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REVISTA USP, São Paulo, n.62, p. 38-51, junho/agosto 2004 38 Vida no universo: uma busca do século XXI

Vida no universo: uma busca do s culo XXI

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Vida nouniverso:

uma busca doséculo XXI

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PAUGUSTO DAMINELI

Quero agradecer a leitura atenta eas críticas feitas por Denise Selivone Daniel S. C. Damineli sobre as-suntos de biologia. Dado que re-montei suas sugestões, a responsa-bilidade pelas afirmações no textodeve ser debitada a mim.

AUGUSTO DAMINELIé professor do IAG-USP emembro do Comitê Diretordos Telescópios Gemini.

POR QUE O ESTUDO DA VIDAÉ IMPORTANTE NO

CONTEXTO ASTRONÔMICO?

or que usar o telescópio num tema que até agora foi abor-

dado com o microscópio? A vida é tida por grande parte

das pessoas como um milagre, um dom divino,um evento

único ou raro. Essa idéia é reforçada pelo fato de que só a

conhecemos na Terra. Mas a ausência de evidência seria

evidência de ausência? Ou falta de estudos adequados?

Num cenário materialista, ao contrário, a vida seria abun-

dante no universo. Nos últimos quinhentos anos, desco-

briu-se que nosso planeta é apenas um das dezenas de

corpos planetários em torno do Sol, que por sua vez não é

mais que uma dentre centenas de bilhões de estrelas da Via

Láctea, que é apenas uma dentre centenas de bilhões de

galáxias dentro do nosso raio de visibilidade do universo.

Dado o longo tempo de existência do universo, haveria

condições para a existência de vida, como a conhecemos,

em inúmeros outros lugares, se ela for produzida por pro-

cessos naturais, quaisquer que sejam eles. Isso é uma hi-

pótese de trabalho animadora para a ciência, embora a

probabilidade não seja prova de nada.

A constatação de que a vida existe em algum outro

lugar que não a Terra, ou de que ela não existe em nenhum

planeta conhecido com condições favoráveis (desde que

se conheçam muitos), dará às pessoas bases mais sólidas

para se posicionar em relação às duas alternativas expos-

tas acima: causa natural ou milagre. Uma resposta positi-

va ou negativa sobre essa questão terá um profundo im-

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do DNA dessas algas de 3,5 bilhões de anos(b. a.) era muito parecida com a nossa, in-dicando um histórico evolutivo delas aténós. As diferenças são muito pequenas,comparadas à diferença entre qualquer mo-lécula de DNA e moléculas abióticas ante-riores à vida. E esse imenso passo evolutivoaconteceu num intervalo de tempo de ape-nas ~ 100 m. a. Nos primeiros 700 m. a.depois de formada, a Terra foi atingida porcerca de meia dúzia de eventos esterilizan-tes (impactos de grandes asteróides). Aorigem da vida e sua organização em formacelular envolveram processos tão ou maiscomplexos do que nos bilhões de anos quese seguiram. O fato de que a Terra tenhaoferecido condições favoráveis a esses pro-cessos iniciais ultracomplexos ao longo deapenas ~ 100 m. a. é uma das bases da hi-pótese de que ela tenha vindo de fora. Aidéia de origem da vida fora da Terra(panspermia ou transpermia, como vere-mos adiante) tem desenvolvido argumen-tos de peso, embora com poucos adeptos.Os fósseis, tão eloqüentes sobre os desdo-bramentos da vida mais complexa, nada po-dem dizer sobre as fases primordiais, queenvolvem a própria formação da vida. ATerra devorou para sempre as rochas maisvelhas. Mas, se por um lado a rocha trans-porta as informações através do tempo, aluz as transporta através do espaço. Olhan-do para longe, podemos ver a formação deoutros planetas e assim rever processos queaconteceram no nosso. Os casos não sãoidênticos, mas são tantos que muitos sãobem próximos ao nosso e isso é suficientepara determinar a importância da água, dapoeira e de diversos elementos químicoscomo o carbono, o nitrogênio, etc. É muitofácil detectar um sistema protoplanetário,pelo menos muito mais fácil que detectarum planeta em torno de outra estrela pelofato de a matéria estar espalhada em umimenso disco que reflete a luz da estrelahospedeira. A observação de centenas desistemas protoplanetários indica que a teo-ria atual da origem do sistema solar é bas-tante sólida e podemos usá-la para delimi-tar as condições físicas reinantes no iníciodo nosso planeta.

pacto sobre o pensamento humano. Asconcepções criacionistas vêm sofrendo re-veses constantes desde a revoluçãocopernicana. A origem da vida é um dospoucos assuntos em que ainda não houveum embate definitivo entre criacionismo eevolucionismo. O fato de muitos cientistasusarem termos como “o milagre da vida”mostra o quanto este tema continua numazona confusa entre as duas perspectivas.

A descoberta de vida fora da Terra abri-ria horizontes para a formulação de umateoria geral sobre a vida. O carbono teriapapel fundamental em todos os casos? Exis-tiriam formas alternativas de obter ener-gia? Ela seria sempre baseada em DNA/RNA? Os aminoácidos seriam semprelevógiros? Os açúcares seriam sempredextrógiros? A evolução produziria seressexuados, multicelulares, animais ou plan-tas em condições diferentes daqui? O ritmoda evolução poderia ser mais lento ou maisrápido? Isso é impossível de responderquando se conhece um caso único como oda Terra. No caso da física, por exemplo, amultiplicidade de movimentos no espaço ena Terra, a estrutura de átomos e dos astros,o comportamento dos vários estados damatéria são deduzidos a partir de um pe-queno número de princípios fundamentais.Mais que isso, a física pode prever o com-portamento da matéria/energia em situa-ções ainda desconhecidas e em temposmuitos distantes do atual. Isso foi conse-guido estudando como cada parâmetro variaem função de outros, analisando um gran-de número de casos. Talvez seja uma ilu-são querer conhecer as propriedades damatéria viva como a física (e ciências afins)faz com a matéria inanimada. Entretanto, opoder de síntese e previsão de uma teoriageral é tão grande que vale a pena tentar.Quem sabe a vida entre como parte da Teo-ria de Tudo que a física está buscando?

A relevância do contexto astronômicoestá também no fato de que a origem davida na Terra se confunde com a própriaformação do planeta. Exemplares fósseisexistem apenas depois de ~ 400 milhões deanos (m. a.) que a vida já estava completa-mente estabelecida na Terra. A estrutura

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A descoberta de aminoácidos em me-teoritos, incluindo todos os que são usadospelos seres vivos e dezenas a mais, reforçaa importância do contexto astronômico parao estudo da vida. Na verdade, não podemosdescartar a hipótese de que ela tenha se ori-ginado fora da Terra e aqui aportado já pron-ta ou quase pronta. O local e o material queformou nosso planeta eram extremamentehostis à vida. A essa distância do Sol (150milhões km = 1 unidade astronômica = 1UA), a poeira era seca, não existia água nemcompostos biogênicos (amônia, metano emoléculas de carbono em geral). Eles só eramabundantes a partir de 5 UA de distância doSol (= órbita de Júpiter), onde a temperaturaera mais baixa. Quando Júpiter se formou(70 m. a. depois do início do sistema solar)sua gravidade começou a espalhar para to-dos os lados os cometas que restavam emsuas proximidades. Muitos deles caíramsobre a Terra, trazendo para cá a água emoléculas orgânicas. A água que bebemoshoje veio de bem mais longe que as nuvensde nossa atmosfera. É possível que osaminoácidos que deram origem à vida te-nham vindo para cá prontos. O experimentode Miller (1953), que os gerou em laborató-rio pela primeira vez, reproduzia a compo-sição química que Urey supunha existir naatmosfera primitiva da Terra, mas que narealidade era a de planetas gasosos, comoJúpiter, Saturno, Urano ou Netuno (alta abun-dância de hidrogênio, amônia e metano).Esse tipo de atmosfera é completamentediferente da dos planetas rochosos, como aTerra, Vênus ou Marte (com alta abundân-cia de dióxido de carbono e nitrogênio e semhidrogênio). A existência de uma atmosferaredutora, rica em hidrogênio (H), foi um fa-tor fundamental para o sucesso do experi-mento de Miller. Até hoje não se conseguiuproduzir aminoácidos em atmosferas neu-tras como a da Terra primitiva em quantida-des significativas. Por outro lado, algunsmeteoritos carbonáceos, como o que caiuem Murchison (Austrália, 1969), contêmaminoácidos predominantemente levógiros,como os usados por seres vivos. A glicina jáfoi detectada em nuvens de gás interestelar,além de açúcares, alcoóis e outros compos-

tos orgânicos. O que parece tão difícil paraa Terra abiótica acontece facilmente no céu.O bombardeamento meteorítico trouxepara cá bastantes aminoácidos, e esse podeter sido o material do qual a vida se originou.É mesmo possível que a vida tenha sidodestruída e recomeçado diversas vezes ain-da quando a Terra não estava completamen-te formada. Nos primeiros 400 m. a., ocor-riam impactos de meteoros tão grandes aponto de evaporar os oceanos e esterilizar avida na Terra. Existem indicações de que avida já estava plenamente instalada de for-ma perene logo após essa fase. Uma evidên-cia é que há 3,8-3,9 b. a. já havia amplaatividade fotossintética. Essa parece ser umaestratégia relativamente tardia de obter ener-gia pelos seres vivos (autotrofismo) e por-tanto requereria estágios anteriores. Outrosinal indireto que aparece é a eficiência de13C em rochas de 3,86 b. a. (Ishua –Groenlândia), um processo que, até onde sesabe, só pode ocorrer através de atividadebiológica. É impressionante como a vida apa-receu tão depressa, tão cedo e foi tão resis-tente às catástrofes não só iniciais como aolongo de toda a história evolutiva. Pareceque as catástrofes têm um papel ambivalen-te para a vida.

A vida parece uma verdadeira praga.Mais que isso, ela pode ser muito velha, tercomeçado em outros lugares muito antesque no sistema solar. Uma indicação dissoé que moléculas tão complexas comoaminoácidos tiveram tempo de se formarnas nuvens interestelares, um meio hostil àatividade química. Imagine então a quanti-dade de moléculas complexas que podemter se formado em meios mais densos equentes como os planetas nesse mesmointervalo de tempo.

O QUANTO NOSSO UNIVERSO ÉBIÓFILO?

A vida, tal qual a conhecemos, é muitopouco exigente. Como apontado por Oparin(1924), ela só precisa de energia e átomos

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muito fáceis de encontrar. 99,9% dos siste-mas vivos são compostos pelos átomos C,H, O, N e o restante 0,1% por P, S e traçosde outros elementos com Ca, Fe, etc. Issoparece incrível quando pensamos nos bilhõesde átomos que compõem a molécula doDNA, das proteínas, dos aminoácidos, etc.Os átomos CHON estão entre os cinco maisabundantes do universo. Energia é o que nãofalta nas proximidades das estrelas que so-mam centenas de bilhões numa galáxia típi-ca. A intrincada rede de ligações químicaspode exigir tempo, mas isso também não éproblema. A maioria dos astros e esses qua-tro átomos em especial são muito velhos.

Segundo a teoria do big-bang, domi-nante na astronomia há mais de meio sécu-lo, o H foi formado antes que o universocompletasse 1 segundo de vida, há 13,7 b.a., quando era o único elemento químico databela periódica. Chegou a haver um curtoepisódio de fusão nuclear, que se ateve àfusão do H em He e traços de Li, Be e Bo.O universo se expandiu e resfriou rapida-mente, de modo que, quando tinha 380 milanos, a matéria estava tão fria que passoude plasma ao estado neutro, terminando odomínio da luz. A gravidade passou entãoa dominar, compactando as tênues nuvensde gás em estrelas. A compressão gravita-cional aqueceu o interior estelar a dezenasde milhões e até bilhões de graus, retoman-do a fusão dos núcleos atômicos. A primei-ra geração de estrelas, nascida quando ouniverso tinha 200 m. a., foi de longe amais prolífica. As de maior massa começa-ram a explodir logo a seguir, enchendo agaláxia de oxigênio (O), além de algunsoutros átomos, mas em número bem menor.Esses átomos oxidantes de oxigênio entra-ram em nuvens de H, que é redutor, produ-zindo água. Isso fez da água uma substânciamuito velha e muito abundante nas galáxias.Um bilhão de anos mais tarde começaram amorrer estrelas menores, cerca de 5 vezesmais “pesadas” que o Sol. Elas ejetaram prin-cipalmente o nitrogênio (N). Depois delas,outras estrelas contribuíram com o carbono(C), o ferro (Fe), etc., de modo que, com aidade de 2 b. a., o universo já tinha comple-tado a tabela periódica.

Mapear quantos átomos de cada tipoforam sendo acumulados no decorrer dotempo não é um problema muito complica-do para os astrônomos. Recensear as subs-tâncias e compostos químicos que eles for-maram é um problema muito maior. Issoporque grande parte desse material estáescondido em planetas, cuja composiçãosó é conhecida no sistema solar. O diag-nóstico é muito mais fácil de ser feito paraa matéria em forma gasosa que está disper-sa no meio interestelar. Nessas nuvens fo-ram detectadas quase uma centena de espé-cies moleculares, a maior parte delas com-postas de carbono: açúcares, alcoóis, aceti-leno, buckyball (ou fulereno, com 60 áto-mos de carbono) e até aminoácidos, comoa glicina. A detecção de sinais de aminoá-cidos mais complexos é mais difícil. Aexistência desses compostos atesta que osátomos de que são feitos estão presentes nagaláxia muito antes da formação do siste-ma solar. Um átomo de uma nuvem interes-telar vive em extrema solidão cósmica,demorando milhões de anos para colidircom outro. Eles irão se ligar só se o átomocolisor tiver a valência química certa echegar com velocidade nem muito peque-na nem muito grande. Isso equivale a dizerque a taxa de reações químicas é muitobaixa, de modo que mesmo uma moléculasimples leva muito tempo para ser forma-da. É surpreendente que nesses 12,5 b. a. asnuvens interestelares tenham produzidoaminoácidos. Não se espera, entretanto, queas nuvens tenham chegado a fabricar DNAou a vida. Os planetas formados em tornodas primeiras estrelas seriam os lugarescertos para isso. Eles têm densidades 1 bi-lhão de bilhão de vezes maiores que o meiointerestelar e temperaturas dezenas a cen-tenas de vezes maiores. Dado que a taxa dereações químicas cresce dez vezes quandodobra a temperatura, a densidade constan-te, é fácil concluir que ocorrem muito maisreações químicas num planeta em um mi-nuto que no meio interestelar num milhãode anos. Os planetas são o reino da químicae, portanto, é plausível que sejam tambémda vida. Eles são muito mais numerososque as estrelas e existem há tanto tempo

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quanto elas, de modo que a expectativa égrande de que a vida esteja amplamentedifundida na galáxia. Ainda mais, ela podeser 2-3 vezes mais velha em torno de outrasestrelas que do Sol. Imagine a riqueza deprocessos químicos e eventualmente bio-lógicos que se acumularam nesse tempoem torno desses outros sóis. As estrelas dosbraços espirais da galáxia têm elementosquímicos pesados, mas são relativamenterecentes, e as do halo (volume esférico queengloba a galáxia) são velhas, mas muitopobres em elementos pesados para serematrativas para a procura de vida. As estrelasdo bojo (parte esférica central da galáxia),por outro lado, combinam a velhice comelementos químicos evoluídos. Essa subes-trutura da galáxia contém várias dezenasde bilhões de estrelas.

Uma discussão análoga permite avali-ar as perspectivas de vida em galáxias detipos diferentes da Via Láctea. As galá-xias elípticas têm estrelas velhas e as irre-gulares são recentes, de modo que aselípticas são mais promissoras que estaspara a vida. O mesmo pode ser feito paraoutros possíveis universos. Um universocom expansão muito rápida dificulta aformação estelar e seria biófobo, enquan-to outro mais denso, com expansão maislenta, seria biófilo, se não colapsar muitodepressa. É claro que um universo só podeser conhecido se ele for biófilo, pois eleprecisa conter seres que o observem. Onosso obviamente faz parte dessa classe eisso implica que seus parâmetros físicosestejam dentro de um conjunto limitado.Não é possível caracterizar que conjuntoé esse, pois nem ao menos conseguimosdefinir o que é vida ou inteligência.

Os argumentos que apresentamos, deprobabilidade de existência de vida como aconhecemos, só levaram em conta os fato-res necessários para a vida, que são do tipo“hardware” (elementos químicos e ener-gia). A vida é um estado da matéria quecontém também um “software” de repro-dução. O RNA/DNA é uma molécula cujo“script” controla a articulação conjunta debilhões de átomos, não é apenas uma mo-lécula maior que as outras. É inconcebível

que isso apareça como um acaso de eventosaleatórios, tanto que não existem outrosexemplos de moléculas de complexidadeintermediária. Esse problema necessita fer-ramentas conceituais que ainda não existem.Embora nossa ignorância sobre isso deixe asensação de que o surgimento da vida sejaum fato extremamente raro no universo, aextrema rapidez de seu aparecimento naTerra indica o contrário, mesmo que ela te-nha vindo de Marte.

A VIDA COMO CONHECEMOS NATERRA: UM PONTO DE PARTIDA

A luz de um planeta do sistema solarquando passada através de um espectró-grafo mostra um espectro luminoso domi-nado pela luz refletida do Sol. Uma análisemais cuidadosa mostra bandas molecula-res fracas, produzidas na atmosfera. A at-mosfera dos planetas gasosos (Júpiter,Saturno, Urano e Netuno) tem bastanteamônia (NH3) e metano (CH4), além de água(H2O). Os planetas terrestres (rochososcomo a Terra) têm atmosferas com dióxidode carbono (CO2), N2, e H2O. A Terra é oúnico planeta rochoso que tem ozônio (O3)e metano na atmosfera. Essas duas subs-tâncias são continuamente destruídas pelaradiação ultravioleta (UV) solar, de modoque, para serem observadas, devem estarsendo constantemente repostas. Num pla-neta rochoso a reposição é feita a partir dereservatórios internos. Na Terra, o O3 éformado a partir do O2 liberado pelafotossíntese. Num planeta rochoso, ela é aassinatura inequívoca da existência de se-res fotossintetizantes. O CH4 é liberado peladigestão, em aterros sanitários e materialorgânico em decomposição, sendo uma as-sinatura da existência de animais e/ou bac-térias anaeróbicas em planetas rochososcomo o nosso.

Há cerca de 3,5 b. a., a fonte de energiada vida já obtinha energia por autotrofismofotossintético. O oxigênio era consumidolocalmente nos oceanos em reações de oxi-

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dação. Prova disso são as grandes forma-ções de camadas de ferro (BIFs) que se en-contram nos oceanos, com idades entre 3,5e 2 b. a. Pouco era o oxigênio que subiapara a atmosfera. Há cerca de 2,2 b. a., apóspassar por um evento de glaciação (Terra-bola-de-neve) a concentração de oxigêniona atmosfera aumentou 10 vezes, indican-do que houve uma expansão súbita de ati-vidade fotossintética. Os organismosaeróbicos foram privilegiados à custa dosanaeróbicos. Há cerca de 600 m. a. tudoindica que ocorreu outro evento Terra-bola-de-neve, aumentando a concentração deoxigênio de novo por outro fator 10. Apósessa catástrofe, houve uma explosão denovas formas de vida. Outra catástrofe, há65 m. a. – agora provavelmente a queda deum meteoro –, eliminou muitas espécies,entre elas os dinossauros. Isso abriu espaçopara os mamíferos, que então eram minús-culos, que se desdobraram em baleias,primatas, seres humanos, etc.

As catástrofes parecem exercer umagrande pressão para a diversificação dasespécies. Hoje a vida na Terra ocupa amaioria dos nichos entre + 120OC e –80 OC,meios extremamente ácidos e alcalinos, dofundo das rochas a 1.500 m de profundida-de ao ar rarefeito das mais altas montanhas.Em tempos tão longos, até espécies e orga-nizações complexas como colônias de abe-lhas, formigueiros e cidades se formaram.Essa diversidade parece estar intimamenterelacionada com um certo ritmo de catás-trofes entremeadas por períodos domina-dos por evolução mais lenta. Embora nes-ses períodos intercatástrofes também ocor-ram eventos rápidos de evolução e os rit-mos sejam bastante diversificados. A exis-tência de animais complexos como mamí-feros, entretanto, requer uma faixa estreitade temperaturas, entre 0 e 50 OC. Na Terra,essas condições são asseguradas por umtermostato que controla o efeito estufa: aderiva dos continentes. O CO2 expelidopelos vulcões é dissolvido no mar, trans-formado em rochas calcáreas que são car-regadas para baixo das placas continentais.Ali são dissolvidas no magma, liberandode novo o CO2 através dos vulcões. Quan-

do se acumula muito CO2 na atmosfera, oefeito estufa aumenta, aumentando a tem-peratura da água do mar, que por sua vezaumenta a dissolução do CO2 , reduzindo oefeito estufa. Esse ciclo não existe em Vênusou Marte. O efeito estufa descontrolado emVênus e insuficiente em Marte resulta emclimas hostis para a vida nesses planetas.Os “animais superiores” exigem faixasestreitas de temperaturas e concentraçõesde CO2 menores que 10 milibares de pres-são, de modo que é difícil imaginar sua exis-tência num planeta sem um controletermostático como o da Terra. As formasmais elementares de vida, por outro lado,toleram faixas muito mais amplas de condi-ções ambientais. Nos eventos de extinção,eles são preservados e voltam a proliferarmais facilmente que os seres multicelulares.Mesmo nas condições amenas da Terra atu-al, os micróbios somam a maior massa deseres vivos. São eles que contribuem com amaior parte dos sinais mais característicosde vida na atmosfera terrestre (CH4 e O3) e éisso que será procurado em planetas rocho-sos em torno de outras estrelas.

A irmandade cósmica que procurare-mos não será de ETs, como os humanóidesfigurados no cinema e literatura, mas a demicróbios. Não queremos negar que pos-sam existir seres inteligentes fora da Terraou mesmo civilizações tecnológicas. Ogrande número de lugares com condições ehistórias semelhante à da Terra sugere queeles poderiam existir. Entretanto, o “gran-de silêncio”, como apontado por Fermi hámais de meio século, deixa dúvidas sériasquanto à existência de civilizações tecno-lógicas na Via Láctea. Por que não somoscontactados por civilizações extraterres-tres? Cálculos probabilísticos simplesmostram que, se tivesse surgido uma civi-lização como a nossa em qualquer lugar daVia Láctea há algumas dezenas de milhõesde anos, ela já teria colonizado toda a galá-xia. Se adotarmos um princípio antigeo-centrista e levarmos em conta os dados daevolução química da Via Láctea, isso po-deria ter acontecido muito antes do que aquie em muitos lugares. Existem diversos ar-gumentos que procuram defender a exis-

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tência de civilizações tecnológicas contraa falta de contatos, mas que podem ser re-batidos com relativa facilidade, ou, nomínimo, chega-se a um ponto de indefi-nição. É até possível que a inteligência nãoseja tão rara na galáxia, mas civilizaçõestecnológicas talvez sejam. A tecnologiaexige habilidade corporal combinada cominteligência. Esses dois fatores não neces-sariamente estão associados. A procura desinais inteligentes, até agora, tem sido feitade modo totalmente empírico. Não que oempirismo não possa levar a descobertas,mas nesse caso a probabilidade de sucessoem tempos curtos é muito baixa, dada aenorme quantidade de situações possíveis.Basta multiplicar o número de alvos (estre-las) pelo número de freqüências eletromag-néticas em que os sinais podem estar sendoenviados pelo número de horas que um alvodeve ser pesquisado para ver que as chan-ces de sucesso são muito pequenas paraatrair pesquisadores e recursos. Fora todasas incertezas sobre qual seria a estrutura deum sinal inteligente, em contraposição aum sinal de causas naturais, qual o veículoemissor, se sonoro ou eletromagnético eassim por diante. Os projetos SETI (buscade sinais inteligentes) têm recebido algunsfundos privados que permitiram um eleva-do desenvolvimento na tecnologia de pro-cessamento de sinais rádio. Entretanto, aslimitações conceituais continuam sendo omaior entrave para o avanço dessa área.

EXISTE VIDA EM ALGUM PLANETACONHECIDO OU EM ALGUMDE SEUS SATÉLITES?

Os planetas gasosos do sistema solarpossuem grossas camadas convectivas quecirculam o gás do topo da atmosfera, onde atemperatura é da ordem de –200 OC até pro-fundidades onde atinge milhares de graus,sendo bastante hostil à vida. Embora não sepossa excluir a possibilidade de vida emcamadas intermediárias, a existência de inú-

meras moléculas orgânicas de origemabiótica, como o metano, não os torna atra-tivos para uma busca inicial. Hoje são co-nhecidos mais de uma centena de planetasem torno de outras estrelas vizinhas, todosgigantes gasosos como Júpiter, ou maioresque ele, interessantíssimos para planetologia,embora irrelevantes para a procura de vida.

Ainda não houve um procura exaustivade vida nem mesmo no sistema solar. Mar-te é o planeta que apresenta melhores chan-ces. Ela começou a ser buscada por navesrobóticas no início dos anos 80 (projetoViking) e neste momento lá estão dois ro-bôs e duas naves orbitais continuando es-ses esforços e muitos outros serão envia-dos nos próximos anos. Nada foi encontra-do até agora, mas as buscas podem não tersido feitas nos lugares certos. Mesmo aquina Terra, debaixo de nossos narizes, pas-sou-se um século entre a sugestão de Darwine a efetiva descoberta de fósseis pré-cambrianos. A janela de biogênese na Ter-ra se deu entre o aparecimento da vida ~ 3,8b. a. atrás e o aparecimento de condiçõesambientais adequadas, varrendo um inter-valo de ~ 100 m. a. Antes de 4 b. a. atrás acrosta (camada de 1 km de profundidade)era quente demais (>120 OC) e antes de 3,9b. a. havia impactos meteóricos esterilizan-tes. Em Marte, há 4,3 b. a. a crosta já haviaesfriado o suficiente e até 3,6 b. a. a tempe-ratura atmosférica se manteve adequada àvida. A atmosfera fina, os mares rasos e ataxa menor de queda de meteoros permiti-am perda rápida de calor, não havendo ca-tástrofes esterilizantes globais. A janela debiogênese em Marte foi de ~ 700 m. a. Sea vida começou lá, ela poderia ter sido trans-portada para cá através de rochas arranca-das em impactos meteóricos, a chamadatranspermia. A troca de material por trans-permia diminui muito quando considera-mos planetas mais distantes ou sistemasextra-solares. Os meteoros interessantespara a vida são os suficientemente peque-nos para não ultrapassarem 100 OC no im-pacto. Em 4,4 b. a., caíram 4 bilhões detoneladas de meteoritos marcianos comessas características. Da Terra para Marteo transporte de meteoros foi menor. Até

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hoje, rochas de origem marciana continu-am caindo na Terra e da Terra em Marte. Otempo de vôo de uma rocha entre esses doisplanetas pode ser tão curto quanto sema-nas, enquanto um micróbio poderia semanter em seu interior em estado dormentepor até ~ 1 m. a. Se for encontrada vida (oufósseis) em Marte, a discussão seguinte seráse a biogênese foi única ou se houve doiseventos separados. Em termos probabilís-ticos, a Terra teve maior chance de ser con-taminada e não podemos descartar a hipó-tese de que somos marcianos.

Marte vem perdendo sua atmosferamuito mais rapidamente que a Terra, porcausa de sua gravidade mais baixa. A nossasó se acabará dentro de 1 b. a. Parte do CO2

de Marte foi perdida por esse processo,sendo que outra parte foi absorvida porrochas ou se encontra em forma de geloseco nas calotas polares. Com isso ele per-deu seu mais precioso gás de estufa, tendohoje temperaturas por volta de –60 OC.Grande parte da água foi dissociada pelaradiação UV solar, mas uma parte ficou nosubsolo e em forma de gelo nos pólos. Aalta incidência de radiação UV e partículascósmicas tornam o ambiente marciano ex-tremamente esterilizante. A água jorra even-tualmente a partir de fontes geotérmicas,mas evapora instantaneamente quando che-ga ao ambiente aberto. O interior das ro-chas seria um refúgio propício para a vidaem Marte, pois aqui na Terra bactérias sãoencontradas a mil metros de profundidadedentro de rochas. Seria mais plausível con-siderarmos Marte como um local pós-biótico, dada a história de sua atmosfera.Isso não impede a continuidade da procurade vida, que poderia estar fossilizada e ain-da assim fornecer informações valiosas.Esses fósseis poderiam estar bem preser-vados sob o gelo das calotas polares, localque ainda não foi pesquisado. O meteoritode origem marciana ALH84001 despertougrande interesse quando, em 1997, foi anun-ciado que ele continha microorganismosfósseis. O fato de o próprio presidente dosEUA ter trazido a notícia a público dá umaidéia da importância desse assunto. Entre-tanto, as análises feitas por um paleontólogo

imparcial, não vinculado à Nasa (WilliamSchopf), haviam mostrado, antes do anún-cio, que as chances de essas formações se-rem de origem inorgânica ou orgânica eramiguais. Em rochas terrestres existem for-mações parecidas, originadas por proces-sos abióticos e que depois foram cobertospor material orgânico. As chances de queas formações do ALH84001 tenham ori-gem biológica são de 50%. Ou seja, se umcientista disser que esse é um sinal de vida,sua afirmação tem o mesmo valor que oobtido em disputa de par ou ímpar entredois analfabetos. A publicidade foi feitapara alavancar a aprovação de verbas paraa Nasa no congresso americano, um tipo deprática que está se tornando cada vez maisfreqüente na luta por recursos. Isso man-cha a credibilidade dos cientistas e a longoprazo diminui o apoio público à atividadecientífica.

Outro astro de interesse para a vida éEuropa, um dos 28 satélites de Júpiter. Essa“lua” descoberta por Galileu tem uma crostade ~ 100 km de gelo, sob a qual existe ummar de água líquida de ~ 70 km de profun-didade. A presença de água líquida vem doaquecimento do satélite por efeito de maréde Júpiter, e indica condições suficientespara a vida. A ausência de luz solar nessasprofundezas não é um problema. Aqui naTerra, a vida pulula em volta de fontes hidro-térmicas no fundo dos oceanos. Esse tipode vida se alimenta de produtos químicosexpelidos pelas fontes térmicas (~ 120 OC),a forma mais primitiva de obter energia porum organismo. Análises do rRNA 16Sdesses microorganismos indicaram que, dosorganismos atuais, eles seriam os mais pró-ximos ao ancestral comum da vida. Europapoderia abrigar organismos desse tipo, quepoderiam ser “pescados” por sondas capa-zes de descer a grandes profundidades. Masé claro que, se isso já seria uma grande faça-nha se fosse feito por seres humanos aqui naTerra, imagine a dificuldade de fazê-lo comrobôs a meio bilhão de quilômetros daqui.Mas isso acabará acontecendo mais cedo oumais tarde. De fato, a exploração do lagoVostok na Antártida, submerso há mais de500 m. a. sob uma camada de 3,7 km de

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gelo, será um ensaio para a pesquisa de vidaem Europa. Não se trata só de um ensaio,mas de uma dentre inúmeras pesquisas davida em ambientes extremos em andamen-to (veja http://www.daviddarling.info/encyclopedia/V/VostokLake.html). Esseramo da biologia vem se desenvolvendorapidamente, impulsionado pelo interessena vida fora da Terra. A distância de Euro-pa implica baixa probabilidade detranspermia com Marte ou a Terra, de modoque ela oferece uma possibilidade de bio-gênese própria.

Titan, um satélite de Saturno, é outrolocal de interesse para a vida. Esse corpoceleste possui uma densa atmosfera ondeocorrem precipitações constantes de com-postos orgânicos. A nave Cassini desceráem Titan em janeiro de 2005, sobre umcontinente com quilômetros de profundi-dade de materiais orgânicos de origemabiótica, como acetileno, metano e amôniacongelados. As temperaturas em Titan sãomuito baixas (–200 OC), de modo que nãose espera encontrar vida lá, ele seria umsistema pré-biótico. Se a vida se desenvol-vesse num local como esse, não seria cer-tamente do tipo da nossa, que exige água.A água é uma molécula polar e por issoconsegue passar através da membranas ce-lulares. Os líquidos orgânicos de Titan têmmoléculas apolares, de modo que, se a vidasurgisse lá, seria muito diferente da daqui.

PERSPECTIVAS DE VIDA EM TORNODE OUTRAS ESTRELAS

A constatação do papel fundamental daenergia solar para a vida levou à formaçãodo conceito de zona de habitabilidade emtorno de estrelas. Essa zona seria a faixa emtorno da estrela em que a água estaria líqui-da (entre 0 e –100 OC). Ou seja, para raiosmenores a temperatura cozinharia as subs-tâncias orgânicas e para raios maiores a taxade reações químicas seria baixa demais paraa vida. No caso do Sol, essa faixa vai dasproximidades de Vênus a Marte, só con-

tendo a Terra. Na verdade, a temperaturaatmosférica de um planeta depende tam-bém da concentração de gases de estufa,não sendo uma propriedade só da estrelacentral. Se Vênus tivesse menos dióxidode carbono, teria um efeito estufa menor eportanto uma temperatura atmosférica maisbaixa e Marte o contrário. Nessas condi-ções, ambos poderiam ser habitáveis poralguma forma de vida, embora formalmen-te fora da zona de habitabilidade. Alémdisso, o corpo celeste poderia ter fonte deenergia térmica não-solar que o tornassehabitável. O conceito de zona de habitabi-lidade, entretanto, continua útil, pois defi-ne uma região de condições ótimas.

A zona de habitabilidade muda de posi-ção e tamanho à medida que a estrela evo-lui. O Sol, por exemplo, está se tornandolentamente mais luminoso, de modo quesua zona de habitabilidade está se deslo-cando para fora e aumentando de largura.Quando estiver terminando sua fase dequeima de hidrogênio no núcleo, daqui a 5b. a., o raio interno de sua zona de habita-bilidade estará entre a Terra e Marte e oraio externo estará próximo à zona dosasteróides. O clima da Terra será esterili-zante, enquanto o de Marte será, de novo,acolhedor para a vida.

Quanto maior a massa de uma estrela,maior sua luminosidade e, portanto maisampla será sua zona de habitabilidade. Es-trelas menores têm zona de habitabilidademais estreitas e mais próximas da estrelacentral. Quanto mais larga a zona de habita-bilidade, maior a probabilidade de um pla-neta estar localizado dentro dela, de modoque à primeira vista parece mais provávelencontrar um planeta na zona de habitabili-dade de uma estrela de maior massa, comoSirius ou as 3 Marias, que na do Sol. Issoseria verdade se os planetas estivessem uni-formemente distribuídos em torno das es-trelas, independentemente da distância. Seo sistema solar for típico, a densidade deplanetas cai rapidamente com a distância.Desse modo, os fatores se compensam e aprobabilidade de existir um planeta dentroda zona de habitabilidade poderia não sermuito diferente para estrelas de grande ou

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pequena massa. Mas ainda não sabemos seas grandes estrelas são tão propícias paraformar planetas quanto as pequenas.

Existe um outro fator que pode ser de-terminante na expectativa de vida em fun-ção da massa das estrelas. Uma estrela commassa dez vezes a do Sol viverá mil vezesmenos que ele: 10 m. a., em vez dos 10 b.a. para o Sol. Além da duração maior dafonte de energia, a zona de habitabilidadedas estrelas pequenas se mantém na mes-ma posição no espaço por mais tempo. Alongevidade das estrelas pequenas as tornamais interessantes para a vida que as maio-res. Entretanto, as estrelas muito pequenas,como as anãs vermelhas, sofrem erupçõesgigantescas com muita freqüência. Gran-des flutuações energéticas não parecem serfavoráveis à vida. Não é que se exclua apossibilidade de existência de abrigos quepodem amortecer o impacto dessas erup-ções em alguma situação especial, mas aquiestamos interessados em um diagnósticogeral. Assim, estrelas na faixa de massapróxima da do Sol parecem as mais favorá-veis para a procura de vida. À primeira vista,parece que achamos de novo o “dedo deDeus” apontando para nós com o lugarprivilegiado, uma forma travestida de rea-bilitar o geocentrismo. Entretanto, comoexistem dezenas de bilhões de estrelas naVia Láctea com massas nessa faixa (1/2 a2 massas solares) não parece que estamosprivilegiando um tipo particular de estrelapor ser parecida com a nossa. Na verdade,esse tipo de estrela também é muitoencontradiço em outras galáxias, especial-mente nas de forma elíptica. A maior partedessas estrelas é muito mais velha que oSol, de modo que elas também favoreceri-am o abrigo à vida complexa.

A dificuldade técnica de detecção deplanetas cresce com a distância, de modoque as estrelas mais próximas do Sol serãoas pesquisadas numa primeira fase. A de-tecção de vida exige a análise da luz doplaneta separadamente da estrela hospedei-ra, o que hoje só conseguimos fazer no sis-tema solar. Estender essa possibilidade paraoutras estrelas é uma tarefa para as próxi-mas décadas, como será discutido a seguir.

UMA NOVA ERA PARA APLANETOLOGIA

A descoberta da centena de planetasextra-solares conhecidos até agora foi feitade forma indireta. O planeta não é fotogra-fado diretamente, mas através do efeito desua gravidade sobre a estrela hospedeira.Pela lei da gravitação universal, o planetaatrai a estrela com a mesma força que ela oatrai, ambos giram em órbitas com foco nocentro de massa do sistema. O tamanho daórbita é inversamente proporcional à mas-sa do corpo, de modo que a órbita da estrelaé muito menor que a do planeta. Em geralela é tão pequena que é desprezada, comonas leis de Kepler, que só consideram aórbita de cada planeta, desprezando a doSol. Mas, usando as leis de Newton, pode-mos calcular a velocidade da estrela em suaórbita. O efeito de Júpiter sobre o Sol, porexemplo, faz com que ele percorra umapequena órbita num período de 12 anos auma velocidade de apenas 12 metros porsegundo. Isso seria indetectável pelas téc-nicas atuais se existisse um sistema plane-tário com essas características a poucosanos-luz daqui (um ano-luz = 9 trilhões km).Quanto mais próximo o planeta está daestrela, e quanto maior sua massa, maior aforça da gravidade entre os dois. Comoresultado, a órbita da estrela fica maior, suavelocidade aumenta e o período orbital maiscurto, tornando mais fácil detectá-lo poressa técnica indireta, baseada no efeitoDoppler (deslocamento sofrido pela luzquando uma fonte se move em relação aoobservador). Por isso, todos os planetasextra-solares descobertos até agora são gi-gantes gasosos, muito próximos da estrelacentral. A maioria está a menos de 1 unida-de astronômica da estrela hospedeira.

Dado que as estrelas hospedeiras sãomuito parecidas com o Sol, o fato de haverplanetas (gigantes) gasosos em órbitas queem nosso sistema são ocupadas por plane-tas rochosos pareceria indicar um graveproblema na teoria de formação do sistemasolar. No sistema solar, os planetas gigan-

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tes estão a distâncias maiores que 5 UAporque nessas regiões os grãos de poeiraeram recobertos por gelo, o que facilitou orápido crescimento dos planetas exterio-res. Assim, eles absorveram também gás,numa fase em que o vento solar ainda nãotinha varrido a nuvem gasosa. Na regiãointerna do disco protoplanetário, a poeiraera seca, difícil de colar, resultando emplanetas menores, incapazes de segurar ogás com sua baixas gravidades. Como po-dem existir planetas gasosos em outrasestrelas, numa região onde só poderiamnascer planetas rochosos? Simplesmenteos planetas extra-solares gigantes conheci-dos não nasceram onde estão hoje. Elesteriam nascido a distâncias muito maiorese estão migrando em direção à estrela cen-tral. Ou seja, esses sistemas são instáveis.Se esse cenário estiver correto, essesplanetões devem ter “atropelado” os pla-netas rochosos, jogando-os para a estrelacentral. Uma indicação de que isso pode terocorrido é o fato de que essas estrelas têmmuito mais átomos pesados que o Sol (Fe,Ca, etc.). Esse excesso de átomos pesadospoderia ser o resultado da desintegração deplanetas rochosos na atmosfera da estrelacentral. Nenhum dos sistemas planetáriosconhecidos até o momento parece ser favo-rável à vida. Mas muitos desses planetasestão na zona de habitabilidade, de modoque alguns de seus satélites poderiam tercondições climáticas parecidas com as daTerra. Poderiam esses satélites favorecer avida? Aparentemente não são locais muitobons. Por um lado, a taxa de queda demeteoros seria grande por causa da elevadaforça gravitacional dos planetas gigantes.Por outro, sua migração produz mudançasambientais contínuas que, se forem muitorápidas, são desfavoráveis à vida, mas seforem lentas seriam favoráveis. O fato deque todos os sistemas planetários extra-solares conhecidos são instáveis, ao con-trário do nosso, seria de novo um “dedo deDeus” apontando para nós como lugar pri-vilegiado no universo? Não. Nesse caso,trata-se de um efeito de seleção, uma limi-tação da técnica de busca que só conseguedetectar planetas grandes situados muito

perto da estrela central. Portanto, só conhe-cemos hoje sistemas planetários extra-so-lares que são anômalos, que fogem à regra.As buscas nas estrelas vizinhas revelarama existência de planetas em 5% dos casos.Se esses são a exceção, a regra pareceriaser que a percentagem de estrelas que abri-gam planetas seria pelo menos dez vezesmaior. Precisamos de técnicas mais pode-rosas para revelar os sistemas mais comuns.

O próximo passo na procura de plane-tas extra-solares será a detecção direta deplanetas gigantes. A dificuldade está emque o planeta só reflete uma fração ínfimada luz da estrela central e ele está muitopróximo dela. O primeiro efeito é de con-traste luminoso: para cada fóton de luz vi-sível (comprimento de onda = 0,5 mícron)que entra no telescópio vindo do planeta,chegam mais de 1 bilhão da estrela. É comoacender um palito de fósforo num diaensolarado: ele fica ofuscado pela luzcircundante. A situação melhora no infra-vermelho médio (10 mícrons). Nesse com-primento de onda mais longo, a estrela emitemenos luz e o planeta mais, de modo que arelação fica de 1 para 1 milhão. O desafioé ainda grande, mas o contraste é mil vezesmaior nesse comprimento de onda que nafaixa visível. O problema é que o poderresolvente (acuidade óptica) do telescópiopiora proporcionalmente ao comprimentode onda. Para compensar essa perda, aotrabalhar no infravermelho é necessárioaumentar o diâmetro do espelho coletor dotelescópio na mesma proporção. Os maio-res telescópios atuais têm cerca de 10 me-tros de diâmetro (geração VLT – very largetelescopes). Dentro de uma década, os te-lescópios da geração VLT (Keck, Gemini,VLT, Magellan, HEBT) estarão descobrin-do dez vezes mais planetas gasosos quehoje. Isso crescerá ainda mais na próximageração de telescópios, os ELT (extremelylarge telescopes). Em duas décadas tere-mos catálogos com milhares de planetas.Esse tesouro propiciará um salto no conhe-cimento da planetologia. Saberemos quaissão os parâmetros típicos dos sistemas pla-netários em termos de número de objetos,de características orbitais, distribuição de

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tamanhos, temperaturas e composição quí-mica. Ficará claro se o sistema solar é umaexceção de extrema estabilidade, comoparece hoje, ou se esse é um caso típico,como esperamos. A aventura iniciada hávinte séculos, quando nossos ancestraisidentificaram os planetas como sendo as-tros diferentes das estrelas, chegará à suamaturidade. O avanço nessa área tem sidolimitado pelo pequeno número de sistemasconhecidos até agora.

Para atingir, no infravermelho médio, omesmo poder resolvente que na faixa visí-vel, os telescópios teriam de ter espelhoscerca de 20 vezes maiores que os de hoje.Mas existe uma técnica antiga, chamada deinterferometria, que permite melhorar mui-to o poder resolvente do telescópio. Parafuncionar bem, essa técnica precisa de mui-

ta luz, de modo que o aumento do tamanhodos telescópios continua sendo um impera-tivo, embora não tão grande quanto sem ouso da interferometria. Essa nova geraçãode telescópios com espelho de 30 a 100metros (ELT) exigirá grandes investimen-tos técnicos e financeiros. Os projetos sãoorçados em torno de 1 bilhão de dólares eexigem a cooperação entre as maiores eco-nomias do mundo, não só para serem cons-truídos, como para serem operados (cercade 100 mil dólares/noite). Eles entrarão emoperação daqui a 10-15 anos. É claro que astecnologias produzidas enriquecerão os paí-ses envolvidos, como tem ocorrido em to-dos os projetos de fronteira científica/tecno-lógica. O Brasil é parceiro de outros 5 paísesno projeto Gemini, que conta com dois te-lescópios de 8 metros, um no Havaí e outro

Simulação de como a Terra seria vista pelos telescópios Darwin se houvesse um sistema solar idênticoao nosso a 30 anos-luz daqui. Note que o ozônio (O3) seria detectado claramente em 10 mícrons.

Figura 1

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nos Andes chilenos. Projetos cooperativoscomo esse são importantes para a geraçãoseguinte. No momento em que escrevo estetexto, está sendo inaugurado o telescópioSoar nos Andes chilenos, em cooperaçãocom universidades americanas. Esse é umtelescópio relativamente pequeno (4 metros),mas dotado de tecnologia avançada que per-mitirá um salto quantitativo e qualitativo paraa astronomia brasileira. Esse é o caminhopara um possível engajamento do Brasil nosprojetos da geração ELT.

Após a fase de imageamento direto deplanetas gasosos, será a vez dos rochosos.Esse desafio será ainda maior, pois essesplanetas são menos brilhantes que os gaso-sos e estão ainda mais próximos da estrelacentral. Sua detecção exigirá interferometriaatravés de diversos telescópios situados noespaço. Um desses projetos é o Darwin,comandado pela comunidade européia. Oimageamento de planetas extra-solares nãodeverá revelar nenhum detalhe visual, comooceanos, continentes ou nuvens, mesmo emplanetas gigantes. Toda a informação viráda análise espectral da luz, com a qual sepode determinar a composição química, tem-peratura, velocidades, etc. Os astrônomosfazem isso rotineiramente há mais de umséculo com cometas, planetas, estrelas, ga-láxias, etc. Eles analisam os átomos de as-tros a distâncias maiores que 10 bilhões deanos-luz de nós. Não será difícil fazer issocom as moléculas de planetas vizinhos. Aimagem na página anterior mostra comoseria localizado o ozônio em um planeta

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JAKOSKY, Bruce. The Search for Life on Other Planets. Cambridge University Press.McCLENDON, John H. “The Origin of -”, in Earth-Science Reviews 37, 1999, pp. 71-93, Elsevier.STEARNS, Stephen C. e HOESKSTRA, Rolf F. Evolução: uma Introdução. Ed. brasileira de W. A. Neves. São Paulo,

Atheneu, 2003.

Links na Internet relacionados ao tema

http://www.astro.iag.usp.br/~damineli/univida/internet.htmlhttp://arxiv.org/PS_cache/astro-ph/pdf/0403/0403050.pdf

como a Terra, situado em torno de uma es-trela como o Sol a mais de 30 anos-luz dedistância.

Esse seria um sinal inequívoco da exis-tência de vida fora da Terra. Em menos deduas décadas teremos dados para estudaressa questão. Se a vida aparecer em muitosdos planetas rochosos com condições fa-voráveis, seriam confirmadas as expectati-vas atuais de que ela é uma propriedadecomum da matéria. A falha sistemática dedetecção de assinatura de moléculas deorigem biótica nos devolveria à solidão cós-mica em que nos encontramos hoje. Tere-mos de repensar muita coisa e rever nossarejeição a ter um status privilegiado nouniverso. Não seria fácil conviver com essequadro mental depois do trabalho que tiver-mos para curar as feridas narcísicas produ-zidas pela revolução copernicana, peloevolucionismo darwiniano e pela descober-ta freudiana do inconsciente. Elas apagaramo “dedo de Deus” que apontava nosso pla-neta como centro do universo, a espéciehumana como o ápice da criação e a consci-ência como centro de nossa personalidade.Gostamos da “chatice” cósmica segundo aqual todos os lugares e direções são equiva-lentes, não existe centro, ou todos os centrossão equivalentes. No caso da procura de vidafora da Terra também, a ciência não está aípara nos trazer paz mental (embora certa-mente trará frutos tecnológicos). A falta dedetecção de vida dará munição pesada aocriacionismo contra a própria ciência que háséculos se pauta pelo evolucionismo.