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VEYNE, Paul. Foucault revoluciona a história

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if' 5, CPõ', A   ç t > ~   - 9I

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio, seja este eletrônico,mecânico, de fOtocópia, de gravação, Ou outros, sem prévia autorização, por escrito, da E d i ~ o r a  Universidade de Brasília.

Impresso no Brasil

Editora Universidade de BrasíliaSCS Q,2 BlocoC na782 Andar7030()·50Ó Brasília, DFFax: (061) 225-5611

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Copyrtght© 1971by Éditionsdu Seuilpara Commenton écritl'histoire

Copyrtght@ 1 9 ~ 8   by Éditionsdu Seuilpara FoucaultrévolutionneZ'hlStorie

Direitosexclusivospara esta edição, adquiridospelaEDItORA liNIVERSIDAÍ)E DEBRASÍLIA

Editoração:Lúcio Reiner, Manuel Montenegroda Cruz, Maria Rizza Batista Outra, Maria Rosae ReginaCoeliAndradeMarques.

Supervisorde Revisão:José Reis.

Capa:Célia Matsunaga

Supervisãográfica: AntônioBatista Filhoe ElmanoRodrigues Pinheiro

ISBN: 85-23Ó-Ô327("

Ficha catalográficaelaboradapela BibliotecaCentral daUniversiélade de Brasília

Veyne, Paul Marie, 1930V59Sc Comose escrevea história;Focault revoluciona a história. Trad. de

AldaBaltare Maria AuxiliadoraKn_e!pp. 3"ed. Brasília, Editora Universidadede Brasília, 1982, 1992, 199,y.202p.

Título original: Comment on écrit l'histoire.FoucaultrévolutionneZhistorie

930.1

/) .I J (I (),

SUMARIO

•••••••••••••••••••••• • • • • • • •OMO SE.·E.SCREVE A HISTÓRIA 5·

h. INTROOl!ÇÃO . ~ " ~ , .   , . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

~ ~  J -, O OBJE'r0 DA HISTÓRIA

,

D,l,r'

 ,

1 - Apenas uma narrativa veridica

'Eventos humanos, ltvento edocumento "

Evento e diferençaA Individualização

,

2 - Tudo é histórico, logo, a história não existeA Incoerêneía da históriaA Natureza lacunar da históriaA Noção de não-factual "Os Fatos nã o têm dimensões absolutasA Extensão da históriaA História é um a idéia-limite

3 - Nemfatos, nem geometral, mas tramas

...

" .   ...

...

" " .' .

.

.

.Noção .de trama . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Estrutura do campo factualO Nominalismo históricó

.

.

4 - Por simples curiosidade pára com oespecífICo

Urna expressão de historiador: "É interessante"*,Weber: A história seria relação de valores

A História ligada ao específicoHistória do homem e história da naturezaOs Dois prindpios da historiografia

..  .

.

.

.

5 - Uma atioidade intelectual

A Consciência ignora à. históriaOs Objetivós do conhecimento histórico

Um falso problema: a gênese da históriaNenhuma relação entre o cientista e f) político

1111I I

1214

17171819202123

27283032

353536384041

43434445

/47f

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I  IIII

IIi,III

'11

1I!'

ii'

l

Irene

Como todo mundo conhece o nome de Foucault, não há necessidade de uma I

longa introdução. É 'preferível passar, imediatamente, a exemplos concretos para

'I mostrar a utilidade prática do ~ ~ t o d o   de Foucault e para tentar dissipar as I

) prevenções que poderíamos, legitimamente, ter para com esse filósofo: qu e

    reifica uma instância que escapa à ação humana e à explicação histórica, I,

que privilegia o.srecortes e asestruturas sobreas continuidades ou evoluções, que...J1ào se interessa pelo social... Além disso, um termo, o de "discurso", criou muitas I~  

onfusõesl!9, digamos logo qu e Foucault não é Lacan e também não é semântica; aII

palavra"discurso"é tomadaE9.rE-ºJ,!ça.\ll.tnum sentido ~ . c n i ç º  muito ª " r ~ i < : l , l l ª r e,j u . s t a m e n t e ; n ã o Ç l ~ s i g i j ~ ~

',~ ~ _ ~ º i t 9 ;  

o pr6prlú"tlii:iloCleum de seus livros, lesMots1\

j!et les Choses, é irônico)2o.

Se dissiparmos esse erros, prova velmente inevitáveis) 2), descobrire mos, nessepensamento difícil, algo muito simples e muito novo, que só pode encher desatisfação o historiador, e com o que ele se sente, imediatamente, à vontade: é oque esperava e que já fazia confusamente; Foucault é o historiador acabado, oremate da história. Esse filósofo é um dos grandes historiadores de nossa época, eninguém duvida disso, mas poderia, também, ser o autor da revolução científicaatrás da qual andavam todos Os historiadores. Positivistas, nominalistas, pluralistase inimigos das palavras' em ismo, nós o somos, todos: ele é o primeiro a sê-locompletamente,   O p r i ~ " e i r o " ~ . i ~ t ~ r i é 3 . d ( ) t ~ _ a s ~ r ~ o I ? f > l " e ~ m e n t e   positivista.

'1 ;1

Meu primeiro dever será. pois, falar mais como historiador do que comofilósofo - tenho razões para isso. Meu segund o e último de ver será falar mediante

exemplos; tomarei um, que não é meu, do qual tirarei todos os meus raciocínios:será à explicação da suspensão dos combates de gladiadores, corno a viu GeorgesVille e corno a veremos, brevemente, em seu importante livro póstumo sobre agladiatura romana,

:ll:. /.-: ntuição n i ~ i a l  de ~ o u c a u l t  não é à estrutura, nem o corte, nem .odiscurso: éla raridade, no sentido latino dessa palavra; os fatos humanos são raros, não estão<nstalados na l e n i t ~ d e     r a z ã ~ ,   há um ~ a z i b     torno ,delespara outro s fatos que

  o nosso saber riem Imagma; pOIS o que e poderia ser diferente; os fatos humanos

'são arbitrários, nO sentido de Mauss, não são óbvios, no entanto parecem tão

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153oucault RevoluCiona à. História  Paul Marie Veyne

evidentes aos olho s dos contemporâneos e mesmo de seus historiadores que nem

uns ne m outros sequer os percebem. Não falemos mais sobre isso por enquanto epassemos aos fatos. É um a longa história que, graças a meu amigo Georges Ville,vamos ouvir: a da suspensão dos combates de gladiadores.

Esses combates foram terminando pouco a pouco, ou melhor, intermitentemente, durante todo o século IV de nossa era, quando reinavam os imperadores

cristãos. Por qu e essa suspensão e por que nesse momento? A resposta pareceevidente: essas atroc idades cessar am devido ao cristianismo. Pois, muito bem, nãoé nada disso: do mesmo modo que a escravidão, a gladiatura não deve seudesaparecimento aos cristãos; esses só reprovaram a gladiatura dentro dacondenação geral a todos os espetáculos, que desviam a alma do pensamento dasalvação que deve ser o único; dentre os espetáculos, o teatro, com todas suasindecências, sempre lhes pareceu mais condenável do que a gladiatura: enquanto

o prazer de ver correr o sangue encerra em si seu fim, o prazer das indecênciasapresentadas em cena leva os espectadores a viverem, em seguida, lascivamente,fora do teatro. A explicação deve, então, ser procurada nu m humanitarismo que

seria, mais do que cristão, amplamente humano, ou numa sabedoria pagã?Também não é isso; o humanitarismo só existe em uma pequena minoria depessoas Com nervos fracos (em todos os tempos, a multidão sempre se precipitoupara assistir aos suplícios, e Nietzsche escreveu frases de pensador de gabinete

sobre a sã selvageria dos povos fortes); esse humanitarismo é muito facilmenteconfundido com um sentimento um pouco diferente, a prudência: antes deadotar, com entusiasmo, a gladiatura romana, os gregos, inicialmente, temeram

sua crueldade, que apresentava o risco de habituar as populações à violência; domesmo modo, tememos qu e as cenas de v iolência da televisão aumentem a taxa de ~ ' t o  

criminalidade. Não era exatamente o mesmo que lamentar a sorte dos próprios

gladiadores. Quanto aos sábios, pagãos e também cristãos, esses julgam que oespetáculo sangrento dos combates mancham a alma dos espectadores (tal é osentido das famosas condenações que a eles fazem Sêneca e Santo Agostinho); mas,um a coisa é condenar os filmes pornogr áficos porque são imorais e mancham aalma do público, e outra, condená-los porque transformam em objetos as pessoashumanas que são os seus ateres.

Os gladiadores tinham, na Antiguidade, precisamente, a reputação ambívalente das vedetes do cinema pornô: quando não fascinavam como vedetes dearena, causavam horror, porque esses voluntários da morte lúdica eram, aomesmo tempo, assassinos, VÍtimas, candidatos ao suicídio e futuros cadáveresambulantes. Eram considerados impuros pelos mesmos motivos que as prostitutas: estas e àqueles são focos de infecção no interior das cidades, é imoralfreqüentá-los porque são sujos, só devem ser tocados com pinças. Isso se explica:na grande maioria da população, a gladiatura provocava, assim como O carrasco,sentimentos ambivalentes, atração e prudente repulsa; de um lado, havia o gostoem ver sofrer, o fascínio da morte, o prazerde ver cadáveres, e, de outro, a angústia

; } ~ '  

de ver que, no próprio seio da paz pública, assassínios legais são cometidos e qu e

não são assassínios de inimigos nem de criminosos: o estado de sociedade não

mais defende contra a lei da selva. Em muitas civilizações, esse medo políticoprevaleceu sobre a atração: é a ele qu e se deve a suspe nsão dos sacrificios humanos.

Ao contrário,.em Roma, a atração levou a melhor e foi assim que se instalou essainstituição dos gladiadores que é única na história universal; a mistura de horror ede atração acabou por levará solução de injuriar esses mesmos gladiadores que

eram aclamados como vedetes e de considerá-los impuros como o sangue, oesperma e os cadáveres. Essa solução permitia que se assistisse aos combates esuplícios da arena na mais completa paz de consciência: as cenas mais horrorosasda arena eram um dos motivos favoritos dos "objetos de arte" que decoravam ointerior das casas particulares.

Mas, o mais espantos o não é essa inesperada falta de humanitarismo, mas sim,qu e essa inocência na atrocidad e era legítima, e até legal, e até mesmo organizada

pelos poderes públicos; o soberano, garantia do estado de sociedade contra oestado de natureza, era, ele próprio, o organizador desses assassinatos lúdicos em

plena paz públ ica e, nos anfiteatros, os arbitrava e os presidia. Tanto assim que

os poetas da corte, para lisonjear o senho r, o felicitavam pela divertida ingeniosidade dos suplícios que organizara para o prazer de todos (voluptas, laetitia). O

problema, portanto, não é o horror, ainda que legal, pois, em outros séculos, amultidão se precipitava aos autos-da-fé que,. freqüentemente, eram presididospelos reis cristãos: o horror está em queesse horror público não é ~ I } ~ Q l : > ~ r t o   por

nenhum pretexto. 6 s ã ü t o s ; ; â ~ f e : - f i ã õ - eraiii'âiversâO";"se urnl;ajuladorirvesse"

'felicitado 'urrrreíde Espanha ou de França po r ter proporcionado essa voluptas aseus súditos, teria atentado contra a majestade do rei, contra a dignidade dajustiça

e de seus castigos.

Nessas condições, a suspensão dos combates de gladiadores no século dosimperadores cristãos parece ser um mistério impenetrável; o que é que inverteu àambivalência e fez com que o horror sobrepujasse a atração? Não pode ter sidone m a sabedoria pagã. nem a doutrina cristã. ne m o humanitarismo. Seria porque

o poder político se tetia humanizado ou cristianizado? Mas os imperadores cristãos

não eram humanitarista s profissionais, e seus predecessores pagã os não eram, demaneira alguma, inumanos: eles proibiram os sacrifícios humanos entre seussúditos celtas e cartagineses, assim como os ingleses proibiram a cremação das

viúvas na índia. O próprio Nero não era o sádico que se crê, Vespasiano e MarcoAurélio. não eram Hitler. Se foi po r cristianismo que os imperadores cristãosacabaram, pouco a pouco, com a gladiatura, fizeram demais ou muito pouco: oscristãos não pediam tanto e teriam desejado, sobretudo, a interdição do teatro; ora,precisamente, o teatro permaneceu mais vivo do que nunca, com todas as suasindecências, e se tornará muito popular em Bizâncio, Será que a Roma pagã era

uma" sociedade de espetáculo" onde o Poder oferecia Circo e gladiadores ao povopor razões de alta política? Essa tautologia bombásticanãoê um a explicação, tanto

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do caminho, dos maus instintos dos animais, de sua fraqueza, de sua covardia. A

pauladas, se fo r preciso, qu e aplicaremos pessoalmente: espancam-se os animais;

não se lhes administra justiça em toda sua majestade. Esse rebanho é o povo

romano e nós somos seus senadores; não somos seus proprietários porque Roma

nunca foi um a propriedade territorial com um a fauna humana a ela subme tida: ela

nasceu corno coletividade de homens, como cidade; quanto a nós, tomamos a

direção desse rebanho humano, pois sabemos melhor do que ele aquilo de que

precisa, e, para exercer nossa missão, nos fazemos proceder por "Iictores" quecarregam "fasees" de cnutes, para chicotear os animais que provocam desordem

no rebanho ou que dele se afastam, pois a soberania e as mesquinhas funções

policiais não se diferenciam por algum tipo de grau de dignidade."

"Nossa politica limita-se a conservar o rebanho na sua marcha histórica;

quanto ao resto, sabemos muito bem que os animais são animais. Tentamos não

abandonar pelo caminho muitos animais famintos, pois isso desfalcaria o

rebanho: se preciso, lhes damos de comer. Damo-lhes, também, o Circo e os

gladiadores, de qu e tanto gostam, pois os animais não são nem morais, ne m

imorais: são o que são, não nos preocupamos em recusar o sangue dos gladiadores

ao povo romano, assim como um pastor de rebanho ovino ou bovino não se

lembraria de vigiar os coitos de seus animais para impedir as uniões incestuosas.

Nu m único ponto, que não é a moralidade dos animais, somos impiedosos: em

sua energia. Não queremos que o rebanho enfraqueça, pois seria a sua perda e anossa; po r exemplo, lhe recusamos um espetáculo público debilítantê., a

"pantomima", que os modernos chamariam ópera. Julgamos, em compensação,

Com Cícero e o senador Plínio, que os combates de gladiadores são a melhor escola

para enrijecer os espectadores. Certamente, alguns não suportam esse espetác ulo e

o consideram cruel; mas, instintivamente, nossa simpatia de pastores vai para os

animais duros, fones, insensíveis: é graças a eles que o rebanho resiste. Portanto,

entre os dois pólos do sentimento ambivalente que suscita a gladiatura, não

hesitamos em da r a vitória à atração sádica de preferên cia à repulsa amedrontada e

fazemos da gladiatura um espetáculo aprovado e organizado pelo Estado."

Isso é o qu e poderia ter dito um senador romano ou um imperador romano

dos séculos pagãos. Sem dúvida, se eu tivesse ouvido há mais tempo essa

linguagem, teria escrito diferentemente me u livro sobre o pão e o Circo; às avessas.

Mas voltemos a nosso assunto. Se, em vez de carneiros, nos tivessem confiado

crianças, se nossa prática tivesse objetivado um povo-criança e nos tivesse

objetivado, nós próprios, como reis paternais, nosso comportamento teria sido

inteiramente outro: teríamos levado em consideração esse pobre povo e dado

razão à medrosa recusa de gladiatura; teríamos sido indulgentes com o seu terror

de ver O assassinato imerecido instalar-se no seio da paz pública. "A seita cristã",

teríamos podido acrescentar, "haveria de querer que fizéssemos ainda mais: qu e

fôssemos reis-sacerdotes e não reis-pais e que, longe de mimar crianças,

considerássemos nossos súditos como almas que deveriam ser energicamente

Foucault Revoluciona a História

guiadas pelos estreitos caminhos da virtude, e salvas, ainda que contra sua

vontade; os cristãos gostariam, também', que proibíssemos o teatro e todos os

outros espetáculos. Mas sabemos muito be m que é preciso que as crianças se

;1l divirtam. Para sectários como os cristãos, a nudez é mais ofensiva do que o sangue

dos gladiadores. Mas nós, nós vemos as coisas de um modo mais imperial e

consideramos, com a multidão das pessoas comuns e de acordo com a opinião de

todos os povos, qu e o assassinato gratuito é o que existe de mais grave".

Que derrocada da filosofia política racionalizadora! Quanto vazio ao redor

desses bibelõs raros e de época, quanto espaço entre eles para outras objetivações

ainda não imaginadas! Pois a lista das objetivações permanece aberta, diferente

mente dos objetos naturais. Mas tranqüilizemos logo o leitor, qu e deve perguntar

se por que a prática "guia do rebanho" foi substituída pela prática "mimar

crianças". Pelas razões as mais positivas, as mais históricas e quase as mais

materialistas do mundo: exatamente pelo mesmo tipo de razões que explica

qualquer acontecimento. Uma dessas razões, no caso, foi qu e no século IV, em que

se tornaram cristãos, os imperadores deixaram, também, de governar po r meio da

classe senatorial; digamos, em poucas palavras, qu e o Senado romano não se

parecia com nossos Senados, Câmaras ou Assembléias; era um tipo de coisa qu e

não conhecemos: um a Academia, mas de politica, um Conservatório das artes

politicas. Para compreender que transformação foi governar sem o Senado,i i i imagine-se uma literatura que tivesse estado sempre submetida a um a Academia e

que, bruscamente, não mais o estivesse, ou então, suponha-se qu e a moderna vida

intelectual ou científica deixasse de repousar sobre, ou sob, a Universidade. O

Senado fazia questão de conservar os gladiadores como a Academia francesa

conserva a ortografia: porque seu interesse, como instituição, era ser conserva

dora. Livre do Senado, administrando por meio du m corpo de simples funcio

nários, o imperador deixa de exercei' o papel de chefe dos guias do rebanho:

assume um dos papéis qu e se oferecem aos verdadeiros monarcas, pais,

sacerdotes,etc E é tambémpor issoque se fsz cristão.Não foio aistianismo que fezcom

que os imperadores adorassem uma prática paternal, que resultou na proibição dos ,

gladiadores,   o. , c o n ~ u n t ?   da história d e s a p a r e c ~ m e n t o dO. Senado, .nova ética \\do corpo qu e nao e um brinquedo, assunto que nao posso tratar aqui, etc.) qu e \

' , ~ e v o u   a uma mudança de práti.ca política, com d u a ~   c o n s e ~ ü ê n c i a s   ~ m e a ~ :   osImperadores tomaram-se, muito naturalmente, cristãos,   que paternaIs, e

acabaram com a gladiatura, já que paternais.

Vê-se o método seguido: consiste em descrever, muito positivamente, o que

um imperador paternal faz, o que faz um chefe-guia, e em nãopressupor nadamais;

em não pressupor qu e existe um alvo, um objeto, um a causa material (os

governados eternos, a relação de produção, o Estado eterno), um tipo de conduta

(a politica, a despolitização). Julgar as pessoas por seus a ~ _ . e   eliminar os eternos

fantasmas que a linguagem suscitaem nós, A r á t i ~ o  é um a instância misteriosa,

um subsolo da história, um motor oculto':'ê'ó queTiZem-as"pessoas (a palavra._ - -_ .._ " . . " ' - ", ",-,_.._-'-'" . - ' ~ " " - - ' - _ -'. - :, --".

 

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aul Marie Veyne

signiflçªexatameIge - g ' : ! ~ _ ~ i ~ ) .  Se a prátic a está, em certo sentido, "escondida", ese podemos, provisoriamentechamá-la "parte oculta do iceberg", é simplesmente

porque ela partilha da sorte da quase-totalidade de nossos comportamentos eda

história universal: temos, freqüenternente, consciência deles, ma s não temos oconceito para eles. Do mesmo modo, quando falo, sei, geralmente, que falo e que

nã o estou em estado de hipnose; entretanto, não tenho a concepção da gramática

qu e aplico intuitivamente; acredito exprimir-me naturalmente para dizer o qu e épreciso; não estou consciente de qu e aplico regras estritas. Assim também, ogoverno que distribui pão gratuitamente a seu rebanho ou que lhe recusagladiadores acredita fazer o que se impõe a todo governante, com relação aosgovernados, pela própria natureza da política; ele não sabe que sua prática. se aobservamos tal qual é, se conforma a um a certa gramática; qu e é um a certapolítica. do mesmo modo que, acreditando falar sem pressuposto, para dizer oque se impõe e que nos causa pesar, s6 rompemos o silêncio para f31M em uma certalíngua, o francês ou a lingua latina.

Julgar as pessoas po r seus atos não é julgá-las por suas ideologias; é, também,

/ não as julgar a partir de grandes noções eternas, os governados, o Estado, a" liberdade, a essência da política, qu e banalizam e tornam anacrõnica a originali

\dade das práticas sucessivas. Com efeito, se tenho a infelicidade de dizer: "frente

ao imperador, havia osgovernados", quando constatar que o imperador dava a essesgovernados pão e gladiadores e me perguntar po r quê, ? ~ c l u i r e i qu e era por uma\ razão não menos eterna: fazer-se obedecer, ou despolitizar, ou fazer-se amar.

Efetivamente, temos o costume de raciocinar em função de um alvo ou a partirde um a matéria. Por exemplo, eu acreditei e escrevi, erradamente, que o pão e oCirco tinham a finalidade de estabelecer um a relação entre governados egovernantes ou respondiam ao desafio objetivo qu e eram os governados. Mas, seos governados são sempre Os mesmos, se têm os reflexos naturais de todo

governado, se têm, naturalmente, necessidade de pão e de Circo, ou de se fazeremdespolitizar, ou de se sentirem amados pelo Mestre, po r que, s6 em Roma, elesreceberam pão, Circo e amor? Portanto, é preciso inverter os termos doenunciado: para qu e os governados sejam percebidos pelo Mestre unicamente

corno objetos que devem ser despolitizados, amados ou conduzidos ao Circo, épreciso que tenham sido objetivados como povo-rebanho; para qu e o Mestre s6seja percebido como devendo fazer-se popularjunto ao seu rebanho, é r e ~ i s o   que

tenha sido objetivado como guia e não como rei-pai ou rei-sacerdote. São essasobjetivações, correlatos de um a certa prática política. que explicam o pão e oCirco, qu e não se chegará nunca a explicar partindo dos governados eternos, dosgovernantes eternos e da relação eterna de obediência ou de despolitização que osliga. pois essas chaves entram em todas as fechaduras. Elas não abrirão Jamais acompreensão para um fenômeno tão particular, tão precisamente datado, quanto

o é o pão e o Circo, a não ser que se multipliquem as especificações, Os acidenteshistóricos e as influências ideológicas, ao custo de um enorme palavr6rio.

Foucault Revoluciona a História

Os objetos parecem determinar nossa conduta, mas, primeiramente, nossa

prática determina esses objetos. Portanto, partamos, antes, dessa própria prática.de tal modo que o objeto ao qual ela se aplique só seja o que é relativamente a ela

(no sentido em que um "beneficiário" é beneficiário porque o faço beneficiar-sede alguma coisa, e em que, se guio alguém, esse alguém é o guiado). A relaçãodeter mina o objeto..e s6 existe o que é determinado. O governado, isso é muito vago enão existe; o que existe é um povo-rebanho, depois um povo-criança qu e se mima:

o que não é senão um outro modo de dizer que, em uma época, as práticasobserváveis eram as de guiar, em um a outra. as de amimar (assim como ser guiado

não é senão uma maneira de dizer que, no momento, alguém guia você: não se éum guiado, a não ser que se tenha um guia). O o b j e t ~ , _ ~ ~ O _   é senão o o r r e l ~ ~ ~ _ ~ ~ _  prática; não existe, antes dela. um governadoeternoque sevisaria ffiálsou menos

bem e com relação ao qual se modificaria ap()ntaúa para melhorar o tiro. Opríncipe que trata seu povo como crianças ne m sequer imagina qu e se poderia

fazer diferentemente: faz o que lhe parece evidente, sendo as coisas o que são. Ogovernado eterno não vai além do que o que se faz dele, não existe fora da práticaque se lhe aplica, sua existência. se há existência, não se traduz po r nada de efetivo(o povo-rebanho não tinha a Previdência Social, e ninguém imaginava lhe da r talcoisa e nem sentia remorsos por não o fazer). Um a noção qu e não se traduz em

nada de efetivo não passa de uma palavra.

Essa palavra s6 tem existência ideológica. ou antes, idealista. Consideremos,

po r exemplo, o guia do rebanho: ele distribui pão gratuito aos animais pelos quais

é responsável, porque sua missão é conduzir o rebanho inteiro a porto seguro enão semear com cadáveres de animais famintos o caminho atrás dele: o rebanho

desfalcado não mais poderia se defender contra os lobos. Essa é a prática real, talcomo se deduz dos fatos (e, em particular, dó seguinte fato: o pão gratuito era dado

não aos escravos,miseráveis, mas somente aos cidadãos). Acontece que a ideologiainterpretava de maneira vaga e nobre essa práticacruelmente precisa: exaltava-se oSenado proclamando que ele era o pai do povo e que queria o bem dos

governados. Mas essa mesma banalidade ideológica é repetida a propósito de

práticas muito diferentes: o soberano que se apossou de um lago piscoso qu e

explora em proveito próprio, quando levanta o imposto é considerado também,

ele, como um pai que faz a felicidade de seus súditos, enquanto, na realidade, eleos deixa arranjarem-se com a natureza e as estações, boas ou más. E é ainda um

outro benfeitor de seus súditos o fiscal das Águas e Florestas qu e administra osfluxos naturais, não pelos beneficias fiscais que pode extrair dai, mas pela boa

gestão da própria natureza cujo comando ele assumiu. Começamos a compreen

de r o que é um a ideologia: um estilo nobre e vago, próprio a idealizar as práticassob pretexto de descrevê-las; é um amplo drapeado, que dissimula os contornos

'!II desconchavados e diferentes das práticas reais que se sucedem.

Mas cada prática, ela própria. com seus contornos inimitáveis, de onde vem?Mas, das mudanças históricas, muito simplesmente, das mil transformações da

realidade histórica, isto é, do resto da história, como todas as coisas. Foucault não

·Cf1

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160 161aul Marie Veyne

descobriu um a nova instância. chamada "prática", qu e era. até então, desconhecida: ele se esfor ça para ver a prática tal qualérealmente; não fala de coisa dife ren te daqual fala todo historiador, a saber, do que fazem as pessoas: simplesmente Foucault

'tenta falar sobre isso de um a maneiraexata, descrever seus contornos pontiagudos,em vez de usar termos vagos e nobres. Ele não diz: "Descobri um a espécie deinconsciente da história. um a instância preconceptual, a que chamo prática oudiscurso, e que dá a verdadeira explicação da história. Ah, sim! mas, então, como

vou rue arranjar para explicar essa própria prática e suas transformações?" Não;ele fala sobre o mesmo que nós, ou seja, po r exemplo, da conduta prática de umgoverno; somente a mostra como é verdadeiramente, arrancando-lhe a vestedrapeada. Nada é mais injustificável do que acusá-lo de red uzir nossa história a umprocesso intelectual tão implacável quanto irresponsável. COntudo, compreende

se facilmente porque essa filosofia é difícil para nós. ela n ã . 9 . _ ~ ~ ~ s ~ m ~ l h . a ! l ~ ! f i , ' ! M ª I ? ' º ~ t J . )   a ) ; ) · ~ ~ ~ .   A prática não é um a instância (como o Id freudiano) nem um

primeiromotor (como a relação de produção ), e, aliás, não há em Foucault nem

instância riem primeiro motor (há, em contrapartida. urna matéria. como

veremos). É por isso qu e não há inconveniente grave em denominar essa prática de"parte oculta do iceberg", para dizer que ela só se apresenta à nossa visãoespontânea sob amplos drapeados e que é grandemente preconceptual; pois aparte escondida de um iceberg nã o é um a instância diferente da parte emersa: é de

gelo, como esta, também não é o motor que faz movimentar-se o iceberg; está,

abaixo da linha de visibilidade, e isso é tudo . Ela se explica do mesmo modo que oresto do iceberg. Tudo o que Foucault diz aos historiadores é o seguinte: "Vocêspodem continuar a explicar a história como sempre o fizeram: somente, atenção:

, se observarem com exatidão, despojando os esboços, verificarão que existem mais\ \ coisas que devem ser explicadas do que vocês pensavam; existem contornos

bizarros que não eram percebidos".

i

Se o historiador ocupa-se não do que fazem as pessoas, mas do que i

dizem, o método a ser seguido será o mesmo; a palavra discurso ocorre tãonaturalmente para designar o qu e é dito quanto o termo prática para designar oqu e é praticado. Fóucault não revela um discurso misterioso, diferentedaquele que todos nós temos ouvido: unicamente, ele nos convida a observarmos,com exatidão, Oque assim é dito. O r a , ~ s ~ ª 5 > l : > s e r v a ç ã o   prova que a zona do que édito apresenta preconceitos, reticências, saliências e reentrâncias'inesperadas ,ºj;i

'"que os locutores não estão, de maneira nenhuma. conscientes. Se se prefere, há, sob "o discurso consciente, um a gramática, determinada pelas práticas e gramáticasvizinhas, que.a observação atenta do d i s c ~ r s ~   r e v ~ l a .   se consentimos em retirar os 11

) amplos planejarnentos qu e se chamam Ciência, Filosofia, etc. Do mesmo modo, o ,

príncipeacredita governar, na realidade, ele administra fluxos, Ouamimacrianças,"

ou guia o rebanho. Então,--Yeffios-queodisClJI:SÓ não é nem semântica, nem

ideologia, nem implícito, Longe de nos convidará julgar 'as coisas a parclrdasi

palavras, Foucault mostra, p e ~ º s _ º - ~ l < ? ! _ , 9 ~ e as P ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ I 1 : ~ " - ? - ,   que nOS_c!

fazem acreditarnaexistência de coisas, de objetoS-'ilatutais, govern ados oiiEstaaó, ';- .. . . . "- ... _._._. -,. _ .._-  

"ir-'

Foucault Revoluciona a História

enquanto essas coisas não passam de correlato das práticas correspondentes, pois asemântica é a encarnação da ilusão idealista. Eodíscurso também não é aideologia: seria quase o contrário; ele é o qu e é realmente dito, sem que oslocutores o saibam: esses crêem falar de maneira ampla e livre, enquanto ignoram

qu e dizem coisas acanhadas, limitadas por um a gramática imprópria ; a ideologia,essa. é be m mais livre e ampla; e com razão: é racionalização, idealização; é um

amplo planejamento. O príncipe quer e acredita fazer tudo o que é preciso, as

coisas sendo o que são; na realidade, ele procede, sem que o saiba, como dono dolagocheio de peixes; e a ideologia o exalta como o Bom Pastor. Enfim, o discurso ou suagramática oculta não são o implícito; não estão logicamente contidos no que é dito

ou efeito, não constituem sua axiomática ou pressuposto, pelo fato de que, o qu e édito ou feito, tem um a gramática casual e não um a gramática lógica, c oerente,perfeita. Sãoos acasosda história.as saliências e reentrân.cias das práticasvizinhas e desuastransformações qu e fazem com que a gramática políticade um a época consista em

amimar crianças ou, então, a administrar os fluxos: não é um a Razão que edificaum sistema coerente. A história não é a utopia: as políticas não desenvolvem,

1; sistematicamente, grandes princípios ("a cada um de acordo .corn suas necessida.1\ des", "tudo para o povo e nada po r ele"); são as criações da história e não as da

Iconsciência ou da razão.

o que é, então, essa gramática imersa qu e Foucault deseja que percebamos?Por que a nossa consciência e a dos próprios agentes a ignoram? Por qu e arechaçam? Não, mas porque ela é preconceptual, A consciência não tem como

função fazer-nos apreender o mundo, mas sim permitir-nos que nos dirijamosneste mundo; um rei não tem que conceber o que ele próprio e sua prática são:basta que o sejam. Ele tem que estar ciente dos acontecimentos que se produzem

no seu reino; isso lhe será suficiente para qu e se conduza em função daquilo que

ele é sem o saber. Não tem que saber, conceptualmente, que administra fluxos: ofará de qualquer modo; basta-lhe a consciência de ser o rei, sem qualquer outra

precisão. O leão também nã o tem que se saber leão para comportar-se como leão:tem, simplesmente, que saber onde está sua presa.

Para o leão, é tão tranqüilo o fato de que é leão, que ele ignora que é leão; do

mesmo modo, o rei que amima seu povo ou o que administra fluxos não sabem oqu e são; eles têm, certamente, consciência do que fazem, não assinam decretos em

estado de sonambulismo; têm a "mentalidade" que corresponde a seus atos"materiais", ou melhor, a distinção é absurda: quando se tem um a conduta, remse, necessariamente, a mentalidade correspondente; essas duas coisas estão ligadase compõem a prática, do mesmo m o d 0 9 l 1 ~ _ t ~ r r ~ e d o   e tremer, estar feliz «: riràs ( ~ ~ ( - - '  

_ ~ ~ : - ~ : ~ ~ ~ i ~ ~ _ ; ~ ; ; ; : . ~ ~ ~ , ~ ~ e ~ ~ ~ ~ .. e : a ~ ~ C ~ ~ ~ ~ ; ~ ~ ~ ? ) ~ 1 1 e ~ f a 1 : ~ i ~ ~ : s P a f r ~ ~ ~ ~ >  produzir, são necessários homérísêrnáquínas, é preciso que esses homens tenham

consciência do que fazem; em vez de dormitar, é preciso que se representem certasregras técnicas ou sociais e é preciso que. tenham a mentalidade ou ideologia

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16362 Paul Marie Veyne

adequada, e o todo constitui uma prática. Porém, eles não sabem o que é essaprática: ela" se impõe" a eles, como para o rei e o leão, que não se imaginam o que

são.

Mais precisamente, eles nem sequer sabem que não sabem (tal é o sentido de"impor-se"), assimComo um chofer que nãovê quenão vê, se a chuva vem juntar-seà

noite; pois, nesse caso, não somente não vê nada além do alcance de seus faróis,mas, além disso, 'não mais distingue nitidamente a linha terminal da zona

iluminada, de tal modo que não vê mais até onde vê, e que corre demais para um

limite que ignora. É, certamente, uma coisa be m curiosa, bem digna da atenção dosfilósofos, essa capacidade queos h ~ m ~ n s t ~ ~ < : l . ~ j g p , - º r ª r s e u s J i m i t e s 1 , ~ ~ a f a l t a de

densidade,de não ver qu e há um vazio em torno deles, de seacreditarem, a cada ~ ~ , L  \ ' instalados na plenitude da razão. Talvez sejaesseo sentido da ldêia de Nietzsche

(mas não me gabo de compreender esse difícil. pensador), que a consciência éunicamente reativa. O rei exerce, por "vontade de poder", o oficio de rei: atualizaàs virtualidades de sua época h istórica, que lhe traçam, em pontilhado, a prática deguiar um rebanho ou, se o Senado desaparece, de amimar seu povo; isso se impõe

a ele, que nem sequer imagina que possa intervir de alguma maneira; ele acreditaqu e são as coisas qu e lhe ditam, dia-a-dia, sua conduta; nem sonha que as coisas'poderiam ser diferentes. Ignorando sua própria vontade de poder, que percebereificada em objetos naturais, ele só tem consciência de, suas reações, quer dizer,sabe o qu e faz quando reage aos acontecimentos tomando decisões, mas não sabequ e essas decisões de detalhe são função de uma certa prática real, do mesmo

modo que o leão decide COrIlO leão.

~  O método c o n s i g e ! ~ l 1 t ~ o , pata Foucault, e ~ _ c . . ( ) l ~ p ~ ~ ~ ' : l d ~ r queªs, c ( ) , i ~ ~ ~ " l 1 ã o  passam das objetivações de piâ.ticas determinadas, cujas dete rminaç ões devem ser"

I expostas à luz, já que aconsciência não as concebe, Esse esclarecimento, ao termõ'de um esforço de visão, é um a experiência original e até atraente, que podemos,em tom de brincadeira, chamar de "densifícação". O produto dessa operaçãointelectual é abstrata, e não sem motivo não é um a imagem em que se vêem reis,camponeses, monumentos, e também não é um a idéia aceita com a qual nossaconsciência está de tal modo habituada qu e nem percebe mais sua abstração.

Mas, o mais característico é o momento em que a densificação se produz; nãohá uma tomada de forma, pelo contrário: é, antes, como queum desprender. Num

:',,- \ momento, não havia nadà;-ailãoseruiiiã-granae'coi'sachái:a'qtlé se'd';srfnguia\J l vagamente, de tal modo evidente, e que se chamava "o " Poder ou "o " Estado;

i   i, quanto a nós, estávamos tentando manter de pé um fragmento de história em que

; J   e,sse grande núcleo translúcido representava um pequeno papel juntamente com!   nomes comuns e conjunções; mas isso não funcionava, alguma coisa não ia bem e; os falsos problemas verbais, do gênero "ideologia" ou "relação de produção",

esses, não se resolviam. Bruscamente, "realizamos" que todo mal vinha desse

Foucault Revoluciona a História

grande núcleo, com seu falso natural; que era preciso deixar de acreditar que eleera óbvio, mas reduzi-lo à comum condição, historicizá-Io. E então, no lugar

ocupado pelo g r a n d e , , ~ I J . ! J ? - - = - q u e - é - ó b v i o ,   a p a r ~ c : : e , um pequeno objeto 'de

"época", estranho, raro" exótico, jamais visto. Ao vê-lo, 'dedicamos, apesar detuàü;'31guris minutos a lamentar melancolicamente a condição humana, aspequeninas coisas inconscientes e absurdas que somos, as racionalizações que

fabricamos para nós próprios e de que o objeto parece zombar.

Durante esse breve instante, o fragmento de história colocou-se no lugar,sozinho, os falsos problemas desapareceram, as articulações encaixaram-se, todaselas; e, sobretudo, o fragmento parece ter-se virado pel o avesso, como um a roupa.Há pouco, estávamos na situação de Blaise Pascal, segurávamos firmemente as duasextremidades da cadeia histórica (a economiae a sociedade, os governantes e osgovernados, os interesses e as ideologias), e era no meio que começavam aconfusão: como fazer para que tudo isso se harmonize? Agora, o difícil seriaqu e não se harmonizasse: a "boa forma" está no meio e ganha rapidamente asextremidades do quadro. Pois, desde que historicizamos nosso falso objeto

natural, ele, agora, só é objeto para uma prática que.o objetiva; é a prát ica com oobjeto que ela se atribui qu e vem em primeiro lugar, é ela que é una: a infra

t): estrutura

e asuperestrutura,

o interesse e a ideologia,etc, não passam

de inúteis edesastrados cortes, operados numa prática que funcionava muito bem tal qual era

e q ~ e v o l t a   a fU,ncionar, o v a ~ e n t ~ ,   m ~ i t o   bem; é, na,verdade,   partir dela que asbordas do quadro se tornam inteligíveis. Então, por que a obstinação em cortá-laem dois troços? É que não viamos outro meio de nos safarmos da falsa situação em1  que nos tínhamos metido; por termos tomado O problema po r suas duas

jJ extremidades enão pelo meio, como diz Deleuze. Esse engano tinha sido tomar oobjeto da prática por um objeto natural, be m conhecido, sempre o mesmo,

material, quase: a coletividade, o Estado, a veia de loucura.

Esse objeto era dado de início (como con vém à matéria), e a prática reagia: ela"aceitava o desafio", construía sobre essa infra-estrutura. Desconhecíamos que

cada prática, tal como o conjunto da história a faz ser, engendra o objeto que lhe

corresponde, do mesmo modo que a pereira faz peras e a macieira maçãs; não háobjetos naturais, não há coisas. As coisas, os objetos não são senão os correlatos daspráticas. A ilusão do objeto natur al ("os governados através da história") dissimulao caráter heterogêneo das práticas (amimar crianças não é administrar fluxos); daitodas as confusões dualistas, dai, também, a ilusão de "escolha racional". Essaúltima ilusão existe, como veremos, sob duas formas que não se assemelham à

primeira vista: "A história da sexualidade é a de uma luta eterna entre o desejo e arepressão", é a primeira; a segunda: "Foucault é contra tudo, coloca no mesmo

saco o terrível suplicio de Damiens e o cativeiro, como se um a preferência não

pudesse racionalmente afirmar-se". Para alimentar essa dupla ilusão, nosso autor

é excessivamente positivista.

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16564 paul Marie Veyne

Pois, "o s governados", isso não é nem um, ne m múltiplo, assim como não o é"a repressão" (ou "suas diversas formas") ou "o Estado" (ou" suas formas na

\) i s . t ó ~ i a " ) ,   p e l ~ ,   simples r a ~ ã ~ , d e       ~ x ~ s t e ;   e x i s t ~ m :   u ~ i c a m e n t . - . múltiplas: objetivações ( população, fauna, sujeitos de direito ) correlacionadas e; práticas heterogêneas. Existe um grande número de objetivações, e isso é tudo: a'I relação dessa multiplici.dade de p r á ~ c a s     um a n i d ~ d e só se coloca se tentamos

emprestar-lhe uma unidade que nao existe; um relógio de ouro, um pedaço de

casca de limão e um texugo são, igualmente, um a multiplicidade e não parecemsofrer por não terem em comum ne m origem, nem objeto, ne m princípio. S ~ ' - - ' l ilusão de objeto natural cria a vaga impressão de um a unidade; quando a visiõ setorna embaciada, tudo parece assemelhar-se; fauna, população e sujeitos dedireito"pãrecérn a"mesma coisa. isto,é, os governados; aamúltiplaapráiicás

perdem-se de vista: são a parte imersa do iceberg, l';(ão há, bem entendido,) inconsciente, r ~ c < l l g u . ~ ,   artificio ideológico nem politica de avestruz I 1 0 · c ~ s 9 ; - h ª , . .\, somente, a eterna ilusão teleológica, a Idéia do Bem: tudo o que fazemos s . ~ r i ª , "tentativa de atingir um alvo ideal. .! .

Tudo gira em volta desse paradoxo, que é a tese central de Foucault, e a maisoriginal: oque é feito, o objeto, se explica pelo que foi o fazer em cada momento dahistória; enganamo-nos quando pensamos que o[azer, a prática. se explica a partirdo que é feito. Mostremos, primeiramente, de um a maneira um tanto abstratademais, como tudo resulta dessa tese central, e, em seguida, faremos o possível

I1 para trazer mais luzes.

"roda dificuldade vem da ilusão mediante a qual "reificamos" as objetivaçõesem um objeto natural: tomamos um ponto de chegada por um fim, tomamos olugar em que um projêtil vai, por acaso, se esborrachar por um alvo intencionalmente visado. Em vez de enfrentar o problema em seu verdadeiro cerne, que ê a ,"Ipràríca, partimos da extremidade, que é o objeto, de tal modo que as práticas ;1

sucessivas parecem reações a um mesmo objeto, "material" ou "racional", que

seria dado inicialmente. Então começam os falsos problemas dualistas, assimcomo os racionalismos. A prática, vista COmo uma resposta a um dado, nos deixacom dois pedaços de corrente que não mais conseguimos tornar a soldar: a práticaé resposta a um desafio, sim, mas o mesmo desafio não acarreta, sempre, a mesma

resposta; a infra-estrutura determina a superestrutura. sim, mas a superestrutura.por sua vez, reage, etc. Por falta de coisa melhor, acabamos po r amarrar as duaspontas da corrente com um pedaço de barbante chamado ideologia. E há, ainda,algo mais grave. Tomamos os pontos de impacto das práticas sucessivas por umobjeto preexistente que elas visavam, por um alvo; a Loucura ou o Bem público,através dos tempos, foram diferentemente visados, pelas sociedades, que sesucederam, cujas" atitudes" não eram as mesmas, de sorte. que atingiram o alvoem POntos diferentes. Não seja essa a dúvida: podemos conservar nosso otimismo enosso racionalismo, pois, essas práticas, po r diferentes que pareçam ser (oumelhor, por desiguais que tenham sido num esforço), não deixaram de ter uma

Foucault Revoluciona a H istórià

razão, a saber, o alvo, que não muda (só muda a "atitude" daquele que atira). Sesomos muitissimo otimistas, como já não o somos há bem um século, concluiremos, desse fato, que a humanidade faz progressos e que ela se aproxima cada vezmais do alvo. Se nosso otimismo se limita a ser mais indulgê ncia retrospectiva doque esperança, direm os que os homens exaurem, pouco a pouco, na sua história, atotalidade da verdade, que cada sociedade atinge um a parte do objetivo e ilustrauma virtualidade da condição humana.

Mas, quase sempre, somos otimistas à força: sabemos, muito bem, que aindulgência é raramente admissível e que as sociedades só são o que sãohistoricamente; por exemplo, sabemos que cada sociedade tem sua própria listado que chamamos as obrigações do Estado: umas querem gladiadores e, as outras,uma Previdência Social; sabemos muito bem que as diferentes civilizações têm"atitudes" diversas com relação à "loucura". Em suma, acreditamos, ao mesmo

tempo, que nenhum Estado se parece com um outro, mas qulo Estado é o Estado.Ou melhor, só acreditamos nesse Estado da boca para fora: pois, tornadosprudentes, não nos atreveríamos mais a fazer úma'lisra-ideàl'dasobrigaçõesdoEstado: sabemos muitíssimo bem que a história é mais inventiva do que nós e não

excluímos a possibilidade de um dia considerarmos o Estado responsável pelosmales do amor . Evitamos, pois, fazer um a lista teórica,' nos contentamos com um a

lista empírica e aberta: "registramos" as tarefas que o Estado se viu solicitado aexecutar em tal época. Em resumo, o Estado com suas obrigações nã o passa, para

nós, de um a palavra. e a fé otimista que temos nesse objeto natural não deve sermuito sincera, já que não age. O que não impede que a palavracontinue a nos fazeracreditar em uma coisa chamada Estado. Por mais que saibamos que esse Estadonão é um objeto sobre o qual pudéssemos fazer, de antemã o, investigação teórica ecujo devir nos permitiria fazer sua descoberta progressiva, nem por isso deixamosde nele fixar nossos olhos, em vez de tenta r descobrir, debai xo d' água. a prática, deque ele não é senão a projeção,

Isso não quer dizer que o nosso erro seja acreditar no Estado, quando sóexistiriam Estados: nosso erro é crer no Estado ou nos Estados, em vez de estudar

as práticas que projetam objetivaçõesque tomamos pelo Estado ou por variedadesdo Estado. Através do devir, irrompem práticas politicas diferentes que seprojetam, uma. em direção da Previdência Social, a outra, para os combates degladiadores; mas nós tomamos esse campo de explosões, onde estouram, emtodos os sentidos, engenhos de guerra. todos diferentes, por uma espécie deCOncurso de tiro. Então, nos amofinamos com a grande dispersão dos impactossobre o prete nso alvo; é a isso que chamamos problema do Único e do Múltiplo:"Esses impactos são tão dispersos! Um atinge os gladiadores e, o outro, aPrevidência Social. Partindo de um a tal dispersão, não chegaremos nunca adeterminar qual é a posição exata doobjetivo visado? Estamos, pelo menos,seguros de que todos os tiros tinham como mira exatàmenté esse mesmo alvo? Ah!o problema do Múltiplo é difícil, talvez seja insolúvel!" Sem dúvida, já que não

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Paul Marie Veyne

existe: esse problema desaparece quando deixamos de considerar determinações

extrínsecas como modalidades do Estado; desaparece quando deixamos de

acreditar na existência desse alvo que é o objeto natural.

~ _ ~ ~ _ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ o s , k ? i : , e s s _ ~   f l l ~ s o f i a  do 0 l : > j : ~ o   t O I l 1 a d o ~ o I l 1 ~ _ ~ _ ~ _ ? ~  .:omo causapor uma filosolia da relação e encaremos o p r Q l : > I ~ m a   pelo m e l O , p ~ ~ ' ! . p . I ~ ! l C a oupelo discurso.. Essa prática lánça as objetivações que lhe correspondemese

fundamenta nas realidades do momento, quer dizer, nas objetivações das práticas  \ vizinhas. Ou, m elhor dizendo, preenche ativamente o vazio que essas práticas

deixam, atualiz.a as virtualidades qu e estão prefiguradas no molde; se as práticas

vizinhas se transformam, se os limites do vazio se deslocam, se o Senado

  desaparece, e· se acontece que a ética do corpo passa a apresentar uma novajO   \1. saliência. a prática atualizará essas novas virtualidades e não será mais a mesma.

~ ~ . ~ !'"

Não é, então, em virtude de uma convicção sua ou por algum capricho qu e o

imperador, de guia de rebanho que era, se faz pai de um povo-criança; em uma

palavra, não é por ideologia.

Essa atualização (o vocabulário escolástico é be m cõmodo) é o que Santo

Agostinho chamava amor e de que fazia uma teleologia; como Spinoza, Deleuze

não faz nada parecido e a chama desejo, palavra qu e ocasionou o menosprezo

zombeteiro da parte dos" novos filósofos". Esse desejo é a coisa mais óbvia domundo, tanto que não se o percebe: é o correlato da reificação; passear é um

desejo, amimar um povo-criança também, dormir ou morrer igualmente. O

desejo é o fato de qu e os mecanismos giram, de que os encadeamentos funcionam,de que as virtualidades, ai compreendida a de dormir, se realizam, preferentementea não se realizarem; "todo encadeamento exprime e realiza um desejo cons

truindo o plano que o torna possível" (Deleuze-Parnet, Dialogues, p. 115). L'amorche

muoveiisole el'altre stelle. Que, por um acaso de nascimento, um certo bebê nasça no

quarto dó rei, como herdeiro do trono, e que, automaticamente, passe a interessar

se pelo ofício de rei, que ele não abandonaria por um império, ou melhor, que ele

sequer se coloque a questão de saber se quer ser rei; ele o é, eis tudo; é isso, o

desejo. O homem tem, então, tamanha necessidade de ser rei? Pergunta vã: o

homem tem um a "vontade de poder", de atualização, que é indeterminada: não é

a felicidade que busca; ele não tem um a lista de necessidades determinadas paraserem satisfeitas, depois do que se abandonaria ao repouso numa poltrona, em seu

quarto; ele é um animal atualizador e realiza as virtualidades de todo tipo que se

lhe apresentam: nondeficit abactuationepotentiae suae,diz São Tomásl 22 . Sem o que,

certamente, nunca aconteceria nada. Pois, qu e existência fantasmática seria a de

uma potencialidade não realizada. de um a virtualidade "e m estado selvagem"? 'O

qu e seria "materialmente" a loucura fora de um a prática que a faz ser loucura?

Ninguém diza si mesmo: "Com que, então, sou filho de imperador e não mais

existe Senado; mas, de ixemos isso e nos pergun temos, antes, como devemos tratar

os governados; pois bem! um a Crença, a ideol ogia cristã, me pa rece convincente

para isso", mas se encontra feito rei-pai, sem ter tido, nem mesmo, tempo para

Foucault Revoluciona a História

pensar nisso, é rei-pai, e.já que o é, comporta-se de acordo, "a s coisas sendo o que

são".

Atualização e causalidade são duas coisas bem diferentes e é po r isso que não

há ideologia nem crença. A crença na natureza paternal do poder real ou a

ideologia dos welfare State não podem agir sobre as consciências e, po r ela.influenciar a prática. já que é a própria prática qu e objetiva, antes de tudo, o rei-pai

e não o rei-sacerdote ou o guia. o povo-criança e não o povo que deve ser conduzidoà salvação eterna.. ou o rebanho. Ora. um soberano que "é" rei-pai e que se

encontra "objetivamente" diante de um povo-criança não pode deixar de saber o

que ele próprio é e o que é o seu povo, tem as idéias ou a mentalidade de sua

situação "objetiva", pois as pessoas pensam sobre sua prática. têm maior ou

menor consciência do que fazem. Sua prática, reforçada. eventualmente, pela

consciência que dela têm, enche o vazio deixado pelas práticas vizinhas e seexplica. conseqüentemente, a partir destas; não é sua consciência que explica sua

prática e que se explicaria ela própria a partir das condições vizinhas ou como

ideologia: ou como caso de crença, superstição. "Não é preciso passar pela

instância de um a consciência individual ou coletiva para apreender o ponto de

articulação de uma prática e de um a teoria; não é preciso procurar em qu e medida

essa consciência pode, por um lado, exprimir condições mudas e, po r outro,

mostrar-se sensível a verdades teóricas; não é necessário colocar-se o problemapsicológico de uma tomada de consciência," (L'Archéologie du savoir, P: 254).

A noção de ideologia não é senão um a confusão gerada por duas operações

be m inúteis: um corte e um a banalização. Em nome do materialismo, separa-se a

prática da c o ~ ~ ~ i ê n c i a ;   em nome do . 1 ? j ~ t ô - ! i . ~ u r 3 1 ;   não mais se vê um reí-pai":preêisamen-ie, umã:-gestãO--de fluxo --precisamente, mas, mais banalmente,_2

sempiterno governante ou o sempiterno governado. A partirdai, se está reduzido a

-fãieTprovifdã ideologia toda a precisão, todaapeculiaridade rara e datada da

prática; um rei-pai não será nada mais do que o eterno soberano, mas influenciado

por uma certa ideologia religiosa. a do caráte r paterno do poder real. O objeto

natural é diversificado pelas ideologias sucessivas. A gênese da noção de crença é

sensivelmente a mesma: atribui-se a alguma superstição o comportamento das

pessoas e, quando se afasta do caminho banal, essa superstição torna-se, elaprópria. incompreensível. E eis por que a mentalidade dos homens é primitiva.

Mas, se a mentalidade e a crença explicam a prática. fica por explicar o

inexplicável, isto é, a própria crença. Ficaremos reduzidos a constatar, lamenta

velmente, que, po r vezes, as pessoas crêem e, po r vezes, não crêem, que não as

fazemos acreditar em qualquer ideologia simplesmente pedindo-lhes isso e que,

po r outro lado, são be m capazes de acreditar em coisàs que, no plano da Crença,

são contraditórias entre elas, ainda que na prática se acomodem rrtuito bem. O

imperador romano pôde, ao mesmo tempo, oferecer espetáculos de gladiadores e

proibir, por humanismo, os sacrifícios humanos, o que o povo não pedia; essa

contradição não existe para um guia de rebanho, que tem coma prática dar, a seus

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animais, O qu e seus instintos pedem; um rei-pai, esse, parecerá contraditório deum a outra maneira: ele recusará, às crianças qu e não se comportarem bem, osgladiadores qu e desejam e fará perecerem, em meio a suplícios os mais terríveis, osv.is sedutores.

Em um a palavra Ou em cem, ideologia é coisa qu e não existe, a despeito dos

textos sagrados, e seria necessário qu e nos decidíssemos a nunca mais empregar

esse termo. Ele designa, algumas vezes, um a abstração, isto é, a significação deum a prática (é nesse sentido qu e acabamos de empregá-lo), outras vezes,realidades mais ou menos Iivrescas, doutrinas politicas, filosofias, at é religiões,quer dizer, práticas discursivas. No exemplo considerado, a ideologia será asignificação qu e se pode atribuir à doutrina do rei-pai, tal como os historiadores apodem explicitara partir das ações do rei: "As coisas sendo o qu e são", escreverãoeles, "e o povo não passando de um a criança, é preciso defendê-lo contra elepróprio, desviá-lo dos apetites sanguinários e dos maus costumes mediante

castigos exemplares, porém, depois de tê-lo repreendido publicamente e amea

çado com o qu e o espera". (Naturalmente, não se exclui a possibilidade de que orei, se ele tem senso de humor e o dom da expressão, esteja conscientede tudo isso,assim como os seus futuros historiadores, ma s o ponto não é esse). Aliás, existia,po r essa mesma época. um a ideologia, mas no segundo sentido da palavra, a saber,

a religião cristã; também ela condenava os maus pensamentos, mas tinha delesum a idéia um pouco diferente: as tentações da Carne pareciam-lhe mais perigosasdo que o sangue dos gladiadores.

POrmuito tempo, atribuiu-se à influênciaqu e a doutrina cristã exerciasobre asconsciências a .desaparição dos combates de gladiadores; essa desaparição sedeveu, na realidade, a um a transformação da prática política, que mudou designificação, as coisas não sendo mais "objetivamente" o que eram123 . Transformação essa qu e não passa pelas consciências; não se tem que persuadir o rei dequ e O povo é um a criança: ele o vê muito be m sozinho; em sua alma e consciência,ele deliberará, somente, sobre Osmeios e horas de amimar e de castígar essa criança.Percebe-se be m a diferença entre ideologia no sentido de doutrina e ideologia no

sentido de significação de um a prática, (A dita doutrina, aliás, tem, também ela,sua pane oculata do iceberg e corresponde a um a prática discursiva, ma s isso éoutro caso). Do mesmo modo, os historiadores discutiram sobre o agravamento

do direito penal no tempo dos imperadores cristãos, particularmente em matéria

de delitos sexuais: influência crista? Direito qu e se torna mais vulgar porque Oimperador é mais paternal com o seu povo, de modo que aplica, violentamente, oideal popular do talião e até meSIIlO o ultrapassa? A resposta correta deve ser asegunda.

Em todo caso, aí estão duas práticas heterogêneas: o povo-rebanho tinha um a

certa margem de liberdade sexual, e gladiadores eram sacrificados, o povo-criança

tinha um a liberdade sexual mais estreita. e os gladiadores não mais erar-

Foucault Revoluciona a História

sacrificados. Se medimos essas transformações pela escala dos valores, diremos

qu e o humanitarismo progrediu, que o direito regrediu e qu e a repressão seacentuou, e será verdade. Mas é um a constatação de medidas: não é a explicaçãodas transformações. O conjunto da história substituiu um bibelõ bizarro, o povocriança, po r um outro bibelõ, também bizarro, mas de um modo diferente; essecaleidoscópio não se assemelha às figuras sucessivas de um desenvolvimento

dialético, não se explica por um progresso da consciência, nem, aliás, por um

declínio, nem pelalutade dois prindpios, o Desejo e a Repressão: cada bibelô devesua forma bizarra ao lugar qu e lhe deixaram as práticas contemporâneas entre asquais se moldou. Os recortes dos diferentes bibelõs não têm nada de comparável:

não são jogos de armar em que um teria mais elementos do que o outro, mais

liberdades, menos repressão. A sexualidadeantiga, para falar dela, não era mais ou

menos repressiva, em seus princípios, que a dos cristãos, estava fundamentada nu m

outro prindpio: não a normalidade de reprodução, mas a atividade contra apassividade; recortava. pois, diferentemente, a hemofilia, para aceitar a homos

sexualidade masculina ativa, condenar a passiva, assim como a homo filiafeminina, e englobar na condenação a busca heterossexual do prazer feminino.

Q..uando Foucault parece colocar no mesmo pé de igualdade o espantoso

suplício de Darniens e as prisões menos desumanas dos filantropos do sécul o XIX,

não pretende que, se nos fosse dado escolher um século no qual reviver, nãoteríamos nossas preferências, cada época oferecendo atrativos e riscos tanto

diferentes quanto desiguais de acordo com o gosto pessoal de cada um; lembra,

somente, quatro verdades: qu e essa s u c e s _ ~ ã o _ ~ ~ __ h c e t c e ! : º g ~ n < : i d a d e s   não traça um

vetor de progresso; qu e Ó mOtor-dir-c31eidoscópio não a razão, o desejo ou aconsciência; que, p a r â f ã Z e ~ um a escolha racional, seria: preciso não preferir, ma s

poder comparar e, portanto, agregar (segundo qu e taxa de conversão?) atrátivos edesvantagens heterogêneas e medidas po r nossa escala subjetiva de valores; e,sobretudo, q t 1 ~ _ 1 ' J . ª 9 _ S e deve fabricarracionalismos racionalízadores e dissimular a

',Iheterogeneidade sob as reificações. No exerdcio da virtude da prudência, não se 

deve comparar dois icebergs, esquecendo a pane oculta de um deles no cálculo das

preferências, e também não se deve falsear a apreciação do possível, sustentando

que" as coisas são o qu e são", J ~ o i s ,   b : ! ~ . t a m e n t ~ ! _ ~ ~ 9 ! ~ ~ _ ~ ? i ~ ~ ~ : _ ~ ? e x i s t e m r á _ t : ! . ~ ~ ~ :  É essa a palavra-chave dessa nova metodologia da história, de preferência o"discurso" ou os cones epistemológicos, qu e retiveram mais a atenção do

público; a loucura não existe como objeto a não se r dentro de e mediante um a

prática, mas essa prática não é, ela própria, a loucura.

Isso provocou altos brados de protestos; contudo, a idéia de qu e a loucura não

existe é tranqüilamente positivista: a idéia de um a loucura, em se é qu e épuramente metafisica, se bem que familiar ao senso comum. E contudo... Sedissesse qu e aquele que come carne humana a come muito concretamente, teria,evidentemente, razão; ma s teria igualmente razão ao afirmar qu e esse antropófago

só seria um canibal devido a um contexto social, mediante um a prática qu e

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170 Paul Marie Veyne

"valoriza", objetiva um tal modo de nutrição para o considerar bárbaro ou, ao

contrário, sagrado e, em todo caso, para fazer dele a lguma coisa; aliás, em práticas

vizinhas, o mesmo antropófago terá um a outra objetivação: ele tem dois braços e

unia força de trabalho, ele tem um rei e é objetivado como membro do povocriança, ou, então , Como animal do reb anho. Retoma remos logo a discussão desse

tipo de problema, que, já uma vez, grassou tumultuosamente no meio parisiense,na margem esquerda do Sena; é verdade que , então, estava-se no século XIV. Te r

dado esse passo decisivo, a negação do objeto natu ral, confer e à obra de Foucaultsua estatura filosófica, na medida em que eu possa ser.juiz em tais assuntos.

Uma frase como "a s atitudes para com Os loucos variaram consideravelmenteatravés da históri a" é metafisica; é verbal represent ar-se urna loucuraque"existiriamaterialmente" fora de uma forma que a informa como loucura; no máximo,existem moléculas nervosas dispostas de uma determinada maneira., frases ougestos que um observador vindo de Sirius constataria serem diferentes dos dos outroshumanos, eles próprios diferentes ent re eles. Mas o que ai existe não é outra coisaque formas naturais, trajetórias no espaço, estruturas moleculares ou behaviour;

são matéria para uma loucura que ainda não existe nesse estádio. Para resumir, o

que oferece resistência nessa polêmi ca é que, qua se sempre, acr editan do discutir o

problema da existência material ou formal da loucura., pensa-se em um Outro

problema, mais interesseiro: tem-se razão em informar como loucura a matéria de

loucura, ou se deveria renunciar a um racionalismo da saúde mental?

Dizer que a loucura não existe não é afirmar que os loucos são vitimas deum preconceito e nem, aliás, negá-lo: o sentido da proposição é outro; ela não

afirma, assim Como não nega, que se deveria segregar Os loucos, ou que a loucura

existe porque fabricada pela sociedade, ou que é modificada em sua posi

tividade pela atitude que as diferentes sociedades têm para com ela., ou que asdiferentes sociedades conceptualízaram muito diferentemente a loucura; a

proposição também não nega que a loucura tenha um a matéria behaviorista e,talvez, corporal. Mas, ainda que a loucura tivesse essa matéria, não seria aindaloucura. Uma pedra de cantar ia s6 se torna fecho de abóboda ou cachorro quando

é colocada em seu lugar em uma estrutura. A negaçãodaloucura não se situa aonlvel das atitudes diante do objeto, mas ao desua objetivação; e l a j i à o : q ú e r : : ( l 1 z e r ~ ·  que ó é l o u c o a 9 1 1 , ~ 1 ~ , q 1 , 1 < : : ~ j ! l l g a d oc o n i o ' t i ( - m : a ~ q u e , à U m n l ~ e l q l l e n ã < ? _ ~ s >  consdênda;-úrtia ~ r t a  prática é i e c e s S á f i a ' p ã ~ ~ · q u e h à . j a s o m e n t e   um, b j ~ ~ º L ~ ~ .  Iouco", a ser considerado corno tal em toda consciência, ou para que a sociedade

possa "tornar louco". Negar a objetividade da loucura é um a questão de 'recÜo

Foucault Revoluciona a História 171

ou mal os animais; mas, para que o animal comece a perder sua objetivação, sãonecessárias, pelo me nos, as práticas de um iglu de esquimós, durante O longo sono

hibernal, simbiose dos homens e dos cães que misturam seu calor. Acontece que, em vinte e cinco séculos de história, as sociedades objetivaram de maneiras muito

diversas a coisa chamada demência., loucura ou insanidade, para que tenhamos O

direito de presumirque nenhum objeto natu ral se esconde atrás disso e de duvidar

do racionalismo da saúde mental. Aliás, é certo que, por exemplo, a sociedadepode tornar alguém louco, e, certamente, todos nós sabemos de casos assim: masnão é aesse tipo de coisas que se refere a frase "a loucura não existe". Ainda que seo repita ou se o insinue, essa frase de filósofo, cujo sentido seria instanta neamen te

I:compreendido pelos mestres par isienses do século XIV124, não traduz as opções ,Ii

ou as obsessões de seu autor. Se um leitor conclui, triunfalmente, de tudo isso, que, Irealmente, a loucura existe, talvez especulativamente, e que ele sempre haviapensado assim, isso é com ele. Para Foucault, como para Duns Scot, a matéria deloucura (behaviour, microbiolog ia nervosa) existe realmente, mas não como lou Iura; só ser louco materialmente é, precisamente, não o ser ainda. É preciso

" que um homem seja objetivado como louco para que o referente pré-discursivoli

apareça retrospectivamente como matéria de loucura; pois, por que o behaoiour e as

células nervosas de preferência às impressões digitais? II

Não se teria portanto razão em acusar esse pensador, que acredita que a I

matéria é um ato, de ser um idealista (no sentido popular do termo). Quando

mostrei a Foucault estas páginas, ele me disse mais ou menos o seguinte: "Nunca

escrevi pessoalmente a loucura não existe, mas isso pode ser escrito, pois, para  fenomenologia., a loucura existe, mas não é uma coisa, enquanto é preciso dizer,  pelo contrário, que a loucura não existe, mas que, po r isso, ela não deixa de ser I

IIalgo". Pode-se mesmo dizer que nada existe em história.,já que, ai, tudo depende

de tudo, como veremos, o que quer dizer que as coisas só existem material mente: '

existência sem rosto, ai nda não objetivada. Que a sexualidade, por exemplo, seja

prática e "discurso" não significa que os órgãos sexuais não existam, nem o que sechamava., antes de Freud, instinto sexual; tais "referentes pré-discursivos"

I

I,, iL'Archéologie du savoir, pp. 64-65) são os ancoradouros de uma prática., assim

como a importância ou o desaparecimento do .Senado romano. Mas não sãopretextos para racionalismo, e ai está o cerne da questão. O referente prédiscursivo nãoéum objeto natural, alvo para a teleologia: não há reto rno do recalque.Não existe nenhum "problema eterno" da loucura, considerada como um objeto

natural que, como desafio, tivesse provocado, através dos séculos, respostas

variadas. Não mais do que as diferenças das impressões digitais, as diferenças

histórico e não" de abertura para o outro"; modificar o modo de tratar e pensar os 'll1 moleculares não são a loucura; diferenças de comportamento e de raciocínio não o

loucos é urna coisa, o desaparecimento da objetivação "o louco" é outra e não são mais do que nossas diferenças de escrita ou de opiniões. O que em nós é

depende de nossa.vontade, ainda que revolucionária, mas supõe, evidentemente, matéria de loucura será matéria de qualquer outra coisa numa outra prática.Já que

uma metamorfose das práticas em cuja escala a palavra revolução 1 1 ~ 0   faz mais a loucura não é Un I objeto natural, não se pode discutir "racionalmente" sobre a

sentido. Os animais não têm mais existência do que os loucos e se pode tratar bem "verdadeira" atitude que. se deve "adorar" com relação a ela., pois o que

chamamos razão (e de que se ocupavam os fílosófos) não se destaca em fundo

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172 Paul Marie Veyne

/VOs-""

neutro e não se pronuncia sobre realidades: ela fala, a partir do "discurso'.' .que,

ignora, sobre objetivações que desconhece (e de que se poderiam o C . l ' ; p , ! ! : ª - C l . ' ! ~  que eram chamados historiadores). O que desloca as fronteiras da filosofia e da

história porque transforma o conteúdo de um a e de outra. Esse conteúdo é

modificado porque o que se compreendia po r verdade é modificado. Opomos, há

já algum tempo, a natureza à convenção, depois, a natureza à cultura; falou-se

muito de relativismo histórico, de arbitrário cultural. História e verdade. Era

\ _\,\ preciso que, mais dia menos dia, isso a r r e b e i l t a s s e : ~ ~ ~ ~ ~ r i ~ s ~ _ ~ ' c > r I l a ~ ~ ~ t ? r . i . ~   doJ.!I/\\ qu e Os homens chamaram as verdades e de suas lutas em torno dessas verda.ªc:s,:.

íj J .. ...

AI está, poi s, um universo inteiramente material,feito de referentes pré-discur

sivos qu e são virtualidades ainda sem rosto; práticas sempre diversas engendram

, nele, em pontos diferentes, objetivações sempre diversas, rostos; cada prática

\ depende de todas as outras e de suas transformações, tudo é histórico e tudo

.\ 'depende de tudo; nada é inerte, nada é indeterminado e, como veremos, nada é

! \ inexplicável; longe de depender de nossa consciência, esse mundo a determina.

I Primeira conseqüência; tal referentenão "renn'endência a tomar esse ou aquele

rosto, sempre o mesmo, a vir a ter tal objetivação, Estado, loucura ou e l i g i ã o L ~  \ famosa teoria ..-ºescontinuidades: não existe "loucura através dos tempM:t _I'·· • • . . . .' • • • J .relígíão ou.medicina.atravês dos tempos. A medicina anterior à clínica só tem o

l 'nome em comum com a medicinado século XIX; inve rsamente, se se procura, noséculo XVII, alguma coisa que se pareça um pouco com o que se entende por

ciência histórica no século XIX, nós o encontraremos, não no gênero histórico,

mas na controvérsia(ouditb de Outraforma, o que se assemelha ao que chamamos

História é a Histoire des uariations, livro, aliás, sempre admirável e leitura que se

devora, e não o ilegíveliJiscours sur l'histoire universelle). Em resumo, em um a certa

época, O conjunto das práticas engendra, sobre tal ponto material, um rosto

histórico singular em que acreditamos reconhecer o qu e chamamos, com um a

palavra vaga, ciência histór ica ou, ainda, religião; mas, em um a outra época, será

um rosto particular muito diferente que se formará no mesmo ponto e,

inversamente, sobre um novo ponto, se formará um rosto vagamente semelhante

ao precedente. Tal é o sentido danegaçãodos objetos naturais: não § l , _ . a J r ª ~ ~ do

tempo, evoluçã'õõn-m6clificiçãõ 'de u m : " n ú ~ · s m o - o o J e t 6 " · q u e l ; r o t a s s e   sempre no-

Foucault Revoluciona a História 'l73

transformações dessa instituição não têm que ser explicadas pelos sucessos ou

fracassos dessa função. É preciso partir do ponto de vista global, quer dizer, das

práticas sucessivas, pois, segundo as épocas, a mesma instituição servirá a funções

diferentes e inversamente; além disso,,afunção só existe em virtude de uma prática,

çIlãg_é a prática que responde ao "desafio-"-cla"ftinção (a função "pão e Circo" só

existe na e pela prática "guiar o rebanho", não existe. função eterna de

redistribuição ou de despolitização através dos séculos ).

i1 \

!Conseqüentemente, a oposição diacronia-sincronia, gênese-estrut ura.' é um

falso problema. A gênese não é nada mais do que a atualização de um a estrutura

(Deleuze, Dlffêrence et Répétition, pp, 237-238); e . ~ r ~ g \ l _ ç ~ ~ P . l : ! < : I ~ . ~ ~ ~ l ? p ( ) ! : ~  estrutura

"medicina" à sua lenta. gênese, seria preciso que houvesse continuidade, qtle "a "

medicina tivesse crescido como um a árvore milenar. A gênese não vai de termo a

termo; as origens, isso não existe, ou ainda, corno dizia alguém, raramente elas são

belas. A medicina do século XIX não se explica a partir de Hipócrates seguindo o

decorrer dos tempos, o qu e não existe: houve rernanejamento do caleidoscópio, e

não continuação de um crescimento; "a " medicina através dos tempos não existe;

houve, somente, estruturas sucessivas (a medicina no tempo de Molíere, a

clínica...) das quais cada um(l tem a s u a . , g ~ n e . s , ~ ,   qu e se explica, em parte, pelas

transformações da estrutura médica precedente e, em pane, pelas transformações

dó resto do mundo, segundo toda probabilidade; pois, po r que urna estrutura seexplicaria, inteiramente, pela estrutura precedente? Por que, ao contrário, lhe

seria completamente estranha? Mais um a vez, nosso autor faz com qu e surjam as

ficções metafís icas e os falsos problemas, como positivista que é. É curioso que se

tenha, po r vezes, tomado po r fixista esse inimigo das árvores. Foucault é o

historiador em estado puro: tudo é histórico, a história é inteiramente explicável e

é preciso evacuar todas as palavras em ismo.

Em história, só existem constelações individuais ou mesmo singulares e cada

uma delas é inteiramente explicável com o uso exclusivo dos meios de que

dispomos. Sem recorrer às ciências humanas? Já que toda prática, todo discurso,

têm suas objetivações, seus ancoradouros, parece difícil falar des tes e daquelas sem

" tocar, po r exemplo, em Iingüística ou economia, se se trata de ancoragens

mesmo lugar. Caleidoscópio e nãovíveirode plantas; F'oucaultrião'diz:'uDe--j econômicas ou lingüístícas; essa é um a questão da qual não fala Foucault, porqueminha parte, prefiro o descontínuo, os cortes", mas:"'IDesconfiem das falsas

continuidades". Um falso objeto natural, como a religião ou como um a

determinada religião, agrega elementos muito diferentes (ritualismo, livros

sagrados, secularização, emoções diversas, etc.) que, em outras épocas, serão

ventiladas em práticas muito diferentes e objetívadas po r elas sob fisionomias

muito diferentes. Corno diria Deleuze, as árvores não existem: só existem rizomas.

Conseqüências acessórias: ne m funcionalismo nem institucionalismo, A

história é um terreno vago e não um campo de tiro; através dos séculos;-ã.---' ,

'iristii:Uiçàú da prisão não responde aurna função que deve ser preenchida, e as

isso é um tanto evidente ou porque não acredita nisso, ou porque não é isso que lhe

interessa, A não ser que o amor-próprio me cegue, pois sustentei, na minha aula

inaugural, qu e a história deveria ser escrita com a ajuda das ciências humanas e

, - , implic ava Constantes. Confessado isso, parece-me qu e O problema que conta para

1íl F o u c a ~ l t   é.o segui.nte: ~ n d a  qu e a histó ria fosse s u ~ c e t i ~ e l   de explicação cientifica,

l.

! essa ciência. se SItuaria ao nível de nossos racionalismos? As COnstantes da

\ explicação histórica serão a mesma coisa que os objetos "naturais"?

Esse é, creio, o verdadeiro ponto da questão para Foucault, Pouco lhe importa

qu e as inevitáveis constantes se organizem, pelo menos aqui e ali, nu m sistema de

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174 175aul Ma rie Veyne

verdade s científicas; ou que não se possa ir além de uma simples tipologia das"conjunturas históricas; ou que as constantes se reduzam a proposições formais, auma antropologia filosófica como a do livro III de Spinoza ou a da 'Génealogie de la

morale: o ponto importante é que as ciências humanas, se é que d e v e _ ~ ~ x i s t i r  : '- ciências humanas, não poderiam ser uma racionalização dos objetosnaturais, um

;. i.? _ \\ a ~ e r   para éna!ques; elas supõem: primeiramente, uma. análise h i S ~ ó r i _ c a   _ d_ _ s . ~ ~ = -l ~ r < J   \\objeto, quer dizer, uma genealogia, um dar à luz à prática ou ao dlscurso._

1-; Após a passagem do historiador, serão as constantes organizáveis em um

sistema hipotético-dedutivo? Essa é um a questão de fato cujo interesse ésecundário: a ciência não remete a um a atividade constituinte do espírito, a uma

concordância entre o ser e o pensamento, a um a Razão, mas, mais humildemente,

ao fato de que, em certos setores, pelos movimentos do caleidoscópio, peladistribuição das cartas, pela combinação das conjunturas, acontece formarem-sesistemas relativamente isolados, espécies de servomecanismos, que, como tais, sãorepetitivos; assim acontece, freqüentemente, nos fenômenos fisicos; quanto asaber se, na história humana, o mesmo se dá, pelo menos em alguns pontos, é uma .questão interessante, mas limitada, duplamente. Consiste em se perguntar como

são os fenômenos, e não quais são as exigências da Razão; não pode, de maneira

alguma, levar a desvalorizar a explicação histórica como não sendo cientifica. A

ciência não é a forma superior do conhecimento: ela é o conhecimento quese--aplica a "modelos de série", enquanto a explicação histórica trata, c a s 6 p õ r c a s 6 ~ - dos "protótipos"; devido à natureza dos fenômenos, a .primeira tem cornoconstantes modelos formais; a segunda, verdades ainda mais formais. Por serinteiramente conjuntural, a segunda não fica abaixo da primeira em rigor.Positivismo obriga.

Sem dúvida, o positivismo não é senão um programa relativo e... negativo:somos sempre o positivista de alguém, de quem negamos as racionalizações;depois de nos termo s livrado das ficções metafisicas, ainda fica um saber positivopara ser construído, A análise histórica começa po r estabelecer que não existeEstado, nem mesmo Estado romano, mas, somente, correlatos (rebanho para serguiado, fluxo para ser administrado) de práticas datadas, das quais, cada uma, em

seu tempo, parece ser óbvia e ser a própria politica. Ora, como só existe odeterminado, historiador não explica a própria politica, mas o reban ho, o fluxo eoutras determin ações, pois a política, o Estado e o Poder, essas coisas não existem.

Mas então, como explicar sem contar com causas, com constantes? De outro

modo a explicação seria substituída pela intuição (não explicamos a cor azul, nós aconstatamos) ou pela ilusão de com preensão. Certamente, entretanto, a exigênciaformal de constantes não prevê o nível no qual essas constantes se situarão; Seaexplicação de scobre em história subsistemas relativamente isoláveis (tal processoeconõmico, tal estrutura de organização), a explicação se contentará em lhesaplicar um modelo ou, pelo menos, em relacioná-los a um princípio ("uma porta

Foucault Revoluciona a História

tem que estar aberta ou fechada; é preciso que a soma algébrica do que se arriscanu m jogo de segurança internacional seja nula, quer o saibàm ou não osinteressados; se não o souberam ou se preferiram um Outro fim, isso explica o que

lhes aconteceu"). Se, pelo contrário, o acontecimento histórico é inteiramenteconjuntural, a busca da constante não cessará antes de ter chegado a proposiçõesantropológicas.

Entretanto , essas proposiçõ es antropológicas são, elas próprias, formais, e só ahistória lhes dá um conteúdo: não existe verdade transistórica concreta, natureza

humana material, retomo de um recalque, pois a idéia de um a inclinação nat uralrecalcada só tem sentido no caso de um individuo que teve sua própria história; nocaso das sociedades, o recalq ue de um a época é, na realidade, a prátic a diferente deuma outra época,   ê Y ~ ! i ' t . u a l r e t q ! 1 : I ( ) ~ C : i ~ s s e p r e t e Í 1 s o recalque é, na realidade, agênese de um a nova prática:Foucault não é'o Marcusefrancês. Falamos, acima, dóhorror que inspirava aos romanos esse gladiador que, ao mesmo tempo,

consideravam uma vedete; esse horror que não pôde levar à proibição da

gladiatura antes do Baixo Império, seria um medo recalcado do assassínio em

época de paz civil? Um tal medo do assassinato seria um a exigência transistóricada natureza humana qu e os governantes, em todas as épocas, fariam be m em levar

em consideração, porque, se lhe fecham a porta, ele entra pela janela? Não, pois,antes de mais nada, ele não era recalcado, mas modificado pela reatividade (essareatividade de qu e fala a Génealogie delamorale: eis aí um motor constante com sabor

filosófico); era o desgosto farisaico diante desse prostituto da morte que era ogladiador. Além disso, esse pretenso medo do assassínio não é, de modo algum,transistórico: é material, concreto, relaciona-se a uma prática governamental

11 determinada; é o medodever morrer um cidadão inocente, em plena paz cívica, oque implica um certo discurso politico-cultural, um a certa prática da Cidade. Essesuposto medo natural não é enunciável em termos puramente formais, ne m

mesmo por um truísmo, não existe formalmente; não é o medo da morte nem doassassinato (pois admite o assassínio do criminoso).

Para Foucault, o interesse da história não está na elaboração de constantes,quer sejam filosóficas, quer se organizem em ciências human as; está em utilizar asconstantes, quaisquer que sejam, para fazer desaparecer as racionalizações, qu e

renascem, incessantemente. A história é uma genealogia nietzschiniana. É por issoqu e a história segundo Foucault passa por ser filosofia (o que não é verdade, ne m

mentira); em todo caso, ela.está muito longe da vocação empirista tradicionalmente atribuídaà história. "Que não entre ninguém aqui que não seja, ou que não

se torne, filósofo". História escrita mais em palavras abstratas do que em

semântica de época, ainda carregada de cor local; história que parece encontrar, por

toda parte, analogias parciais, esboçar tipologias, pois um a história escrita em uma

rede de palavras abstratas apresenta menos diversidade pitoresca do que umanarrativa anedótica.

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177Paul Marie Veyne176

Essa história humorística ou irônica dissolve as aparências, o que fez com que

se considerasse Foucault um relativista ("verdade há mil anos, erro hoje"); históriaqu e nega os objetos naturais e afirma o caleidoscópio, o que fez com que nossoautor fosse considerado um cêtico. Ele não é nem uma coisa, ne m outra, pois um

,'c\ . r e l a t i v i s r a . j u l ? ~ , q ~ ~ _ ( ) ~   h O _ I l l e n s ~ , ~ ~ ~ ~ ~ ~ ( ) ~ i ~ ~ ~ l õ : s ; ' p é ~ _ s ~ I : ( l n l c ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ f ~ i e ' i i r e s    'o,! mesmo , o I : > J ~ t o :   Sobre o Homem, sobre a Beleza, uns pensaram ISSO e outros, em ' !

I um a Outra época, pensaram aquilo sobre o mesmo ponto; impossível, en tão, saber

/ \ o qu e é verdadeiro!". Isso, para o nosso autor, é inquietar-se po r nada, pois, :, \ precisamente, o ponto em questão não é o mesmo de um a época para outra; e, !

sobre o ponto que se revela próp,ri_(),Cl(;ada época, a verdade é p e r f e i t a ~ _ e m e   :

explicável e não tem nada de u J ! l ( l , º ~ ~ l l a . s : ~ o   indeterminada. Apostaria que

.. Foucault subscreveria a frase sobre a humanidade que só se propõe tarefas que I;-podecumprir125 ; a cada momento, as práticas da humanidade são o qu e o todo da

história as faz ser, de tal modo que, a qualquer instante, a humanidade é adequada

a ela própria, o qu e não lhe é nada lisonjeiro. A negação do objeto natural também

não leva ao ceticismo; ninguém duvida de qu e os foguetes apontados para Martesegundo os cálculos de Newton certamente não o alcançarão; Foucault também

,'. ~ n ã ~   duvida, e s p e ~ o ,   q.ue F o u c a u l ~   t e n h ~  raz.ão" Ele.lembra, simplesmente, que os  objetos de um a ciência e a própria noçao de ciência não são verdades eternas. E,

!

Certamente, o Homem é um falso objeto: nem por isso as ciências humanas se

tornam impossíveis, mas são obrigadas a mudar de objeto, aventura qu e asii

ciências flsicas, também elas, conheceram.

Na realidade, não é aí qu e está o problema; se be m compreendo, a noção deverdade é subvertida porque, diante das verdades, das aquisiçõe s científicas, a verdade filosófica foi substituída pela história; toda ciência é provisória, e a filosofiabe m o sabia, toda ciência é provisória, e a análise histórica o demonstra

incessantemente. Tal análise, a da clínica, a da sexualidade moderna e a do Poder

em Roma, é muito verdadeira, ou, pelo menos, pode sê-lo. Contrariamente, o 9'!L.

não poderia ser um a verdade é saber oque são "a" sC':!,:uaiidacle e "o " poder:-n1l,9__porque não se poderia atingir a verdade sobre' esses objetos, lIlas porque, ª , q l l ~  eles não existem, não há lugar para a verdade nem para o erro: as grandes árvoresnão nascem dentro dos caleidoscópios. Qu e os homens acreditem que elas aí

Cresçam, qu e sejam levados a acreditar nisso e que por isso lutem é um a outra

I

,,' história. O qu e acontece é que, no que concerne à sexualidade, ao Poder, ao. Estado, à loucura, e a limita s Outras coisas, não poderia haver verdade nem erro,

"x já qu e essas coisas não existem; não há verdade nem erro sobre a digestão e a/

reprodução do centauro.

A cada momento, este mundo é o que é: qu e suas práticas e seus objetos sejam'l raros, qu e haja vazio em volta deles, isso não quer dizer que haja, em derredor,!'II' verdades qu e os homens ainda não apreenderam: as figuras futuras do caleidos

cópio não são nem mais verdadeiras ne m mais falsas do que as precedentes. Nãohá, em Foucault, nem recalque nem retorno do recalque, não há nenhum não-dito

Foucault Revoluciona a História

que bata à porta; "a s positividades qu e tentei estabelecer não devem se r icompreendidas como  conjunto de determinações qu e se impõem, do exterior, "- - - .. . -- , ' \

ao pensamento dos indivíduos ou como o preexistente habitante' do interior; elas ;constituem, antes, o conjunto das condições segundo as quais se exerce um a 'prática; trata-se menos dos limites colocado s à iniciativa dos indivíduos do que docampo em que ela se articula" (L'Ar:chéologie du sauoir, p. 272). A consciência não

pode se opor às condições da história, jáque ela não é constituinte, mas constituída;

sem dúvida, ela se revolta constantemente, recusa os gladiadores e descobre ouinventa o Pobre: essas revoltas são o estabelecimento de um a nova prática, e não

um a irrupção dOál)solutü: "Que haja rarefação não significa que, abaixo ou para

além dos discursos, reine um grande discurso ilimitado, contínuo e silencioso, qu e

se acharia reprimido ou recalcado po r eles e qu e teríamos a obrigação de fazerlevantar-se e de lhe restitui).", enfim, a palavra. Não se deve imaginar, percorrendoomundo, um não-dito ou um impensado que se trataria de articular e de pensar

enfim" iL'Ordre du discours, P:54). Foucault não é um Malebranche que se ignora,assim corno não é o Lacan da história. Vou dizer tudo: não é um humanista, pois oqu e é um humanista? Um homem que acredita na semântica ... Ora, o "discurso"

seria, antes, sua negação. Pois bem, não! a linguagem não revela o real, e certosmarxistas deveriam ser os primeiros a sabê-lo e a manter a história das palavras em

seu devido lugar. Não, a linguagem não nascesobreum fundo de silêncio: ela~ º J : l J : ~ l l _ ~ ~ J i : i _ I i - a ~ a e - d ! s , c U r s o .  

Unl'humanista é alguém qu e interroga ostextos e as pessoas aoníveldoquediz,ú,i; ou melhor, que nem sequer suspeita de qu e

possa haver um outro nível.

A filosofia de Foucault não é um a filosofia do " discurso", mas um a filosofia da

relação, pois "relação" é o nome do que se designou por "estrutura". Em vez de

um mundo feito de sujeitos ou então de objetos e de sua dialética, de um mundo

em que a consciência conhece seus objetos de antemão, os visa ou é, ela própria, oqu e os objetos fazem dela, tc:!llós um mundo ,em que a relação é o primitivo:são asestruturas qu e dão séusrõstosobjetivos à matéria. Nesse mundo, não'

se joga xadrez com figuraseterrias, o rei, o louco: a,s figuras são o que as configurações sucessivas no tabuleiro fazem delas. É dessemodo que "se deveriatentar estudar o poder, não a partir dos termos primitivos da relação, sujeito de

direito, Estado, lei, soberano, etc., mas a partir da própria relação, enquanto é elaqu e determina Os elementos aos quais se refere; em vez de perguntara sujeitosideais o que cederam deles próprios ou de seus poderes para se deixarem sujeitar,é preciso pesquisar como as relações de sujeição podem fabricar súditos" (Annuaire

du College de France, 1976, p. 361). Se há alguém que ontologiza o Poder ou o que

quer que seja, não é esse filósofo da relação, mas sim, os qu e s6 falam do Estadopara o louvar, o maldizer, O definir, "cientificamente", enquanto o Estado é osimples correlato de um a certa prática muito bem datada.

A loucura não existe: só existe sua relação com o resto do mundo. Se se quer

saber por que se traduz um a filosofia da relação, é preciso ver como funciona a

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178 179aul Marie Veyne

propósito de um problema célebre, o do enriquecimento do passado e de suas

obras em função das interpretações qu e o futuro dará deles através dos séculos;

numa página célebre de La Pensée etleMouuani, Bergson estuda essa aparente ação

do futuro sobre opassado126. Sobre a noção do pré-romantismo, ele escreve: "Se

nã o tivesse havido um Rousseau, um Chateaubriand, um Vigny, um Hugo, não

somente não teríamos jamais percebido, e mais ainda, não teria havido realmente

romantismo nos clássicos de outrora, pois esse romantismo dos clássicos só se

realiza pelo recorte erh suas obras de um certo aspecto, e o corte, com sua formaparticular, não existia na literatura clássica antes da aparição do romantismo,

assim como não existe, na nuvem que passa, o desenho engraçado que o artista aidistingue quando organiza a massa amorfa ao sabor de sua fantasia". Esse

li,:' paradoxo do recorte chama-se, hoje, paradoxo das "leituras" múltiplas de uma 

mesma obra. É esse o problema da relação e é, sobretudo, o do individual:.-

Leibniz escreveu, em algum lugar127, que um homemque viaja pela índia e a

quem, sem qu e ele o saiba, morre a mulher, qu e ficara na Europa, ne m po r isso

deixa de sofrer uma verdadeira transformação: torna-se viúvo. Certamente, "ser

viúvo" não é senão um a relação (o mesmo indivíduo pode ser viúvo COm relação à

falecida, pai com relação a seu filho e filho com relação a seu pai); de qualquer

modo, a relação reside no indivíduo qu e a carrega (omne praedicatum inest subjecto):

te r um a relação de viuvez é ser viúvo. De duas coisas uma, se dirá: ou bem essadeterminação advém ao marido do exterior, assim como o recorte pré-romântico

não é, aos olhos de alguns, mais do que um a interpretação inflingida do exterior a

obras clássicas qu e nada podem fazer quanto a isso; nesse caso, a verdade de um

texto será o qu e se diz dele, e o indivíduo, pai, filho, esposo e viúvo, é o qu e o resto

do mundo o faz ser. Ou então a relação é interna e provém do pr6prio interessado:

desde todo o sempre estava inscrito, na mônada do viajante que ele seria viúvo e

Deus podia ler nesta mônada, a futura viuvez (o que supõe, evidentemente, que,

devido a um a harmonia. preestabelecida, a mônada que o viajante desposou

morra, de sua parte, no momento conveniente, assim como dois relógios bem

r-egulados marc arão, ao mesmo momento, a hora fatal); nesse caso, tudo o qu e se

digade um texto será verdadeiro. N o primeiro caso, nada é verdadeiro sobre uma

individualidade, viajante ou obra; no segundo, tudo é verdadeiro, e o texto, inflado

a ponto de estourar, contém, de antemão, as interpretações as mais contraditórias.É o que Russell chama de problema das relações externas e das relaçõesinternas128. Na realidade, é o problema da individualidade.

••••__ •__•••• • • • • • • • • ••- .. . . . -----. 0 •• ._ ---. _ ~ . -  

Uma obra s6 tem a significação que lhe damos? Terá todas as significações que

nela se possam descobrir? E o qu e acontece com a significação qu e lhe dava o

principal interessado, o autor? Para que se possa colocar o problema, é preciso que

a obra exista, erigida como um monumento, é preciso qu e seja um a individuali

dade, à pane, completa, com seu sentido e sua significação: somente então

poderemos nos espantar com o fato de que essa obra, a que não faltá nada, nem seu

texto (impresso ou manuscrito) nem seu sentido, seja susceptível, além disso, de

Foucault Revoluciona a História

receber novos sentidos do porvir, ou já contenha, talvez, todos os Outros sentidos

imagináveis. Mas se a obra não existisse? Se s6 recebesse seu sentido po r relação?

Se sua significação, que podemos decretar autêntica, fosse, muito simplesmente, a

significação qu e ela tinha relativamente a seu autor ou à época em que foi escrita?

Se, igualmente, as significações futuras fossem, não enriquecimento da obra, mas

outras significações, diferentes e não rivais? Se todas essas significações, passadas e

futuras, fossem individuações diferentes de uma matéria que as recebe indiferen

temente? Nesse caso, o problema da relação desaparece, desaparecendo a

individualidade da obra. A obra, como individualidade que, supostamente, deve

conservar sua fisionomia através dos tempos, não existe (s6 existe sua relação com

cada um dos intérpretes), mas ela é algo: ela é determinada em cada relação; a

significação que teve em s e ü t e m p o ~ - p ó r - exeillpio;- pode ser objeto de discussões

p < ? s r t l v ~ s .._,Ó que existe, em compensação, é a matéfiãdaobra,mas essa matéria não

é nada enquanto a relação não faz dela isso ou aquilo. Como dizia um mestre

scotísta, a matéria é em ato, sem ser o ato de nada. Essa matéria é o texto

manuscrito ou impresso, enquanto esse texto é susceptível de tomar um sentido, é

feito para ter um sentido e não é um a algaravia datilografada ao acaso po r um

macaco. Primado da relação. É po r isso que o método de Foucault tem,

provavelmente, como POnto de partida, uma reação contra a vaga fenomenoló gica

que, na França, seguiu imediatamente a Liberação. O problema de Foucault foi,

talvez, o seguinte: como fazer mais do que uma filosofia da consciência sem por

isso cair nas aporias do marxismo? Ou, inversamente, como escapar de um a

filosofia do sujeito sem cair numa filosofia do objeto?

A fenomenologia não peca po r ser um "idealismo", mas po r ser um a filosofia

do Cogito. Husserl não põe a existência de Deus e do diabo entre parênteses para

em seguida retirar, sorrateiramente, o parêntese, como o afirmou Lukacs;

quando descreve a essência do centauro, ele deixa às ciências a preocupação de

pronunciarem-se sobre a existência, a inexistência e as funções fisiológicas desse

animal. O erro da fenomenologia não é o de não explicar as coisas, já que jamais

teve a pretensão de explicá-las; seu erro é descrevê-las a partir da consciência,

considerada COmo constituinte e não como constituída. Toda explicação da

loucura supõe, antes de mais nada, que se a descreva corretarnente, para essa

descrição, podemos nos fiar no que a nossa consciência nos mostra? Sim, se ela é

constituinte, se, como diz o provérbio, conhece a realidade" tão bem quanto se ela

própria a tivesse fabricado"; não, se é constituída à sua revelia, se é enganada por

uma prática histórica constituinte. E ela é enganada pela prática histórica: a

consciência crê qu e a loucura existe, aceitando o risco de acrescentar que não é

! - l I j ü i i : ~ s a ; J á   que a nossa consciência progride tão bem em seu conhecimento, com

a única condi ção de se fazer suficientement e sutil em suas descrições para penetrar

nessa morada. E é preciso confessar que a sutileza das descrições fenomenológ icasarranca gritos de admiração.

Ora, coisa curiosa, os marxistas têm a mesma crença no objeto (e a mesma

' crença na consciência: a ideologia age sobre o real passando pela consciência dos

,

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180 181aul Marie Veyne

agentes). A explicação parte de um objeto dado, a relação de produção, para os

outros objetos. Não vamos relembrar, pela centésima vez, as incoerências a que

isso leva: que, em nenhum caso, um objeto histórico, um fato, tal como a relação

de produção, pode explicar" em última instância", ser um a causa primeira, já que

ele próprio é um fato condicionado; se o emprego do moinho à água causa a

servidão, é preciso se perguntar por que razões históricas foi ele empregado em

vez de se manter a rotina, de tal modo que nossa causa primeira não é uma. Não

pode haver acontecimento emúltima instância, é um a contradição nos termos; o que os

escolásticos explicavam a seu modo dizendo que um a causa primeira não pode

comportar virtualidade: se ele é da ordem do virtual antes de existir, se éacontecimento, precisa de causas para se realizar e não é mais causa última.Passemos sobre as confusões subseqüentes, que não arrancam gritos de admiraI I ' '

r; ção: acabar-se- à por chamar relação de produção tudo o que for útil para explicar O

mundo do modo Como ele caminha, compreendendo ai os bens simbólicos, o que

é pular da frigideira para cair no fogo: o qu e se supõe que a relação de produção

explica faz, agora, parteda relação de produção. A própria consciência faz p arte do

objeto que se supõe explicá-la. O importante não é isso, mas sim que os objetos

continuam a existir; continua-se a falar em Estado, poder, economia, etc. Não

somente as releologias espontâneas conservam-se, assim, em seu lugar, mas ainda

O objeto a ser explicado é tomado como explicação, e essa explicação passa de um

objeto a um outro. vimos as dificuldades qu e isso trazia, vimos, também, qu e issoperpetuava a ilusão teleológica, o idealismo no sentido de Nietzsche, a aporia

"história e verdade". Diante disso, Fouc ault propõe umposítivísrno: eliminar os

") últimos objetos não H.ist6ddzados, os últimostraços d e m ~ t a f i s i c ã i ' e propõe um

materialismo: a explicação não passa de um objeto a um outro, mas de tudo a tudo,

e isso objetiva objetos datados sobre um a matéria sem rosto. Para que o moinho

seja percebido como meio de produção e para que seu emprego transforme o

mundo, é necessário, primeiramente, que seja objetivado graças a um a mudança

sucessiva das práticas vizinhas, mudança que ela própria... e, assim, ad infinitum.Na verdade, é o que, como M.Jourdain, nós, os historiadores, no fundo, sempre

tínhamos pensado.

A história-genealogia a Foucault preenche, pois, completamente o programa

da história tradicional; não deixa de lado a sociedade, a economia, etc., mas

estrutura essa matéria de Outra maneira: não os séculos, os povos ne m as

'\ civilizações, mas as práticas; as tramas que ela narra são a história das práticas emque os homens enxergaram verdadese das suaslutas em torno dessasverdad es129.

Esse novo modelo de história, essa "arqueologia", como a chama seu inventor,"desdobra-se na dimensão de um a história geral" (L'Archéologie du sauoir, P: 215);

ela não se especializa na prática, no discurso, na parte imersa do iceberg, ou antes a

'pane oculta do discurso e da prática é inseparável da parte emersa. Quanto a isso,

não houve evolução emFoucault- e a Histoire dela sexualité Mo inovou- que une aanálise de uma prática discursiva à história social da burguesia: a Naissance de laclinique já ancorava um a transformação do discurso médico nas instituições, na

Foucault Revoluciona a História

prática política, no hospital, etc. .Toda história é arqueológica por natureza e

\j não po r escolha: explicar e explicitar a história consiste, primeiramente, em vê-Ia

em-seu conjunto, em correlacionar os pretensos objetos naturais às práticas

datadas e raras que os objetivizam, e em explic ar essas práticas-não a partir de uma

causa única, mas a partir de todas as práticas vizinhas nas quais se ancoram. Esse

método pictórico produz quadros estranhos, onde as relações substituem os

II objetos. Esses quadros são, sem dúvida, os do mundo que conhecemos: Foucault,

assim como Cézanrie, não faz pinturas abstratas: a paisagem de Aix pode ser

reconhecida, somente está investida de um a violência afetiva: parece sair de um

terremoto. Todos os objetos, inclusive homens, estão ai transcritos numa gama

abstrata de relações coloridas em que a maneira de pintar apaga sua identidade

prática130 e em que se baralham sua individualidade e seus limites. Depois dessas; quarenta páginas de positivismo, pensemos um instante nesse mundo em que

,L.i um a matéria sem rosto e perpetuamente agitada faz nascer em sua superfície, em

  pontos sempre diferentes, semblantes sempre diferentes que não existem e onde'l tudo é individual, de tal modo que nada o é.

Foucault não procura mostrar que existe um "discurso" ou mesmo uma

prática: ele diz qu e não existe racionalidade. Enquanto se acreditar que o"discurso" é uma instância ou unta infra-estrutura, enquanto se perguntar que

relação de causalidade pode ter essa instância com a evolução social ou econõmica

e se Foucault não faz história" idealista", é que ainda não se compreendeu bem. A

importância de Foucault é que ele não faz marxismo nem freudismo: não é

dualista, não pretende opor a realidade à aparência, como faz, em desespero de

causa, o racionalismo que tem como chave mestra avoltado recalque. Foucaulr, ao

contrário, afasta as banalidades tranqüilizadoras, os objetos naturais em seu

horizonte de prometedora racionalidade; a fim de devolver à realidade, a única, a

nossa, sua originalidade irracional, "rara", inquietante, histórica. Desnudar,

assim, a realida de para dissecá-la e explicá-la é um a coisa, ac reditar descobrir, po r

detrás dela, um a segunda realidade que a telecomanda e a explica é um a Outra

coisa, be m mais ingênua. Foucault ainda é historiador? Não há resposta,

verdadeira ne m falsa, para essa pergunta , pois a própria história é um desses falsos

objetos naturais: ela é o que se faz dela, não deixou de se modificar, ela não

prospecta um horizonte eterno; o que Foucault faz se chamará história e, ao

mesmo tempo, será história, se os historiadores se apossarem do presente qu e elelhes faz e não o considerarem como uvas verdes; em todo caso, a herança não ficará

" sem dono, pois a elasticidade natural (também chamada "desejo de poder", mas

essa expressão é tão equívoca...) tem horror ao vazio.

Aix e Londres, abril 1978.

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196 197aul Marie Veyne

pura e prolonga o Methodenstreit no recente livro de Hans Albert, Marktsoziologie uTld Entscheidungslogik,

iikonomische Probleme in soziologischer Perspektive, Berlim, Luchterhand, 1967, panic. pp. 429-461.

108. F. Dagognet, Phi/osophie blologique, PUF, 1955; cf W. Riese,/a Pmsée causale en médecine, PUF, 1950.

109. D. Bohm, Causality and Chance in modem physics, Routhedge e Kegan Paul, 1957 e 1967.

110. Pois esses eram os dois principais objetivos de guerra de Hider: a desforra de Versailles não era

senão uma etapa preliminar: era preciso abater a França e a Inglaterra para ter as mãos livres a leste. V.

H. R. Tevror-Roper, "Hiders Kriegsziele", em Viertelfahrsheftefür Zeitgeschichte, 1960, e E.Jllckel, Hitlers

Weltanschauung, Entwurfeiner Hemchaft, Tübingen, Rainer Wunderlich Verlag, 1969.

III. E. Topitsch, "Gesetzbegriff in den Sozialwissenschaften", em R. Klibansky (editor), Contemporary

PlUlosophy (Internacional Instítute ofPhilosophy), vol. 2, Philosophiedes sciences, Florença, La Nuova Itália,

1968, pp. 141-149.

112. "O sistema das faculdades da alma se compõe de dois sistemas, o sistema do entendimento e o

sistema das faculdades da vontade. O primeiro compreende três faculdades particulares: a atenção, a

comparação, o raciodnio. O segundo também compreende três faculdades: o desejo, a prefer ência, a

liberdade. Como a atenção é a concentração da atividade da alma sobre um objeto a fim de adquirir a

idéia desse objeto, o desejo é a concentração dessa mesma atividade sobre um objeto para adquirir sua

posse. A comparação é a aproximação entre os dois ebjetos: a preferência é a escolha entre dois objetos

comparados: o raciodnio e a liberdade não parecem oferecer, à primeira vista, a mesma analogia;

contudo" , etc. Citado por Taine nosseus admiráveis Phüosophesdassiques duXIX ême siêde enFrance, p. 14.

113. Le Phénomên« bureaucratique, por M. Crozier; Auxerre en 1950, por eh . Bettelheim e S. Frere; les

Blousons bleus, por N. de Maupeou-Abboud. Um desses'livros foi criticado por ser muito pouco

especulativo, sociológico, e por se contentar em reunir os fatos e os explicar de uma maneira "líterãria"

(entendamos "histórica"). Não seria, antes utn cumprimento?

114. J. Robinson, Philosophie économique,' trad, stora, NRF, 1967, p, 199.

115. A. Bonifáciona col, Encyclopêdiede la Pléiade, Histoire des sciences, p. 1.146.

116. Sobre a distinção entre a orientação "horizontal" ea "ve nical", ver Schmitthenner e Bobek em W.

seorkebaum, Zum Gegenstand und Methode derGeographie, pp. 192 e 295.

117.LesPrimitift delarévolte, por E. Hobsbawm; Messianismes, por W. E. Mühlmann; Culture ofcities, por L.

Munford; Systems ofEmpires, por S.N. Eisenstadt. - Nadamostramelhor a inutilidade da distinção entre

história e etnografia do que o livro de Mühlmann; o título francês é mais emográfíco, mas o título

original (Chiliasmusund Natiovismus) é mais histórico; o autor declara, p. 347, que quis incentivar oestudo dos messianismos revolucionârios historicamente conhecidos, dos quais os documentos

medievais e modernos só nos dão uma idéia pálida e falseada, mediante o que a observação permite

constatar, hoje em dia, entre os povos subdesenvolvidos.

118. Ro. Aron, la Sociologie alleirUJ.nde contemporaine, 2.- edição, PUF, 1950, p. 150.

119. A culpa não cabe aos leitores. L'Archéologiedu savoir, esse livro desajeitado e genial, em que o autor

tomou consciência plena do que fazia e levou sua teoria até sua conclusão lógica (p. 65: "Em um a

palavra, se quer, muito s implesmente, dispensar as coisas"; d. p. 27 e as autocrlticas da Histoire delafolie

e de Naissance delaclinique, p. 64, n. 1 e p. 74, n. 1), foi escrito em plena febre estruturalista e lingülstica;

além disso, o historiador Foucault começou por estudar discursos mais do que prãticas, ou prãticas

mediante discursos. Acontece que a ligação do método de Foucault com a lingülstica não é senão

parcial, ou acidental, ou circunstancial.

Foucault Revoluciona a História

120. L'Arché%gie du savoir, P: 66, cf. 68-67.

121. Além disso, "e m lesMots etlesChoses, li ausência de balizagem metodológica pôde fazer com que se

acreditasse em análises em termos de totalidade cultural" (L'Archéologie du savoir, p. 27). Até mesmo

fiíósofos próximos a Foucault pensaram que o objetivo dele fosse estabelecer a existência de uma

ejnstemê comum a toda uma época.

122. Dito de outra maneira, a noção de desejo significa que não hã natureza humana, ou antes, que essa

natureza é uma forma sem conteúdo outro que não o histórico. Ela significa, também, que a oposição

individuo e sociedade é um falso problema; se se concebe o individuo e a sociedade como duas

realidades exteriores uma à outra, então, se poderá imaginar que uma causa a outra; a causalidade

supõe a exterioridade. MaSsepercebemosque o que chamamossociedadejá comporta a particípação

dos indivíduos, o problema desaparece: a "realidade objetiva" social comporta o fato de que

indivíduos se interessam por ela ea fazem funcionar, ou, se preferim os, as únicas virtualidadesque um

individuo pode realizar são as que estão desenhadas em pontilhado no mundo ambiente e que o

individuo' atualiza pelo fato de se interessar por isso; o individuo preenche os espaços ocos que a

"sociedade" (que r dizer, os outr os, ou as coletividades) desenha em relevo..O capitalismo não seria

uma" realidade objetiva" se não comportasse uma mentalidade capitalista que o faz funcionar: sem o

que ele nem sequer existiria. A noção de desejo quer dizer, igualmente, que a oposição material-ideal,

infra-estrutura-superestrutura, não tem sentido. A idéia de causa eficiente, por oposição à' de

atualização, é uma idéia dualista, isto é, cambaia. Em seu belo trabalho sobre a noçãode personalidade

de base segundo Kardiner, Claude Lefort, mostra bem as aporias às quais leva a idéia de que o

individuo e a sociedade são duas realidades exteriores uma à outra que uma relação causai uniria (Les

Fomesdel'histoire, Gallimard, 1978,p. 69 s.),Por que, então, chamar"desejo" ao fatode que aspessoas

se interessam pelos encadeamentos virtuais e os fazem funcionar? Porque, me parece, a afetividade éamarca de nosso interesse .pelas coisas: o desejo é "o conjunto de afetos que se transformam e circulam

num encadeamento de simbiose, definido pelo cc-funcionamento de suas partes heterogêneas"

(Deluze-Parnet, Dialogues, p. 85): esse desejo, como a cupiditas em Spinoza, é prindpio de todos os

outros afetos, A afetividade, o corpo sabe mais do que a consciência. O rei acredita ver pastar seu

rebanho porque isso se impõe a ele, as coisas sendo o que 5110,.suaconsciênciacrê perceber um mundo

reificado; somente, sua afetividade prova que esse mundo só é atualizado porque o rei o atualiza, dito

de outra maneira, se interessa por ele. Sem dúvida, as pessoas também podem não se interessar por

uma" coisa", mas, então, a dita coisa não exísteo bjetívamenr er é assim que o capitalismo não chega a

existir nos pãíses do Terceiro Mundo com mentalidade feudal. A expressão "Mãquínaque deseja", no

inicio do Anti-Oedipe, é muito espinozista (QutomQ(()n appetens).

123. As revoluções ciendficas têm seus prôdromos, A noção de "aquilo-que-é-óbvio" aparecia

timidamente, aqui e ali, na fenomenologia, e também em outras partes: les Principes fontlamentaux de

l'histoire de l'art de wõlfi1in parecem realizar, por antecipação, a página 253 de L'Archéologie du sauoir

(tradução Faymond, Plon, 1952, pp. 17.261, 276). Sobre a noção "aquilo-que-é-óbv io", seria preciso

seguir passo a pass o asexpressOesfraglosoutakenfor granted nos scciôlogos disdpulos de Husserl, como

Felix Kauftnann (Grundprobleme derLehre vonderStrafrechtsschu/d), Alfred Sch utz (Phenomenology ofthe social

world) e mesmo em Max Scheler (Die Wissensformen Ilnd dieGtsellschaft; p, 61). Mas a fenomenologia não

podia ir'mais além, menos, sem dúvida, por causa do Ego Cogito (pois era suficientemente sutil para

acreditar discernir a noção de "àquilo-que-é-ób vio" nas acolhedoras r ~ a s  subconscientes do Cogito)

do quepor causa de seu racionalismootin'lísta:quando selê,em Schutz, osestudos sobre a distribuição

social do saber, reeditad os nos seus ColiectedPapers (1,14 e II, 120), se vêcomo é posslvel por excesso de

racionalismo, de ixar de lado um assunto admirAyel.

124. Por exemplo, o mestre scoJista, autor do tratado De rerum principio, VII, 1,4: "Q..uanto a isso, é

preciso saber que a matéria êelI1'ato, mas que não éo·ato de nada (materia estin actll, sednulliusest actus);

elaé algumacoisaem ato, jã que elaé algumi',coisae nllo, nada(estquoddflm inactll, utestresquaedam extra

nihil), uma efetuação de Deus, uma criação levada.a termo. U nicament e, ela nâo é o ato de nada, ain da

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7/27/2019 VEYNE, Paul. Foucault revoluciona a história

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198 PalI1 Marie Veyne

que não fosse porque ela serve de fundamento a todas as atuali zaçõe s' (nas Opera de Duns Scot, edição

Waddi ng. vol. III, p. 38 1:\). Diverti-me traduzind o em termos scotistas aquele que é. talvez, o problema

fundamental da histôria-filosofla segundo Foucault; assim qu e se ultrapassa a problemática marxista,

com a qual se contentam muitos historiadores (mas um filósofo de formação não poderia, í"menos que

tivesse "convicçõ es", levá-la a sério por muito tempo). é preciso. ao mesmo tempo, negar a realidade

transhistórica dos objetos naturais e. c ontudo, deixa r suficiente realidade objetiva a esses objetos para

que continuem sendo algo a ser explicado e não, fantasmas subjetivos a serem, simples mente,

descritos; é preciso qu e os objetos naturais não existam e que a história continue sendo realidade a ser

explicada. É assim. que, para Duns Scot, a matéria não é nem um ser de razão nem uma realidade

fisicamente separável. Para Foucault (que leu Nietzsche em 1954-1955. se não me falha a memória), afenomenologiafoi uma primeira maneirade resolver O problema: para Husserl, as"coisas" não são res

extrarnentais, mas também não são. po r isso. simples conteúdos psicológicos; a fenomenologia não é

um idealismo. Apenas. as essências assim compree ndidas eram dados imediatos a serem descritos e

não, pseudo-obj etos a serem explicados científica ou historicamente: a fenome nologia descreve uma

categoria de seres anterior à ciência; assim que se passa à explicação desses seres, a fenomenologia ce de

deliberadamente o passo à ciência, enquanto as essências se tornam. novam ente, coisas! Finalmente,

Foucault resolveu a dificuldade mediante uma filosofia nietz schiniana do primado da relação: ascoisas

só existem por relação. como veremos mais adiante, e a determinação dessa relação é suaprópria explicação.

Enfim, tudo é histórico. tudo depende de tudo (e não unicamente das relaçoês de produção), nada

existe transhistoricam ente e explicar um pr etenso objeto consiste em mos trar de que contexto histórico

ele depende. A única diferença entre essa concepção e o marx ismo é. em suma, qu e o marxismo tem

uma idéia ingênua da causalidade (uma coisa depende de umaoutra, a fumaça depende do fogo); ora, a

noção de causa determinante, (mica, é pré-cienófica.

125. Nietzsche. Le Gai Sauoir, n.O 196: "Só ouvimos as perguntas para as quais somos capazes de

encontrar uma resposta". Marx diz, qu e a humanidade resolve todos os problemas que se coloca,Nietzsche. que ela só se coloca os problemas que resolve; cf. Foucault, L'Archéologie du savoir, p. 61;

Deleuze, Différence et Répttition. p. 205.

126. A idéia bergsoniana de enriquecimento do passado pelo futuro se encontra também em

Nietzsche, Le GaiSauoir, n.O94 ("Croissance posthume"); cf. também Opinions etSentences mêlêes (Humain

trop humains, II). n, 126; wtu« zur Macht. n.O 974.

127. Leibniz. Philosophisch« Schriften. vol. VIII, p. 129, Gerhadt, citado por Y. Belaval, Leibniz critique de.

Descartes. p. 112.

128. Russel. Principais 0/Mathemarics, par. 214-216:J. Pariente, LeLangage etl'Individuel. Annand Colin,

1973. p. 139.

129. O método de' Foucault é, provavelmente. oriundo de uma meditação sobre la Généalogie de la

morale, segunda dissertação. 12. Oe uma maneira mais geral. o primado da relação Implica uma

ontologia da vontade de poder, a obra de Foucault poderia trazer como epigrafe dois textos deNietzsche, Pe r Wille zur Macht, n.O 70 (Krõner): "Contra a teori a da infl uência do meio e das causas

externas: a força inte rna é infinitamente superior, muito daquilo qu e parece ser influenciado pelo

exterior não é senão uma adaptação, de origem endógena, dessa força. Meios rigorosamente iguais

poderiam ser interpretados e explorados de maneiras opostas: os fatos não existem (es gibt keine

Tatsachen)". Como se vê. os fatos não existe m. não' some nte no pleno do conhecimento qu e

interpreta, mas no plano da realidade onde se os explora. O que leva a uma critica da idéia de verda de,

n.O 604 (Krõner): "O qu e pode sero conhecimento? Urna interpretação, um a atribuição de significação,

e não uma explicação... O estado das coisas não existe (es gibt keinen Tatbestand), Aqui o termo

ínterpretação não designa unicamente o sentido que se encontra em uma coisa, sua interpretação, mas

também o fato de interpretá-la, isto é. o sentido que se lhe dá".

130. Kun Badt, Die Kunst Cézannes, pp. 38.121,126, 129, 173.