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Vergílio Ferreira Aparição 1

Vergilio Ferreira - Aparição

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Vergilio Ferreira - Aparição: obra completa

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  • Verglio Ferreira

    Apario

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  • Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Vero entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indcio de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memria de origens. No cho da velha casa a gua da lua fascina-me. Tento, h quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hbitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face ltima das coisas e ler a a minha verdade perfeita.

    Mas tudo esquece to cedo, tudo to cedo inacessvel. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial. Venho varanda e debruo-me para a noite. Uma aragem quente banha-me a face, os ces ladram ao longe desde o escuro das quintas, fremem no ar os insectos nocturnos. Ah, o sol ilude e reconforta. Esta cadeira e que me sento, a mesa, o cinzeiro de vidro, eram objectos inertes, dominados, todos revelados s minhas mos.

    Eis que os trespassa agora este fluido inicial e uma presena estremece na sua face de espectros... Mas dizer isto to absurdo! Sinto, sinto nas vsceras a apario fantstica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais h na vida do que o sentir original, a onde mal se instalam as palavras, como cintures de ferro, aonde no chega o comrcio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras. Eu te odeio, meu irmo das palavras que j sabes um vocbulo para este alarme de vsceras e dormes depois tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo j vinha escrito... E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque novo e fugaz e inveno de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue nossa face.

    A mancha da lua fosforesce como o vapor de uma lenda. Um bafo quente sobe dessa gua, sagra-me de silncio como um dedo na fronte. E outra vez agora me deslumbra, em alarme, a presena iluminada de mim a mim prprio, o eco

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  • longnquo das vozes que me trespassam. Como difcil, miraculoso, pens-lo.Quanta coisa aprendi e sei e est a minha disposio quando dela preciso.

    Mas esta simples verdade de que estou vivo, me habito em evidncia, me sinto como um absoluto divino, esta certeza fulgurante de que ilumino o mundo, de que h um fora que me vem de dentro, me implanta na vida necessariamente, esta totalizao de mim a mim prprio que me no deixa ver os meus olhos, pensar o meu pensamento, porque ela esses meus olhos e esse meu pensamento, esta verdade que me queima quando vejo o absurdo da morte, se pretendo segur-la em minhas mos, rev-la nas horas do esquecimento, foge-me como fumo, deixa-me embrutecido, raivoso de surpresa e de ridculo... E, todavia, sei-o hoje, s h um problema para a vida, que o de saber, saber a minha condio, e de restaurar a partir da a plenitude e a autenticidade de tudo - da alegria, do herosmo, da amargura, de cada gesto. Ah, ter a evidncia cida do milagre que sou, de como infinitamente necessrio que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que tenho de morrer. A minha presena de mim a mim prprio e a tudo o que me cerca de dentro de mim que a sei - no do olhar dos outros. Os astros, a Terra, esta sala, so uma realidade, existem, mas atravs de mim que se instalam em vida: a minha morte o nada de tudo. Como possvel. Conheo-me o deus que recriou o mundo, o transformou, mora-me a infinidade de quantos sonhos, ideias, memrias, realizei em mim um prodgio de invenes, descobertas, que s eu sei, recriei minha imagem tanta coisa bela e inverosmil. E este mundo completo, amealhado com suor, com o sangue que me aquece, um dia, um dia, - eu o sei at vertigem - ser o nada absoluto, dos astros mortos, do silncio. Mas tudo isto quase falso, quase estpido s de estar a pens-lo, a diz-lo, porque a sua evidncia um milagre instantneo.

    A lua subiu ao cu quente, a sua gua escorre-me agora pelo corpo. Lavo nela as minhas mos e como se me purificasse num tempo anterior vida, num luminoso halo de coisas por nascerem. Sbito, neste silncio mineral, a porta da

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  • sala range e o vulto de minha mulher, o seu corpo franzino, esfuma-se na sombra. Senta-se ao meu lado, estende os ps ao luar sem dizer nada: ao fim de muitos anos aprendemos a verdade, na apario da graa, num limiar de presena, antes que sobre a Terra fosse pronunciada a primeira palavra. Tomo as suas mos nas minhas e no deslumbramento da noite abre se, angustiada, a flor da comunho...

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  • IPelas nove da manh desse dia de Setembro cheguei enfim estao de vora. Nos membros espessos, no crnio embrutecido, trago ainda o peso de uma noite de viagem. Um moo de fretes abeira-se de mim, ergue a pala do bon:

    - preciso alguma coisa, senhor engenheiro? Dou-lhe as malas, digo-lhe que h ainda um caixote de livros a desembarcar. - Ento dar-me a senhazinha, senhor engenheiro. - Mas no me trate por engenheiro. Sou professor do Liceu. Com passinhos curtos, anda dobrado como se tivesse dores de bexiga. A cara

    e os olhos so vermelhos, ensopados de sangue. Carrega tudo aos ombros com uma complicao de cordis, promete-me uma penso muito boa, mesmo na Praa, que j ali, e convida-me a segui-lo com os seus olhos lastimosos de aguardente.

    Est uma manh bonita, com um sol ntimo dourando o ar, um vento leve da plancie, fresco de orvalhos. minha frente, o moo de fretes, agachado sobre si, vai danando um estranho ritmo de arame com os seus passos saltitados. Mal o olho.

    Trago em mim um pesadelo de ideias, um cansao profundo que me alaga, me submerge. A Praa ainda longe e no j ali, como me garantira o moo. Mas a angstia que me habita, a violenta redescoberta da morte, que eu acabo de fazer, tornam-me estranha esta cidade branca, separam-ma dos meus olhos vazios. Venho de luto, o meu pai morreu. Que tm que fazer, em face da minha dor, da minha alucinao, estas rvores matinais da avenida que percorro, a branca apario desta cidade-ermida?

    - Estamos quase, senhor engenheiro.Pelo empedrado das ruas, carroas estremecem com um estrpito de

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  • ferragens, cruzam-se diante de mim as fachadas dos prdios numa alucinao de luz, uma vaga de aridez abre-me imensido da plancie.

    Sobre o casario branco vou descobrindo aqui e alm manchas negras de velhos templos, e ao alto, disparadas ao cu, as torres da S. Subitamente, recordo-me do doutor Moura. Fora condiscpulo de meu pai, passara mesmo, h algum tempo, pela nossa casa da Beira, meu pai escrevera-lhe dias antes de morrer. Eu tinha de visit-lo, mas no antes de descansar, de me refazer, de achar dentro de mim a pessoa conveniente para visitas. Com os seus passinhos travados, o moo de fretes anda mais depressa do que eu. Pra agora, carregado de bagagem, olha para trs para que eu no o esquea. Mas a cidade fcil nesta rua principal: o que se perde nela no so os passos mas apenas, quando muito, o olhar. Com efeito, nas sbitas arcadas que levam Praa, abre-se-me um obscuro labirinto onde julgo repercurtirem-se, como ecos de uma gruta, os ecos do tempo e da morte.

    - C estamos, senhor engenheiro.Sobe-se por uma escada ngreme e estreita, selada de frios muros como os de

    uma priso. No primeiro andar h uma tabuleta de um mdico dentista. No segundo andar, um velho abre uma porta com o cabaz das compras. A penso no terceiro. Quando cheguei ao alto, j o moo tocava a campainha. Um homem abriu enfim, um homem alto , corpulento, com uns culos sujos enterrados no nariz.

    - Senhor Machado - disse o moo -, aqui o senhor engenheiro professor do Liceu. Trouxe-o para aqui.

    O Sr. Machado olhou-me, cumprimentou-me e por fim concentrou-se. Toda a sua massa varonil teve um toque de retraimento, como um arrepio de vergonha. Dava as mos frente do peito, com timidez , cerrava os olhos castos com uma compuno beata:

    - Eu, senhor doutor, para lhe ser franco, aceitar professores do Liceu, hoje

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  • tenho muitas dvidas...Falava devagar, centrado de virtude.- Muito bem - disse eu. - Procuro outra penso.O Sr. Machado, porm, ergueu logo a mo alarmado, de cotovelo colado ao

    tronco, abanou a cabea de olhos cansados: No, no.- O senhor doutor no me entendeu. O que eu queria dizer era que em minha

    casa exijo respeito. A minha casa uma casa muito sria. Ora aqui h tempos tive a um professor... senhor doutor... Viriha a uma senhora...

    Voltou-se para o moo:- De que ests espera, Manuel?Paguei ao moo, o moo ergueu a pala do bon:- Quando precisar, senhor engenheiro. s perguntar pelo Manuel Pateta.- ... Pois, senhor doutor - continuou Machado -, at... at... Meu Deus! Uma

    vez ia eu no corredor...Aplaquei o homem uma vez mais; eu estava to cansado, queria enfim

    estirar-me, dormir talvez um pouco. O quarto, largo e branco, dava para o terrao, onde fios de roupa brilhavam ao sol; e um gralhar de galinhas que se ergueu no sei donde lembrou-me subitamente os grandes silncios da aldeia. Cerrei as portas da janela e estendi-me sobre a cama procura do sono. Mas os olhos ardiam-me com uma espertina viva e s pude recordar.

    Eis que se me levanta de novo a imagem de meu pai, cado de bruos sobre a mesa, ao jantar, dias antes de eu partir. Todos os anos, pela vindima, meus pais queriam ali os trs filhos como pelo Natal. O Toms vivia perto, tinha a sua lavoura, mas no deixava nunca de comparecer ao jantar. Mas o Evaristo vivia na Covilh. E agora, que escrevo esta histria distncia de alguns anos, exactamente neste mesmo casaro em que tudo se passou, relembro vivamente o estrpito da sua chegada nessa manh de Setembro.

    Ouo de novo no meu quarto a buzina metlica do seu carro, berrando para

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  • todo o ptio com espalhafato.Um ar de arraial invade toda a casa. H portas e janelas que se abrem

    bruscamente e enfim a voz de Evaristo e de Jlia sacodem tudo com a sua alegria mecnica, automtica, como um bater de mbolos e bielas: Eh, pessoal! Depois, num alarme de berros j na sala de entrada:

    - O monge? Onde que est o monge?Monge sou eu. Vou ao encontro de todo aquele estardalhao e apanho uma

    pancadaria de abraos do meu irmo e da minha cunhada. Julgam do seu dever serem alegres e so-no com alarido, para a famlia, para os criados. Jlia empurra-me o filho, que tem o meu nome e uma criana triste e amarelenta. Depois pem-se a contar toda a viagem:

    - samos cedo, no, temos de passar o dia todo com os pais.- tu no querias, tu s querias vir depois do almoo.- cala-te para a, no digas asneiras, eu sempre disse: vamos cedo. - eram nove horas j estvamos na Guarda, este emplastro (o filho), para o

    tirar da cama... - e ento por c?- ento, monge, conta-nos coisas -, falavam atropelados, acotovelavam-se,

    queriam saber que tal a colheita desse ano. Jlia era gorda, tendendo para a elefantase, e em breve se estafou de falatar, suada e vermelha. Mas o Evaristo, magro e alto, articulado como um boneco de lata, parecia danar um infindvel charleston. Fumava cigarros miudinhos, cantarolava, irrequieto, dizia a meu pai (que era mdico e viera do consultrio):

    - Ento, velhote...Meu pai sorria, minha me sorria contagiada. Desde pequeno que Evaristo

    tinha aquele modo fcil de estar bem-disposto e essa era decerto mais uma razo, para a minha me o preferir. Porque havia outra, talvez mais forte, que era a de meu irmo ser o filho mais novo e lhe recordar por isso melhor a maternidade.

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  • Alis, Evaristo nem sempre era alegre.Parecia habit-lo uma pessoa no nica ou coordenada, mas feita das

    sucessivas aparncias de cada circunstncia. Ria ou chorava com uma facilidade incrvel, era cruel ou amvel, egosta ou generoso.

    Mas esta mesma volubilidade impunha-o estima de muitos que conviviam com ele, por ser imediata, impudica e portanto corajosa, com a seduo de todo o acto de coragem, para o bem ou para o mal. Tambm este modo repentista de ser indicava aos outros, por vezes, o que deviam sentir. E eles ficavam gratos por isso. J o sogro (que era dono de uma fbrica na Covilh) no lhe apreciava o feitio, pouco grave para a seriedade dos negcios.

    Toms veio pela tarde. Veio s, a cavalo, para estar um pouco connosco, regressaria logo depois: Isaura no poderia abandonar ou trazer a crianada.

    Minha me protestou:- Olha! Dormeis c todos. Fazia-lhes c as caminhas.- uma trabalheira - protestou meu irmo.- Traz, traz a ranchada - clamavam Jlia e Evaristo.E assim se fez. Toms voltou aldeia (que ficava a uns dez quilmetros da

    nossa) e algum tempo depois aparecia com uma extraordinria carrada de gente.Estava uma tarde calma. Toda a massa da montanha, erguida em frente da

    nossa casa, se dourava ao sol do Outono. Do ptio subia o aroma quente dos tonis lavados, do mosto que uma dorna trazia do lagar. Meu pai visivelmente preferia o Toms , talvez por ser o mais velho e o mais sensato. Toms amava o campo, a lida agrcola, e a imagem-sntese que dele tenho desde sempre a de um lavrador , cheirando terra, ajudando manobra da descarga do milho para a tulha, assistindo lavagem dos tonis, pesagem dos carros de lenha, tira das batatas nas tardes quentes de Agosto, fabricao do azeite pelas noites frias de Dezembro.

    Relembro. Uma grande mesa oval resplandecente de brancura, cristais,

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  • reflexos de louas, dois grandes candeeiros de globos plidos, e fora, pelos espaos da noite nua, uma memria grande de paz. Um longo abrao, quente de ternura, sufoca-nos a todos na procura de um refgio, de uma alegria perdida quando? onde? o sonho no de nunca. O que vivo, o que real aquela ceia vulgar, com uma sopa, vrios pratos, doces e uma necessidade de preencher os espaos de silncio com o que h de nico na hora e no sabemos e nos foge. Sobre esse vazio enorme, para a comoo e o alarme, o meu irmo Evaristo fala dos seus negcios, 200 contos, 500 contos, a casa Varela, em Lisboa, 400 contos de encomendas, a de Crispim & C., do Porto, a guerra acabara, agora era quanto pudessem produzir. Evaristo trouxera um livro de facturas, queria mostrar, Jlia falatava, gorda e vermelha, contava anedotas com pimenta, e a paz?, e a alegria do nosso encontro com a memria? Depois falou o Toms. Mas o que ele contava tinha agora mais verdade - era a terra e o vinho desse ano, as sementeiras e as prximas manhs de geada e de sol e a paz solene da fecundao. As suas mos grossas e escuras como fragas, quase no faziam gestos, os seus olhos desciam sobre si, sobre Isaura e os filhos, como se receasse perder-se de uma comunidade de razes, dessa plenitude frtil onde tudo estava certo: a harmonia da vida e da morte. Por fim, Evaristo e Jlia interrogaram-me sobre o meu futuro no liceu. Lembravam episdios do seu tempo de estudantes com o prazer pstumo de poderem agora confraternizar com um professor, de poderem como que vingar-se dos seus terrores de outrora. Meu pai mal falava. Mas ouvia-nos atento, com a tolerncia de sempre. E era como se desejasse que a vida se revelasse espontnea atravs de ns, dos nossos sonhos, das nossas virtudes e misrias. A certa altura, porm, ergueu a cabea branca, inclinou-a um pouco para trs e para o lado, para lhe quebrar a altivez - mas no a deciso - e disse:

    - Bem. Estamos aqui todos reunidos uma vez mais. Ests tu e o Toms e o Evaristo. E ns e a Jlia e a Isaura. E esto os pequenos. Para o Natal queremo-los c outra vez. bom estarmos aqui todos. A casa grande de mais

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  • para ns...Voltou-se para minha me:- No verdade, Suse?- No me chames Suse.- No verdade, Susana?No sei que pacto se estabelece entre a pessoa que somos e o nome que nos

    deram: o nome, como o corpo, ns tambm. No imagino com outro nome nem o Toms, nem o Evaristo, nem o lvaro, nem o Alberto. O lvaro o meu pai e o Alberto sou eu. No sei se era por isso que minha me no gostou nunca de que meu pai a chamasse Suse. Mas o meu pai teimava sempre, talvez por isso tambm: para criar para si isso que era ela, para a moldar nisso ao seu poder - no nome.

    Depois de um silncio, meu pai perguntou:- Est a correr mal o discurso, no est?Minha me no respondeu, fitando-o apenas com esse seu olhar extraordinrio

    de mansido e amargura. E foi Evaristo quem falou:- No senhor. Vais muito bem. Estamos todos encantados de te ouvir. Diz l o

    resto.E ele disse:- Bom. Agora, que vocs vieram, j mais fcil recomear. A vossa me

    ainda no se resignou com o terdes crescido. Quanto a mim, penso que...Mas subitamente meu pai teve um arranco, esboou o gesto de apertar o

    corao e caiu a todo o peso sobre a mesa. Um prato saltou, estilha-ando-se no cho, um copo tombou, derramando o vinho na toalha.

    Fulminados, no nos movemos. At que, aturdidos de pnico, nos levantmos todos em tropel, correndo para meu pai. Erguemos-lhe o busto, a cabea branca tombava-lhe para o peito, os braos pendiam-lhe inertes.

    - Est morto!

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  • Quem foi que gritou? Est morto, est morto! Jlia dava gritos espavoridos, as crianas choravam com alarido, minha me abraava-se a meu pai, tacteando-lhe a face, as mos, o peito, intimando-o a viver, ordenando-me, iluminada, que fosse chamar o mdico. Fui vila com o Toms, o mdico veio, meu pai dormia sereno sobre a cama, onde os criados o tinham j estendido. Quando enfim foi possvel acomodar cada um na sua dor, depois de Evaristo, que desmaiara, esgotar os seus berros, entrei sozinho no meu quarto, abri uma janela para a noite. Uma grande lua solene, suspensa sobre a aldeia, banhava toda a massa da montanha.

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  • II

    Quero tentar dormir. Toco a campainha reclamando pelo Sr. Machado e um banho que me serene. O Sr. Machado consente, mas com uma pequena restrio:

    - senhor doutor. Eu quero prevenir j o senhor doutor de que em minha casa um banho um banho, quero dizer, para uma pessoa se lavar. Porque eu tive c um hspede, senhor doutor, aquilo eram umas cantorias, toda a manh a cantar e a encher tudo de gua.

    Cansado, prometi ao homem um banho rpido. Sim, sem msica.- Que as coisas querem-se claras logo no princpio.- Decerto, decerto.- Tive uma vez a outro hspede...- Onde a casa de banho, senhor Machado?- ali, senhor doutor. ali. Mas h-de sempre fazer-me o favor de esperar

    um quarto de hora para encher a banheira.Lavei-me enfim, mudei de roupa, sa para o Liceu, com uma tranquilidade

    nova. A cidade resplandecia a um sol familiar, branca, enredada de ruas como de velhas ciladas, semeada de runas, de arcos partidos, nichos de santos das oraes de outras eras , janelas gticas, como olhares embiocados.

    vora morturia, encruzilhada de raas, ossurio dos sculos e dos sonhos dos homens, como te lembro, como me dis! Escrevo luz mortal deste silncio lunar, batido pelas vozes do vento, num casaro vazio. Habita-me o espao e a desolao. E como se aqui ouvisse ainda a tragdia da plancie nos teus corais de camponeses. Subo a rua que leva S, viro ao largo do Templo de Diana. E nas colunas solitrias ouo como o murmrio antigo de uma floresta imvel. O zimbrio da S brilha, dourado ao sol matinal. Fico a olh-lo longo tempo, parado sob um arco que se lana sobre a rua, suspenso de silncio e de memria.

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  • Depois as ruas descem apressadas, oblquas a velhos medos, at outras ruas obscuras, onde me perco. E finalmente descubro o edifcio do Liceu.

    Conto tudo, como disse, distncia de alguns anos. Neste vasto casaro, to vivo um dia e agora deserto, o outrora tem uma presena alarmante e tudo quanto aconteceu emerge dessa vaga das eras com uma estranha face intocvel e solitria. Mas os elos de ligao entre os factos que narro como se se dilussem num fumo de neblina e ficassem s audveis, como gritos, que todavia se respondem na unidade do que sou, os ecos angustiantes desses factos em si - padres de uma viagem que j mal sei.

    Eis-me , pois, em face do Liceu e da minha estrada final. No escolhi a profisso: de algum modo sara-me. Nesta sala em que escrevo, meu pai levanta-se de outrora , faz-me sentar aqui, a esta mesa, passeia em diagonal. Pra enfim na minha frente, pergunta-me, fitando-me:

    - Que curso queres seguir?Tinha de optar j, no sexto ano do liceu, pelo de Letras ou de Cincias. Mas o

    interesse profundo de um e de outro como podia eu sab-lo? A verdade de um curso no est no que a se aprende mas no que disso sobeja: o halo que isso transcende e onde podemos achar-nos homens. Assim meu pai, que era mdico, estava certo com a sua profisso, como o meu irmo Toms estaria com o seu curso de Agronomia, como o meu irmo Evaristo com as suas sucessivas reprovaes no quinto ano.

    - Penso - disse meu pai - que te dars melhor em Letras.Decerto, decerto: eu nunca tivera sade, a vida de professor era tranquila.

    Porque eu sonhara sempre, talvez por isso, com uma farda militar e uma vida romanesca. Meu pai corrigiu:

    - No s isso. H mais razes.Sim. Havia o meu interesse pelas leituras, a inveno do indizvel e o meu

    verso clandestino que a cantava. Havia a minha dedicao pela velha tia Dulce e

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  • pelo seu velho lbum, de que depois falarei.Havia enfim, desde a infncia, essa velha pergunta sobre a descoberta de ns

    prprios e que eu tambm fizera um dia a meu pai:- Quem sou eu?Era uma tarde de Vero, meu pai lia o jornal ao p do tanque, eu olhava a

    gua, absorto.- Bom - disse meu pai, um pouco perturbado: - tu s meu filho, um homem,

    um ser vivo que pensa, que vive e que h-de morrer como todo o ser vivo.- Mas eu, eu o que que sou?Meu pai optou por contar-me a histria da evoluo da vida. Mas eu, que a

    acredito hoje como exacta, sentia, como sinto, que alguma coisa ficara por explicar e que era eu prprio, essa entidade viva que me habita, essa presena obscura e virulenta que me aparecera, como tambm contarei, quando a vi fitar-me do espelho.

    O Liceu estava deserto, as aulas comeariam da a dias, agora haveria apenas os exames da segunda poca. E jamais eu esqueceria essa apario do Liceu, como a de toda a cidade, to estranha. Templo de Diana. S nessa noite o vi bem, nessa noite de Setembro, lavado de uma grande lua - raios imveis de uma orao mutilada, silenciosa imagem do arrepio dos sculos... Repetia-se no Liceu a Universidade de Coimbra como eu a ia guardando para sempre. Mas era como se o tempo habitasse os claustros de mais longe, talvez pelo silncio dessa manh despovoada, talvez pela imensido da plancie, que lhe dava um ar de runa. Um empregado escuro olhou-me vagarosamente, longo bigode cado, olhos redondos de pasmo como os de um retrato egpcio. Adiantei a minha identidade, o homem atravessou uma sala para me anunciar ao reitor. Mas o reitor no estava: pela porta entreaberta vi apenas um grande co perdigueiro que adormecia o seu tdio sobre uma esteira. A presena do co dava ao empregado a certeza de que o reitor j viera. Apareceria portanto dentro em pouco. E eu sa de novo para o claustro.

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  • Havia no centro um jardim tratado, em cujos canteiros verdes morriam as ltimas rosas de Vero. Sobre um pequeno lago erguia-se uma taa de mrmore onde vinham pombos beber. At que, para o silncio de uma porta entrada, ouvi uma forte descarga de gua e um homem alto apareceu. Segui-o com os olhos, convencido de que era enfim o reitor.

    E, com efeito, o homem alto e vagaroso abriu uma porta secreta e entrou no edifcio. Fui de novo secretaria e o empregado, sem uma palavra, penetrou na reitoria para me anunciar. Mas eu j estava ali porta espera de um aviso.

    - Que faa o favor de entrar - ouvi de dentro.Entrei, cumprimentei, disse o meu nome:- Alberto Soares.- Doutor Alberto Soares. O novo professor do primeiro grupo. Professor

    efectivo. Em que Liceu esteve este ano? Mas sente-se Tem a essa cadeira. Sentei-me. Tinha feito apenas o servio de exames desse ano. Em Coimbra.- portanto o primeiro liceu em que ensino - acrescentei.De que nadas a vida se sustenta! O necessrio, sim, o necessrio que o

    futuro os habite mesmo em iluso. Boa noite, reitor. Falo-te daqui da montanha, ouvindo os cepos a estalar na chamin, ouvindo as vagas do vento. Nada soube de ti, amigo. Nunca. Mas dos teus pecados ou virtudes, o que me relembra agora essa amvel perfeio de uma face cansada de quem esgotou a vida e essa boa tolerncia para quem a estava anunciando. Porque eu tinha projectos to ingnuos. Onde se calara a voz da minha gravidade? Subitamente, com efeito, pus-me a falar de coisas extraordinrias a realizar, excitado no meu entusiasmo de principiante. Exerccios, redaces, tcnicas modernas de pedagogia, leituras de modernos escritores, cultura, cultura. Tambm disse, verdade, como era necessrio aprender a distinguir um fado de uma sinfonia, um Picasso de um calendrio. Bons deuses! E como tudo isso me foi perfeito na manh de sol do jardim, na face grave do homem, cus, na minha profunda solido! O reitor

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  • ouvia-me do lado de l do seu cansao e parecia animar-se um pouco passagem da minha juvenilidade.

    E dizia na sua voz patuda de catarro:- Sim... Sim...Baixava os olhos, batia um lpis na mesa.Depois tocou a campainha e o empregado voltou a aparecer:- Deixe ver o horrio e as cadernetas do senhor doutor Alberto Soares.Dia novo. Belo dia de Outono cheio de memrias de Vero. Tinha o corpo

    sovado de insnia e do comboio, os olhos ardidos de espertina, mas sentia-me bem, j na rua, com os meus papis profissionais na algibeira. Olho a plancie do alto da rampa e sinto-me invadido dessa plenitude de quem olha o mar do alto de uma falsia.

    E dois dias depois comeavam os exames da segunda poca. So meia dzia os alunos que essa manh suam as entranhas. H uma guerra de Tria a decidir a golpes de dicionrio. Eu assisto, ainda comovido.

    Fumo ao longo da sala, abro enfim uma janela para o espao da plancie, crestada, abandonada ao sol.

    Passa ao longe o assobio de um comboio de crianas, um carro desliza pela fita negra de uma estrada. O tempo arrefecera bruscamente. E um sol triste pousa ao de leve nas coisas, um vento inesperado sopra de vez em quando, revolve no cho as folhas secas das rvores. Nos fios elctricos que passam diante das janelas agrupam-se cachos de andorinhas que meditam na sua longa migrao. Estremecem no baloio, aos sopros do vento, de penas eriadas, olhando ao longe com melancolia.

    Subitamente, porm, a porta abriu-se e o vasto reitor entrou. Trazia no seu sorriso belfo e infantil uma pequena notcia para me dar:

    - O doutor Moura telefonou-me a perguntar por si. Quer saber onde que o pode encontrar.

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  • 18

  • III

    Mas no foi fcil encontrarmo-nos. Eu prprio lhe telefonei da a pouco e acabmos por marcar o encontro para o dia seguinte no Arcada, sem que Moura se lembrasse de que era uma tera-feira, ou seja, dia de mercado. Com efeito, ao entrar no caf, aps o almoo, tive a surpresa de ver aquele vasto tnel apinhado de gente. O corredor atravancava-se de negociantes, porque era ali, entre bebidas, que se realizava o mercado da semana. A tera-feira era dia de porcos, como soube mais tarde que lhe chamavam. E, por isso, quando recordo esses dias distantes, a imagem que deles tenho a de um ventre glorioso digerindo poderosamente, preenchendo compactamente todo o espao do caf... Achei a custo um lugar a um canto, esquerda de quem entra e onde viria a instalar-me para sempre. Em mesas postas para o almoo, forasteiros mastigavam; e dir-se-iam eles to naturalmente feitos para isso, que mesmo sem mastigarem me pareciam mastigar; como certos carros aerodinmicos, mesmo parados, parecem largados a grandes velocidades... Por entre a vozearia, a fumarada e o odor a corpos, tento localizar o doutor Moura em quem tenha o olhar inquieto e procure tambm como eu. Canso-me enfim e para ali fico, abandonado a cigarros e a olhos vos.

    Decerto o encontro falhara. Meu pai recomendara-me o Moura como um apoio no deserto. E sei que lhe escrevera. Tinham sido colegas em Coimbra, tinham ambos construdo a um passado, sobretudo atravs de uma discreta bomia - essa que, por ser discreta, pode melhor depois preencher uma memria. Meu pai contara-me que o homem tinha uma bela voz de tenor e coadjuvava os amigos com serenatas nos flirts de ocasio. Bato um novo cigarro, espero ainda. E de sbito vejo vir at perto de mim um sujeito gordo, baixo, ensacado, de olhar inquieto pelas mesas.

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  • Ergo-me, vou at ele. Fitmo-nos ambos um momento at acharmos o nosso trao de unio; e foi ele quem primeiro o descobriu:

    - o doutor Alberto Soares? Ora viva, viva. Ento que tal de viagem? Onde est instalado? Ora vamo-nos sentar um pouco. Isto hoje mau dia, mas nem me lembrei.

    E sentmo-nos. Moura pediu o seu caf e, talvez por reparar no meu fato preto, evocou enfim o meu pai. Contei-lhe o desastre sbito da sua morte (que ele soubera pelos jornais), mas era evidente que Moura se no sentia muito impressionado. Tinha a sua alegria espontnea, firmada no sei em qu como alis nunca soube. Depois falou da minha aldeia, da nossa casa, e ela foi verdade mesmo ali, naquele ar grosso de fumo, de algazarra, de notas de conto esfolhadas pelas mesas de negcio.

    - Passmos l h dois anos. No: h trs.- Eu estava para fora.- Eu sei. O lvaro, o seu pai, disse-me. Mas a casa, a casa. Extraordinria.

    Muito antiga, no ?Velha casa. E eu sendo, aparecendo, criando-me atravs de ti e de mim. Muito

    antiga? Havia uma data que eu descobrira no sobrado: 1761 ou 1767. Algum velho mineiro a trouxera do Brasil. Um vasto jardim em frente, com um grande alpendre ao lado, um pinhal descendo oposto at ribeira, e adiante a montanha.

    - Vai-lhe custar a adaptar-se - disse Moura. - Isto aqui muito diferente. Mas note: tambm tem a sua beleza. Quando eu vim foi o mesmo. Porque eu no sou daqui. Mas casei em vora e por c fiquei. A mim diziam-me: O que custa so os primeiros dez anos.

    - Espero ir para o ano para Lisboa.- Eu sei, quero dizer, calculo. O senhor no um desconhecido. muito

    falado l em casa. A minha Sofia, que tambm faz versos...Sofia. luz do meu Inverno, eis que te lembro no teu corpo esguio, no teu

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  • olhar cido de pecado...Domingos de Primavera pelos campos, noites quentes de Vero no Alto de

    So Bento, a plancie banhada de uma lua enorme. E tu voltada para o cu, cantando, cantando: Ai... Ai, ai, ai, ai Ouo nas vsceras o teu canto ardente, iluminado de loucura. Os cus estremeciam anunciao da tua divindade. Os teus olhos vivos, Sofia, a tua face to jovem tinham o mistrio da vitria e do desastre, da violncia do sangue.

    Canta! Que mais h na tua vida que o teu canto, a angstia do teu grito contra os cus desabitados?...

    - ...Tambm faz versos? - perguntei por fim.- A minha Sofia? Se ela tivesse tanto jeito para o latim como tem para isso...- Latim?- Dois anos reprovada na admisso a Direito, veja o meu amigo. Dois anos. E,

    se calhar, vai-se ao ar tambm o terceiro.Mas um moo de face redonda, um comeo de calvcie, um sorriso cortado

    navalha, de orelha a orelha, aproximou-se de ns, poisou a mo no ombro do Dr. Moura:

    - O Chico est melhor. Passei agora l por casa.- Ah, sim? Bom, ento no preciso de ir l j.- Mas passe por l logo. Ele diz que se sente melhor. E j fala outra vez em

    polticas e em razo e em cultura, eu sei l. Ontem estava macambzio, ar amodorrado.

    - Um novo amigo: doutor...- Alberto Soares.- Alfredo Cerqueira. Como est o senhor doutor?- Meu genro - disse ainda Moura.- Marido de Sofia? - perguntei.- De Ana. Tenho trs filhas - esclareceu Moura, sorridente. - E desculpe... Ora

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  • vamos a ver: sbado. Pode ir jantar connosco?Fui. A casa ficava para as portas de Alconchel. No trio havia um grande pote

    de cobre. Subia-se uma larga escadaria de pedra, bordejada de uma fieira de bilhas de barro que Moura coleccionava. Com grandes arcadas de velho mosteiro, todo esse rs-do-cho se congelava com um frio mineral, uma frescura de catacumbas. E eu o lembro agora, a esse frio, numa sbita imagem de um estranho silncio coalhado em abbadas... A criadita que me atendeu, toda armada de folhos, meteu-me num escritrio, selado de reposteiros. A casa era grande, mal se ouvia um rumor de passos ou de portas. At que o Dr. Moura apareceu, aodado. Estendeu-me os dois braos, conduziu-me atravs de uma baralhada de salas at a uma espcie de marquise, onde me esperavam j com aperitivos. Em frente havia um jardim, cercado de um alto muro, onde a noite comeava a germinar. Duas palmeiras explodiam no cu como granadas. E ao longe, para l do casario, a plancie azulava-se como horizonte marinho. Conheci ento Madame, abundante senhora, loura por antiguidade (devia ter cabelos brancos), ousada e astuciosa por direito de mam. Conheci a mulher do Cerqueira, Ana, Ana. Tinha cabelos longos e lisos, face magra de energia e de nsia, olhar vivo de estoque... O lbio superior abria-se com a irregularidade de um dente. E conheci-te, Cristina. Estavas com os teus sete anos, a tua saia azul de folhos, o teu arzinho de menina grave. Nada dirias por ento - e que tinhas tu a dizer? Falarias dali a pouco, s depois do jantar. E de um modo to extraordinrio, Cristina, que eu te ouo ainda agora como a voz mais perfeita de tudo quanto me aconteceu, esse ano e outro ano, e todos os anos da vida...

    At que, como numa expectativa de teatro, apareceu Sofia. Tinha um vestido branco, colado como borracha, e um corpo intenso e malevel. Uma forte adstringncia apertava-a contra si, endurecia-lhe o boleado das curvas como duas maxilas cerradas.

    A cinta fechada disparava-lhe os seios, uma luz inquieta iluminava-lhe os

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  • olhos. E era assim como se uma descarga da terra a atravessasse toda, a revoluteasse num duro arranque de ira... Apertei-lhe a mo com calor, subitamente infeliz. A noite adormecia sobre a terra, clida, tranquila, como uma nudez saciada. Sofia, Madame Moura e Ana e Alfredo cercaram-me dessas perguntas de nada com que se inicia um convvio. No conhecia o Alentejo? Nunca tinha ido a vora? Ficaria por l? Que ensinava eu?

    No, no fora nunca a vora, no ficaria por l, ensinava portugus e latim...- Latim, latim - exclamou Sofia, imensamente divertida por haver no mundo,

    e ali ao p, quem ensinasse tal coisa.- Gostava de Letras, decidi-me pelo ensino - esclareci. - E como o latim tinha

    futuro e me no dei mal com ele...- Oh!, o latim... - exclamou Sofia ainda.- Descanse que no serei um professor exemplar - prometi eu, imediatamente,

    desculpando-me como de uma degradao. Alis, acrescentei, uma profisso no era para mim um bilhete de identidade. Poderia ficar na aldeia, trabalhando a terra como o meu irmo Toms. Mas havia o vcio do livro, do meu verso clandestino. Cumprido o dever burocrtico, ficar-me-ia tempo para o mais. Sim, sim escrevia o meu verso. Mas a arte no era para mim um mundo da letra impressa, uma estpida inveno de passatempo ou de vaidade: era uma comunho com a evidncia, uma reencarnao na verdade de origens - eu o sabia, eu o saberia sobretudo depois. Ana tinha uma pergunta a fazer. Mas Alfredo interrompeu-a:

    - senhor doutor. O senhor doutor vai ver que o Alentejo... Eu tenho a uma herdade, havemos de l ir. Em a gente aqui estando, digamos, dois anos, dois anos! A gente quer l outra coisa...

    E sorria em volta com o seu sorriso repuxado, deliciosamente ingnuo, quase imbecil. Mas a criadita vermelhusca, toda estalada em folhos brancos, apareceu no terrao, anunciando o jantar.

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  • Ana ficou a meu lado com a sua pergunta de h pouco. Havia nela a violncia de um proslito recente ou em crise. Era em crise, boa Ana, como em breve eu saberia. Sim, Ana. Essa tua inquietao, essa tua fria silogstica, o desejo encarniado de demonstrares, deram-me cedo a certeza de que nada em ti estava seguro.

    - Li dois livros seus - disse-me ela. Publicou mais algum?No, no publicara, disse eu, centrado na ateno de todos.- Que se passou em si do primeiro para o segundo? Dir-se-ia que o seu deus

    ressuscitou tambm no terceiro dia.- No, no, minha filha - interrompeu Moura, pousando precipitadamente o

    talher. - Hoje no me levas discusso. Isto comigo, sabe? - acrescentou para mim.

    - Julguei que fosse comigo.- comigo. Bem: eu sou religioso, acredito em Deus, em Cristo, no Papa, no

    dogma, em tudo o que me ensinaram. Mesmo no tenho tempo para pensar mais no assunto. Tenho um Deus para me tomar conta da vida e da morte. Fico com o tempo livre para tomar eu conta dos doentes.

    Ao meu outro lado estava Sofia. Interpunha breves perguntas, de olhos baixos, erguia-os s vezes subitamente, fitando-me como um tiro. De uma vez olhei Madame. ela envolvia-nos aos dois com malcia e tolerncia. Alfredo, docemente calvo, sorria para tudo, falava de novo das herdades, perguntava-me se eu gostava de fruta, porque queria que eu provasse umas laranjas que l tinha e havia de me enviar penso. Estava eu no Machado? Pois bem: no dia seguinte... no, da a dois dias, havia de me remeter um cabaz de laranjas. Como as preferia eu? Da Baa? Voltava-se para a cunhada.

    - Diz l tu, Sofiazinha querida, que tal as laranjas da Baa.Que gente, que gente, pensava eu. Moura, lanado no jantar, parecia

    distrado no prazer com que comia. Porque a sua boa disposio tinha a slida

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  • base de um estmago cumpridor. Imprevistamente, Ana regressou sua obsesso:

    - H uns versos no seu livro que me intrigam.Dizem assim, mais ou menos:

    Do sangue nascem os deusesque as religies assassinam.Ao sangue os deuses regressame s a so eternos.

    - Ah, no! - clamou Moura, bruscamente acordado na sua sobremesa. - Deixem Deus sossegado e o doutor Soares tambm.

    Mas o jantar acabava e fomos tomar caf para outra sala. Madame teve tempo ainda de me perguntar:

    - Desculpe: mas no ento crente?- Decerto que no, minha senhora.- Ah, estes jovens de hoje, estes terrveis jovens...Inesperadamente, porm, apareceu um tipo baixo, slido, quadrado, de uns

    trinta anos, com um ar dominador de pugilista.E foi em todos uma alegria maravilhada e enternecida:- Chico! J ests bom, Chico? Ento que foi isso?- Perguntai ao vosso pai.E Moura esclareceu, paternal: um pouco de tenso, um pouco de excesso, ele

    sabe, ele sabe; com um bocado de juzo, tudo entra na ordem. Mas tinham-se esquecido de mim e foi Ana quem nos apresentou. Chico (como imediatamente passei tambm a trat-lo) veio sobre mim para me apertar a mo com um saco brusco, como se me reconhecesse nobremente desde uma secular fraternidade. Tal fraternidade, porm, no existia, como logo mo demonstrou. Com efeito,

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  • conhecia tambm os meus versos, tinha de acertar comigo umas ideias:- Temos muito que conversar. H imenso que fazer.- Ouve l, Chico - interveio Alfredo. - Como era aquela frase que tu h dias

    disseste? Anda a gente em cavalarias e mal se descuida est para aqui a pensar na morte. No era bem assim, era uma rica frase. J a quis dizer aqui ao doutor, mas no me lembro.

    - Come. Come e no digas tolices.- L ests tu a querer tramar-me outra vez.E eis que chega a tua hora, Cristina. Terias tu j dito alguma coisa? No me

    lembro. E que dissesses? O que tens a dizer, as palavras no o sabem. Nem o lugar. Nem a hora. Tu no s de parte alguma, de tempo algum, Cristina. Sbita apario, foste surpresa em tudo para todos. Sim, eu sei. J o sabia quando te conheci...

    Cristina viera fora de tempo. Ningum a esperava j. O pai errara as contas da fisiologia, havia a lei moral - e ela nascera. Os amigos de Moura, risonhamente, quando se referiam filha, perguntavam-lhe pela neta... E ele sorria, inocente, porque a verdade da vida era mais forte do que ele, simples instrumento ou espectador...

    - Cristina - disse Moura -, tu agora vais tocar um bocadinho para o senhor doutor.

    A mida fitou-me com os seus olhos azuis, sorriu imperceptivelmente e sentou-se ao piano. Ajeitou a saia roda do banco e, de mos imveis no teclado, apesar do nosso silncio, esperou ainda pela nossa ateno ou pela sua.

    E ento eu vi, eu vi abrir-se nossa frente o dom da revelao. Que eram, pois, todas as nossas conversas, a nossa alegria de taas e cigarros, diante daquela evidncia? Tudo o que era verdadeiro e inextinguvel, tudo quanto se realizava em grandeza e plenitude, tudo quanto era pureza e interrogao, perfeito e sem excesso, comeava e acabava ali, entre as mos indefesas de uma criana. Mas

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  • to forte era o peso disso tudo, to necessrio que nada disso se perdesse, que as mos de Cristina se estorciam na distncia das teclas, as pernas na distncia dos pedais - toda a sua face gentil, at agora impessoal e s de ncia, se gravava de arrepio passagem do mistrio. Toca, Cristina. Eu ouo. Bach, Beethoven, Mozart, Chopin. Estou de lado, ao p de ti, sigo-te no rosto a minha prpria emoo. Apertas ligeiramente a boca, pes uma rugazinha na testa, estremeces brevemente a cabeleira loura com o teu lao vermelho. E de ver assim presente a uma inocncia o mundo do prodgio e da grandeza, de ver que uma criana era bastante para erguer o mundo nas mos e que alguma coisa, no entanto, a transcendia, abusava dela como de uma vtima, angustiava-me quase at s lgrimas. Toca uma vez ainda, Cristina. Agora, s para mim. Eu te escuto, aqui, entre os brados deste vento de Inverno. Chopin, Nocturno nmero 20. Ouo, ouo. As palmeiras balanam no teu jardim, a noite veste-se de estrelas, adormece na plancie. Donde este lamento, esta splica? Amargura de sempre, Cristina, tu sabe-la. Bilies e bilies de homens pelo espao dos milnios e tu s, presente, a memria disso tudo e a diz-la...

    Quando Cristina acabou, todos a quisemos beijar. E ela veio roda, j infantil e desabitada de grandeza, um pouco intrigada de que algo se tivesse passado em si. Ana, estranhamente, acariciou-a de um modo especial, falou-lhe baixo ao ouvido como numa cumplicidade.

    Depois, cantou-se. Com grande surpresa minha, o Dr. Moura, com uma excelente voz de tenor, fez um dueto com Sofia, cantando um trecho j no sei de que pera ou oratria. Soube depois que Moura estudara canto e fazia parte de um coro que se exibia s vezes na S. Sofia tinha uma linda voz de contralto sem trmulos nem petulncia. Porque o canto no era nela seno o anncio de que estava viva, de que estava presente na terra.

    Ergui-me enfim para me despedir. E subitamente, sem que o tivesse pensado, ofereci-me para ensinar a Sofia o seu latim necessrio. Madame Moura aceitou

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  • logo, estalando de prazer:- Que favor, senhor doutor... um milagre. Sofia! Nem agradeces?Ela agradeceu, declarando logo que era uma pssima aluna, que iria

    arrepender-me. Moura confirmou: eu arranjara uma carga de trabalhos. Tinha eu ao menos uma boa palmatria para ajudar?

    Sa enfim para a noite, Chico saiu comigo. E, enquanto subamos a rua, falou-me de si, falou-me de vora. Estava ali h cinco anos, era engenheiro, trabalhava na Direco dos Monumentos. vora era uma cidade absurda, reaccionria, empanturrada de ignorncia e de soberba. Em vora - tinham-lhe dito um dia - no se podia ter mais do que a quarta classe nem menos que 300 porcos.

    - Qualquer iniciativa cultural logo abafada de desprezo e de banha.O peso da Idade Mdia enegrecia ainda as almas, e os mouros tambm. Ter

    meia dzia de amantes era para aqueles sultes um sinal de abundncia. E havia damas que durante anos no saam rua, ou saam apenas pela Semana Santa. Muitas casas tinham jardins. Pois visse eu se os descobria. Cercavam-nos de muros altos como a toda a sua vida. Criar relaes em vora era um milagre. Tudo ali tinha muralhas: a sociabilidade, os jardins e, enfim, a prpria cidade. Mas de vez em quando aquela gente ia a Lisboa. E ento era v-la desabafar: casinos, teatros, ceias. Depois recolhiam ao mosteiro. Havia damas que nunca se viam na rua. Vira-as ele, Chico, fumando e bebendo no Estoril. vora era a Quaresma e Lisboa o Carnaval. Ora bem, ele, Chico, e alguns amigos no desistiam de importunar a embfia gorda daqueles senhores. Falhara em tempos o Crculo de Cultura Musical. Falhara o Cinema Clssico. Mas iam atacar outra vez. Agora, com uma srie de conferncias na Harmonia. Poderia eu colaborar?

    Vaguemos pela cidade morta, de arcadas desertas.Disse enfim ao caloroso homem:- Ignoro tudo de vora. Mas sinto que voc exagera. Por ora sei apenas que

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  • uma cidade fantstica. E quanto s conferncias, decerto estou pronto a colaborar.

    Subi s escuras as escadas da penso, bati quatro vezes porta. Veio enfim abrir-ma o Sr. Machado, de chinelas, um capote sobre uma extraordinria camisa, que lhe chegava s canelas. Naturalmente, arreou-me duro:

    - senhor doutor... Em minha casa uma hora est toda a gente na cama. Quem quiser vir mais tarde faz o favor de pedir a chave.

    - De acordo, senhor Machado, de acordo. No torna a acontecer.Comeava a irritar-me aquele tipo, eu tinha de mudar de penso. Mas, quando

    me deitei e apaguei a luz, o convite de Chico para fazer a conferncia incendiou-me de alvoroo. Tinha ali uma oportunidade de pr ordem no que me excitava . Um dia poderia desenvolver as minhas ideias num estudo mais longo; agora precisava de as fixar nos pontos capitais. E foi isso que desencadeou toda a histria que narro.

    E, todavia, como difcil explicar-me! H no homem o dom preverso da banalizao. Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir em palavras que, se queremos pelo menos que os outros sintam connosco. Mas as palavras so pedras. Toda a manh lutei no apenas com elas para me exprimir, mas ainda comigo mesmo para apanhar a minha evidncia. A luz viva nas frestas da janela, o rumor da casa e da rua, a minha instalao nas coisas imediatas mineralizavam-me, embruteciam-me. Tinha o meu crebro estvel como uma pedra esquadrada, estava esquecido de tudo e no entanto sabia tudo. Para reparar a minha evidncia necessitava de um estado de graa. Como os msticos em certas horas, eu sentia-me em secura. Fechei os olhos raivosamente e quis ver. Regressava aldeia, nessa noite de Setembro, quando meu pai morreu. Se tu viesses, imagem - minha condio... Se apareces, Como me esqueces to cedo, como te sei e te no vejo!

    Voltado para a montanha toda lavada de lua ouo algum abrir-me a porta.

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  • - Temos de ir vestir o nosso pai - disse Toms.Senti um arrepio na ameaa do contacto com uma carne morta. Mas reagi.

    Que mos profanas para te tocarem, meu velho? Que outras mos seno estas na piedade, de um corao despedaado? Sofro. Vou at ao quarto onde meu pai dorme, Veste as calas de saragoa dos trabalhos agrcolas, as botas ferradas que no quis tirar para a festa de famlia. Evaristo recusa-se a colaborar connosco. E, para se justificar, desata aos berros outra vez. Temos de chamar o Antnio. E ele vem, baixo, grosso, a cabea j branca, com uma selva de cabelos no peito descoberto. Entra no quarto, benze-se e atira-se ao trabalho. O mais difcil era descalar as botas. Eu e o Toms seguramos o corpo, ele puxa. No vai. Manda-nos afastar, aproxima-se do ouvido do meu pai e diz-lhe coisas em voz baixa. E depois, sozinho, suavemente, tirou as duas botas.

    - Todos os mortos se fazem rogados - explicou-nos. - Ento a gente pede e eles do um jeito.

    Cus! Onde a minha repugnncia? Tudo me esqueceu. Corpo morto, carne morta. Como as pedras.

    Trabalho com aplicao, quase com gosto. As calas, a camisa, sapatos de verniz - os sapatos o Antnio quem lhos cala. Eis-te pronto, meu velho, para a grande viagem. Ests sereno, a face gravada de doura, de perdo a tudo, vida, morte. E uma comoo humedece-me os olhos. Vou at ao meu quarto, abro as janelas para a noite.

    Ento bruscamente ataca-me todo o corpo, as vsceras, a garganta, o absurdo negro, o absurdo crneo, a estpida inverosimilhana da morte. Como possvel? Onde a realidade profunda da tua pessoa, meu velho? Onde, no os teus olhos, mas o teu olhar? no a tua boca, mas o esprito que a vivia? Onde, no os teus ps ou as tuas mos mas aquilo que eras tu e se exprimia a? Vejo, vejo, cus, eu vejo aquilo que te habitava e eras tu e sei que isso no era nada , que era um puro arranjo de nervos, carne e ossos agora a apodrecerem. Mas o que me estrangula

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  • de pnico, me sufoca de vertigem teres sido vivo, tu estares ainda todo uno para mim, na memria do teu riso, no tom da tua voz, que era lenta, sossegada, nas ideias que punhas a viver entre ns, na realidade fulgurante de seres uma pessoa.

    Recordo-te totalizado, olho-te. Que que te habita, que que est em ti e s tu? No, no a carne, no o corpo: aquilo que l mora, aquilo que ainda dura de ti nestas salas, neste ar, aquilo que eras tu, o teu modo nico de ser, aquilo a que ns falvamos, atravessando a tua parte visvel. E, no entanto, sei, sei que esse tu real que te habitava no era seno a sua morada; como o espao de uma casa, a intimidade do homem, so as paredes que o fazem: derrubada a casa, a intimidade que l havia tambm morre...

    E desde quando o sei, desde quando? A verdade aparece e desaparece. Deus, a imortalidade e uma ideologia poltica e a seduo de uma obra de arte e a seduo de uma mulher - onde comeam?, onde findam? Sou um indizvel equilbrio interior. Vivi, agi, toquei com as mos tanta iluso consistente. Depois a iluso desfez-se. Ficou, porm, o rasto do que toquei, o gesto das minhas mos - essa ltima unio com o que quis, acreditei. Ento eu descobri que as mos estavam impuras. Lavar-me, renascer. Deus est morto porque sim. No foi bem, meu velho, porque me ensinaste a histria da terra e do homem e dos bichos que j no h e de que h seres humanos desde h dois dias, isto , desde h um breve milho de anos, se tanto. No foi por isso, no foi por isso. Foi porque Deus se me gastou. Sei s que no est certo que ele viva. Sei que ele absurdo porque o . Sei que ele est morto, porque no cabe na harmonia do que sou. No cabe. Como no cabe a simpatia das mulheres que aborreci. Como no cabem as anedotas . infncia, que j no tm graa nenhuma. Como no cabe nada do que j no sou eu. No discuto, agora, no discuto! Sei l porque que uma anedota de que ri no tem hoje para mim graa nenhuma! Sei s que a no tem. E, todavia, pesa-me como uma pata de violncia a realidade da pessoa que somos.

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  • H muita coisa a arrumar, a harmonizar, muita coisa ainda a morrer. Mas por enquanto est viva. Por enquanto sinto a evidncia de que sou eu que me habito, de que vivo, de que sou uma entidade, uma presena total, uma necessidade do que existe, porque s h eu a existir, porque eu estou aqui, arre!, estou aqui, EU, este vulco sem comeo nem fim, s actividade, s estar sendo, EU, esta obscura e incandescente e fascinante e terrvel presena que est atrs de tudo o que digo e fao e vejo - e onde se perde e esquece. EU! Ora este eu para morrer. Morre como a intimidade de uma casa derrubada. Sei-o com a certeza do meu equilbrio interior. Mas como possvel? Agora eu sou essa intimidade, agora eu sou o seu esprito, a sua evidncia.

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  • IV

    Porqu, eu tinha um problema: justificar a vida em face da inverosimilhana da morte. E nunca mais at hoje eu soube inventar outro. De que poderia falar na conferncia? Nada mais h na vida do que beber at ao fim o vinho da iluminao e renascer outra vez. Riqueza ou misria, cincia, glria, vexame, e a poltica e at a arte para tantos artistas, conhecimento do homem no corpo e no esprito - quantos modos de esquecer ou de no saber ainda o pequeno problema fundamental. Mas o que extraordinrio e me exaspera que eu prprio tenha precisado de uma vida inteira para o saber. E quantas vezes agora o esqueo? O mais forte em ns esta voz mineral, de fsseis, de pedras, de esquecimento. Ela germina no homem e faz-lhe pedras de tudo. Assim, quando procuro em mim a face original da minha presena no mundo, o que descubro no o alarme da evidncia, o prodgio angustioso da minha condio: o que descubro quase sempre a indiferena bruta de uma coisa entre coisas. Eis-me aqui escrevendo pela noite fora, devastado de Inverno. Eis-me procurando a verdade primitiva de mim, verdade no contaminada ainda da indiferena. Mas onde esse sobressalto de um homem jogado vida no acaso infinitesimal do universo? Se meu pai no tivesse conhecido minha me; se os pais de ambos se no tivessem conhecido; se h cem anos, h mil anos, h milhares e milhares de anos um certo homem no tivesse conhecido certa mulher; se... Nesta cadeia de bilies e bilies de acasos, eis que um homem surge face da Terra, elo perdido entre a infinidade de elos, de encruzilhadas - e esse homem sou eu...

    E todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto, me projecto nesta noite de vento, de estrelas, agora que me sei desde uma distncia infinita, me reconheo no limitado por nada mas presente a mim prprio como se fosse o prprio mundo que sou eu, agora nada entendo da minha contingncia.

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  • Como pensar que eu poderia no existir? Quando digo eu, j estou vivo... Como entender que esta iluminao que sou eu, esta evidncia axiomtica que a minha presena a mim prprio, esta fulgurao sem princpio que eu estar sendo, como entender que pudesse no existir? Como pensar que nada? A minha vida eterna porque s a presena dela a si prpria, a sua evidente necessidade, ser eu, EU, esta brutal iluminao de mim e do mundo, puro acto de me ver em mim, este SER que irradia desde o seu mais longnquo jacto de apario, este SER - SER que me fascina e s vezes me angustia de terror... E todavia eu sei que isto nasceu para o silncio sem fim...

    Como tu, meu velho. A ests beira da cova, na urna aberta, para te reconhecermos pela ltima vez. Onde a tua pessoa, onde o que eras tu? Passam pela estrada os carros chiando. Vm das vinhas, das vindimas, trazem o aroma da terra e da vida. Mas tu agora s apenas a tua imagem. Que de ti? Ouo para l dos teus lbios cerrados a tua palavra grave, vejo as tuas mos erguerem-se, povoadas de um gesto que eras tu. No! Quem te habitava no . Vivers ainda na memria dos que te conheceram. Depois esses ho-de morrer. Depois sers exactamente um nada, como se no tivesses nascido. Quantos crimes, vexames, remorsos, alegrias e projectos e traies e castigos e prmios e tudo e tudo nos milhes de homens que passaram noutros sculos por esta pequena aldeia e souberam os seus stios e a montanha e a ribeira e se souberam daqui e disseram esta casa minha, esta terra minha e sentiram a aura de tudo isto, destes ventos, destas noites, e so hoje o nada integral, absoluto, pura ausncia, nada-nada? Eis que comea a tua longa viagem para a vertigem das eras, para a desapario do silncio dos milnios. Sim, agora ainda vives para mim porque te sei.

    Como os retratos do lbum da tia Dulce...Boa tia Dulce! Lembro-te. Era irm do meu av, herdada pelo meu pai com a

    velha casa, uma velha criada, e com o velho ar de tudo. Magrinha como uma suspeita, sisuda por defesa no receio de que lhe faltassem ao respeito, revestia de

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  • gravidade aqueles dos seus actos em que pudssemos ver uma inferioridade, como, por exemplo, comer sempre com muito apetite. Porque na aldeia o apetite uma degradao, por lembrar a pobreza ou a animalidade. Por isso tia Dulce comia com requinte, muito sria, mastigando devagar, com um pequeno ar de desgosto, trabalhando os talheres com mincia mas alimentando-se sempre muito bem.

    Mas ofendo-te, velha mulher, aqui a desvendar a tua psicologia - eu, que detesto como um insulto essa coscuvilhice das minudncias ntimas, esse ofensivo desmontar de relojoaria, como se um ser humano fosse um brinquedo. Mas tu eras alguma coisa mais do que um boneco, eu o sei. Ainda que tu mesma talvez o no soubesses. Porque em ti vivia a fascinao do tempo, o sinal do que nos transcende.

    Assim eu esqueo esse teu intransigente apetite, as ms digestes consequentes e a magnsia e os clisteres, a tua boca aguada em convenincia, a tua vingana contra a idade nessas maledicncias secretas com a tua amiga Inocncia, a do falatrio beato, as tuas intrigas com as criadas nos sagues familiares, as tuas rixas com o Antnio, o moo da lavoura, a ganncia com que defendias o teu peclio de tostes, a gula com que recebias os nossos beijos, que eram a prova de que no tnhamos nojo de ti - assim eu esqueo tudo, e o que te resume, boa mulher, esse teu velho lbum de fotografias, que tanta vez me explicaste por saberes que eu conhecia j a vertigem do tempo e me legaste depois para o guardar e eu tenho agora aqui na minha frente como o espectro das eras e das gentes que j mal sei e me fitam ainda do lado de l da vida e me querem falar sem poderem e me angustiam como o olhar humano do Mondego dias antes de o Antnio o matar.

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  • VE todas as quartas e sbados eu dava lio a Sofia.Comemos pelo princpio para recapitular. Ela cantava as declinaes, tinha

    um modo gracioso de se enganar e de tal forma que eu sentia obscuramente que os erros que estavam certos. E era assim como se qualquer coisa a habitasse e fosse maior do que ela e do que a misria das regras de gramtica. Mas tinha sobretudo uma maneira brusca e cravada de travar e de me ficar olhando, como se me procurasse em qualquer stio de mim onde no houvesse lembrana do que estvamos dizendo. Eu sentava-me num sof em frente dela, ela sentava-se noutro sof, cruzando a perna, escrevendo em cadernos de uma infncia j morta. Era raro eu ver Madame ou algum mais da casa. A pequena criada, vermelhusca, sempre a estalar de sangue, vinha abrir-me a porta e metia-me no escritrio. Eu ficava ali espera algum tempo, abafado de estofos e silncio, at que Sofia entrava. Fechava sempre a porta atrs de si com um -vontade que era quase desprezo por quem exigisse que ficasse aberta. Assim, era como se entre Sofia e mim uma nica vida se estivesse gerando e ambos a reconhecssemos. Uma nica vez me apareceu de chinelas, uma camisola azul sobre os ombros, igualada assim ao trato familiar da banalidade domstica onde habita a fraqueza e a necessidade.

    Mas Sofia sabia-se excepcional. Por isso se vestia em perfeio, destra e aguda, disparada desde os saltos aos seios agressivos, aos olhos rectos e lcidos. E eu sentia que tudo o que vivo na terra estava ali presente no seu corpo. Que tinha que fazer, frente execuo da alegria, o meu pobre ministrio de cadver? Assim um ntimo desastre me tolhia e envelhecia as palavras. Um dia, depois de eu explicar no sei que regra sintctica, depois de Sofia tentar cumpri-la num exerccio, fechou o caderno, cansada, risonha de tolerncia. E perguntou:

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  • - Porque h-de a vida ter razo sobre ns? Porque havemos de ser sempre ns a submeter-nos? Um curso e um marido e filhos...

    Tive uma palavra professoral, como era ali da minha obrigao:- Se todos fizssemos s o que nos apetece...- Sim. Mas porque que numa vida certa o verbo studeo h-de pedir dativo?- Que queria voc fazer, Sofia?- Sei l, sei l...E ficava muito sria, olhando ao lado qualquer presena obscura - e ambos

    nos esquecamos dos livros e cadernos. Mas acontecia outras vezes que Sofia entrava na sala, grave, bem integrada na sua funo de aluna, sabendo tudo, absolutamente tudo, com uma certeza e mincia que me derrotavam. Os exerccios estavam feitos correctamente, sem erros, s lies atrasadas conheci-as sem falhas. Eu tentava ento tradues primeira vista. E Sofia, aps leves hesitaes e depois de eu dar um ou outro significado, traduzia quase bem. No entanto, na vez seguinte, ela voltava a errar desastradamente.

    Naturalmente, um dia irritei-me:- Basta de troa, Sofia. Voc sabe. Voc no quer dizer. Voc decidiu rir-se

    disto tudo.- Rir-me? Que absurdo! Faa um esforo, doutor, faa um esforo. Saia um

    momento das regras e excepes. S assim talvez entenda. H dias em que absolutamente necessrio que eu no saiba! E ento no sei, no sei, no sei. No me pea explicaes. No sei!

    E saiu do escritrio, talvez para no chorar ali. Madame, porm, apareceu logo, dir-se-ia estar ali escuta. E, sem me perguntar o que se passara, limitou-se a pedir-me desculpa.

    - Desculpa? De nada, minha senhora. Sofia hoje est mal-disposta. Temos de ter todos pacincia.

    Vexado, reuni os meus papis, meti-os na pasta - nessa pasta que eu tanto

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  • viria a odiar - e sa.Mas algum tempo depois Sofia procurou-me inesperadamente na penso. O

    senhor Machado anunciou-me a sua visita, de mau modo, inquieto decerto de um aroma a mulher, de uma suspeita a tramia:

    - Est ali uma senhora a procur-lo. uma filha do doutor Moura. um grande amigo meu, uma pessoa de bem. Mas, senhor doutor, o senhor doutor j sabe que em minha casa...

    - Nem mais uma palavra, senhor Machado. No pode ento vir uma senhora a esta casa? isto um convento?

    - No, senhor doutor, est bem de ver que no um convento.- Ou a presena de uma senhora faz disto por fora um lupanar?- Credo, Jesus, o que ele disse, o que ele disse!.E fugiu a apertar a cabea.No! Tinha de sair dali! Mas para onde?Sofia esperava-me na sala de jantar, em p, bela e vigorosa:- Que fez ao senhor Machado? - perguntou-me em voz baixa. - O homem

    parecia que tinha visto o Diabo, o Diabo antigo, o autntico.Contei a Sofia o que se passara. Ela riu um riso ilcito, clandestino, e eu tive a

    primeira certeza do que j suspeitava...- Ele diz-se amigo do seu pai.- Oh, o pai... O pai ri-se. O homem tambm faz parte da Conferncia de So

    Vicente de Paulo. Bem v, h as sobras da penso. Mas no ficamos aqui a dizer mal.

    - Vamos dizer mal para onde?- Bem. Vai s o doutor. Vai o doutor e o meu pai, que o espera l em baixo.- Sofia...- No pergunte nada. Oh, no recomece. Devo pedir-lhe desculpa? Pois bem:

    desculpe.

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  • Samos. Moura esperava-me, com efeito, na Praa, com o projecto de um passeio a adiante. Ia ver um doente, eu precisava certamente de ir conhecendo o Alentejo. No, Sofia no podia ir. Sentei-me frente, ao p de Moura, no seu Fiat pequeno. Lembro-me bem de que nessa manh toda a Praa acordara enfeitada de crisntemos. Mas s agora eu reparava bem neles. Havia crisntemos ao longo das arcadas, uma roda de vasos cercava a fonte por dentro das grades.

    Havia-os brancos, roxos, amarelos, de cabeleiras cadas para os olhos, com o seu ar fatal ao sol triste de Outono.

    Partimos pela estrada do Redondo, atravessando as duas linhas frreas. Atrs ficava a cidade, dourada pelo sol, coroada pela S. Moura parou o carro no alto de uma rampa para que eu ficasse gravado daquela apario. E daqui do meu Inverno, desta noite em que escrevo, eu a relembro agora. As casas brancas apinhavam-se, umas contra as outras, ameaa do deserto e da desolao. E ali parado, em face da cidade perdida na plancie, era como se ouvisse em mim um coro de peregrinos vista de um santurio nas romagens antigas...

    - Temos de ir indo - lembrou Moura.Ele tinha pressa de falar de Sofia. E havia tanta coisa a contar. Porque tu foste

    sempre uma criana difcil, Sofia. Eu tinha de ter pacincia, de te no levar muito a srio. De uma vez, contou Moura, Sofia foi repreendida pela me. Era ento uma mida de sete anos e a repreenso foram duas palavras severas. A falta fora um capricho absurdo da garota.

    Sofia brincara toda a tarde no ptio, sujara-se, rasgara o vestido. Havia nessa noite visitas de cerimnia, a me vestira a mida de lavado. Mas hora da recepo Sofia apareceu na sala com o vestido roto e sujo, apresentou-se assim mesmo s pessoas de cerimnia. Madame sentiu-se vexada, trouxe a filha a um recanto disciplinar e explodiu. Sofia nada disse. No se ria, no chorava. Estava apenas muito sria como se tivesse cumprido um dever. Mas nessa noite, ao deitar, desapareceu. Correu-se a casa toda, bateu-se porta dos amigos, da

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  • famlia. Nada. Meteu-se a Polcia, a Guarda, telefonou-se para as estaes do caminho de ferro, das camionetas. Em vo. S na tarde do dia seguinte ela reapareceu, absolutamente serena, indiferente aflio familiar. Tinha estado todo esse tempo empoleirada na chamin de um forno abandonado, no ptio. De outra vez, e sem questo nenhuma, atou fortemente um nastro num brao, prendendo a circulao. J tinha a mo roxa quando o pai descobriu. Sofia sentiu-se alegre por saber que estivera em risco de perder o brao todo. Mas aos doze anos saiu realmente de casa, a p, com destino a Lisboa. Apanharam-na em Montemor. Raramente confraternizava com a irm nas suas brincadeiras, preferindo entreter-se sozinha, quase sempre fechada no seu quarto povoado de bonecas. Mas este modo de ser tranquilo, este modo de fechar-se consigo, era ainda o indcio de uma tenso interior de que se tinha o sinal flagrante no jeito sbito de fitar como se ento explodisse. Vivia sempre escuta de uma invisvel ameaa ao seu mundo pessoal - mundo de alegrias ou amarguras que s ela sabia. Acontecia assim s vezes - Moura contava - que durante uma conversa (como quando o pai falava da morte de algum doente) ela sorria enlevada com o ar distante, separado, de uma louca. Como em situaes diversas (uma vez, por exemplo, numa festa de anos da irm) ela fugia de todos, grave de amargura mas raramente chorando. A certa altura houve quem preconizasse o recurso de um colgio. Meteram-na no colgio. Mas no houve outro remdio seno tir-la de l, porque duas vezes tentou suicidar-se. Sofia! Como eras estranha! Como o foste at ao fim! Mas agora que morreste de uma morte inesperada que te evitou o gesto puro de te matares, agora que relembro toda a tua vida certa, evidente, na mais breve atitude, reconheo a verdade antiga, axiomtica, de todo o teu raiar a um mundo de limites, de mximos, de pura iluminao. Passam os campos nossa volta no desamparo do Outono. Raros homens de pelico vo andando pela estrada para o deserto do seu destino.

    Um ou outro aparece, solitrio, no meio do descampado. Eu olho e ouo. Por

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  • sobre o rumor surdo do carro o teu pai fala. Mas j sem a bonomia do seu viver sem problemas.

    - Se ela casasse, se ela casasse...Ele sabe a lio da fisiologia. E depois? Em certo sero de Inverno, Sofia,

    Ana quebrou-te, creio que por descuido, um brao a uma boneca. Tu foste para o quarto, grave, sem uma lgrima. E de um a um quebraste todos os teus brinquedos, impedindo violentamente que te levassem os cacos: melhor que a nusea das compensaes medianas, preferias o absoluto da destruio.

    Senti um ataque brutal a todas as minhas vsceras e vi como era compreensvel o sonho de Sofia. Realizar a vida num acto, num gesto, num sonho, por mais miservel que seja. Mas Sofia, como eu havia de saber, conhecia apenas o arranque e a inquietao. Sabia talvez apenas de que lado da vida lhe falavam. De qualquer modo, como entend-la, pois, nas explicaes do pai? E disse:

    - Talvez no seja s uma questo de casamento.Moura olhou-me um instante, a sorrir com resignao da minha ingenuidade:- Sou mdico, meu bom amigo. E s vezes desejava no s-lo.- Que sabe a fisiologia sobre os sonhos de um homem?- Talvez no saiba muito - admitiu Moura. Mas no h dvida de que, se o

    irmo corpo est tranquilo, os sonhos so mais razoveis. Claro:Sofia era ento uma criana. Mas desde quando o no ? Problemas

    complicados, trapalhadas da vida. Bom: a estrada boa acaba aqui. Agora vamos cortar por este ramal.

    Era um caminho mau, escavado das chuvas e dos carros das mulas. Para um lado e outro estendiam-se as terras escuras e abandonadas. De longe em longe erguia-se o espectro de uma ou outra azinheira. Reunir a vida num acto, num sonho. Mas ter primeiro a evidncia da sua grandeza, da sua verdade. E ter a evidncia daquilo que ele recusa.

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  • Subitamente beira de um monte, um homem de pelico ergueu a mo ao carro. Eram trs ou quatro casas apinhadas num terreiro. Moura parou e reconheceu o homem:

    - Voc outra vez? Ento o que que h de novo?- Eu sabia que o senhor doutor ia ali dona Alzira e pus-me aqui espera.- Mas ento o que que h?O homem olhou-me para ver at que ponto eu podia participar do seu segredo.- Se preciso, eu saio - declarei.- No, acho que no - disse Moura. - O senhor doutor pode ouvir? -

    perguntou.- Ele tambm doutor? - adiantou o homem raiado de esperana.- doutor, mas no mdico. Diga l ento.E o homem contou uma histria incrvel. Moura j a conhecia, porque fez

    referncia a uma consulta na cidade. Mas de nada lhe valeu, porque o homem ia cont-la outra vez desde o princpio. Receava muito que lhe tivesse falhado algum pormenor e isso lhe destrusse a esperana. Contava-a agora de novo:

    - Quando foi da sementeira, o patro Arnaldo disse-me: Bailote, tu j no tens a mesma mo para semear. Porque eu, senhor doutor, tive sempre uma mo funda, assim grande, como um cocho de cortia. Eu metia a mo ao saco e vinha cheia de semente. Atirava-a terra e semeava uma jeira num ar.

    Conta, bom homem, conta o teu sonho perdido.Tinhas, pois, uma boa mo de semeador bblico. Atiravas a semente e a vida

    nascia a teus ps. Eras senhor da criao e o universo cumpria-se no teu gesto. E, enquanto o homem falava, eu olhava-lhe a Face escurecida dos sculos, os olhos doridos da sua divindade morta. Imaginava-o outrora dominando a plancie com a sua mo poderosa. A terra abria-se sua passagem como passagem de um deus. A terra conhecia-o seu irmo como chuva e ao sol, identificado sua fora germinadora.

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  • - Agora o patro diz que eu j no tenho mo.E mostrava a sua desgraada mo, envelhecida, carbonizada de anos e

    soalheira. Moura olhou-me e sorriu-me numa cumplicidade.- Olhe. Faa ginstica aos dedos. Assim.E exemplificava. De olhos escorraados, o homem lamentou-se:- Tenho feito, senhor doutor. Mas o patro Arnaldo diz que eu j no tenho

    mo. Veja, senhor doutor, ento isto no ser ainda uma mo de homem?E tentava cav-la fundo, com os dedos gretados no ar.- Ento que quer que eu lhe faa?- D-me um remdio, senhor doutor. Um remdio que me ponha a mo como

    a tinha. Assim grande, assim funda, assim, assim...E moldava no ar a capacidade de uma mo de Jeov.Fios de sol escorriam de uma azinheira perto da estrada. Os campos

    repousavam no grande e plcido Outono. E pelo vasto cu azul, sem a mancha de uma nuvem, ecoava levemente a ltima memria de Vero.

    Moura ps o motor a trabalhar.- Ento passe muito bem - disse ao semeador.E o carro arrancou, erguendo o p do caminho.

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  • VI

    Mas a visita doente foi breve. Era uma casa fidalga perdida no descampado. Espectros de um ou outro homem ou mulher olhavam-me no carro parado, olhavam o silncio em redor. Regressmos enfim pelo mesmo caminho. Quando, porm, chegmos ao monte do semeador, saltou-nos frente um grupo de pessoas numa sarilhada de gritos, de imprecaes, braos no ar, braos apontados para uma loja. Moura saiu do carro e o magote de gente seguiu-o. Fiquei s. Mas o mdico regressava da a pouco, plido, transtornado.

    - Que aconteceu?Ele no respondeu logo, conduzindo o carro aos tropees. E s quando o

    monte se no via j me declarou:- O homem enforcou-se.Senti-me embrutecido, atordoado em todo o corpo.S. Era espanto e fria e terror. Era essa indizvel e total suspenso em que a

    absurda evidncia nos esmaga pela absoluta certeza e absoluta impossibilidade. Sei e recuso. Uma violncia iluminada incha-me no crebro, estala-me o crnio como uma massa solar. Pensar, reflectir, como?, como? Apenas vejo, apenas vejo, fascinado, imvel.

    Apanha-me todo e queima-me e endurece-me nas mos enclavinhadas uma surda intoxicao. Moura, a meu lado, nada diz. luz obscura da tarde parece-me que envelheceu. A gordura que lhe enchia a face feliz descai-lhe agora para o pescoo em pregas flcidas. Os campos estendem-se a perder de vista, o ar acende-se de um ltimo claro. Que fazemos ns na vida? Que incrvel pertincia nos resolve numa iluso toda a imensidade do milagre de estar vivo? No vale ento nada, meu velho desconhecido, esse prodgio de seres, em face de uma mo que no j a de um semeador?

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  • Tinha uma misso a executar, uma extraordinria notcia a transmitir. Precisava urgentemente de fazer a conferncia, de revolucionar o mundo. Porque o mundo aparecia-me sob a forma de uma absurda estupidez. Era necessrio que todos os homens vivessem em estado de lucidez, se libertassem das pedras, chegassem ao milagre de ver. Era absolutamente necessrio que a vida se iluminasse na evidncia da morte. Viriam a chamar-me mrbido, doentio. Porqu? Mais real do que o nascer era o morrer. Porque quem nasce ainda nada. Mas quem morre o universo, a pura necessidade de ser. Um homem s perfeito, s se realiza at aos seus limites, depois de a morte o no poder surpreender. No porque a tivesse decorado como um gato-pingado, no porque a tivesse esquecido, mas por t-la incorporado na plenitude da vida. Sabia bem quanto era difcil j no digo esta aceitao esclarecida mas at o ver o problema; sofrer o impacto da sua fulgurante apario. Eu prprio quantas vezes o esqueo! Quantas vezes me remordo em desespero, porque nada vejo, nada vejo! A parte animal do homem, a parte gorda, a que tem sono e quer dormir brutalmente pesada.

    Mas agora eu sei, eu vejo. Procuro por isso o Chico na sua repartio. No est: saiu para uma avaliao de prdios ou o exame de alguma construo. Procuro-o no caf depois das cinco: no est tambm. Vou enfim a sua casa. Mora ao p de So Francisco, numa casa que d para o Jardim. Bato porta: iam ver se o senhor engenheiro estava. E ele aparece enfim, de roupo e um cigarro entre os dentes. O quarto grande e no rs-do-cho. Quando passam carroas na calada, o soalho estremece. Passam constantemente carroas, mesmo a horas tardias. Ouo-as ainda agora, martelando toda a cidade, percorrendo em fila as estradas da plancie. Levam fardos de palha moda, lenha para os fornos, azeite, loua de barro.

    Na minha imagem distante, filtrada pelo tempo, unem-se figurao de um pelico, de um ventre e face gorda, de notas de conto esfolhadas nas mesas do caf

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  • tera-feira, essas carroas rijas com machos e almocreves, martelando a cidade de uma memria de terra e de estrume. Chico pergunta-me:

    - Ento que h, professor?Tratava-me por professor, que era a frmula mais certa para ele de uma

    camaradagem tolerante. Eu tratava-o por Chico e s vezes por engenheiro.- Pensei j na conferncia - disse eu.- ptimo. Mas a coisa no vai ser fcil. Falei j com os senhores da

    Harmonia, mas eles no se entusiasmaram. De que vai voc falar? De cortia? De adubos? No vai. Bom, nesse caso est tramado.

    - Vou falar de uma coisa nova, de uma descoberta extraordinria.- Descoberta? Ento no para a Harmonia: para a Academia das Cincias.Eu fumava, nervoso. Um candeeiro estampava a luz na secretria, dissolvia o

    quarto em penumbra. Sentia-me possudo da minha evidncia e mal reparei assim na ironia do engenheiro. Queria falar, tinha de falar.

    - A minha descoberta destina-se a toda a gente. Nem uma descoberta. Quero dizer: a descoberta de uma aprendizagem.

    O engenheiro recostou-se na cadeira como um advogado que se informa ao atender um cliente. Eu estava numa situao de inferioridade e o que desejava no era uma tolerncia mas uma comunho. De sbito, porm, bateram porta. O engenheiro mandou entrar e quem apareceu foi um moo meu aluno. Mostrou-se embaraado com a minha presena, prometeu sair logo.

    - Podes ficar - disse o engenheiro. - O doutor d licena. meu primo - acrescentou para mim.

    No dera ainda tal licena. Mas concordei. Era o Carolino, meu aluno de Literatura, moo bisonho, com a cara crivada de espinhas e a quem por isso os colegas chamavam o Bexiguinha.

    - L passei no Redondo. O teu pai no estava - declarou o engenheiro ao rapaz. - Mas estava a tua me... No acreditou l muito nessa histria de mais

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  • livros. Mas mandou o dinheiro.E passou notas ao rapaz, que as guardou em silncio, corando fortemente. O

    engenheiro acendeu novo cigarro, recostou-se outra vez:- Mas diga ento, professor.No, amigo. No para essa tua fleuma abundante que eu tenho voz. Procura!

    O rasto da tua radiao divina, o lume secreto da tua apario, onde est? Onde o perdeste, amigo? Em que recesso do teu ar monoltico? Trago o eco perdido do ermo de ti prprio. E tu, pobre Bexiguinha de olhos alagados de estupefaco? s tu s ento que me ests ouvindo? Mas de que falo eu, afinal? De que nada to brutal de fria e solido? Descobri as razes da minha vida, a flagrncia do que sou. E falo, falo. O entusiasmo incendeia-me, as minhas palavras so j quase s vibrao. Mas s talvez assim estejam certas, como um ferro em brasa que nos atinge no pelo ferro que .

    - A descoberta que proponho bem difcil - insisti eu. - No lhe contei ainda o caso do homem que se enforcou?

    - Contou-me o Moura - disse Chico.- Que foi? Que foi? - perguntou o Bexiguinha, a voz fina e cantada da sua

    terra e que assim o aquecia como a uma criana.- Encontrmos um homem h dias, quando o doutor Moura ia ver um doente.

    O homem queixava-se de que j no tinha uma boa mo para semear. volta, quando passmos outra vez pelo monte, o homem tinha-se enforcado.

    Bexiguinha abriu os olhos e a boca.- preciso vencer esta surpresa que nestes casos nos esmaga. Ajustar a vida

    morte. Achar e ver a harmonia de ambas. Mas ach-la depois de sabermos bem o que uma e outra, depois de nos encandearmos na sua iluminao. Sabia acaso o homem o milagre que destrua? Mas eu sei.

    - Como se sabe, senhor doutor? - perguntou-me o Carolino na sua voz ridcula, que tanto me desmanchava.

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  • E de repente, em face do interesse do rapazinho, no dito em palavras mas expresso na sua avidez, de novo me empolgou a fria de revelar. Virei-me para o Bexiguinha, falei s para ele. E perguntei:

    - Porque que, no silncio da noite, nos assusta falar em voz alta? Nunca fizeste essa experincia?

    - Nunca fiz, senhor doutor - respondeu ele no seu tom de falsete.Era preciso faz-la. Mergulhados no silncio nocturno, sentimo-nos no

    existir. O que existe como que o absoluto do mundo, a presena aguda das coisas. O universo aguarda a vinda do primeiro homem. E subitamente gritamos: Eu estou vivo, EU SOU. E falamos connosco, fazemo-nos perguntas. Sobe-nos ento garganta uma surpresa de terror: Quem sou eu? Quem est aqui comigo? D vertigens. como se nos aparecesse um fantasma e estivesse dentro de ns e fosse algum a mais e visse pelos nossos olhos e falasse pela nossa boca. S os doidos falam sozinhos, porque no tm medo. O mundo para eles no existe: s existe a sua loucura. Por isso ns, se falamos, nos sentimos doidos, separados subitamente do mundo. O que existe ento no o quarto onde estamos, os livros, a noite; o que existe este vulco brutal que sai de ns, o jacto do deus que nos habita, esta monstruosidade que nos adormecia dentro.

    Mas de sbito o telefone tocou. Chico ergueu-se pesadamente, foi atender.- Como est? Sim... No, no... Pois... Os alicer... Pois... Os alicer... No, eu

    j lhe tinha dito. Os alicerces que ficaram mal.Pousou o telefone, voltou-se para mim:- Mas dizia voc, professor...No, quadrado homem de ferro e de cimento. No me entendes, no te

    entendo. Falo para ti, Bexiguinha.- H uma outra experincia - disse eu. - Uma vez, quando era mido...Contei. Ns estvamos sentados na varanda da casa, voltada a oriente.

    Tomvamos o fresco, o dia fora abrasador. Detrs da serra a lua ia em breve

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  • aparecer e ns espervamo-la quase em silncio. S meu pai me repetia a histria dos astros, que eu guardava na memria: Antares, Altair, Deneb, gigantes vermelhas, rbitas no grande vazio dos espaos. A lua veio enfim. Eu sentara-me no cho, mas apetecera-me deitar-me ao comprido para ver melhor as estrelas. E minha me mandou-me ao quarto procurar a manta e a almofada dos nossos sonos no tempo. A porta estava aberta, a lua entrava por uma das janelas. Procurei a manta e a almofada numa cadeira, no canto onde minha me as arrumava. Subitamente, porm, quando ia a erguer-me, eu vi que estava algum mais no quarto. Dei um berro, larguei tudo, estatelei-me no corredor. Aos meus gritos acudiu minha me, meu pai, meus irmos, as criadas, a tia Dulce. E ali, face de todos, declarei:

    - Est um ladro no meu quarto.A minha me arrebatou o candeeiro a uma criada e fomos todos atrs dela.

    Mas, iluminado o quarto, examinados os recantos, o ladro no apareceu.- Oh, a imaginao desta criana! - exclamou minha me.Sermo sobre a minha imaginao. Meu pai aproveitou a oportunidade para

    atacar o malefcio das historietas que nos contava a velha tia Dulce. Alis, quem mais as escutava era precisamente eu, no tanto ento, durante a minha infncia, como mais tarde, quando vinha a frias e desentulhava do sto, das lojas, dos cantos das arrumaes, velhos vestgios de outrora - jornais, fotografias, algumas bem recentes, pois j eu figurava nelas, mas que para mim tinham j a distncia ilimitada do passado.

    Subitamente, meu pai teve uma ideia:- Onde que viste o ladro?- Ali.- Pe-te l onde estavas. Olha agora em frente.Olhei. Quem estava diante de mim era eu prprio, reflectido no grande

    espelho do guarda-fatos. Meu pai ps-me a mo na cabea com a sua proteco.

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  • Minha me voltou a lamentar a minha fantasia. E o meu irmo Evaristo fez rir toda a gente, porque se ps diante do espelho a fingir medo:

    - Um ladro! Olha um ladro!Regressmos varanda, tia Dulce regressou grande sala batida do luar e a

    cujas janelas rezava as suas contas. A lua vogava agora em pleno cu. No grande silncio, os ralos e os grilos frisavam a noite de gritos. No ar pairavam ainda as crepitaes do calor, com uma memria de cigarras estalando luz do sol... Eu, porm, relembrava o meu susto sbita presena de algum que agora sabia ser eu. hora de deitar meu pai ordenou-me:

    - Tu vais-te deitar sozinho. Tu s um homem.Desde sempre, dormamos cada irmo em seu quarto. Cumpri o dever de ser

    homem e deitei-me sozinho, tendo o cuidado de no olhar para o guarda-fatos. Mas no outro dia, assim que me levantei, coloquei-me no stio donde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse algum que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que at ento vivera comigo na absoluta indiferena de apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mas, que me excedia e me metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experincia no desejo de fixar essa apario fulminante de mim a mim prprio, essa entidade misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava.

    Calei-me enfim. Uma carroa retardatria atroou toda a calada. Pelos vidros das janelas via a massa nocturna do Jardim, imaginava o busto de Florbela, colocado ali h pouco tempo, numa manh clandestina, agora meditando sobre o seu pesadelo. Chico dormitava ao eco das minhas palavras. Carolino tinha agora a boca aberta, todo petrificado. Por fim o engenheiro falou:

    - Tudo isso, professor, muito grave.

    50

  • - Grave como?- Grave. O que voc prope pura e simplesmente o regresso pedra

    lascada...- Lascada?- ...porque o homem sabe que existe j desde ento.- falso. E que o soubesse? A verdade que o no sabe hoje. Tenho a

    certeza.Chico endireitou-se, fez peito. Era tremendo a fazer peito. Porque tudo se me

    deslocava para uma questo de msculos.- Vivemos numa poca formidvel - disse ele. A nica verdade a conquistar

    a de que todos os homens tm direito a comer.- Quando que afirmei que o homem deve passar fome? Mas, se em todas as

    pocas se tivesse s pensado na melhoria econmica, hoje no seramos homens: seramos apenas mquinas. O meu humanismo no quer apenas um bocado de po; quer uma conscincia e uma plenitude.

    Bexiguinha olhava-nos, ora a um ora a outro, como num jogo de pingue-pongue. Chico interpelou-o:

    - Tu que pensas?O moo estremeceu, abriu mais os olhos, num raio de loucura:- Eu acho bem, eu... Eu j tinha pensado. s vezes, l em casa, ponho-me a

    pensar: o que que sentir uma galinha?- Uma galinha? - perguntou o engenheiro.- Sim. Uma galinha. Penso assim: Se eu fosse galinha? E o que o senhor

    doutor contou, isso do espelho, tambm j tenho pensado. A gente s vezes brincava a fazer caretas ao espelho. s vezes fazia uma coisa que no devia fazer. E depois chegava ao espelho, fazia caretas e era mesmo como se me estivesse a ralhar a mim prprio. Depois ficava melhor. Mas falar alto para mim nunca falei.

    Ficmos todos embaraados. Bexiguinha olhou-nos, estupefacto do nosso

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  • embarao e talvez do seu.At que o engenheiro se abriu todo em gargalhada para restabelecer a

    normalidade:- Com que ento, Carolino, uma galinha...- Eu no sei porque que te ris. A gente pensa: Se eu fosse um co? Se eu

    fosse uma galinha? Uma galinha tem um olho para cada lado, por exemplo, e tem aquela coisa dura que o bico. E depois a galinha dorme empoleirada num pau e no cai.

    - Bem, bem. Temos galinha que chegue. Trata mas de no gastares o dinheiro dos livros em pardia. E esquece a galinha. Pensa, por exemplo, na vaca, para variar.

    - Mas a vaca tambm um bicho esquisito.Eu estava atnito. Porque sentia em Carolino, atravs do que havia nele de

    estranho, uma inquietante separao de si, no sei se para um encontro lcido consigo, se para uma unio de loucura. Precisava de conversar com o pobre Bexiguinha. Ele no era decerto um louco. O modo de falar era trpego, ridculo no seu esganiado de falsete, e isso que sobretudo perturbava. Mas o telefone retiniu de novo. Chico foi atender.

    - ...No, no me esqueci. Atrasei-me s um pouco. Tive visitas. Ainda c esto... O professor e o Carolino. Sim... At j.

    E para ns:- Com a histria da galinha, esqueci-me de que tenho galinha em casa dos

    Cerqueiras.- Ento vo sendo horas - lembrei eu, levantando-me.- Vo sendo horas - concordou Chico, erguendo-se tambm.Carolino, vexado a sangue, com as espinhas mais visveis, saudou o primo

    brevemente e saiu comigo. Estava uma noite ntida, com estrelas de vidro. No largo deserto, luz dos candeeiros, a Igreja de So Francisco erguia a sua massa

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  • negra entre as fachadas brancas dos prdios. E as janelas iluminadas na pequena colina sugeriam um prespio minha memria de Inverno.

    - Onde moras tu, Carolino?- Na Rua da Mouraria.- Vou contigo. Damos uma volta aqui por baixo.Gostava de percorrer as ruas silenciosas, emaranhadas como uma alucinao.

    Numa ou noutra janela armava-se ainda o pau com o fio da roupa branca. Das tabernas, com meias-portas fechadas, vinha um eco sujo de luz fosca e de sarro.

    - O senhor doutor acha que o que eu disse era assim para rir? - perguntou-me subitamente o Bexiguinha.

    - Bem, Carolino; ns temos muito que conversar. O que disseste no nada uma tolice. Quando era mido senti uma coisa parecida com um co. E com um gato. E com outros bichos. Descobri neles o comeo de uma pessoa. O co chamava-se Mondego. O Antnio matou-o.

    - Quem era o Antnio?- Um criado.Percorramos o labirinto de ruas em todos os sentidos. Mercearias escuras

    como grutas com uma luzinha ao fundo, antros de carvoeiros, interiores de casas iluminadas para l das cortinas, namoros oblquos de esquina - toda aquela zona da cidade se cruzava de segredo e de suspeita.

    - Tambm fiz outra experincia, senhor doutor.- Que experincia?- Bem... No sei como explicar. assim: mastigar as pa