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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X VIDA E TRABALHO DE UMA FERROVIÁRIA: ETNOGRAFIA, MEMÓRIA E GÊNERO Guillermo Stefano Rosa Gómez 1 Resumo: Neste artigo, intenciono seguir os passos de uma “biografia de exceção”, que possibilita vitalidade para a discussão de gênero, trabalho e memória. Para tal, acompanho a narrativa de uma operária Neida, mãe solteira, Agente de Estação Ferroviária aposentada . A pesquisa baseia-se em uma etnografia realizada na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul. O aporte metodológico considera o ato narrativo como tessitura da apresentação de si e de construção da memória coletiva, mediante o encontro etnográfico. O trabalho ferroviário é caracterizado por tencionar a separação da vida privada e da pública, assim como entre lazer e trabalho, principalmente através das medidas paternalistas adotadas pela Rede Ferroviária Federal, privatizada na década de 1990. A vila operária é um dos exemplos urbanos deste paternalismo: com a moradia próxima ao local de trabalho e de propriedade da empresa, produz a imobilização da força de trabalho, assim como sua vigilância e, por esse ângulo, a bibliografia aponta para a emergência de uma “família operária”, com suas características peculiares. Compreendendo que o trabalho ferroviário é predominantemente masculino, as mulheres são associadas ao âmbito da casa e acabam tendo como campo de ação iniciativas associadas a projetos de ascensão social, que se presentificam por meio da escolarização ou construção de vínculos sociais. Palavras-chave: Trabalho, Operariado Feminino, Biografia, Narrativa. Introdução Neste artigo tenho como objetivo apresentar uma investigação antropológica de uma biografia feminina, relacionada com a experiência do trabalho ferroviário na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul. O material empírico que oportunizou estas reflexões deriva de uma pesquisa etnográfica, que realizo em Pelotas desde 2015 2 , com trabalhadores ferroviários aposentados e suas famílias. Estas reflexões se inserem nos estudos antropológicos da memória coletiva nas sociedades complexas (ROCHA E ECKERT, 2013), e, também, nos estudos sobre operariado urbano. O sistema de transporte ferroviário no Rio Grande no Sul e também no Brasil, inicia sob o comando de concessões estrangeiras, como a belga Compagnie Imperial e des Chemins de Fer du Rio Grande do Sul e a inglesa Southern Brasilian Rio Grande do Sul Company. Em 1920 é criada a Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS), de caráter estatal, até que, em 1957, esta é agregada com diversas outras ferrovias regionais para a fundação da Rede Ferroviária Federal Sociedade 1 Mestrando em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador do Núcleo de Antropologia Visual (NAVISUAL/PPGAS/UFRGS). Porto Alegre, Brasil. 2 Produzi meu Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências Sociais, na universidade Federal de Pelotas (UFPel), orientado pela Prof Claudia Turra Magni, sob o título, “Cidade Trabalho e Narrativa: etnografia urbana com ferroviários aposentados em Pelotas”, disponível no link: https://leppais.files.wordpress.com/2017/04/gocc81mez-g-s-r-cidade- trabalho-e-narrativa.pdf . Hoje, aprofundo minha investigação, inserido no mestrado em Antropologia Social e no Núcleo de Antropologia Visual da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação de Cornelia Eckert

VIDA E TRABALHO DE UMA FERROVIÁRIA ......Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X “

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    Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

    Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

    VIDA E TRABALHO DE UMA FERROVIÁRIA: ETNOGRAFIA, MEMÓRIA E

    GÊNERO

    Guillermo Stefano Rosa Gómez1

    Resumo: Neste artigo, intenciono seguir os passos de uma “biografia de exceção”, que possibilita

    vitalidade para a discussão de gênero, trabalho e memória. Para tal, acompanho a narrativa de uma

    operária – Neida, mãe solteira, Agente de Estação Ferroviária aposentada –. A pesquisa baseia-se

    em uma etnografia realizada na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul. O aporte metodológico

    considera o ato narrativo como tessitura da apresentação de si e de construção da memória coletiva,

    mediante o encontro etnográfico. O trabalho ferroviário é caracterizado por tencionar a separação da

    vida privada e da pública, assim como entre lazer e trabalho, principalmente através das medidas

    paternalistas adotadas pela Rede Ferroviária Federal, privatizada na década de 1990. A vila operária

    é um dos exemplos urbanos deste paternalismo: com a moradia próxima ao local de trabalho e de

    propriedade da empresa, produz a imobilização da força de trabalho, assim como sua vigilância e,

    por esse ângulo, a bibliografia aponta para a emergência de uma “família operária”, com suas

    características peculiares. Compreendendo que o trabalho ferroviário é predominantemente

    masculino, as mulheres são associadas ao âmbito da casa e acabam tendo como campo de ação

    iniciativas associadas a projetos de ascensão social, que se presentificam por meio da escolarização

    ou construção de vínculos sociais.

    Palavras-chave: Trabalho, Operariado Feminino, Biografia, Narrativa.

    Introdução

    Neste artigo tenho como objetivo apresentar uma investigação antropológica de uma

    biografia feminina, relacionada com a experiência do trabalho ferroviário na cidade de Pelotas, Rio

    Grande do Sul. O material empírico que oportunizou estas reflexões deriva de uma pesquisa

    etnográfica, que realizo em Pelotas desde 20152, com trabalhadores ferroviários aposentados e suas

    famílias. Estas reflexões se inserem nos estudos antropológicos da memória coletiva nas sociedades

    complexas (ROCHA E ECKERT, 2013), e, também, nos estudos sobre operariado urbano.

    O sistema de transporte ferroviário no Rio Grande no Sul e também no Brasil, inicia sob o

    comando de concessões estrangeiras, como a belga Compagnie Imperial e des Chemins de Fer du

    Rio Grande do Sul e a inglesa Southern Brasilian Rio Grande do Sul Company. Em 1920 é criada a

    Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS), de caráter estatal, até que, em 1957, esta é agregada

    com diversas outras ferrovias regionais para a fundação da Rede Ferroviária Federal Sociedade

    1 Mestrando em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador do Núcleo de

    Antropologia Visual (NAVISUAL/PPGAS/UFRGS). Porto Alegre, Brasil. 2 Produzi meu Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências Sociais, na universidade Federal de Pelotas (UFPel),

    orientado pela Prof Claudia Turra Magni, sob o título, “Cidade Trabalho e Narrativa: etnografia urbana com ferroviários

    aposentados em Pelotas”, disponível no link: https://leppais.files.wordpress.com/2017/04/gocc81mez-g-s-r-cidade-

    trabalho-e-narrativa.pdf . Hoje, aprofundo minha investigação, inserido no mestrado em Antropologia Social e no

    Núcleo de Antropologia Visual da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação de Cornelia Eckert

    https://leppais.files.wordpress.com/2017/04/gocc81mez-g-s-r-cidade-trabalho-e-narrativa.pdfhttps://leppais.files.wordpress.com/2017/04/gocc81mez-g-s-r-cidade-trabalho-e-narrativa.pdf

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    Anônima (RFFSA). A RFFSA se constituiu como um gigante burocrático, espalhando suas

    operações por uma grande extensão do território nacional. Em termos analíticos, identifica-se como

    empresa típica do capitalismo dos anos 60 (Boltanski & Chiapello, 2006), incentivando uma

    “experiência de profundidade” (Sennett 2015b p. 118) dos trabalhadores, em carreiras de longa

    duração. Essa “política de antiguidade” (Sennett, 2015b p.140) era pautada por uma série de

    mecanismos como a proximidade das moradias com os locais de trabalho, as cooperativas, os clubes

    ferroviários, a promoção por tempo de trabalho, etc. Como indica a literatura (Leite Lopes, 1978;

    Eckert, 2012; Lord, 2002; Sennett, 2015; Hannerz, 2015), este modelo de trabalho, de disposição de

    moradia e de serviços exerce uma forte influência sobre os trabalhadores, mesclando o tempo de

    trabalho com o de não-trabalho.

    Com as medidas neoliberais dos 1990, quando a crítica à burocratização foi levada ao

    extremo (Boltanski, & Chiapello, 2006), a Rede Ferroviária Federal foi inserida em um programa

    de desestatização e extinta, em 1997. O processo, que resultou na concessão das linhas a empresas

    privadas, também provocou uma redução da malha férrea (que já vinha diminuindo

    progressivamente nas décadas anteriores) e das operações, assim como abandono de diversas

    Estações Ferroviárias. No âmbito do trabalho, a diminuição drástica do pessoal resultou em

    demissões, aposentarias forçadas e outros processos coincidentes com a “reengenharia” empresarial.

    Portanto, esta pesquisa é uma investigação sobre a memória do trabalho de uma profissão que está

    sendo desacelerada, mediante as mudanças de um “espírito do capitalismo” (Boltanski & Chiapello,

    2006). Interessa-me conhecer, mediante a etnografia, as narrativas destas pessoas que vivenciam um

    processo particular de envelhecimento e de descontinuidade temporal.

    Ao contrário de um mero resgate folclórico daquilo que “já passou”, meu objetivo de

    pesquisa é pautado por uma Etnografia da Duração (Rocha & Eckert, 2013) e situa-se em interpretar

    o “esforço de continuidade” (Bachelard, 1988) destes sujeitos, expressos em seus atos narrativos

    (Ricoeur, 1991; 1994), visando “repelir a morte social” (Rocha & Eckert, 2013 p. 121). Aqui

    apresento o resultado de uma entrevista em profundidade, realizada com uma trabalhadora

    ferroviária que vive esta “descontinuidade do tempo ritmado pelo trabalho” (Eckert, 2012, p. 95).

    Pareceu-me importante investigar uma especificidade na construção da “identidade

    narrada” (Díaz, 1991) desta senhora, uma duração particularizada pela sua posição de gênero. Cabe

    ressaltar que o próprio envelhecimento se desdobra em particularidades mediante o gênero como

    afirma Claudine Attias-Donfut (2004) “A velhice das mulheres não é apenas um tema incongruente,

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    ele também é minimizado. Em sim, pouco atraente, ele tem ainda um estatuto científico duplamente

    desvalorizado, posto que trata de mulheres e de velhice” (Attias-Donfut, 2004, p.87).

    Uma duração feminina

    “De nossos pais sempre sabemos alguma coisa, um fato, uma distinção. Eles foram

    soldados ou foram marinheiros; ocuparam tal cargo ou fizeram tal lei. Mas de nossas mães,

    de nossas avós, de nossas bisavós, o que resta? Nada além de uma tradição. Uma era linda;

    outra era ruiva; uma terceira foi beijada pela rainha. Nada sabemos sobre elas, a não ser

    seus nomes, as datas de seus casamentos e o número de filhos que tiveram. ” (WOOLF,

    2014, p. 271)

    Quando minha orientadora Cornelia Eckert sugeriu que eu enviasse um escrito para o evento

    Fazendo Gênero 11, visando refletir especificamente sobre a memória de mulheres, ficou claro para

    mim que estava posto um desafio. Este recorte de gênero implicava em um exercício intelectual

    que, mesmo mantendo o pertencimento temático aos estudos etnográficos de memória coletiva e

    narrativas biográficas3, por outro lado, acrescentava um elemento disruptivo4, de uma narrativa

    marcada enquanto produzida por um sujeito do sexo feminino. Diferente de meu Trabalho de

    Conclusão de curso, no qual “o fato de eu ser pesquisador e homem, permitiu o acesso a esse

    aspecto do mundo social, das “intimidades”, das piadas” (Gómez, 2015, p.70), neste contato com

    uma biografia feminina, lidei com o inverso, um processo semelhante ao narrado por Rojane Brum

    Nunes (2013) em sua inserção, enquanto mulher, em espaços de sociabilidade de homens

    aposentados. Se minha referência eram espaços de “auto-segregação espacial dos homens”, (Jardim,

    1991, p.143) onde é possível apelidar as próprias locomotivas de “Cachorronas”, “Africanas” ou

    “Turbinadas” (Gómez & Magni, 2017), ao lidar com uma narradora mulher e realizar um esforço de

    tentar representa-la no texto, eu estava ciente de que seria uma relação diferenciada5. Como destaca

    Sebastien Roux, “Os objetos de pesquisa são gerados e as condições de acesso do pesquisador a

    certas esferas do mundo social variam em função de seu sexo”6” (Roux, 2011, p.18).

    3 Como explicita Anelise Guterres, “há uma longa tradição de pesquisas, biografias e etnografias sobre trabalhadores”

    (GUTERRES, 2013, p. 346), bem como um “investimento no testemunho de vida como aporte fundamental para a

    compreensão das relações interpessoais e visão de mundo desse grupo” (idem, ibidem). 4 No sentido de que “Os estudos sobre as mulheres não são um mero conhecimento adicional a ser acrescentado ao

    currículo. É um corpo de conhecimento de perspectiva transformadora” (STRATHERN, 2009 p. 88) 5 Atentar para o “gênero” das máquinas foi uma das dicas que recebi em uma das reuniões do Núcleo de Antropologia Visual (Navisual/PPGAS/UFRGS). 6 « Les objects de recherche sont genrés et les conditions d’acess du chercheur à certains sphères du monde social

    varient en fonction de son sexe » Em francês no original, tradução do autor.

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    Também me foi inescapável lembrar das ressalvas de Marilyn Strathern (2009), que

    evidencia a relação de tensão entre a Antropologia e a perspectiva feminista. Na ciência

    antropológica os esforços são os de conciliar, por meio da escrita, a situação de interlocução do

    trabalho de campo, permitindo que “os chamados informantes falem com sua própria voz” (idem.

    p.98), através de um texto polivocal. A perspectiva feminista “debocha” da antropologia justamente

    neste ponto, “seu lado mais vulnerável” (idem, p. 100). Segundo Strathern, o feminismo considera

    que essa metáfora da autoria compartilhada, este ideal antropológico, não passa de uma ilusão. O

    diálogo será sempre assimétrico. É claro que se merece datar o texto de Strathern, publicado

    originalmente 1984. Ele pertence a uma época, de determinado pensamento feminista, assim como

    uma determinada concepção de antropologia, especialmente a que se preocupava com o texto. Esta

    antropologia, da “virada literária”, inspirada, por exemplo, pelos escritos de Bakhtin, estava

    debruçada em criar alternativas textuais que conseguissem minar uma autoridade do antropólogo,

    construída historicamente (Clifford, 2008). Apesar de situado, esse debate ainda incita provocações

    interessantes e mereceu ser mencionado, pois, ao escrever sobre uma mulher enquanto o “Outro”,

    sempre está evidente uma relação textual de alteridade, mais específica, neste caso, por conter

    diferenciações de gênero.

    Migrando para uma discussão mais contemporânea, para auxiliar na compreensão dos

    fragmentos biográficos de Neida, uma ferroviária aposentada, busquei complementar a discussão da

    duração com o pensamento de antropólogas feministas, especialmente vinculadas a uma virada pós-

    colonial na antropologia7.

    O pós-colonialismo coincide com emergência de novos sujeitos com condição de fala, que

    auxiliam a desestabilizar as grandes narrativas da disciplina antropológica (Overing, 2000). Uma

    destas vozes é a de Lila Abu Lughod que, para tecer as diretrizes de uma forma de escrita contra a

    cultura8, retoma uma tradição de escritoras mulheres - as esposas dos antropólogos - que, menos

    preocupadas com colocar sua posição no texto e mais atentas a indivíduos particulares e famílias,

    despreenderam-se de um estilo de escrita tradicional das ciências sociais no qual predominava a

    “generalização e a descrição neutra” (Abu-Lughod, 1991, p. 473). A autora sugere, portanto, uma

    7 Explorando esta relação entre pós colonialismo e feminismo, ver, por exemplo Deepika Bahrki (2013). 8 Para Abu-Lughod (1991), o conceito de cultura engloba em si um processo de diferenciação e hierarquização. A

    cultura opera reforçando hierarquias e separações e por isso, deve ser rejeitada completamente

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    “etnografia do particular”9, baseada em “contar histórias sobre indivíduos particulares, no tempo e

    no espaço”10 (Abu-Lughod, 1991, p.475), não apagando, assim, a dimensão temporal e conflitiva.

    Outra antropóloga importante para essa discussão é Veena Das (2011) e a peculiaridade de

    sua abordagem. Se considerarmos a distinção que realiza Sherry Ortner (2016), entre a “Dark

    Anthropology”11- enquanto aquela que enfatiza “ as dimensões severas e brutais das experiências

    humanas e as condições estruturais e históricas que as produziram”12 (Ortner, 2016, p. 49). - e as

    “Anthropologies of the Good” (p.58) - que se voltam para temas como os valores, moralidade, bem-

    estar, imaginação, empatia, cuidado, a dádiva, a esperança, tempo e mudança - entenderemos por

    que a autora considera a obra de Veena Das como um exemplo de conseguir articular estas duas

    perspectivas.

    A abordagem de Das (2011) consegue compreender um evento histórico violento como a

    Partição da Índia através de um mergulho nas afetividades cotidianas de uma mulher chamada

    Asha, que se encontra em sofrimento, por estar inserida em um sistema patriarcal e de castas que

    condena ambas as suas posições: a de viúva e sem filhos. Das reabilita esta narrativa feminina

    realizando reflexão sobre as tradições culturais indianas, reconhecendo o luto e a lamentação

    enquanto gêneros discursivos próprios, bem como, remetendo a figura de Antígona. Assim, a.“

    formação do sujeito como sujeito com gênero (Das, 2011, p.15) perpassa um corpo que sofre e se

    lamenta através da narrativa. São, portanto, as “complexas transações entre corpo e linguagem”

    (idem, p.11) que constituem esta mulher indiana em sua potência narrativa. O exemplo da Veena

    Das é interessante pois reconhece um corpo que sofre e o institui enquanto narrador, focando as

    situações de vivencia de violências que está nas particularidades das vidas cotidianas, refletindo

    sobre suas capacidades de narrar e sobre o próprio caráter desta narrativa.

    Tendo estas perspectivas em mente que procurei entender meu material de campo. Dessa

    forma, apresentarei fragmentos de uma biografia feminina, buscando refletir sobre a vida e o

    trabalho de Neida. Cabe destacar que esta se constitui enquanto uma “biografia de exceção”: uma

    mulher, trabalhadora ferroviária, uma profissão ocupada majoritariamente e historicamente por

    homens.

    9 Mergulhar no particular, para Abu-Lughod (1991) também significa ir contra o fazer principal da antropologia, de

    generalização, que em sua opinião facilita a abstração e a reificação (p. 474) 10 “telling stories about particular individuals in time and place”. Em inglês no original, traduzido pelo autor. 11 A expressão Dark Anthropolgy” é utilizada por Sherry Ortner(2016) para definir uma antropologia que surge em um

    contexto de neoliberalismo. Seus temas evidenciam o impacto deste cenário nas vidas humanas: demissões em massa,

    fechamento de fábricas, estética prisional nas cidades, controle da população, etc. 12“the harsh and brutal dimensions of human experience, and the structural and historical conditions that produce them”.

    Em inglês no original, tradução do autor.

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    Fragmentos Biográficos - Neida

    Conheci Neida durante o projeto de pesquisa, “Memorial da Estação Férrea”, realizado pela

    Universidade Federal de Pelotas em 2015, sob a coordenação da professora Claudia Turra Magni13.

    Mais tarde, quando fui procurado pela TV da Universidade Católica de Pelotas para uma

    reportagem sobre o projeto, o ferroviário aposentado Orlando, parceiro de pesquisa de longa data,

    recomendou que eu conversasse com Neida, para que ela desse um depoimento. Assim,

    conhecendo-a, mais tarde busquei um diálogo mais próximo, para minha pesquisa de mestrado.

    Neida tem 63 anos e mora em uma casa no bairro Simões Lopes, um antigo reduto

    ferroviário, como evidencia a proximidade da moradia com os trilhos e a própria arquitetura

    construída. “Faziam as casas pros funcionários morar e usavam muito os trilhos”, conta ela, fazendo

    referência à calçada de sua casa, onde estão cimentados os trilhos ferroviários que dão base a

    construções e muros da vizinhança.

    Em novembro de 2016, ela me recebeu na sala de casa, cada qual se estabelecendo em um

    dos sofás, um de frente para o outro. O cômodo também contava com uma televisão sobre um

    móvel amplo, com gavetas. Na parede, atrás de Neida, um quadro centralizado com uma fotografia

    de sua filha, de toga, segurando o diploma do curso de Biologia.

    Sua narrativa opera um jogo temporal (Rocha & Eckert, 2013) logo de início: “Nasci em

    Pelotas e aí me tornei ferroviária. ” A continuidade desta frase, conta um processo que é misto de

    casualidade, perseverança e “sorte”, também marcado pelo reconhecimento enquanto mulher nas

    interações que a conduziam para a carreira ferroviária:

    “Na minha família não tinha ninguém ferroviário14. E aí me tornei ferroviária por concurso, né. Eu já tinha terminando o, hoje é ensino médio, na minha época era o segundo grau.

    Primeiro grau, segundo grau, e científico. Foi o primeiro emprego, eu soube do concurso

    por casualidade. Uma vizinha foi na casa dos meus padrinhos, porque naquela época pra ti

    fazer o concurso tu tinha que ter, ficha corrida, tinha que ir no cartório. Ela precisava de

    13 Este projeto coletivo produziu um Museu de Rua, intitulado “Vida nos Trilhos”, composto de doze banners, que circularam pela cidade de Pelotas e Porto Alegre. Também produziu-se um vídeo documento, assim como ensaios

    fotográficos. Os resultados desta pesquisa estão disponíveis no site do LEPPAIS: https://leppais.wordpress.com/mef/

    https://www.youtube.com/watch?v=DCs5JEa0Ghw 14 É recorrente entre os narradores ferroviários tanto a referência a hereditariedade na profissão e do “sangue ferroviário” (RAPKIEWICZ & ECKERT, 2015, p.287) como de seu contraponto: a ausência de vínculos anteriores, que

    servem como crítica do familismo empresarial, enfatizando a noção do mérito, do concurso, ou mesmo do “acaso” e da

    despretensão. Um de meus interlocutores de pesquisa, o maquinista aposentado Orlando Chagas, conta que durante o

    trabalho de taxista, também se inscreveu na rede, “por acaso”: “Numa corrida de Pelotas a Rio Grande, levou um

    homem para o concurso da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA). Ao saber que cinco concorrentes

    haviam esquecido alguns documentos, Chagas, que esperava no táxi, decidiu inscrever-se.” (GÓMEZ, 2015, p. 31)

    https://leppais.wordpress.com/mef/https://www.youtube.com/watch?v=DCs5JEa0Ghw

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    duas testemunhas, foi para pegar duas assinaturas e aí que eu fiquei sabendo do concurso.

    Já tava quase assim, nos últimos dias de inscrições e eu fui. Já tinha terminado o segundo

    grau.” Fiz o concurso, passei, fiquei em Pelotas por sorte porque eles não deixavam

    ninguém na sua cidade. A gente teve que ir na sede da empresa, em Santa Maria, para fazer

    o treinamento de quinze dias. A gente foi e quem depois decidia para onde a gente iria,

    seria o chefe, que ficava em Rio Grande. Eram divididos em 4 distritos, a ferrovia no Rio

    Grande do Sul. O quarto era Rio Grande, terceiro acho que Cruz Alta, segundo Santa Maria

    e primeiro Porto Alegre. O chefe aqui de Rio grande que distribuía [os trabalhadores nos

    diferentes postos de serviço daquele distrito], tinha um monte de estaçãozinha pequenas,

    né? Tinha lugares que era só a estação, não tinham nem casas. E o pessoal me dizia, não

    pensa que tu vai ficar em Pelotas.”

    “Ah, meio que te apavoraram? ”, comentei. Neida assentiu e respondeu:

    “Bah! O pessoal antigo que trabalhava na estação acho que eles não gostavam que chegasse gente nova. Eles te assustavam tudo que podiam, que era para ti não fazer! Principalmente

    mulher, né? Ah porque é só estaçãozinha.... Vai ficar sozinha. Só fica tu e o guarda chave15.

    Tem cobra e no verão elas se escondem nos trilhos. Tudo pra ti chegar e: –Tá não quero não

    vou fazer”. Pra mim foi bem assim, quando eu fui fazer minha inscrição, já foi assim. Bom,

    já tava lá, já tinha arrumado o papel, fui fazer. Mas foi bom porque que aí eu fiz o concurso

    sem aquela vontade “ah eu quero passar”, fiz bem tranquila, foi quando eu passei.” Aí deu

    certo. Depois foi a função de não ficar na cidade.[grifo meu] Mas eu tive sorte. Eles diziam

    assim, se o engenheiro, acho que era Joao Carlos, se ele amanheceu de pé destapado te

    prepara que tu não fica em Pelotas. Então, eu consegui porque ele tinha tapado os pés!

    (risos). [O Engenheiro perguntou] – De onde a senhora é? – Pelotas. – Quer ficar em

    Pelotas? – Ah eu quero! –Então tá, vai pra Pelotas. Aí fiquei 21 anos trabalhando na

    estação. Entrei em 1976 e saí... Ai! Em 1997.”

    Como afirma Veena Das (2011), na narrativa feminina, os signos nocivos são inseridos em

    um processo de domesticação e de “re-narração” (p.11). Para Neida, as pressões “foram boas” para

    à tornar despreocupada, mais tranquila e saindo “vitoriosa”, ao final. Na narrativa, esta conquista é

    logo seguida de um outro dilema: o de “não ficar na cidade”. Um problema resolvido é logo seguido

    do surgimento de outro. Pode-se reconhecer, neste aspecto, uma tática narrativa, que criando uma

    apresentação de si mediante “pequenos mistérios e surpresas” (Leite Lopes & Alvim, 1999).

    Na Rede Ferroviária Federal, Neida desempenhou diferentes funções, como a venda de

    passagens, o cálculo de fretes e despacho de mercadorias no setor dos armazéns e o cálculo de horas

    e trabalho de ponto dos trabalhadores da Via Permanente16. Como retrata LeGoff “a massa do

    conhecido está mergulhada nas práticas orais e nas técnicas” (Le-Goff, 1990, p.393). As ações

    narrativas que descrevem procedimentos de trabalho estão mescladas e tencionam o pensar e o

    fazer:

    15 O guarda-chave, ou “manobrador” é o trabalhador que manipula as chaves para mudança de linha, assim um trem pode trocar de uma linha para outra, fazer desvios, etc. 16 A Via Permanente é o setor de trabalhadores que cuidam da via em si mesma, isto é, reparam trilhos quebrados ou

    tortos, substituem os dormentes (madeiras que apoiam os trilhos). Quase sempre caracterizado por um serviço braçal e

    bastante dispendioso de força física.

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    “Os bilhetes de passagem eram uns cartõezinhos. E a gente tinha que carimbar aquilo ali

    numa máquina. Cada local tinha seu cartãozinho: Pedro Osório, Capão do Leão, Bagé

    [cidades do estado do Rio Grande do Sul]. Já vinha certo, com a numeração – que é a forma

    de controlar. A pessoa chegava: “quero uma passagem para Bagé”. Aí tu pegava o

    cartãozinho de Bagé e carimbava a data. A gente botava ali, era fácil, era legal. Botava ali,

    carimbava. Todo o dia tinha que ser atualizada a data do carimbo. Era bem legal. Aí depois

    tiraram o trem de passageiros”

    Neida, quando perguntada a respeito do que gostava e não gostava no trabalho ferroviário

    contou:

    “Não sei, eu gostei, eles sempre me respeitaram muito. Eu lembro que um dos meus irmãos, quando eu fui trabalhar, eu a única mulher né? –Ah, vai ficar só tu no meio de

    homem! - Tá, e aí? E, graças à deus, assim se algum, logo no início, tentou fazer uma

    gracinha, eu me coloquei no meu lugar Mas, também, aquilo foi tranquilo E até hoje as

    famílias deles também. Que aí depois entrou o plano de saúde, ‘Plansfer’, aí quem ficou

    responsável pelo plano de saúde? A Neida. Parte burocrática tudo era a Neida, né? Eu que

    fui atrás dos médicos pra fazer convênios, os laboratórios, tudo era através de mim.

    Também o plano de saúde era eu que tinha que dar requisição. Aí a família teve também

    mais contato comigo. Então foi sempre muito tranquilo”

    Enquanto trabalhadora ferroviária, Neida transita pelo mundo do público e da “gracinha” e

    também pelo privado, “da família”, realizando múltiplas negociações. Quando opera

    narrativamente uma distinção entre “Ela” e “Eles”, evidencia-se um certo protagonismo de se

    “colocar no seu lugar”. Cabe declarar que essa distinção era diluída em outros momentos da

    narrativa, como quando me contou brincadeiras coletivas que fazia com seus colegas homens. Por

    exemplo, quando juntos, riam de um trabalhador surdo: “Ele ficava ao dia inteiro lá na dele, na

    frente do jornal, quando não tinha anda que fazer né? E ai a gente conversando fervendo e ele nem

    aí(...)”.

    Neida exerceu principalmente um trabalho burocrático, de manipulação de documentos,

    carimbos e outros artefatos característicos da burocracia de uma grande empresa estatal. Se, de um

    lado, temos o trabalho bruto, físico, ou de risco, característico de uma formação da masculinidade

    (Eckert, 1988) e para o qual se tem de ter “colhão roxo” (Gómez, 2015, p.36), Neida chama atenção

    para o trabalho burocrático, o seu trabalho, que também era dispendioso, árduo e portanto, digno

    de ser valorizado. Uma das formas com que ela enfatizou isto, foi através de uma figurava narrativa

    comum do heroísmo ferroviário: os acidentes.

    “Quando caiu as máquinas na ponte, não sei se já te falaram deste acidente, não me lembro

    que ano foi. Eu trabalhava na Via Permanente, já no escritório, quando a gente viu, chegou

    aquela notícia: caiu o trem no canal São Gonçalo! Foi uma loucura aquilo. Era aquele

    corre, tu sabia dos colegas que estariam [no trem] Foi bem movimentado. O pessoal da via

    permanente eles trabalharam direto, dia e noite. No acidente, para tirar as maquinas, a

    função dos trilhos. Tu imaginas a quantidade de horas que eles fizeram. Aquelas horas

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    todas foram calculadas pela Neida17. Da Via Permanente era uma turma em Rio Grande,

    uma turma em Povo Novo, uma em Pedro Osorio, uma outra em passo dos pires e outra em

    Bagé. Uma força tarefa. Mas eu fazia o ponto de Pedro Osório pra cá, dava mais de cem

    homens, para calcular. ”

    Com a privatização da Rede Ferroviária Federal, Neida ficou desempregada e sua

    aposentadoria teve de ser obtida “via judicial”, o que a levou a assumir um novo emprego, uma

    característica recorrente do envelhecimento brasileiro contemporâneo (Peixoto, 2004). Hoje, atua na

    prefeitura de Pelotas. Ela contou sobre sua trajetória, pós privatização da Rede:

    “É porque tem que ter 30 anos né. Eu consegui, via judicial, uma conversão do tempo que trabalhei na estação porque claro o pessoal que trabalhou na estação tinha aquilo, como é

    que chama aquela insalubridade. E eu na parte da Via Permanente, não tinha isso porque

    era escritório né. Mas eu cheguei a trabalhar 11 anos, como agente de estação. Então na

    aposentadoria eu consegui uma conversão. Cada 10 anos ganhava 4 e para mulher era 2. A

    mulher sempre em desvantagem né? É a conversão era assim. A função era a mesma, mas a

    mulher conseguia só dois anos. Foi o que eu consegui, os 11 anos que trabalhei na estação,

    consegui dois anos. Quando eu saí eu ainda paguei um ano e meio, de previdência.

    Consegui esses dois anos da conversão então eu saí proporcional. Quase 28 anos, mas no

    fim não atingiu os 30 anos, então eu saí bem mal! Peguei o tal de fator previdenciário esse

    ai eu fiquei com um salário mínimo. Eu não tenho a média que os ferroviários têm. Mas tá!

    Pelo menos eu tenho esse seguro, né? E ai tá, tive que procurar, por isso que eu to na

    prefeitura.”

    Ao longo dos anos trabalhando com burocracias e cálculos (Neida ri da ironia de trabalhar

    com ponto na prefeitura, mesma função que ocupou na Rede Ferroviária) ela é procurada por

    vizinhos para fazer o imposto de renda. Seus novos projetos, incentivados pela filha, incluem

    retomar a faculdade de ciências contábeis que iniciou durante o trabalho na Rede, mas não terminou

    devido a ter perdido a audição.

    “Eu já tinha várias disciplinas da licenciatura plena. Nesse período eu tava lutando pra

    conseguir o aparelho, custei pra empresa liberar o aparelho[RFFSA custeou o primeiro

    aparelho para surdez], mas não foi muito fácil da empresa liberar até porque não era

    costume deles fazerem isso, então era muita burocracia para liberarem, então demorei pra

    conseguir o aparelho. Nesse meio tempo eu tava estudando, só que eu ia para a sala de aula

    e não escutava, não escutava as vezes nem meu nome. E ai pedi pra sair . Mas antes de sair

    ainda da matemática eu cheguei a fazer transferência pras ciências contábeis porque era a

    área que eu ia me dar muito bem. Hoje a Luana quer que eu faça.

    Assim, ela articula novos projetos, pois aproxima-se o período de sua segunda

    aposentadoria. “Não quero ficar aquelas velhas chatas, bobiando. Eu quero movimento mesmo! ”.

    Conclusões

    17 Em momentos narrativos como este, a trabalhadora refere-se a si mesma na terceira pessoa: “A Neida”. Nas

    circunstancias, podemos dizer, junto com Desjarlais, que o “eu narrador” encontra o “eu narrado” (DESJARLAIS,

    2003, p.109)

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    Neste trabalho busquei ressaltar a vitalidade de uma “etnografia da duração” (Rocha &

    Eckert, 2013) para compreender o fenômeno da memória e da biografia no contexto das sociedades

    complexas. Especialmente, o artigo apresenta um esforço de problematização do gênero feminino

    dentro do trabalho com memória, tentando esquivar-se de uma perspectiva meramente

    “compensatória” (Strathern, 2009, p. 91) – apenas “agregando” as mulheres na análise – e

    problematizar, a partir da antropologia, a potência de uma narrativa feminina para a tessitura

    narrativa das rememorações do mundo do trabalho.

    Neida, ao se construir enquanto personagem, toma possa de um “falar de si” (Diaz, 1999)

    permeado por diferentes recortes: os de mulher, de trabalhadora, de aposentada, de ferroviária, de

    estudante. Este jogo de construção de si, que é, também, temporal, é o que mais desperta

    curiosidade em uma investigação sobre biografia: Que estratégias a narradora mobilizou? Que

    períodos de sua vida enfatizou? Quais deixou para trás? O que fez, quando confrontou-se com o

    próprio “eu-narrado”?

    Contar a própria história é menos um resgate de fatos cronológicos e muito mais uma

    atividade fantástica e imaginativa. São estas criatividades narrativas, situadas no tempo e no espaço

    e marcadas pela subjetividade própria de cada narrador, que um etnógrafo da duração tem como

    material precioso.

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    Work and Life of a ‘Railroadwoman’: Ethnography, Memory and Gender

    Abstract: This article follows the narrative biography of a retired railwaywoman, based on an

    ethnography conducted in the city of Pelotas, Rio Grande do Sul. The methodological approach

    considers the narrative act as fabric of the presentation of self and of building the collective

    memory, through the encounter between ethnographic subjects. The work is characterized by

    intends the separation of private and public, as well as between work and leisure, especially through

    measures paternalistic adopted by the Federal Railway Network (privatized in the 1990s). The

    working villages is one of the examples of this urban paternalism: with the housing (propriety of the

    company) close to their place of work, allows the immobilization of the labor force, as well as their

    surveillance This type of capitalist development is also absorbed into other dimensions of everyday

    life, with the creation of the Railroad Schools, cooperatives, etc. By this angle, the bibliography

    points to the emergence of a "worker family", with its peculiar characteristics. Even so, in the

    analyzes of work classes the understanding that the railroad work is of male predominance, women

    are associated with the scope of the house and end up having as a field of action only initiatives to

    projects of social ascent, through schooling or construction of social bonds. In this way, follow the

    narrative of a railroadwoman, Neida, a single mother, retired Agent of Station, is following the

    footsteps of a "biography of exception", which enables vitality for the discussion of gender, work

    and memory.

    Keywords: Labour, Work Class Women, Biography, Narrative