas como esta. Já estava pronto a declarar a minha posição de quem não é a favor de nada que possa produzir violência.

- Então você acha que eu vendo armas para bandidos? Não se engane! Bandidos não compram armas em lojas. Estas aqui são vendidas não para serem usadas contra as pessoas, mas a favor delas.

- De qualquer forma, o cidadão comum tem quem o defenda!

Falando isso, saiu e bateu o pé, como se protestasse contra aquele amigo e, lentamente, prosseguiu seu caminho. Ao se aproximar de um táxi, viu à sua frente um rapaz de estranha aparência, tatuado, cabelo descolorado na franja, uma bala de revólver enfiada na orelha e, de óculos escuro. Viu também um velhinho com uma bengala que, passando em frente a este rapaz, caía pesadamente no meio do passeio. Correu para segurar o velhinho, mas, já era tarde, este, sobre o chão, morreu imediatamente ao bater a cabeça num meio fio (sempre o culpado de vários acidentes). Otávio não se conteve, seu sangue subiu ao cérebro e fez uma enorme pressão;

“como há tanta crueldade num coração capaz de maltratar um velhinho como aquele?”. E, cheio de cólera, arrancou de um cortador de unha com um acessório de canivete e fincou-o profundamente no rapaz. Todos na rua assistiam tácitos de medo. Um comentava: “aquele senhor enlouqueceu!!!”. Outro corria em sua direção e com um soco o desmaiou. Quando acordou estava no hospital e, ao lado, dois soldados que o esperavam impacientemente. Dias depois, no julgamento, não pôde se defender quando escutou a acusação contra si:

- Meritíssimo juiz, não venho inventar contos para defender o meu cliente. Não tenho intenção disso, tenho testemunhas que podem dizer claramente a verdade dos fatos.

- Meritíssimo juiz, senhores jurados, estive no local da tentativa de homicídio e presenciei os fatos. Este rapaz ainda convalescente, excêntrico na verdade, porém dócil, estava parado no ponto de ônibus, quando viu aproximar-se um velhinho que aparentava uns sessenta anos de idade e se afastou para que este passasse. Quando o velhinho se aproximou firmou todo o seu peso sobre a bengala e, percebi que esta estava sobre o pé deste rapaz. Ele, imediatamente, puxou o pé, mas com ele também puxou a bengala do pobre velho. Este senhor, aparentando bêbado, puxou de uma faca e atacou o rapaz. Mas logo foi imobilizado por outro rapaz que saíra do táxi.

Hoje Otávio saiu da cadeia, mas já não é mais admirado por suas palavras. Comprou aquele belo calibre que admirava, mas não tinha coragem de comprar. É incólume a qualquer injustiça contra outrem, mas

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aprendeu uma coisa: a verdade não está nos olhos de quem vê, mas naquilo que é visto.

O fim da picada

Seu nome era Augusto, todavia, em nenhum outro lugar alguém o reconheceria assim. Seu apelido, João Garrafa já havia impregnado à sua existência tanto quanto o álcool ao seu sangue. Dois casamentos foram o suficiente para derrubá-lo e fazê-lo trilhar num caminho quase sem volta. Logo depois de seu casamento, na noite de núpcias, um enfarte em sua esposa levou-a ao fundo da terra e, com ela, enterrou as esperanças de uma vida feliz e tranqüila.

Vários anos se passaram e, vivendo da pensão da segunda esposa dada pelo filho que com ele permaneceu, nunca deixou os bares da cidade. Era o mais solidário amigo dos traídos que, numa mesa de bar, caíam no porre. De vez em quando, juntava-se a algum grupo destinado a levantar um barraco ou a bater uma laje, ansioso, é claro, pela comemoração posterior. Levantava-se às doze horas, engolia qualquer coisa e saía para o bar. Lá chegando, era recebido com ensejo, mas não bebia imediatamente; com voz firme exclamava críticas ao governo, às instituições (dando especial atenção ao casamento) e, ao terminar, era aplaudido como um orador famoso. Somente aos domingos, esta rotina mudava, arrumava garbosamente e seguia para a igreja assistindo fielmente às celebrações.

Júnior, agora com 26 anos de idade, não dizia nada a respeito do pai. Não demonstrava vergonha, mas não buscava a sua atenção. Abandonado pela mãe que partiu para os EUA com um funcionário da embaixada e vivendo com a sua tia no barracão construído sobre a casa do pai, nunca demonstrou entusiasmo por nada; durante toda a vida, aceitava as sugestões da tia, noviça convertida a Presbiteriana e, assim, formou-se em direito.

Certa ocasião, Júnior visitou um amigo e, pela primeira vez, em 26 anos, falava sobre o que sentia. Falou de toda a angústia recôndita na ausência do pai nos momentos mais importantes de sua vida, na saudade da mãe que o deixou quando tinha oito anos de idade. Seu amigo José, mergulhado em ceticismo devido a um relacionado mal sucedido, não lhe deu atenção; chamou-o para o bar mais próximo e, lá, Júnior experimentou pela primeira vez em sua vida aquela que substituiu ao pai as duas esposas que perdera. O êxtase tomou conta de ambos, e, assim, José disse com tenacidade:

- A vida não tem sentido. A morte não é a consumação da vida, é o único sentido para ela. Veja, tudo tende para a morte. Até mesmo os mais nobres homens que deixaram sua memória marcada, nunca poderão se deleitar com a fama posterior...

Júnior caminhava devagar, o discurso do amigo tocou-lhe profundamente. Cambaleava andando sem rumo, apedrejava as janelas dos prédios públicos, demonstrava a revolta antes oculta. Repentinamente, parou, e seu estômago devolveu todo o rum misturado à cerveja que bebera naquela noite. Minutos depois, sentia-se consciente, mas o discurso de seu amigo ainda surtia o

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efeito da revolta. Pensou na mãe distante nos EUA, pensou no pai distante na boemia, pensou na tia distante no fanatismo, pensou na vida distante do sentido... Quebrou uma das garrafas...

No outro dia, o velório de Júnior estava cheio: amigos da faculdade, todos os parentes, a mãe que passava uns tempos no Brasil, o pai vivendo um raro dia de sobriedade. E todos que se aproximavam de seu caixão exclamavam quase sempre o mesmo:

- Tão jovem, um futuro pela frente! Nunca o vi debandar por nenhum caminho não aprazível à sociedade. O que o destino quis? Tirar da terra a prosperidade de um jovem advogado, com casamento marcado, e com uma família que tanto o amava? Como explicar o aparecimento daquela cascavel em seu quarto?

O ferro e o Apagão

O ferro de brasas chorava seu desuso. Não tinha sentido existir. Fora criado para ser ferro e não para ser enfeite de estantes. Foi humilhado ao extremo e, com tristeza, observava outro ferro mais jovem, que exibia uma cauda ligada a um buraco na parede. Não compreendia bem o que era, mas sabia que aquilo o tornava superior. “Ah!” – pensava ele – “esta geração mais jovem, sempre com inovações na aparência”. Sentia-se solidário a uma senhora idosa que morava na casa junto com os filhos e que sempre exclamava:

- Neste país, velho não tem vez. Jovem é que dá lucro.

Ele também, durante anos, serviu àquela senhora. Tivera o privilégio de passar o seu vestido de noiva, o terno de seu marido, mesmo desmontado após vários tombos. Mas chegou outra geração e sua utilidade se tornou antiquadra. De vez em quando, quando percebia que algum daqueles que exibiam superioridade eram inutilizados por um simples tombo, alimentava as esperanças de voltar a ser útil. Mas, logo, logo, aquele era substituído por outro semelhante deixando-o em estado deplorável.

Um amigo, também dotado de cauda semelhante à de seu rival, dizia-lhe sempre algo animador através de canções: “amanhã vai ser outro dia”. E foi este amigo que lhe trouxe a notícia que mudou o rumo de sua existência condenada para sempre à inutilidade: “Estamos em época de racionamento de energia”. Não sabia o que isso significava, mas de uma coisa tinha certeza, depois disso, nunca mais ficou esquecido na estante; mas olhava complacente para o rival cuja cauda arrastava no chão demonstrando impotência e pensava: “eu também já passei por isso!”.

O retratista pornô virgem

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- Assim...não...olhe para a lâmpada...isso...faça um olhar de súplica...demonstre feição de sede...ótimo... pronto.

Era o retratista mais respeitado pela seriedade de seu trabalho. Nunca ousara ultrapassar os limites da ética profissional, via na mulher o símbolo da beleza divina. No mundo inteiro, homens observavam “a mulher” pelo ângulo o qual ele escolhia, e, nunca errava; sabia expor de forma tridimensional as principais peculiaridades que davam nitidez à beleza. Pensava consigo: “deveria ter sido escultor, desta forma poderia expor de maneira eficaz a beleza que admiro sem perder em nada as formas que não consigo expor pela fotografia”.

Certa ocasião, Adolfo foi tomado de intensa paixão por uma bela modelo que entrava em seu estúdio. Numa extrema timidez, ela se aproximava coberta com uma felpuda e macia toalha. Seus ombros, semidescobertos eram a única forma visível, mas, de imediato, transmitiam a sensualidade de uma beleza inefável jamais vista por ele. Tremia do cabelo às unhas dos pés e não conseguia dizer uma só palavra. Pediu aos companheiros que interrompessem aquela seção de fotos, pois não estava passando bem. Não era necessário ser um grande observador para facilmente reconhecer nele os principais sinais de pressão alta. Saindo do prédio, correu como um louco que tivesse visto um fantasma. Se alguém o perguntasse o que estava acontecendo, talvez nem mesmo ele saberia explicar. Foi assim, que ao atravessar a avenida, entrou na banca mais freqüentada da cidade, comprou a última revista na qual trabalhara com afinco e levou para casa. Chegando lá, entrou em seu apartamento e trancou a porta.

Dois anos depois do incêndio em seu prédio, nunca mais o encontraram, mas, entre as ruínas, acharam sua câmera de fotografias. “Adolfo, célebre retratista pornô, quanto mistério deixaste com teu desaparecimento!”.

Coincidências

Mário estava decidido. Iria suicidar-se. Nada no mundo poderia tirar-lhe da angústia na qual mergulhou após a morte de Juscelino. Amou-o desde o primeiro momento que o viu e por ele foi amado. Juntos derrubaram todos os preconceitos. Ele, numa entrega total, nunca abandonou seu companheiro, mesmo após saber de sua contaminação pelo HIV. Dedicou a Juscelino toda a sua energia, mas não imaginava que o perderia para sempre. Foi assim, que andando pela cidade, decidiu atirar-se do alto de um viaduto e, para ter certeza de que não sobreviveria, esperaria um carro para atropelar o que restasse de seu corpo. Respirou profundamente, estava pronto. De longe avistou um carro que parecia estar em alta velocidade e se pôs de pé na mureta. Quando o carro se aproximou, atirou-se. Calculou mal e acabou caindo em cima da carroceria daquele carro. Nem mesmo nisso o destino lhe ajudou. Pensou em pular daquela caminhonete que parecia correr a 130 quilômetros por hora, mas de nada adiantaria; por outra influência do destino acabaria sobrevivendo a isso. Então, batendo na capota, tentou atentar à motorista daquele carro que nem mesmo se deu

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conta de que algo ou alguém estava em sua carroceria. Quando parou o carro estava no meio de um matagal. E saindo, viu aquele homem em sua carroceria e perguntou: “o que você está fazendo aí?”. E ele respondeu: “é uma longa história” - e Mário começou a contar-lhe os últimos fatos de sua vida que culminaram na resolução de dar cabo a ela. Tatiana chorou ao ouvir tudo aquilo e disse: “eu também vim aqui para isso: amei uma mulher com louca paixão, amei a sensualidade da ausência, amei-a e a ela me entreguei de corpo e alma, mas nunca pensei que por ela seria traída; o punhal da perfídia que me feriu foi um homem que se pôs em meu caminho, evidentemente, sabia que ele possuía algo mais que eu não podia dar a ela além de meu amor...”. Mário passou a acreditar em destino e tornou-se amigo daquela mulher. A amizade de ambos gerou um filho e decidiram nunca mais lamentar o passado até que um dia Tatiana entrou em seu quarto e não acreditou na cena que viu em sua cama. Como o destino poderia pregar-lhe mais uma peça? Não já havia sofrido o suficiente na perda anterior? Mário estava morto por causa de uma simples gripe que desencadeou em pneumonia. Decidiu novamente por fim à própria vida e correu em direção ao viaduto próximo ao seu apartamento; quando apareceu um carro que vinha em alta velocidade atirou-se da mureta na qual se apoiara e caiu na carroceria do carro. E a história se repetiu em novas versões.

Surpresa

Voltávamos de uma festa no bairro Betânia e tomamos um ônibus lotado. O motorista, destes que não esperam a gente entrar para fechar a porta do ônibus, respondeu bruscamente ao “boa noite” que lhe dei. Era dia de jogo do Atlético e o ônibus estava lotado de torcedores. A gritaria diante da conquista de mais um campeonato enlevava aos torcedores que, batendo as mãos no teto quase arrancavam-no. Depois de quinze minutos, pude respirar aliviado diante do fim daquela balbúrdia.

Todos pudemos sentar após a saída daqueles torcedores. E resolvi tirar um cochilo. De repente, acordei assustado quando escutei um grito: “Boa noite!”. Era um menino que aparentava uns dezesseis anos apesar da subnutrição visível pelas formas de seu corpo. De repente começou um discurso muito conhecido por todos nós que viajamos nos lotações da cidade de Belo Horizonte sendo interpelados por crianças a vender cartões e balas. Dizia com voz tonante e firme:

- Há muitas crianças que vivem nas ruas de nossa cidade e não tem nem mesmo o que comer. Muitas passam frio, fome e sede. Outras, diante dessa situação de miséria, assaltam os transeuntes (e deu um enorme ênfase ao falar esta última palavra), muitos se embrenham no mundo das drogas. Eu, porém, não venho vender cartões nem balas, nem vou agradecer com um “Deus que pague” a cada um de vocês que irá me entregar o dinheiro – e

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tirando uma 765 automática disse: - isso é um assalto pessoal.

O farmacêutico

Lá para as bandas do vale do Jequitinhonha apareceu certa vez um estranho farmacêutico. Baixinho, porém sisudo, demonstrava uma sabedoria latente nas misteriosas fórmulas que fazia ao misturar ervas peculiares ao clima seco da região. Naquele lugar onde não havia nem mesmo um médico, aquele farmacêutico estabeleceu sua drogaria. Não tinha muitos amigos, mas os poucos que possuía eram sinceros. Atendia a todos com presteza de quem parece receber milhões por uma consulta, mas que, na verdade, na maioria das ocasiões, em vez de um “obrigado” recebia um “devia ter deixado este desgraçado morrer” (ocasiões em que curava os males relacionados ao excesso de cachaça da região). Tinha um segredo e todos sabiam que tinha, mas, até então, ninguém o descobrira.

Certa ocasião, Bartolomeu organizou todos os seus objetos para mudança. A cidade, antes indiferente àquela estranha figura, começou a reportar-lhe o valor que somente os que amam a ausência, podem reportar. Iriam perder um grande pai que tanto lhes ajudou a se recuperar das picadas de cobras, ossos quebrados... O que fariam sem ele? Decidiram homenageá-lo. Mesmo que fosse embora não poderia deixar de receber a gratidão de toda aquela cidade por todas as vidas salvara.

Como não se pôde evitar, Bartolomeu partiu para nunca mais voltar. Decidido nem mesmo olhou para trás. E a cidade se transformou em um túmulo.

Dois anos depois, chegou àquela cidade uma fábrica de televisores. Estes, vendidos a preço de custo, não deixavam de penetrar na casa da família, por mais miserável que estivesse. Foi assim que, a cidade assistiu estarrecida a um noticiário onde relatava a morte de milhares de americanos com uma bactéria conhecida como Antraz. Bartolomeu, assistente de um terrorista conhecido como Bin Laden, aparecia numa foto e uma voz tonante e eloqüente dizia: “Procura-se Mohamed Talui. Morto ou vivo. Recompensa: 10 milhões de dólares”. E os mortos daquela cidade-túmulo ressuscitaram.

Ironia do destino

Ir a reunião e discutir sobre a globalização. Falar que é contra a globalização. Sair da reunião sobre globalização. Entrar no próprio escritório. Rasgar um panfleto que anuncia a nova promoção da Coca-cola. Escrever uma dissertação contra a globalização. Apresentar a dissertação contra a globalização ao editor do jornal. Esperar o gesto de aprovação e sentar-se novamente ao escritório. Pensar nas crianças dos países da África barrigudinhas, mas com fome. Pensar no carro importado que nunca elas terão e, apertando a mão contra os punhos, dizer em voz alta: “é por isso que eu sou

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contra a globalização”. Ler um artigo recém-publicado falando da seca no nordeste. Ler outro artigo falando do aumento da taxa de juros da eterna dívida externa e pensar: “é por isso que eu sou contra globalização”. Pedir um suco de laranja nacional pelo telefone e escrever um artigo criticando o “Amor paterno do FMI aos países subdesenvolvidos”. Revoltar-se contra a globalização. Ficar com raiva, pois não há mais suco natural nacional e as laranjas boas foram todas exportadas. Reafirmar que é por isso que é contra a globalização. Amaldiçoar os tratados de livre comércio. Xingar a mãe do presidente dos EUA. Falar que é contra a globalização. Desistir de lanchar, pois só há Coca-cola para beber. Ir para casa com semblante de revolta. Atravessar a rua Gonçalves Dias e morrer atropelado por um caminhão da Coca-cola onde está escrito: “Gostoso é viver”.

O detetive

- Quero que tu me digas, encontraste algum documento na casa do homem assassinado?

- Não senhor. Vasculhamos toda a casa e não encontramos nem mesmo uma mosca.

- Então vamos interrogar o Josué vizinho deste homem.

- Você acha que ele possui algo suspeito?

- Sim. Testemunhas me disseram que já faz três meses que ele não toma banho.

“O que tem haver isso com o assassinato?” – pensou – “Encontrando um guia, as moscas certamente iriam acompanhá-lo”.

Jonas pediu demissão. Seu chefe estava louco. Durante muito tempo usou o behaviorismo a fim de determinar o ponto de partida de suas investigações, mas se limitava a analisar o comportamento humano, nunca de insetos. Talvez andara lendo muito Sherlock Holmes. Iniciar uma investigação séria seguindo o rastro de moscas? Quem acreditaria na eficácia de tal investigação? Várias vezes, Jonas passou em frente à casa do assassinado. Cogitava as possibilidades do acontecido e depois se lembrava de que não estava mais no caso. Certa ocasião, percebeu uma abertura no muro de Josué que dava acesso livre à casa do vizinho. Então, pela primeira vez, viu a possibilidade relatada pelo ex-chefe, mas não baseado em evidências tão banais como a dele. Resolveu então procurar o detetive e dizer-lhe o que descobrira. Quando acabou, o detetive disse:

- Achas que conseguirias chegar ao assassino por um fato tão trivial quanto o furo de um muro qualquer?

- Então você já não acredita que Josué seja o assassino?

- Evidentemente que sim. E agora tenho certeza.

- Não compreendo!

- Só não gosto de basear investigações sérias em evidências banais.

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Jonas se enfureceu, e disse em tom de sarcasmo:

- Então você acha seriedade no seguimento do rastro de moscas?

- Tu tens uma fértil imaginação. De onde tirastes esta história absurda?

- Continuo não compreendendo, explique, por favor, que acabo de perder a lógica das idéias.

- Lembras do lhe perguntei quando vistoriamos toda a casa da vítima?

- Lembro-me que respondi que não havíamos encontrado nada de suspeito...

- Não lembras quem estava conosco ajudando-nos a vistoriar toda a casa?

- Sim. O vizinho, Josué.

- Diz-me, quantos vizinhos encontraste em tua vida capazes de relatar as minúcias dos esconderijos de jóias e dinheiro do outro?

- Até o presente momento somente Josué.

- Foi assim que cheguei à suspeita devido àquela aproximação insistente a manipular nossa mente para outras possibilidades e ... (o detetive relatou toda a investigação que durou dias).

- Segundo tudo o que você me apresentou, não resta dúvidas de que Josué é o assassino do vizinho. Mas me diga, porque me disse como alimento à sua suspeita, que Josué não tomava banho havia três meses.

- Então não notaste a elegância de Josué estava vestido com sinais evidentes de banho? Na verdade, tinha sido informado que até o dia anterior Josué demonstrava resistência ao banho. Seria coincidência tomar banho na manhã do assassinato do vizinho e suas roupas serem queimadas no quintal?

Josué achou toda aquela história patética e banal, mas em muito superou a história das moscas.

Perguntas X respostas

Há dias que insistem em sua fadiga. Cansado de mais um dia de trabalho, saí do hospital onde trabalho, mas tinha comigo uma tarefa a mim destinada por um amigo: encontrar um quartel de polícia onde poderia procurar seu nome numa listagem para saber o local onde este faria as provas de um concurso público. Já na porta do hospital, iniciou o meu martírio num dia em que a impaciência se atestava visivelmente em mim:

- Você poderia me informar que horas são?

- Hoje saí de casa sem dar corda em meu relógio e até agora não parei para regulá-lo. Infelizmente não posso lhe informar as horas. Devem ser Sete horas mais ou menos.

Frustrado saí. Escutar uma verborréia daquela da qual não poderia aproveitar nada! Ela poderia ter respondido apenas: “Meu relógio parou” e rapidamente eu deduziria o restante. Para aumentar a minha ansiedade, devia chegar ao quartel antes das 7:30 h e assim, desistindo de perguntar a outra pessoa sobre as horas,

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corri a atravessar a rua na qual certamente encontraria o quartel. Quando parei no jardim central, enquanto esperava o sinal de trânsito fechar para os carros, resolvi arriscar novamente algo para apaziguar minha ansiedade. Então, vendo um rapaz ao meu lado, também esperando para atravessar a rua, perguntei-lhe educadamente:

- Você tem relógio aí.

- Não! Você quer saber as horas?

Pensei em “soltar-lhe os cachorros”. Para que eu gostaria de saber se ele tinha relógio? Evidentemente, estava querendo saber as horas. Se estivesse querendo assalta-lo, não perguntaria se ele tinha relógio. Mas respondi disfarçando meu nervosismo:

- Sim.

Então ele tirou um celular da bolsa e disse:

- São 7:15 h, ou melhor, 7:16 h.

Com certeza eu consegui dissimular com sagacidade de ator meu nervosismo. Uma resposta daquelas “talhou-me o sangue”. Ora, que diferença fazia entre um minuto para que ele refutasse a informação prestada? Caminhando mais adiante, acalmei-me reconhecendo nessa atitude um símbolo de ser prestativo. Mas, quando cheguei ao prédio onde pensara ser o Quartel de Polícia, tive outra decepção. Era somente mais um prédio hospitalar. Naquele momento, perguntei ao porteiro:

- Você pode me informar onde se encontra o quartel?

- De polícia?

Respirei profundamente. O mundo estava unido para deixar-me enfurecido e respondi em tom áspero, porém, em voz baixa:

- Sim. O Quartel de Polícia. Você sabe onde ele se encontra?

- Várias pessoas vieram aqui hoje pensando ser aqui o Quartel de Polícia. Mas, eu não sei onde ele se encontra.

Não sabia por que as pessoas perdem tantas palavras em vão. Talvez agora saiba, já que isto é o que faço neste momento. Apressado, segui a rua na tentativa de avistar o quartel. Poucas pessoas eu encontrei pelo caminho. E, se arriscava fazer a pergunta já estereotipada em minha boca naquele dia. Recebia quase sempre a mesma resposta:

- Não sou daqui, mas, acho que ele pode se encontrar mais à frente.

Apesar da educação ao agradecer amigavelmente a quem me dera alguns segundos de atenção, eu pensava: “não ser daqui não implica necessariamente em não saber onde se encontra o quartel”. Sabia eu que o “acho” daquelas pessoas demonstrava a mesma certeza que eu tinha: nenhuma.

Foi assim que “aos trancos e barrancos” cheguei ao Quartel onde um policial me barrou na portaria dizendo:

- Há um minuto atrás os portões estão fechados para o público externo.

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Lembrei-me, então, do rapaz do celular.

Presença penetrante

Estando presente ela não precisou pedir licença, foi invadindo meu ser como um mau elemento a macular a imagem do MST. Invadiu-me e não se contentou com um instante apenas, aqui jaz até agora. Desde aquele momento minha respiração se tornou ofegante, meus olhos diferentes, minha boca em movimentos bruscos demonstra a conseqüência de tal intromissão. Tentei tirá-la, pois aqui ela não poderia ocupar mais um espaço, mas ela entranhou como uma raiz e tornou-se quase inexorável. Todos, percebendo a minha mudança, perguntam-me por ela e eu lhes respondo: “continua a mesma, mas não quer me largar”. Noites sem dormir fazem meus pensamentos divagar no infinito do espaço, dias mal vividos fazem com que eu reconheça a minha vulnerabilidade diante dela. Muitos a tiveram em suas vidas e muitos conseguiram dela se desfazer rapidamente, mas eu, admitindo-me subjugado por ela exclamo a maior certeza que já tive em minha vida: “nunca pensei que uma simples gripe conseguisse vencer minha determinação quase inabalável”.

A mulher do próximo

Maycon era o mais galinha (animal usado para designar o homem mulherengo, mas que em nada se assemelha com este outro animal) de todos os homens de Campina Verde. Mas Maycon não se satisfazia com as mulheres solteiras, havia algo de misterioso que o atraía àquelas mulheres cuja experiência havia sido legitimamente comprovada durante os primeiros meses na convivência com seus maridos. Os homens casados, diante de tal sujeito conhecido a partir de 1990 como Ricardão, cercavam a esposa de cuidados. E como eram caros esses cuidados: jóias raras, vestidos de grife francesa; somente os sapatos, comprados em Nova Serrana, davam uma trégua no contínuo esvaziamento dos bolsos dos maridos precavidos.

Chegado o carnaval, Maycon esfregava as mãos, Campina Verde receberia nesta época milhares de visitantes dispostos a passar durante os três dias antecedentes à quarta-feira de cinzas em contínua energia não parando nem mesmo para dormir. Maycon aproveitava-se do excesso de bebida alcoólica dos homens para paquerar as mulheres semi-embriagadas. E Maycon levava tudo isso muito a sério: na rodoviária, parado ao lado do banheiro feminino, podia tramar todos os planos de forma determinada colocando em ordem cronológica as ovelhas a serem tosquiadas na ausência do pastor.

Chegou o dia tão esperado. Sua sede galinácea tornara-se mais forte apesar do frio daquela noite. Para se

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aquecer, entrava no meio da multidão e, após a formação de um trenzinho (pessoas que se segurando os ombros umas das outras dançavam embrenhando-se no meio da multidão), lá ia ele, aproveitando-se da rela-rela e da inocência daquela brincadeira de carnaval. Naquele momento, também tentava avistar no meio do povo aquelas previamente escolhidas para implementar sua fama. Cometeu, porém um erro fatal, embriagou-se de tal maneira a ponto de perder seu característico senso calculista. Não esperando o momento propício lançou uma “cantada” numa bela moça acompanhada de um rapaz cujas formas físicas davam a todos os presentes a noção do estrago.

- Quem você chamou de gostosa? – e, de pé diante de Maycon, encostou o umbigo em seu nariz e gritou – diga!

Maycon, diante do tumulto das pessoas a gritar-lhe: “corre Maycon”. Repentinamente, caiu em si curando-se da embriaguez por instantes, disse, já podendo tremer ao enxergar a realidade que poderia proceder àquilo:

- Claro que é você, mona! Com esse corpo másculo seduziu-me a ponto de deixar-me sem palavras.

O rapaz, acreditando no improviso de Maycon, deu uma alta gargalhada e gritou:

- Vejam só! Arrumei companhia para minhas amigas e, chamando dois homossexuais que brigavam por causa de uma unha postiça, apresentou-as a Maycon. Elas ou eles, como queira, estupefatas gritaram juntas:

- Mas que bofe! – E puxaram-no para o meio de uma roda onde alguns deles ou delas, sei lá, faziam o trenzinho das monas.

Todas as pessoas presentes àquele episódio que conheciam Maycon não podiam acreditar no que viam e pensavam sem dizer: “nunca se satisfez com o que buscou, será que esta é a saída?”.

A ditos ocos, ouvidos moucos

História de pescador, quem acredita? De peixes tão grandes a ocupar diversas fotos. Tubarões tão traiçoeiros que pulam no barco, comem os tripulantes e voltam para a água. Sereias tão sedutoras que atraem os marinheiros que chegam a flutuar por instantes em meio às ondas. Monstros marinhos, de sete cabeças ou mais, mortos pela bravura dos pescadores.

Zaqueu pescador de fama, até então, nunca inventara uma história sequer. Seu sucesso era enorme, não na mistificação que todos davam àquela profissão tão pouco valorizada, mas na realidade do sucesso de grandes pescarias mesmo no meio de enormes tempestades. Sabia onde lançar as redes e sabia o momento propício de puxá-las.

Numa noite de dezembro, um forte temporal repentino ameaçou afundar seu barco. Naquele dia não pescara nada e sua tripulação estava reduzida. Aquela borrasca arrastou seu barco a quilômetros de distância a

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leste da cidade onde morava. Tomado de pavor amarrava todos os objetos ao barco e gritava para os companheiros que fizessem o mesmo. Nunca haviam visto tamanha reação de seu comandante diante de qualquer tempestade. Admirados demonstravam uma feição de inquietação e curiosidade. Este, percebendo a reação dos companheiros, ao término daquele aguaceiro, sentou-se e disse sem que ninguém o perguntasse:

- Já faz trinta anos que luto contra as ondas mais perigosas do mar e contra toda sorte de adversidades que interrompam o meu trabalho. Mas querem saber o motivo de minha coragem destemida e meu sucesso nas pescarias?

Todos já haviam se sentado. Evidentemente a curiosidade instigava-os a permanecer assim durante todo o tempo daquele monólogo.

- Nasci na Inglaterra. Em 1944, final da segunda guerra mundial, fui chamado para fazer parte de uma Organização chamada COSO (em português: Organização Clandestina de Operação Submarina). Nessa época conheci os recônditos de mares bravios. Percebi que, quanto mais violentas eram as ondas do mar, mais tranqüilo era a vida em seu interior na mesma região: os poucos animais existentes, demonstravam a harmonia ausente na superfície. Dessa forma passei a conhecer as pessoas e percebi que todas elas são como o mar: nem sempre são o que aparentam ser. Nossa expedição foi até a costa brasileira a fim de descansarmos em terra firme antes de atacar Cuba aliada à URSS. Na Bahia encontrei o paraíso: sereias em plena praia, comida de sabor suculento a superar os manjares dos reis da Inglaterra e

várias outras coisas que me fizeram sentir no paraíso perdido. Meus companheiros seguiram sem mim. Afastei-me da Organização com o risco de perder a vida, mas, por pouco tempo que fosse desejava aproveitá-la neste lugar. Conhecendo o candomblé, fui me inserindo aos poucos em suas crenças e, em pouco tempo, mesmo não sendo negro e nem descendente de nenhum dos integrantes, tornei-me Pai de Santo. Os Orixás me atendiam de todas as formas a ponto de salvar minha vida. Temia que voltassem para buscar-me e condenar-me à morte os líderes da Organização da qual fazia parte, mas, mais tarde soube que a tentativa de torpedeamento dos navios cubanos acabou destruindo vários navios ianques, e meus companheiros foram condenados à morte por traição...

Zaqueu contou toda aquela história com veemência nas palavras de temor pela vida, encontro do paraíso e ajuda dos orixás. Todos os companheiros de Zaqueu eram pescadores com pouco mais de vinte anos de idade e em nada poderiam refutar o que dizia. Mas um deles, achando aquela história uma “conversa para boi dormir”, questionou:

- Mas em que isso explica o apavoramento do senhor há algumas horas atrás?

- Está bem, vou me corrigir. Na verdade, não nasci na Inglaterra, nasci aqui na Bahia. E não fiz parte daquela organização que relatei, fui espião alemão...- Zaqueu reiniciou a história que culminou no serviço à marinha brasileira e no ataque de monstros marinhos na costa da Argentina. Os companheiros de Zaqueu, apesar de não serem bois, já haviam adormecido. Ao acordarem, ninguém desejava questionar o que Zaqueu dizia, pois

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sabiam: “quem conta um conto, sempre aumenta um ponto” e não desejavam escutar nova versão de toda aquela história de pescador.

A esperança é a ultima que morre

Eram três irmãs: Fé, Esperança e Caridade. Barnabé, homem simples do interior da Bahia, ao ouvir um sermão do padre de sua paróquia sobre as três virtudes teologais, decidiu colocar nas filhas que tivesse os nomes das três virtudes. Quarenta anos depois, Dona Esperança contemplava as fotos das irmãs. Quanta saudade! Acabara de voltar do velório de uma delas. Dona Fé, apesar do jeito alegre e extrovertido, não contou com a longevidade de sua irmã Esperança e morreu por um enfarte. Dona Esperança chorava ao lembrar-se de Caridade, sua irmã mais nova, que nem ao menos ultrapassou a adolescência devido a uma tuberculose. Como explicar a solidão que sentia? Mesmo, após os pais terem ido para um bom lugar (apesar da alma não ocupar espaço), viviam as três em contínua harmonia. Esperança, a mais velha, nunca se colocou como autoritária, juntava-se às outras em tudo, até mesmo nas quadrilhas e quermesses. E foi assim que, na solidão de sua casa, abandonada, até mesmo, pelos animais de estimação já mortos de velhice, Dona Esperança resolveu não mais viver. Mas a salvação parecia bater-lhe à porta. Rodolfo, um senhor, já dono de uma prole de sete filhos, viúvo

havia cinco anos, resolveu declarar-se, estava apaixonado por ela; e lhe disse palavras tão doces ao ouvido que ela não hesitou em dispensar a solidão como companheira tomando-o em seu lugar. Como não poderia deixar de acontecer, casaram-se, mas não tiveram nenhum filho, seis anos depois, resolveram fazer um passeio em família. Todos gostavam de Dona Esperança, simples e humilde, tinha somente uma preocupação, não ofender e não ser enfado aos outros. Na estrada, o filho mais velho de Rodolfo, tomava todas as precauções necessárias para uma boa viagem. Numa curva, repentinamente foram cortados por um caminhão em alta velocidade. Uma roldana férrea, que não estava bem presa ao caminhão que a carregava, soltou-se e atingiu o carro. Todos, com exceção de Esperança, morreram. Esperança, depois de dois meses de cuidados intensivos, teve alta hospitalar. Chegando em casa, contemplava a foto do marido. Quanta saudade! E, diante de várias alternativas para extinguir a solidão, Dona Esperança morreu só. E, nenhum parente veio em seu enterro, Dona Esperança não os tinha mais, todos morreram antes dela. Esperança morreu de solidão.

Água mole em pedra dura tanto bate até que acaba a água

Todos os dias, uma figura misteriosa andava pela cidade a gritar em alta voz palavras incompreensíveis. O sotaque alemão impunha respeito e impedia mesmo aos mais corajosos a revolta do despertar do sono no meio da noite. Talvez aquele homem estaria com sede, já que, das palavras desconexas a única a ser compreendida era

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“água”. Naquele bairro de classe média, ninguém ousava levantar-se e pedir àquele homem que se calasse. Meses se passaram e as autoridades foram informadas. Viaturas percorriam o local atrás do criminoso a desacatar a ordem pública. Nunca o apanharam, sempre que estavam em um bairro, ele estava em outro a gritar. Novos telefonemas eram dados e, com a chegada dos policiais, aquele homem desaparecia sem deixar rastros (talvez andasse somente no asfalto) nem pistas. Empresários, cansados pela noite mal dormida, projetavam em seus funcionários a frustração de seus desejos; mulheres, fuxicando a vida alheia, tentavam descobrir quem era o misterioso homem a gritar pela água; policiais, diante dos depoimentos das testemunhas, concluíram que o insano homem deveria estar repetindo um vocábulo alemão que, mau compreendido, assemelharia à palavra água no português.

Mais outros meses se passaram, e o homem, louco para alguns e excêntrico para outros, desapareceu. Faltava um minuto para a chegada do ano de 2010 e todos, com seus apetrechos supersticiosos, se posicionavam diante do relógio e do champanhe para a contagem regressiva. Iniciou a contagem regressiva: “dez” e um pensava na família distante sofrendo com a seca do nordeste, “nove, oito, sete” e outro pensava nas crianças mortas pela fome e pela guerra; “seis, cinco, quatro” e outro, com seu egocentrismo exacerbado só pensava na carreira que seguiria após ter conseguido se livrar de um concorrente a um emprego”; “três, dois”; Maria tinha ido à cozinha para lavar os copos e não voltara até então; “um” ...e, em todas as casas do mundo, naquele mesmo instante, ouviu-se a triste exclamação: “não há mais água”.

Anda com os bons e serás um deles, anda com os maus e serás pior que eles

Sempre lhe avisei com quem andava. Sempre lhe dizia: “diga-me com quem andas que eu lhe direi quem tu és”. Nunca me considerei eximido da responsabilidade do seu fim. Passávamos muitas horas juntos, éramos amigos inseparáveis, mas ele insistiu, queria percorrer o mundo, conhecer novos valores, mesmo que fosse preciso sofrer, preferia sofrer a continuar naquela vida pacata. Ali está o local onde jazem seus ossos, cercado de lembranças, comportando todo o peso do mundo. Eu tentei impedi-lo, mas ele insistiu. Buscou numa rotina desencontrada aquilo que nunca perdeu: o meu carinho e afeição. Mas ele mudou de comportamento. Vez por outra, desaparecia por dias chegando todo molhado e sujo e eu, com presteza, fazia de tudo para fazê-lo sentir-se bem, já que estava de volta. E, sem tom de moralismo, docilmente lhe dizia: “quem com os porcos se mistura, farelos come” e dizia isso, acariciando gentilmente sua cabeça. Todavia, o problema não estava em mim, estava nele. Não poderia cercear sua busca de liberdade; no máximo, instigava-o a permanecer ao meu lado através de agrados que nunca

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surtiram o efeito equivalente à confiança que neles depositei. Mas ele se tornou pior que seus companheiros, pois alternava os comportamentos, demonstrando incoerência, enquanto, aqueles eram sempre os vagabundos de rua a mexer nas latas atrás de algo que restasse das ceias das famílias. É natal, época em que muitos contemplam a vida e, eu reflito sobre a sua efemeridade. Aquele amigo mostrou-me isso: de nada nos vale uma vida abundante em anos, sem abundância de emoções. Contudo, não seguirei seus exemplos. Minha liberdade topa com o muro das convenções. O que devo ao mundo? Até mesmo minha noção de liberdade. “Não me julgues, meu amigo. Não mexa seus ossos onde jaz. Tu foste livre, mas, como tu, nunca poderei ser. Um grande muro separa nossas espécies; afinal de contas, quem no mundo se preocuparia com a mudança de comportamento de um Felis catus?”.

Diário de um dia que esqueci

Prezado diário, escrevo em ti aquilo que no futuro poder-me-á a ajudar a compreender as loucuras e arrependimentos que marcaram minhas experiências passadas. O dia de hoje foi como o de ontem, e o de ontem como todos os demais de minha existência. Não é a memória enfraquecida que me faz desdenhar o que foi vivido, é a própria insignificância de minha vida. Acordei... Quisera eu permanecer sonhando, sonhava com

um mundo diferente deste no qual vivo. Ainda bem que não me interrompes enquanto escrevo, pois, do contrário, perderia a coragem de escrever em ti aquilo que ninguém nunca saberá. Como dizia, acordei... Mas meu sonho era tão real! Quem poderá fazer com que eu compreenda que era apenas um sonho? A realidade é tão dura, às vezes insana. Voltando a relatar o meu dia, acordei...Será que acordei para a realidade? Ou a realidade é o que vivi no meu sonho? Tudo perfeito. A ausência do egoísmo dava a todos a plena alegria igualmente repartida. Mas, como já disse antes, acordei... Não era preciso dizer nada, um gesto ou um olhar eram o suficiente para que as pessoas compreendessem a sinceridade de minhas atitudes. Não vivia no ócio, mas trabalhava na alegria da reciprocidade de meu trabalho. Todavia, a partir do momento no qual acordei... O sonho se parecia com a utopia dos esperançosos e a banalidade dos pessimistas... Sabe de uma coisa, vou dormir, relatar as inúmeras coisas que fiz durante este dia deixou-me profundamente cansado.

Cristiano de Paiva Barroso