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Vidas Digitais

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visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-

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Editoração eletrônica: E. Reuss

Capa: Petter

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VIDAS DIGITAIS

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SUMÁRIO

VOANDO SOBRE UM NINHO DE CHOCOBOS ....... 6

IMPACTA ................................................................... 15

PLAYER ..................................................................... 45

VERITAS VOS LIBERABIT ...................................... 60

PUZZLES ................................................................. 115

KONTINUUM .......................................................... 125

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VOANDO SOBRE UM NINHO

DE CHOCOBOS

_______________

Luiz Mariano

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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano

Era uma vez, nem duas, nem quatro, nem três

Que Urameshi ia pra escola

Imaginem só vocês

O bom menino até dava esmola.

Filho de viúvo pai

Um intelectual fracassado

Bibliotecário fã de bonsai

Era um senhor aposentado.

Treze anos tinha o menino

Muitos eram seus amigos

Era o mais pobre deles, franzino

Na rua passava muitos perigos.

Por isso, o pai rugia

De felicidade genuína

Quando acompanhada sua criança ia

Com os colegas em suas casas com piscina.

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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano

Jogavam, era uma festa:

De tiro, corrida, espadas

Todos eram índios na floresta

Armados com seus controles e risadas

E eram vários consoles, muitos

Tinham também computador

Circulavam os tantos assuntos

De vencedor e perdedor

Urameshi urrava na vitória

Na derrota ficava emburrado

Sempre inventava uma história

Do porque tinha sido derrotado.

Mas ninguém sabia do segredo

Tão bem guardado por Urameshi

Era sagrado esse enredo:

“Em time que ganha não se mexe.”

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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano

A verdade é que o menino não tinha

Nem jogo, nem controle, nem fita

Na casa dos outros fazia sua rinha

Mas na sua casa nunca teve visita

Era pobre, ele, muito pobre

Muito sagaz, de bolsa na escola

Particular, ensino de cobre

A ferro e fogo, não dava cola

Não: era um menino honesto

(com exceção nos jogos de luta!)

Com centavos ajudava com o resto

Sempre com alegria absoluta.

Mas ele gostava demais era

Dos jogos de interpretação:

Mundos, personagens, à vera

A trilha sonora, a ilusão

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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano

E se colocava naqueles lugares

De cabelo espetado e espada bastarda

Ou explodia tudo pelos ares

Com metralhadora no tudo ou nada

Se fantasiava de verde

No reino da criatividade

Nesses jogos matava sua sede

Brincadeira era uma meia verdade

E, brincando, inventou um jogo

Dentro da sua cabeça

Com cenário, música e até o logo

Tinha comando, é bom que não se esqueça

Televisão para quê? Se tinha o muro

Cinza, manchado e sólido

Para onde Urameshi fazia um furo

De tanto olhar, sério, tórrido

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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano

Contava as peripécias para os seus

Que perguntavam, “que jogo é esse?”

Ninguém tinha jogado, meu Deus!

Seria lançamento, alguém conhecesse!

Mas Urameshi era liso,

Não sabia o nome da plataforma;

Dentro de casa era só riso

Inventaria a próxima fase, de que forma?

Já dizia o pai: mentira tem perna pequena

E a curiosidade passou a ser tão grande

Que os amigos não teriam pena:

Jogariam na senzala, os da casa grande

“E agora, Urameshi? E agora?”

Descoberta a farsa, e depois?

Caçoariam dele como catapora

Como se não bastasse mal ter feijão e arroz!

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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano

Como explicar aquela parte

Em que o monstro conversa com o herói

Quando este adentrou na caverna, com arte

E passaram a brincar de índio e caubói?

Como explicar quando o encanador

Tomou chá com o porco espinho azul

Ou quando, num xadrez competidor

Eles riram de norte a sul?

Pediu conselho a seu velho

E tudo o que o homem pôde dizer

Foi que “a realidade não está no evangelho

Mas no quanto que você coloca o poder”

Sem entender, Urameshi se rendeu.

No dia seguinte, ao centésimo pedido

De visitar a casa do filisteu

Prometeu: iriam todos jogar. (“estou perdido!”)

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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano

Era um sábado (porque hoje é sábado)

E de manhã já estavam os algozes na frente

E teve quem estranhou o telhado

Ser tão de telha carente.

De dentro veio Urameshi. Inventou coragem

Conduziu os meninos ao muro

Arranjou cadeiras de folhagem

Estava ele de rosto duro.

E, apresentando à meninada

Começou a jogar com controle e tudo:

Mãos se mexendo, sem nada

Muitos já achando um absurdo.

“Vocês não estão vendo o mago?”

“Tenho que quebrar o encanto!”

“Ela está no meio do lago,”

“Ali ó, a espada do espanto!”

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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano

“Ele só pode estar brincando”,

“Urameshi, cê tá louco?”

“Tô vendo nada, do que ele tá falando?”

“Vou é embora, daqui a pouco.”

Jorjão, o maior deles, se levantou.

Urameshi pensou: “vai me bater”

Em vez disso, o grandão apontou:

“Quero ser o segundo player!”

E juntos jogaram, passaram de fase

Até que todo mundo ria e opinava

De repente um morria, “cheguei quase!”

E a turma toda gargalhava

E foi assim, trabalhando em conjunto

Que zeraram o jogo, os meninos lobos.

Quem quiser jogar, vai o nome junto:

Voando sobre um ninho de Chocobos.

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IMPACTA

_______________

Alef

Fabiano dos Santos Araújo

escuridão, os pôsteres e os recortes de

revistas sobrepostos cobriam cada

centímetro das paredes, pegando os

visitantes desprevenidos.

Lia-se os títulos de novos e velhos jogos em

alguns recortes, no pôster ao lado via-se uma arte

conceitual revelando grandes galhos de árvores

que ascendiam aos céus ultrapassando as nuvens

negras de uma tempestade que se aproximava.

Em outros, monstros, robôs ou planetas dividiam

espaço com logomarcas de empresas produtoras

de jogos.

A

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

Assim era o ambiente do quarto de Juca,

este era o templo dos universos eletrônicos, que o

garoto tanto amava, e os consoles eram os altares

onde ele os venerava.

Sua fascinação era evidente, estes universos

eletrônicos ocupavam constantemente seus

sonhos e pensamentos. O seu grande sonho era

um dia poder trabalhar junto com as estrelas

deste meio, e quem sabe um dia se tornar uma

delas.

No entanto, o sonho dava sinais de que

enfraquecia. A maioria das pessoas próximas não

notou, com exceção de Alberto, um dos seus

amigos mais próximos.

Alguma coisa de errado se passava com

Juca, mas o que poderia ser?

A inteligência e perspicácia de Alberto eram

inegáveis, todos queriam estar próximos dele.

Nas avaliações escolares, quem sabe a simples

proximidade “ajudasse” os menos preparados.

Por mais inteligente que fosse, não se

vangloriava de suas capacidades, ao contrário,

estava sempre próximo dos companheiros,

disposto a ajudar quando sua intuição exigia uma

ação de sua parte. O que era o caso desta vez.

Após algumas observações e algumas

tentativas infrutíferas de obter informações

diretamente da fonte, ele se sentiu forçado a

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

buscar as informações que precisava de outra

forma. Tarefa esta que foi duplamente

recompensadora...

Em um dos intervalos na escola, ele

procurou Carol, irmã de Juca, na sua busca por

respostas.

– Oi Carol, tudo bem?

– Tudo. O que você quer? – respondeu Carol

secamente.

– Preciso falar com você.

Ela mudou a expressão, mas antes que ela

pudesse reagir, Alberto atalhou:

– Tem uma coisa muito errada com o seu

irmão... Então, podemos conversar?

Com um aceno Carol concordou e se

afastaram das amigas dela para poderem

conversar sem interrupções.

– Do que você está falando? O que está

acontecendo com o Juca?

– Você não percebeu?

– Percebi? Percebi o que?

“A situação parece mais grave do que eu

imaginava...”, pensou Alberto.

Um dos motivos da admiração de Alberto por

Carol era o fato de ela ser diferente das outras

meninas. Ela era inteligente e não se encantava

por qualquer um. Por este motivo ela o tratou

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

secamente, quando ele se aproximou. Ela achava

que naquele momento ele faria o que os outros

meninos faziam quando se aproximavam de uma

garota bonita.

Se ela, tão inteligente e atenta, não

percebera nada com o irmão até então, o que

poderia estar acontecendo na casa deles?

Com certeza não eram problemas com os

pais deles, poucos têm pais mais presentes do que

os deles...

Alberto continuou a falar tentando medir as

palavras para não revelar suas suspeitas reais e

com isso gerar reações que pudessem espantá-la,

antes que ele pudesse expor a situação com

calma: – Ele não parece mais o mesmo... Está

sempre quieto, meio abatido... Sei lá, até seu

olhar parece diferente.

Em resposta, ela apenas arregalou os olhos e

demonstrou uma expressão de espanto, como se

após muito tempo tivesse percebido uma

obviedade que passou por debaixo de seu nariz

como se fosse invisível.

Alberto estranhou a reação, mas conteve o

que pensava a respeito, precisava descobrir tudo o

que pudesse.

– Será que ele não está doente, Carol?

– Não, acho que não – respondeu Carol algo

perturbada. – Onde você quer chegar com isso?

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

Ela fez menção de se levantar após terminar

a frase.

Alberto rapidamente agarrou seu braço para

que ela ficasse. Antes que ela pudesse reagir,

continuou: – Escute, isso pode ser algo bem sério,

não apenas uma suspeita sem fundamento. Ele

não vai lá em casa há semanas, nunca mais

ninguém ouviu ele falando sobre videogames...

– Isso deve ser apenas uma fase! Já estou

sentada te ouvindo. Quer fazer o favor de me

largar antes que eu faça um escândalo? Você não

quer isso, quer?

Ele a largou um pouco envergonhado e

continuou: – Como se o que eu te falei não fosse

estranho o suficiente, ouvi que ele anda vendendo

quase tudo o que ele tem relacionado a jogos...

– Ele comprou com o dinheiro dele. Pode

fazer o que... Ele vendeu o videogame?

– É o que parece.

– Ele não largaria o videogame por nada...

O sinal indicando o fim do intervalo tocou.

Cada um teria que seguir para sua respectiva

sala, sem que a conversa pudesse ser terminada.

Carol pegou um pedaço de papel nos bolsos,

anotou alguma coisa, despediu-se de Alberto com

um aperto de mão, deixando o papel com ele.

Alberto o abriu e leu:

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

Precisamos terminar essa conversa. Espero

você em minha casa à tarde. Exatamente as três.

Nenhuma palavra a ninguém! Não quero que

pensem mal de mim. Venha preparado...

– Muito bem Sr. Alberto, não é o encontro

que você esperava. Mas é um encontro de

qualquer forma... Veja pelo lado positivo...

No horário marcado Alberto esperava no

portão da casa de Carol.

– Você é mesmo pontual – disse Carol.

– Tenho os meus motivos... Não vai me

deixar entrar?

– Me acompanhe.

Entraram na casa e seguiram até o quarto

de Juca.

– Veio preparado?

– Sim.

– Ótimo. Todos os dias por volta das duas ele

sai e só retorna depois das seis. Uns dias chega

um pouco mais cedo, outros mais tarde, mas

nunca antes disso. Como pode ver, o quarto dele

está trancado.

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

– Como entraremos? Posso saber e fazer

muitas coisas, mas, arrombar portas não é uma

delas...

– Não se preocupe com isso. Temos

problemas maiores...

– Como o que?

– Desde que éramos pequenos, o Juca tem o

costume de trancar o seu quarto quando não está

nele. Sempre que ele ficava zangado comigo, ele

pegava alguma coisa minha e escondia em seu

quarto, às vezes ele ficava tanto tempo bravo, que

até eu mesma me esquecia das coisas que

estavam com ele. Um dia descobri que havia uma

cópia da chave de cada porta da casa, com a

minha mãe, pra que fossem usadas em caso de

emergências. Eu esperei o momento certo para

que ele não notasse que eu estava visitando o

quarto dele.

– Sei.

– Mas, de uns tempos pra cá temos nos

falado pouco, eu nem me lembro da última vez em

que estive aqui. E hoje quando conversamos no

intervalo é que eu percebi isso. Até mesmo os

meus pais parecem estar estranhos. E só consegui

ver isso agora! Tentei falar com eles se não

estavam achando o meu irmão estranho, me

disseram que deveria ser apenas uma fase, que

logo passaria. Estou ficando assustada com isso.

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

Alguma coisa tem que ser feita e você é o único

que pode me ajudar!

– Se acalme! Estamos sozinhos aqui? –

Alberto mal podia acreditar que pronunciara

estas palavras... Ao mesmo tempo em que ficara

eufórico, se entristeceu, pois a frase não fora dita

no sentido ou na circunstância que ele gostaria.

– Já disse, só haverá gente aqui em casa

depois das seis. Primeiro as damas – disse Carol

abrindo a porta.

– Estou morrendo de rir, piadista.

– Agora Alberto, esse é o verdadeiro

problema.

O quarto parecia, à primeira vista, estar da

mesma forma que Alberto se lembrava, com

exceção dos consoles e jogos que não ocupavam

mais as suas posições de destaque no quarto.

Carol ficou chocada ao ver o quarto sem os

consoles. Ela não esperava por isso.

– Você quer continuar?

– Sim.

– Então se acalme, pois nem mesmo

começamos.

Olhando com mais calma o quarto parecia

organizado. Juca era relativamente organizado

com suas coisas, mais do que se esperava de um

adolescente, especialmente com os videogames,

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

embora não dedicasse o mesmo cuidado com suas

outras coisas.

No entanto a organização agora parecia

excessiva, muito além do que era costume para

Juca, e ainda mais além do que seria normal para

qualquer outro adolescente. Era como se a

organização estivesse lá para desviar a vista de

alguma coisa.

A única coisa que estava levemente

bagunçada era o seu material escolar, mas ainda

assim o material não parecia estar em uso

constante, era como se vez ou outra, algum

daqueles materiais fosse revirado rapidamente

para dar a impressão que estavam sendo usados...

Aqui e ali, viam-se marcas de poeira como se

alguns pontos do quarto estivessem intocados a

meses, e recentemente tivessem sido limpos às

pressas, para que as aparências fossem mantidas.

Alberto aproximou-se do computador. Ele

estava ligado, apenas aguardando que fosse

inserida a senha.

– O que alguém que nada tem a esconder,

teria a esconder?

– O que disse, Alberto?

– Estou pensando alto... Só tentando usar a

lógica. Pense comigo, se ele tranca o seu quarto

sempre que sai, nunca suspeitou que o quarto

tivesse sido visitado por algum intruso enquanto

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

estava fora. O que ele teria a esconder, se não

existe ameaça alguma?

– Faz sentido... O problema maior é que

todos aqui em casa estiveram meio zumbis – disse

Carol, fazendo uma careta – e por isso algo

importante pode ter sido dito, mas passou

despercebido.

Alberto virou-se para Carol e olhou para o

pôster em suas costas.

– É isso!

Carol assustou-se pisando em falso num

livro, quase caindo.

– É isso o que?

– Cuidado! Você não pode tirar nada do

lugar. Entendeu? Nada!

– Você me assusta, quase me faz cair, e a

culpada ainda sou eu? E ainda tenho que levar

sermão... Eu não tirei nada do lugar, relaxe... O

que você descobriu.

– Desculpe... Vê o pôster atrás de você?

– Tem um dragão, uns bruxos e uns

zumbis... O que tem demais nisso? Os jogos não

estão repletos disso?

– Exato. Este é um pôster do Golden Dragon,

é um dos últimos jogos que me lembro dele

comentar. Era um dos jogos favoritos dele. Não vê

nada de estranho no pôster?

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

– Não... Sim! Eu vejo uma das laterais meio

dobrada.

– Isso mesmo. Ele jamais permitiria que o

pôster do seu jogo favorito fosse danificado, veja

se há alguma coisa atrás dele.

– Na parede não há nada, mas no pôster tem

uma palavra.

– Que palavra?

– Impacta, mas...

– Ótimo!

Alberto digitou a palavra dita por Carol

como senha, mas não conseguiu acesso. Com o

erro, surgiu uma mensagem de que ele teria

apenas mais duas tentativas.

– Qual era mesmo a palavra? Não deu certo.

– Como você coloca a primeira coisa que

surge como senha? Agora só temos duas chances.

– Não é a primeira vez que essa palavra

surge, ao menos pra mim. Já vi esta palavra

antes, era o nome de um grupo de jogadores em

que Juca e eu fazíamos parte. Uma época fiquei

um tempo afastado e me expulsaram. Isso já faz

um bom tempo, não sabia que ainda existisse, ou

que o Juca ainda fizesse parte dele. Até agora

tinha me esquecido dele... Tem certeza que está

escrito isso?

– Sim. É claro que eu tenho certeza, mas...

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

– Erro! Temos só mais uma chance! Mas não

faz sentido. A senha tem que ser esta!

– Será que você pode me ouvir antes que

acabem as tentativas?

– Sou todo ouvidos.

– Não está escrito impacta. Mas sim,

impaCta. Toda a palavra é escrita com letras

minúsculas, mas a letra “C” é maiúscula.

– Tem certeza disso?

– Se tivesse me ouvido da primeira vez, não

estaríamos perdendo tempo com essa coversa.

– Desculpe. Vamos lá i-m-p-a-C-t-a! Enter.

– E então?

– Veja.

– Conseguimos!

– Calma, falta uma coisa para termos acesso

as informações. Precisamos da Jynx.

– Jynx? Quem é ela? Um Pokémon?

– Sim e não. Sim é um Pokémon, mas não

falo desta Jynx, mas sim de um programa que

fará uma varredura no PC do Juca. Esse

programa vale ouro. Tive muito trabalho para

conseguir ele. É uma das coisas mais importantes

que eu consegui até hoje.

Alberto conectou um HD externo na

máquina e executou o programa Jynx. Quando o

relatório foi gerado, trouxe uma surpresa

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

desagradável. A máquina estava limpa. Nenhum

arquivo suspeito foi encontrado.

– O que alguém que nada tem a esconder,

teria a esconder?

– E agora, o que faremos?

– Nada.

– Como nada? Mal começamos e você já vai

desistir?

– Já estamos próximos das seis. Em breve

ele pode chegar. Não podemos confiar que ele vai

chegar mais tarde hoje. E ainda tem os seus pais.

O que eles diriam se nos vissem sozinhos em casa

no quarto que deveria estar trancado. Imagine o

seguinte, nós ficamos aqui um pouco mais, tempo

suficiente para descobrir alguma coisa, mas

conseguimos sair antes que Juca chegue. Ele se

senta na cadeira do PC e sente que ela está

quente. Se ele tocar no gabinete do computador,

também vai perceber que está quente, mais do

que deveria se tivesse ficado a tarde inteira no

modo de espera.

– Tem razão.

Eles seguiram até o portão, Alberto montou

em sua bicicleta, colocou o boné e saiu dizendo: –

Confie em mim. E aguarde por notícias minhas.

O coração de Carol apertou em seu peito.

Não que ela não confiasse em Alberto. Ela apenas

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

não tinha um bom pressentimento do que poderia

vir adiante.

Passado algum tempo, era Alberto que

parecia estar estranho. Estava quase sempre em

silêncio, envolto em seus pensamentos. Ele

evitava conversas com todos, estava perturbado,

evitava principalmente Juca e Carol. Esta sempre

que podia o procurava atrás de respostas, mas

sempre recebia a resposta padrão: – Fique calma!

Estou descobrindo uma porção de coisas a cada

dia, mas por enquanto não tenho nada

confirmado. Não quero te trazer desespero

desnecessário... Confie no que eu digo.

O tempo continuou passando. Dias viraram

semanas, semanas viraram meses. Faltando

apenas um dia para as férias escolares, Carol foi

até a casa de Alberto atrás de respostas.

Ele pareceu muito abatido e doente ao

atendê-la, e sequer a convidou para entrar.

– Alberto, o que está acontecendo? Pare de

me enrolar! Tudo está fora de controle! Amanha é

o último dia de aula antes das férias, nós vamos

viajar logo após a aula, mas o Juca não vai. Meus

pais permitiram que ele ficasse em casa. Eles

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

agem como zumbis se o assunto for o Juca e suas

esquisitices. Estou desesperada!

– Carol, desculpe, não estou bem...

– Não feche a porta! Esperei tempo demais

por isso. Essa pode ser a nossa última chance de

fazer alguma coisa, antes que algo realmente

sério aconteça com ele. O que acha que ele vai

fazer esse tempo todo em que estivermos fora? A

cada dia ele chega mais tarde. Isso nos dias que

ele dorme em casa. Já vi a cama dele ficar três

noites seguidas intacta.

– Carol, eu... – Alberto hesitou – Um

momento.

Minutos mais tarde, ele retornava com uma

pequena bolsa acolchoada.

– Aqui está. Isso é tudo.

– O que é isso?

– Abra a bolsa, aí dentro estão as suas

respostas. Mas tome cuidado... Pode ficar com ele.

Adeus, não me espere na escola amanhã. Estou

doente.

Alberto bateu a porta ao terminar de falar,

ele não pareceu fazer isso por mal, a presença de

Carol parecia o incomodar de alguma forma, e a

única forma de se sentir melhor era fazendo com

que ela saísse dali.

Carol foi para casa o mais rápido que pôde,

para descobrir o que havia naquela bolsa, que

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

estava afetando seu irmão, os seus pais e agora,

aparentemente, Alberto.

Chegando em casa ela retirou da bolsa um

HD externo muito parecido com o que Alberto

levara ao quarto de Juca meses antes. Dentro

dele a surpresa desagradável a aguardava depois

de alguns cliques.

O HD estava praticamente vazio, havia

apenas a pasta do Jynx e dentro dela os arquivos

do programa e uma pasta contendo e-mails. Era

bem estranho ele ter lhe dado o HD externo

contendo o Jynx, sendo que ele mesmo havia

falado da dificuldade que teve para consegui-lo.

Será que ele falou aquilo mesmo ou ele apenas

teria se expressado mal? De qualquer forma os

emails a aguardavam, e depois que terminasse

ela devolveria o HD para ele.

Dentro da pasta “e-mails” ela verificou

mensagem após mensagem e as horas foram se

passando. No início, eram mensagens típicas de

qualquer adolescente conversando com os amigos

sobre partidas de jogos online e outros assuntos.

Seguindo a separação que Alberto fizera nas

mensagens, o início de tudo foi com um email do

Grupo Impacta do dia 07/01/2012.

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

A mensagem informava que naquele ano o

Grupo Impacta passaria por uma reestruturação

e pedia que os membros do grupo não se

preocupassem com nada, pois as atividades

normais seriam mantidas. A diretoria prometia

novos eventos para o ano de 2012, e anunciava

eventos especiais ainda para o primeiro semestre

no game Golden Dragon. O primeiro deles seria

no dia 13/02/2012, em uma clareira escondida da

Floresta da Neblina, onde ocorreria o encontro

das Bruxas à meia noite. Nas semanas que se

seguiram, Carol leu dezenas de e-mails dos

membros do grupo comentando sobre o evento,

impressionados com tudo o que viram e sentiram

durante o tempo que estiveram lá. Tudo parecia

ser muito realista, muitos diziam.

Novos e-mails anunciando um evento no dia

13/04/2012 prometiam o acesso pela primeira vez

a um local proibido, conhecido como Cemitério dos

Dragões, Lar dos Zumbis. Nas mensagens que se

seguiram o entusiasmo visto nos primeiros e-

mails pareceu ter se multiplicado por dez. Mais

uma vez, os membros do grupo elogiavam a

experiência, e pareciam surpresos com o realismo

dos detalhes, as sensações e os cheiros...

Carol notava a estranheza aumentando a

medida que lia as mensagens, será que alguns

deles se drogavam antes de jogar? Juca também

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

demonstrava entusiasmo nas mensagens, mas em

medida bem menor do que os outros, como se para

ele faltasse alguma coisa durante a experiência.

Ela continuou lendo os e-mails entre o

Grupo Impacta e os jogadores, e logo após o

evento do dia 13/07/2012, novas mensagens

aumentavam a estranheza da situação. Nesse

evento, o Grupo Impacta anunciou o vencedor da

Prova do Aprendiz, e Carol começava a se

perguntar até que ponto era mérito tecnológico, e

até que ponto era loucura de cada um. Entre uma

descrição e outra, muitos comentários surgiam

sobre a premiação do evento. Notava-se algum

descontentamento com os jogadores escolhidos. O

fanatismo e a ansiedade cresciam a medida que a

data das mensagens avançava e as mensagens do

Grupo Impacta pararam de chegar. O desespero

era facilmente notado pelas mensagens de alguns.

No dia 06/01/2013, surgiu o primeiro e-mail

do Grupo Impacta relacionado a um novo evento

especial. Eles agradeciam pelo apoio dos membros

que fizeram o sucesso dos eventos anteriores ser

possível. Informavam que em algum momento do

ano de 2013 um novo evento ocorreria. Mais uma

vez, o Grupo entrou em um silêncio prolongado.

Em muitas mensagens era difícil não crer que

muitos deles já haviam ultrapassado a barreira

da loucura. Reclamações, súplicas, demonstrações

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

de amor e ódio povoavam as mensagens e

também os relatos das partidas.

O silêncio foi quebrado em 01/06/2013, data

em que um novo e-mail foi recebido anunciando

um novo evento no dia 13/09/2013. Uma onda

gigantesca de mensagens formou-se com o

anúncio do evento, e o clima hostil cada vez mais

patológico que se espalhava pelos membros do

Grupo se dissipou como num passe de mágica.

Seu irmão sempre se mostrava entusiasmado com

a possibilidade de um novo evento, ao contrário

dos outros jogadores, que demonstravam um

fanatismo quase doentio.

No início de 2014, o Grupo Impacta voltou a

se pronunciar. Uma nova Prova do Aprendiz foi

anunciada para 13/06/2014. O nível doentio das

conversar continuava alarmante durante o

período que antecedeu o evento. Seu irmão,

embora demonstrasse um comportamento normal

até a data do evento, começou a apresentar

mudanças sutis quando sua vitória foi anunciada.

Mensagem após mensagem, ele parecia ficar cada

vez mais parecido com os outros.

Os e-mails do Grupo Impacta voltaram a

aparecer no dia 31/01/2015, anunciando um novo

evento para aprendizes que ocorreria no dia

13/02/2015, na clareira Floresta da Neblina,

durante a reunião das Bruxas à meia noite. Outro

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

e-mail recebido em março anunciava um evento

para o dia 13/03/2015. Carol continuava a

observar as menções a imersão no universo do

jogo. As mensagens que se seguiram eram bem

mais explicitas em seus comentários, cada um dos

aprendizes, inclusive seu irmão, contava

características cada vez mais detalhadas das

regiões do jogo, de batalhas e situações que

segundo estes, realmente teriam vivenciado.

O cansaço tomara o controle de Carol, já era

madrugada e ela acabou adormecendo sobre a

mesa do computador.

Horas mais tarde ela despertou e ao abrir os

olhos visualizou as anotações que fizera

anteriormente, fixando-se nas datas. Ela tinha o

estranho costume de somar todos os números que

via em sequência. Vendo as datas fez o mesmo e

para a sua surpresa a maioria delas acabava com

o resultado da soma sendo o número treze.

Seguindo o padrão das datas dos eventos,

Carol buscou no calendário a data que deduzia

que seria o próximo evento. Mas já era tarde, a

sexta 13/11/2015, já havia ocorrido há duas

semanas.

Ela vasculhou os últimos e-mails da pasta

em busca de alguma pista que a colocasse à

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35

Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

frente, e viu um recibo de compra com alto valor

do Grupo Impacta. Era uma réplica do livro de

feitiços do jogo.

Estaria nesse livro o dinheiro da venda do

console e seus jogos? Carol pegou a chave do

quarto do irmão e correu até lá. Faltavam alguns

minutos para o amanhecer, Carol não se

importava com o horário ou se poderia ser

descoberta pelo irmão, o tempo se esgotava e ela

precisava fazer algo.

Ao se aproximar da porta o uso da chave não

foi necessário, ela estava apenas encostada. Carol

teve um mau pressentimento, mas mesmo assim

entrou no quarto. A cama permanecia intacta, as

mesmas coisas estavam nos mesmos lugares,

como da última vez que esteve lá com Alberto.

Sobre a mesa do computador havia um

grande livro com capa de couro. Ela o folheou e

página após página, encontrou textos e pequenas

notas com a letra do irmão. Eram listas de

ingredientes, instruções e impressões pessoais

sobre o uso de poções e encantamentos, além de

constantes menções a visitas aos locais do jogo

Golden Dragon.

Os textos tinham detalhes tão ricos e

verossímeis, que era difícil duvidar que não

fossem verdadeiros.

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36

Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

Folheando mais algumas páginas chamava a

sua atenção a descrição da criação de um zumbi e

a poção do esquecimento. Além de ingredientes e

modo de preparo, haviam também comentários de

Juca sobre as dificuldades em se conseguir alguns

ingredientes, no preparo e principalmente nos

testes bem sucedidos que fizera com a sua

família. Ele relatava que ninguém suspeitava de

sua vida dupla e que, em breve, ele poderia enfim

seguir definitivamente para as terras de Golden

Dragon.

Na última anotação, Juca escreveu sobre o

que faria no dia 30/11, o último dia de aula.

Ele havia juntado tudo o que precisaria em

sua nova vida, os aprendizados dos últimos

tempos. Buscaria o que faltava para partir, a

“oferta de bom grado e a oferta própria”. Sairia

cedo com as ofertas, para purificá-las e prepará-

las para o ritual final.

Em local algum do livro, havia anotação ou

menção ao endereço ou o que seria a oferta de

bom grado.

Desesperada, revirou o quarto em busca de

respostas sem conseguir nada. Olhou para o

pôster do Golden Dragon e se lembrou da senha

anotada no verso, talvez houvesse algo mais que a

ajudasse. Ao levantar a borda solta do pôster, um

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37

Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

pedaço de papel caiu no chão e nele havia apenas

o logotipo do curtume de cidade.

– O que o Juca queria no curtume? Ele foi

desativado há algum tempo e...

Ela entendera, todas as noites em que ele

não retornava era para lá que ele ia. Talvez ainda

houvesse tempo, se ela fosse rápida e fria, talvez

ainda houvesse tempo.

Já era quase hora de ir para escola. Antes

que sua mãe a chamasse, aprontou-se

rapidamente enquanto seus pais tomavam café.

Despediu-se rapidamente dos pais evitando

levantar suspeitas. Levando o livro na mochila

seguiu para casa de Alberto.

Pelo caminho lembrou-se que ele estava

doente e que não iria à escola aquele dia, na

verdade, poucos seriam os que iriam naquele dia.

Na casa de Alberto, sua mãe atendeu a porta,

quando Carol tocou a campanhinha.

– Bom dia, Dona Marta.

– Bom dia, Carol.

– O Alberto está bem?

– Sim, ele não deveria estar?

– É só forma de falar... Eu gostaria de falar

com ele.

– Desculpe Carol, ele já foi para a escola.

Saiu mais cedo, hoje ele tinha que chegar mais

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38

Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

cedo para ajudar nos preparativos da festa de fim

de ano, sabe? A sua sala também vai fazer?

– Sim, eles vão... Mas me diga uma coisa, ele

saiu sozinho?

– Claro! Ele não tem más companhias! –

respondeu D. Marta com rispidez.

– Só mais uma coisa, a senhora já viu um

livro semelhante a este com Alberto?

– Não vi. Se me der licença tenho muitas

coisas me esperando.

No fim da conversa D. Marta estava

visivelmente irritada, tendo até batido a porta

quando terminou de falar.

A casa de Alberto ficava longe do local onde

era o curtume. Ela seguiu até lá, mesmo sem a

ajuda de Alberto, pois este era o último local a ser

verificado.

Entre uma pedalada e outra no decorrer do

trajeto ela pensava na última anotação do livro. O

que seria a oferta de bom grado e a oferta

própria? Num estalo entendeu, Alberto fora o

único a perceber a estranheza do seu irmão, e de

bom grado, se dispôs a saber o que se passava

com ele. Agora que ela havia lido os e-mails,

percebera que a pesquisa afetara Alberto de

alguma forma...

Talvez quando ele entregou o HD a ela, ele

tivesse feito o último esforço consciente na

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

esperança de ajudar o amigo. E a oferta própria

poderia ser o irmão, ele mesmo se ofereceria! Com

todas as forças que tinha, pedalou o mais rápido

que pôde para o curtume.

Muitas pedaladas mais tarde o mau cheiro

no ar já denunciava que ela estava próxima do

curtume. Era estranho o curtume ainda ter tanto

mau cheiro, sendo que estava fechado há tanto

tempo... Muitas coisas se passaram pela mente

dela, a maioria delas macabras. Ela fazia o que

podia para afastar os pensamentos negativos que

poderiam atrapalhar o seu raciocínio.

Carol desceu da bicicleta assim que se

aproximou da entrada do curtume. Ela se

escondeu entre algumas árvores, chamou a polícia

e não se moveu até que a viatura chegasse. Os

policiais desceram do carro e entraram no

curtume. Apenas o silêncio e o cheiro de podridão

ficaram suspensos no ar. Algum tempo depois, os

policiais saíram reclamando que haviam recebido

um trote e foram embora.

Carol ficou em um impasse, se a polícia saíra

de lá daquela forma, não havia nada naquele

local, e por isso, sua busca teria sido infrutífera.

Assim, ela deveria sair dali, pois aquele local não

teria nada a acrescentar em sua busca.

Ao mesmo tempo, algo dentro dela dizia que

ela deveria ir até lá e verificar, se a polícia saiu

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

de lá sem alarde, perigo não havia. Carol tocou na

mochila em suas costas e sentiu o livro. Em um

impulso de loucura seguiu ao curtume.

Caminhando pelo local, ela viu o mato

crescendo, corredores e salas vazias. Não havia

realmente nada ou ninguém para se ver.

Pouco antes de desistir, notou de onde vinha

a fonte do mau cheiro, já caminhara tanto, um

pouco mais não faria diferença antes de sair.

Ela caminhou até chegar a um grande pátio

repleto de grandes máquinas, tudo isso a céu

aberto. No centro deste pátio havia diversos

fragmentos de papel queimado sendo levados pelo

vento, junto com cinzas e fuligem.

Até então nenhum sinal de qualquer outra

coisa estranha, ou de qualquer pessoa no local.

Mais adiante, num espaço que ocupava vários

metros quadrados, alguma coisa líquida refletia a

luz do sol.

Ao se aproximar viu que era uma poça

gigantesca de um líquido vermelho que se parecia

com sangue. Ela avançou vários metros no meio

da poça e seus passos levantavam várias gotas

daquele líquido, que respingavam em suas

roupas.

Quando estava no meio da poça, olhou a sua

volta e viu vários pedaços de papel queimado,

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

cinzas e fuligem voavam pelo ar e pousando com

leveza no chão e no maquinário.

Carol retirou a mochila das costas e a jogou

na poça vermelha, retirou o livro dela e o agarrou

com força, abraçando-o junto ao peito. Não havia

sinal de ninguém por ali. Não havia sinal de luta

em parte alguma, além do líquido vermelho e dos

papéis, nada mais havia de incomum no local.

Uma lágrima rolou pelo seu rosto e ela caiu

de joelhos na poça vermelha, que poderia muito

bem ser o sangue do seu irmão. Ela largou o livro

de Juca no chão, que foi lentamente absorvendo o

líquido e se tingindo de vermelho.

Ela batia com força na poça com os braços

até que ficou coberta pelo líquido. Gritava e

chorava desesperada, sem demonstrar que se

consolaria em algum momento.

Carol não queria, mas ela sabia. Ela não

queria acreditar, mas ela sabia...

Epílogo

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

Terminava mais um dia de visita, eles se

perguntavam quando tudo começara, o que

poderia ter dado errado, se algo poderia ter sido

feito para aquilo ser evitado.

Carol era uma menina normal, como tantas

outras, mas há alguns meses parecia diferente,

fazia perguntas estranhas... Seria o cansaço por

ser o seu último ano na escola?

Perguntava vez ou outra sobre o seu irmão.

Mas como? Ela nunca teve irmão! Por que só

revelara esta falta agora e não antes? Numa

época em que algo poderia ter sido feito. Se ao

menos o filho esperado antes dela tivesse

vingado...

Pobrezinha, na véspera de nossa viagem de

férias que poderia ser um descanso para a mente

dela, chegou ao cúmulo de invadir o curtume da

família, agredir funcionários e se trancar no velho

parque fabril em reformas.

O que ela buscava por lá? Todo o teto estava

sendo trocado, naquele local só havia máquinas

obsoletas. Qual propósito haveria em se espalhar

tantos galões de tinta vermelha criando uma

enorme poça e chafurdar nela abraçada a um

velho manual farmacêutico com capa de couro,

logo após queimar várias páginas dele.

Ela gritava e esperneava desesperada na

poça de tinta vermelha, bradando a todo pulmão

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

que era o sangue de seu irmão Juca e do amigo

Alberto, que ela criara junto com a história do

irmão meses antes. Que eles haviam se

sacrificado para partir a um mundo medieval

dentro de um jogo e a única coisa que restara

deles era o sangue espalhado pelo piso.

E todo o plano diabólico que culminou com a

morte deles foi orquestrado pelo Grupo Impacta, o

mesmo nome do grupo responsável pelo serviço de

limpeza terceirizado no curtume.

Os pais dela saíram tristes, algo

desnorteados do sanatório, desviando da água no

corredor. Já era hora da limpeza, eles se

apressaram o mais que podiam, pois sempre que o

zelador passava perto do quarto dela, ela gritava

por socorro, mesmo estando sedada.

O simples ruído dos passos do zelador a

alertava. Quando notava sua proximidade,

gritava desesperada que aquele homem estava a

observando esperando o momento certo para

matá-la. Pois ele era um deles.

Os pais dela deram uma última olhada no

corredor antes de saírem, viram o zelador

carregando vários lençóis que pareciam ser

vermelhos ao quarto dela. Isso não lhes chamou a

atenção, eles continuaram caminhando e como

última visão do corredor puderam ver de relance

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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo

o que estava escrito em suas costas: Serviços

Terceirizados Grupo Impacta.

Page 45: Vidas Digitais

PLAYER

_______________

Fábio Guastaferro

iros! Estes estouros estão vindo do lado de

fora. Tenho certeza que são tiros. Me

aproximo da amurada da sacada do

camarote e percebo um homem de chapéu e

sobretudo passar pela enorme e decorada porta

dupla que dá acesso ao salão. Neste momento as

mesas estão praticamente vazias, as poucas

pessoas presentes assistem a banda sobre o palco

na outra extremidade do salão, ensaiando um

numero de jazz para a apresentação da noite.

T

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46

Player – Fábio Guastaferro

Seria corriqueiro o fato de um homem entrar no

salão se não fosse a Thompson M- 1928 em sua

mão, pronta para atirar. Sei que chegou a hora.

Minhas mãos suam com a possibilidade de ter que

apontar o rifle e atirar naquele homem. A dúvida

e o medo me tomam quase que por completo. Será

que consigo acertá-lo daqui? E o barulho não vai

chamar atenção dos que estão do lado de fora?

Será que há outros que entraram sem eu ver? E a

banda, será que não perceberam? Eles continuam

tocando, cada vez mais alto.

Escuto o som de vozes, vozes próximas à

escada que dá acesso às sacadas. Sei que são eles.

Bem que avisaram que iriam tentar matar o Capo

em uma destas reuniões de famílias. Me distraio

com o barulho nas escadas e quando olho para

baixo o homem já sumiu. Quero correr, tenho que

correr e me esconder, pois se me avistarem eles

vão atirar, vão me acertar, vão me matar. Mas

não consigo. Minhas pernas não se movem. Não

consigo sair do lugar, sinto como se estivesse

rastejando, estou cada vez mais desesperado e a

música, a música não para de tocar, cada vez

mais alta, cada vez mais familiar...

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Player – Fábio Guastaferro

O despertador! Estou sempre sonhando com

as músicas do meu despertador. E esse sonho

agitado deve ser por conta da casa nova, da vida

nova, de novos desafios que agora se abrem para

mim.

Meu primeiro dia nesta casa, neste bairro,

neste mundo. Tem tanta coisa para fazer, tanta

coisa para conhecer, para viver. Mas vou começar

do básico, atendendo as minhas necessidades

fisiológicas.

O banheiro ficou um pouco distante do

quarto. Bem que poderia ter dois banheiros. Este,

aqui na área de serviços e outro dentro do quarto.

Esta nova casa é até bonita. Muita coisa me

agrada, mas têm outras de muito mau gosto, a

começar pelo piso de ladrilhos preto e branco na

cozinha, parecendo um tabuleiro de xadrez. Bem

que poderia ter feito ela maior também. Acho a

sala apertada e a disposição dos movíeis não me

agrada, dá um aspecto de entulhado. Já o jardim

é lindo, a grama ainda tá verdinha e tem uma

garagem, vazia ainda, mas por pouco tempo.

Hoje quero dar uma volta pela vizinhança. É

sempre bom conhecer os vizinhos e quero fazer

muitas amizades. Preciso também trabalhar, vou

dar uma olhada nas opções de emprego para

ganhar algum dinheiro. Quero comprar algumas

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Player – Fábio Guastaferro

roupas novas, móveis novos e arrumar essa casa

de acordo com o meu gosto.

Sim, quero começar uma vida nova. Mas

agora estou com fome. Preparo um café na

cozinha de ladrilhos pretos e brancos. Enquanto

o café não fica pronto eu ligo o rádio e a música

que toca me deixa bem animada. Distraidamente

me pego cantando as frases que reconheço na

música, apesar de que, acho que nunca ouvi essa

música. Depois do café vou dar uma olhada na

caixa de correios, lá tem um anúncio de uma

agencia de empregos. Preciso trabalhar. Vou ligar

e ver o que eles podem me oferecer. Preciso de um

cachorro também. Sinto-me muito sozinha nessa

casa. Após a ligação a agência me oferece uma

infinidade de opções de trabalho, mas a minha

formação é ainda básica, decido pela profissão que

exige menor capacidade. Vou ser auxiliar, mas

ainda não sei de que. Tudo bem! Amanhã

pretendo estudar mecânica ou quem sabe

informática. Tem uma estante com alguns livros

aqui, com algumas horas de estudo eu me

capacito para um emprego melhor. Mas vou ficar

com esse por enquanto. Retorno à ligação e estou

contratada. Amanhã começa o serviço. Ligo a TV

e a manhã logo passa. Já estou com fome e vou

preparar algo para comer, quem sabe um almoço.

A refeição é boa, mas simples. A comida tem gosto

de borracha, mas eu como sem me importar. Após

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Player – Fábio Guastaferro

o almoço lavo a louça, não gosto de cozinha suja,

decido que vou dar uma volta no bairro, quero

conhecer a nova vizinhança, mas antes uma

passadinha no banheiro.

A caminhada foi longa, mas infrutífera. O

bairro é bonito, mas não vi quase ninguém, esse

horário todos deve estar trabalhando. O sol

estava bem quente e chego ensopada de suor.

Preciso de um banho, mas quero também dar

uma relaxada no sofá, me sinto um pouco

cansada, e também sinto um pouco de fome, mas

não muita.

O cheiro do quarto chegava a ser

nauseabundo. Uma mistura azeda de cheiro de

comida podre com chulé, mofo e até urina. Era

um cheiro forte, mas que não o incomodava. Na

verdade, Marcelo já havia se acostumado. Aquele

era o seu cheiro.

O ambiente estava escuro, apenas a luz do

monitor iluminava o quarto e a pessoa a sua

frente. Uma luz forte, porém direcionada. Não

precisava de luz no teclado. O seu teclado era dos

mais sofisticados, com leds para cada tecla,

podendo ser configuradas cores para as teclas

mais usadas. Recentemente ele o configurara

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Player – Fábio Guastaferro

para este último jogo, e poucas teclas se

destacavam no negrume da mesa.

A temperatura não era muito agradável.

Estava um pouco quente e abafado, mas ele não

se importava. Já que estava sozinho, poderia ficar

só com a sua pequena roupa intima. Uma cueca já

manchada de mijo. Ele não a trocava havia três

dias, desde a última vez que tomou banho.

A cama ainda estava do mesmo jeito que a

deixara quando levantou. Não quis arrumar.

Imaginou que logo estaria deitado nela de novo, e

não se deu ao trabalho de estender os lençóis.

Marcelo tinha uma confortável cadeira de

escritório, daquelas de chefe, na qual ele estava

sentado há quase nove horas. Ele terminou um

dos seus serviços de free-lancer e se enveredou por

mais um jogo. Sempre que ele iniciava, ele queria

jogar o máximo de tempo possível. Após tanto

tempo seus olhos já começavam a arder. As costas

também já o incomodavam, era muito tempo

sentado ali, e o corpo clamava por descanso. Ele

precisava esticar as costas, de preferência numa

posição horizontal, e quem sabe, até dormir um

pouco, mas antes tinha que comer alguma coisa.

Sua última refeição foi um copinho de iogurte,

que ainda estava sobre a mesa, empurrado ao

fundo, junto à parede por cima de fios

empoeirados. Lá ainda tinha mais dois daqueles

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Player – Fábio Guastaferro

copinhos, com resquícios de um liquido já meio

enegrecido.

Levantou. As costas estalaram. As pernas,

um pouco dormentes começaram a formigar.

Marcelo esfregou as mãos para ajudar o sangue a

correr, e resolveu dar um pulo até a cozinha, já

programando um assalto à geladeira. Decidiu ir

de cueca mesmo, imaginava que às quatro da

manhã não haveria ninguém acordado para julgá-

lo um louco seminu.

Marcelo morava com a tia que o criara.

Atualmente eles tinham a companhia de uma

enfermeira, que acompanhava a tia já idosa e

doente. Marcelo não tinha muito contato com as

duas, apenas quando precisava de um pouco de

dinheiro e, claro, de um pouco de comida.

Na cozinha fez um sanduíche de pão de

forma gelado, com bastante maionese e ketchup,

comeu junto com um restinho de refrigerante já

sem gás, e foi dormir. Ao deitar na cama, toda

desarrumada, Marcelo dormiu quase de imediato,

e sonhou. Sonhou que ainda jogava. Era sempre

assim após uma maratona de um jogo novo.

O despertador toca, não posso enrolar mais

na cama. Tenho um compromisso e não quero me

atrasar para o trabalho. Levanto rapidamente,

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Player – Fábio Guastaferro

coloco a roupa do serviço, passo no banheiro. Vou

até a cozinha combater a fome e saio para

trabalhar. O emprego é simples, mas é bom. Já

tenho planos para o dinheiro e pretendo

aumentar o meu nível de proficiência para buscar

um lugar que pague mais.

Chego do serviço no final da tarde. Corro ao

banheiro para uma e aproveito para tomar banho

e colocar a roupa de ginástica. Hoje vou fazer uma

caminhada. No serviço conheci alguns amigos, e

marquei um encontro em casa para um lanche e

um bate papo, não quero me demorar no

exercício.

Ao chegar, vou arrumar algo para comer e

aguardar a chegada do pessoal. Vieram três

pessoas, todos chegaram quase ao mesmo tempo.

Dois deles se incomodam por eu ainda não ter

móveis para melhor atendê-los, mas no geral está

tudo bem. Decido ligar o rádio, e logo a nossa

reunião fica bem animada. Formamos dois casais

e dançamos.

Logo começa a ficar muito tarde e eles

resolvem ir embora. Gostei da reunião, mas a

casa ficou bem suja, quero limpar antes de ir

dormir. Gostei do encontro, eles são animados,

mas tenho que me lembrar de comprar uma mesa

e de ligar para o meu parceiro de dança, um novo

encontro até que seria bom.

Page 53: Vidas Digitais

53

Player – Fábio Guastaferro

Após a limpeza, vou escovar os dentes para

dormir, já passou da hora e terei menos horas de

sono. A rotina é praticamente a mesma do dia

anterior. Só que não tenho encontro. Resolvo

fazer compras. O dinheiro que recebi do serviço

não é muito, mas já dá para fazer algumas coisas.

Posso comprar alguns móveis para a casa, posso

comprar alguns livros para estudar ou então

trocar o chão da cozinha que tanto me incomoda.

Posso também comprar um cachorro. Ter um

cachorro seria legal. Decido por um piano, não

fazia parte dos meus planos, e mal cabe na sala

da minha casa, mas eu sempre quis tocar. Depois

junto mais dinheiro e aumento essa sala.

Marcelo tinha sido demitido fazia quase

duas semanas. O chefe gostava dele. Sabia que

era um cara inteligente e capaz, o problema é que

não era muito compromissado. Ele resolvia o

problema, mas não vestia a camisa. Infelizmente

era um cara que não podia contar com ele.

Marcelo estava sempre perdendo prazos e fazendo

as coisas na correria porque deixava tudo para

última hora. Por algum tempo, seu chefe pensou

que ele tinha outras atividades, que acabava por

comprometer seu desempenho durante o dia,

principalmente pela manhã. Realmente ele fazia

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Player – Fábio Guastaferro

outros serviços, mas sem vínculos, os conhecidos

bicos que ele gostava de chamar de “freela”.

Marcelo é um exímio programador, tem um

bom raciocínio para lógica de programação e

conhece algumas linguagens que estão em alta no

mercado. Serviço realmente não lhe falta, o

problema é com ele mesmo. Desde que saíra do

ultimo emprego, decidiu trabalhar por conta

própria em um projeto. Um projeto próprio que

desenvolveu com um amigo que conheceu em um

MMO. Esses jogos online onde diversos jogadores

jogam simultaneamente. Este é o principal meio

social que Marcelo frequenta.

Lá ele também conheceu a sua atual

namorada que entrou para experimentar e ficou

quase dois anos imersa no jogo. Atualmente,

Tábata não joga tanto quanto antes. Ela está

trabalhando, estudando e namorando.

Namorando nem tanto. Tem alguns dias que ela

não vê Marcelo. Na verdade ela o via mais

através jogo, mas ainda prefere os encontros

físicos.

Marcelo havia sugerido esse projeto a outra

empresa que trabalhara, mas o gerente geral não

lhe deu muita importância, mesmo ele

apresentando um detalhado plano de negócios.

Aquilo ficou engavetado esperando a

oportunidade chegar, e agora que tinha tempo

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55

Player – Fábio Guastaferro

para desenvolver faltava a Marcelo o foco. Ele

havia elegido este projeto o seu objetivo

primordial, de certa forma, ele sonhara em

ganhar muito dinheiro com este empreendimento,

o suficiente para mantê-lo no mercado,

caminhando com as próprias pernas. Estava

pegando um ou outro trabalho simples para não

ficar totalmente sem grana, mas iria dedicar todo

o seu tempo ao seu próprio projeto. Porém, as

coisas não passavam de planos, que se recusavam

a deixar a cabeça de Marcelo.

Acordar cedo, escovar os dentes, usar o vaso

sanitário, trocar de roupa, tomar café, fazer um

exercício físico, passear com o cachorro, sair para

trabalhar, voltar do trabalho, passear com o

cachorro, tomar um banho, fazer um lanche,

estudar, ver TV, dormir.

A rotina se repete quase todos os dias, com

pequenas variações. Às vezes, recebo amigos, às

vezes, um encontro amoroso. Agora tenho um

companheiro, ele vem sempre a minha casa, mas

não de uma forma frequente. Tenho um cachorro

também. Troquei o piso da cozinha, inclusive

aumentei o cômodo, agora tem uma grande mesa.

Fiz um banheiro no quarto. Troquei alguns

móveis, aumentei alguns cômodos. Aprendi a

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Player – Fábio Guastaferro

tocar piano, mecânica, eletrônica e informática.

Também estou graduada em comunicação. O meu

emprego paga bem e, assim, comprei um carro e

muitas roupas novas. No meu jardim tem um

pequeno anão que chegou pelos correios. Talvez

eu me case, mas não sei se existe essa

possibilidade.

Minha rotina se repete quase todos os dias,

com algumas exceções.

A sua volta tudo está parado, mas Marcelo

sente que está progredindo. Ele passa de dez a

doze horas na frente do computador, trancado

dentro do quarto, a maior parte do tempo seminu.

Tem se encontrado menos com os amigos, na

verdade, ele não gosta muito desses encontros de

bar, de balada, de curtição. Vez ou outra vai a

algum evento cultural, algum show de música. Ia

também ao cinema, principalmente com a Tábata,

mas acha mais fácil ver os filmes pela internet, no

conforto do seu quarto escuro e mal cheiroso.

Tábata também parou de procurá-lo.

Ultimamente ele só sentia falta dela para o sexo,

e resolveu isso com os milhares de vídeos que tem

nos favoritos do seu browser. Ele não fala com ela

já há alguns dias, e também não se importa. Acha

que nunca gostou dela, era mais pelos poucos

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Player – Fábio Guastaferro

interesses que ambos partilhavam. Ela parecia

entendê-lo, mas parece não suportá-lo. Não mais.

Ele não se importa.

Marcelo acabou de acordar e resolveu

almoçar, se ainda tivesse almoço. Sua tia tem

uma alimentação diferenciada, voltada para a

doença dela e ninguém faz comida em casa. Às

três horas da tarde vai ser difícil Marcelo achar

comida fresca, e ele decide assar um congelado.

Mais um congelado. Enquanto a massa esquenta

no forno Marcelo liga o computador, logo ele está

comendo em frente ao monitor, ainda com a

mesma roupa que acordou. Não se importa com o

refrigerante que entorna na mesa cheia de

objetos, com uma meia ele limpa parcialmente e

volta a se concentrar no monitor.

Seus dedos são ágeis e ele faz diversos

comandos no teclado. Marcelo gosta dos que faz,

está concentrado e sabe que aquela tarefa vai lhe

tomar o resto do dia e possivelmente a noite toda.

Talvez ele dê uma pausa para tomar um banho,

quem sabe dar uma volta. Faz três dias que não

sai na rua, há dois não vê as pessoas que estão

dentro de sua casa. Também não se importa com

a TV. Marcelo não sabe muito bem o que acontece

no mundo, mas ele não está preocupado, ele só

que terminar, terminar mais esse. Ele sabe que

falta pouco, que já progrediu bastante, sabe que

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Player – Fábio Guastaferro

está chegando ao fim, mas falta uma coisa ainda

que ele precisa fazer, talvez leve mais algum

tempo, mas ele tem que tentar para fechar com

chave de ouro. Não sabe se existe essa

possibilidade, mas ele precisa casar. Só assim vai

zerar este jogo.

Acordo como se estivesse em transe. Estou

muito assustado. Ouço meus companheiros

engatilhando as armas e conferindo os

equipamentos. Sinto a tensão no ar e me coloco

em posição. Engatilho a Kalashnikov, prendo ao

cinto uma granada explosiva e outra de fumaça e

carrego a pistola Desert Eagle com um pente de

sete balas. Estamos na principal parte da missão,

agora que invadimos o local, só falta plantar a

bomba, e este é o meu principal objetivo.

Page 59: Vidas Digitais
Page 60: Vidas Digitais

VERITAS VOS LIBERABIT

_______________

Fabiano dos Santos Araújo

ais uma vez tudo se iniciava da mesma

forma. A experiência e tudo o que

acontecia à sua frente se descortinava

com extrema naturalidade.

Estava no controle. Poderia fazer qualquer

coisa que quisesse, tinha acesso a todos os locais

possíveis, saberia de todas as coisas. Mesmo com

tamanho poder e as infinitas possibilidades que

ele poderia lhe trazer, mais uma vez, o início era o

mesmo.

M

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Ele conhecia o processo e suas

particularidades, mas sempre que chegava até

“lá” sentia medo.

Talvez hoje fosse um pouco diferente, pela

experiência adquirida ao longo dos anos. Ainda

assim, por mais irracional que parecesse, ainda

tinha medo.

O mundo a sua volta se apresentava com

cores estranhas, evidentemente, se você

conseguisse distinguir as cores num mundo quase

totalmente em preto e branco. Tudo tinha um

toque noir...

Ele encostou seu Ford 1949 próximo da casa

número 37. Tudo parecia congelado no tempo, o

vento soprava e o sol aquecia, isso era um fato,

mas não havia naturalidade em tudo o que via.

Ao descer do carro, percebeu que a única

presença que existia ali era a dele. Seguiu casa

adentro, a mesma solidão se repetiu.

Apesar da situação da senhora, ele não

esperava encontrar tudo tão quieto. Olhou os

cômodos da casa decorados como nos anos 50.

Desta vez não tinha nenhuma intenção de

interferir. Não queria ser invasivo de forma

alguma, se possível, entraria na casa sem nem

mesmo abrir a porta. Mas este tipo de coisa ele

ainda não sabia fazer.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Tinha a impressão de que não haveria mais

segredos a serem escondidos, portanto, sua

postura não invasiva se justificava.

Em seu passeio pelos cômodos, percebeu que

tudo estava bastante organizado. Mas havia aqui

e ali alguns documentos sobre os móveis. A

maioria deles era pálida e possuía a mesma

aparência “preto e branco” do resto do mundo.

Finalmente, um deles aparentou ser

diferente, era sutil, parecia emanar um brilho

próprio, o diferenciando dos outros.

Aproximou-se do móvel em que ele jazia e

olhou sem tocá-lo. A primeira vista o papel estava

limpo, nada havia nele, mas ao aproximar o rosto,

alguns símbolos se transformaram numa

sequência de números.

– “0015327509” – leu em silêncio –“030502”

– continuou quando outros números surgiram

abaixo dos primeiros.

Quando ele se preparava para sair, os

números que estavam no papel sumiram e em seu

lugar algumas palavras foram se formando, mas

diferentemente dos números, cada uma tinha um

formato, algumas estavam cortadas, outras

invertidas.

– Desculpe, isso é tudo... Agora será com

vocês... Cuidado! Obrigado – leu desta vez em voz

alta.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

A folha de papel foi escurecendo das

palavras para as bordas, até ficar completamente

negra. Ele deu uma última olhada para ela, e

seguiu para fora de casa até seu carro, arrancou e

seguiu adiante, saindo daquele lugar da mesma

forma que surgira.

Várias pessoas estavam na sala de vistas da

mansão do Sr. Carlos, quando Matt pela primeira

vez em minutos piscara como uma pessoa normal,

não apenas executando a função mecânica de

lubrificar os seus globos oculares.

Após a primeira piscada, piscou novamente

seguidas vezes como se seus olhos estivessem

muito secos. Respirou fundo, pegou um bloco de

anotações e passou a anotar as informações que

fora incumbido de buscar.

Vendo Matt se recompondo e fazendo

anotações, pela primeira vez o Sr. Carlos soltou a

mão da esposa e fez um sinal para que todos

saíssem da sala.

Antes que todos saíssem, Matt terminou de

escrever no papel e olhou para a Sra. Valda, que

estava a sua frente ao lado do Sr. Carlos.

Devido ao derrame que sofrera meses antes,

ela ficou com uma expressão bastante vazia no

rosto. Mas desta vez por um breve instante,

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

apenas Matt percebeu o esboço de um sorriso em

seus lábios, seus olhos, naquele momento,

perderam a expressão morta que tinham e

brilharam intensamente.

Quando todos deixaram a sala, Matt se

curvou em direção ao Sr. Carlos, lhe entregando o

bloco de anotações e a caneta num tom seco: –

Aqui está. Isso é tudo.

O Sr. Carlos agradeceu fazendo uma leve

reverência enquanto pegava o papel e o lia em voz

baixa, para que apenas Matt ouvisse: –

0015327509 e 030503.

Pouco antes de ler o que estava na

sequência, hesitou antes de prosseguir: – Me

desculpe meu bem, isso é tudo. Agora será só

você... Tenha muito cuidado com o que buscas...

Poderá alcançar. E será que estarás pronto para

lidar com as consequências? Sempre lhe amarei.

V.

O Sr. Carlos olhou para sua esposa por um

instante, estava imóvel como nos últimos meses.

Rapidamente procurou sua mão e chorou. Já

era tarde demais. Não fossem os apoios que a

mantinham na mesma posição, talvez ela tivesse

tombado o pescoço no momento final pensou ele,

tentando se iludir. A verdade era esta, mas pela

primeira vez ele não queria acreditar nela.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

– A mentira conforta o coração, Sr. Carlos. –

disse Matt quebrando o silêncio – Não caia nesta

armadilha.

– Já está aqui dentro? – questionou o Sr.

Carlos com um risinho irônico apontando para a

testa, enquanto começava a enxugar as lágrimas.

– Não. Você sabe que não. – retorquiu Matt

secamente – Já vi esta cena vezes o suficiente

para deduzir o que se passa em sua mente. Se

você seguir por este caminho, não serei de grande

ajuda para o senhor.

O Sr. Carlos o olhava quase sem piscar, em

resposta apenas respirou fundo e caiu sobre o

próprio colo chorando.

Matt seguiu para uma das janelas atrás do

Sr. Carlos, e ficou observando o jardim enquanto

pensava: – “As pessoas são realmente muito

interessantes... Quem diria que o “Rochedo”

poderia amolecer assim?”

Enquanto observava o jardim viu os

seguranças se posicionando discretamente entre

as árvores, prontos para atacar ao menor sinal de

perigo.

Por um tempo o silêncio entre os dois se

manteve. Não fosse o choro do Sr. Carlos, o

silêncio na sala seria absoluto.

– Obrigado por tudo meu rapaz – agradeceu

o Sr Carlos – Você foi de grande ajuda nos

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

últimos meses. Seu carro o espera há alguns

minutos.

Matt fez uma reverência e seguiu até a

porta, que fora aberta por um comando dado pelo

Sr. Carlos.

– Seus serviços são únicos, rapaz. Tem

certeza que não gostaria de trabalhar conosco?

– Desculpe. A minha busca é outra.

– Caso precise de você ainda poderei contar

com sua ajuda? – perguntou o Sr. Carlos voltando

ao seu tom característico.

Matt apenas assentiu positivamente com a

cabeça e saiu.

– Suas coisas estão no carro. – informou o

segurança do lado de fora da sala.

À medida que Matt seguia pelo corredor,

todos que estavam na sala anteriormente foram

passando por ele desesperadamente até a sala de

visitas onde estavam o Sr. Carlos e o corpo da

Sra. Valda.

A noite já havia começado e o velho letreiro

do Dino’s Dinner já estava aceso, ao menos

estavam acesas as lâmpadas que ainda não

queimaram.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Dino era italiano, mas já havia passado por

tantos lugares que se considerava um cidadão do

mundo.

Sempre que você chegasse ao Dino’s Dinner,

se esqueceria em que lugar do mundo você estava,

ao entrar no local você se sentia em um dos

restaurantes baratos que vemos nos filmes

americanos.

Dino gostava assim, ele dizia que era uma

lembrança permanente de uma de suas viagens.

Quase sempre o mesmo número de pessoas

ocupava o lugar, mas a mesa do canto esquerdo

nunca era ocupada.

Entre um atendimento e outro no balcão, os

olhos quase sempre irritados de Dino fitaram a

mesa do canto esquerdo, ocupada por um homem

solitário que olhava o cardápio.

Dino deixou os clientes com um de seus

funcionários, indo até lá com a feição carrancuda

de sempre.

– Deveria fechar melhor suas lixeiras meu

senhor. Os animais de rua às estão atacando –

disse Matt sem tirar os olhos do cardápio.

Dino resmungou sonoramente, tirou o

cardápio das mãos e colocou outro mais

desgastado no lugar.

– Cuide de seus negócios rapaz! –

resmungou saindo.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Dino fez um sinal com os olhos para um

funcionário, que levou à mesa de Matt uma xícara

com água quente e um envelope de chá.

Matt abriu o envelope, colocou o saquinho na

xícara e o envelope vazio no bolso.

Quando o conteúdo da xícara ficou escuro

demonstrando que o chá estava pronto, Dino

retornou a mesa, desta vez sentando-se em frente

a Matt, pegou a xícara e começou a bebericar o

chá. – Earl Gray... Delicioso realmente! –

exclamou saboreando o chá – Mas é uma pena

estar tão quente... – obviamente queimara a

língua.

– Eu pensei que você era italiano... –

indagou Matt ironicamente.

– Sou cidadão do mundo! Mas, já sabe disso,

não é mesmo?

– É... Já faz tempo que não vou aí. E não é

hoje que pretendo voltar... – respondeu Matt com

ar de repulsa.

– Você tem trabalho hoje.

– Que bom Dino! Sempre tem algo de bom

para mim.

– Uma hora dessas... – resmungou Dino com

o rosto já vermelho – Está tudo pronto! Suma

daqui!

– Sem nada para comer... Você costumava

ser mais generoso...

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

– Não sou um albergue! Meu restaurante

precisa vender para se manter aberto. Cada vez

mais morto de fome... Não há comida no mundo

que chegue para você! – retrucou Dino.

– Espero que seja algo divertido desta vez...

– atalhou Matt, tentando mudar de assunto.

– E será! Será amigão! – respondeu Dino

sarcasticamente.

Matt o olhou com medo nos olhos, pois nunca

havia recebido esse tipo de resposta de Dino.

Normalmente ele reclamava ou brigava com ele.

Em silêncio ele se levantou, enquanto Dino

acabava de tomar seu chá, seguiu até os fundos

do restaurante, entrando no carro deixado para

ele e seguindo pela escuridão que havia a frente.

Muitos minutos e quilômetros à frente, Matt

parou no centro velho da cidade, onde velhas

construções abrigavam em muitos quartos e

apartamentos, centenas de famílias mais pobres,

os solteiros e os estudantes que não podiam pagar

por um lugar melhor.

Matt olhou novamente o bilhete que estava

no envelope de chá, e este confirmava que o

endereço estava correto. Ele o jogou no porta-

luvas, parou o carro e se pôs a pensar por um

instante.

Ele havia realmente chegado ao seu destino,

mas normalmente, Dino o mandava encontrar os

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

seus clientes em bairros mais desocupados ou

muito mais violentos do que este...

Como já parara o carro em frente ao prédio

onde encontraria o seu cliente, deu com os

ombros, tirou este pensamento da mente e

adentrou o prédio, buscando o apartamento 21.

Ao chegar ao segundo piso ele se deparou

com a porta que procurava. Em todas as outras

portas havia uma mensagem proibindo a entrada

ou uso daqueles apartamentos.

Ele tocou a maçaneta e com uma leve torção

a porta se abriu. –“Talvez o cliente já esteja me

esperando.” pensou Matt.

O apartamento era muito pequeno, muito

sujo, sombrio e pouco mobiliado, como ele já

suspeitava. Na verdade havia apenas um sofá de

couro marrom no lado esquerdo da sala, olhou em

volta, e rumou até o sofá, que era parcialmente

iluminado pela luz dos postes que entrava pela

janela. Lá ficou sentado por uns 40 minutos, em

silêncio.

De repente fez menção de se levantar, talvez

para olhar pela janela, se o cliente já estava

chegando, ou mesmo para sair dali, devido à

demora.

Mas ele hesitou. Acomodou-se mais ereto no

sofá e um sorriso surgiu em seu rosto quando

falou: – Até onde quer chegar com isso?

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Após isso, manteve-se em silêncio, como se

esperasse uma resposta de algum canto do

apartamento vazio.

– O combustível não é de graça sabia? –

insistiu, mas novamente, não obteve resposta.

Mais uma vez, não sendo respondido, Matt

levantou os braços como se fosse pegar o volante

de um carro.

– Pois bem! Se quer me obrigar a este

ridículo, tudo bem...

Ele manteve uma das mãos na mesma

posição e “bateu” com a outra onde deveria ser a

buzina. Evidentemente, nenhum som foi emitido,

mas na rua pode-se ouvir uma freada brusca,

seguida do som longo de uma buzina.

Com isso Matt não se sentiu inibido. Sentiu-

se incentivado.

– Só vou lhe dar um último aviso. Os gases

do escapamento logo tomarão este lugar e nos

sufocarão até a morte! – ameaçou ao novamente

repetir o movimento.

Novamente o som não saiu. Ao invés disso,

na sombra do lado oposto do sofá uma voz surgiu:

– Ei! Tudo bem! Você venceu! Pare de chamar

atenção.

O apartamento ao redor de Matt foi

desaparecendo, logo ele se viu novamente dentro

do carro, o banco vibrava com o funcionamento do

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

motor e os gases do escapamento invadiam o

habitáculo.

– Você é quem procuro! Rápido! Já sabe onde

devemos ir – disse a voz no banco do carona.

Matt pisou no acelerador e sumiu pela

escuridão novamente. Ele deu a volta com o carro

e passou novamente em frente ao Dino’s Dinner.

O letreiro estava idêntico, tão decadente como o

vira da última vez, mas o prédio estava diferente,

estava irreconhecível, parecia agora um

restaurante comum, como os outros da cidade.

Não tinha mais sua aparência americana.

Após passar em frente ao restaurante de

Dino, seguiu pelo mesmo caminho que “usara” há

pouco.

Ao chegar ao mesmo bairro, seguiu pela

mesma rua, parando o carro em frente ao mesmo

prédio. Desceu do carro e entrou, sendo seguido

por seu acompanhante, que nada falara durante o

percurso.

Matt caminhou pelo térreo e seguiu pelas

escadas apenas parando no final delas. Em todo o

percurso ele agiu com a familiaridade e

naturalidade de um morador do prédio.

Desta vez ele notou que não havia avisos nas

portas dos outros apartamentos, impedindo a

entrada neles.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

– Aqui seria um bom lugar para

conversarmos, Marco? – indagou Matt.

A pessoa que o acompanhara subiu

calmamente as escadas, enquanto isso, Matt

observava as suas feições. Tinha cabelos já

brancos, apesar de sua aparência não ser tão

velha, usava grandes óculos de aros grossos e

escuros, isto sim o envelhecia.

Seu rosto era praticamente liso, não fosse o

ralo bigode que surgia acima de seus lábios ele

pareceria ainda mais jovem.

O homem seguiu calmamente com sua

postura e expressão sempre serena até a porta.

– Se este é um bom lugar para

conversarmos? Eu diria que sim. É um bom lugar.

Mas não preferiria conversar estando

confortavelmente sentado? – finalmente

respondeu Marco destrancando a porta e o

convidando para entrar – E eu sei que há uma

coisa lá dentro que você precisa.

Matt aceitou o convite assentindo com a

cabeça. Pouco antes de entrar, ele imaginou que

encontraria o mesmo espaço sujo com apenas um

sofá velho encostado na parece.

Ele não podia estar mais enganado. O

apartamento era muito limpo e bem organizado,

era bem mobiliado e decorado, era como se aquele

lugar fosse familiar a ele.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Pelo cansaço que sentia, não deu

importância a essa impressão que teve, ele

deveria ser a sua causa.

Logo ao entrar ele viu acima do sofá da sala

um grande retrato onde estavam Marco, com

cabelos ainda negros e sem o bigode ralo,

abraçado a uma mulher com um grande sorriso

no rosto. Esta abraçava um garoto com uns doze

ou treze anos no máximo, ele estava bastante

sério, com os braços cruzados, talvez não estivesse

à vontade para tirar aquela foto.

Marco ao entrar se dirigiu a cozinha, puxou

duas cadeiras colocando uma de frente para

outra.

– Gostaria de alguma coisa antes de

começarmos? – perguntou ele.

– Água seria muito bom. – respondeu Matt

tirando finalmente a mão do bolso.

Ao pegar o copo d’água ele colocou alguma

coisa na boca e com a ajuda do líquido engoliu.

– Era exatamente o que eu precisava.

Obrigado – agradeceu Matt.

– Não há de que.

– Bem, como eu poderia ajudar alguém tão

bem preparado nas técnicas de Mnemósine? –

perguntou Matt.

– Na verdade todos temos nossas limitações.

E acima disso é sempre bom alguém de fora nos

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

ajudar a enxergar melhor um ponto de vista. Não

concorda Matt?

– Tem razão. Mas diga-me uma coisa. Por

que escolher essa técnica tão básica? Sabe que

caso eu queira fazer alguma coisa, você não teria

defesa alguma. Eu poderia fazer o que bem

entendesse. Você não saberia se algo o atingisse –

indagou Matt.

– Tenho uma coisa perdida aqui. – disse

Marco apontando para a sua cabeça – Já consegui

com muito esforço, recuperar algumas

informações ligadas ao que perdi. Mas o principal

ainda está perdido. E pelo que vi há pouco, você é

o único que pode encontrar. E sobre os riscos, sei

que posso confiar em você. Enquanto estive aí, –

disse apontando para a cabeça de Matt – consegui

confirmar o quanto você é honesto. Eu já

suspeitava disso enquanto você vasculhava a

mente da Sra. Valda usando Mnemósine. Sempre

que pude, verifiquei em segredo o que você tinha

feito. Era como se ninguém tivesse passado por lá.

Não haviam danos ou interferências. E tudo o que

você trouxe de lá era verdadeiro.

Matt corou levemente e sorriu em resposta.

– Pensei que me questionaria se não havia

nada de errado com a água... – perguntou Marco,

ao mesmo tempo que apontava para a cadeira na

sua frente, para que Matt sentasse nela.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

– Me mostrou há pouco um lugar que

considerava tão seguro, que não teria nada a

esconder – respondeu Matt se sentando.

– Não há mais nenhum lugar seguro ou

familiar para mim no mundo. Tudo isso a nossa

volta é um grande engodo, para mim mesmo...

Mas está certo quando diz que não tenho nada a

esconder.

– O que gostaria que eu recuperasse para

você?

– Este é o problema rapaz. Tiraram do lugar

onde deveria estar. Quem o fez não sabia ainda

como apagar. Fez apenas isso.

– Podemos começar?

Marco concordou com um aceno da mão

direita. Os dois começaram a se olhar, um nos

olhos do outro, piscaram lentamente como se

tentassem lubrificar os olhos o máximo possível.

Marco foi o primeiro a se levantar, rumando

para a sala, sendo seguido por Matt.

– Eu não tenho nada a esconder. Mesmo se

eu quisesse, sabe que eu não poderia. A única

coisa que você irá se deparar é com a verdade. –

esclareceu Marco, parando próximo à porta de

entrada.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

– O que haveria de tão sinistro e revelador a

me dizer? – desafiou Matt.

– Bem, o que há para ser dito estará em

breve ao seu alcance. A questão é: Você está

preparado para o que verá?

Matt concordou com a cabeça, e se

aproximou mais da porta.

– A história que tenho a lhe contar é esta.

Ela será uma estrada para lhe guiar, espero que

complete as partes que faltam – disse Marco

abrindo a porta – A estrada lhe espera.

Matt olhou fixamente para Marco por um

instante. Virou-se para a porta e seguiu pelo

caminho que se formava do lado de fora do

apartamento.

Às vezes alguns ofícios parecem ser meio

ingratos, principalmente quando sua atividade

envolve o fato de se estar de pé antes mesmo do

sol pensar em sair.

Este tipo de pensamento constantemente

povoava a mente de Marco. Estava muito

enraizado devido a sua constituição física e

mental, e principalmente por uma de suas

paixões: dormir o máximo possível todas as

noites.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Mas como poderia alguém que trabalhava

numa empresa que entrega jornais e revistas

usufruir deste gosto?

As pessoas jamais param de surpreender,

como alguém que detesta acordar cedo, poderia

ficar no mesmo emprego por mais de dez anos,

sem faltas ou reclamações? Às vezes fazemos

coisas contrárias ao nosso ser em favor de outros.

Enquanto Marco acabava de verificar os

itinerários e os colocava nas caixas com a entrega

daquela manhã, um dos entregadores chegou até

ele trazendo uma má notícia, antes mesmo do dia

começar.

– Senhor... Bom dia... – gaguejou o

entregador.

– Bom dia, do que se trata? – perguntou

Marco, sabendo que a gagueira significava

problemas.

– Um dos entregadores não virá hoje. E

talvez por algum tempo ele não volte.

– O que o Túlio fez desta vez?

– Na verdade... Não foi o Túlio... – hesitou o

entregador – Aconteceu com o Júlio. Ele se

acidentou. A família dele me avisou há pouco.

Mas não parece ter sido grave.

– Meu Deus! Espero que ele esteja bem. –

respondeu Marco num misto de tristeza e

surpresa. Daquele dia em diante estaria sem o

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

seu melhor entregador, sabe Deus por quanto

tempo – Hoje assumo o posto dele. Mais tarde

remontarei os itinerários de todos para podermos

nos organizar por enquanto.

– Certo... Mas, eu fiquei com a área de

entrega dele por hoje, pois a moto dele não ia

conseguir ir tão longe antes do conserto.

– É verdade, é a sua área que precisa de

alguém. Felizmente, para mim, – disse Marco

sorrindo ao olhar o itinerário – hoje você teria

poucas entregas. É melhor que eu vá, uma das

entregas é algo que está sendo esperado há muito

tempo.

Marco pegou a caixa com as entregas e saiu.

Por mais cedo que fosse, ele queria terminar o

quanto antes.

Quando só faltava uma entrega para

finalizar o serviço, Marco seguiu até a sua casa.

Chegando lá ele viu a esposa já de pé, não era só

ele que precisava iniciar seu dia bem cedo. Ele

mostrou um pacote que trazia para ela enquanto

se dirigia ao quarto do filho.

– Que bom meu bem! Ele já estava quase nos

deixando loucos. – disse ela rindo – Ele ainda está

deitado!

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Ele chegou à porta do quarto do filho e viu

uma folha de papel com fundo preto com letras

brancas estilizadas: “VVL”. Bateu nela como se

estivesse na porta de entrada e aguardou que

fosse aberta.

Por três vezes ele tentou, e por três vezes

não obteve resposta. Ele pegou um apito metálico

escondido sobre o portal e soprou com toda a

força.

Antes que ele terminasse de soprar, a porta

se abriu com seu filho o fitando, com uma

expressão de sono misturada com nervosismo.

– Pai, isso não é justo! Ainda falta uma hora

para eu me levantar. – disse o garoto em um tom

seco, no entanto só faltavam vinte minutos.

– Desculpe, filho, mas a vida não é justa.

– O que é isso com você? – perguntou ele com

os olhos brilhando.

– O que você acha que é Bob?

– Não é possível!

– Claro que é. Está na sua frente. Pegue!

Acordar um pouco mais cedo é um preço pequeno

por isso.

– Obrigado!

– Só uma coisa. Você pode abrir a caixa

agora, mas não irá testar nada antes que eu

chegue. Temos que arrumar a tomada no seu

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

quarto – disse ele dando um beijo na testa do filho

– E também não quero que se atrase para a escola

por causa disso.

– Até mais pai! Obrigado!

Como um raio o garoto voltou ao quarto e

abriu a caixa como uma fera que dilacera uma

presa, dentro dela havia uma caixa menor, uma

carta, uma edição especial da revista Game Plus,

e alguns envelopes já selados.

– Filho! Vá já se arrumar antes que se

atrase! – gritou sua mãe da cozinha.

O garoto mesmo contrariado deixou todas as

coisas no meio do quarto e correu até o banheiro,

se arrumou numa fração do tempo que

normalmente gastava.

Em poucos instantes ele estava arrumado,

se dirigindo a mesa da cozinha, com uma pequena

caixa preta em uma das mãos e a carta da

produção da revista na outra.

– Nossa! Como eu gostaria que recebesse

uma entrega para você todos os dias. Só assim

você se levanta e se arruma sem me dar trabalho.

O garoto apenas sorriu sarcasticamente em

resposta.

– Infelizmente nada é perfeito mesmo... –

disse ela limpando o resto de espuma do creme

dental, que ficara no canto da boca do filho.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Enquanto sua mãe lhe falava, ele começou a

olhar a caixa que trouxera a mesa. Era toda em

preto fosco e apenas haviam três letras

estilizadas na tampa: “VVL”, semelhantes às que

estavam na porta do seu quarto.

Abrindo a caixa, ele retirou as proteções de

espuma e pegou um bilhete escrito com letras

vermelhas: “Leia as instruções. – LiberTeam”.

Ele retirou o cartucho de dentro da caixa e

além do fato dele ser diferente por ser uma demo

do jogo, era transparente com um pequeno

adesivo escrito VVL. A carcaça do cartucho dava

destaque ao chip especial branco que dava

características únicas a este game.

Ele examinou com cuidado todos os detalhes

do cartucho, retirou a proteção dos conectores, e

se abaixou para pegar a carta que caiu no chão.

Ao fazer isso, derramou sua caneca próxima

ao cartucho do jogo. Rapidamente sua mãe o

pegou, e aparentemente apenas a parte externa

se molhou. À primeira vista os contatos da placa e

o interior do cartucho estavam intactos.

Antes mesmo que ele pudesse dizer algo ou

esboçar alguma reação, uma buzina tocou duas

vezes.

– Filho, eu termino isso. Vá logo que a van

está esperando, hoje é o primeiro dia.

– Mas mãe...

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

– Vá rápido! Esse jogo estará te esperando

quanto você voltar. E nem pense em levar nada

disso para a escola!

O garoto ficou emburrado, mas atendeu as

ordens da mãe. Rapidamente pegou as suas

coisas e foi para a escola sonhando com o

momento em que poderia ficar com o seu jogo sem

interrupções.

Finalmente ele chegara em casa, sua mãe,

que também chegara há pouco do trabalho, estava

no jardim cuidando das plantas.

Pegou o cartucho do jogo e novamente o

examinou por um tempo, como se procurasse

algum defeito, sujeira ou mancha. Olhava-o como

se tivesse ficado longos anos longe dele.

Deixou o cartucho de lado por um momento e

começou a ler a carta enviada pela produção da

revista.

Ao

Senhor Marco,

É com grande satisfação que lhe entregamos

o cartucho demo, do tão falado game VVL.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Em anexo seguem as instruções, e uma carta

detalhando informações sobre o envio de sua

opinião sobre o jogo, além de algumas palavras da

produção da Revista Game Plus, escritas

especialmente para você.

Aproveite o jogo da melhor maneira que

puder. Esperamos ansiosamente por sua opinião.

Atenciosamente,

Equipe da Revista Game Plus.

As folhas que se seguiram eram as

instruções no idioma original dos produtores do

jogo. Bob não reconhecia nenhum dos símbolos

nas páginas, desta forma, não fazia ideia de qual

era o idioma deles.

Na sequência estavam as instruções em

português traduzidas pela própria equipe de

desenvolvedores. Antes das instruções

propriamente ditas, havia um pequeno texto

escrito ao jogador que faria o teste do jogo.

É uma grande honra para todos nós da

LiberTeam Games, lhe entregar esta demo do

nosso mais novo jogo.

Esperamos sinceramente, que todo nosso

trabalho e dedicação ao jogo possam lhe conceder

Page 85: Vidas Digitais

85

Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

uma experiência única, mesmo sendo apenas uma

demonstração dele.

Durante o desenvolvimento do jogo, sempre

buscamos fazer da experiência trazida por este

game algo único, mas para que este nosso objetivo

fosse alcançado, notamos que precisaríamos do

auxílio da comunidade gamer de todo o mundo.

Assim surgiu o sorteio que o escolheu como

um dos primeiros a testar o jogo. Por este motivo a

sua opinião é muito importante para nós. Não

deixe de contar tudo o que você pensa sobre o jogo.

Uma última informação: O chip de

inteligência artificial Human Unit 3 (Hu3), é

extremamente sensível a umidade, tome os

cuidados listados nas instruções e nenhum dano

ocorrerá ao mesmo.

Saudações,

LiberTeam Games.

Veritas vos Liberabit

– Conteúdo exclusivo aos beta-testers –

O que você faria caso tivesse acesso a toda a

verdade do mundo? O que faria caso pudesse ser o

senhor desta verdade? Estaria preparado para

todas as conseqüências que isso lhe traria?

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

M. Parker, não é apenas mais um detetive

que se costuma ver nas novelas policiais. Ele tem o

poder de implantar memórias na mente das

pessoas. Caso ele não consiga obter as informações

que busca, apenas com sua persuasão.

Memórias podem ser implantadas nas

mentes dos suspeitos, se estas forem convincentes o

suficiente não existirá barreira alguma para

obtenção da verdade.

Um grande poder? Uma maldição? Você

decide! Os rumos da historia serão modificados

por suas escolhas no jogo, questionamentos e

reações quase infinitos poderão surgir. Além de

um sem número de possíveis finais que poderão

ser criados de acordo com as decisões que você

tomar.

Estará pronto para encarar o peso da

verdade? Poderá de fato a verdade libertar M.

Parker? Ou ela poderá libertar você do destino que

suas escolhas o levarão?

O garoto ao terminar de ler estava trêmulo.

Devido à tamanha excitação que sentia pelo jogo.

Tudo isso era realmente possível? Perguntava-se.

Ele precisava testar o jogo imediatamente.

Até aquele momento sua mãe não o havia

chamado. Não havia como saber por quanto

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

tempo ele poderia ficar em seu quarto sem ser

chamado.

Apesar de seu pai o advertir para que não

ligasse o console, devido o problema na tomada do

seu quarto, ele não podia esperar mais.

Ele fitou o console por um breve instante,

estava entre a realização de seu desejo e o

cumprimento do pedido do pai.

O emocional lhe falava com mais força do

que o racional. Saiu do impasse, ligou a TV e

nada de errado ocorreu, ligou o console,

novamente nada de errado ocorreu.

Respirou fundo, desligou o console, pegou o

cartucho do VVL, e o colocou no console. Mas ele

hesitou. Ficou imóvel por um instante, como se

não conseguisse acreditar no que ia fazer, ou

ainda não conseguisse crer em seus olhos por

estarem lhe mostrando que o momento que ele

tanto aguardara, finalmente havia chegado e ele

estava há instantes de realizá-lo.

Por mais tolo que tudo isso pudesse parecer,

um misto de emoções e pensamentos tomou conta

do seu ser, no breve instante de torpor, que

parecia o deter.

Estava eufórico, excitado e feliz por poder

concretizar este sonho, mas ao mesmo tempo se

sentia mal, egoísta e mesquinho por não esperar

seu pai. Afinal, aquele momento não seria

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

possível se seu pai não tivesse se inscrito no

concurso, pois menores não podiam participar

dele.

– “O que eu faço?” – pensou Bob, no instante

anterior ao que decidira o que iria fazer.

Lentamente se curvou até seus braços

alcançarem o console, e num movimento muito

brusco o ligou, se afastando na mesma velocidade.

Abaixou o volume do televisor, a um nível que ele

pudesse ouvir, mas quem por ventura se

aproximasse de seu quarto não pudesse.

Inicialmente nada ocorreu, apenas uma tela

negra o olhava e refletia sua imagem. Ele se

manteve imóvel, esperando que algo ocorresse.

Logo uma barra de progresso surgiu na tela,

para o seu alívio, rapidamente ela se encheu, e o

logotipo da LiberTeam surgiu e sumiu dando

espaço a tela inicial do jogo.

Prontamente Bob, fez as escolhas nos menus

que surgiram e um pequeno filme se iniciou, com

um homem o fitando intensamente como se o

sondasse em busca de respostas. No canto da tela

surgiu o seu nome, M. Parker.

Por um instante o olhar sagaz de Parker

começou a incomodar o garoto. A ideia de que um

jogo tentava o analisar, por um instante o

preocupou.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Antes que qualquer outra coisa pudesse

ocorrer na tela, talvez por mera coincidência, ou

talvez por influência do jogo no sistema elétrico

da região, as luzes de toda a casa começaram a

oscilar.

Evidentemente estava havendo uma queda

na tensão da energia elétrica. A tela da TV, ao

contrário do que as luzes indicavam, pareceu

brilhar ainda mais intensamente, com um brilho

especial nos olhos de Parker, que se tornaram

quase insuportáveis de se olhar.

À medida que as luzes ficavam mais fracas e

apagadas, a TV parecia brilhar mais

intensamente. Quando as luzes estavam quase se

apagando, Bob pulou rapidamente até o console,

com uma das mãos acionou o botão de energia

para desligar o aparelho, e com a outra mão, no

instante exato que desligava o aparelho, puxou o

cartucho com violência do console, por puro

instinto, sem pensar no que fazia.

A trava que segura os cartuchos já estava

frouxa e por isso ele não teve trabalho para

retirá-lo.

Toda a ação durou poucos instantes, mas

foram suficientes para o garoto no último instante

antes de desligar o console e retirar o cartucho

ver a imagem na tela mudar.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Parker o olhava agora com uma expressão

de satisfação, não mais inspirava medo a quem

olhasse. Era como se ele tivesse conseguido algo

que a muito ele buscava. Quando o cartucho

acabava de ser retirado do console a imagem

desapareceu da tela, mas a expressão de Parker

se manteve inalterada até o fim.

Ao mesmo tempo em que a imagem sumia

da tela, Bob não percebeu, mas a tensão elétrica

voltava a subir, veio tão rápida e tão intensa, que

acabou atingindo o console no exato momento que

o cartucho fora retirado, passando parte da

corrente elétrica desde a tomada defeituosa até

Bob.

Com o susto ele gritou e se jogou um pouco

para trás.

– Está acontecendo alguma coisa de errado

por aí, filho? – gritou sua mãe do jardim.

– Não! Bati o dedo na quina do móvel! –

gritou o garoto numa resposta automática.

O garoto ficou por um momento na mesma

posição que caíra, sentado, meio atordoado, sem

entender o que havia acabado de ocorrer.

Logo, ele voltou a si e começou a avaliar o

que havia ocorrido, mesmo estando ainda parado.

Quando se levantou tremia e o suor escorria

por seu corpo. Mesmo neste estado de “choque”,

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

ele precisava organizar tudo antes de seu pai

chegar.

Desligou a TV, tirou o console da tomada, e

foi guardando tudo em seu devido lugar, para que

não houvesse suspeitas do que ele fizera.

A única exceção fora o cartucho, sempre que

se aproximava dele, ele hesitava tocá-lo. Seguia

para organizar outra coisa. Eventualmente teve

que enfrentá-lo. Pegou-o e colocou em sua caixa

sem o olhar. A caixa foi guardada junto com os

outros itens que chegaram a sua casa.

Havia poucas coisas a serem organizadas,

mas mesmo assim, Bob se sentiu exausto após

terminar de colocar tudo em seu devido lugar.

Ele olhou para sua cama e esta lhe pareceu

extremamente convidativa. Jogou-se nela e na

posição em que caiu ficou imóvel.

– “Este cansaço deve ser pelo susto...” –

pensou ele antes de adormecer.

No lugar onde eles estavam o tempo não

existia. Pelo menos, não como se conhece. O mais

próximo do registro de tempo que pode existir é o

tempo em que uma ideia se forma, que é mais

rápido do que uma fração de segundo.

Após Matt ter seguido o caminho que se

abriu fora do apartamento, Marco fechou a porta

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

e foi até o retrato sobre o sofá, e o olhou.

Praticamente só se movendo para respirar.

Subitamente baixou a vista e sentou-se no

sofá. Não sabia quanto tempo Matt demoraria.

Principalmente por já ter plena noção de como era

a “passagem” do tempo por lá.

Não tendo nada melhor a fazer neste

ínterim, pôs-se a pensar. Mas ao iniciar a ação,

sorriu. Pois a ideia de ter um pensamento dentro

de um pensamento, lhe pareceu divertida.

Um período incomensurável depois, Marco

ouviu três batidas na porta, que foram seguidas

pelo silêncio. Calmamente se levantou do sofá e

rumou até a cozinha. Chegando lá, viu Matt

sentado em uma das cadeiras, olhando fixamente

para a outra que estava a sua frente.

Marco se sentou na outra cadeira e quando

ficou no nível dos olhos de Matt, este lhe

perguntou: – Demorei?

Marco não esboçou qualquer reação em

resposta.

– Agora que retornei, não há nada mais que

queira me contar? – perguntou Matt sentando-se

mais ereto, e tirando pela primeira vez os olhos de

Marco.

– Com o que me trouxe agora, algumas

coisas passam a serem certezas, outras passam a

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

ser especulações e outras ainda, apenas delírios –

respondeu Marco.

Com a chegada de Matt, nada do que ele

acabara de presenciar era necessário ser

verbalizado, pois, como estavam na mente de

Marco, tudo o que ele vira e ouvira havia sido

transmitido imediatamente a seu anfitrião.

– Algumas coisas poderão estar fora da

ordem ou ainda não corresponderem com a

verdade, mas acredito que em alguns pontos,

jamais poderemos nos aproximar dela. – explicou

Marco, fazendo uma pausa – Poderia me

acompanhar até a sala?

Seguiram até a sala, Marco pegou o controle

remoto da TV, sentou-se no sofá sendo

acompanhado por Matt.

– Desculpe o esqueumorfismo, mas é a

melhor forma que eu tenho para lhe dizer isso. –

explicou Marco ligando a TV.

Bob dormiu por toda a noite, ao chegar em

casa, seu pai resolveu não acordá-lo, para

verificarem o problema da tomada. Ele mesmo

resolveu o problema, para que seu filho pudesse

usar o vídeo game no dia seguinte.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

A noite passou, e o novo dia nasceu, o

despertador tocou por muitos minutos, mas Bob

não saiu do quarto.

Vendo a demora, sua mãe foi acordá-lo, mas

por mais que ela tentasse, não teve êxito. Ficou

aflita com a situação e o desespero tomou conta

de sua mente, pouco antes dela ligar para a

emergência.

Horas mais tarde, o médico chamou os seus

pais para finalmente lhes explicar o que se

passava com seu filho. Inicialmente os exames

nada diziam, era como se ele apenas estivesse

dormindo profundamente.

Com o passar dos dias, mais observações e

exames foram feitos, e descobriu-se que havia

algumas lesões em seu cérebro, mas

estranhamente a atividade cerebral dele estava

muito acima do esperado para a situação de coma

em que agora se encontrava. O nível de atividade

cerebral era semelhante ao de alguém

aprendendo algo novo.

Com o passar do tempo notou-se o aumento

no nível de atividade e que o impossível estava

acontecendo, as áreas lesionadas estavam

gradativamente se regenerando.

Nesta mesma época, cresceram as

esperanças e fé dos pais de Bob, mas

estranhamente, as visitas foram ficando mais

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

curtas, mais espaçadas, até que deixaram de

ocorrer.

– A partir daí, o quarto de Bob nunca mais

foi aberto. Foi como se ele nunca tivesse existido...

– completou Marco, após a tela da TV se desligar

com o fim das imagens – Meses depois disso,

minha esposa faleceu. Hoje sei que foi de tristeza,

pela falta de nosso filho. Sua mente podia até não

se lembrar dele, mas seu coração sabia.

Marco ficou em silêncio por um instante.

Quando conseguiu falar novamente, quebrou o

silêncio dizendo: – Agora vamos mudar o foco do

assunto, pois se eu me entristecer não sei se

conseguirei ter controle e equilíbrio para manter

tudo isso de pé.

– O que houve depois disso? – indagou Matt.

– Esta é a parte da especulação. Até onde sei

a série de microchips de inteligência artificial

Human Unit foram concebidos para trabalharem

junto com o cérebro de pessoas com lesões ou

deficiências cerebrais. Eles se mostraram tão

promissores, que podiam até mesmo substituir

um cérebro humano quase que completamente. –

respondeu Marco.

– Mas isso ainda não explica muita coisa...

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

– Eles eram microchips híbridos, pois eram

orgânicos em parte. Quando os molhou com as

proteínas do leite e os estimulantes como a

cafeína, na caneca, a atividade do chip especial foi

ampliada, porque as estruturas orgânicas se

fortaleceram com o líquido. Com isso sua

programação evoluiu.

– E com a descarga elétrica tudo se

potencializou. – concluiu Matt.

– Exato! De alguma forma ele está em sua

mente, filho. – afirmou Marco. – Por isso você tem

esta grande capacidade com Mnemósine, desde o

coma.

Matt sorriu tristemente, como se estivesse

tendo um devaneio e disse: – Por isso Dino não

sabia de onde vinha tanta facilidade e domínio

com a Mnemósine...

– Mas você sabe que isso tem cobrado um

preço de você... Seu corpo quase não consegue

acompanhar o estresse que tamanha atividade

cerebral tem lhe trazido. Por isso tem tomado

muitos medicamentos para tentar se manter

estável. Mas há uma forma de reduzirmos o

estresse que vem impondo ao seu corpo. É só...

Antes que Marco pudesse continuar a falar,

passos puderam ser ouvidos vindos da escada que

dava acesso aos apartamentos do segundo piso.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

– Filho, me perdoe! Precisamos sair daqui

agora! Antes que seja tarde... – alertou Marco,

puxando Matt para a sala e de lá para fora do

apartamento.

Ao abrirem a porta, Matt viu Marco já fora

do apartamento, na mesma posição que estava

quando o convidara para entrar, e ele próprio

estava no mesmo lugar onde parara ao esperar

Marco subir as escadas.

Ao dar o primeiro passo para fora do

apartamento, Matt se sentiu arremessado com

violência da soleira da porta de volta ao seu

corpo.

– Mas o que foi isso? – questionou Matt.

– Você perguntou se este era um bom lugar

para conversarmos, lembra-se? E de qualquer

forma, eu não precisava levá-lo ao interior do

apartamento, aliás, eu nem faço ideia de como ele

é por dentro. Filho, você precisava vir aqui

dentro, – disse Marco apontando para a testa – e

conseguir abrir as portas que eu precisava e não

conseguia destrancar.

– E os passos? – indagou Matt. – Já

deveríamos ter sido encontrados...

– Isso é apenas um aviso. Mas eles não

demorarão... Me perdoe, filho. Quando suspeitei

que você existiu, que não era fruto da minha

mente, mexendo em algumas coisas, descobri o

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

seu quarto, que estava escondido atrás de uma

parede. Lá dentro estava o cartucho de Veritas

vos Liberabit. – explicou Marco medido as

palavras na tentativa de irritar Matt o mínimo

possível – Em meu desespero por respostas o Sr.

Carlos pareceu ser uma boa solução...

– Você se associou ao Sr Carlos? O rochedo?

– vociferou Matt – Como pode? Por que escolheu

este lugar, se ele não tem importância alguma?

– Sempre atendeu seus clientes em bairros

perigosos ou mais desertos. Eu acreditei que

assim poderíamos despistar os homens do Sr.

Carlos.

– Mas ao que parece você está errado.

– Sei que não mereço perdão. Especialmente

agora... Mas na época, me pareceu que era a

única escolha para descobrir a verdade. E parece

que de algum modo torpe, eu estava certo, filho...

Os dois se entreolharam fixamente por um

instante, mas foram interrompidos pelos ruídos

do celular de Marco. Provavelmente os homens do

Sr. Carlos já estivessem chegando, pensou Matt.

Matt o agarrou e o empurrou com força na

porta do apartamento 21. Devido à rapidez do

movimento de Matt, Marco bateu a cabeça com

força na porta, quase desmaiando com isso.

Quando começou a recobrar a consciência, se

aproximou de Matt, e o olhou fixamente nos

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

olhos. Quase não se podia distinguir ou perceber a

expressão que trazia na face.

Marco não carregava raiva, ódio ou

desprezo, na verdade os músculos da face

estavam quase inexpressivos, como se estivessem

anestesiados. Mas os seus olhos eram profundos e

reveladores como nunca antes. Tinham ternura,

compaixão e suplicavam perdão.

Com esta reação de Marco, Matt ficou ainda

mais raivoso e passou a empurrá-lo com força pelo

corredor.

Marco não esboçou qualquer tipo de reação

de ataque, tentou manter-se de pé cada vez em

que fora empurrado.

– Interessante você ter escolhido se chamar

Matt... – disse Marco – Sua mãe queria que seu

nome fosse Mateus. Eu que não deixei. Preferi

Roberto, o nome de meu pai. – revelou ele – Mas

se bem me recordo, nunca lhe contei isso...

Com o último empurrão, Marco ficou a um

ou dois passos da janela, após ele terminar de

falar Matt ficou furioso e o empurrou com toda a

força em direção a janela, que se despedaçou

fazendo Marco cair rumo à calçada fria.

Por um breve instante enquanto ele caia,

sorriu tristemente para Matt. Mas ele não teve

tempo suficiente para ver qual expressão trazia

no rosto no momento em que o vira caindo.

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Finalmente os seus olhos se abriram, depois

de tanto tempo fechados, as imagens do mundo a

sua volta estavam turvas. A luz incomodava

bastante, à medida que os olhos foram se

acostumando com a claridade, e os primeiros

contornos à sua volta começaram a se definir, e

ele percebeu que estava em um lugar

desconhecido.

No entanto esta primeira impressão foi

rapidamente desfeita, não por alguma imagem ou

objeto conhecido ter sido flagrado por seus olhos,

mas sim, por uma exclamação de espanto, que

ouvira sendo seguida por uma voz muito familiar:

– Que bom! Já está acordando. – exclamou Sr.

Carlos.

Com o som desta voz familiar ele se

despertou mais rapidamente, percebeu que dois

livros de bolso estavam no criado ao seu lado.

Percebeu também que ao ouvir a voz do Sr Carlos,

isso significava que ele estava em sua mansão.

Pois ele dificilmente iria até um hospital visitá-lo,

se fosse o caso.

Quando Marco virou o rosto na direção do

Sr. Carlos, que sentiu uma leve, mas

desagradável dor de cabeça surgindo, como se sua

presença ali a estivesse causando.

Aparentemente o Sr. Carlos percebeu que

Marco ao acordar não estava bem. Ele levantou-

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

se e seguiu até a porta dizendo: – Descanse mais.

A médica que cuidava de Valda virá vê-lo.

Quando ele saiu, o mal estar de Marco

passou quase que imediatamente. Mas, como ele

temia estar sendo vigiado, ele manteve a mesma

expressão de desconforto, pôs a mão sobre a testa

e a massageou por uns instantes, na “tentativa”

de fazer com que a dor passasse.

Depois de alguns minutos quando começou a

se “sentir bem”, lentamente começou a mudar de

posição e começou a olhar fixamente a jarra com

água que estava ao seu lado, ele estava sedento.

Quando finalmente mudou de posição na

cama e levantou o braço para servir um copo

d’água, a porta se abriu de supetão, como se a

pessoa que fosse entrar estivesse sendo forçada a

isso.

Com a rapidez com que a porta foi aberta,

Marco se assustou e por reflexo recolheu o braço,

como se fosse uma criança sendo flagrada fazendo

algo de errado.

– Desculpe assustá-lo. – disse a médica

tentando disfarçar a maneira que entrou no

quarto – Deixe eu lhe ajudar com isso. Se o

Senhor conseguir, sente-se na cama para que eu

possa examiná-lo.

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Ele sorriu, pouco à vontade com a situação,

mas sentou-se como fora pedido. Após ele

terminar de beber água o exame foi iniciado.

– O que ocorreu comigo? Onde estou? –

perguntou Marco.

– Primeiro diga-me como se sente, Marco. –

retrucou ela finalmente falando novamente.

– Estou bem Dra. Marta. – disse Marco

olhando para o nome da médica bordado no jaleco

– Saudável como um cavalo! – exclamou ele

exibindo o físico para ela.

– Que bom – disse Marta sorrindo com sua

brincadeira – Bem, você teve uma concussão e

alguns arranhões leves por causa do... – ela

hesitou – Dormiu por uns dois dias, logo que

chegou aqui. Estamos em um dos quartos de

hospedes da mansão do Sr. Carlos. Você não está

reconhecendo este lugar, pois nesta área da casa

apenas entravam as pessoas que cuidavam da

Sra. Valda. Aqui é como se fosse um pequeno

hospital.

– Doutora, poderia me fazer um pequeno

favor? Já tem algum tempo que eu ouço um

zumbido nesse ouvido – disse Marco apontado

para o ouvido direito.

– Claro! Você está com sorte, estou com o

otoscópio aqui. – disse Marta – Sente-se e tente

não se mexer.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

– Certo.

Ela se aproximou dele e ficou de costas para

o espelho que ficava do lado direito de Marco.

– Você não deveria ter dormido por tanto

tempo. Foi só uma concussão... O velho Carlos

está intrigado com isso. Cuidado. – sussurrou a

médica – Não estou vendo nada demais. Mas é

melhor que procure um especialista. – disse ela já

se afastando do ouvido de Marco, num tom de voz

normal.

– Quem recomenda doutora?

– Tem um amigo meu. O nome dele é Dr.

Ítalo. É um grande profissional. Ele me ensinou

muitas coisas.

– Obrigado – agradeceu Marco sorrindo.

– Pelo que? – respondeu Marta como se

estivesse voltando a si – Não foi nada, é o meu

trabalho – atalhou ela para encobrir a estranheza

que acabara de ocorrer – Caso precise de alguma

coisa, pressione o botão no criado mudo.

Assim que a médica saiu do quarto, Marco

voltou a se deitar na cama, por um longo tempo

ficou deitado contemplando o teto, como se ele

estivesse buscando alguma coisa na mente.

Depois de um tempo, levantou-se e foi até o

espelho que estava do seu lado direito, se

aproximou bastante dele e começou a contemplar

seu rosto.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Sua aparência não era ruim, ele se parecia

com alguém que despertou depois de dormir

demais.

Aqui e ali, havia uns poucos arranhões, mas

eles eram um tanto estranhos, maioria deles

eram bastante rasos, mal romperam a pele.

Muitos deles pareciam ter sido feitos de propósito.

Além dos arranhões nenhum hematoma ou outro

tipo de marca foi notada por ele.

Enquanto ele se “examinava”, a porta abriu-

se calmamente, Marco continuou o que fazia

fingindo não ter ouvido nada.

O Sr. Carlos entrou no quarto e sentou-se na

mesma poltrona onde estava. Quando Marco viu

seu reflexo pelo espelho, virou-se calmamente e o

fitou por um breve instante.

– Desculpe entrar sem falar nada. Não

queria interrompê-lo – explicou Sr. Carlos.

– O Sr. não precisa se desculpar. Afinal a

casa é sua. Eu é que tenho que lhe agradecer pelo

cuidado que dispensou comigo.

– Tem razão. Mas educação e respeito são

coisas que prezo muito. E não posso exigi-los se

eu não oferecê-los antes. – disse o Sr Carlos se

levantando e indo até Marco para cumprimentá-lo

– É bom ver que você está bem.

– Estou realmente muito bem, obrigado. Mas

Sr. Carlos, qual o motivo de sua visita? O Sr. é

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muito ocupado, como sabemos, para dispensar

tanto tempo a um mero funcionário. – questionou

Marco incisivamente.

– Preciso lhe contar uma coisa – respondeu o

Sr. Carlos secamente – E talvez, você também

tenha algo a me dizer...

– Sr. Carlos, será que poderíamos conversar

no jardim? Já estou aqui há nem sei quanto

tempo e estou começando a me sentir sufocado.

Lá fora está um belo dia. E respirar um ar “novo”

me fará bem.

O Sr. Carlos não gostou da ideia, isso podia

ser visto na leve mudança que ocorreu em sua

face. Mas ele sabia que precisaria abrir mão de

coisas menores em favor de outras maiores, que

poderiam estar mais adiante.

Ele acabou concordando com a ideia, mesmo

que isso significasse que qualquer registro ou

meio de controle externo, não seria dificultado ou

até neutralizado. Os dois foram até o meio do

jardim, onde havia mais sombra naquele horário.

Assim que se sentaram, o Sr. Carlos

começou a contar o que havia ocorrido naquela

noite. Que Matt realmente o tinha jogado pela

janela, conforme seus homens relataram, e que

ele não havia morrido com a queda, pois logo

abaixo da janela havia uma caçamba de entulho

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

cheia de sacos de cimento vazios e caixas de

papelão, que amorteceram sua queda.

Foi nesta caçamba de entulho onde ele foi

encontrado e levado para a mansão. Alguns deles

o trouxeram para a mansão e os outros seguiram

Matt que iniciara a fuga.

A perseguição se seguiu pelas ruas da cidade

seguindo até o túnel que levava a ponte norte.

Mesmo a pista estando interditada, pelas

reformas no túnel, ele ultrapassou o bloqueio e,

poucos metros adiante, acabou batendo em um

caminhão tanque dentro do túnel causando uma

grande explosão, destruindo a entrada do túnel.

Para comprovar o que ele falava, mostrou a

Marco alguns jornais dos últimos dias que

confirmavam o ocorrido, mas alegavam que um

incêndio no meio do túnel, ocorrido durante a

madrugada, causou a explosão do caminhão

tanque e o desabamento da entrada. Obviamente

a perseguição nunca ocorreu oficialmente e por

isso não fora citada.

Com a constatação do ocorrido, Marco largou

o jornal sobre a mesa e começou a chorar, quase

que silenciosamente.

O Sr. Carlos tentou se manter em silêncio,

mas não resistiu a oportunidade que surgiu: – O

que houve? Por que está chorando?

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

– Agora nunca mais conseguirei o que eu

buscava! – respondeu Marco, começando a se

desesperar.

– Se acalme! Você não pode se descontrolar

assim! Você acaba de sair de um momento muito

delicado – atalhou o Sr Carlos, percebendo que

havia perdido a oportunidade, se é que ela

existiu.

Quando finalmente Marco começou a se

acalmar, respirou fundo e deu a explicação que os

olhos do Sr. Carlos exigiam dele: – Não consegui

nada com ele... Logo que ele chegou até mim, e

percebeu que eu trabalhava para o senhor, ele

ficou furioso e se sentiu traído. Antes mesmo que

eu pudesse explicar alguma coisa, ele começou a

me agredir. Quando o meu celular tocou, ele

achou que eram os seus homens que estavam

chegando. E me empurrou pela janela.

– Entendo... Defenestração... Nunca pensei

que ele fosse capaz disso...

– E agora Sr. Carlos? O que eu farei? Agora

que ele não existe mais. Minhas esperanças de

descobrir a verdade se foram com ele... E sua

promessa? Como a cumprirá agora? Me prometeu

que iríamos descobrir o que tinha ocorrido com o

meu filho, se eu lhe entregasse o jogo! E agora

tudo acabou...

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

– Se acalme. Encontraremos uma solução

para isso. Ele não deve ser o único no que faz... –

justificou o Sr. Carlos. – Há alguma coisa que eu

possa fazer por você enquanto isso? – disse ele

tentando se desvencilhar de Marco.

– Eu gostaria de voltar para minha casa. –

respondeu Marco secamente.

– Vá se trocar no quarto onde você estava, lá

estão algumas roupas suas. Providenciarei que

seja levado a sua casa. Tire uns dias de folga,

quando estiver pronto retorne ao seu trabalho.

O Sr Carlos saiu, para resolver o que era

necessário para que Marco fosse levado para sua

casa. Fez isso pessoalmente, principalmente por

precisar de um pretexto para sair de sua

presença, por perceber que nada havia para se

tirar dele.

Antes de sair, pediu a um dos seguranças

que acompanhasse Marco até o seu quarto. Marco

seguiu com a companhia do segurança até lá, mas

quase sempre tinha a impressão de ver Matt pelo

caminho até o quarto. A notícia o tinha abalado

profundamente.

Quando estava pronto para sair, seguiu até o

carro ainda na companhia do segurança. Ao

sentar-se no banco traseiro, viu que os dois livros

que vira no criado ao lado da cama estavam ao

seu lado.

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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Ele percebeu que eram os livros que sempre

levava consigo. Eram: Teoria dos órgãos: Zang Fu

e Tai Chi Chuam. Os folheou e percebeu que

faltavam nos dois a primeira página onde havia o

título dos livros e a assinatura de sua esposa.

Naquele momento ele não tinha ânimo para

ocupar sua mente com isso. Passou a olhar o

mundo pelas janelas do carro.

A paisagem dos bairros foi mudando e logo

ficando cada vez mais familiar. Num determinado

momento, ele disse num sobressalto: – Pare o

carro próximo aquele restaurante!

Devido ao desastre no túnel da ponte norte,

que era próximo dali, tiveram dificuldade para

conseguirem estacionar o carro devido a lentidão

no trânsito.

Ao entrar no restaurante, Marco logo seguiu

até a mesa do canto esquerdo, que era a única

disponível.

Além do nome, o restaurante nada tinha de

americano, esse era mais um dos resíduos na

mente de Matt, devido aos efeitos da medicação

que precisava tomar.

Um homem baixo de olhos irritados,

rapidamente o procurou, levando o cardápio e

uma xícara de água morna. Seus olhos estavam

irritados, devido ao clima seco daquele dia.

Page 110: Vidas Digitais

110

Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Marco pegou o cardápio e sorriu ao homem,

que tentou retribuir o sorriso, mesmo que

tristemente. Ele pegou o saquinho de Earl Gray

que fora deixado por Dino sobre a mesa e o

mergulhou na xícara. Ao invés de jogar fora o

envelope do chá ele o guardou em seu bolso.

Enquanto aguardava o Earl Gray ficar no

ponto, olhou rapidamente o cardápio, mas nada

nele o interessou.

Como o chá ainda não estava no ponto,

passou a fitar a capa dos livros que trouxera, e

sempre que podia olhava através da janela e via

que o motorista ainda o aguardava no carro.

Quando o cheiro do Earl Gray indicava que

estava pronto, antes mesmo que ele pudesse

pensar em tocar na xícara, Dino apareceu e

retirou-a da mesa, em seu lugar colocou um prato

de fetuccine al pesto, ao sair levou o cardápio

consigo, sem falar palavra alguma com Marco.

Marco comeu o que lhe fora servido, apesar

de ele não ser um dos seus favoritos, acenou

pedindo a conta e Dino retornou com uma pasta

de couro. Marco verificou o valor e ao colocar o

dinheiro na pasta a derrubou, Dino abaixou-se

com dificuldade, pegou-a juntamente com os

livros que também caíram. Antes de sair ele

agradeceu a Dino, que correspondeu com a

mesma cortesia, agora um pouco mais animado.

Page 111: Vidas Digitais

111

Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Ao chegar em casa, parou por um longo

tempo em frente ao quadro pendurado sobre o

sofá, assim como no apartamento em que levou

Matt. Nele, Marco, a esposa e o filho estavam

retratados. A decoração de sua casa era idêntica a

do apartamento onde estivera.

A fotografia foi tirada na primeira vez que

puderam sair juntos de férias. Na época foram

visitar o pai de Marco numa cidadezinha do

interior, a última vez que pode ver seu pai vivo.

Enquanto olhava para o retrato ele não

chorou, se entristeceu, nem mesmo respirou fora

do compasso. Já não havia mais motivos para

isso.

Por fim passou a olhar ao mesmo tempo sua

versão mais jovem e a paisagem de fundo daquela

cidade onde cresceu.

– “Como estarão as coisas por lá?” – pensou

ele. – “Será que ainda há algum morador vivo que

me conheça?”

Ele seguiu até o seu quarto e tomou um

longo banho. Vestiu suas melhores roupas,

preparou uma pequena mala, ligou para o táxi e

rumou ao terminal rodoviário.

Chegando lá, pegou o primeiro ônibus para o

interior do estado.

Page 112: Vidas Digitais

112

Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Horas mais tarde, quando o ônibus já estava

quase vazio, ele fez uma pequena parada num

posto qualquer no meio da estrada.

Marco pegou o livro Teoria dos órgãos: Zang

Fu e folheou-o. A primeira página estava lá

novamente como que por mágica.

– “Devo estar mais cansado e desatento do

que nunca...” – pensou Marco.

Ao virar a página que não deveria estar ali,

havia uma mensagem:

Obrigado por sempre se importar comigo.

Mesmo não tendo certeza se eu era ou não real...

Usarei os conhecimentos destes dois livros para

me cuidar melhor.

O que queria me ensinar com estes livros, já

aprendi enquanto passei por aí...

De agora em diante estarei mais equilibrado,

não se preocupe, sei cuidar de mim mesmo.

Uma hora dessas, talvez nos veremos de novo

pai.

M.

Page 113: Vidas Digitais

113

Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

Marco baixou a vista, respirou

profundamente e sorriu.

O ônibus deu um solavanco e ele acordou

assustado. O ônibus ainda estava cheio, porém

silencioso, não estava parado, mantinha-se em

movimento constante.

Ele procurou os livros e realmente as

páginas estavam lá. Mas nenhuma mensagem

estava escrita no Teoria dos Orgãos: Zang Fu.

Apenas a assinatura de sua esposa estava lá.

Mas no Tai Chi Chuam, na parte de trás da

primeira página, que também reapareceu,

estavam duas passagens de ônibus da mesma

empresa em que agora o transportava.

No verso de uma delas, havia uma chave

pregada com fita, e nesta estava escrito: Agência

dos correios caixa 001 – veritas.

Era uma passagem de ida e outra de volta,

para a cidade seguinte até onde ele iria, a ida

para o dia seguinte e a volta para dois dias

depois.

Marco fechou o Tai Chi Chuam, com as

passagens dentro, o guardou cuidadosamente

dentro da mala junto com o outro livro.

Ainda faltavam algumas horas para que ele

chegasse a seu destino. A oeste o sol se punha no

meio dos campos que se descortinavam a sua

frente, através da janela.

Page 114: Vidas Digitais

114

Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo

O dia terminava. Mas para ele, estava

apenas começando.

Page 115: Vidas Digitais

PUZZLES

_______________

Petter

xistia ainda uma última locadora no

bairro onde eu havia crescido. Este bairro

ficava na área mais afastada da cidade,

distante da produtividade e do foco. Um lugar

para o qual as pessoas só voltavam para dormir

no final de um dia de trabalho. Reencontrei a

locadora em uma peregrinação nostálgica. Alguns

dos locais mais felizes da minha vida não

existiam mais, mas a locadora estava lá, um

portal anacrônico. O dono dela ainda era o

mesmo, agora velho, magro e barbudo, cheirando

E

Page 116: Vidas Digitais

116

Puzzles – Petter

a tabaco, com um cigarro pendendo da boca.

Sentava em uma cadeira de plástico que havia

sido branca, com um controle de Mega Drive em

mãos. Não tirou os olhos caídos da tela: um

personagem corria cercado por zumbis em um

shopping, ao som de uma trilha sonora frenética.

Passei pelas prateleiras empoeiradas e vi que

nenhum jogo estava alugado. Escolhi Super

Metroid, Secret of Mana e uma fita com o rótulo

quase todo retirado, mas que eu supunha ser

Altered Beast pelo pouco papel que restava.

Perguntei para o dono do lugar que jogo era

aquele.

— Este é um difícil – Disse, já atrás do

balcão, com o rosto baixo.

Quando saí do lugar, olhei para trás e vi de

longe o velho sentado, olhando para mim. Não

consegui apagar a sensação absurda de que havia

esperado apenas por mim todos esses anos.

Quando olhei para trás de novo ele estava

abaixando o portão de aço da loja, coberto de

grafite.

Em casa, levei algum tempo para achar os

consoles escondidos em alguma gaveta. Joguei

Super Metroid até Brinstar.

Troquei de vídeo game e botei a fita sem

rótulo.

Page 117: Vidas Digitais

117

Puzzles – Petter

Não havia tela inicial. O protagonista era

alguns poucos pixels, que de tão poucos e tão

pequenos apenas sugeriam uma humanidade.

Parecia ter uma faca na mão. Você seguia em um

labirinto escuro, sala por sala, matando inimigos

e solucionando puzzles para abrir portas. Os

problemas lógicos eram variados e aos poucos iam

se tornando mais complexos; depois de algumas

semanas eu já passava mais tempo tentando

resolvê-los do que trabalhando, sem conseguir

deixar de pensar neles. Eu imaginava a

dificuldade dos enigmas subindo até um nível

sobre-humano, fazendo com que terminar o jogo

se tornasse impossível – um jogo feito por uma

entidade superior, indescritível, terrível. A partir

de certo ponto os enigmas passaram a utilizar

palavras, a língua sendo o japonês, o que me

obrigou a aprendê-la. Havia uma erudição

inerente ao jogo; questões que só podiam ser

resolvidas com ajuda de livros raros e

especialistas de diversos campos. Consultei com

tradutores de aramaico e cantonês, pois alguns

dos assuntos referenciados só podiam ser

encontrados nestas línguas. Viajei para o interior

da Índia à procura de mais um livro. Aos poucos

entendi que este jogo era como cofres dentro de

outros cofres. Quem guardaria algo insignificante

em um lugar de máxima segurança? Um piadista

era uma possibilidade, mas havia algo de pesado

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118

Puzzles – Petter

e soturno neste jogo que me impedia de acreditar

em um final assim. O puzzle seguinte vinha em

uma língua que eu não conhecia. Tirei uma foto

da tela e a levei a diversos especialistas

linguísticos, sem nenhuma resposta positiva.

Restou-me a tentativa aleatória. Escolhi estes

símbolos desconhecidos em combinações

incontáveis. Depois de três anos, tentando todos

os dias, anotando cada combinação já testada,

achei a certa.

A porta se abriu. Atravessei. A tela preta.

“Fim.”

Uma música infantil e feliz. O protagonista

andando para cima, saindo da tela. Então tudo

ficou preto. Os créditos subiram. Apenas uma

pessoa: Hirokuni Kenmo, Akesaitomo 22,

Hokkaido.

Fiquei ali, por um tempo olhando a tela

preta que tocava uma musiquinha típica de 16-

bits, o meu quarto escuro, apenas com a luz

azulada da televisão de tubo. Viajei para o Japão

na semana seguinte.

Dirigi por horas, procurando o endereço dado

nos créditos, até por fim avistar um castelo

embrenhado entre as árvores. Havia a

possibilidade de Hirokuni estar morto, o que me

deixava apreensivo.

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119

Puzzles – Petter

Dei uma volta no castelo. Dei uma segunda

volta, surpreso por notar o quão cansado e

nervoso eu estava, ao ponto de não perceber a

porta do lugar. Em seguida constatei que, de fato,

não havia porta. Pelo menos a princípio. Este foi o

primeiro puzzle de uma série que tentava me

impedir, sala após sala, de chegar ao topo do

castelo. Alguns deles eram parecidos com os que

eu havia solucionado no jogo. O interior, com suas

paredes de pedra, era um lugar estranho. Vivi

nove anos naquele castelo, me alimentando de

enlatados, até chegar à última sala.

Quando cheguei, fiquei alguns minutos

olhando para o grande cadeado e para as grandes

correntes depois de girar a chave. Entrei.

Hirokuni estava sentado em um escritório amplo,

lendo um livro. Era esquelético, careca e muito

enrugado. A sala era grande, com uma biblioteca

em volta e uma katana ao fundo. Entre eu e a sua

mesa existiam variadas plantas, iluminadas por

uma abertura gradeada no teto. Era possível ver

insetos por todos os cantos.

— Hirokuni! — Eu disse, com voz rouca.

Hirokuni se levantou. Apenas o barulho

abafado do livro sobre a mesa. Aproximou-se

devagar. Parecia estar muito emocionado.

— Você é o primeiro a terminar o jogo.

— Havia outras cópias?

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120

Puzzles – Petter

— Sim. Mas você é o primeiro, tenho certeza.

Ninguém terminaria sem vir me visitar. A

vontade necessária para terminar os trariam até

mim.

Conversamos por algumas horas. Eu o

conhecia bem. De vez em quando, entre uma frase

e outra, Hirokuni pegava um inseto que estivesse

passando perto e o comia. Não conseguindo mais

me conter, finalmente perguntei.

— Hirokuni, estou pronto. Qual é o segredo?

— Que segredo?

— Do jogo. Tudo sugere um gran finale. O

jogo continuando na realidade, toda a dificuldade

e a genialidade por trás de cada puzzle... O final

tem que ser igualmente brilhante. O final da

minha dedicação total precisa de um significado.

Ele sorriu. Eu não conseguia identificar se

era um sorriso de pena ou de satisfação.

— Os enigmas eram perguntas, seria

contraditório eu oferecer uma resposta no final. É

claro que eu tinha as respostas, mas era só

quando você as dava que o jogo ia adiante. Não é

suficiente, o ato de resolver cada um dos

problemas? Estamos unidos por algo que apenas

nós temos em comum no mundo, um trabalho

colossal partilhado. Eu sou o prêmio, posso

oferecer a você tudo que sei. Você me libertou,

Page 121: Vidas Digitais

121

Puzzles – Petter

estou grato. É até mesmo uma história

romântica.

— Eu acho que não. — Respondi. Hirokuni

me olhou sem dizer nada, então se virou, indo

olhar a sua enorme prateleira entupida de livros,

e continuou falando, sem se virar:

— Na minha compulsão, me trancafiei, porta

atrás de porta, camadas me separando do mundo.

Algumas pessoas têm um desejo incondicional de

liberdade ou de decodificação, como você. Não são

vocações raras. Mas cada coisa tem um oposto. A

minha vocação sempre foi a oposta. Acredita que,

quando jovem, cometi um crime que não queria

(que, na verdade, me causou repugnância) só para

ver se a polícia conseguiria me descobrir, e

também para passar um tempo na cadeia? Veja!

— Apontou para uma caixa de metal quase

pequena demais para um homem, que ficava em

um canto da sala. Ela tinha pequenos furos no

topo para a entrada de ar.

— Estava prestes a me trancafiar nesta

última caixa e morrer ali de fome, em posição

estranha. Simplesmente porque não consigo

segurar a minha compulsão de criar desafios. A

racionalidade é parte essencial minha, como pode

ver na criação dos puzzles, mas ela só existe junto

à compulsão. A racionalidade a serviço da

compulsão irracional, este é o meu trabalho de

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122

Puzzles – Petter

vida. Ainda não entrei na caixa porque há anos

trabalho na construção do enigma ideal, perfeito,

que me tranque ali. Vamos embora, não vejo a

rua há muitos tempo. Como são os novos

videogames?

Eu puxei a minha faca e me aproximei aos

poucos.

— Mente! Você é o chefe final. Sim. E se

esconde, se camufla como se fosse outra coisa.

Você é o último puzzle.

— Está louco. Acabou, não tem mais

nenhum passo. Tinha que acabar em algum

momento.

— Talvez, talvez seja preciso torturá-lo.

Então dirá o que realmente é o final. Entendo.

Você quer que eu tenha um comprometimento

total. E o seu, você está disposto a sofrer para que

eu chegue ao fim. Só dirá o final no último

suspiro. Talvez nem mesmo saiba esta frase final,

esta frase que vale todo o esforço, e por isso

precisa de mim, para tirá-la de você. Vou tirar ela

de você.

Corri atrás dele, que foi buscar a katana na

parede e conseguiu se virar a tempo para se

defender com a bainha. O confronto não era muito

bonito ou excitante: estávamos fracos, cansados e

lentos. Mas ele estava mais cansado. Derrubei a

katana das mãos de Hirokuni e caímos os dois de

Page 123: Vidas Digitais

123

Puzzles – Petter

forma patética no chão. Ele se arrastou para a

caixa, se espremeu ali como um contorcionista,

perna por cima da cabeça, e se fechou. Tentei

abrir, xingando. Como havia dito que ainda não

tinha um enigma pronto? Eu podia ver uma tela

digital por cima da porta com uma série de

símbolos. Supus que, apesar de não ter tido tempo

de bolar a pergunta perfeita, ele tinha já pronta

uma segunda, inferior, para um caso como este.

Isto me dizia que o enigma atual não era

impossível. Me pus a trabalhar, mas quando

consegui abrir a caixa, depois de alguns dias sem

pensar em outra coisa, correndo contra o tempo,

ele já estava morto. Eu o matei. Este era um teste

de confiança. Ele havia posto a sua vida nas

minhas mãos, acreditando que eu seria capaz de

abrir a caixa a tempo. Pensei, desesperado, que

talvez até mesmo me dissesse o próximo passo se

eu o salvasse. Enterrei-o e voltei para o castelo. O

meu trabalho de vida se resumia a um cadáver e

uma série de portas abertas. Sem um objetivo, o

tempo se arrastava. A minha vida não evoluía

como antes, apenas se mantinha, se decompunha

lentamente. Ali, naquele castelo, na última sala,

passei a entender melhor o ponto de vista de

Hirokuni. Sonhei com um mundo alternativo no

qual Hirokuni criaria puzzles incontáveis e eu os

quebraria, sempre um passo atrás, até o fim dos

tempos. Contemplei o suicídio. Pensei no meu

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124

Puzzles – Petter

sonho. Os únicos resultados de todo o meu

esforço: portas abertas e um cadáver... Fui até

onde havia enterrado Hirokuni, debaixo de uma

árvore solitária. Cavei, puxando a terra com as

mãos. Quebrei o caixão e tirei o cadáver ainda

não totalmente decomposto. Vomitei sobre ele.

Fiz uma autópsia desajeitada, suja, abrindo cada

canto do seu corpo. No estômago, uma pequena

placa de metal com inscrições. Um endereço, mais

uma pergunta.

Page 125: Vidas Digitais

KONTINUUM

_______________

E. Reuss

im”, respondi. Cada centímetro do

meu corpo mergulhando numa

dormência induzida pelo medo, não só

o medo de perder Michele, mas também de

encarar o mundo físico, de perceber o tempo da

forma como ele transcorria para os outros, e de

acabar revelando aquelas memórias desbotadas

que ali dentro eu sabia que se recusariam a

retornar para sempre. Por isso preferi continuar

jogando.

“S

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126

Kontinuum – E. Reuss

Michele me olhou com um sorriso contido,

disfarçado sob a tristeza de um rosto que poderia

muito bem ser o de outra pessoa. E eu podia

senti-lo, tão bem quanto sentia as linhas de

código do Kontinuum fluindo através de mim,

para depois se agruparem no código-fonte

implacável do jogo, dentro de loops infinitos.

Percebi que tudo o que eu tinha era uma obra do

Kontinuum, e senti uma aproximação quase

sagrada, uma devoção despertada pelo medo. Lá

fora, o céu parecia ter assumido uma decrepitude

que se assemelhava à morte, coberto por uma

camada acinzentada e intoxicante que parecia ter

sido expelida das fornalhas do inferno.

Fechei os olhos e busquei alguma memória

que me fizesse dormir. Lembrei, ironicamente, da

sala de reuniões do prédio da SkyLamb, onde na

época trabalhava como programador. O fedor da

falsidade corporativa imperava, e homens de

ternos, alguns fumando cigarros, outros bebendo

água com gás em taças abobadadas, todos, sem

exceção, alisando suas gravatas com certa

regularidade, se organizavam ao redor da mesa

circular em uma sucessão de clichês e risadas

extravagantes. Camisas eram puxadas, ombros

eram apalpados sob trajes com caimentos

perfeitamente ajustados pelo mesmo alfaiate, que

seria uma carcaça invisível ou a recordação do

que fora um homem que viveu a vida inteira

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127

Kontinuum – E. Reuss

ajoelhado diante de coxas e pintos poderosos,

preparado para morrer antes de completar a

próxima lapela. E ele morreria sem saber que

durante esse tempo todo sua mente poderia ter o

salvado do sofrimento.

“Nos sonhos, as memórias são meros

objetos...”, eu discursava em um tom meio

profético, “que levamos desse universo como

lembranças deformadas de algo que já fomos,

uma herança totalmente sobrescrita e modificada

pelos atributos dos sonhos... E se pudéssemos

escolher quais dessas memórias ignorar? Ou

melhor ainda... Quais dessas substituir por uma

versão quase idêntica, mas levemente...

alterada?”, com os olhos cheios de sarcasmo, “um

tipo de polimorfismo onírico, he-he”. Eles se

entreolhavam e alguns já me ameaçavam com

suas risadas contidas. “Kontinuum é um jogo

revolucionário, uma interface funcional que ajuda

o jogador a criar aquilo que todos temos o desejo

de criar: um Universo... Inteiramente do zero.

Basta ingerir um comprimido de Zopiclona e

colocar esses eletrodos na cabeça”, disse, e foi o

suficiente para que os executivos caíssem em

gargalhadas histéricas e me expulsassem da sala.

Aquela reunião, aparentemente, havia sido

transmitida por meio de algum sistema de

comunicação secreto, construído em uma

Page 128: Vidas Digitais

128

Kontinuum – E. Reuss

linguagem desconhecida, que propagava aquelas

exibições de imbecilidade numa rede de

programadores, recepcionistas e analistas

entediados com uma necessidade quase fisiológica

de ridicularizar os outros. Assim que deixei a sala

de reuniões, me tornei, simultaneamente, uma

piada de mau gosto que envolvia histórias de

consumo exagerado de cogumelos, que levavam a

viagens alucinógenas pelo reino dos sonhos e

culminavam com a minha fixação transexual de

querer cortar meu próprio pênis.

Abri os olhos e senti a respiração de Michele

assumindo um ritmo decadente, seu corpo

lentamente cedendo ao sono iminente,

acompanhando a escuridão da noite, que dissolvia

todas as almas em sua sombra úmida e fria.

Menos eu. Decidi jogar, e mais uma vez senti a

culpa inexplicável. Kontinuum havia se tornado

uma perversão da qual eu não conseguia escapar.

Eu o havia programado para se comportar assim,

como um universo pacífico, acolhedor, e, ao

mesmo tempo, inexorável, inabalável, pois eu

havia escolhido ignorar a entropia, o tempo e a

própria morte. Nada poderia interferir na sessão,

muito menos o mundo real. Mas naquele dia, de

alguma forma, um cheiro podre de morte

penetrou aquela região profunda, onde de repente

se viu transformado em metáforas, se

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129

Kontinuum – E. Reuss

materializando à medida que me resgatava da

obscuridade.

Caminhei até o quarto, tentando calcular o

tempo que passei jogando, e encontrei o corpo de

Michele sobre a cama. Os lençóis adquiriram um

tom marrom-avermelhado, a podridão lentamente

consumindo tudo a sua volta. Sua pele tinha a

textura morta de uma rocha, quase como se ela

tivesse acabado de sair da cúpula de alguma

catedral abandonada, um anjo desfigurado

coberto por uma camada repulsiva de umidade,

ferrugem e poeira. O odor era insuportável, o pior

cheiro de podre que eu já sentira, tão asqueroso

que penetrava a alma. Ao lado da cama, me

ajoelhei e comecei a chorar desconsoladamente.

As lágrimas se acumulavam em meus olhos numa

linha fria de um choro contido, cada vez mais

espessa, uma dor no peito se intensificando, a

própria manifestação de uma esperança que

parecia ser compartilhada até pelas lágrimas, que

se recusavam a descer como se esperassem o

momento em que Michele voltaria a respirar.

De repente, a tristeza se dissipou e ascendeu

no seu lugar uma curiosidade infantil e cristalina,

provocada por aquela visão distorcida pelas

lágrimas de um ponto verde se manifestando no

meio do rosto de Michele como o prelúdio de

alguma revelação divina. Me aproximei e estreitei

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130

Kontinuum – E. Reuss

os olhos, e vi, brotando das profundezas de seu

globo ocular, um minúsculo botão de flor,

germinando com a ajuda de um caule tão estreito

quanto um barbante. Olhei as folhas sobrepostas

do broto, de um verde tão vivo que pareciam

emitir luz própria. Naquele momento, eu não

sentia mais a perda, como se Michele ainda

estivesse presente, apenas sob outra forma,

transformada pela natureza, assim como

Kontinuum transformava suas funções em

passeios oníricos por paisagens tão distorcidas e

distantes que era quase impossível acreditar que

foram criadas por linhas de código tão bem

estruturadas. Olhei para o cadáver sobre a cama,

como se fosse a sobra de uma ecdise reptiliana,

apenas a carcaça desocupada destituída de

qualquer tipo de espírito, e pensei no que poderia

fazer para tirá-la de lá. Ninguém nunca sabe o

que se deve fazer quando se tem um cadáver em

suas mãos. “Chamar a polícia?”, pensei, e quando

o policial de plantão atendeu ao telefone, me fez

dezenas de perguntas para as quais eu não tinha

resposta. “Ignorante”, ele me disse, com uma voz

tão aguda que poderia muito bem ser o guincho

de um porco se no meio eu não conseguisse

distinguir as palavras, “como é bonita a vida

desses viciados, ã? Não sabe nem por que a

mulher apareceu morta. Ããã?”. Não sabia se

aquela era, de fato, uma pergunta. “Não sou

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131

Kontinuum – E. Reuss

viciado”, disse, mas eu era. “Claro que não”, ele

disse, e ficou em silêncio. “Vocês não podem

buscar o corpo?”, eu disse e ele “Éééééééééé”, em

um grito tão longo quanto doloroso, do qual tive

que me afastar para proteger meus ouvidos.

“Não”, me respondeu, ao fim da tortura, “Liga pro

SVO, os caras já tão mais acostumados a carregar

esses bostas”. A linha ficou muda.

Mais uma vez fui atraído pela planta e

larguei o telefone. Puxei-a delicadamente pelo

caule e pude sentir a dor de quase ser partido,

enquanto as raízes se desprendiam do olhar

vitrificado, como garras cadavéricas tentando se

agarrar em vão a uma máscara de mármore, fria

e escorregadia. Olhei para ela contra a luz

ofuscante do sol e lembrei que devia colocá-la em

um recipiente com terra.

Carreguei a planta para o lado de fora, onde

podia ouvir marteladas e buzinadas, gemidos,

animalescos e humanos, cantos de pássaros em

um desespero compartilhado pela perpetuação

das espécies, risadas de homens encharcados de

suor, suas britadeiras e serras circulares

castigando o asfalto, e o tintilar de garfos e facas

em pratos de porcelana, ecoando de casa em casa

e se misturando ao vento quente e úmido que

carregava essa profusão de sons delirantes como

se quisesse me fazer duvidar da aparente

Page 132: Vidas Digitais

132

Kontinuum – E. Reuss

tranquilidade da vizinhança. Desgosto, foi o que

senti. Tal como eu sentia toda vez que eu

penetrava o perímetro do mundo real. Me ajoelhei

ao lado dos sapos de gesso que habitavam a

sombra dos arbustos de Murta, plantados por

Michele, que acreditava que uma cerca-viva era o

que precisávamos para tornar nosso lar mais

convidativo, o lar de um relacionamento

construído por pessoas maduras. Ironicamente, os

arbustos se recusavam a se reproduzir e a crescer

mais do que trinta centímetros, enquanto minha

coleção de sapos de gesso continuava a crescer

exponencialmente, cada um com sua própria

personalidade, sua própria expressão facial,

esculpida por alguém em uma oficina que não

recebia a luz solar há décadas, de certa forma um

conhecedor da psicologia do olhar, que numerava

aquelas expressões relembradas e transferidas

para o gesso de acordo com a profundidade do

trauma. Ajeitei meu sapo preferido, um sujeito

esférico e deformado vestindo uma farda militar.

Seu olhar, cortante e sofrido, parecia indiferente

à beleza que o rodeava. Mesmo assim, meio que

pedi permissão, em silêncio, para roubar um

pouco de sua terra e colocá-la em um copo plástico

para sustentar as raízes da planta.

Por cima dos arbustos, Liro me encarava

com um olhar estreito, e eu o encarava de volta.

Às vezes, conseguia extrair de seus olhos

Page 133: Vidas Digitais

133

Kontinuum – E. Reuss

mensagens complexas, de um jeito que somente

ele poderia transmitir. Liro se abstém das

palavras e prefere se comunicar por meio de

grunhidos. Seu rosto adquiriu a rigidez de uma

rocha após um AVC e em respeito aos ouvintes ele

evitava pronunciar as consoantes, caso contrário

eles se viriam cobertos por baba. Mas algumas

palavras ainda podiam ser ouvidas saindo de sua

boca, naquelas horas solitárias em que o dia

lentamente cede à escuridão e os sons de repente

se tornam abafados, produzindo ecos que antes

não existiam, ressoando como sussurros

fantasmagóricos que acompanham os sons

originais e, às vezes, se desprendem, caminhando

sozinhos pelas sombras até atingirem ouvidos

desconhecidos, que pensam em sua inocência

estarem sonhando. Eu sabia que não estava

sonhando, era Liro cantando numa melodia ébria

e banhando-se numa baba densa. Naquelas

madrugas, a heroína ainda borbulhante se

prendia a consciência, penetrando lentamente

numa região onde memórias de repente se vêem

deformadas por um distúrbio químico, sugando

sua energia em troca de um prazer quase carnal,

quase astral, quase transcendente. Liro então

dormia e logo acordava como o Liro de

antigamente. “Ãooaoeio? Ããã... Ãoeuiuaua?”, ele

perguntou, com um olhar confuso. “Ééé...”,

hesitei, ainda tentando me recuperar de meus

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134

Kontinuum – E. Reuss

devaneios, mas por fim respondi, “vamos”. E

fomos para o Bar do Ventinho. Decidi colocar o

broto no bolso interno do meu casaco, temendo

que ele fosse chamar a atenção de algum vândalo

com uma sensibilidade extremamente bem

desenvolvida. Em poucos minutos, comecei a

sentir cócegas no lado esquerdo do peito, que logo

se tornaram picadas irritantes, mas de qualquer

forma, toleráveis. As picadas se intensificaram e

se tornaram cada vez mais profundas, até que

chegamos ao bar do ventinho, em silêncio, Liro

com o olhar da heroína, eu recurvado, como se

reverenciasse constantemente uma autoridade

invisível, sentindo minhas vísceras serem

despedaçadas por seja lá qual fosse a força

sombria que habitava aquele invólucro vegetal.

Nesse momento, Michele já não ocupava minha

mente, mas figurava em algum ponto obscuro, um

lugar destinado a entes esquecidos e memórias

que emergiriam anos depois acompanhadas pela

doença e pelo desgosto, em cômodos fedendo à

urina e a remédios vomitados, esperando que

fossem resgatadas na forma daquele humor negro

tão característico da Morte.

Ventinho era um homem pequeno, fraco, a

aparência de um homem que ficou ao relento

grande parte de sua vida e acabou encolhendo por

isso. Suas roupas baratas e enrugadas pareciam

uma extensão de sua pele quebradiça, quase como

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Kontinuum – E. Reuss

se houvessem absorvido a textura dos papéis que

cobriram seu corpo durante o tempo em que

morou na rua. Ventinho servia cerveja para uma

mesa de padres, todos vestindo camisas claras e

calças sociais pretas, devidamente armados com

crucifixos de madeira em seus pescoços.

Sentamos e o esperamos, e depois de alguns

minutos ele se manifestou como um espectro, uma

presença incorpórea da morte ou de algo ainda

pior, envolto por aquela manta podre fedendo a

centenas de banhos não tomados e cigarros

consumidos. “Epa”, cumprimentei indisposto, e

não recebi resposta. Me perguntei porque tinha

amizades tão estranhas, então senti uma fisgada

no peito. O broto. Ventinho aproximou sua cabeça

do centro da mesa, mantendo seus olhos vidrados

em mim, em Liro e em algo sentado ao nosso lado

para o qual olhamos em vão tentando enxergar.

Nos aproximamos. “Vocês perceberam...? O

degrau?”, ele disse. “Que degrau?”, perguntei,

olhando para a rua. “O primeiro degrau?”,

continuou, “se afastando do chão? Há uma

semana já...”, e abaixou a cabeça, “Gnomos...?”.

“Gnomos?”, eu disse, “Desgraçados...”, ele disse,

ficando em silêncio assim que um de seus clientes

passou ao nosso lado. “Eles querem levantar a

cidade... e construir uma outra cidade por baixo,

se estendendo...”, abrindo os braços e os movendo

de um lado para outro, fazendo questão de

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Kontinuum – E. Reuss

apontar para todas as direções, “e aos poucos,

quando tiverem içado nossa civilização inteira,

construirão acessos ocultos, dentro das igrejas,

dos hospitais e... Até das casas, cara. Sugando a

população inteira para o inferno, um habitante de

cada vez”. Liro segurava o riso, prestes a perder o

controle, e eu tocava o seu braço com delicadeza,

como que pedindo para que ele mantivesse a

postura. Os olhos de Ventinho alternando seu foco

entre Liro, eu e a terceira presença, a testa

franzida, desaprovando nosso silêncio. “Ó u

eaaoaeia e ioo?”, Liro disse, recebendo um olhar

cortante de Ventinho, seus olhos se estreitando

ainda mais, passando do ponto em que se podia

dizer se estariam abertos ou não. “O que o

golfinho falou?”, ele disse, “’Você acredita em

Gnomos?’”, e eu traduzi, tentando amenizar as

palavras. “Falta de um nome melhor”, disse,

querendo explicar, “Pigmeus, será? Eu os

chamaria de demônios, se não estivessem tão

próximos”, com uma ênfase curiosa na palavra,

“apesar de viverem embaixo da terra, numa

profundidade em que podem até sentir o calor...

Vivendo embaixo de pedaços imensos de rocha,

agrupando estados inteiros, erguidos com bilhões

de parafusos, unidos de dois em dois por um tipo

de bigorna que funciona como um eixo, que na

medida em que vai sendo girada afasta esses

parafusos e ergue a rocha...”, e agora a

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Kontinuum – E. Reuss

gesticulação de Ventinho havia adquirido uma

qualidade quase epilética. “E aqueles seres

diabólicos”, ele continuou, se levantando em meio

a um público cada vez mais atento, “baixos como

gnomos, adaptados para viver em uma fenda de

um metro de altura, com colunas deformadas e

joelhos estirados pra frente, mudando o centro de

gravidade dos seus corpos, fazem qualquer um

duvidar de que uma vez já foram humanos”, seus

olhos então se encheram de lágrimas, enquanto

ele tentava imitar os seres que descrevia, mais

preocupado em não cair no chão do que com os

olhares confusos que se espalhavam pelo bar.

Olhávamos atentos, mas eu sentia meu corpo

secar, minha língua áspera como se estivesse

coberta de areia, minha vitalidade lentamente se

esvaindo por algum lugar do meu corpo e a dor

ficando mais intensa a cada segundo. Ventinho

me olhava e mexia seus lábios, mas sua voz soava

mais como um grito da morte, daqueles que soam

na noite e ficam suspensos, sem nunca serem

respondidos.

Coloquei a mão por baixo da camisa,

tentando me aproximar do ponto onde a dor se

intensificava, e vi o sangue correndo entre meus

dedos, deixando rastros pela palma da minha

mão até tingir meus braços de vermelho. Me

levantei e sangrei até a saída. Talvez tivessem me

chamado, mas de qualquer forma fui embora e

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Kontinuum – E. Reuss

não vieram atrás de mim. Andei alguns metros e

me sentei sobre um jardim de azaleias, apoiando

minhas costas contra o muro de uma casa.

Pela primeira vez – ou pelo menos o que eu

achara que fosse a primeira vez – senti a

natureza aparentemente inofensiva me engolir,

não só o espírito daquele pequeno invólucro que

eu carregava em meu casaco, mas toda aquela

manifestação a minha volta, um espírito tão

contagioso que parecia me fazer afundar na

grama molhada, e as azaleias pareciam me

abraçar com afeto. Fiquei procurando o sol por

alguns minutos, tentando me situar no espaço.

Tudo o que vi foi o céu azul, nuvens se esticando e

tocando os topos das casas, que pareciam se

estender aos céus como torres imponentes,

catedralescas, e nesse momento tudo se tornou

translúcido, menos o azul penetrante, que logo se

rompeu nas cores de seu espectro, uma fenda no

próprio firmamento, que coloriu o mundo de uma

forma insana, o verde da grama e o violeta das

flores extremamente vívidos. E ali estava eu, na

fenda do universo com um copo plástico cheio de

terra em minhas mãos. Nenhum broto. Nenhuma

forma de vida. Os músculos do meu peito

continuavam a latejar e eu sentia o sangue

escorrer por baixo da camisa. Eu já não sabia

mais quem eu era naquele momento, tinha

apenas uma ideia remota de quem eu deveria ser.

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Kontinuum – E. Reuss

Desabotoei a camisa e olhei para a pele

perfurada pelo broto, que comia minha carne e

penetrava cada vez mais fundo. Tentei puxá-lo,

mas a dor era insuportável. Caminhei até minha

casa, embora eu não me lembre de ter, de fato,

caminhado. Olhei meu reflexo distorcido no

espelho do banheiro, o corpo de Michele as

minhas costas e o broto cravado em minha pele.

Sentia meus dedos sobre suas folhas minúsculas e

a pressão sobre o seu caule. Com cuidado, puxei e

abafei o grito, até que ela se desprendeu,

ensanguentada. Ignorei o fato de que nesse

intervalo a planta parecia ter crescido uns bons

dez centímetros e fui até a sala jogar, na

esperança de que conseguisse camuflar a dor.

A sessão começou. Projeção do futuro? Seria

isso? Ou apenas uma recriação do passado? Ou

seria a materialização de algo que existia apenas

na minha imaginação? Fiquei encarando com os

olhos cheios de lágrimas, tentando entender em

que linha do código aquelas imagens estariam se

formando. Haveria no mundo outros

programadores que, depois de criar algo tão

grandioso, tão complexo, esqueceriam de seus

próprios códigos? Tal como se fossem mães

traumatizadas, não só tentando esquecer, mas

também negando a existência de um filho

indesejado, uma memória viva que poderia muito

bem levar alguém a loucura. E de qualquer

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Kontinuum – E. Reuss

forma, esses códigos seriam tão inexoráveis que

estariam fadados ao isolamento, trabalhando em

ciclos infinitos e criando, no âmago de suas

funções, universos inteiros que estariam a dois

microssegundos de distância de serem totalmente

destruídos por uma consciência computacional

sem arrependimento. Talvez neles estivessem

presos outros programadores como eu, que não

conseguiriam quebrar a função e nem pensariam

em fazê-lo. E aqueles que encontrariam nossos

corpos paralisados e nossa consciência totalmente

submersa no jogo, não entenderiam... Pois para

eles a ideia de se olhar para dentro não faz

sentido. Deixam o universo dos sonhos para

mergulharem na fantasia escapista de suas vidas

diárias, e os malditos nem sequer lamentam não

poder estender o sono mais um pouco.

Um espectro de luzes vibrantes coloria o

interior dos meus olhos, até que a projeção se

estagnou no mesmo azul de antes. Um azul

estático, se abrindo ao toque dos meus dedos,

como uma fenda infinita no lençol dos meus

sonhos. Meu corpo atravessou as infinitas

camadas de um líquido azulado em queda e, à

medida que me aproximava do centro de tudo, o

azul se tornava mais denso. Eu ouvia estalos,

chiados, uivos e sopros. Os galhos a se quebrar

sob meus pés, o vento roçando em meus braços,

em meu rosto, as pequenas flutuações do solo.

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Kontinuum – E. Reuss

Estremeci e senti o meu corpo ser inundado por

essa presença, como se meus pés descalços

servissem como porta de entrada para um espírito

que flui através do solo. As imagens começavam a

se projetar, não como telas em movimento

suspensas no vácuo, mas como memórias. Vi a

escuridão projetada pelas árvores a minha volta,

meus olhos se ergueram lentamente do chão

arenoso aos pequenos arbustos, para os troncos

lenhosos até o céu azul emoldurado pela cúpula

das árvores. A natureza tecia o caminho que eu

devia percorrer, e nesse momento ouvi a voz de

Liro. “Isso é foda, cara”, ele disse, olhando para os

pés descalços, seus olhos se enchendo de uma

felicidade pura, vazando na forma de lágrimas

que haviam ficado presas por muito tempo. Eu

sentia o peso de Liro sobre mim, e ele também me

sentia. “Vem cá, Liro”, eu disse, “Estamos

sonhando?”, e ele sorriu. E por ser esse um sorriso

autêntico, aquilo só poderia significar que

estávamos sonhando.

Avançamos floresta adentro e vimos as

árvores começarem a se afastar uma das outras, a

natureza cada vez mais ausente, cedendo seu

espaço para um obstáculo à nossa frente, que se

erguia em meio ao verde como um monólito cinza

levantado por uma civilização desconhecida.

Reconheci minha casa. A sala de estar surgiu

como uma imagem superexposta, lentamente se

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Kontinuum – E. Reuss

revelando a minha frente como num processo

químico. Portas onde não deviam estar, levando

para corredores que não existiam, sofás em

posições invertidas e janelas que se abriam em

paredes internas, mas pelas quais ainda podia se

enxergar a natureza. Na hora, tudo aquilo fez

sentido. No chão, Liro sofria uma convulsão,

ainda com os eletrodos na cabeça e sua mente

conectada ao jogo, sua face deformada, quase

liquefeita, e os seus olhos vidrados e sem vida,

enxergando aquilo que só ele poderia enxergar,

mas que de alguma forma se manifestava a nossa

frente, como se quisesse ser visto, provocante.

Caminhei até o quarto. Michele estava

sentada de costas sobre a cama, contemplando a

linha do horizonte através da janela. As árvores

não existiam mais, apenas o azul infinito,

penetrando nossos olhos. “Michele?”, chamei, e

ela contraiu os ombros, “Michele...?”. Ela se virou

e, no lugar de seu rosto, grandes folhas verdes

sobrepostas, formando um invólucro cravado de

nervuras que se abria no ritmo de sua respiração,

despejando das aberturas uma seiva esverdeada,

que escorria pelo seu corpo e formava ao seu

redor uma poça gosmenta de muco. De repente,

surgiu em frente aos meus olhos a mensagem:

“Você está jogando há mais de oito horas.

Tem certeza que deseja continuar a sessão?”.

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Kontinuum – E. Reuss

Respondi que não e me levantei. Caminhei

até a porta do quarto e hesitei antes de abri-la.

Ficaria feliz em vê-la respirando, mesmo que seu

rosto houvesse sido tomado por um parasita

vegetal. Pensei em mergulhar mais uma vez no

Kontinuum e deixar que a minha mente recriasse

o universo do jeito que ela achasse necessário. De

qualquer forma, abri a porta e entrei num estado

de paralisia, tal era o meu terror em ver que a

planta havia adquirido o porte de uma árvore

madura, mas com galhos flexíveis, e o broto em

seu ponto mais alto havia crescido

desproporcionalmente, e eu sentia que continuava

a crescer, como um tumor diabólico no cerne da

natureza. Por um orifício, pingava um líquido

pútrido misturado à clorofila, e por ali o broto

gigante engolia Michele, de quem eu reconheci

apenas as pernas e os pés delicados pendurados

para fora. Toda aquela carne dissolvida era

transformada em energia e a planta se saciava,

em alguns momentos relaxando as contrações de

sua boca monstruosa como se entrasse em um

sono profundo induzido pela digestão. Corri para

fora e atravessei os arbustos de Murta em direção

a casa de Liro. “Me ajuda”, gritei, enquanto Liro

mergulhava na melancolia da heroína, com a

seringa ainda espetada em seu braço esquerdo.

Arranquei a seringa e puxei Liro do sofá, que

precisou se apoiar em meus ombros para

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Kontinuum – E. Reuss

conseguir ficar de pé. “Me ajuda, por favor”, disse,

olhando em seus olhos, e corri até o submundo

obscuro que havia engolido meu quarto e de onde

eu podia ouvir o som da planta deglutindo a

carne, quase como se o som ressoasse dentro de

mim, o gosto da carne crua escalando pelas

paredes do meu esôfago e escapando na forma de

um hálito podre com o cheiro da morte. Conseguia

ver apenas as panturrilhas de Michele,

lentamente sendo engolidas pela planta. Olhei

para o tronco do vegetal, que agora parecia ter se

fortalecido e adquirido um aspecto mais robusto,

suas nervuras mais volumosas e estrias cada vez

mais profundas. Em uma delas injetei a heroína

com a seringa e vi o líquido subir pelos veios da

planta. Senti a seiva carregando a droga numa

correnteza fria e impiedosa, impulsionadas por

uma força invisível que naquele momento parecia

agir sobre nós. Ouvi a voz desesperada de Liro,

que disse, “e ôa é éa?!”, e eu disse “que?!”, e ele

repetiu, e Ventinho, que se projetou da porta

ouvindo o alvoroço e logo começou a rezar, “Pai

nosso, que estais no céu...”, e Liro, que voltou a

perguntar, e eu respondi, “é o meu broto,

caralho”, e Ventinho, que agora gritava “... venha

a nós o vosso reino...”, e Liro, que disse, “o e

ão’aêe?”, e eu disse “Puxa pelo pé!”, enquanto

tentava segurar Michele pela canela

ensangüentada, deslizando como sabão, “Puxa!”, e

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Kontinuum – E. Reuss

Liro disse “éa áór’a!”, “...o pão nosso de cada

dia...”, e eu respondi “eu sei!”, e vimos a planta

desabar sobre a cama e ficar ali, paralisada,

enquanto Ventinho fazia o sinal da cruz e nós

puxávamos o corpo de Michele para fora. Os

restos mortais eram tão distantes da forma

humana, que não pareciam surtir um efeito tão

aterrorizador sobre nós. Encaramos perplexos as

sobras dos ossos e algumas porções de nervos e

músculos que, surpreendentemente, não foram

devorados pela fúria demoníaca do vegetal.

Lembro de ter me ajoelhado ao seu lado, e talvez

ter dito alguma coisa. Fixei meus olhos na parede

a minha frente e vi nossas vidas serem projetadas

como camadas de um processo de serigrafia em

que os tons eram separados em função de sua

melancolia inerente.

As estações transcorriam através do tempo,

mudando a paisagem sobre a qual nosso lar se

erguia, manhãs surgiam em que o silêncio era

absoluto, em que se dirigiam apenas olhares

indiferentes e infelizes, sob o som estridente de

uma nova família que se mudava, de uma nova

casa de alvenaria que era erguida, enquanto suas

mãos dobravam roupas recém-lavadas, e eu

reclamava do cheiro do amaciante, do modo como

ele influenciava a sessão. “Vai te foder”, ela

gritava, jogando as roupas dobradas no chão,

fazendo parecer que ela as havia dobrado apenas

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Kontinuum – E. Reuss

para ter a satisfação de jogá-las daquele jeito,

“você e esse jogo desgraçado”, e eu explicava que o

jogo era sensível durante a abertura, e ela me

chamava de viado, e eu a ignorava, meus olhos se

revirando dentro das órbitas, encarando o interior

das minhas pálpebras, enquanto meus sonhos se

desenrolavam como um novelo de imagens e

memórias lançado no vazio do meu inconsciente.

Assisti minha indiferença e meu egoísmo

crescerem à medida que o Kontinuum passava a

ocupar as frações desocupadas da minha vida, e

que agora acabara de consumir tudo o que um dia

eu amei. Decidi deixar o que restou do cadáver

ali, como um prato recém preparado, a mercê

daquele apetite monstruoso. De alguma forma,

senti que devia deixar ela terminar o que havia

começado. Ouvi sussurros fantasmagóricos às

minhas costas, que imaginei serem de Liro e de

Ventinho, e logo senti sua presença diminuir até

me dar conta de que estava sozinho com a planta.

Vi ela recuperar seus sentidos e se erguer

lentamente, o broto em sua extremidade se

alongando, deslocando suas mandíbulas vegetais

e revelando a abertura que deveria lhe servir

como boca, o interior rosado como se fosse a polpa

de uma melancia gigante, com filamentos negros

que mais pareciam línguas bifurcadas de algum

tipo de réptil, oscilando e se aproximando do

cadáver a sua frente. Ela acomodou Michele

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confortavelmente em sua boca, e começou a

digeri-la. Nesse momento, pude sentir mais uma

vez o gosto e ouvir o som do ácido corroendo a

carne, como se soasse dentro de mim. O sono me

consumiu lentamente, como um entorpecimento

alcoólico inesperado, daqueles que te fazem

duvidar da própria sanidade e da veracidade das

próprias memórias, até que cedi e dormi,

ajoelhado ao lado do monstro. Depois, duvidei se

havia dormido, pois naquele momento a escuridão

se tornou tão aniquiladora, tão palpável, que

parecia me engolir como se fosse uma entidade, e

eu podia senti-la na minha pele, sugando todo o

vestígio de luz que poderia haver ali, e deixando

para trás uma manta gélida, a própria

materialização do Nada. E em um lampejo

consciente meus olhos se abriram e se depararam

com a planta, que, para o meu espanto, agora se

encontrava do outro lado do quarto, me encarando

com seus olhos invisíveis, que poderiam muito

bem serem os meus próprios, porque naquele

momento eu me enxergava como num espelho,

um poço de arrependimento e desgosto. Tenho

certeza que a planta sentiu pena de mim, pois ela

se moveu, e vi que ela desenvolvera grandes

bases circulares cobertas por uma camada rígida

de celulose, que se movimentavam como grandes

pés humanos, um cravado no chão enquanto o

outro se deslizava alguns centímetros para frente.

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De fato, tinham inclusive a forma de pés

humanos, e em alguns pontos minúsculos parecia

germinar sobre a crosta esverdeada pedaços de

pele humana. E o imenso vegetal, que agora se

curvava para se acomodar ao teto baixo do

quarto, se moveu até ficar ao alcance das minhas

mãos, paralisado em uma postura implacável,

olhando para dentro dos meus olhos como se

esperasse algum tipo de saudação.

Com toda a civilidade que uma planta

poderia dispor, ela fez uma reverência sutil e

esperou eu tomar coragem para tocá-la, e o fiz nos

pés, que agora encolhiam e assumiam um formato

delicado, quase feminino. Suas folhas cuneiformes

se desdobravam e se alongavam de modo

preguiçoso, crescendo o dobro do seu tamanho

original. As pontas de suas folhas se dobravam

delicadamente como os dedos de uma mão

humana e acariciavam meu rosto, e o cheiro da

relva lentamente se erguia do chão. Deitei sobre a

cama encarando o teto e senti o sono invadir

minha mente, crescendo à medida que eu sentia a

pressão de sua folhagem aumentar sobre mim, se

acomodando como um lençol gigantesco. E

naquela intimidade entre homem e vegetal,

isolados do universo, eu me sentia submisso,

como se a minha vida fosse só uma ramificação de

algo maior. Ouvia meu coração bater, bombeando

o que quer que fosse para milhares de outros

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brotos, que, como eu, viveriam para sempre como

parasitas. Fechei os olhos e dormi, um sono tão

profundo que não se distinguiam os sonhos,

apenas o negrume absoluto.

Eu sentia a pressão das folhas sobre mim

diminuir e uma sensação única e estranhamente

familiar de estar flutuando. O cheiro da relva

diminuía e lentamente fui tomando consciência

de uma sensação externa, um zumbido constante

acompanhado de um hálito fresco sendo soprado

em meu rosto. E não sentia só aquele sopro físico,

logo percebi que havia outro tipo de sopro, algo

metafísico penetrando minha alma e sendo

projetado no lugar do que antes eu sentia como a

aura gélida do vegetal, mas que agora parecia ter

dado lugar a algo humano.

Quando abri os olhos, os últimos elementos

vegetais da planta se desprendiam de seu corpo,

cedendo como a pele de milhares de cebolas

descascadas, formando sobre a cama uma camada

vegetal morta e cobrindo parcialmente uma

silhueta magra, seios pequenos e flácidos, braços

tão magros quanto os galhos que há poucos

momentos ocupavam seus lugares, um cabelo

negro de um brilho descomunal que parecia se

enrolar em si mesmo como se contrariasse a

física, uma antítese do que se encontra na própria

natureza, e o sorriso mais lindo do universo,

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Kontinuum – E. Reuss

situado em algum lugar entre a inocência infantil

e a esquizofrenia, quase de uma fofura lunática.

Um traço que apenas Michele era capaz de ter.

Acariciei seu corpo, tentando conter meu

desespero, e senti o calor inesperado da sua pele,

insistindo, e quase me convencendo de que ela

estava realmente ali. Merda! Senti medo, pelo

que parecia ser a primeira vez em minha vida,

um medo implacável, não só do desconhecido, não

só daquela... Ressurreição Vegetal, mas de não

saber o que fazer com sua presença, como se a

qualquer momento eu poderia destruir tudo mais

uma vez. “Que foi?”, ela disse, logo apagando o

sorriso, e de alguma forma, interferindo na

luminosidade do quarto. “Michele...?”, eu disse,

ela franziu o cenho e reduziu seus olhos ao azul

penetrante de sua íris, que me pareceu familiar

demais, até eu me dar conta de que já havia

mergulhado neles. “É você mesmo?”, perguntei.

“Você precisa parar de jogar esse videogame”, ela

disse, em um tom preocupado. Eu concordei,

mesmo que silenciosamente, mesmo que omisso,

tentando fazer o videogame não perceber o meu

deslize. Mas Kontinuum não deixaria aquilo

escapar, não quando ele vê tudo. No começo,

Kontinuum era apenas um universo a parte para

o qual eu poderia fugir sempre que eu quisesse,

quase um paraíso privado, completamente

explorado e registrado em minha memória como o

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Kontinuum – E. Reuss

mapa de uma região conhecida. Mas como todo

mapa, algumas regiões obscuras se estendiam

para além daquelas distâncias que o mapa fazia

crer serem possíveis. E preso naquela caminhada

infinita, eu acabei sendo incorporado como um

acidente geográfico, parte de algo infinitamente

maior, claramente uma obra do universo. E agora

eu não conseguia distinguir onde meus sonhos

acabavam e onde começavam os dele. Por isso,

perguntei: “Estamos sonhando?”. E ela sorriu, e

por ser esse um sorriso autêntico, aquilo só

poderia significar que estávamos sonhando. Nesse

momento, educadamente, o jogo se colocou entre

nós:

“Você está jogando há mais de quatro mil e

trezentas horas. Tem certeza que deseja

continuar a sessão?”.

Através do texto, eu ainda conseguia

enxergar os seus olhos. “Você tá bem?”, ela me

perguntava, “Sim” ou “Não”, e o jogo me

perguntava.

“Sim”, respondi. Cada centímetro do meu

corpo mergulhando numa dormência induzida

pelo medo, não só o medo de perder Michele, mas

de encarar o mundo físico, de perceber o tempo da

forma como ele transcorria para os outros, e de

acabar revelando aquelas memórias desbotadas

que ali dentro eu sabia que se recusariam a

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Kontinuum – E. Reuss

retornar para sempre. Por isso preferi continuar

jogando.