Viagem Pedro II ES Levy Rocha

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Viagem de Pedro II ao Esprito Santo

Levy Rocha

Viagem de Pedro II ao Esprito Santo3 Edio

Volume 7

Vitria, 2008

ESTADO

DO

ESPRITO

SANTO

PAULO CESAR HARTUNG GOMES Governador RICARDO DE REZENDE FERRAO Vice-Governador

Secretaria de Estado da Cultura DAYSE MARIA OSLEGHER LEMOS Secretria de Estado da Cultura ANNA LUZIA LEMOS SAITER Subsecretria da Cultura CHRISTIANE WIGNERON GIMENES Subsecretria de Patrimnio Cultural MAURCIO JOS DA SILVA Gerente de Ao Cultural RITA DE CSSIA MAIA E SILVA COSTA Gerente do Sistema Estadual de Bibliotecas Pblicas SRGIO BLANK Subgerente de Humanidades Arquivo Pblico do Estado do Esprito Santo AGOSTINO LAZZARO Diretor Geral CILMAR FRANCESCHETTO DIRETOR TCNICO

Secretaria de Estado da Educao HAROLDO CORRA ROCHA Secretrio de Estado da Educao ADRIANA SPERANDIO Subsecretria de Estado da Educao Bsica e Profissional

S

U M R I O

Uma viagem memorvel Paulo Hartung .......................................................... 7 Pedro II e Levy Rocha na historiografia capixaba Fernando Achiam ...... 11 Prefcio ............................................................................................................... 31 Vitria era assim ............................................................................................... 41 Fervet opus .................................................................................................... 49 Enfim, a chegada! .............................................................................................. 57 Desembarque e recepo .................................................................................. 63 Desfile militar, beija-mo e jantar ................................................................... 69 Hospital da Misericrdia Conventos, histria e folclore .......................... 73 Um dia movimentado ....................................................................................... 91 Convento da Penha Vila Velha do Esprito Santo ................................... 107 Colnia de Santa Leopoldina ........................................................................ 121 Colnia de Santa Isabel .................................................................................. 135 Mestre lvaro e vila da Serra ........................................................................ 147 Reis Magos ou Nova Almeida ....................................................................... 157 Passagem pela vila de Santa Cruz ................................................................ 167 Pernoite na foz do Riacho .............................................................................. 177 Do pouso do Riacho a Linhares .................................................................... 183 Linhares Lagoa Juparan e ilha do Almoo ............................................ 189 Ainda em Linhares Um passeio rio acima ndios Regresso a Vitria .. 199 O beija-mo de despedida, em Vitria Encontro com Maximiliano da ustria ........................................................................................... 207 Vila de Guarapari ........................................................................................... 215 De Benevente a Barra de Itapemirim Despedida de Maximiliano ........ 219 Vila do Itapemirim Colnia do Rio Novo Rota final Corte .............. 231 Reflexos da visita imperial ............................................................................ 247 Vocabulrio dos puris do Aldeamento Imperial Afonsino ....................... 253 Vocabulrio de uma ndia velha da tribo tupiniquim ........................... 257

Bibliografia ...................................................................................................... 261 ndice de gravuras .......................................................................................... 265 ndice toponmico ........................................................................................... 267 ndice onomstico ........................................................................................... 276

__________Pgina 3: o Cais das Colunas, na visita dos imperadores a Vitria, em reconstituio histrica e desenho de Jorge Eduardo.

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Uma viagem memorvelO LIVRO DE LEVY ROCHA, cuja reedio honrosamente apresentamos aos capixabas, trata de uma viagem memorvel. Certamente, de tocante memria ao imperador Pedro II, que deixou anotaes e desenhos de sua expedio provncia do Esprito Santo exatamente a base da escritura desta obra. Mas, sem dvida alguma, de fundamental memria para todos ns. Fundamental porque, ao permitir paralelos histricos, evidencia o quanto um povo pode mudar a sua realidade. No momento em que o Esprito Santo consolida os passos iniciais de seu terceiro ciclo histrico, com a prtica poltico-administrativa renovada pela devoo incondicional aos valores republicanos e com o paradigma econmico transformado pelo petrleo e gs e pela ampliao do agronegcio e da indstria exportadora, o livro de Levy Rocha traz detalhes do tempo em que o nosso Estado apenas ensaiava os primeiros movimentos a fim de se firmar para alm de uma provncia esvaziada pela funo de muro protetor das riquezas das Gerais. Ao relatar a viagem de Dom Pedro II ao Esprito Santo, entre 26 de janeiro e 9 de fevereiro de 1860, Levy Rocha destaca as observaes do imperador acerca da indigncia em que vivia o Estado. Os quase vinte contos de ris que o imperador distribuiu de esmolas testemunham que a misria e as necessidades presenciadas no lhe foram indiferentes, escreve em suas concluses reveladoras de nossa situao crtica.7

A descrio que o autor faz de Vitria, que, poca, pouco excedia a cifra de cinco mil habitantes, e do mutiro que se teve de costurar, at mesmo entre inimigos polticos, para preparar a recepo e estada do imperador na sede do governo e residncia oficial (atual Palcio Anchieta), tambm reveladora da indigncia capixaba de ento. Tambm no passou despercebida a Dom Pedro II a prejudicial e flagrante desunio das lideranas polticas locais. As intrigas andam to acesas aqui, anotou o imperador durante a visita vila de Itapemirim, quando fazendeiros, capites e coronis, dentre outros, disputavam a ateno de sua majestade como forma de se impor politicamente, deixando de lado o interesse da provncia e da regio. Quase um sculo e meio depois da visita do imperador, o Esprito Santo ainda registra srias demandas de origem local e tambm enfrenta situaes crticas resultantes de um contexto nacional e mesmo planetrio. Mas pode-se afirmar que estamos a anosluz da situao de indigncia verificada por Pedro II e revelada por Levy Rocha em sua fundamental obra. Mais que isso: se a caminhada at aqui nos legou um presente muito distante do passado provinciano, vale dizer que capixabas de nenhuma outra gerao puderam estar diante de um horizonte to promissor como se registra atualmente. Como assinalamos h pouco, neste incio de milnio conquistamos renovados paradigmas poltico-administrativos e econmicos, o que nos permite alcanar uma perspectiva de futuro jamais vislumbrada em terras capixabas. Nesse ambiente que estamos constituindo planos viveis e factveis para a constituio de dias fundados na revolucionria igualdade de oportunidades para todos, a partir de um modelo de desenvolvimento socialmente inclusivo, ambientalmente sustentvel e geograficamente desconcentrado. Quanto s questes polticas, importante ressaltar o carter estratgico da unio em terras capixabas. O Esprito Santo tem um povo talentoso e apresenta potencialidades e oportunidades de desenvolvimento mpares. Mas a representao8

capixaba na poltica nacional numericamente prejudicada, devido nossa pequena quantidade de eleitores em comparao com outros Estados. Dessa forma, mesmo num cenrio de pujana social, cultural e econmica, as limitaes na representatividade poltica oferecem desafios bastante significativos. Se, alm disso, as foras polticas viverem mergulhadas numa irracional briga sem fim, tais desafios podem se tornar verdadeiros e srios obstculos ao pleno desenvolvimento capixaba, como vinha ocorrendo em anos recentes e tambm sculos atrs, conforme bem registrou Pedro II. Mas, na medida em que se faa poltica pautada pelos interesses coletivos, no haver limitaes srias constituio de futuro espetacular no Esprito Santo. Exemplo disso a realidade que vem sendo construda desde 2003, indita em nossa trajetria, a partir da pacificao das foras polticas e da sua devoo s demandas dos cidados capixabas. Muito se fez. Muito ainda precisamos fazer. Mantendo esse caminho, muito faremos. E a conscincia de nosso passado s nos fortalece nessa caminhada. Conscientes do que fomos, de nossos dons e tambm de nossas vulnerabilidades, seremos, cada vez mais, capixabas fortes, com reforado potencial de vitria e renovado esprito de confiana e trabalho rumo a uma realidade cada vez melhor. Nesse sentido, a nossa histria s tem a contribuir com o nosso futuro. Se por sculos fomos terra impenetrvel, barreira de proteo riqueza de outros, hoje somos lugar de conexes econmicas e de produo de riquezas capixabas. De terra esvaziada, tornamo-nos porto de ptrias, lugar de riqueza cultural e intercmbio de talentos. Se na caminhada esprito-santense registrou-se em anos recentes, diga-se o desvirtuamento da ao poltica, nestes ltimos anos pode-se dizer que esta agora uma terra onde os ideais e as prticas republicanas se colocam dentre as mais vigorosas de nosso pas. O livro de Levy Rocha soma-se a este vital exame histrico da trajetria capixaba, concedendo-nos flego e nimo extras diante de desafios e oportunidades que marcam a nova histria9

capixaba. Ao tornar evidente nossa capacidade de superao, este Viagem de Pedro II ao Esprito Santo um vigoroso instrumento de memria em favor de um futuro diferente e sempre melhor para todos ns.

PAULO HARTUNG Governador do Estado do Esprito Santo

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Pedro II e Levy Rocha na historiografia capixaba

O meu orgulho se encerra Em duas coisas somente: A gente da minha terra A terra da minha gente. NILO APARECIDA PINTO

AS PRINCIPAIS INFORMAES SOBRE a gnese da Viagem de Pedro II ao Esprito Santo j esto expostas no Prefcio elaborado pelo Autor para a primeira edio da obra, depois ampliado para a segunda edio, e que adiante se reproduz na ntegra. No entanto, convm acrescentar algumas observaes sobre a vida e a obra de Levy Rocha, bem como sobre o significado deste seu livro para a historiografia capixaba. Levy Curcio da Rocha nasceu a 14 de maro de 1916 na sede do municpio esprito-santense de Muqui, institudo poucos anos antes. Filho de Emlio Coelho da Rocha, primeiro delegado e prefeito da cidade, e Vicncia Curcio da Rocha, de ascendncia italiana, 11

Levy era o mais velho de oito irmos.1 Passou a meninice e fez os primeiros estudos em So Felipe, depois Marap, atual sede do municpio de Atlio Vivacqua, ento um distrito de Cachoeiro de Itapemirim. O seu interesse pela literatura comeou em casa, incentivado por seus pais que no dispensavam as revistas ou os fascculos dos romances de Emlio Richburg ou Alexandre Dumas.2 Sua me, que era musicista, incentivou a veia artstica da famlia. Isabel, uma das irms de Levy, casou-se com o escritor cachoeirense Newton Braga e produziu uma obra consagrada como pintora naf. Ainda em So Felipe, cursando a escola primria, Levy comea a sentir suas primeiras inquietaes literrias, como ele mesmo nos conta:Inaugurava-se a luz eltrica, quando o garoto subiu a um pequeno coreto para ler seu discurso de louvor ao melhoramento distrital. Acotovelou-se entre autoridades que o tempo se incumbiu de, por aproximao, tornar em amigos constantes: o Dr. Mrio Freire que secretariava o governo estadual e o engenheiro Luiz Derenzi, eminentes cultores da histria esprito-santense, ambos de saudosa memria. Duas outras personalidades se faziam presentes: o engenheiro Gustavo Coro, que representava a Cia. de Eletricidade, e o farmacutico local, o poeta Almeida Cousin que vinha de terminar a redao do portentoso poema brasilstico: Itamonte. [...] Em 1931, lanou, em parceria com seu amigo Francisco Borges, o 1 jornal de So Felipe: O Riso. Jornalzinho crtico e humorstico, com duas colunas e o tamanho de um palmo.3

Muitas informaes foram obtidas a partir de entrevista com Anna Bernardes da Silveira Rocha em 21/08/2006, e do artigo de sua autoria Alguns flashes de Levy Rocha Biografia em www.estacaocapixaba.com.br. Acesso em 11/08/2006. 2 Estes e outros aspectos da vida e da obra de Levy Rocha foram extrados de Dados biogrficos sobre o autor, em ROCHA, Levy. Viagem de Pedro II ao Esprito Santo. 2 ed. Rio de Janeiro: Rev. Continente; Braslia: INL, 1980, p. 219-20. 3 Cf. Dados biogrficos sobre o autor, em ROCHA, Levy. Marap. Rio de Janeiro: Rev. Continente; Braslia: INL, 1978, p. 153-4. Reproduzido por Elmo Elton em RIBEIRO, Francisco Aurlio (org.). Academia Esprito-santense de Letras Patronos & Acadmicos. Vitria: AEL, 2002, p. 42.1

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Aps cursar o ginsio, na poca com a durao de cinco anos, no Colgio Pedro Palcios em Cachoeiro de Itapemirim, Levy Rocha permaneceu no mesmo colgio, passando ao corpo docente como autodidata. Em seguida, freqenta em Vitria a Faculdade de Farmcia e Odontologia, ento uma das poucas unidades de ensino superior no estado. Datam desse perodo, meados dos anos de 1930, suas primeiras colaboraes literrias para a revista Vida Capichaba, importante peridico de Vitria, tambm por abrigar e incentivar os iniciantes nas letras, incluindo-se os irmos Newton e Rubem Braga, Ldia Besouchet,4 Alvimar Silva, entre muitos outros jovens que comeavam a se distinguir nas lides literrias. J formado farmacutico, o Autor volta para Cachoeiro e, para se sustentar, leciona cincias fsicas e naturais no Liceu Muniz Freire. Por ter sido injustamente preterido na efetivao como professor, resolve se transferir para o Rio de Janeiro, onde j morava seu irmo, Emlio Coelho da Rocha Filho, que lhe conseguiu um emprego na MABE (Moderna Associao Brasileira de Ensino) como professor de desenho. Nessa poca, Levy Rocha entra em contato com o escritor Graciliano Ramos, que exercia a funo de inspetor federal de ensino. Algum tempo depois, nosso conterrneo se emprega no Laboratrio Mead-Johnson e, em seguida, no Laboratrio Sandoz. Na qualidade de propagandista dessa ltima firma percorre praticamente o pas inteiro. Ele contava que, ao chegar s principais cidades e capitais, a primeira coisa que fazia era conhecer a biblioteca pblica. Enquanto seus colegas ficavam bebendo ou se divertindo, ele procurava ler e aperfeioar seus conhecimentos. Numa oportunidade, na Biblioteca Pblica em So Lus do Maranho, viu uma goteira em cima de livros raros, alertou as funcionrias para colocar em segurana as preciosidades, e as ajudou na tarefa de salvamento.

Que mais tarde ser autora da obra Exlio e morte do imperador, sobre os ltimos anos de Pedro II.4

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Levy Rocha foi um pioneiro em Braslia, onde chegou em 1959, ali fixando residncia no ano seguinte.5 Vendeu o apartamento que adquirira em Copacabana e, tendo o irmo Emlio como scio, foi tentar a sorte na nova capital que se construa. Para servir caf aos candangos que trabalhavam nas redondezas, eles abriram um bar na rua da igrejinha que era como os moradores dos primrdios de Braslia se referiam ao logradouro em frente pequena capela consagrada a Nossa Senhora de Ftima e situada entre as superquadras 307 e 308 Sul. Em seguida, e por muitos anos, os irmos se dedicam ao ramo de sapataria. Quando desfaz a sociedade com Emlio, que retorna ao Rio de Janeiro, Levy prossegue na venda de tnis e sapatos esportivos. Mas sua verdadeira preocupao no era o comrcio. Evidncia disso o seguinte fato: aps a inaugurao de uma livraria que comercializava obras raras perto do seu estabelecimento comercial, Levy, assim que a preciosa carga de livros chegava, pessoalmente ia separar no caminho os exemplares que lhe interessavam, antes mesmo de ingressarem na loja. Ao colaborar para a Vida Capichaba, tornou-se amigo do advogado e professor Manoel Lopes Pimenta, editor da revista, e depois secretrio de Educao e diretor da Escola Normal, que vai apresentar Levy professora Anna Bernardes da Silveira Rocha, de tradicional famlia vila-velhense, com quem se casou em 1961. Desse consrcio nasceu a filha Diana Bernardes da Silveira Rocha, que deu ao casal os netos Ana Maria, Michael e Enzo. Na Capital Federal convive com os comerciantes seus colegas, e mantm correspondncia com familiares e amigos, alm de privar da amizade de intelectuais conterrneos, como Geraldo Costa Alves, poeta, professor de latim no Centro Integrado de Ensino Mdio, o conhecido Elefante Branco, e Dicamor Moraes, historiador, professor da Universidade de Braslia UnB e funcionrio do Tribunal de Contas da Unio. Essa era uma poca em que viver na jovem Capital tinha

A primeira data, conforme entrevista com Anna Bernardes da Silveira Rocha, e a segunda de acordo com Dados biogrficos sobre o autor, em Marap, op. cit., p. 154.5

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muito de provinciano, de convvio entre as famlias, que se visitavam e ajudavam nas necessidades cotidianas. Estudando em Braslia em 1965-66, tive ocasio de conversar com Levy algumas vezes em que nos encontramos na SQS 305, onde ramos vizinhos, para matar as saudades da terra capixaba ao trocar notcias sobre o Esprito Santo. A par de sua atuao como propagandista de laboratrio farmacutico e depois comerciante brasiliense, Levy Rocha no descurava das atividades intelectuais, sempre relacionadas ao seu torro natal. Justamente para comemorar o centenrio da viagem de Pedro II ao Esprito Santo que organizou esta obra e a publicou no Rio de Janeiro, em 1960, integrada ao volume 246 (p. 3-164) da Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, tendo tambm circulado como separata. Trabalho bem recebido pela intelectualidade espritosantense, a exemplo dos elogios que mereceu de Guilherme Santos Neves em artigo publicado originalmente em 1965, e reproduzido em A Gazeta de Vitria em 25 de agosto de 2006. Tendo colaborado de forma espordica na imprensa de Cachoeiro de Itapemirim (Correio do Sul e Arauto), de Vitria (na revista Vida Capichaba, e nos jornais A Gazeta e A Tribuna), e do Rio de Janeiro (Jornal do Comrcio, O Malho e suplemento Singra encartado em jornais de circulao nacional), Levy reuniu escritos histricos referentes a Cachoeiro e, numa homenagem ao centenrio da cidade, os enfeixou na obra Crnicas de Cachoeiro, impressa em 1966 no Rio de Janeiro. Em Braslia publica um ensaio, Os Vieira da Cunha e o jornal O Martello, e a prestante obra Viajantes estrangeiros no Esprito Santo, editada pela Ebrasa, com a primeira tiragem em 1971 e a segunda no ano seguinte, em convnio com o Instituto Nacional do Livro INL. Esse talvez seja o livro mais conhecido de Levy Rocha, muito citado nas pesquisas sobre temas esprito-santenses. Pode-se mesmo consider-lo matriz inspiradora de inmeros outros trabalhos de pesquisa. E permanece como importante estudo introdutrio para todos que necessitam conhecer as vises dos estrangeiros que, no sculo XIX, percorreram as terras capixabas e registraram suas impresses, depois transformadas em fontes historiogrficas. 15

Em 1977, Levy edita outro livro, De Vasco Coutinho aos contemporneos, composto por inspiradas crnicas histricas. Nelas trata de assuntos to variados como os primrdios da cidade de Alegre, a matriz da antiga vila de Santa Cruz, ou a forte presena indgena em territrio do hoje estado esprito-santense. O romance Marap veio a lume em 1978 pela Revista Continente Editorial em convnio com o INL. Essa obra de Levy um bom exemplo de fico adaptada ao resgate da ambincia local, e que constri com verdadeira maestria um entrecho romanesco, sem ceder a apelos fceis representados pela pornografia como enleamento do leitor ou o linguajar matuto dos personagens incultos. Levy participou de coletneas de poetas em Braslia e Cachoeiro de Itapemirim. Em 1982 retorna ao seu querido Esprito Santo, fixando-se em Vila Velha, terra de sua esposa. Passa a pertencer ao quadro do Instituto Histrico e Geogrfico do Esprito Santo IHGES como scio efetivo, freqentando suas reunies de forma eventual. Na Academia Esprito-santense de Letras AEL foi o terceiro ocupante da cadeira nmero 5, que tem como patrono Amncio Pinto Pereira, tendo sucedido a Herclito Amncio Pereira e Heribaldo Lopes Balestrero. Levy Rocha faleceu em Vila Velha a 16 de julho de 2004, deixando inditos um livro de poesia e outro de contos, Cavoucando histrias do Esprito Santo, antes anunciado com o ttulo de Um banho para o Senhor Bispo, que trata do tema de sua predileo o passado esprito-santense. * * * Ressaltemos agora os trs grandes amores na vida de Levy Rocha sua famlia, seu estado natal, e os livros. Amores associados de forma constante por um trao caracterstico de sua personalidade, e que o definia bem a bondade. Fazia parte do carter de Levy a constante dedicao que devotava aos familiares e amigos. Sua me at dizia que meu marido o Levy, por ele sempre se preocupar com o bem-estar dela. Lembro-me do seu cuidado, aps uma reunio em Vitria no Instituto 16

Histrico, em me explicar, com seu jeito baixo e manso de se exprimir, que Marap era uma obra de fico, e suas personagens foram compostas com o brao de uma pessoa, a perna de outra, a cabea ou o corao de outra ainda, e assim por diante. Isso tudo para no ferir possveis suscetibilidades, j que algumas passagens do romance conferem um tratamento ficcional a acontecimentos passados na vila em que foram protagonistas familiares de ns dois. Por essas pequenas atenes, e muitas outras que seria longo lembrar aqui, possvel assegurar que Levy Rocha era uma pessoa de muito bom corao. O seu amor ao Esprito Santo est bem expresso nas inmeras obras que escreveu, das quais demos breve notcia nas linhas anteriores. Humilde sem ser subserviente, modesto sem ser simplrio, Levy Rocha, com o decorrer dos anos, tem seu nome elevado nas letras esprito-santenses, que passam a lhe conferir um justo lugar entre seus expoentes. E, mesmo de longe, ele continua a nos ensinar que nada se faz sem perseverana, sem trabalho rduo e paciente, sem um desprendimento prprio do idealista, que ele tambm o era. que Levy tinha como referncia a relatividade da penosa conquista historiogrfica, constantemente a depender de novas descobertas, de novos documentos, de novas posturas crticas e interpretativas, a ponto de pessoas desavisadas considerarem a histria mera obra de inveno. Mas, afinal, qual trabalho humano no carrega tambm seu trao de inveno? No caso do nosso historiador, a inveno vem alicerada em bases slidas, e ele no expe nenhuma concluso sem estar baseado em documentos e fontes fidedignas. E sempre distingue o que relato objetivo daquilo que acrescenta como colaborao e interpretao pessoais. Intelectuais do porte de Mrio Aristides Freire ou Levy Rocha, pessoalmente modestos, desempenharam papel relevante na divulgao da histria esprito-santense, ao transformarem documentos maantes ou intricados processos histricos em crnicas leves de fcil assimilao pelo grande pblico. Nesse aspecto, com toda certeza, foram mais proeminentes do que alguns abalizados acadmicos que obtiveram uma glria efmera por ocuparem postos de desta 17

que na administrao pblica, ou que se encastelaram em cima de produes ligeiras, ou que se entrincheiraram atrs de textos inacessveis. O amor de Levy Rocha pelos livros se manifestou desde sua mocidade. Quando resolve se mudar para Braslia, deixou algumas publicaes com a irm Isabel em Cachoeiro, e levou consigo outras. Tinha uma intuio apurada para localizar obras raras nas livrarias e sebos, que sempre percorria em busca de ttulos que lhe interessassem. Era um biblifilo de mo-cheia, no somente por colecionar livros com carinho, mas por levar essa paixo a certos requintes. Aprendeu na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro a conservar e restaurar publicaes. Comprava os materiais adequados e punha mos obra muitos dos exemplares de sua preciosa biblioteca ele mesmo os recuperou e encadernou. Esprito inquiridor e diligente, quando surgia um assunto novo por exemplo, a descoberta em Cachoeiro de um fssil de megatrio , Levy ia buscar referncias sobre o assunto para pesquisar e se aprofundar na matria. E isso numa poca em que estvamos longe das facilidades proporcionadas pelas consultas Internet. Era tambm uma pessoa muito organizada e meticulosa. Para exemplificar essa sua atitude, basta citar o fato de ele ter guardado numa caixa as cartas que recebeu de sua futura esposa, na fase de namoro; e com uma cpia das suas prprias respostas. Bem tpico da sua verve, a caixa est identificada com o ttulo de Affaire. Outra caracterstica de Levy a extrema facilidade para localizar cada obra na sua biblioteca. Sem sombra de dvida, podemos nomear Levy Rocha como o mais notvel dos biblifilos capixabas por ter-se dedicado a colecionar obras raras em geral, especialmente as referidas sua terra. que ele reunia livros no somente por amor a eles, mas para ter acesso s informaes que proporcionam e para se ilustrar, de que nos do prova esta e outras obras de sua lavra. Assim, tornou-se um erudito que gostava de se deleitar com a boa literatura e, sobretudo, de investigar com escrpulo temas ligados ao Esprito Santo, em publicaes oficiais, de divulgao, de literatura, de histria, 18

etc. Era tambm um pesquisador to persistente e acreditado que um servidor da Biblioteca Pblica de Petrpolis confiava a ele a chave da seo em que lia at mais tarde, depois do horrio de funcionamento para o pblico em geral. O seu extremado amor aos livros foi corroborado, de certa forma, pela justa homenagem feita sua memria, por meio da Lei n 7.958 de 17 de dezembro de 20046 que denominou Biblioteca Pblica Estadual Levy Curcio da Rocha a mais antiga instituio que custodia livros em nosso estado. E assim, colecionando e mantendo em casa obras raras sobre o Esprito Santo, Levy Rocha associava de forma nica os seus trs grandes amores sua famlia, sua terra natal e seus livros. Tudo unido por extrema bondade, convm repetir. * * * Na verdade, a feliz trajetria da presente obra somente se tornou possvel por essas caractersticas existentes na vida de Levy Rocha o apoio da companheira de vida inteira, a insigne educadora Anna Bernardes da Silveira Rocha, que sempre incentivou suas atividades intelectuais; o desvelo do autor por sua terra natal, que o levou escolha do tema; e seu amor pelos livros, que propiciou tornar-se um erudito respeitante a questes da histria capixaba. Com que trabalhos e canseiras deve certamente ter-se deparado para compor a presente Viagem de Pedro II ao Esprito Santo. Num perodo de imensas dificuldades para os pesquisadores, contou com sua prpria fora de vontade e com a benevolncia de muitos para poder levar a bom termo sua leitura e interpretao do Dirio de Pedro II, recorrendo transcrio feita pela Sra. Gasto Moniz Arago, certamente Maria da Conceio Moniz Arago. Uma cpia datilografada dessa transcrio, encadernada com re-

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Publicada no Dirio Oficial do Estado de 20/12/2004.

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produes fotogrficas de alguns desenhos de Pedro II existentes no Dirio, foi ofertada em 1961 por Levy Rocha ao IHGES. Esse gesto demonstra sua honestidade intelectual e seu desprendimento no queria as informaes somente para si, mas desejava compartilh-las com o maior nmero possvel de pessoas. O texto desta Viagem de Pedro II ao Esprito Santo foi estabelecido a partir do escaneamento da segunda edio da obra, servio providenciado de forma prestimosa pelo Departamento de Imprensa Oficial do Esprito Santo DIOES. Como no poderia deixar de ser, o texto de Levy Rocha foi respeitado, somente fazendo-se eventuais correes quando algumas passagens truncadas por erros tipogrficos na segunda edio puderam ser supridas com o excerto correspondente da primeira. Na reviso, destacaram-se os trechos citados do Dirio de Pedro II, e suprimiram-se alguns ttulos (Dr., etc.) e formas de tratamento julgadas dispensveis. Fiz o cotejo das passagens do Dirio de Pedro II citadas por Levy Rocha com as imagens do original, publicadas em CD-ROM pelo Museu Imperial de Petrpolis,7 e com a transcrio elaborada por Maria da Conceio Moniz de Arago tanto aquela doada em 1961 ao IHGES por Levy, como a existente no referido CD-ROM.8 As palavras faltantes ou modificadas foram, nesta edio, colocadas entre colchetes, no se consignando os vrios casos em que se restabeleceu a pontuao original do Dirio de Pedro II ou se alteraram artigos e

BEDIAGA, Begonha (org.). Dirio do Imperador D. Pedro II (1840-1891). Petrpolis: Museu Imperial, 1999. Inclui CD-ROM. 8 Na obra publicada pelo Museu Imperial de Petrpolis, na parte em que se refere metodologia adotada, h o seguinte esclarecimento: Finalmente, cabe ressaltar que esta edio foi baseada no excelente trabalho de transcrio elaborado anos atrs por Maria da Conceio Moniz Arago. Apesar de no ter sido realizado o cotejamento de todos os volumes do dirio, o trabalho atual elaborou a unificao da metodologia de transcrio e a reviso do contedo, com a inteno de facilitar o acesso do leitor, de forma rpida e objetiva, aos temas de seu interesse, permitindo inclusive, em caso de dvidas, a consulta do manuscrito original no CD-ROM. BEDIAGA, Begonha (org.), op. cit., p. 28.7

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preposies. Note-se que umas quatro ou cinco passagens do Dirio foram acrescentadas entre colchetes, devido ao fato de Levy Rocha no ter feito o registro convencional de sua supresso. Assim, essas faltas foram atribudas a erros tipogrficos, mais fceis de acontecer quando numa mesma frase certas palavras so repetidas e suprimese (pula-se) o texto por elas intercalado. Com as facilidades proporcionadas nos dias atuais pela Internet, pude conferir alguns nomes prprios e resolver certas dvidas da transcrio anterior. Ao final da empreitada, j estava acostumado com os rabiscos de Pedro II que, como disse antes, procurei interpretar a partir das imagens digitalizadas das duas cadernetas (laptops do imperador, diramos hoje) por ele utilizadas na excurso ao Esprito Santo. Nesta edio foram acrescentadas as fotos de Victor Frond, feitas pouco tempo depois que o imperador visitou a terra capixaba, e cuja autoria foi estabelecida por Cilmar Franceschetto, que nos informa:A vinda de Victor Frond ao Esprito Santo em 1860 est inteiramente ligada visita de D. Pedro II e sua comitiva, naquele mesmo ano. [...] plausvel que, aps visitar as colnias, o imperador e seus ministros, ao perceberem o progresso ali verificado, a grande quantidade de terrenos disponveis para a colonizao e o avano que a imigrao poderia trazer Provncia, tenham resolvido investir em sua divulgao, contratando os servios fotogrficos de Frond. Na poca, as colnias do Esprito Santo gozavam de m reputao, devido total falta de infra-estrutura, e encontravam resistncias junto aos colonos que tinham um conceito muito negativo sobre a situao das mesmas e preferiam, ou ento exigiam, qualquer outra do Brasil como destino.9

Cf. FRANCESCHETTO, Cilmar. Victor Frond: o pioneiro da fotografia no Esprito Santo. Em TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagem provncia do Esprito Santo : imigrao e colonizao sua. Vitria : Arquivo Pblico do Estado do Esprito Santo, 2004, p. 126. Cf. tambm FRANCESCHETTO, Cilmar. As imagens perdidas de Victor Frond. Em Nossa Histria. Ano 2, n. 14. Rio de janeiro, dez. 2004, p. 43. Para constarem na presente edio, Cilmar Fanceschetto gentilmente forneceu reprodues9

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Os quadros a leo de Pedro II e D. Teresa Cristina, executados em 1852 pelo pintor portugus Antnio Cavalheiro dAlmeida e restaurados recentemente no Museu Histrico Nacional do Rio de Janeiro, retornaram Cmara Municipal de Itapemirim, onde foram fotografados para esta edio. Os desenhos de douard Riou, feitos com base em croquis de Franois-Auguste Biard, foram reproduzidos da obra deste ltimo, Deux annes au Brsil, publicada em 1862. As demais ilustraes acompanham aquelas existentes na segunda edio, somente modificadas no que diz respeito s reproduzidas do Dirio de Pedro II, as quais foram obtidas do CD-ROM da edio antes referida. Foram acrescentados os ndices de gravuras, topogrfico e onomstico, na inteno de tornar mais rpida e produtiva a consulta a este livro. Agradecemos a todos os que, direta ou indiretamene, contriburam para que esta edio fosse realizada; em especial a D. Anna Bernardes da Silveira Rocha, Neusa Maria Mendes, Srgio Blank, Reinaldo Santos Neves, Miguel Marvilla, Christoph Schneebeli, Cilmar Franceschetto, Humberto Capai, La Brgida Rocha de Alvarenga Rosa e Luiz Guilherme Santos Neves. Esse simples trabalho editorial pretende homenagear a memria do Autor desta obra, sempre fiel aos documentos que consultou e sempre ressaltando o valor da fonte original. Se os atuais pesquisadores podem progredir nos seus trabalhos, foi porque encontraram a estrada j delineada pelos que, como Levy Rocha, os precederam e que, por ingentes esforos, abriram caminho na selva intrincada da historiografia esprito-santense. * * * Em certo sentido, pode-se afirmar que Viagem de Pedro II ao Esprito Santo constitui-se no trabalho historiogrfico que mais desve-

das fotos de Victor Frond, cujos originais se encontram na coleo Teresa Cristina Maria, da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

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los teve por parte de Levy Rocha. Talvez por possuir caracterstica mpar no conjunto da produo do Autor foi o seu primeiro livro editado ele se identificava bastante com esta obra e, para realizla, freqentou muito os amigos e as instituies culturais de Petrpolis. O cuidado na reproduo das ilustraes tambm denota isso. Essas ilustraes, sobretudo as da segunda edio, enriquecem muito o trabalho e possibilitam que dele se tenha uma leitura parte. Se no, vejamos: logo na capa e na falsa folha de rosto podemos contemplar a reproduo de pintura hiper-realista de autoria do artista contemporneo Jorge Eduardo e que representa o desembarque de D. Pedro no cais das Colunas, em frente ao palcio do governo, pouco tempo depois denominado cais do Imperador. Em seguida, esto estampados os quadros a leo de D. Pedro II e de Dona Teresa Cristina, pintados na dcada de 1850, e que atualmente pertencem Cmara Municipal de Itapemirim. Ao longo da obra so reproduzidos, alm dos belos e ilustrativos desenhos de Pedro II retirados do seu Dirio, retratos de Pedro Leo Veloso e Lus Pedreira do Couto Ferraz, presidentes da provncia do Esprito Santo, do prncipe Maximiliano de Habsburgo e do imperador em uniforme de almirante; desenhos de Franois Biard, de Levino Fnzeres, de Marcos Mendona; xilogravura do atelier de Alfredo Pinheiro; bicos-de-pena de Quirino Campofiorito; e um quadro a leo focalizando a fazenda do Pau dAlho em Rio Novo. Tudo valorizado pelas pequenas figuras que fecham diversos captulos e que tm por autor o celebrado caricaturista Raul Pederneiras. Ora, reunir essas ilustraes, significativas pelo nmero e pela qualidade, indica a argcia e a sensibilidade de Levy Rocha para valorizar o tema que estuda com propriedade. O Autor tem razo quando registra no seu Prefcio a importncia de se editar o texto completo do Dirio de Pedro II referente aos dias que passou na provncia esprito-santense. Na qualidade de escritor sensvel, transcreveu muitos trechos do Dirio sem se preocupar em obedecer ordem original do manuscrito o seu objetivo era, alm de transmitir as informaes para o leitor, tirar o maior impacto possvel das palavras do imperador. Dessa sorte, o presente trabalho 23

resultou numa viso pessoal sobre o Dirio de Pedro II, o que em termos de pesquisa histrica pode representar uma diferena fundamental. Ou seja, como evidente mas convm enfatizar, essa a leitura que Levy Rocha fez do Dirio de Pedro II. Outros podero faz-lo tambm e, no voto e nas palavras do prprio Levy, esperando que se desincumbam melhor em idntica tarefa que empreendi. Repto que, passado quase cinqenta anos, ainda no foi confrontado. E ele empreendeu tal tarefa com larga viso historiogrfica, e sem se recusar a expor sua metodologia, que pode muito bem servir de modelo para os novos historiadores: Ousando avanar mais longe e pretendendo um livro sem o aspecto maudo dos documentos, procurei alinhavar as anotaes de Sua Majestade com as notcias dos jornais da poca, intercaladas com comentrios sobre a histria, hauridos na bibliografia que relaciono no final da obra. Trabalho rduo esse de Levy ao conseguir acesso a publicaes avulsas e peridicas, delas extrair os trechos pertinentes visita de Pedro II ao Esprito Santo e os comparar com as impresses imperiais. O Autor sempre procura contextualizar as personagens, fatos e locais relacionados com a visita imperial, o que empresta a esta obra uma grande utilidade para os estudos historiogrficos da nossa terra. Poderamos citar inmeros exemplos, mas ficaremos nuns poucos somente. Quem se lembraria, seno Levy Rocha, de tirar do esquecimento a figura de Jos Marcelino Pereira de Vasconcelos e o seu Jardim Potico? Ou de reproduzir uma xilogravura do convento da Penha, constante em livro de J. J. Gomes Neto? Ou se referir aos Bittencourt, proprietrios, entre outras, da fazenda da Areia em Itapemirim como os moos da Areia? Da mesma forma, convm ressaltar a fina ironia do Autor, que poderia ser ignorada por observador desatento, mas est evidente quando ele observa que Pedro II sempre reparava na caligrafia dos professores e alunos, na visita s escolas, mas escreveu uma cartinha para sua filha Isabel com letra bem sofrvel. Ou, ao notar que entre os vereadores que recepcionavam o imperador em Nova Almeida existiam cinco com o nome de Manuel, no esquece de registrar: Ao surgir o monarca, atravessando entre as alas, foi sau 24

dado por girndolas e vivas entusisticos dos habitantes da terra dos Manuis. Ou ainda ao declarar, comentando as repercusses da viagem imperial, que muitas pessoas dela esperavam efeitos que absolutamente no poderia proporcionar. A utilidade da presente obra-prima de Levy Rocha ressaltada quando percebemos que ele se constitui num cicerone prestimoso acerca da viagem que Pedro II empreendeu em terras espritosantenses por uma quinzena. A leitura do Dirio sem estas indicaes de Levy seria mais limitada, quer dizer, menos proveitosa. Ele, de maneira simultnea, respeita o texto original de Pedro II, do qual reproduz quase a totalidade, mas o contextualiza valendo-se das suas qualidades de notvel historiador. Qualidades essas que, por exemplo, fizeram o Autor perceber a coincidncia das presenas de Pedro II, Biard e Tschudi na mesma poca em terras capixabas. * * * A partir desta viso de Levy Rocha, podemos ter diferentes leituras do Dirio de Pedro II, e nos encontrarmos com diversas personagens do imperador. Em alguns trechos, o contido Pedro que expressa seus sentimentos por exemplo, ao se referir paisagem do litoral no caminho para o rio Doce: A praia antes do riacho Sau que s em mar baixa d vau, parece-se com a de Itapuca, por causa das pedras, e muitas saudades me fez. O homem Pedro est presente tambm em outras passagens, como naquela em que registra o nome anhiknhik dado pelos botocudos a um macaquinho de cara branca e apresentado em Linhares aos componentes da comitiva , nome com o qual eles de imediato apelidaram o visconde de Sapuca. De maneira telegrfica, assim chamaram logo ao Sapuca, Pedro registrou o clima de gozaes e brincadeiras de simples brasileiros adultos que compartilhavam os prazeres e distraes de uma excurso por recantos pitorescos. Em reiteradas ocasies, no entanto, o Dirio nos revela o professor Pedro de Alcntara, mestre-escola frustrado, e que sempre se preocupa com o nvel e qualidade do ensino ministrado nas escolas 25

do imprio, mesmo sabendo no ntimo que pouco podia fazer para reverter tal quadro numa sociedade escravocrata. Esse professor Pedro de Alcntara, sempre com uma postura ctica, nos revela um outro lado do imperador, desvestido dos seus ares majestticos. O que se entrev tambm a pobreza do povo, quase todo analfabeto, realidade que ele no se furta a registrar no seu Dirio. Sem contar as expresses e termos por ele utilizados e hoje em desuso, como acabo de passar pelo sono, etc. que so muito significativas para se estudar a linguagem empregada naquele perodo pela elite dominante. Em muitas outras passagens, pode-se testemunhar com nitidez a atuao do Doutor Pedro de Alcntara Bragana, de que nos d mostra a atitude de trocar um passeio ao longo da baa de Vitria pelo registro do vocabulrio praticado por remanescentes de ndios puri, trazidos at a capital capixaba, mas que viviam confinados no Aldeamento Imperial Afonsino, em terras hoje situadas, grosso modo, no municpio de Conceio do Castelo. Temos ento, nessa como em outras passagens (ao anotar o vocabulrio de uma velha ndia tupiniquim, etc.), a presena do estudioso com todas as limitaes da poca de diferentes assuntos ligados natureza e ao homem, o que hoje em dia chamaramos de temas vinculados ao meio ambiente e antropologia, respectivamente. Nem difcil presumir que os governantes locais, sabendo da famosa predileo imperial por tais assuntos, tenham arranjado esses encontros de modo a distrair o governante de suas preocupaes, e com ele serem agradveis, ao contentarem o que talvez tomassem por uma de suas excentricidades. bem provvel que esse Dr. Pedro tivesse conscincia de que estava documentando uma situao social que se transformava rapidamente, registrando enquanto podia a fala dos indgenas que ainda habitavam o territrio capixaba. Certamente os temas indgenas lhe interessavam, como demonstra Lilia Moritz Schwarcz: nesse contexto [interesse do monarca pelo IHGB e sua entrada na vida cultural do Brasil], portanto, que sem abandonar a coroa, D. Pedro 26

introduz o cocar e uma viso particular do pas. Promover a centralizao nacional significava imaginar uma unificao cultural e era assim que se lanavam as bases para uma atuao que conferiria ao jovem soberano a fama e a imagem de mecenas: do sbio imperador. Em torno dos membros da revista do Instituto anunciava-se o modelo nativista, cujo objetivo era promover o triunfo da literatura nacional, que, no caso brasileiro, deveria levar em conta a capacidade potica do ndio. [...] A valorizao do pitoresco, da paisagem e das gentes, do tpico ao invs do genrico encontrava no indgena o smbolo privilegiado. Com efeito, por oposio ao africano, que representava a escravido, o silvcola aparecia como nobre e autntico, capaz de suportar a construo de um passado honroso e mtico.10

E se os escritos e desenhos imperiais no eram na poca, e mesmo em perodos posteriores, levados muito a srio, hoje so valorizados. Basta citar um s exemplo para avaliarmos sua importncia at demonstrao em contrrio, este Doutor Pedro Bragana fez uma espcie de registro etnogrfico, avant la lettre, ao desenhar a primeira representao particularizada da hoje famosa casaca, instrumento tpico da nossa msica popular e, salvo engano, somente existente em terras capixabas. Chama ateno tambm a preocupao do autor do Dirio (comum naquele tempo?) de experimentar a gua potvel de todos os lugares por onde passava, e emitir opinio sobre sua qualidade. E, claro, no se pode esquecer a figura do imperador, a personalidade de D. Pedro II, o servidor pblico nmero um do pas, a pessoa pblica em tempo integral, o governante mximo do Brasil, o indivduo que tinha como nome completo Pedro de Alcntara Joo Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocdio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragana e Habsburgo. E que, no entanto, no possua muitas iluses sobre seus poderes,

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Quando um dirio ntimo pea pblica e oficial... Em BEDIAGA, Begonha, op. cit. p. 46-7.10

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pois conhecia as limitaes e pobreza da terra, e dos errios do governo central e da provncia, e que to pouco podia fazer pela resoluo dos problemas locais. Apesar do seu famoso bolsinho, ou talvez por isso mesmo, era um governante pobre de um imprio pobre sabia certamente que as esmolas minoravam por pouco tempo a dor dos despossudos, mas no resolviam seus problemas. Identificamos tambm, ao ler esse Dirio, a proverbial pressa do imperador, a cronometrar o tempo como se estivesse entre duas estaes ferrovirias inglesas, e no nas selvas do rio Doce ou no vale do Itapemirim de meados do sculo XIX. Presumivelmente, desejava transmitir aos acompanhantes de sua excurso que no estava simplesmente a passeio, mas inspecionava uma parte do seu vasto imprio. Contudo, emanam dessas pginas alguns bons votos para o futuro, na viso da poca. O trfico negreiro j no mais existe e a soluo imigratria deve ser executada a toda fora, de sorte a incrementar a produo do caf, que iria garantir a insero do Esprito Santo numa nova dinmica da economia nacional e mesmo internacional. Estvamos no final da dcada de 1850 quando justamente o caf desbancou a produo aucareira na provncia esprito-santense. Mas tudo ainda no comeo vemos, por exemplo, o antigo traficante de escravos, major Caetano Dias da Silva, fazer uma inverso de capitais na colnia do Rio Novo, logo depois encampada pelo governo imperial, pois os membros da elite econmica nunca podem sofrer qualquer revs financeiro o Estado brasileiro j naquele tempo privatizava os lucros e socializava os prejuzos. Como pano de fundo, a crise do sistema escravista e o incremento da importao de mo-de-obra europia. E, no meio desse entrechoque de regimes de trabalho, a presena dos ndios. Eles j no representavam ameaa maior os remanescentes dos puris confinados no Aldeamento Imperial Afonsino, como vimos, e os botocudos, sempre isolados ou combatidos em Minas Gerais e no Esprito Santo. Desse modo foram criados os ento concebidos vazios demogrficos, terras consideradas sem ocupao e plenamente disponveis para distribuio aos imigrantes. Foram essas terras no bai 28

xo rio Doce que o imperador visitou, alm das recentes colnias de Santa Isabel e Santa Leopoldina (nomes das suas duas filhas), na hinterlndia de Vitria, e Rio Novo, no vale do Itapemirim. Nessa ltima regio, a passagem do imperador guarda at um gesto emblemtico ele no se detm em qualquer fazenda dos antigos produtores de acar, devido a brigas locais, mas principalmente para reafirmar que o futuro estava no caf e na mo-de-obra imigrante. Esse talvez seja o sentido maior dessa visita imperial e que passa despercebido para muitos pesquisadores da histria espritosantense. possvel inferir que Pedro II, a partir de sua viagem s plagas capixabas, teve aumentada a conscincia dos desafios que ento se apresentavam ao Esprito Santo e, para enfrent-los, tomou as atitudes que julgou adequadas, de acordo com as circunstncias daquela poca. Passados tantos anos da visita imperial provncia, sabemos muito bem o que foi colhido com a implantao dessa poltica, que privilegiou o imigrante de origem europia. Por um lado, e esse o aspecto positivo, assistimos ao progresso, proporcionado pela rpida afluncia ao Esprito Santo de milhares de trabalhadores que vieram contribuir para o desenvolvimento brasileiro em geral, e capixaba em particular, enfrentando inmeros obstculos numa luta sem trguas. Um dos traos caractersticos da atual realidade econmica capixaba a presena de muitos pequenos proprietrios produzindo um artigo (o caf) para exportao , adveio em grande parte de decises tomadas naqueles anos decisivos. Por outro lado, o negativo, sabemos tambm que essa poltica oficial foi excludente em relao aos povos indgenas e seus descendentes, espoliados de suas propriedades, e aos povos africanos e seus descendentes que, com rarssimas excees, tiveram negado o acesso terra, num tempo em que ela representava quase toda a possibilidade de prosperidade e riqueza. E tais fatores influenciam at hoje a configurao social da nossa terra. A histria deve falar no somente dos vencedores, mas tambm dos vencidos. preciso que tais ponderaes sejam feitas para reiterar a importncia dessa presena imperial entre a gente capixaba, to bem registrada por Levy 29

Rocha, e suas repercusses a mdio e longo prazos na nossa histria. Em outros termos: este Dirio um significativo registro, feito por um observador privilegiado, da execuo de uma poltica de Estado a famosa soluo imigratria , que condicionar, para o bem e para o mal, grande parte do percurso histrico do Esprito Santo nas dcadas seguintes. Mas quem escreve relatos historiogrficos pode tambm fazer histria. o que Levy Rocha conseguiu com todos os seus trabalhos, e com este especialmente. Ao tornar o Dirio de Pedro II um documento acessvel aos pesquisadores de temas capixabas, ele se inscreveu de forma perene na histria da histria esprito-santense, ou seja, na prpria historiografia dessa terra. Como j acontece h quase meio sculo, o presente livro ser citado toda vez que os estudiosos se reportarem visita que o segundo imperador do Brasil realizou por nossa provncia. Assim, por meio desta obra, Pedro II continuar pelos tempos vindouros a viajar pela histria do Esprito Santo, sempre na agradvel, discreta e utilssima companhia de Levy Rocha, capixaba que deixou um nome do qual, com toda justia, podemos nos orgulhar.

FERNANDO ANTNIOCoordenador editorial

DE

MORAES ACHIAM

30

Prefcio

N

o ano de 1859 o segundo imperador do Brasil, acompanhado da imperatriz e pequeno sqito, empreendeu uma viagem s provncias do norte embarcando no Rio de Janeiro a 1 de outubro no vapor Apa, o qual saiu comboiado por trs navios da nossa Marinha de Guerra: a fragata Amazonas, a corveta Paraense e a canhoneira Belmonte. Aps seis dias de viagem, Suas Majestades Imperiais eram jubilosamente recebidas pelos baianos. No dia 12, iniciaram a excurso cachoeira de Paulo Afonso, regressando a Salvador dia 26. A 19 de novembro, partiram para Recife, onde os acolheu o mesmo entusiasmo popular, trs dias depois. De Pernambuco rumaram, a 24 do mesmo ms, para a Paraba, ponto extremo da viagem. No regresso, o imperador visitou as Alagoas e Sergipe, esteve de novo na Bahia e de l partiu para o Esprito Santo, onde aportou a 26 de janeiro de 1860. Dessa data at o dia 9 de fevereiro, quinze dias, portanto, fazendo uso dos mais variados e desconfortveis meios de locomoo o vapor, a galeota, a canoa, o cavalo, a p , S. M. I. visitou no s a nova e a velha capital como quase todas as populaes mais importantes da provncia: as colnias de Santa Leopoldina e Santa Isabel; as vilas de Viana, Serra, Santa Cruz e Reis Magos; o rio Doce Linhares e lagoa Juparan. No sul, esteve 31

em Guarapari, Benevente, Itapemirim e foi at a colnia do Rio Novo. S no visitou So Mateus. Premncia de tempo ou receio, talvez, da epidemia de varola que se alastrara demoradamente pela cidade, no ano anterior, ceifando muitas vidas. A 11 de fevereiro chegava, de volta, Corte. As memrias dessa fatigante viagem, que durou quatro meses, mereceram os mais amplos registros nos jornais e revistas da poca, e os atos de maior destaque e magnanimidade imperial, bem como as recepes do povo, os discursos de saudao, as poesias laudatrias, as pomposas festas etc., para registro da posteridade, foram enfeixados em livros. O primeiro que saiu, sobre a viagem a Sergipe, foi mandado publicar pelo Dr. Manuel da Cunha Galvo, presidente daquela provncia, no mesmo ano de sessenta. Em 1862 e 1867, foram editados os volumes referentes a Pernambuco e Bahia, por Bernardo Xavier Pinto de Sousa, que os exps venda na sua tipografia e livraria, na rua dos Ciganos, 43 e 45, Rio de Janeiro, conforme preanunciara no Correio da Tarde, ao preo de doze mil ris o volume em brochura e quinze mil ris encadernado. Essas raridades bibliogrficas que alcanam, hoje, quando aparecem nos alfarrabistas, mesmo rasgadinhas, muitos cruzeiros o exemplar, ainda podem ser consultadas em alguma biblioteca pblica. Sobre a Bahia e sobre Pernambuco, dois historiadores contemporneos, Alcindo Sodr e Guilherme Auler, divulgaram o precioso e quase indito manancial procedente do Arquivo da Famlia Imperial Brasileira: dirios, cadernetas de notas e apontamentos de viagens, manuscritos a lpis do prprio punho de D. Pedro II. Quanto viagem ao Esprito Santo, no saiu nem o livro de Pinto de Souza nem mesmo, posteriormente, nenhum de outro autor. Salvo pequenas notas esparsas dos historiadores e cronistas capixabas, um discurso de Augusto de Aguiar Sales, divulgado na Revista do Instituto Histrico esprito-santense, sumariou a viagem de D. Pedro II terra de Maria Ortiz. Apreciando o tema, que considerou como um dos episdios mais interessantes a ser contado em nossa histria provincial, Jair Etienne Dessaune pronunciou 32

em Vitria uma conferncia (maio de 1949), focalizando a visita imperial quela cidade. Os jornais da Corte: Jornal do Comrcio, Correio da Tarde, Dirio do Rio de Janeiro e Correio Mercantil, nas notcias enviadas pelos seus correspondentes, calcadas no Correio da Vitria, ou dele reproduzidas, cujas colees no consta que existam mais, omitiram a descrio da visita ao rio Doce e s vilas do sul capixaba. O motivo que me empolgou, gerando nimo e flego para escrever este trabalho, foram os manuscritos valiosos e inditos encontrados no Arquivo do Museu Imperial, em Petrpolis: uma caderneta de 15,5 x 9 cm, com 95 pginas contendo notas a lpis e alguns desenhos de D. Pedro II. Refere-se ao percurso de Aracaju ao Esprito Santo e tem a seguinte indicao, para consultas: Catlogo B. D. 1.057 de 11 a 28 de janeiro de 1860. Outra caderneta, com as mesmas dimenses da anterior, 70 pginas escritas a lpis e alguns desenhos de D. Pedro II, encerra os apontamentos da parte final da viagem, de Vitria ao Rio de Janeiro. So notas ligeiras, to resumidas, em certos pontos, que chegam a se tornar enigmticas, numa letrinha por vezes ilegvel. Devem ter sido rabiscadas at em cima do joelho, no precrio equilbrio de uma canoa, ou sobre o selim dos cavalos, sem a preocupao da forma literria, com parcimnia de vocbulos e de pontuao, mormente vrgulas. O prprio imperador revelou, posteriormente, em carta princesa Isabel, a natureza dos seus apontamentos, os quais considerava sarrabulho, assim se expressando: As notas de viagem foram escritas a vapor e s para depois fazer uma narrao exata da viagem vista delas. Todavia, elas ressumam a sinceridade e constituem no s elementos para os grafologistas e os perquiridores do feitio intelectual de D. Pedro II, mas, sobretudo, um documento histrico de primeira ordem. A sua simples publicao e dos desenhos que Heitor Lyra classifica como mais importantes do que as poesias do imperador, acompanhada de notas elucidativas, seria matria para um livro til. O peridico A Provncia do Esprito Santo, de 24 de maro de 1882, estampou a seguinte informao: Noticiaram alguns jornais 33

da Corte que o Imperador est concluindo um livro intitulado: Impresses de Viagem e que ser publicado em lngua francesa... Mas esse livro, ao que parece, no veio a lume. Ousando avanar mais longe e pretendendo um livro sem o aspecto maudo dos documentos, procurei alinhavar as anotaes de Sua Majestade com as notcias dos jornais da poca, intercaladas com comentrios sobre a histria, hauridos na bibliografia que relaciono no final da obra. Julguei, ainda, poder tirar proveito do relato de viagem do engraado e irnico pintor francs, Auguste-Franois Biard, o qual esteve no Esprito Santo na mesma poca da visita imperial, para desenhar os ndios na vila de Santa Cruz. Recolheu impresses pitorescas, publicando o livro ilustrado Deux Annes au Brsil, leitura fcil e agradvel como passatempo, mas que leva um pesquisador a dar tratos bola para no confundir o navio Mucuri, no qual viajou o pintor, com Mercury, ou o rio Piraqu-au com Sangouassou, como fez Biard. Valeram-me, mais, as impresses de outro clebre viajante, o baro de Tschudi, enviado extraordinrio da Confederao Helvtica ao Brasil, como ministro plenipotencirio, que, para estudar os problemas da imigrao sua, andou trilhando quase a mesma rota percorrida pelo imperador e chegou a Vitria a 28 de outubro de 1860 nove meses aps a visita de Suas Majestades. Hospedou-se nas mesmas dependncias do Palcio, conservadas em estado impecvel pelo novo presidente, solteiro, o Dr. Antnio Alves de Souza Carvalho, exatamente como foram deixadas pelo casal imperial. E perdoe-me o leitor pelo uso abusivo das aspas: creia que se as abolisse, fantasiando a histria, a tarefa seria menos afanosa. * * * A essas explicaes do prefcio da 1 edio ajuntarei alguns comentrios de como nasceu a razo do livro. Em Petrpolis, por freqentar assiduamente a Biblioteca Municipal, tornei-me amigo do seu diretor, um enamorado das belezas do Esprito Santo, Sr. Jos Hoeptke Fres. Prestando-me grande gen 34

tileza, ele induziu um descendente alemo a traduzir, do livro do baro de Tschudi Viagem Amrica do Sul toda a parte referente ao Esprito Santo. Eu pretendia, aps adapt-la a um portugus mais fluente, oferecer a traduo Revista do Instituto Histrico do Esprito Santo, mas constatei que o que havia de mais precioso na narrativa j fora aproveitado e transcrito por Ernst Wagemann em seu livro A Colonizao Alem no Esprito Santo, traduzido por Reginaldo Santana e publicado pelo IBGE, em 1949, sem as ilustraes da edio germnica de 1915: as vistas bastante ntidas do Porto do Cachoeiro de Santa Maria, Campinho, Santa Joana, Jequitib, colonos posando para o fotgrafo, suas casas, lavouras, seus instrumentos de trabalho e at um pequeno monjolo numa casinha de tbuas lascadas. Por intermdio do mesmo Sr. Fres descobri, cheio de alegria, que a edio francesa do livro de Biard, traduzido por Mrio Sete e integrado na coleo Brasiliana, tinha belos desenhos, inspirados em temas capixabas. Ainda em Petrpolis, outro amigo, o Sr. Marques dos Santos, proporcionou-me o acesso aos arquivos do Museu Imperial, onde fui encontrar, emocionado, os inditos, apontamentos escritos a lpis, em duas cadernetinhas de bolso, com desenhos, da autoria de D. Pedro II. Mais uma circunstncia feliz: esses manuscritos, de difcil decifrao, estavam sendo copiados, direi melhor, traduzidos, pela Sra. Gasto Moniz Arago e devo dizer que foi fundamental o seu concurso para que eu conseguisse as cpias dos citados manuscritos. Eu tinha o propsito de escrever uma ou duas crnicas sobre o achado, mas, ao examinar to rico material, louvei a coincidncia de, na mesma poca, visitarem o torro capixaba o diplomata suo, o pintor francs e o nosso imperador. Reconheo que nessa questo de manusear papis velhos sou bem um nefito; na garimpagem, no tenho a estirpe bandeirante, mas acontece que eu tropeava ao acaso com uma ganga rica, descobrira gemas preciosas, estava rico do assunto e no poderia fugir idia de fazer o livro. 35

Procurei o prncipe D. Pedro de Orleans e Bragana, to alto no seu porte fsico quanto diplomata e afvel: ele narrou-me o episdio que ouvira contar da sua av, sobre a garrafa enterrada na ilha do Almoo, na lagoa Juparan, e autorizou o Sr. Guilherme Auler a fornecer-me fotocpias de duas cartas que D. Pedro II escrevera de Vitria para a princesa Isabel. De lpis em punho, procurei algumas pessoas e, como se faz com as cartas enigmticas dos almanaques, fui anotando as palavras decifradas ao tempo em que podia lembrar a diferena do tipo de letra cursivo de Sua Majestade, quando tinha pouco mais de cinco anos de idade e escrevia a primeira carta ao seu pai. Mas S. M. I. no teria demorado a se desinteressar pelo talhe de letra, o que daria motivo s observaes do seu bigrafo Alberto Rangel: Nos manuscritos arquivados e da mo de D. Pedro II no fcil seguir as garatujas que os distinguem, concluindo que tal caligrafia acabou por exigir a paleografia. Corri farmacuticos, tabelies, calgrafos, mas as cartas continuavam sem sentido. Um esforado cidado, no desejo espontneo de auxiliar, assestou o aro dos culos bem ajustados, no nariz, focalizou as lentes e leu: Niteri, 27 de janeiro... E note-se, no foi o nico a cometer essa confuso sobre a qual no pairavam dvidas... Lembrei-me da Sra. Moniz Arago, a quem voltei, um tanto desesperanado. Ela, logo primeira vista, sem a menor dificuldade, escorreitamente, ditou para mim o contedo das duas missivas. Na Biblioteca da Marinha, no Rio, fui procura do livro de bordo do vapor Apa a embarcao fretada para levar Sua Majestade Imperial s provncias do norte, mas sa apenas com uma pista: o livro, se ainda existisse, estaria sepultado no Arquivo Nacional. Com efeito, os catlogos desse precioso acervo conferiam com a informao, mas as pilhas enormes de papis entulhados numa sala, escondidos por grossa camada de poeira, e a deficincia de funcionrios para a pesquisa aconselhavam-me a desistir. Afinal, os eficientes colaboradores daquela casa, aps duas horas 36

de rebulio, encontraram o livro. Mas, vitria v, as pginas amarelecidas do documento registravam fatos destitudos de interesse ao caso. Agora, lembrarei uma vitria verdadeira: informado da presena do saudoso professor Eurpedes Queiroz do Valle no Rio, mesmo sem o conhecer pessoalmente, fui ao seu encontro. Amabilssimo, o desembargador comprometeu-se a arranjar, em Vitria, parte importante da bibliografia de que eu precisava. E cumpriu a promessa muito depressa, mandando-me at uma cpia datilografada da bela conferncia pronunciada na capital capixaba, em 1949, pelo professor Jair Etienne Dessaune. A essa comovedora ajuda eu deveria fazer referncia, reconhecido, no prefcio da 1 edio, como deveria tambm dizer que os desenhos dos finais de captulos so de autoria do mestre Raul Pederneiras, recortados da Revista da Semana, e que o livro constitua uma separata do volume 246 da Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. A par das omisses de que me penitencio, h algumas propositadas, por exemplo: a trabalheira infernal que encontrei ao alinhavar a colcha de retalhos dos manuscritos inditos, dos excertos de obras raras, recortes de jornais de manuseio dificultado; o esforo para conseguir microfilmes, no que encontrei, dignos de louvores, diligentes funcionrios da Biblioteca Nacional, do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, do Real Gabinete Portugus de Leitura, do Museu Imperial, da Biblioteca Municipal de Petrpolis, do Arquivo Nacional, da Biblioteca do Itamaraty e mais bibliotecas de Barra Mansa, Valena e Vitria. Ressaltarei a colaborao de dois bons amigos, os Drs. Hlio Athayde e Alosio Athayde, bem como a superviso do reputado e saudoso historiador Mrio Freire, a cujos conhecimentos histricos devo algumas justas correes do original. Longe da idia de haver esgotado o assunto, resolvi oferecer cpia ao Instituto Histrico e Geogrfico do Esprito Santo dos Dirios de D. Pedro II, a mesma tal qual datilografou a Sra. Gasto Moniz Arago, sem emendas, acrscimos ou omisses, pretendendo propiciar a outros, direi, aos historiadores mais interessados, 37

facilidade de acesso ao material de consulta, esperando que se desincumbam melhor em idntica tarefa que empreendi. Se no me faltou flego de gato para escarafunchar os papis velhos, faleceram-me, reconheo, o engenho e a arte, como diria o poeta lusitano. O AUTOR

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Dom Pedro II, em reproduo do retrato que o capito Joaquim Marcelino da Silva Lima ofereceu Cmara de Itapemirim. (Autor: Antnio Cavalheiro dAlmeida, 1852)

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A Imperatriz Dona Teresa Cristina, em reproduo do quadro que havia na fazenda Santo Antnio, do baro de Itapemirim. (Autor: Antnio Cavalheiro dAlmeida, 1852)

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Vitria era assim

H

cem anos atrs, a capital da provncia do Esprito Santo, muito embora j gozasse dos foros de cidade, no passava de um povoado cuja resistncia aos hbitos e tradies coloniais entravava o progresso. Sua populao pouco excedia a cifra de cinco mil habitantes, vivendo a maioria com o produto da pesca e avassalada pelo marasmo e pela indolncia. Sem obedecer a qualquer regularidade ou simetria, Vitria se apertava em anfiteatro, margem de plcida baa, ruazinhas estreitas, tortuosas, escorregadias, procurando o paralelismo da praia, ou subindo as rampas do morro desbeiado pelas enxurradas e enfeitado pelas ramas de meles-de-so-caetano, perdendo-se em becos ou vielas ladeirosas e labirnticas. Ruas ou ruelas, algumas apertadssimas, tomadas pelo vicejante capim-p-de-galinha, caladas ou no, com pedras disformes, como a ladeira do Pelourinho, ao longo da qual no passavam trs homens em linha de frente, famosa por nela ter morado, outrora, em um sobrado, a herona Maria Ortiz, que fizera recuar os holandeses, jogando sobre eles gua fervente. Ruas dos Pescadores, da Capelinha, do Comrcio, do Porto dos Padres, de Santa Luzia, da Fonte Grande, ladeira de Pernambuco, largo da Conceio, Pelame e a pitoresca e modesta rua da Vrzea. Na rua das Flores, outro vulto da histria capixaba, o heri Domingos Martins, cabea da Revoluo Nativista Pernambucana de 1817, 41

vivera parte de sua infncia. Ah! Eu j me ia esquecendo da rua do Ouvidor, antiga rua da Praia, que, nem ao longe, pelo aspecto modesto, podia fazer lembrar a sua homnima da Corte, e a rua do Piolho... As casas, em grande parte assobradadas, algumas com janelas de vidraas em cores, balces de madeira e portais de pedra, entalhados em Portugal, trazidos como lastro dos navios, casas ou choupanas, cabriteavam em desordem a encosta, repousadas em esteios suplementares, em estacas, ou sobre velhas bases de alvenaria. Nos telhados limosos, de telhas em canoas, e nos seus beirais, chilreavam as cambaxirras, revoluteavam as andorinhas, cresciam plantas audaciosas, adubadas pelos urubus (os mais eficientes funcionrios da Limpeza Pblica), que se postavam a cavaleiro, no convexo das cumeeiras, abrindo as asas para se requentar ao sol. A vista da baa era sempre agradvel, especialmente quando postado o observador mais de longe, para abarcar o conjunto emoldurado pelo verde da vegetao; o extenso mangal da preamar; as fruteiras das chcaras e dos pomares e a mata que vestia os elevadios. Desembarcava-se no cais das Colunas, situado abaixo do Palcio da Presidncia; no da casa do Azambuja; no cais Grande, onde atracavam as sumacas; ou no cais do Santssimo, do Batalha ou no porto dos Padres. Em plano de destaque, projetava-se a principal construo, o antigo Colgio dos Jesutas, grande quadriltero, liso, de dois pavimentos, adaptados para Palcio da Presidncia. Comportava a respectiva Secretaria; um colgio de instruo literria, o Liceu, a Tesouraria da Fazenda; a Administrao do Correio; o Armazm de Artigos Blicos e a Biblioteca Pblica; mas estava em estado deplorvel: telhado esburacado e cheio de goteiras; teto, pavimento e paredes muito sujos; portas sem chaves e mveis estragados. Pareceume, quando entrei por ele relatou o presidente Veloso que era uma casa desabitada, h anos, est imprprio para ser ocupado por qualquer pessoa que tenha tido um pouco de educao... 42

O edifcio da Alfndega, cuja renda, por sinal, era pequena, realava em modestas propores. Mas eram as igrejas, pelas posies sempre em destaque, que constituam os melhores pontos de referncia mirada panormica. A de So Tiago, embora de arquitetura de medocre interesse, contgua ao Palcio, marcava, com o zimbrio curvilneo da sua torre maior, o histrico e venervel local do sepultamento do taumaturgo Anchieta. sua frente, situava-se a igreja da Irmandade da Santa Casa de Misericrdia, o nico hospital em toda a provncia. No muito afastadas, nos pequenos largos e praas, alm dos conventos franciscano e carmelita, outras igrejas salpicavam os morros.

Vista de Vitria

J Marcelino Duarte, ao rever aquela terra natal, escrevera: Surgindo da flor dgua lentamente Vai a linda cidade da Vitria, Que vista pitoresca! Um monto de edifcios 43

Cobre a rasa colina! De sobre os edifcios se levantam Quatro torres da alegre perspectiva. Parece ver ao longe As famosas cidades De Tebas ou de Tria. Quanto s condies de vida e higiene, desnecessrio se faz referir abundncia do peixe, pois havia uma indstria da pesca desenvolvida, com duas dezenas de lanchas que iam pescar em alto-mar, nos Abrolhos e em Cabo Frio, demorando-se dias para regressar ao porto trazendo os peixes salgados. A carne verde, porm, escasseava, pois as reses sacrificadas nunca satisfaziam o consumo. Havia uma padaria explorada por um cidado francs, o Sr. Penaud, mas o po do pobre, para no dizer o lastro da sua alimentao, era a farinha de mandioca ou o fub de milho. Farmcias s havia trs, geralmente mal sortidas, sendo uma da Santa Casa. O safa-ona eram as boticas homeopticas, dos curiosos. A gua do abastecimento, de boa qualidade, captada em mananciais da ilha, vertia nas fontes da Capixaba e Lapa, situadas nos extremos da cidade. Assim as cantou o mesmo poeta: Bebo as guas puras da Capixaba e Lapa. Bebo o santo licor das duas fontes, Que a natureza formou e inda conserva; No bebo as guas nascidas Das patas do cavalo. Alm de outra, havia ainda a fonte Grande, que se situava onde se cruzam hoje as ruas Coronel Monjardim e Sete de Setembro. A iluminao pblica era feita com sessenta e oito lampies com candeeiros a azeite de sebo, azeite de carrapato ou leo de peixe: insuficientes para bem servir s trinta e uma ruas, sete ladeiras, oito 44

becos, quatro praas e outros tantos largos, formados pelos trezentos e setenta sobrados e setecentas e tantas casas trreas. Valia como um esforo da administrao, a qual despendia soma muito alm do oramento, subindo as despesas acima de oito contos de ris por ano. Acendiam-se os lampies pouco antes do anoitecer (pelo regulamento, um quarto de hora antes) e nas noites de lua, sob pena de multa de um mil ris por lampio apagado, tambm por um quarto de hora deveria ser mantida a iluminao, at que o luar aparecesse... O correio para a Corte era feito de cinco em cinco dias, tornandose mais regular com o estabelecimento das linhas de vapores das Companhias Esprito Santo e Mucuri. Dois paquetes, So Mateus e Mucuri, realizavam viagens mensais ligando Vitria, Caravelas e Rio de Janeiro, com paradas nos portos de atracao intermedirios. Quarenta mil ris pagavam o preo de uma passagem, em camarote ou r, podendo-se fazer acompanhar das mucamas e escravos, abrigados no convs ou em camarote proa, pela metade dessa quantia, e das crianas de menos de cinco anos, sem pagar passagem. Os divertimentos da cidade, a despeito da ndole pacfica e folgaz do povo, rareavam. Verdade que no faltava, nas casas dos caboclos e dos ndios civilizados, uma viola para as modinhas e os desafios e os pretos escravos no perdiam os lundus e jongos, ou uma oportunidade para amortecer o coaxar dos sapos com o baticum do ticumbi, levado at os ancoradouros quando chegava um vapor. J a classe mdia se entediava com mais facilidade e procurava contribuir para a animao das festas religiosas que, em certos meses, como os de maio e junho, eram muitas. Festas do Divino Esprito Santo, de So Benedito dos Caramurus, de Nossa Senhora dos Remdios, do Santssimo Sacramento, de Nossa Senhora do Carmo... tantas em uma s quinzena! Na rua da Praa Nova, n 3, havia a tipografia Capitaniense, de Pedro Antnio dAzeredo, onde era impresso o bissemanrio Correio da Vitria (saa s quartas e sbados). Tiragem diminuta, por isso as suas preciosas colees se perderam. As pessoas de cultura davam o seu apoio ao teatrinho 7 de Julho, influncia do capixaba Joo Manuel de Siqueira e S, estimu 45

lando os amadores na encenao de peas, enquanto a assistncia superlotava a pequena e sufocante sala de espetculos. Mas, por vezes, se consideravam como exilados mesmo o presidente da provncia, Pedro Leo Veloso, o qual escrevia no seu primeiro relatrio: tenho gostado da terra em relao ao clima e gente que no m, mas acho-a sumamente atrasada em todos os sentidos; vivese mal porque sobre ser a vida muito cara falham todas as vantagens de um pas civilizado. Em tais circunstncias, fcil imaginar com que alegria e entusiasmo foi recebida a notcia da anunciada visita de Suas Majestades Imperiais ao Esprito Santo.

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Dr. Pedro Leo Veloso, presidente da provncia do Esprito Santo por ocasio da visita imperial. Reproduo de um quadro pertencente a sua famlia.

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Fervet opusnotcia consubstanciou-se logo aps a fala do trono de 11 de setembro de 1859, na qual D. Pedro II prometera Cmara visitar o norte do pas. O presidente da provncia do Esprito Santo, Pedro Leo Veloso, recebeu do Ministrio dos Negcios do Imprio o seguinte ofcio, datado de cinco daquele ms:Resolvendo S. M. o Imperador percorrer as Provncias do Norte at a da Paraba inclusive, saindo da Corte no dia 1 de outubro prximo futuro, assim o comunico a V. Exa. para seu conhecimento e governo. S. M. o Imperador acompanhado de S. M. a Imperatriz se dirigir primeiramente Provncia da Bahia, em cuja capital ficar S. M. a Imperatriz, enquanto S. M. o Imperador visitar a cidade de Penedo e a Cachoeira de Paulo Afonso. Voltando S. M. o Imperador seguiro S.S. M.M. I.I. Provncia de Pernambuco e da at a Provncia da Paraba. Na volta para a Corte, S.S. M.M. I.I. faro a honra de visitar Macei, Sergipe e essa Provncia. muito provvel que visite as Colnias e as povoaes mais notveis dessa Provncia e porque os seus habitantes podem querer fazer gastos extraordinrios para solenizarem to honrosa visita, meu dever prevenir a V. Exa. de que conquanto S. M. o Imperador aprecie devidamente todas estas demonstraes, seria muito do Imperial Agrado, que os donativos com que desejarem concorrer para tal fim possam ser 49

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aplicados a benefcio das localidades, que o mesmo Augusto Senhor visitar. Deus Guarde a V. Exa. (a) ngelo Moniz da Silva Ferraz.

Na mesma ocasio, remetia aquele Ministrio dois contos de ris, destinados aos preparativos da recepo, verba assim discriminada: metade para compra de moblia e decorao e a outra metade para as reparaes e as pinturas do Palcio da Presidncia. De pronto, Leo Veloso aquilatou-se do vulto das despesas e fez um apelo generosidade da mesma bolsa: Vejo que, por modo algum, iniciados os reparos, se possa concluir e decorar o edifcio sem mais dois contos de ris, pois ele vasto, de h anos que foi grosseiramente pintado e sente falta dos trastes indispensveis. Pediu, em seguida, retratos de Suas Majestades Imperiais, prprios para servirem aos cortejos das efgies, nos dias de grande gala e festa nacional. No havia na capital um retrato da imperatriz e o que existia, do monarca, nas dimenses de trs palmos de largura por quatro de altura, pintado a meio corpo, embora bem conservado, alm de ser feito quando D. Pedro II era ainda de menor idade, andava de um ponto para outro, pois tambm servia ao Pao da Assemblia Provincial em suas aberturas de sesses ou posses de presidentes. Leo Veloso obteve a nova ajuda que pedia, porm a despesa dos retratos devia ser consignada na mesma verba e isso no foi possvel, pois o reforo se volatilizou ao abrir e fechar de olhos, ficando quase tudo ainda por fazer. Convocado o secretrio da provncia, Antnio Rodrigues de Souza Brando, assentaram-se as providncias mais imediatas, quais sejam, a afixao de editais e avisos nas praas e logradouros pblicos da cidade, proclamando a nova alvissareira e a expedio de um ofcio-circular aos senhores presidentes e vereadores das Cmaras Municipais, incluindo cpia do aviso da Corte, a comear pela Cmara de Vitria. O ofcio apelava para a divulgao da notcia e mais: 50

Ser de muito agrado de S.S. M.M. I.I. ver que essa Cmara, zelosa dos interesses de seu municpio, lhe promove benefcios, cuidando principalmente de conservao e melhoramento de suas estradas; cumpre portanto que Vmcs. convocando seus habitantes faam-lhes efetivo o dever que tm de trazerem limpas e melhoradas as que atravessam pelos respectivos terrenos.

Foi feita pelo presidente uma reunio dos cidados mais notveis da capital, os quais, na noite de dez de outubro, discutiram e assentaram as medidas necessrias aos preparativos da recepo ao monarca e sua comitiva. Nomearam-se, para tal fim, comisses representando as diversas classes da populao. A tarefa mais pesada e dispendiosa preparar o Palcio recaiu sobre os dois grandes lderes do Itapemirim, o coronel Joo Nepomuceno Gomes Bittencourt, do Partido Conservador, e o baro de Itapemirim, do Partido Liberal, que resolveram, num tcito acordo, no soprar as brasas da ardente poltica naquele perodo. Integravam ainda a comisso o comendador Reginaldo Gomes dos Santos e o coronel Mateus Cunha. Acordaram, os quatro, em subscrever a elevada importncia de cinco contos e quinhentos mil ris, cada um, no total de vinte e dois contos. Se lembrarmos que a verba dos honorrios do presidente da provncia (classificado em 4 classe) era de cinco contos anuais e que o total dessa subscrio atingia quase a quantia correspondente tera parte da receita da provncia, teremos uma idia do esprito de compreenso e desejo de colaborar dos ilustres subscritores. Ficou resolvido: o casaro do Palcio sofreria uma verdadeira reforma. Decidiram despejar temporariamente o Sr. Antnio Jos Machado, com o Correio que administrava, removendo-o para o amplo e prximo sobrado do Sr. Barroso, o qual foi alugado por vinte mil ris mensais; demoliram a antiga cozinha do Colgio; abriram paredes; consertaram goteiras, forros e assoalhos; acrescentaram ao vetusto prdio uma bela, larga e longa varanda, dando sobre o ptio. Simples paredes e teto de uma alvura ntida, contrastando com o negro da barra simplicidade propositada, procurando-se 51

imitar a varanda imperial de S. Cristvo conforme a descrio do correspondente do Correio Mercantil, que acrescentou: Sobre a varanda se abrem diversos sales, sendo o primeiro o do dossel, forrado de um belo papel de ouro verde. O dossel est preparado de veludo verde e franja de ouro, e sob ele acham-se colocados dois espaldares de muito valor e arte. O comunicado de outro reprter carioca, do Jornal do Comrcio, completa a descrio: O bom gosto presidiu a todos os arranjos do Palcio: uma rica moblia de mogno estofada ornava sua sala de recepo; os quartos de Suas Majestades, assaz espaosos, estavam revestidos de belos trastes, no faltando as bambinelas, os tapetes e todas as outras comodidades. As outras comisses trataram de reparar as estradas; calar a praa em frente ao Palcio e o cais das Colunas, onde foi construda ampla ponte de madeira, tendo de cada lado um pavilho de construo leve mas artstica, terminando por uma escada. Dessa obra foi encarregado o inspetor da Tesouraria, Joo Manuel da Fonseca e Silva. Jos de Melo e Carvalho, deputado provincial, chefe da repartio das Terras Pblicas na provncia, ficou incumbido de presidir comisso dos trabalhos de preparo do salo da Assemblia Provincial, onde seria oferecido o baile a Suas Majestades Imperiais. Trabalhava o chefe de polcia, Manuel Pedro lvares Moreira Vilaboim; preocupava-se o comandante superior da Guarda Nacional, coronel do exrcito de 2 linha, Jos Francisco de Andrade e Almeida Monjardim; esforava-se o comandante da Companhia Fixa, capito Tito Lvio da Silva, no preparo dos seus subordinados, e suava o major reformado Antnio Leito da Silva, instrutor do 1 Batalho da Guarda Nacional, no adestramento dos recrutas. Todos os materiais passaram pela vistoria direta dos chefes, a comear dos chapus dos pajens, com ou sem galo e aba de ouro; as barretas dos oficiais e guardas; as espadas de metal fino, lils, ou de copos dourados; as capas e mantas bordadas e agaloadas; os bons de pano com gales e nmeros; as bandas de franja de retrs, os bands de l, dos sargentos; as claques de seda fina, as luvas de camura; os ternos de letras SB1; bem como o penacho do estado-maior. 52

Como a edilidade nos primeiros dias de setembro no desse sinal de si, segundo o correspondente do Correio da Tarde, mantendo-se muda e queda, como ao p de um penedo outro penedo, o presidente Leo Veloso lhe endereou um ofcio, no qual ponderava que, sendo de costume que a cargo das municipalidades ficasse o Te-Deum de recepo nas visitas imperiais, ele transferia anloga tarefa quela Cmara. O seu presidente, Joo Crisstomo de Carvalho, passou ao professor de msica, Baltazar Antnio dos Reis, a incumbncia de organizar uma orquestra coral para o Te-Deum e uma banda de msica para abrilhantar as outras solenidades. E facilitou ao professor, deferindo a requisio dos msicos Francisco Pinto Goulart, Joo Batista Grij e Manuel Ribeiro Pinto Espndola, dando-lhes a dispensa do servio da Guarda Nacional. Quanto ao comrcio, escreveu o mesmo correspondente, que tinha desanimado, a princpio, ante a despesa necessria para levar a efeito a iluminao de que se havia encarregado, animou-se agora e trata de executar a linda e vistosa planta feita pelo hbil engenheiro de Lamartinire. E registrou noutra correspondncia:Estamos em um fervet opus. Conserta-se, caia-se, pinta-se. As senhoras conversam e discutem os enfeites, os vestidos, as rendas, e os blondes, umas estudam os lanceiros; outras, a clssica contradana. Prepara-se um baile na Casa da Assemblia Provincial. Os militares preparam os seus quartis. Os artistas, uma iluminao e outra o comrcio. O pao imperial est quase pronto e fica digno de Suas Majestades. Ouvi tambm dizer que os militares, alm de uma linda iluminao que querem apresentar em frente ao Quartel da Companhia Fixa, desejam oferecer um copo dgua ao Imperador. Consta-me que se tm feito muitas encomendas para essa Corte, e que os filhos de Marte, em suas demonstraes de amor e respeito aos soberanos, em nada ficaro abaixo das classes mais ricas da sociedade. frente de tudo isto, est o capito Barro, assistente do ajudante geral, o qual como lhe tenho muitas vezes dito de uma atividade e dedicao pouco comuns. O comandante da Companhia Fixa tambm muito tem trabalho para os festejos militares. 53

O Sr. Carvalho, presidente da Cmara Municipal, j eletrizado pelo entusiasmo, mostrava-se infatigvel nos aprestos do TeDeum, nos ornatos da Casa da Municipalidade, no asseio das ruas e noutras atividades sem conta. O fiscal da freguesia da cidade, Manuel Gonalves da Vitria, em edital, convidava os habitantes para que melhorassem as caladas de seus prdios e estradas, caiassem os mesmos, reconstrussem e levantassem muros em terrenos abertos. Parece at que as Carapuas em Quintilhas, que um poeta annimo divulgou, posteriormente, em jornais cariocas, se ajustavam aos capixabas. Pelo menos, algumas eram de calhar: Mal aqui chegara a nova Da visita imperial, Meu Deus! No se fez mais nada: Tomei uma barrigada Sem segunda, sem igual!... Foi o promio do assunto Das casas a caiao: Oh! que espetculo encantado! Um povo inteiro trepado, Tudo de broxa na mo!... Nunca vi tanto pedreiro, Tanta broxa, tanta cal! Pra vinda dos Imperantes Caiaram-se at semblantes... Pra que tudo fosse igual... Findo o processo das broxas Toca a cidade a varrer; Depois de altos escrutnios, Colossos de esterquilnios, Viram-se ento remover. 54

O povo, embora ultramonarquista, pois se recordava com saudade dos antigos capites-mores e governadores, um pouco refreado no entusiasmo pela falta geral de dinheiro, em razo de ter sido minguada a safra da lavoura do ano, era instigado pelo impulso oficial. Havia tarefas de todas as categorias. Fabricavam-se velas de sebo e espermacete, enchiam-se caixes, para serem colocados nas janelas das casas. Os mais pobres improvisavam lamparinas com cacos de garrafas, vidros e gomos de bambu gigante. Lustravam-se, com a cinza do borralho e o limo galego, os candeeiros de bomba com globos de vidro liso, os castiais de prata e casquinha e os pequenos lampies das residncias mais aquinhoadas. Em algumas casas ricas, das mais antigas, mandaram limpar as cadeiras de espaldar e almofades de brocado carmesim com franjas de ouro e os tetos onde se destacavam os relevos e anagramas. Muitos cvados de damasco, de l encarnada, e de cassa foram gastos nas cortinas de luxo; muitos livros de po-de-ouro e libras de bolo do dito foram empregados para dourar; espanaram-se e untaram-se velhos e recm-adquiridos mveis de vinhtico, jacarand, gonalo-alves; os sofs, mesas de abas, cadeiras de golfo, as cmodas, camas, guarda-roupas, lavatrios, armrios... Afinal, no ltimo dia do ano, Pedro Leo Veloso podia dar a sua aprovao oficial ao detalhado programa de recepo, o qual fez publicar no Correio da Vitria. Com os avolumados gastos dos preparativos, a despeito da generosidade dos ricos que afrouxaram os cordis de suas bolsas, despendeu o presidente, alm do que dispunha, mais nove contos e quinhentos mil ris, sob a sua responsabilidade, importncia da qual mais tarde foi indenizado, no sendo postos em dvida os seus argumentos sobre terem sido muito avultados, superiores s de qualquer outra Provncia por igual motivo, as despesas que se fizeram custa do Estado para a recepo imperial, na Provncia do Esprito Santo. No havia nem houve malversaes: gastou-se tudo para fazer a cidade mais bonita e acolhedora. 55

Agora, era aguardar a chegada, anunciada para 26 a 27 de janeiro entrante.

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Enfim, a chegada!

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ela manh do dia 24 de janeiro de 1860 a esquadrilha de Suas Majestades Imperiais partia de Valena, provncia da Bahia, levantando ncoras da enseada do morro de So Paulo e, seguindo por dentro dos Abrolhos, aps dois dias de viagem, avistava, aos albores do dia 26, os contornos da serra de Mestre lvaro, ponto de referncia da baa de Vitria. Quando, do topo do monte Moreno, o vigia descobriu as embarcaes que demandavam o porto, deu o sinal convencionado, acendendo uma girndola de foguetes. Incontinnti, outra girndola foi acesa pelo vigia da fortaleza de So Francisco Xavier da Barra, e ainda ao mesmo tempo, outra, da fortaleza de So Joo, elevava-se alvissareira acima do Penedo, pondo em alvoroo os capixabas. No torreo do palcio governamental foi arvorada a bandeira nacional e por dez minutos repicaram os sinos da Capela Nacional, os de So Gonalo, Santa Luzia, So Francisco, Conceio, Carmo, Rosrio, Misericrdia e Matriz. Aquelas festivas badaladas tambm marcaram as oito horas da manh. Tocou-se, imediatamente, chamada da Guarda Nacional e de 1 Linha, para a formatura em honra dos augustos visitantes. As embarcaes ancoradas, os escaleres e os barcos particulares embandeiraram-se e, obedecendo s instrues expedidas pelo capito do porto, formaram em alas, no intuito de facilitar-se a 57

passagem da esquadrilha at o ancoradouro e o trnsito at o desembarque no Cais das Colunas, conforme o programa. Tudo ps-se em movimento escreveu o correspondente do Jornal do Comrcio a Vitria despertou de seu contnuo letargo, em todos os semblantes divisava-se ansioso esperar pela hora do desembarque. Quando o Apa, navio que conduzia Suas Majestades Imperiais, frente da esquadrilha, passava entre a ponta Ucharia e o rio da Costa, aproximando-se da fortaleza de So Francisco Xavier da Barra, a qual servia para tomar o registro dos navios de cabotagem, prestando as devidas continncias, os canhes da fortaleza abriram a salva de 21 tiros, enfumaando em torno da grande bandeira auriverde imperial, l hasteada; a mesma que impressionara, pelo tamanho, o pintor Franois Biard, na sua chegada. Pertencia o Apa Companhia Brasileira de Paquetes a Vapor. Construdo na Inglaterra, deslocava 917 toneladas, com um potencial de 250 HP. Fora fretado para conduzir os imperadores naquela excurso. Vinha comandado pelo capito-de-mar-e-guerra Francisco Pereira Pinto, tendo como oficiais o capito-de-fragata Jos Secundino Gomensoro, capites-tenentes Joo Carlos Tavares e Francisco Edwiges Brcio e primeiro cirurgio Dr. Propcio Pedroso Barreto de Albuquerque. Levava o comandante da esquadrilha, vice-almirante Joaquim Marques Lisboa (futuro baro de Tamandar), sendo seu secretrio o 1. tenente Antnio Marcelino da Ponte Ribeiro e ajudante-de-ordens o 1. tenente Manuel Carneiro da Rocha. Alm de D. Pedro II e sua consorte, a imperatriz Teresa Cristina Maria, viajava naquele navio capitnia pequeno squito: o conselheiro de Estado, Cndido Jos de Arajo Viana, visconde de Sapuca, como camarista; conselheiro Lus Pedreira do Couto Ferraz, ex-presidente da provncia (1846-48), futuro baro e visconde de Bom Retiro, como viador; conselheiro Antnio Manuel de Melo guarda-roupa; Dr. Francisco Bonifcio de Abreu mdico da cmara; Dr. Antnio de Arajo Ferreira Jacobina servindo de mordomo; cnego Antnio Jos de Melo capelo; Josefina da Fonseca Costa dama de S. M. a imperatriz; mais alguns criados e criadas do servio domstico de S.S. M.M. I.I. Tambm acompanhavam a S.S. M.M. o 58

conselheiro Joo de Almeida Pereira Filho ministro e secretrio de Estado dos Negcios do Imprio e o seu oficial-de-gabinete, Dionsio Antnio Ribeiro Feij 1 oficial da Secretaria do Imprio. Seguiam-se, de conserva, a fragata a vapor Amazonas, igualmente construda na Inglaterra, movida a rodas, com deslocamento de 1.800 toneladas e 350 HP, comandada pelo capito-tenente Teotnio Raimundo de Brito; a corveta a vapor Paraense, construda no estaleiro de Ponta de Areia, em Niteri, tambm de rodas e mquinas de 220 HP, sob o comando do capito-tenente Delfim Carlos de Carvalho; a canhoneira a vapor Belmonte, corveta mista, a hlice, construo francesa, deslocando 602 toneladas, com mquina de 120 HP, sob o comando do 1 tenente Antnio Carlos Mariz e Barros e, por ltimo, o Piraj, vapor de guerra, a rodas, de modestas propores, sob o comando do 1 tenente Joo Batista de Oliveira Montaury.

Entrada da baa de Vitria

Antes que o Apa atingisse o comeo da garganta que a baa forma em frente ao Penedo ou Po de Acar e fortaleza de So Joo, antiga guardi da entrada da capital, disparava esta os seus canhes, cuja mudez permitia a familiaridade das teias de aranhas, ramos de matos e camelees. 59

O correspondente do Jornal do Comrcio registrou: Ao passar pelas fortalezas foram Suas Majestades saudadas com as salvas que lhe so devidas, as quais correram regularmente, ao inverso do que quase sempre h aconte