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Vida e poesia de Olavo Bilac

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“A obra, que custou muita pesquisa, apresenta dezenas de fatos inéditos e inúmeras poesias do sonetista da ‘Via Lactea’, que ainda não foram publicadas em livros. Fernando Jorge divulga pela primeira vez, de maneira que se poderá considerar completa, a história do grande amor de Bilac por Amélia de Oliveira.” Folha de São Paulo “... o autor reuniu a mais completa documentação até agora utilizada para tal fim. Todos os lances da existência de Bilac estão aqui focados... Sobretudo o episódio do malogrado romance de amor com a irmã de Alberto de Oliveira está, aqui, amplamente esmiuçado, dirimindo-se as lendas sobre os motivos do rompimento. Uma nota original: o autor ligou as sequências do estudo com as próprias poesias de Bilac, numa seleção muito oportuna e que torna a leitura mais sugestiva.” ROLMES BARBOSA, O Estado de São Paulo

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F E R N A N D O J O R G E

novo século

V I D A E P O E S I AD E

O L A V O B I L A C

5ª edição, revista e aumentada

Introdução de Menotti Del Picchia

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Copyright © 2007 by Fernando Jorge

Direção Geral Nilda Campos VasconcelosSupervisão Editorial Silvia Segóvia

Editoração Eletrônica Sergio GzeschnikCapa Guilherme Xavier

Revisão José Ricardo KobayashiCristiane Mezzari

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Jorge, FernandoVida e poesia de Olavo Bilac / Fernando Jorge;

introdução de Menotti Del Picchia. — 5ª ed. rev. e aum.— Osasco, SP : Novo Século Editora, 2007.

Bibliografia.

1. Bilac, Olavo, 1865-1918 2. Poesia brasileiraI. Título.

07-1075 CDD -869.91-928.6991

Índices para catálogo sistemático:

1. Poesia : Literatura brasileira 869.912. Poetas brasileiros : Biografia 928.6991

2007Proibida a reprodução total ou parcial.

Os infratores serão processados na forma da lei.Direitos exclusivos para a língua portuguesa cedidos à

Novo Século Editora Ltda.Av. Aurora Soares Barbosa, 405 – 2º andar – Osasco – SP – CEP 06023-010

Fone (11) 3699-7107www.novoseculo.com.br

[email protected]

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In memoriam,ao meu dinâmico e inteligente amigo

ELI BEHAR,

que me incentivou a escrever estelivro sobre a agitadíssima vida de

OLAVO BILAC.

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Olavo Bilac tem agora, através do carinho de Fernando Jorge — o consagrado epremiado evocador de O Aleijadinho, sua vida, sua obra, sua época, seu gênio

— uma nova encarnação biográfica. É interessante registrar como a sensibilidade eo talento de um moço da presente geração literária focaliza a figura do poeta quefoi o mais alto expoente lírico da sua época.

Uma biografia é um ponto de vista. Pode ela de tal forma recriar uma vidaque essa demiurgia literária é capaz de fazer reviver, com a carne das palavras, umapersonalidade nova, não raro diversa, senão mesmo avessa, daquela que se quisevocar. Nesta biografia, Bilac não corre tal risco. Fernando Jorge, escritor de raça,procurou retratar, com um máximo de fidelidade, a figura do grande poeta.

Ao receber, na Academia Brasileira de Letras, o exato e brilhante biógrafode Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, o escritor Luís Viana Filho, tive ensejo deesclarecer as preocupações que me causam as biografias. Disse então, entre outrascoisas:

“Um biógrafo pode ser um indivíduo mágico. Com uns fragmentos de lápi-de do templo de Al-Ubaid, umas tradições quase míticas da gente sumeriana ealgumas hipóteses, é capaz de retratar o chefe da primeira dinastia de Ur, comoCuvier, de um osso fossilizado, reconstruía a estrutura de um brontosáurio. Háuma anedota em que um filho com muita ternura e pouco miolo pediu a um pintorque lhe fizesse um retrato do pai falecido. ‘Tem fotografia dele?’ ‘Não’. ‘Algumdesenho?’ ‘Não’. E deu ao pintor notícias somáticas do progenitor morto: bigodegrande e preto, testa curta, nariz rombudo. Feita a pintura com tais ingredientes, ofilho, ao ver a obra, quase desfaleceu decepcionado: ‘Oh! o meu pobre pai comoestá mudado!...’

Eu já deparei com vários Napoleões ‘muito mudados!’. Uns épicos, de perfilde águia em vôo desferido, como no quadro de David, todos resplandecentes desonho e de glória. Outros, vulpinos e calculistas, esgueirando-se pela política entreTalleyrand serviçal e escorregadio e Fouché tratante e policial, a arrastar umadesaçaimada fome de poder, tendo aos calcanhares a matilha da família esfomea-da. Qual, dentro dessas centenas de corpos fatídicos vivendo na carne biográficadas palavras, é o pálido cadete de Brienne, o conspirador vitorioso de 18 Brumárioe o estrategista genial de Marengo? O meu Lincoln era o lenhador longo, magro e

DA BIOGRAFIA E DE OLAVO BILAC

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atlético, estranho morcego funéreo flabelando as abas da sobrecasaca desalinhada,limpo e reto de alma, soturno e introvertido de espírito. O amor o tornara român-tico e pusera lágrimas que estriavam as chanfras da máscara talhada em ânguloscomo estalactites pingando em anfractuosidade de rochas. Estóico na dor, hábil nogoverno, assistia, impávido, o drama do seu povo, integrado no ideal de lavar naterra a mancha das discriminações raciais. Como, porém, o manipulou o popularís-simo Dale Carnegie? Um cidadão pouco asseado e displicente, infelicitado poruma esposa ciumenta, neurótica e negocista, renteando pela inépcia no governo,vencendo pela surpresa de um acaso a parada política e ganhando a guerra maispela testarudez que pela genialidade.

Os biógrafos são senhores da arte quase divina de recriar as criaturas, fazerdas cinzas das suas memórias carne e nervos, ação e espírito, para nos dar comonos deu, por exemplo, Maurois, o fidalgo judeu ítalo-britânico Disraeli, vivo egracioso, desesperando Gladstone com sua malícia política e encantando a grandeRainha com um madrigal ou uma rosa. Que linda coisa: um criador de impérioarrulhando versos... Seria isso ou seria, num disfarce de poeta, um voraz imperia-lista falando em cifras e arquitetando, à sombra da esquadra inglesa, expediçõespredatórias? Na mão dos biógrafos está o poder de fazer-nos ridículos ou grandes!A nossa ressurreição espectral está na força da sua simpatia e na esperança da suaintegridade, ou na autenticidade dos testemunhos e dos documentos, porque bio-grafia é apenas História. E o que é História, essa memória congelada no tempo, senão um admitir que ‘sim’ de alguma coisa que pode ser substancialmente ‘não’?Lembremo-nos daquela fina sátira de Daudet — o enciumado inimigo das Acade-mias — ao ironizar o infeliz ‘imortal’ Astier-Rehu, fazendo-o revolucionar a histó-ria da França baseado, candidamente, em textos e pergaminhos gatafunhados porum refinado falsário. História pode ser ‘história’, no pessimismo bem-humoradodo povo. O selo da sua autenticidade depende de mil circunstâncias. Homero fun-de o humano com o divino e a realidade às vezes se esfuma em mito, na fugasurrealista de uma transferência de planos. Nesses mitos vai, não raro, o biógrafodestacar o herói, compor-lhe a vida, como as desses reis fabulosos, Menelau, Édipo,Numa Pompílio, cuja essência é um hibridismo paradoxal de humano e social por-que, como mitos, são criaturas que incorporaram, na sua essência, seu drama pes-soal e o espírito do seu tempo transformado em alegoria.

Biografia pede cultura e honestidade: prudência na escolha do material e im-parcialidade no expor. Nunca me esqueço, quando penso na história — pois biogra-fia não é mais que a história de uma vida e a História, no conceito carlyliano, umaseqüência de biografias — do cético e indulgente Anatole France nas páginas malici-osas da Ile des pinguins, nas quais uma hetaira se transforma em santa e se sagra, nosaltares, como Santa Orberose, somente porque as partes mais ondulantes do seucorpo eram famosas por terem a graça móvel das ondas e a cor cálida das rosas.

Entre nós que se tem feito no nosso Tiradentes? E Calabar, Judas cívico ouherói frustrado, manipulado ao gosto das preferências passionais ou políticas, oraacusado da sórdida felonia de quem trai o próprio berço, ora redimido na sua

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defecção por se lhe atribuir o sonho de um futuro diferente para seu país, isentodas humilhações da servidão reinol? Como pode o biógrafo fixar ‘a verdade’ dobiografado? Somente ‘Deus Todo-poderoso’, no dizer de Whitman, produz, comsua divina criação, a verdade de uma criatura, porque a verdade é uma essência ea visão humana dessa verdade, uma vidência, portanto, um espelhismo.

Como vimos, cinemático nas suas transformações corporais e psíquicas é omodelo do biógrafo; cinemática a evolução mental e temperamental do indivíduoexposta ao meio social, também este cinemático. Conclusão: o biógrafo é um caça-dor que desfere seu tiro em ave em pleno vôo, fundido seu vulto na bruma, tãoinstável, tão múltipla e, por isso mesmo, tão infixa a personalidade à qual procuradar a constante de um retrato. Pode atirar numa pomba e acertar num marreco. Narealidade uma alma é um ponto de vista.

Qual é a personagem que sai autêntica e imutável de uma biografia? Somen-te as criaturas ideais. Na verdade — e Pirandello tinha razão — realidade integralé apenas a “personagem” no puro sentido da criação literária. Aliás, tais persona-gens, quando vivas da vida que o consenso unânime lhes dá, são as únicas definiti-vamente reais, porque infungíveis no seu atrito com o tempo. A personagem literá-ria é o ‘ente de razão’ kantiano, vivendo sua inamolgável existência de arquétipo,ubíqua e universalmente presente, íntegra na carne da sua estrutura somática ima-ginada, carregada eternamente da mesma carga anímica. Não flutua como homemao vento das opiniões e das necessidades, o qual será fatalmente inúmero eirrepresável para seus biógrafos, portanto parcela ou instante de si mesmo, masnão seu todo vibrátil. A personagem, porém, não muda. Não oferece ângulos nasua estática de criação intemporal, não atingida pelo fluxo e refluxo das opiniões,não violada na sua imortal contextura pelo desgaste implacável do tempo. Essabiografia, a do ‘personagem’, é a única que pode oferecer, com segurança, o selo daautenticidade. Exemplo: D. Quixote de la Mancha...”

Esta esplêndida biografia de Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac —legítimo Príncipe dos Poetas do seu tempo — traz chancela de autenticidade. Ojovem autor, já consagrado mestre no gênero, com suas Vidas de grandes pintoresdo Brasil — honesto Vasari dos artistas plásticos nacionais — não quis inventar umBilac a seu gosto e capricho, numa dessas muito comuns mágicas intelectuais dasquais já foi vítima nosso Castro Alves. O baiano condoreiro, vate participante epolêmico que era, e já transformado em mito, oferecia ângulos para deformações,apesar da sua curta e fulgurante vida. A atmosfera romântica que respirou com suageração, sua veemência passional, a febre de corpo e de espírito que o requeimou,deram aos seus biógrafos mais que uma criatura notável e excepcional, um fatalizadopersonagem de drama. Um Byron patrício.

Bilac foi o avesso. Foi por excelência um poeta urbano. Sua biografia vemtraçada pelos passos de uma vida normal, fácil de ser rastreada no desdobrar coti-diano dos seus dias; os do frustrado médico que abandona a escola de medicina jáquase na altura de receber o diploma, como os do aluno da famosa Faculdade deDireito de São Paulo, que não chega a ser bacharel porque, no fundo, temperamento

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boêmio e visceralmente artista, o que ele realmente aspira é ser perpetuamenteestudante. A cidade — a Guanabara da paisagem magna e das rodas boêmias —fora seu mundo. A cultura nitidamente urbana da metrópole, inspirada, quer navida social, quer nas rodas literárias, pelo espírito gaulês, e informada pelos artis-tas da França, é que condiciona a musa do poeta. É o espírito litorâneo, contras-tando com a cultura da hinterlândia que nutre o lírico da “Via-Láctea”. Bilac pare-ce sentir alegria pelo campo. Daí ser ele a antítese de Gonçalves Dias e Varela, doprimeiro que tentava exprimir uma linguagem patrícia ao tomar Numa por Juno,isto é, o indianismo de torna viagem através do romantismo do bon sauvage, comoexpressão nacionalista de uma poesia, e do segundo, esse mais integrado no cosmobárbaro do que ainda havia de virgem na paisagem e no homem do sertão.

Como tal, Olavo Bilac seria fatalmente envolvido pela atmosfera parnasianadominante na França, fascinado pelo requinte intelectualizado da forma, cuja re-ceita iria buscar em Gautier. Essa forma, polida, policiada, geométrica, não podiaser um instrumento bárbaro capaz de exprimir a violência ainda selvagem da terrae do homem do interior.

Daí criar ele, com requintes de grande artesão, uma poesia de evasão, repe-tindo a temática dos fidalgos artistas parnasianos, só aflorando temas nacionais —“A morte de Tapir”, “O caçador de esmeraldas”, etc. — com a mesma ênfase comque descrevia a destruição de Cartago e a “Tentação de Xenócrates”. Dele, no ciclopoemático da “República dos Estados Unidos do Brasil”, ao historiar nossos ex-poentes culturais, dissemos:

“... Amo teu lirismo que ouve estrelas,tua devoção à forma vazada em tercetos,o drama burguês das tuas donzelasque moram nas casas geométricas dos teus sonetos;teu sexualismo intranqüilo,teu parnasianismo servile tua paixão pela pureza do estilopelo qual ainda há suicídios no Brasil.

No hino nacional do teu civismo ufanovibro de entusiasmos revéise pasmo ante o teu milagre de Tirteu provincianoempilhando de Jecas os quartéis.

Presidiário da cidade, tua existênciafoi um drama sem cor, sem surtos, sem paixões,picado pelos pernilongos da maledicênciaque pululam, aos enxames, nos cafés e redações.

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O feitiço mágicodo sertão brasileiro não te seduziue ignoraste o drama do interior mortal e trágicodentro do qual o meu Brasil surgiu.

Mentalidade cosmopolita,minha terra em teus poemas sensuaisquis se anunciar numa alvorada,mas amavas demais a frase bonita,a rima complicada,e minha terra é bárbara, áspera e morena,e a arte medida é pequenapara cantar uma terra grande demais.

A forma irreverente com que tratávamos o poeta máximo de sua geraçãoera, para nós, os de 22, uma reverência. Discuti-lo era amá-lo. Era querê-lo inte-grado no nosso anseio de autonomia mental e no espírito de revisão dos valoresnacionais que postulávamos, pois levávamos em conta a seiva do seu estro, a forçado seu verbo, o ímpeto passional dos seus poemas e sua mestria de artesão, que, notempo, o enfileiraram entre as grandes vozes líricas da América: Rubén Darío,Amado Nervo, Alfonsina Storni, Gabriela Mistral, estas mais jovens.

Mário de Andrade, em 1921, com revolucionários olhos modernistas, fezminudente análise da poemática do artista perfeito de “O caçador de esmeraldas”.Do parnasiano, concluiu:

“Bilac reuniu na sua obra todos os artifícios e perfeições da Beleza, sob oponto de vista formal. Assim sendo, considero-o o maior entre os parnasianos.Maior para o Brasil. Outro nenhum existe, que se lhe compare na língua e, mesmofora desta, poucos emparelham com ele.”

Esta a justiça que nossa geração de 22 prestava ao líder parnasiano. A restri-ção que lhe fazíamos era por vê-lo limitar seu estro ao rígido estetismo da escola naqual, entre nós, era pontífice. Mário, porém, adivinhava nele, já na altura melan-cólica e profunda da Tarde, o vôo mais largo, fora da clausura rígida da “deusaserena, a serena Forma”, movendo já suas asas numa atmosfera de sonho.

Esta biografia de Fernando Jorge, que com erudição, sensibilidade e amorreevoca a figura do artista permanentemente vivo da “Via-Láctea”, “Sarças de fogo”,Tarde, é uma oportunidade — diante da arte de hoje tão representativa de um fimcaótico de ciclo social — para se reavaliar a grandeza do artista, visto, neste prefá-cio, com os olhos da geração de 22 e estudado, no texto desta magnífica biografia,pela inteligência sensível, culta e moça de um esteta e de um ensaísta de 1963.

MENOTTI DEL PICCHIA

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“Escritores há cuja vida pode ser totalmente separada de sua obra. Outros,pelo contrário, têm-na tão unida à obra que não é possível, a rigor, separá-las.Creio ser esse o caso de Olavo Bilac. Sua vida e sua obra, entre 1865 e 1918, datasdo seu nascimento e de sua morte, se acham de tal maneira entrelaçadas que émuito difícil considerá-las em separado.”

ALCEU AMOROSO LIMA

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OS INQUIETOS CAMINHOS DA INFÂNCIA

O berço em que, adormecido,Repousa um recém-nascido,Sob o cortinado e o véu,Parece que representa,Para a mamãe que o acalenta,Um pedacinho do céu.

Que júbilo, quando, um dia,A criança principia,Aos tombos, a engatinhar...Quando, agarrada às cadeiras,Agita-se horas inteirasNão sabendo caminhar!

Depois, a andar já começa,E pelos móveis tropeça,Quer correr, vacila, cai...Depois, a boca entreabrindo,Vai pouco a pouco sorrindo,Dizendo: “mamãe”... “papai”...

Vai crescendo. Forte e bela,Corre a casa, tagarela,Tudo escuta, tudo vê...Fica esperta e inteligente...E dão-lhe, então, de presente,Uma carta de A. B. C...

(“A infância”)

C A P Í T U L O I

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Sei que um dia não há (e isso é bastanteA esta saudade, mãe!) em que a teu ladoSentir não julgues minha sombra errante,Passo a passo a seguir teu vulto amado.

— Minha mãe! minha mãe! — a cada instanteOuves. Volves, em lágrimas banhado,O rosto, conhecendo soluçanteMinha voz e meu passo costumado.

E sentes alta noite no teu leitoMinh’alma na tua alma repousando,Repousando meu peito no teu peito...

E encho os teus sonhos, em teus sonhos brilho,E abres os braços trêmulos, chorando,Para nos braços apertar teu filho!

(Soneto XXI da “Via-Láctea”)

FRANCISCO SOLANO LÓPEZ desenvolveu o seu espírito militarista na Euro-pa, para onde tinha sido enviado, em 1854, como ministro do Paraguai. Com-

prou, no velho mundo, bastante munição e apetrechos bélicos. Acolhido generosa-mente por Napoleão III, o filho do ditador Carlos Antônio López ficou deslumbradocom a faustosa corte de Paris. Regressando ao país natal, após demorada estada emFrança, levava consigo duas coisas perturbadoras: uma ambição voraz de poderioe uma linda mulher, Elisa Alice Lynch, de quem se tornara amante.

Quando seu progenitor morre, Francisco assume o governo do Paraguai. Demodo simultâneo, ele começa a urdir planos fabulosos. Sonha em transformar suanação num vasto império. Deseja ser “imperador do Prata”. Quer dar à terra emque nasceu uma saída para o oceano. Só há um estorvo, a impedir a concretizaçãodos seus desígnios: é a pátria de d. Pedro II. Pouco importa, entretanto, este empe-cilho! Seu enérgico e defunto pai já lhe asseverara que dez mil paraguaios conquis-tariam, de forma fácil, o colossal Império do Brasil.

Assim que se empossa na presidência da República, Francisco Solano Lópezmanda construir na Europa três couraçados e encomenda cinqüenta canhões. Opaís se converte num grande acampamento militar. Milhares de homens são arma-dos até os dentes. Enquanto esperam as ordens do caudilho, afiam os sabres, fazemmanobras, treinam a pontaria.

Além do Brasil, o ditador pretende esmagar a Argentina e o Uruguai. Apenasaguarda o mais simples pretexto, a fim de declarar guerra ao Império e às duasrepúblicas do Prata.

O pai de Francisco, antes de falecer, deixou de lado a fanfarronice, reco-mendando ao filho, no testamento, prudência no trato das questões internacionais.

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Mas o amante da bela madame Lynch é um impulsivo, um superambicioso famintode glória. Por isto, em 1864, exige do Brasil que este cesse a sua intervenção noUruguai, causada pelo despotismo de Aguirre.

D. Pedro II não se intimida. López, rápido, sem prévia declaração de guerra,determina o aprisionamento, no porto de Assunção, do navio brasileiro Marquêsde Olinda, que conduzia o presidente da província de Mato Grosso, o coronel deengenheiros Frederico Carneiro de Campos.

O tirano ordena a invasão de Mato Grosso e da província do Rio Grande doSul. Desrespeita, ainda por cima, a soberania da Argentina, invadindo-lhe a pro-víncia de Corrientes.

Forma-se, imediato, a Tríplice Aliança. O Império e as Repúblicas Argentinae do Uruguai se unem para vencer o ditador.

É a longa e impiedosa guerra do Paraguai que se inicia.

✺ ✺ ✺

Em julho de 1865, o dr. Brás Martins dos Guimarães Bilac deixa o seu lar,no Rio de Janeiro, com destino aos campos de luta. Ele parte integrando o 31ºBatalhão dos Voluntários da Pátria. Tinha, na Corte, uma clínica muito freqüenta-da, e fora, sem prejuízo de suas atividades, nomeado cirurgião da Polícia Militar.Seguia, pode-se dizer, a tradição dos seus ancestrais, pois o seu bisavô, Jean OlivierMartin Bilac, havia sido médico das tropas do general Junot, quando este, no anode 1807, capitaneou a primeira invasão francesa em Portugal.

A esposa do honrado facultativo, dona Delfina Belmira dos Guimarães Bilac,nascera na Bahia. Ambos já possuíam uma filha, chamada Cora, porém aguarda-vam, em breve, outro rebento.

Cinco meses após a sua partida, nasce no modesto sobrado da rua da Vala, a 16de dezembro de 1865, o novo filho do cirurgião, que iria receber o nome de Olavo.

D. Pedro II, três meses antes do nascimento dessa criança, juntamente com ogeneral Mitre, entrara na cidade de Uruguaiana, ocupada por Estigarribia, o qualse rendeu, em companhia de seis mil homens, às forças aliadas.

O menino vai crescer numa atmosfera de angústia. No seu lar, como em mi-lhares de outros lares, havia tristeza, ansiedade, mas esses momentos de susto emelancolia são contrabalançados pelos instantes de êxito. Quando o almirante Bar-roso destrói a esquadra paraguaia na batalha do Riachuelo, a alma popular exulta decontentamento. E Rosendo Muniz Barreto, autor do “Cântico de Humaitá”, torna-se o intérprete dos corações patrióticos, transbordantes de orgulho:

Oh! Riachuelo! intervenção divinaVales para o Brasil vitorioso!Reviveram heróis de Salamina,Fez-se — novo Têmistocles — Barroso.

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Enquanto os soldados brasileiros se atolam nos charcos do sul, enfrentandoa malária e as balas dos adversários, a imprensa paraguaia compara os generais doImpério a vagarosas tartarugas, arrastando, com muito custo, pesadíssimas espa-das... D. Pedro II era representado como um chimpanzé de coroa, a ostentar longasbarbas... Um dos jornalecos de Assunção procurou, certa vez, definir os Aliados:

Orientales... generales sin ejército!Brasileños ... ejército sin general!Argentinos... ni general, ni ejército!

Os acontecimentos se precipitam, sucedem-se, à semelhança de vertiginosocalidoscópio: Osório derrota os paraguaios em Tuiuti, na mais sanguinolenta bata-lha da América do Sul; o forte de Curuzu é tomado pelos Aliados; fracassa a pri-meira investida contra a fortaleza de Curupaiti e no norte do Paraguai se efetua atrágica e heróica retirada da Laguna.

O povo acompanha, febricitante, o desenrolar do conflito. Cada vitória éuma explosão de júbilo, embora, por outro lado, traga luto e lágrimas a váriasfamílias:

O López subiu ao céu,Para a Deus pedir perdão;Os anjos deram-lhe pedrasE São Pedro um bofetão...

O López comeu pimenta,Pensando que não ardia,Agora está se queixando,Toda noite e todo dia...

A mãe de Olavo, nesses dias incertos, mostra uma notável fortaleza de âni-mo. Com paciência, coragem e resignação, vai educando o filho. É sempre ansiosaque abre as cartas enviadas pelo marido. Este, devido aos seus méritos, foi nomea-do major em comissão do Corpo Especial da Corte, recebendo do governo imperialum expressivo elogio.

Todavia, a peleja prossegue. Solano López continua a acreditar em suainvencibilidade. A um cidadão de Corrientes, chamado Vitor Silvero, o tirano ha-via dito:

— O imperador do Brasil não tem soldados que possam deter o arranco dosoldado paraguaio, nem que possam resistir aos reveses de uma campanha no Esta-do Oriental. Para essa campanha não tem mais soldados do que os rio-grandenses,e estes são republicanos, que saberão aproveitar tal ensejo para se tornarem inde-pendentes. E sobretudo, o imperador não possui hoje exército, e sua esquadra nãoé temível.

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No entanto, apesar dessas bazófias, Caxias iniciara a famosa “marcha deflanco”, indo acampar em frente da poderosa fortaleza paraguaia de Humaitá. Daípor diante, à custa de muito sangue, de duros sacrifícios, os Aliados vão infligindosucessivas derrotas ao inimigo. Os brasileiros, sob o comando do general Marquesde Sousa, alcançam outra vitória em Tuiuti e, em seguida, forçam a passagem deHumaitá. Este baluarte, considerado inexpugnável, acaba caindo. Depois é a vez deCurupaiti. Caxias, guerreiro hábil, audacioso e pertinaz, vence o bravo generalCaballero nas batalhas de ltororó e Avaí. Mas não cessam, nesses lugares, as suasvitórias. Ele derrota o próprio López em Lomas Valentinas e após tomar Angostura,penetra em Assunção, orgulhosa cidade fundada por João de Ayala e que foi, durantemais de um século, a indomável capital das colônias espanholas do rio da Prata.

O conflito do Paraguai termina com a morte do ditador em Cerro Corá, o qualfaleceu em conseqüência de um tiro disparado pelo soldado João Soares. Um alferesnortista, então, cortou a orelha esquerda do tirano, justificando-se desta maneira:

— É uma promessa que fiz na minha terra: levar a orelha de López!Quando a carnificina chegou ao fim, a 1º de março de 1870, Olavo contava

apenas quatro anos de idade.O menino, nessa época, vai assistir, em companhia da mãe, ao desembarque

do 31º Batalhão dos Voluntários da Pátria. Atravessa as ruas apinhadas de povo.Das janelas vê as senhoras acenarem com os lenços. Escuta, vibrante, as cadênciasépicas de uma triunfal marcha de guerra. Que delírio, que entusiasmo! Os tambo-res rufam e os oficiais, de fardas cobertas de galões, se perfilam ao sol. A multidão,no porto, abre alas. No momento em que o batalhão estaca e cessa a música, opovo, frenético, prorrompe em aclamações. De súbito, porém, a banda lança aosares os compassos arrebatadores do hino nacional. A bandeira brasileira, que seachava no centro de um pelotão, impelida por brando vento marítimo, agita-se,estremece, desdobra-se, ondeia, adquire uma soberba e esplêndida majestade.

A criança viva e inteligente, emotiva e sonhadora, perante esse inesquecívelespetáculo, principiou a compreender o significado grandioso do substantivo “pá-tria”. E ao avistar o pai pela primeira vez, com o peito adornado de medalhas, estaimpressão se tornaria ainda mais acentuada.

O dr. Brás Martins dos Guimarães Bilac é um homem de abundante cabelei-ra e olhar perscrutador. Tem a testa ampla, bigodes caídos e cavanhaque.

Olavo vai crescendo a respirar, por toda a meninice, uma contagiante at-mosfera de glória. Tudo que lembra a guerra do Paraguai o impressiona: as narra-tivas dos combates, as bandeiras rotas e ensangüentadas, as fardas vistosas e ascondecorações reluzentes, os arcos de triunfo e os cortejos monumentais.

Solano López, para ele, “era como a personificação do diabo, pérfido e cruel,assinando a sentença de morte da própria mãe, assassinando os irmãos, vivendojubilosamente no meio das carnificinas”.

Muitas vezes Olavo ouviu contar, nos serões domésticos, o que foi o embar-que de d. Pedro II para Uruguaiana: a população carioca, em peso, aclamava oimperador, vociferando ameaças e pragas cabeludas contra os odientos paraguaios.

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O ambiente de rancor em relação aos vencidos subsistiu por bastante tempo.A cidade ainda se cobria de luto, chorando os seus mortos. E o garoto, quando lhefalavam a respeito do Paraguai, experimentava um forte sentimento de repulsa e decólera.

À semelhança de quase todos os meninos da sua idade, Olavo ficava deolhos arregalados e respiração suspensa, ao escutar as narrativas dos horrores daguerra.

Decerto sobrava quixotismo nas histórias que ouvia. Era um quixotismo deacordo com a nossa natureza: ultrafogoso, resplandecente, tropical, mas capaz deiluminar, por isto mesmo, a infância monótona de qualquer menino tristonho.

O dr. Brás, depois da guerra, volta a clinicar. A vida entra no seu ramerrãoprimitivo. Na família do médico há somente duas transformações: mudança do larpara a rua dos Andradas e o aparecimento de mais uma filha.

É figura popular, o pai de Olavo: de elevada estatura, espadaúdo, usa cha-péu alto, luvas, bengala, sobrecasaca marrom, que lhe desce até os joelhos, e calçasirrepreensivelmente brancas. Possui aspecto solene, de burguês circunspecto, masapresenta espírito um tanto irônico, um tanto excêntrico.

Alimenta um sonho, este homem amante da tradição: quer que o filho tam-bém seja médico.

Já imaginando Olavo como cultor zeloso da ciência que deu glória à Laënnec,matricula-o na escola do conhecido padre Belmonte. De nacionalidade portugue-sa, o sacerdote era um professor velho, tabaquento e carrança. Andava com passosvagarosos, fazendo ranger no soalho as suas botas faiscantes e grossas. Assim queescutavam o ruído áspero do seu calçado, os alunos, de modo rápido, simulavamexagerada aplicação no estudo.

Usava, o padre-mestre, ampla sobrecasaca. E sua cabeça, de linhas vigoro-sas, emergia de um colarinho alto e claro. Exibia cabelos compridos, levementeondeados, onde brilhavam fios de prata, que lhe caíam sobre os ombros. Os seusolhos, grandes e severos, reluziam atrás dos óculos de aros de ouro. Gostava deandar com as mãos nas costas. Ora concedia afagos na cabeça de um alunopequenino, ora dava ligeiro piparote nas orelhas de um preguiçoso. Às vezes sedetinha, atendendo, numa voz sonora e autoritária, ao pedido de explicação de umaluno.

O padre conservava sempre, diante de sua pessoa, no período das aulas, umbolorento compêndio de Raffy e uma enorme palmatória de jacarandá. Segundoesse compêndio, Deus havia criado o mundo no ano 4.138 antes de Cristo. Certodia Olavo foi chamado à lição e intimado a dizer, de maneira certa, a data dacriação do mundo. O filho do dr. Brás titubeia, gagueja, atrapalha-se. E por fim,com muito custo, responde:

— 4.136 ...Boca que tal disseste! Houvera apenas um engano de dois anos... Uma ni-

nharia... E no entanto, ó ferocidade pedagógica!, Olavo recebe, como castigo, meiadúzia de bolos. A reprimenda causa-lhe choro, amargura, humilhação, desespero.

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E ele fica perguntando, a si próprio, por que Deus, sendo a suprema misericórdia,não se teria lembrado de criar o mundo dois anos mais cedo, a fim de lhe poupar ador e o vexame daqueles bolos.

O seu orgulho nunca mais iria esquecer nem perdoar a crueldade absurda desemelhante castigo. Desde então achou que o padre havia praticado um gesto abo-minável.

Este sacerdote incomplacente, de férula em punho, rígido e inteiriço comoaprumado monumento megalítico, era homem de poucas letras e de muita crença.Costumava classificar todos os indivíduos que lhe inspiravam desprezo com umsimples e arrasador vocábulo:

— Mação!Ele não dizia “maçom”, em hipótese alguma, como em geral quase todos

dizem. Quando se abespinhava com alguém, só tinha mesmo esta palavra parafulminar os hereges, os vadios, os briguentos, os insubordinados:

— Mação, mação!Tal palavra iria gravar-se, de forma indelével, na alma do menino Olavo,

enchendo-a de profundo terror. O filho da modesta dona Delfina passará a tremerde susto diante dos símbolos cabalísticos das lojas maçônicas. Terá receio, sobretu-do, do “Signo-de-Salomão”, isto é, da estrela de seis lados, cujo triângulo brancosimboliza a Entidade Divina, o fogo espiritual, as forças da evolução, e cujo triân-gulo negro, oposto e complemento do primeiro, representa a criatura humana, ospoderes da terra e a evolução regressiva.

O significado exato do “Signo-de-Salomão” era ignorado totalmente porOlavo. Ele apenas enxergava algo de misterioso nas duas estrelas entrelaçadas...

No colégio os alunos tinham um parlamento mirim, onde discutiam, todasas tardes, na hora do recreio, desde questões metafísicas até regras de gramática. Apequena assembléia contava com um presidente e dois secretários, que eram elei-tos de sete em sete dias. E havia, além do mais, um rigoroso regimento interno. Osdesmandos de linguagem recebiam, como pena, a expulsão perpétua do infrator.Aqueles fedelhos, mal saídos dos cueiros, tratavam-se por “excelência”, trocandodifíceis mesuras e complicados salamaleques. Inúmeras ocasiões o padre Belmonteia assistir à sessão. Cruzava as mãos sobre a respeitável barriga e, de face avermelhadapelo trabalho da digestão, se punha em estado de êxtase, estupidificado diantedaqueles geniozinhos eloqüentes e precoces.

Uma tarde — Olavo estava presente — discutiam se Calabar foi ou não foitraidor. Um jacobino de doze anos tecia o panegírico do mulato, porém um adver-sário, da mesma idade, dava-lhe apartes truculentos. A discussão atingiu tal pontode acrimônia que o orador esbravejou:

— Peço vênia a vossa excelência para lhe declarar que logo mais tencionopuxar-lhe as orelhas!

O aparteante, no mesmo tom, respondeu:— E eu declaro a vossa excelência, com todo o respeito devido, que, à hora

da saída, pretendo quebrar-lhe a cara!

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Realmente, no momento da saída, em pleno largo do Rocio, os dois “parla-mentares” se engalfinharam, trocando socos e pontapés...1

Olavo foi gago na infância, mas com força de vontade procurou corrigiresse defeito, lendo em voz alta os autores clássicos de sua predileção.

Em tenra idade o mundo já lhe parecia mau e hostil. Não encontrava quempudesse dar-lhe uma explicação do que fosse a vida. As injustiças que ele sofria,“essas pequeninas injustiças que assombram a alma da criança e ficam eternamentedoendo na alma do homem”, adquiriam, aos seus olhos, contornos exagerados, for-necendo-lhe a impressão de serem tremendas e monstruosas. Muitas vezes julgava-semais infeliz do que os escravos, que ele via acorrentados e submetidos a torturas, edo que os burros de carga, que deparava nas ruas, a ofegar sob as selvagens chicota-das. O seu espírito, embora ainda infantil, sofria inquietações, revoltas, desesperos.A existência se lhe afigurava uma coisa sórdida, um ergástulo repugnante, horrível,em que tudo era severo e duro, e sobre a qual pairava, “ameaçadora, numa eternainclemência, a sombra da negra palmatória do cônego Belmonte”.

Ah, o terror que lhe infundia esse instrumento de castigo!Uma ocasião, quando já havia sentido despertar o prurido poético, Olavo

compôs uns versos e, sem terminá-los, adormeceu. O padre, descobrindo aquela“falta imperdoável”, aquele “delito infamante”, decidiu castigá-lo com a sua pesa-da palmatória.

Em outra ocasião o sacerdote notou que Olavo quase não freqüentava asmissas e que, embora tivesse memória invejável, desconhecia bastante o catecismo.O padre o chamou ao seu gabinete e passou-lhe uma enérgica descompostura. Omenino ultra-sensível foi fazer queixa ao pai. Mas o cônego, apesar disso, voltou arepreendê-lo. Desta feita, porém, Olavo retruca:

— Senhor padre, eu creio em Deus, sou religioso, mas a questão é que todavez que ouço o reverendo falar, eu me lembro que infunde mais medo à criança doque propriamente fé. Nessas condições, vou à missa com um olho no Evangelho eoutro na palmatória de vossa reverendíssima.

Esse menino precoce, de inteligência brilhante e sensibilidade à flor da pele,fica todo atento, entretanto, quando acompanha, à noite, a leitura de folhetins quesua mãe faz em voz alta.

Olavo, na escola, vai encontrar um lenitivo para os seus aborrecimentos nosencantadores livros de Júlio Verne. Todos os alunos, aliás, gostavam de ler o escri-tor francês. Os seus livros passavam de mão em mão. Até na hora do estudo, nogrande salão de paredes despidas, Bilac e seus companheiros se refugiavam nouniverso fabuloso do romancista que iria influenciar o alto destino de homenscomo Charcot, Lyautey e o almirante Byrd.

Enquanto o ventrudo padre Belmonte dormia a sesta na sua larga poltrona,e o bedel Sizenando, apaixonado pelo charadismo, tentava decifrar enigmas e

1 Bilac narrou cenas da sua infância em três livros: Crítica e fantasia, Ironia e piedade, e Últimasconferências e discursos.

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logogrifos, ele, Olavo Bilac, ia contemplando paisagens desconhecidas, correndoperigos inauditos, curtindo frio no Pólo, fome em ilhas desertas, sede devoradoranas infinitas extensões da África... Graças ao criador de Miguel Strogoff, aquelacriança sonhadora podia dormir “à sombra das tamareiras da Síria e à sombra dospagodes da índia”. E perder-se em florestas virgens, navegar no fundo do oceano,no centro de “vegetações fantásticas e animais imensos”, ouvir o estrondo da que-da do Niágara, enjoar-se com as oscilações de um balão “no meio do céu formigan-te de astros”.

O efeito mágico só terminava quando Olavo lia a última linha de qualquerum desses romances. Então ele se via de novo na sala funérea, melancólica, a ouviro ofego do padre e o andar do bedel maníaco por charadas. Confessaria, depois,que era como um pano de boca a descer “sobre o palco da ilusão, matando afantasia e ressuscitando o sofrimento...”

Em cada fim de ano surgia, para Bilac, a perspectiva agradável das férias,mas o tédio de ter de suportar o colégio tornava-se um suplício indizível. Malpodia escutar as preleções do mestre. Sentia-se distraído. Deixava vagar o pensa-mento, olhando, através das janelas da sala de aula, o céu azul e as árvores verdes.O mundo externo lhe falava de liberdade, de folguedos. Enquanto a voz do profes-sor ia arrastando-se, monótona, no ar pesado e adusto, ele, ansioso, contava osdias que ainda tinha pela frente, a fim de entrar na época cor-de-rosa das férias.Quando o mestre percebia, ao cabo de certo tempo, o alheamento dos seus alunos,mandava fechar as janelas e, como castigo, prolongava a soporífera lição.

Não foi sem motivo que Raul Pompéia escreveu:“O tédio é a grande enfermidade da escola, o tédio corruptor que tanto se

pode gerar da monotonia do trabalho como da ociosidade.”Inúmeras vezes, ao sair do lar rumo à escola, com os livros na maleta e a

alma risonha, prazenteira, Olavo deparava, na rua, com um espetáculo comovente:as procissões de escravos que irrompiam das famigeradas “casas de comissão”.Eram seres maltrapilhos, cobertos de chagas, destinados aos trabalhos rudes doeito. Vários desses infelizes, por serem comedores de terra, carregavam no rostouma máscara de ferro. Outros, bem velhos, de carapinhas embranquecidas, anda-vam tortos, aos tremeliques, tendo à cabeça cestos imundos para o serviço do“ganho”. O menino também via molecotes nus, verdadeiros saquinhos de ossos, asugar, cheios de avidez, seios murchos, sem leite.

E Olavo ficava paralisado de surpresa, de assombro.

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