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1 Eixo: Formação de Professores Viajar para aprender. Maria Guilhermina Loureiro de Andrade e sua viagem à cidade de Nova York (1883-1887) Vinicius Monção (PPGE-UFRJ) 1 Resumo: Este texto tem como objetivo situar a viagem realizada pela professora Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1839-1929) a cidade de Nova York entre os anos de 1883 e 1887 e aspectos que se relacionaram com sua profissionalização docente na metodologia froebeliana do Jardim de Infância. Como aporte teórico-metodológico me apoio da produção dedicada a discussão de gênero, biografias, história da educação e história das mulheres e das relações de gênero. As fontes utilizadas referem-se a artigos publicado em periódicos da época que foram escritos pela professora ou escritos de outros personagens sobre ela. Como resultados, considero que analisar de maneira interdisciplinar a trajetória profissional de uma personagem possibilita alargamento de discussões e compreensões sobre a construção da história, este enquanto processo e arena de disputas. No caso da personagem Maria Guilhermina, especificamente a partir do olhar da história da educação que bebe da fonte da história das mulheres e das relações de gênero, é favorecer outras problematizações no que se refere ao processo de feminização do magistério e também a profissionalização feminina entre os séculos XIX e XX. Palavras-chave: Maria Guilhermina Loureiro de Andrade; viagem; história das mulheres e das relações de gênero; história da educação; profissionalização docente Introdução A partir da inserção de discussões das categorias Gênero, Biografia e História das Mulheres e das Relações de Gênero, me aproximei de um corpo teórico e metodológico 1 Vinicius Monção. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE-UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil. e-mail: [email protected]

Viajar para aprender. Maria Guilhermina Loureiro de ... · 1929) a partir da experiência de viagem e formação obtida na cidade de Nova York, ... Apresentando outra forma possível

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Eixo: Formação de Professores

Viajar para aprender. Maria Guilhermina Loureiro de Andrade e sua

viagem à cidade de Nova York (1883-1887)

Vinicius Monção (PPGE-UFRJ)1

Resumo: Este texto tem como objetivo situar a viagem realizada pela professora Maria

Guilhermina Loureiro de Andrade (1839-1929) a cidade de Nova York entre os anos de

1883 e 1887 e aspectos que se relacionaram com sua profissionalização docente na

metodologia froebeliana do Jardim de Infância. Como aporte teórico-metodológico me

apoio da produção dedicada a discussão de gênero, biografias, história da educação e

história das mulheres e das relações de gênero. As fontes utilizadas referem-se a artigos

publicado em periódicos da época que foram escritos pela professora ou escritos de outros

personagens sobre ela. Como resultados, considero que analisar de maneira

interdisciplinar a trajetória profissional de uma personagem possibilita alargamento de

discussões e compreensões sobre a construção da história, este enquanto processo e arena

de disputas. No caso da personagem Maria Guilhermina, especificamente a partir do olhar

da história da educação que bebe da fonte da história das mulheres e das relações de

gênero, é favorecer outras problematizações no que se refere ao processo de feminização

do magistério e também a profissionalização feminina entre os séculos XIX e XX.

Palavras-chave: Maria Guilhermina Loureiro de Andrade; viagem; história das mulheres

e das relações de gênero; história da educação; profissionalização docente

Introdução

A partir da inserção de discussões das categorias Gênero, Biografia e História das

Mulheres e das Relações de Gênero, me aproximei de um corpo teórico e metodológico

1 Vinicius Monção. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação – Universidade Federal do Rio de Janeiro

(PPGE-UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil. e-mail: [email protected]

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que, aos poucos, forneceu elementos que foram inseridos como marcos direcionais no

processo de pesquisa da tese de doutoramento em andamento em História da Educação2.

Instigado pelas proposições da História sobre as categorias mencionadas, em determinado

momento, me indaguei sobre quais seriam as possibilidades e contribuições que as

perspectivas histórico-feministas poderiam favorecer à produção de pesquisa inserida no

campo da história da educação? Certo de que as respostas possíveis são múltiplas

apresento algumas que considero necessárias para esse exercício reflexivo. A primeira

refere-se à necessidade do deslocamento de olhares sobre possíveis objetos de pesquisa

que são, geralmente, selecionados a partir de uma perspectiva (dominante) masculina3.

Em uma área de produção de conhecimento formada majoritariamente por mulheres é

possível identificar uma tendência em investigações voltada para a ação efetuada por

homens, estes enquanto personagens centrais, e pouca atenção dada para investigar a

atuação de mulheres no cenário educativo brasileiro. A segunda, à necessidade de maiores

problematizações sobre as relações de gênero existentes na estruturação e constituição do

cenário educativo nacional, no que compete ao estabelecimento de funções e tarefas para

mulheres e homens no decorrer desse processo.

Ao voltar o olhar para a pesquisa de tese em desenvolvimento considero pertinente

pensar a professora Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1839-1929) a partir de uma

perspectiva que priorize dar visibilidade, protagonismo e agência no processo do fazer

histórico, bem como as tensões e disputas existentes nas relações de gênero (SOIHET,

2009), no cenário brasileiro na segunda metade do Oitocentos. Em um contexto de

disputas, criação e estabelecimento de papéis sociais para sexos distintos, Maria

Guilhermina se inseriu no cenário nacional e internacional das discussões sobre política-

educacional acerca da escolarização da população infantil brasileira.

2 A pesquisa de tese intitulada “Entre idas e vindas: relações da viagem de Maria Guilhermina Loureiro de

Andrade aos Estados Unidos da América com sua trajetória profissional (1883-1910)” tem como interesse

analisar a trajetória profissional da professora primária Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1839-

1929) a partir da experiência de viagem e formação obtida na cidade de Nova York, entre os anos de 1883-

1887. Tem orientação da prof. dr.ª Irma Rizzini, e está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em

Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na linha de pesquisa História, Sujeitos e Processos

Educacionais. A previsão de defesa é 2019.1. 3 A questão da proeminência de estudos voltados para personagens masculinas em detrimento de

personagens femininas em pesquisas na História da Educação, bem como a não discussão sobre as relações

de gênero, podem ser entendidas como um alargamento da discussão empreendida por Bourdieu. Ver:

Soihet, 2009.

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É importante apontar que mesmo a partir de uma perspectiva de construção

histórica que busque levar em consideração a inserção da personagem em uma trama de

disputas, na e pela participação política e social, os constrangimentos e limitações estão

presentes quando observamos a partir da perspectiva de análise sobre gênero. Contudo é

a partir das brechas e possibilidades de atuação e inserção da mulher no contexto da

segunda metade do século XIX que Maria Guilhermina e outras mulheres encontraram

espaços para se inserirem em um espaço “hostil” para elas.

Com relação aos estudos voltados à participação de mulheres no processo de

construção histórica, Soihet e Pedro (2007) indicam que eles são de múltiplas matrizes

teóricas e metodológicas. Apresentam divergências de posições, debates e controvérsias

que perpassam desde uma perspectiva inicial de feitura de uma “história das mulheres” a

perspectivas das relações de gênero e aquelas pós-estruturalistas, de relativização de

conceitos, sentidos e significados, criados e experimentados sobre sexos (SOIHET,

PEDRO, 2007).

No desenrolar dos estudos históricos sobre as mulheres Facina e Soihet (2004)

apontam que aqueles voltados para a história das mulheres obtiveram destaque e

ampliação a partir da década de 1960. Tal aspecto está relacionado às ações e

mobilizações do Movimento Feminista e por contribuições da História Social, História

das Mentalidades/Cultural e também do desenvolvimento de pesquisas em Antropologia

e suas influências nas ciências humanas. Nesse contexto revelavam-se, no cenário

internacional, mulheres pioneiras que enfrentariam a questão de abordagens inéditas e

que, por sua vez, oportunizaram consideráveis contribuições ao campo como, Michelle

Perrot, Arlette Farge e Natalie Davis, principalmente, nas discussões com enfoque na

atuação das mulheres no campo político. Nos anos seguintes observou-se o surgimento

de discussões em torno do termo “gênero” como forma de teorizar sobre as diferenças

sociais desenvolvidas entre os sexos masculino e feminino. Ambos os movimentos,

segundo Soihet (2003), são complementares e possibilitaram a desnaturalização das

diferenças sexuais (SOIHET, 2003).

Além disso, podem ser considerados como elemento de uma “virada nos estudos

históricos” que passaram a se preocupar com questões não tratadas pela historiografia

clássica e dominante. Esse movimento, segundo a autora, ocasionou a criação e

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manutenção de uma dualidade entre os gêneros, “especialmente, da divisão binária da

humanidade, a partir das construções baseadas no sexo” (SOIHET, 2003, s/p).

Seguindo a trajetória da formação e discussão do campo da História das Mulheres

e das Relações de Gênero, Soihet aponta que Joan Scott, tem destaque nas discussões por

ser uma entusiasta do termo gênero e por propor a criação de uma teoria própria que

permitiria sustentar as análises realizadas e ainda a criação de um novo paradigma. Ela,

Scott, considerava a possibilidade de formação de uma “epistemologia mais radical” que

a desenvolvida pela História Social, pautada, por sua vez, pelo paradigma pós-

estruturalista de Michel Foucault e Jacques Derrida, e que permitiria uma outra

“perspectiva analítica”. Segundo Soihet (2003), Scott defendia, sobretudo, a rejeição de

uma oposição binária, entre masculino e feminino, em função da desnaturalização de uma

ideia hierárquica, de superioridade e inferioridade entre gêneros, vista como algo natural

das coisas (SOIHET, 2003).

Apresentando outra forma possível de abordagem das questões, Soihet (2003)

aponta para Louise Tilly e Eleni Varikas. As duas historiadoras concordavam em

discordar do pensamento de Scott, o qual considerava a História Social como campo

limitador para a discussão dessas questões, campo “demarcado pelo determinismo

econômico” nas análises empreendidas. Lembram que as primeiras discussões foram

realizadas nesse espaço justamente por questões sociais e econômicas que Scott

compreendia como limitadoras para o avanço das pesquisas. Ambas não consideram que

a perspectiva pós-estruturalista poderia, de fato, contribuir para o desenvolvimento de

uma “teoria de gênero” (SOIHET, 2003).

De acordo com Soihet (2003), a grande contribuição de Scott, na dimensão da

inovação no terreno teórico e na produção do conhecimento histórico, é atuar sobre “a

política como domínio de utilização do gênero para análise histórica”.

Acredita que o aprofundamento da análise dos diversos usos do gênero

para justificar ou explicação de posições de poder fará emergir uma nova

história que oferecerá novas perspectivas às velhas questões; redefinirá

as antigas questões em novos termos – introduzindo, por exemplo,

considerações sobre a família e a sexualidade no estudo da economia e

da guerra. Tornará as mulheres visíveis como participantes ativas e

estabelecerá uma distância analítica entre a linguagem aparentemente

fixada do passado e a nossa própria terminologia (SOIHET, 2003, s/p).

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Assim, é proposto que se evite o binômio dominação/subordinação como terreno

de confronto principal de produção de uma história das mulheres. Isso porque “apesar da

dominação masculina, a atuação feminina não deixa de se fazer sentir” e ser percebido

em diversas períodos e espaços sociais como através de complexas ações de “contra-

poderes: poder maternal, poder social, poder sobre outras mulheres e ‘compensações’ no

jogo da sedução e do reinado feminino”. A proposta metodológica colocada pelas

pesquisadoras, Tilly e Varikas, é analisar as dimensões público e privado como unidade

e não pelo tradicional enfoque dado, como dimensões e locais opostos, isolados e

desconexos (SOIHET, 2003, s/p).

Um autor que nos auxilia a identificar pistas da atuação das mulheres, na esfera

pública e política da sociedade é Thompson (2011). Em episódios da cultura popular

inglesa de “venda de esposas”, ele nos mostram a participação ativa de mulheres em uma

prática social tida, por parte das feministas no período de publicação do estudo, como

demonstração da pouca valia ou submissão da mulher na Inglaterra do século XVIII e

XIX. Thompson, a partir da revisita às fontes, demonstrou, por sua vez, o contrário. Em

grande parte do material por ele levantando e sistematizado, as mulheres eram

participantes ativas da prática da venda de esposas, a qual acontecia pela autorização e

desejo das próprias mulheres em muitos dos casos por ele arrolados. Diante dessa questão

(e perspectiva), a análise de Thompson (2011) o conceito de agência, por ele proposto,

contribui para problematizarmos a história das mulheres e das discussões sobre gênero a

partir da figura de Maria Guilhermina no que se refere ao período de feminização do

magistério que a personagem esteve inserida e foi participante.

Soihet (1998) aponta também para a noção de dominação cultural proposta por

Roger Chartier. Esta não pode ser vista como única dimensão da relação entre grupos

sociais construídos e instituídos histórica, social e culturalmente diferentes. Ela prevê as

formas de resistências, negociações e possíveis negações de forma que, de acordo com o

contexto experimentado, permitem identificar e desvendar os matizes da atuação de

mulheres nos períodos históricos analisados pelo historiador. “Mulheres e História

interpenetram-se num movimento dialético, assinalado por trocas recíprocas (...)”

(SOIHET, 1998, p. 83).

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Maria Guilhermina Loureiro de Andrade

Maria Guilhermina Loureiro de Andrade, natural de Ouro Preto, “nasceu em 5 de

abril de 1839” e “faleceu no Rio de Janeiro em 3 de julho de 1929”4. Filha primogênita

de uma prole de 17 filhos. Por ser a mais velha dos filhos, ajudava sua mãe na criação dos

irmãos mais novos e também em atividades exercidas pela sua progenitora, que era

professora. Tal iniciação profissional, como aprendiz do ofício do magistério, a permitiu

futuramente atuar e circular por essa área, tanto como professora primária como

formadora de professoras5.

Na segunda metade do século XIX, sua família se mudou para a cidade de

Vassouras e lá criaram o “Colégio Andrade”. O colégio teve grande fama e repercussão

na cidade e entorno. Por motivo de epidemia de febre amarela que arrasou a região do

Vale do Café, na década de 1860, mudaram para o Rio de Janeiro, então capital da Corte.

Nessa cidade, reestabeleceram o Colégio Andrade, em 1869, onde sua mãe e irmãs

atuaram como professoras e ocuparam cargos relativos a administração escolar

(CHAMON, 2008).

4 Jornal do Brasil, 29/5/1834, n. 126, p. 1. 5 Alguns estudos se dedicaram com mais afinco a apresentar a biografia de Maria Guilhermina. Para saber

mais ver: Chamon (2005, 2008).

Figura 1: Maria Guilhermina Loureiro de Andrade

Fonte: Jornal do Brasil, 29/5/1934, n. 126, p. 1

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Com o passar do tempo o Colégio Andrade foi adquirindo reputação e fama na

Corte. Um dos possíveis motivos para o destaque que a instituição privada alcançou na

Cidade foi a aproximação com propostas educacionais alinhadas ao pensamento

educativo estadunidense. Ali se praticava o “método intuitivo, a co-educação dos sexos e

o alargamento do currículo escolar feminino6”. Elementos estes não praticados e

oferecidos pela maioria das escolas, tanto pública quanto privada, cariocas (CHAMON,

2008, p. 75).

Cardoso (2009) dedicou-se a analisar a escrita autobiográfica de Lili Castelo

Branco e problematizar questões referentes as relações de gênero e a questão do registros

e não-registros (ausência), a partir de uma reflexão dialética de memória e esquecimento.

Segundo a autora,

o silêncio assumido por Emília Leite Castelo Branco, Lili, na obra Fases

do meu passado (...) longe de ser uma prática singular é uma das

características da escrita autobiográfica, na medida em que essa prática

se constitui de recortes, de escolha, de seleção e de ressignificação dos

acontecimentos vividos (CARDOSO, 2009, s/p7).

As preocupações teórico-metodológica apresentado por Cardoso (2009) no

tratamento dado ao estudo sobre Lili, embora centrada na questão da autobiografia,

auxiliam-me a pensar sobre a produção existente sobre a vida de Maria Guilhermina.

Mesmo sendo outra a natureza das fontes, a abordagem e o cuidado metodológico é

cabível de ser aplicado.

A escrita autobiográfica (compreendendo esta como registro intencional em

primeira pessoa) revela as experiências vivenciadas pelo sujeito e, de maneira consciente

ou não, silencia alguns fatos (CARDOSO, 2009, s/p). No caso de Maria Guilhermina, até

o momento, não foi localizado nenhum conjunto documental escrito em primeira pessoa

que tivesse o interesse em deixar registrado e organizado suas memórias. A personagem

escreveu sobre si de outra maneira, não privada mas pública, ao publicar em periódicos

relatos sobre as experiências tidas quando esteve nos Estados Unidos; ao apresentar seu

6 Sobre o “alargamento do currículo” percebe-se na oferta de disciplinas como história natural, álgebra,

grego, geometria e física. Um currículo não comum para as escolas para meninas. 7 Por motivo de má produção da cópia do texto não foi possível localizar a paginação para indicar.

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posicionamento e pensamento político educacional; ou ainda sua capacitação e formação

profissional ao anunciar nos classificados sua escola.

O que nos diz essa forma de “escrita de si” e o que nos diz a “escrita dos outros

sobre ela”? Seguindo o direcionamento de Cardoso (2009) ambos movimentos são

produzidos a partir da memória e, assim, são seletivos. Os artigos escritos por Maria

Guilhermina são recortes das experiências vivenciadas na cidade de Nova York e só

temos acesso ao que ela quis que fosse acessada. Os documentos oficiais nos dizem

aspectos específicos a relação dela com o governo, pedidos de autorização, exames e

outras assuntos de cunho burocrático chegaram-nos até hoje após terem passado por um

processo de seleção e “sobrevivência” na organização dos arquivos públicos. O que sobre

ela escreveram estão pautados na tentativa de criação de uma memória heroica e útil a

nação, na tentativa de torná-la “destaque no magistério passado”8.

Tais documentos, mesmo que “construídos” a partir de uma seleção feita pela

memória, nos permite entender e visualizar a rede de sociabilidades da personagem,

aspectos referentes a sua trajetória pessoal e profissional, sua circulação pelas principais

cidades da região sudeste, no início do século XX e, ainda, suas compreensões sobre

educação, aspecto de valia e interesse na produção da tese.

A participação de Maria Guilhermina nas propostas e efetivações sobre a

escolarização da população infantil carioca, menor de sete anos, é o elemento condutor

para a construção da tese. Foi a partir da atuação e participação nessa discussão que a

professora efetuou uma viagem à cidade de Nova York em 1883, em busca de formação

específica na pedagogia de Friedrich Fröebel9. Sobre essa dimensão é que buscarei

problematizar aspectos referente ao protagonismo, agência e experiências de Maria

Guilhermina em relação com questão da feminização do magistério brasileiro no contexto

da segunda metade do século XIX

8 Jornal O Fluminense, 11/12/1934, n. 15871, p. 1 9 Friedrich Wilhelm August Fröebel (1782-1852), natural da antiga região da Turíngia, hoje sudeste alemão,

criador de proposta educativa voltada para o desenvolvimento infantil denominado de Kindergarten. Sua

proposta pedagógica foi considerada inovadora por associar elementos destinados ao desenvolvimento

físico, intelectual e moral de crianças a partir de referencial teórico e metodológico específico.

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A mulher no magistério

O último quartel do século XIX foi um momento de intensas disputas e debates

no cenário educacional brasileiro. Dentre os múltiplos projetos e encaminhamentos estava

posto à discussão, de forma mais incisiva, a questão do preenchimento das vagas do

magistério primário pela figura feminina, enquanto os homens se deslocaram para o

ensino secundário, profissional e superior. Tal movimento institucional oficial estava

construído, sobretudo, com base na ciência higienista que paulatinamente modelava o

perfil do ser mulher e as responsabilidades sociais destas. Construiu-se um perfil modelar

de mulher associada ao cuidado, à maternidade e a ocupar o espaço privado (CARDOSO,

2009; CHAMON, 1996; SÁ, ROSA, 2004; RABELO, MARTINS, 2006; CHAMON,

2008).

É recorrente na História da Educação a afirmação que a feminização do magistério

se deu em função da ampliação dos cargos de docentes em função do processo de

escolarização da sociedade brasileira, empreendido durante o século XIX e XX, em

movimento concomitante de abandono desses postos de trabalho pelos homens e razão

de baixos salários e para ocuparem postos de trabalho em industrias. Hahner (2011),

considera que o processo de feminização do magistério primário é fruto das reformas

educacionais acontecidas no final do século XIX e que permitiram a ampliação da

escolarização de mulheres (HAHNER, 2011). Sá e Rosa (2004) apontam para a

necessidade de problematização desse movimento e a ampliação de sua discussão. As

autoras consideram necessário levar em consideração para essa questão não somente o

aspecto de industrialização e “renovação” de mercado de trabalho do país. Consideram

ser necessário ter em perspectiva o “incremento do processo de escolarização, com

aumento do número de escolas e, sobretudo, da matrícula das meninas”, a “nova”

representação feminina construída por médicos higienistas e intelectuais, relacionando a

figura da mulher a maternidade, cuidado e educação das crianças, e a inserção da mulher

no magistério como o local de trabalho possível, que permitia conciliar atividades

domésticas familiares com uma profissão (SÁ, ROSA, 2004, p. 4; CARDOSO, 2009).

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Ao refletir sobre o processo de feminização do magistério, através da análise da

trajetória profissional de Maria Guilhermina, buscarei levar em consideração os

apontamentos efetuados pelas autoras.

Viajar para aprender

Da sua atuação profissional destaco a participação na implementação dos Jardins

de Infância no Brasil, tanto no que confere ao seu discurso político quanto na formação

do professorado para a atuação nesta modalidade de ensino. No final da década de 1880,

Maria “abriu um jardim de infância – o qual denominou Kindergarten Modelo – e a

primeira escola para formação de Jardineiras10 na Corte carioca” (CHAMON, 2008, p.

82).

Sua inserção na discussão sobre essa modalidade de ensino ganhou impulso ao ser

convidada, pelo Governo Imperial, para produzir um parecer acerca da utilidade de criação

dos Jardins de Infância no país (1883). Como resposta declarou que “nenhum proveito

disso poderia vir às nossas crianças pela falta de jardineiras competentemente habilitadas

para esta melindrosa tarefa”11. Acrescentava ainda que, o investimento realizado sem as

bases necessárias para tal compreenderia “um crime” contra as crianças sua aplicação de

modo equivocado (BASTOS, 2008).

Dessa forma, Maria Guilhermina optou por ultrapassar as fronteiras geográficas e

sociais de sua época. Angariou fundos, criou coragem e lançou-se ao mar rumo a uma

longa viagem. Como destino escolheu os Estados Unidos da América, por que lá,

segundo seus argumentos, a instrução primária apresentava um progresso

verdadeiramente admirável (BASTOS, 2008). Nesse país, na cidade de Nova York,

permaneceu por quarto anos, de 1883 e 1887, onde obteve formação pedagógica

específica na metodologia froebeliana de Jardins de Infância.

10 O termo “jardineiras” é empregado na literatura froebeliana para designar professoras formadas para

atuar na modalidade de ensino. 11 A resposta referida encontra-se no folheto “O Kindergarten, ou, Jardim de Infância” por Maria

Guilhermina Loureiro de Andrade (1888). Neste texto nos utilizamos da publicação do documento feita por

Bastos (2008).

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Pesquisas sobre viagens, em geral, se apoiam e são produzidas a partir do material

histórico que registrou o evento, como diários pessoais, relatórios e documentos de

viagens escritos por viajantes realizados por interesse próprio ou por encomenda de

governos e/ou instituições de pesquisa. Sobre esse aspecto, Franco (2008) considera que

o século XIX foi um período fértil das viagens e registros já que é possível localizar

grande produção de relatos de viagens, escritos não somente por homens, mas também

por mulheres.

De acordo com Leite (1997) os relatos de viajantes têm sido utilizados como

documentação em trabalhos de História, Sociologia, Economia e Antropologia. Contudo,

somente a partir da década de 1970 é que tais materiais sofreram uma abordagem mais

crítica, analítica e sistemática. Tal ação pode ser entendida como resultado da mudança

de paradigma que a História passou nesse mesmo período. Nessa leva, Miriam Leite,

desenvolveu pesquisas sobre a História das Mulheres no Rio de Janeiro, entre 1803 e

1900, a partir dos registros de viajantes que pela cidade passaram ou se estabeleceram

(LEITE, 1997).

Como estratégia de identificação de mulheres viajantes autoras de publicações

sobre suas viagens, Leite se debruçou sobre a literatura de viagens das quais ela teve

contato e daí, pode obter um panorama sobre o quantitativo de mulheres que passaram

pela cidade do Rio de Janeiro no século XIX 12. Eram modistas, turistas, jornalistas,

professoras, acompanhantes ou cientistas, de origem estadunidense ou europeia (LEITE,

2000). Sobre o quantitativo de mulheres viajantes a cidade do Rio de Janeiro como destino,

a autora observa que:

De certa forma, o número de viajantes mulheres, em relação ao

de autores homens, já é um indicativo de um padrão – o espaço

para as mulheres, em viagens longas e perigosas, que não existia

no início do século XIX, foi conquistado muito lentamente, com

a modernização dos transportes marítimos, mas conservou-se

área predominantemente masculina. De 1800 a 1850, dos 80

livros selecionados, apenas 5 foram de mulheres, sendo que a

primeira, Rose de Freycinet (1817), embarcou clandestinamente,

12 A autora identificou na literatura de viagens produzida sobre a cidade do Rio de Janeiro, entre os anos

do século XIX, 17 mulheres viajantes. Ver em Leite, 2000.

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disfarçada de homem. De 1850 a 1900 houve 17 autoras entre 92

livros de viajantes examinados (LEITE, 1997, p. 16)13.

Com relação à profissão dos viajantes identificados e por ela analisados, eram,

principalmente cientistas, botânicos, naturalistas, militares, comerciantes e religiosos. Por

sua intencionalidade estar pautada em descobrir, analisar e problematizar a questão

familiar e a condição das mulheres na cidade carioca nos Oitocentos, a autora aponta para

a importância de professoras/preceptoras. A partir dos relatos, cartas e diários, foi possível

obter “uma sensível penetração dos inter-relacionamentos familiares” (LEITE, 1997, p.

21).

Sobre mulheres viajantes que atuaram como professoras na sociedade carioca no

século XIX, há registros de Maria Graham (1785-1842), “a mais conhecida das viajantes

da primeira metade do século XIX” (p. 34), “governanta dos filhos de D. Pedro I e de D.

Leopoldina” (p. 20) e, Ina Von Binzer (1856-1916), governanta de famílias tradicionais

da cidade do Rio de Janeiro. Eram elas “moças instruídas que se propuseram a ganhar a

vida, enfrentando a solidão de um mundo estranho e hostil e tentando transmitir a crianças

brasileiras a educação europeia que tinham recebido” (LEITE, 1997, p. 20).

Além dessas duas figuras, outras mulheres estrangeiras viajantes que passaram

pelo Rio de Janeiro no século XIX são apresentadas por Miriam Leite: Rose de Freycinet

(1794-1832), francesa, viajante em companhia de seu marido, em uma missão científica,

e, de acordo com a autora (LEITE, 1997, p. 32), a “primeira mulher francesa a dar a volta

ao mundo”. Langlet Freycinet (1820-?), também francesa, chegou ao Brasil com

aproximadamente 15 anos de idade. Da sua terra natal saiu “fugida” na intenção de

acompanhar seu marido na viagem ao novo mundo em busca de tesouros. A Baronesa de

Langsdorff, que veio ao Brasil em companhia de seu marido, o então Barão de

Langsdorff14, na missão de negociação do casamento do príncipe de Joinville com a

princesa D. Francisca, irmã de D. Pedro II. Mesmo na condição de companheira, foi

responsável pela comunicação com a rainha de França no processo do contrato

13 Os livros por ela selecionados e analisados foram coletados a partir de um levantamento feito por Paulo

Berger, em 1964, na obra: Bibliografia do Rio de Janeiro de viajantes e autores estrangeiros (1531-1900).

Rio de Janeiro: Livraria São José, 1964. 14 Tal Langsdorff, como destaca Leite (1997), não pode ser confundido com o homônimo naturalista russo.

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matrimonial. Por fim, a “viajante profissional” Ida Reyer Pfeiffer (1795-1858) que ao

ficar viúva optou por iniciar uma viagem de volta ao mundo, aos 47 anos, já que, viúva e

com os filhos criados, iniciou a empreitada “que sempre desejara” (LEITE, 1997, p. 42).

Seu argumento, legitimador para viajar pautava-se em ter “nascido no fim do século

XVIII” e assim, “podia viajar só, por si mesma” (PFEIFFER, 1858, p. 2 apud LEITE,

1997, p. 42. Grifos da autora). Na sua terceira viagem ao redor do globo, passou pelo

Brasil, aos 51 anos.

As viagens (preparação, percurso e o estabelecimento em terra desconhecida) que

cada uma dessas mulheres, e outras desconhecidas, realizaram não deviam ser nada fáceis.

Em alguns casos, para conseguir viajar, em função das negativas familiares e até mesmo

de autoridades da época, era necessário subverter as regras sociais onde travestir-se era

uma das soluções encontradas: cortar os cabelos, vestir roupas de homens e agir com

trejeitos esperados por um homem, como no caso de Freycinet. Em um ambiente (o da

embarcação e das viagens) demarcadamente masculino, mulher não era bem-vinda. A

justificativa da segregação deste espaço era a crença dos marinheiros em que “mulher em

barco dá azar” (LEITE, 1997, p. 100).

Como meio para sobreviver à travessia e forma de minimizar todos os riscos

possíveis, elas deviam guardar certa distância dos tripulantes. Não era conveniente,

estando a bordo, demonstrar fraqueza e medo diante dos perigos. Embarcadas, exerciam

funções específicas. Eram, geralmente, as responsáveis pelo cuidado da tripulação,

dedicando atenção aos enfermos. Em casos de gravidez, ainda, tinham que lidar com o

estado de gestação e as indisposições físicas e emocionais que ela causava, além dos

traumas causados por abortos e outros possíveis infortúnios (LEITE, 1997).

Embora não seja o foco específico de seu trabalho, Davis (1997), ao se dedicar ao

estudo de três mulheres europeias do século XVII, aborda o movimento de viagem que

cada qual efetuou em suas vidas, cada qual dentro de um contexto específico e distinto.

Glikl bas Judah Leib, judia flamenca, necessitou efetuar viagens com fins comerciais.

Enviuvou muito cedo e, como forma de sobrevivência, tocou o empreendimento

comercial do seu esposo falecido. Já, Marie de l’Incarnation, católica, freira ursulina,

deslocou-se para o atual Canadá para atuar como superiora em uma missão religiosa de

acolhimento e educação de nativos. E, Maria Sibylla Merian, protestante, naturalista e

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“amante da natureza”, viajou ao Suriname em uma expedição científica (DAVIS, 1997s).

Três mulheres com trajetórias tão distintas unidas, dentre outros aspectos dissertados por

Davis, pelo elo da identidade de viajantes e pela inserção no mundo que das letras, fator

importante para a realização das tarefas a que se lançaram em outras terras. Enfrentaram

percalços e perigos. Experimentaram alegrias e tristezas. Margeando, construíram suas

identidades, abriram e fortaleceram os caminhos para que outras mulheres interessadas

seguissem caminhos similares aos delas.

Com relação às brasileiras viajantes em busca de formação profissional pode-se

identificar na historiografia as experiências de Maria Augusta Generoso Estrella (1860-

1946) e Josefa Agueda Felisbela Mercedes de Oliveira (1864-?15), as primeiras médicas

brasileiras (RAGO, 2000). Em função da proibitiva legal que impedia o acesso de

mulheres aos cursos superiores, ambas se dirigiram aos Estados Unidos da América em

busca da formação e diploma em Medicina16. Segundo Rago (2000), ao viajarem em

função de busca por formação em uma especialidade, alargaram fronteiras socialmente

criadas e delimitadas para o gênero feminino e criaram um novo “campo de

possibilidades” (VELHO, 1994) de inserção e participação social para as mulheres.

Por fim, pelas produções apresentadas, é possível compreender que casos de

mulheres viajantes não são excepcionalidades, embora possam ser diminutos frente às

empreendidas por homens; que as viagens por elas realizadas também se enquadram em

movimento de busca por formação profissional específica que não existia no Brasil ou

então que era vedada a mulheres.

A experiência de Maria Guilhermina no país do Norte foi um elemento

significativo em sua formação. Ao chegar no Brasil, em consonância com a aprendizagem

vivenciada nos Estados Unidos, Guilhermina criou um curso destinado à formação de

jardineiras na capital carioca, no Colégio Andrade, instituição fundada e mantida por sua

família. Tal empreitada a tornou pioneira no país no que compete à formação de

15 Data de falecimento ignorada. 16 É importante indicar que a Reforma Leôncio de Carvalho (1879) declinou a proibitiva legal de mulheres

frequentarem curso superior. Gerenoso Estrella e Oliveira foram alunas do New York Medical College and

Hospital for Woman e suas matrículas são anteriores à data da reforma educacional imperial. Durante o

período de estudos em Nova York seu pai e provedor enfrentou séria crise financeira, o que impediu que o

mesmo custeasse a estada e formação de Estrella. Dom Pedro II, por sua vez, interveio e, via decreto,

concedeu uma bolsa para que a estudante brasileira terminasse sua formação (RAGO, 2000).

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professoras para atuarem na escolarização de crianças na faixa etária de quatro a sete

anos.

Elias (1995), ao fazer a sociologia de Mozart, demonstra ao leitor que as viagens

tournées foram escolas de formação do músico. As viagens estimularam “sua inclinação às

experiências e a busca de novas sínteses entre as várias escolas de seu tempo” (ELIAS,

1995, p. 81). Possibilitaram a ampliação de seus referenciais estético-musicais, permitiram

o estabelecimento de ampla rede de sociabilidade, influenciou músicos de outras cortes

europeias e foi influenciado por eles e, foram elementos de empreendimento profissional e

comercial e, por fim, colaboraram de forma decisiva no processo de criação de sua

identidade e estilo artístico-musical. Por elas, em adição com outras dimensões do seu

processo de formação enquanto músico, como a rígida educação recebida pelo seu pai e o

contexto familiar imerso no universo musical, Mozart conseguiu ultrapassar a fronteira e

modelos fechados e delimitados do músico-artesão em comparação ao músico-artista17

(ELIAS, 1995).

Seguindo as ponderações efetuadas por Elias, ao que compete a dimensão que as

viagens podem exercer sobre o processo de constituição do sujeito é possível imaginar esse

aspecto como elemento contributo da formação de Maria Guilhermina, intelectual e

profissional, em que ela viajou para obter formação profissional específica. Rago (2000),

considera que o feito de Generoso Estrella “foi fonte de inspiração para outras mulheres

dispostas a enfrentar um mundo masculino hostil à entrada de mulheres nesse universo”

(RAGO, 2000, p. 204). Nessa direção, teria Maria Guilhermina se inspirado em Estrella,

Oliveira e outras brasileiras viajantes?

Embora não seja possível, por ora, responder a questão acima colocada, é possível

afirmar que sua viagem permitiu sua legitimação no campo da educação. Dentre sua

trajetória, no contexto pós-viagem, foi possível identificar sua participação como

colaboradora em periódicos pedagógicos como A Instrucção Pública e A Eschola. Ambos

circulavam na cidade do Rio de Janeiro. Em A Instrucção Publica, Maria Guilhermina,

publicou um artigo intitulado Apontamentos de um ‘jornal de viagens’, onde narra uma

17 Músico-artesão em relação com os modelos de organização de ofícios e corporações. Músico-artista

estabelecido pela liberdade de criação e comercialização de suas obras, o que, até então não era previsto e

possível. Sobre essa discussão ver Elias (1995).

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conferência assistida quando residia em Nova York, proferida por Nicholar Murray

Butler18, sobre a “Relação da Psychologia com a educação”19, e uma tradução intitulada

Cultura de Kindergarten20, que aborda a metodologia froebeliana. Na revista A Eschola

(1900-?21), periódico produzido pela Associação de Professores do Brasil e na qual chegou

a ser vice-presidente (1902), ainda não localizei artigos específicos assinados por ela, mas

sabemos que ela atuou como colaboradora, segundo notícia publicada no Jornal do

Brasil22. Além da contribuição nos referidos periódicos, ela atuou como tradutora de obras

educacionais do inglês para o português e ainda autora de livro didático sobre a História do

Brasil23. Essa pincelada sobre participação e atuação da Avis Rara24 no cenário de

discussões e proposições educativas e permite-nos cruzar discussões referentes a história

das mulheres, das relações de gênero e história da educação.

O termo Avis Rara empregado por Caetano de Campos para adjetivar Maria

Guilhermina permite ingressar por uma discussão feita por Schpun (2014). Teria sido a

personagem excepcional ou ordinária? Embora Maria Guilhermina tenha atuado de forma

ativa no contexto de proposições educativas no contexto do sudeste brasileiro entre os

séculos XIX e XX, e tido uma esmerada formação profissional, opto por encará-la como

uma figura ordinária. Enquanto “mulher do seu tempo”, os aspectos relacionais de gênero

e a construção dos papéis que os sexos desempenhariam naquele contexto foi

experimentado e assumido por ela.

O magistério estava em processo de ressignificação e em disputas pela ocupação do

espaço pela participação feminina, em razão dos discursos e modelos forjados para a

infância e paralelamente à mulher. Ela aderiu ao projeto proposto, mas não se limitou à

oferta e a estrutura social de sua época. Interessada em se especializar na questão da

18 Professor do Teachers of College da Universidade de Columbia. 19 A Instrucção Pública. 14 de outubro de 1887. P. 55, n. 7. 20 Não há referência sobre autoria nem idioma original do artigo traduzido. 21 A data de encerramento das atividades da referida revista é ignorada. 22 Jornal do Brasil, 11/05/1900, n. 131, p. 2; 14/01/1901, n. 14, p. 3-4. 23 Ver: Schueler, Chamon e Vazquez (2012). 24 Ciente da necessidade de problematização dos estudos biográficos e usos de termos laudatórios, como

indica Bourdieu (1998), estes enquanto elementos que podem apresentar juízo de valor ou um encantamento

ilusório na produção das análises sobre determinado personagem, consideramos o termo ilustrativo do

destaque que Maria Guilhermina obteve durante sua trajetória profissional. Avis Rara foi a expressão que

Caetano de Campos (1844-1891), político, intelectual e reformador da Instrução Pública Paulista, na década

de 1890, se utilizou ao referenciar a personagem em carta encaminhada a Rangel Pestana. Ver: Chamon,

2008.

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educação da infância se utilizou da autonomia e dos caminhos possíveis. Como a cidade

do Rio de Janeiro, e nenhuma outra no país oferecia o referencial e instrumental necessário

para sua especialização no magistério, na pedagogia froebeliana, optou por investir numa

viagem. Assim, utilizando de sua autonomia, forjou sua identidade profissional e, ao

mesmo tempo, contribuiu para a construção de sua identidade enquanto mulher,

favorecendo outras tantas possíveis.

Considerações finais

Buscar a intersecção entre dois campos de produção de conhecimento, a história

das mulheres e das relações de gênero e a história da educação, é uma tarefa desafiadora e

estimulante para qualquer aprendiz. Tarefa que necessita de sensibilidade, dedicação e

comprometimento social. Considero que analisar de maneira interseccional (buscando a

contribuição de outros campos teórico-metodológicos) a trajetória profissional de uma

personagem possibilita alargamento de discussões e compreensões sobre a construção da

história, este enquanto processo e arena de disputas. No caso da personagem Maria

Guilhermina, especificamente a partir do olhar da história da educação que bebe da fonte

da história das mulheres e das relações de gênero, é favorecer outras problematizações no

que se refere ao processo de feminização do magistério e também a profissionalização

feminina entre os séculos XIX e XX.

Por fim, como considera Cardoso (2009), deslocar o olhar e local de análise já

consolidados, dados a partir do projeto institucional e oficial, para verificar a agência e o

protagonismo de mulheres nesse processo, é reconhecer o protagonismo feminino no

campo educacional, político e também intelectual.

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