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SIDE-STORY "DEPOIS" Baseado na obra Vidas Imperfeitas por Mariana Cagnin 1. Um dia depois Acordei com uma ressaca daquelas. Minha cabeça doía tanto que suspeitei que era meu cérebro tentando escapar da minha caixa craniana, e não só isso como latejava em ondas constantes e cadenciadas, me dando apenas alguns segundos de alívio para depois voltar a martelar. Estava começando a ficar enjoada, então corri até o banheiro e vomitei. Já me sentia um pouco melhor, mas foi quando me deitei novamente na cama que lembrei… E então meu estômago embrulhou de novo, mesmo não tendo mais nada alí. Segurei o vômito o máximo que pude porque dessa vez só sairia bile. Isto não seria nada legal. Fiquei me perguntando por quê? O porque de tudo aquilo, mas não tinha uma explicação. Por um momento senti raiva, mas não era raiva. Era só… Sei lá. Meu celular tocou, não lembro quem era ou o que disse, e só lembraria na manhã seguinte. Há um tempo atrás todas essas coisas pareceriam uma bobagem sem tamanho, uma tolice. Eu não me imaginaria neste lugar. A “eu” de antigamente teria vergonha da “eu” atual, e eu nem sei dizer se isso é uma coisa boa ou ruim. Eu nunca quis um namorado. Bem, talvez quisesse sair com a pessoa pela qual era atraída, viver um romance proibido. Isso eu tinha feito, e quer saber, às vezes fazemos coisas só pra dizer que já fizemos, e mesmo que tenha sido legal na época, elas acabam perdendo o singificado. Foi assim com o Diego, mas era porque eu sabia mais dele do que qualquer um dos seus amigos, e todo o mistério acabou. Ele me entendia de jeitos que nem eu mesma entendia e isso me dava um pouco de medo. E também porque ele costumava dizer as coisas mais escrotas, nas horas mais inoportunas, mas que no fundo era as que eu precisava ouvir, mesmo que eu não quisesse admitir. Em suma, ele fora um péssimo namorado. Porque ele não me queria como namorada, porque ele não sabia lidar com esse conceito de ser namorado, nem com as responsabilidades que vem com ele. O Daniel foi a única pessoa que me fez querer ser uma versão melhorada de mim mesma, que me fez olhar para dentro de mim e ver aquele monte de merda. E tinha muita merda. Eu

Vidas imperfeitas side story

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SIDE-STORY"DEPOIS"

Baseado na obra Vidas Imperfeitas por Mariana Cagnin

1. Um dia depois

Acordei com uma ressaca daquelas. Minha cabeça doía tanto que suspeitei que era meucérebro tentando escapar da minha caixa craniana, e não só isso como latejava em ondasconstantes e cadenciadas, me dando apenas alguns segundos de alívio para depois voltar amartelar. Estava começando a ficar enjoada, então corri até o banheiro e vomitei. Já me sentiaum pouco melhor, mas foi quando me deitei novamente na cama que lembrei…

E então meu estômago embrulhou de novo, mesmo não tendo mais nada alí. Segurei o vômitoo máximo que pude porque dessa vez só sairia bile. Isto não seria nada legal. Fiquei meperguntando por quê? O porque de tudo aquilo, mas não tinha uma explicação. Por ummomento senti raiva, mas não era raiva. Era só…

Sei lá.

Meu celular tocou, não lembro quem era ou o que disse, e só lembraria na manhã seguinte. Háum tempo atrás todas essas coisas pareceriam uma bobagem sem tamanho, uma tolice. Eunão me imaginaria neste lugar. A “eu” de antigamente teria vergonha da “eu” atual, e eu nem seidizer se isso é uma coisa boa ou ruim. Eu nunca quis um namorado. Bem, talvez quisesse saircom a pessoa pela qual era atraída, viver um romance proibido. Isso eu tinha feito, e quer saber,às vezes fazemos coisas só pra dizer que já fizemos, e mesmo que tenha sido legal na época,elas acabam perdendo o singificado. Foi assim com o Diego, mas era porque eu sabia maisdele do que qualquer um dos seus amigos, e todo o mistério acabou. Ele me entendia de jeitosque nem eu mesma entendia e isso me dava um pouco de medo. E também porque elecostumava dizer as coisas mais escrotas, nas horas mais inoportunas, mas que no fundo eraas que eu precisava ouvir, mesmo que eu não quisesse admitir. Em suma, ele fora um péssimonamorado. Porque ele não me queria como namorada, porque ele não sabia lidar com esseconceito de ser namorado, nem com as responsabilidades que vem com ele.

O Daniel foi a única pessoa que me fez querer ser uma versão melhorada de mim mesma, queme fez olhar para dentro de mim e ver aquele monte de merda. E tinha muita merda. Eu

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precisava mesmo fazer um update do sistema operacional e seguir em frente, porque sabe,não dá pra viver pra sempre enxergando um inimigo em cada esquina, ir lá e enxer ele deporrada como se isso fosse resolver alguma coisa. Me deixava mais aliviada, é verdade, maseu queria parar com essas coisas.

Talvez eu nunca fosse capaz de mudar realmente. As pessoas podem mudar completamente?Acho que não. Acho que tem sempre aquela coisa que fica, a essência. Essencialmente, souuma pessoa física, mas eu poderia muito bem canalizar minhas energias em outras coisas, tipotransando. Transar é fácil quando se tem um namorado levemente sacana a sua disposição.Quer dizer, agora o tempo verbal não se aplica mais.

Tinha…

Quando eu tinha um namorado.

Nunca o mundo pareceu tão injusto, bem quando eu tinha decidido me livrar de todos ospreconceitos quanto a levar um namoro a sério; se comprometer, usar aliança, dizer “eu teamo” e todas as breguices implicadas. Tudo bem, sabe, porque ele estaria comigo. Era issoque importava. Não chegava nem a ser um sacrifício, eu apenas não me importava, atécomecei a achar legal. Cara, eu até comecei a planejar uma vida a dois. É, eu sei, parecepatético, mas acho que qualquer idiota apaixonado já imaginou isso algum dia, e agora tambémacho que estou achando coisas demais para alguém com uma ressaca do tamanho de Júpitere de coração partido.Tomei algumas aspirinas e voltei a dormir um sono profundo e semsonhos.

Acordei mais tarde no mesmo dia com o sol batendo no meu rosto. Com muito esforço, fecheia persiana e me afundei novamente no travesseiro. Vazio. Era isso o que eu sentia, porque nãoconsegui distinguir muito além disso. Desci as escadas ainda de pijama e de pantufas, e sóquando cheguei na cozinha percebi que eram as pantufas que Daniel me dera de presente ­com patas de dinossauro ­ para combinar com as dele. Joguei­as longe. Ugh!

Vovó não estava em casa. De repente me vi completamente desconsolada. Preciso ligar paraalguém. Preciso que alguém me distraia. Não conseguirei sobreviver a este dia sozinha.Preciso da Suzana.

Ela chegou lá pelas sete horas, exatamente três horas depois de eu ter ligado, três das quais eupassei olhando fixamente para tevê enquanto trocava de canal compulsivamente, a procura de“algo que prestasse”. Obviamente, eu estava procurando outra coisa. Um sentido pra vida,talvez.

­Eu não sabia que tipo de filme você estaria a fim de assistir agora, então trouxe um pouco detudo… desde Hitchcock até Se beber, não case ­ ela disse com a voz serena.

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­Suzaninha, acho que vamos de comédia light.

Ela colocou o filme no Playstation e eu já não conseguia definir as formas que passavam naminha frente, nem se deveria rir ou chorar. Decidi que Suzana seria meu ponto de referênciaentão eu soltava uma risadinha idiota toda vez que ela ria, e assim tentei acompanhar.

­Foi divertido ­ ela disse assim que os créditos começaram a rolar.

­É… ­ o que eu disse mais parecia um grunhido, mas acho que ela entendeu ­ Tá ficandotarde... se quiser ir pra casa, tudo bem. Vai ficar tudo bem.

­Não ­ ela sorriu decididamente ­ não vou a lugar algum.

Eu não sabia se ela entendia, mas algo no olhar dela me dizia que havia empatia. Talvez elaquisesse me abraçar e não sabia como, ou se deveria. Talvez ela quisesse perguntar como euestava me sentindo, ou como tudo tinha acontecido, ou talvez apenas quisesse dizer “estouaqui, caso queira conversar”, mas ela não disse nenhuma dessas coisas, apenas sorriu e foifazer mais pipoca de microondas. Porque ela estava lá, eu me sentia mais confortável, era issoo que ela causava na gente, essa sensação de algo familiar, aconchegante, estável. Eu podiadizer com certeza que ela era o mais próximo de família que eu tinha naquele momento.

Estávamos deitadas lado a lado no colchão de ar improvisado na sala quando ela disse,finalmente:

­Quer saber, eu dedici não gostar mais do seu irmão.

Fiquei um tempo em silêncio, medindo as palavras sem entender.

­Como se deixa de gostar de alguém? ­ perguntei. Eu gostaria muito de saber a resposta.

­Não sei. Acho que você começa aniquilando a possibilidade de estar com aquela pessoa.Elimina completamente da sua cabeça. Se não pode ficar com ela, então qual a razão de gostardela?

Eu ri.

­Parece muito simples… na teoria.

­Exatamente ­ ela concordou ­ mas eu nunca disse que seria fácil ­ então ela se virou para mime deu um sorriso de escárnio.

­Deus, eu criei um monstro.

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Tive a sensação de que Suzana evoluiu (exatamente como um Pokemon) e eu não estava lápara ver. Parece que perdi uma parte importante da sua vida em que finalmente encontrara aconfiança para tomar decisões por si mesma. Mas o importante é que ela estava lá, tão segurade si que me fazia sentir como uma garotinha indefesa.

­Ele me deu um belo pé na bunda ­ eu disse, finalmente. Falar aquelas palavras foi como darum vômito certeiro na cara de alguém, mas continuei ­ eu sei que eu disse ontem que “a genteterminou” mas “a gente” não decidiu porra nenhuma, ele foi lá e me chutou como um baldevelho.

­Ouch.

­E nem se deu o trabalho de dar uma explicação decente…

­Juno…

­...disse algo sobre “preciso me encontrar”...

­Juno.

­...”isto não é sobre você, é sobre mim”...

­JUNO.

­Oi ­ respondi, saindo dos meus devaneios. Suzana apoiou o rosto com as mãos, virando­sepra mim.

­Eu sei do que você precisa.

Já era quase madrugada e estávamos andando pelas ruas da cidade de moletom e chinelo.Paramos em cima de uma ponte e então ela apontou para a avenida abaixo de nós.

­Você acha que eu devo me matar? ­ Brinquei.

­Ah, por favor ­ ela disse em tom de reprovação ­ acho que devia fazer algo imprudente, comosubir na grade e gritar alguma coisa pornográfica ­ então ela tirou um vidrinho da mochila ­ tomaisso aqui, talvez te ajude.

Bebi e descobri que era cachaça quando o líquido desceu ardendo pela minha garganta. Elatambém tomou um gole, subiu na grade e gritou algo tão sacana que eu nem sabia que sequerexistia. Ela desceu toda feliz e sorriu de forma desafiadora.

­Eu não sei, não consigo pensar em nada… ­ eu disse.

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­Fala qualquer coisa que vier a mente.

­Bem… ­ eu comecei, a voz trêmula, mas não tão trêmula quanto minhas pernas ao subir oprimeiro degrau da grade. Os carros lá embaixo eram apenas flashes brilhantes que passavamrápido demais para serem identificados. E de repente senti como se tudo tivesse acontecidorápido demais e eu não tivesse tido a chance de dizer tudo o que queria ter dito, e me sentiestúpida por isso ­ Suzana, eu acho que não posso fazer isso.

­Tudo bem ­ ela disse afagando minhas costas e me pegando pelas mãos. Acho que a essaaltura eu já estava chorando pateticamente ­ Vamos voltar pra casa.

Voltamos todo o caminho em silêncio. A tira do chinelo já estava machucando meus pés, o queera bom, porque a dor física fazia eu me esquecer da dor interna que esmagava meu peito.Bebi o resto da garrafinha da cachaça pensando comigo mesma que Suzana tinha mudadotanto a ponto de carregar bebida alcoolica na mochila mesmo que fosse apenas pra consolaruma amiga que havia acabado de ser enxotada.

2. Dois dias depois

Eu não queria ir para a escola, não queria ter que lidar com pessoas naquele momento, porqueeu não podia me responsabilizar por nenhuma reação bizarra que eu tivesse, e eu me sentiatriste em saber que poderia machucar alguém. Mas não era tristeza, era culpa. Por mais que euquisesse mudar, eu nunca deixaria de não me importar com aquelas pessoas. Eusimplesmente não me importava e pronto. Era isso o que ele tinha feito comigo, eu passei a mesentir culpada por coisas que ainda nem tinha feito, mas que poderia fazer e que de algumaforma parecia... errado.

Me lembrei das aulas de teatro, que tinha que ensaiar para a peça de final de ano e antes quepudesse me sentir ainda mais culpada por deixá­los na mão, eu vesti uma roupa qualquer epeguei o ônibus pra escola com a Suzana.

­Quem te ligou ontem? ­ Suzana perguntou.

­O que?

­Ontem antes de dormir você disse que alguém te ligou de madrugada, quando fui perguntarquem era, você já tinha capotado...

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­Ah ­ eu disse tirando o celular da mochila e abrindo o registro de chamadas: Suzana, Suzana,Suzana e então um número não identificado ­ deve ser esse daqui.

­Parece ser um número de telefone público.

Então pensei um pouco. Quem me ligaria de um telefone público? Disquei o número de volta edepois de uns dez toques, uma voz grave atendeu: "Departamente de polícia". Eu desligueiinstantaneamente.

­O Mateo foi preso ­ eu disse, finalmente me lembrando da conversa ­ Ele me ligou ontem paradizer que tinha sido preso, e ele disse algo sobre… meu pai estar envolvido, e…

­Peraí ­ ela me interrompeu, confusa ­ Ele sabe o que aconteceu com sua amiga Mônica?

­Não exatamente, mas ele tinha fotos… fotos dela com o bebê. Ela parecia bem, quer dizer,acho que só isso importa no final.

­Juno… ­ ela segurou minhas mãos com força ­ O que ele fez foi imperdoável, tanto com vocêquanto com a Mônica. Mas agora ele foi preso. Ele vai pagar por todas as coisas que fez.

­Você está certa ­ eu disse para encerrar o assunto e sorri. E o pior de tudo era que eu nãotinha mais certeza de que ele tinha feito mesmo o que achava que tinha feito, e não sabia maisse queria saber. Eu queria acreditar que a prisão dele fosse suficiente.

Mônica tinha ido embora por algum motivo, e qualquer que fosse, ela tinha decidido não contarpara nenhum de seus amigos. Agora ela tinha um filho e parecia estar bem. Não existia maisnada que eu pudesse fazer… por mais que eu quisesse encontrá­la, que bem isso poderiatrazer? Talvez ela estivesse tentando esquecer…

­Eu não sei se posso esquecer tudo isso… ­ sussurrei, mas ninguém escutou. De repente mevi sozinha no corredor vazio da escola. Não sabia nem como tinha chegado alí. Peguei os livrosno armário e fui para a primeira aula. Se não tivesse feito esse caminho tantas vezes no últimoano a ponto de ser automático, talvez nunca tivesse chegado à sala, de tão entorpecida queestava.

Quando me dei conta, a sala já estava vazia, e senti uma mão tocando meu ombro. EraSuzana.

­Já é o intervalo. Estou indo pra biblioteca, você quer ir junto?

­Não, tudo bem, pode ir… acho que vou tomar um ar lá fora.

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Meus pés caminharam sozinhos ­ e eu tenho certeza disso ­ até o ginásio, onde alguns alunoslanchavam na arquibancada enquanto um bando de garotos jogava futebol. Acho que eu queriaver como ele estava, se estava sofrendo também, porque não era justo que eu tivesse quesentir isso sozinha. Mas eu nunca saberia dizer se a cada chute forte, era raiva que ele sentiaou se estava apenas querendo jogar bem.

Vi a bola voar diretamente para os expectadores. Todos pararam de jogar para esperar alguémdevolvê­la. Neste meio tempo, Daniel esperava no escanteio, colocou o cabelo pra trás, e entãorecebeu a bola, girou­a, respirando fundo. Depois olhou para cima, exatamente na minhadireção, quase como se soubesse o tempo todo que eu estava ali. Eu não soube o que aqueleolhar queria dizer, apenas senti um aperto no coração e uma ardência no rosto, uma vontade dechorar. Quando ele finalmente desviou os olhos, eu pude respirar. Não... por que eu estava metorturando daquele jeito?!

Encontrei com Suzana no corredor voltando para a sala e ela conversava animadamente comalguém que eu reconhecia vagamente. Seu nome era Bob, acho.

­E aí ­ ele disse.

­E aí ­ respondi com a respiração pesada.

­Eu fiquei sabendo que vocês, é…

­É, a gente não tá mais junto ­ eu tentei dizer de uma forma que não parecesse tão deprimentequanto "levei um pé na bunda", e nem que desse a entender que eu estava "ok" com aquilo.

­Sinto muito ­ ele disse com o olhar baixo, como se sentisse muito mal por aquilo.

­Sente muito pelo quê? ­ Perguntei, confusa ­ Ninguém morreu.

­Ah, sei lá. Ele gostava muito de você, eu sei disso. Sei lá o que deu nele.

­As pessoas são… ­ eu tentei encontrar a palavra ­ complicadas.

­Eu que o diga! Bom, vou indo nessa ­ ele disse dando uma batidinha de leve no ombro deSuzana.

­O Bob é legal ­ Suzana disse logo que ele desapareceu de vista, sorrindo. Era bom ver elasorrindo e fazendo novos amigos.

­Eu vi o Daniel hoje, foi péssimo. Eu não devia ter vindo.

­Sabe o que a gente pode fazer agora? ­ ela disse, me ignorando ­ tomar um belo e gordo

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sorvete. Vamos.

­Mas a gente não vai pra aul… ­ mal tinha terminado de falar e estava sendo arrastada porSuzana pelos corredores, desviando dos professores e do inspetor. Eu sabia o que ela estavafazendo, ela estava tentando me distrair, o que não era inteiramente ruim. Assim que elapercebia que eu poderia desmoronar, ela me tirava daquele buraco inventando algum tipo deacontecimento imperdível. Mas e se eu quisesse cair no buraco? E se eu quisesse afundar tãoprofundamente que acabaria fazendo parte da escuridão e nunca mais pudesse voltar?

­Suzana, espera ­ eu disse tentando soltar meu braço de forma gentil ­ eu não acho que sorveteajuda. Acho que nada pode me ajudar. Apenas... fique ao meu lado, e uma hora toda a dor iráembora. Ela tem que ir embora.

Ela não disse mais nada e eu apenas me desculpei por aquilo, afinal, ela tinha as melhores dasintenções, e esta era apenas a minha forma de lidar com a dor. Eu precisava cair.

3. Sete dias depois

Era sábado a noite e eu não tinha nenhum plano a não ser terminar de assistir uma temporadade Doctor Who. Suzana insistiu em me acompanhar mas eu não deixei. Só porque a amigadela estava na maior bad do século não queria dizer que ela precisava desperdiçar um sábadome acompanhando.

Ouvi vozes vindo do andar de baixo e decidi descer para checar, já que eu e a vovó morávamossozinhas. Dei de cara com um Jay muito animado ­ é verdade, eles tinham ficado em segundolugar no Festival Musical e estavam assinando um contrato com uma gravadora. Eu deveriaestar feliz por ele.

­Jesus, irmãzinha, faz quanto tempo que não lava esse cabelo? Acho que dá pra fritar um ovonesse óleo.

­Oi, Jay, como vai? ­ Retruquei ironicamente ­ Oi, Pedro ­ eu disse me virando para ele, e elerespondeu com outro "oi" baixinho.

­Muito melhor agora que você não tá mais namorado aquele imbecil ­ Jay respondeu com amaior sensibilidade do mundo.

­Vai se foder, Jay ­ eu disse pegando mais um copo de coca­cola e indo pra sala. Ele tinha que

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me lembrar.

Liguei o Playstation e comecei a jogar um jogo de corrida qualquer. Nesse momento, alguémsaiu do banheiro ­ eu pude ouvir o som da descarga ­ e sentou­se do meu lado, pegando o outrocontrole.

­Nem vem ­ eu alertei.

­Eu não disse nada ­ Diego respondeu.

­Mas estava pensando. Você pensa muito alto ­ eu disse rispidamente. Simplesmente nãoestava no humor.

­Vamos jogar multiplayer.

­Jesus! ­ Me exaltei ­ Vocês não tem casa, não?

Então a vovó apareceu na sala com um bolo enorme de cenoura com cobertura de chocolate eentregou um pedaço para cada um.

­Crianças, parem de atormentar a pobre menina ­ acho que ela estava com pena de mim ­ e seilá, arranjem o novo namorado pra ela, assim ela não fica em casa o dia todo. Faz uma semanaque não posso trazer o Grupo de Leitura da Jane Austeen pra cá.

Ela disse e então voltou para a cozinha, enquanto um Diego do meu lado ria tanto que voavammigalhas de bolo pelo tapete todo.

­Cara, não tem graça ­ eu disse, ainda um pouco chocada.

­Não, Juno, isso é totalmente hilário.

­Você está com inveja? ­ provoquei ­ Por que quando a gente terminou eu fiquei totalmente deboa?

Ele parou de rir, mas sorriu de um jeito que me incomodava. Como se eu fosse uma idiota porachar isso. Então ele se levantou, colocando o controle delicadamente de volta à mesa decentro e disse:

­Não, não estou com inveja. Apesar de achar que você poderia ter ficado ao menos um poucotriste.

Agora, o que aquilo queria dizer? Ele apenas pegou suas coisas e foi embora. Isso, apenas váembora!

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Estava começando a ter aquela sensação de que não estava acompanhando o mundo a minhavolta, que eu estava dormindo enquanto a vida acontecia, porque eu simplesmente nãoenxergava o que as pessoas queriam dizer, ou o que tudo aquilo significava. Será que eu eraassim tão tapada, tão cega? Pela primeira vez eu pensei que talvez ­ TALVEZ ­ O Diego tivessegostado ao menos um pouquinho de mim. Talvez ele tivesse ficado chateado também quandofui lá e sugeri que terminássemos. Talvez…

Quando voltei para o quarto, o episódio do Doctor Who rolando no fundo, foi quando parei parapensar que pela primeira vez eu era a "outra" pessoa. A pessoa chutada. Na verdade, este eraum jeito terrível de se dizer. Eu sempre fui a pessoa que tomava as decisões, que não sedeixava ser dominada, só que agora tinha que lidar com algo que estava fora do meu controle,com algo que não escolhi. Era frustrante. Só agora, estando do outro lado, que pude entender asensação de impotência diante da vida, e o peso que nossas decisões têm sobre a vida daspessoas que nos rodeiam.

Ouvi duas batidas na porta. Eu respondi "entra" e então Jay abriu a porta e enfiou a cabeça pelafresta.

­Hey, foi mal ­ ele parecia sincero ­ eu não deveria ter dito aquilo.

­De boa… ­ respondi. Estava acostumada com esse tipo de coisa vinda do Jay, depois de umavida inteira de perseguição ­ E parabéns, você sabe, pelo festival. Eu estou realmente feliz porvocês.

Ele sorriu. No fundo ­ bem lá no fundo ­ ele era um irmão bacana.

4. Um mês depois

As coisas começaram a mudar de verdade quando descobri sobre a doença do meu pai esobre todas as coisas que ele havia escondido de mim… as coisas que havia feito por Mônica epara que Mateo nunca mais fizesse parte de nossas vidas. Estava tudo tão diferente que nemmesmo as cores pareciam as mesmas. Estava tudo tão… claro. De repente, me senti tãopequena e insignificante diante do mundo.

­Eu te dei uma viagem de férias, então o que faz ainda por aqui? ­ meu pai perguntou. Eleestava sentado atrás daquela mesa enorme de mogno, e parecia ainda mais franzino sentadona sua incrível cadeira reclinável.

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­Eu sei…

­Então, o que está esperando?

­Queria saber… você vai fazer a quimioterapia?

­Vou, vou ­ ele respondeu, inquieto ­ Vou começar no mês que vem. Agora você já pode ir.

Fiquei ali parada, sem saber o que dizer, olhando enquanto ele assinava alguns papéis.

­Por que… você me deu todas essas coisas? Essa viagem de férias, um curso no exterior,uma conta internacional…?

­Por que? Porque eu posso ­ ele respondeu, sorrindo ­ Aqui, entrega isso aqui pra sua mãe…os papéis do divórcio.

Ele me entregou um envelope de papel pardo e afundou na cadeira, suspirando.

­Pai… ­ eu o chamei, então ele levantou a cabeça, receptivo ­ eu sinto muito.

E não sabia exatamente pelo que eu sentia muito. Talvez por ter sido uma filha tão difícil, e comnotas ruins, que vivia se metendo em encrencas e indo para as festas mais erradas douniverso. Ou talvez sentisse muito pelo fato dele ter câncer, mesmo sabendo que a culpa nãoera minha. Era a vida, essa vadia ingrata e inescrupulosa. Mas meu pai olhava pra mim comaquele mesmo ar confiante de quem não tinha mais nada a perder e ao mesmo tempo tivesse ocontrole sobre o universo. Sim, ele fazia porque ele podia. O poder é uma coisa estranha...

Peguei o envelope e coloquei na mochila, e quando estava saindo pela porta, me virei:

­Só tem mais uma coisa… eu quero mudar de colégio. Eu quero começar de novo em outrolugar.

­Você tem certeza? Mesmo faltando um ano para se formar?

­Sim… eu tenho certeza.

Ele apenas assentiu com a cabeça.

Eu saí de seu escritório me sentindo tão confiante como não me sentia há semanas. Penseicomigo mesma: quer saber? Foda­se. Foda­se as pessoas daquela escola (menos a Suzana).Foda­se a depressão. Eu estava cansada de me sentir miserável por alguém que no fundo nemconhecia direito. Quem era ele? Alguém que inventei na minha cabeça, uma imagem daperfeição, alguém que estaria lá apenas enquanto fosse conveniente. Ele estava lá e me fez

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confiar nele a ponto de contar coisas que não havia contado nem mesmo para minha melhoramiga. De repente, eu senti raiva por ter dado tanto de mim mesma e ter recebido apenas…ilusão. Eu gostaria de ter prestado mais atenção aos sinais… Gostaria de não ter sentido o quesenti…

­Pra onde você está indo? ­ minha mãe perguntou ao me ver arrumando as malas de um jeitoum pouco descuidado demais pro seu gosto.

­Machu Pichu. Ganhei a viagem do papai.

­Ah… ­ ela respondeu ­ Aliás, eu estou me mudando para a casa do Tsui...

­Bem lembrado ­ eu disse tirando o envelope da mochila e entregando a ela ­ Parabéns.

­Querida… eu sei que foi muito repentino, espero que entenda…

­Você sabia que ele tinha câncer ­ eu disse, rudemente.

­Eu quis contar, mas ele não deixou. Ele queria contar ele mesmo ­ ela disse pegando minhamão ­ Eu sei que isso nos pegou completamente desprevinidos, mas você pode contar comigopra qualquer coisa. Eu só queria que soubesse disso.

Eu peguei a mesma mão dela que segurava a minha e a afaguei. Ela merecia mais do quealgumas palavras malcriadas de sua filha.

­Mãe… as coisas vão melhorar… mas agora preciso ir. Eu preciso fazer isso, me afastar porum tempo, sei lá.

­Esse garoto… ele realmente fez um estrago ­ ela disse, compadecida do meu sofrimento.

Eu apenas sorri. Minha mãe fora uma vítima por tanto tempo, ou pelo menos era assim que eua via. Agora eu sabia que todos nós tinhamos pelo menos um pouco de merda sobre nósmesmos, coisas das quais não nos orgulhávamos, mas puta merda, era isso o que fazia dagente humanos. Sabe de uma coisa que me tornava humana? Minha raiva. Eu sentia tantaraiva, primeiro do Daniel, mas que culpa ele tinha por eu ter me apaixonado? E antes dele, tinharaiva do meu pai. E agora, eu sentia raiva de mim mesma, porque eu sentia raiva, num ciclointerminável de raiva eterna.

Mas eu fiz absolutamente nada para combater minha raiva, eu apenas a abracei, e me permitisentí­la a cada instante, por que sentir era melhor que nada. E senti as coisas maisimpressionantes naquela viagem. Eu senti a brisa de uma antiga civilização, senti os gostosmais peculiares, e senti pessoas que nem ao menos falavam a minha língua. Mas além de tudo,fui capaz de encontrar um pouco de paz dentro do meu universo de ódio. Quanto mais eu

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lutasse contra essas coisas, mas eu sofreria, então apenas fiquei alí e senti.

E quer saber? A viagem uma hora acabou, e as pessoas que conheci foram embora ­ paramuito longe. Eu nunca mais as veria de novo. Então eu me senti leve novamente, porque ascoisas simplesmente vão embora. Tudo isso é fugaz, e acaba. Mas Henrique já deveria saberdisso, afinal era por isso que ainda podia sorrir.

5. Doze anos depois

Fazia exatamente sete anos que eu não via o Jay quado ele entrou pela porta do quarto dehospital, o rosto carregado, as olheiras profundas. Ele parecia… mais velho. O que me deixavatriste, porque ele sempre fora tão jovem e cheio de vida. Fiquei imaginando o tipo de vida queele levava para acabar assim.

­Você sabia ­ eu disse, ainda segurando a mão de nosso pai, que jazia naquela cama,desacordado.

­Eu sabia… ­ ele respondeu se aproximando. Ele se sentou na cadeira do outro lado da cama,observando aquele homem tão franzino, ou o que havia restado dele.

­Você poderia ter me contado, e eu teria voltado correndo. E agora, eu me pergunto se vou vê­loacordado mais alguma vez… ­ eu disse.

­Eu sinto muito.

­Você sente? ­ eu perguntei, começando a me exaltar ­ Não importa as diferenças que tivemosnos ultimos anos, ele É meu pai também!

­Eu pensei que…

­Não importa.

­Eu perdi seu número. A mamãe me passou, mas eu perdi o papel.

Eu deveria ter dito o que pensei naquele momento, que ele tinha perdido muito mais do que ummero pedaço de papel, e eu não sabia mais quem era aquela pessoa na minha frente, aquelapessoa que admirei durante toda a minha infância e adolescência. Eu queria que ele brilhassemais e mais, e que o mundo conhecesse o Mad House. Ele merecia isso. Mas o Mad House

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terminou, e tudo mudou. Eu fui estudar em Londres, passei três anos no curso de artescênicas, atuei em algumas peças, e quando percebi, nossos mundos já eram outros…

Fitei aquelas mãos tão enrugadas e a fita que cobria a entrada do catéter. Fiquei imaginandoquão aquilo poderia doer, numa pele tão frágil quanto a de meu pai. Ele lutara contra o câncerpor doze anos, de quimeoterapia a quimeoterapia, passando por uma fase em que pensamosque estivesse curado, para depois piorar definitivamente. Eu gostaria de ter estado ao seu ladotodo o tempo, e eu sabia que não poderia simplesmente culpar Jay por ter sido uma filhamediana. Ele estava ruindo. Meu pai estava desaparecendo diante de meus olhos e issomachuca pra caralho.

Neste momento, uma criança de mais ou menos cinco anos entrou no quarto correndo e entãoparou em frente de Jay, fitou­o por alguns segundos e então disse:

­Você que é o meu tio Jay?

Ele ficou parado sem reação, a boca semiaberta, talvez ele quisesse dizer alguma coisa masnão sabia o que. Então ele olhou pra mim.

­Você… você teve uma…

­O nome dela é Victoria. Ela tem cinco anos.

­Mas mãe! Eu vou fazer seis no mês que vem! ­ Victoria protestou, fazendo balançar suasmaria­chiquinhas. Ela se aproximou e sentou no meu colo ­ mãe, abre o sorvete pra mim?

Jay apenas ficou observando enquanto eu abria o pacote do picolé e entregava a ela.

­Quem… é o pai? ­ Jay perguntou ao mesmo tempo que um homem de seus trinta anos,cabelos castanhos, entrava pela porta carregando um ursinho de pelúcia amarelo.

­Querida, você esqueceu o Robert lá na cantina, se depois vier reclamar que perdeu… ­ eleparou ao perceber que Jay estava ali ­ Ah, você.

Jay ficou olhando dele para mim, muito chocado para falar qualquer coisa.

­Sério? ­ Ele perguntou com um tom de raiva e incredulidade ­ SÉRIO? Tinha que ser ele?

Diego pegou Victoria no colo e foi até a porta.

­Vou levar a Vic pra fazer um passeio, assim vocês podem, hum, conversar em paz.

Quando Diego saiu, eu percebi que simplesmente muita coisa tinha acontecido nesse meio

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tempo para poder explicar a Jay. Eu também acharia estranho, eu acharia a coisa maisimprovável do universo.

­Eu ouvi dizer que você vai lançar um álbum solo… ­ tentei mudar de assunto.

­É, sei lá, acho que sim… estamos discutindo isso lá na gravadora, mas há grandes chancesque sim, mas cara, o Diego? Vocês não tinham terminado? Você não namorou um cara depoisdele e ficou deprimida pra caramba? Não me diga que… ­ ele estreitou os olhos, pensativo ­ elefoi lá te consolar?

­Não, Jay, isso foi tipo, muito antes. Eu ainda estava na escola.

Jay passou a mão na cabeça, confuso.

­Então ­ ele continuou ­ então sei lá.

Ficamos em silêncio por algum tempo. Era possível ouvir apenas o gotejar o soro e arespiracão fraca e ofegante de Henrique.

­Ele não vai aguentar muito tempo, não é? ­ Jay perguntou. Eu apenas fiz que não com acabeça. Uma lágrima escorreu pelo rosto dele, mas a enxugou com a manga da jaqueta antesque ela caísse ­ Caramba… Esse velho deu um belo trabalho pra gente e agora tá indo emborasem mais nem menos.

­Doze anos… foram doze anos, não é fácil. Talvez ele esteja dando graças a Deus que estáterminando. Mesmo assim, eu gostaria que ele tivesse conhecido a Victoria.

Não muito depois as enfermeiras chegaram dizendo que o horário de visita tinha acabado e queHenrique seria transferido para a UTI. Não pude conter as lágrimas, mas não queria que Vic mevisse daquele jeito, eu precisava ser forte, então deixei que Jay fosse na minha frente e apenasesperei no corredor. De lá ainda podia ouvir ele se aproximar de Victoria:

­Olá, acho que não me apresentei. Eu sou Jay, irmão da sua mãe.

­É eu sei ­ ela respondeu com a sua confiança infantil ­ Eu sou a Victoria e esse aqui é meupapai.

­É, eu sei ­ ele disse, rindo ­ Eu e o seu pai somos… velhos amigos…

­É verdade??? ­ Vic parecia empolgada.

­É sim, ele nunca contou? A gente tocava na mesma banda, ele era o baixista e eu o guitarrista.

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­Noooossa… ­ adorava quando a Vic falava um "nossa" tão comprido ­ que legal! Não sabia queo papai era tão legal. E você parece ser muito legal também.

­Somos uma família muito legal, não acha? ­ Ele disse.

­Mas a mamãe é a mais legal de todas. Ninguém supera, tá?

­Assim você deixa o papai triste, querida… ­ Diego se fingiu de magoado.

Ouvi ela gritar "Nãoooooo!" e depois devem ter se afastado pois não conseguia mais ouvir o quediziam. Sem querer, eu estava sorrindo, porque apesar de tudo, eu ainda tinha em quem meapoiar. Meu pai estava indo embora, mas eles ficariam. Minha família.

Algum tempo depois, Diego apareceu na porta da cantina e me viu sentada no chão abraçandoas próprias pernas. Ele se sentou do meu lado e apoiou minha cabeça em seu ombro.

­Está tudo bem? ­ Ele perguntou.

­Tá… tá sim ­ eu respondi, a voz rouca.

Ele sabia que não estava tudo bem, a gente tinha, assim, um código secreto para as coisas. Eunão precisava dizer, ele apenas sabia. Assim como eu sabia o que se passava com ele. E elesabia muito bem o que era perder um parente…

­A Vic? ­ perguntei.

­O Jay está cuidando dela. Estão conversando… Sabe, acho que vão se dar muito bem, afinaleles têm a mesma idade mental.

Eu ri. Diego me fazia rir nas horas mais improváveis, e talvez fosse por causa disso que tivesseaprendido a amá­lo também.

­A sua mãe ligou… ­ ele disse, me tirando dos meus devaneios ­ perguntou se vamos almoçarcom ela amanhã? Ela disse algo sobre o Tsui estar preparando o churrasco...

­Bom… ­ eu respondi ­ acho que não temos muito escolha, não?

Ele riu, embalando minhas mãos na mão dele, e me levantando. Ele enxugou meu rostomolhado, me beijou e disse "Vamos".

Talvez, se não fosse por ele, eu não tivesse sobevivido a nada daquilo. À doença do meu pai,aos meus dramas profissionais, à minha vida em Londres, longe de casa por tanto tempo…talvez ainda estivesse perdida entre os papéis que tomava em cada peça de teatro.

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Nunca vi Norah tão feliz quanto naquele dia, reencontrando a neta e tendo seus dois filhos aoseu lado de uma vez só. Tive medo de que ela mimasse Victória demais, mas não importava,porque elas não se dariam àquele luxo tão cedo novamente. Diego ajudava Tsui nachurrasqueira e Jay apenas observava.

­Juno, não importa o que diga, não poderei me acostumar com isso tão cedo… não acreditoainda que teve uma filha… ainda mais com ele ­ ele disse a ultima palavra com certo asco.

­Ah, Jay, por favor, supere. Aconteceu, você quer que eu faça o que?

­Irmãzinha… você cresceu, né?

­Caso ainda tenha alguma dúvida: sim, eu cresci.

Ele fez algum grunhido não­identificável enquanto desenhava com giz de cera.

­Tio! Não é assim, tá tudo errado! ­ Vic disse, tirando o giz da mão dele.

­Como assim, tudo errado?!! ­ ele parecia um pouco bravo, mas não mais que Vic, que levavaaquela brincadeira muito a sério.

­É assim, olha! Quem nem eu fiz ­ ela mostrava seu desenho super elaborado de uma casinhacom uma família e um carro.

­Mas eu não fiz assim? ­ ele mostrou seu desenho tosco de bonecos de palito.

­Estou vendo que puxou para a vovó ­ Norah disse orgulhosa do desenho de Vic, que estufou opeito, confiante.

­Viu só? ­ Ela disse, mostrando a língua para Jay.

Mais tarde todos já tinham comido o suficiente para uma semana inteira, Vic dormia na saladeitada no peito do Diego. Eles ficavam muito fofos daquele jeito. Tsui estava jogado na poltronae Norah balançava na rede da varanda. Apenas eu e o Jay estávamos acordados, colocando alouça na lavadeira.

­Me desculpe por não ter falado com você por todo esse tempo ­ Jay parecia se sentir culpado.

­Fui eu que não falei com você.

Ele riu.

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­Ela é ótima… a Vic. Vocês tem feito um ótimo trabalho, eu acho.

­É, acho que sim… ­ respondi.

­O Diego mudou… foi por causa dela?

­Acho que nós dois mudamos por causa dela, mas o Diego sempre foi assim, era só a genteque não queria enxergar.

­Você acha?

­É, eu e você… a gente sempre estava ocupado demais pra entender.

­Bom, ele até cortou aquele cabelo ridículo de headbanger ­ Jay disse, e eu percebi que pormais que ele tentasse, não conseguia esconder o ódio que sentia. Do que, eu não sabia ­ Hey…você já alguma vez se perguntou que diabos está fazendo da sua vida?

­Já… eu me pergunto isso todos os dias ­ respondi.

­Quer dizer, cara… passei a maior parte do tempo fazendo turnês, ia de um estado a outro,sem parar. Estou ficando velho… e cansado. Talvez, eu não sei…. Agora que vi você, e vocêcom uma filha, sei lá, isso me deixou um pouco preocupado.

­Preocupado por que? Ter filho não é a coisa mais simples do mundo… na verdade, é bemcomplicado. Eu nunca pensei sobre isso, eu acho que nunca teria parado para pensar, apenasaconteceu. ­ eu disse, colocando o ultimo prato na lavadeira ­ Eu também queria o mundo paramim, Jay, assim como você. Isso não é errado.

­Eu acho que… me sinto sozinho. Eu tento não pensar sobre isso, mas é a verdade. Mesmorodeado de pessoas, amigos, de fãs, mesmo assim me sinto sozinho.

Eu coloquei o braço pelo ombro dele, puxando­o para perto de mim.

­Deixe­me contar um segredinho. Estamos todos pelo menos um pouco sozinhos nessemundo. Alguns mais, outros menos, mas a verdade é que "estar sozinho" é uma condiçãonatural da qual não devemos ter medo. Temos que usar isso a nosso favor, Jay. As pessoasmorrem o tempo todo, olhe para nosso pai… É tudo tão triste e solitário… Mas precisamos nosagarrar as coisas que realmente valem a pena. A Vic vale a pena. O Diego vale a pena. Eu vivoporque, de alguma forma, eu posso fazê­los feliz, e ser feliz no processo. Eu não estou feliz otempo todo, não faria sentido, mas existem horas que me lembro e me sinto totalmente sortudapor isso.

Jay me fitou por um tempo infinito, como se tentasse absorver todas aquelas palavras. Eu não

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sabia se ele compreendia, ou se algum dia compreenderia. Existe um momento em quetentamos imaginar nossas vidas diferentes. Eu deveria ter viajado mais. Eu deveria ter feitomais. Eu deveria ter estudado mais, conhecido pessoas importantes, eu poderia ter deixadouma marca mais relevante no mundo. A gente poderia tantas coisas e nos vemos presos nasresponsabilidades do dia­a­dia, quase como se fossemos escravos de uma vida fantasma, dealgo que não controlamos. Existiram dias em que eu queria morrer. Eu simplesmente não podiasuportar. Achei que tudo estivesse perdido, que tudo fosse... pesado demais. Mas eu continuei.Invariavelmente, dias bons chegaram, e também se foram da mesma fora que vieram: semaviso prévio.

Mas também teve dias em que larguei tudo aquilo que obviamente não me fazia bem. Deixei irembora, sem um pingo de dó. E foi por causa dessas coisas que eu não poderia me arrependerdas escolhas que tinha feito. Eu fiz do jeito que eu queria, mesmo que isso significasse seguiros caminhos mais errados. Eu não poderia culpar mais ninguém além de mim mesma portodas as merdas, e que por pior que estivesse, sempre existiria o fim do poço: e dele eu nãopoderia passar.

E assim tinha sido minha vida até então: um apanhado de decisões ruins seguidas de boasjogadas. Se eu voltasse seis anos atrás, eu teria escolhido não ter filhos, mas quando olhavapara Victoria dormindo tão tranquilamente, um pedaço do céu no inferno que era nossas vidas,eu tinha certeza que ela era a melhor coisa que eu já tinha feito.

6. Sete anos antes

­Eu larguei a faculdade.

­O que? ­ Perguntou a mamãe.

­Eu larguei a faculdade. Tentei o máximo que pude, mas agora simplesmente não dá mais.

­Filha, mas por que? Não faltava pouco para se formar?

­Sei lá, agora não importa mais ­ percebi que a resposta não seria o suficiente, então continuei ­Faltei a muitas aulas, peguei muitas dependências, então eu teria no mínimo mais dois anospara terminar… Eu sinto que aquilo tudo não me acrescenta em nada, seria perda de tempo.

­Bem… querida… ­ ela começou ­ não sei o que te dizer, achei que era isso o que você queria.

­Eu sei, eu também achei. Acho que… me enganei.

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­Tudo bem… quer dizer, você já falou com seu pai?

­Estava esperando ele sair da sessão.

­E o Louis?

­O que?

­O Louis? Você não estava namorando com ele? Até me mandou algumas fotos.

­Ah… ­ eu tinha me esquecido daquele pequeno detalhe ­ a gente terminou.

Mamãe piscou por alguns momentos, confusa.

­Ah, é mesmo? Ele me parecia um bom rapaz.

­Ele era decente ­ respondi ­ mas acho que… ele queria outras coisas. Aliás, eu tenho certezadisso ­ eu disse, me lembrando do seu pedido de casamento irremediavelmente romântico. Eusimplesmente disse que não. O que mais eu poderia fazer? Aquele tipo de vida não me atraíanem um pouco. Além do mais, era bom saber que não estávamos na mesma sintonia.

Mais tarde, quando o papai saiu da sessão de quimio, ele estava tão fraco e doente, e vomitavaa cada cinco minutos, e eu lá tentando explicar meus dramas com a faculdade e o que melevou a aquela decisão. Fiquei me sentindo muito mal, e fútil. Ele estava lá lutando pela sua vida,e eu caminhando para minha auto­destruição.

­Querida, podemos conversar mais tarde? Estou realmente cansado. ­ ele pediu, a voz tãoperdida.

­Sim… Claro! Me desculpe, não deveria te encher com essas coisas agora.

­Não… prometo que ouvirei tudo mais tarde. Só preciso… fechar um pouco… os olhos.

E então adormeceu na sua poltrona favorita. Mesmo que minha tia Ruth estivesse lá para cuidardele, eu via como ele estava sozinho naquela casa vazia.

Ele estava melhorando, ou pelo menos era o que o médico dizia. Esta quimio era bem maisforte que a outra, mais ao mesmo tempo, muito mais devastadora para o corpo. Ele estava numestado completamente desabilitado, mal podia levantar para tomar banho. A parte boa é quetodos estavam confiantes que diminuiria o câncer em grandes proporções. Era esperar paraver.

Aproveitei que tinha acabado de voltar para o Brasil para visitar alguns amigos. Suzana tinha

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acabado de se formar em veterinária e trabalhava numa clínica no centro da cidade. Ela estavafeliz, e descobri que estava saindo com o Pedro.

­O Pedro? Nossa… como isso aconteceu?

­Ah, não sei, a gente estudava no mesmo campus e acabava se vendo muito. Nosencontramos em algumas festas e tal…

­Entendi… ­ eu disse, sorrindo de forma maliciosa ­ estou tãaaooo feliz! Não sei como nãopensei nisso antes, vocês são bem parecidos.

Suzana ficou vermelha.

­É, temos várias coisas em comum e tal…

­Ai, ai, é o amorrrr… ­ brinquei.

­Ai, meu! Para com isso ­ ela disse dando um tapinha nas minhas costas ­ Falando nisso, vocêficou sabendo? Ele saiu do Mad House no ano passado.

­O que? ­ a notícia me chocou ­ Como assim? Saiu por que?

­Bom, pelo que ele me disse, e ele não disse muito, assunto delicado sabe, foi por causa dealgumas desavenças com o Jay, e o Diego já tinha saído alguns meses antes e eles estavamprocurando um novo baixista pra banda. Foi algo assim…

­Caramba…

­Foi meio tenso, foi uma fase negra pro Pedro.

­Imagino.

­Pensei que já soubesse… O Jay não disse nada?

­Não… pra dizer a verdade, falei muito pouco com ele nos últimos tempos. Ele tem moradosabe­se lá onde, com alguns amigos.

­Eu acho que o Mad House acabou mesmo.

Foi quando Suzana disse aquilo que me dei conta. Todos aqueles sonhos antigos tinhamacabado de verdade. O Mad House não existia mais e cada um tinha seguido seu caminho. Eratão estranho…

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Estava pra anoitecer, e eu não tinha nenhum plano para aquela noite quando decidi refazer umcaminho que costumava fazer muito há seis anos atrás. Parei diante da casa dele, que estavacom todas as luzes apagadas. Fiquei imaginando se ele ainda morava lá, ou o que tinha feito dasua vida. Fiquei lá por aproximadamente quinze minutos antes de Amanda aparecer no portão.

­Puta merda, você quase me matou de susto, achei que era algum trombadinha ­ ela disse coma mão no peito. Pois é, algumas coisas não mudam, mesmo depois de anos as pessoas aindame confundiam ­ Juno, né?

­É sim.

­Ele se mudou, foi morar com nosso pai em São Paulo.

­Ah…

Então ele estava lá tentando conquistar a cidade grande.

­Você… hum, quer entrar?

­Não, já estou indo nessa… eu só pensei que… bom, deixa pra lá. Até mais.

Dei meia volta o mais rápido que pude, afinal, o que eu estava querendo? Ele agora estava bemlonge, vivendo a vida dele, e era isso o que eu estava tentando fazer também. Eu tinha aestranha mania de ir atrás dele mesmo sabendo que não iria encontrar nada. Tudo o que eutinha era um beijo de despedida e a promessa de um futuro inexistente.

Decidi entrar no grupo do facebook dos alunos e ex­alunos do colégio para ver se tinha algumacoisa rolando na cidade aquele dia. Eu definitivamente não iria para casa ficar alimentando asideias terríveis que eu tinha sobre a vida naquele momento. Acabei encontrando um post sobreuma festa aberta na casa de alguém. Mandei uma mensagem para Gabriela e combinamos denos encontrar lá.

­Porra, Juno, você poderia ter avisado que estava vindo! Eu teria combinado os rolês maisépicos do mundo.

­É, foi mal, eu cheguei ontem a noite, e meio que decidi vir de ultima hora.­Bom, a festa na casa do Brunão não vai ser lá aquelas coisas, sabe, vai estar cheia dehipsters.

Eu dei de ombros, qualquer festa era melhor que nenhuma.

Bom, ou talvez eu tivesse subestimado meu humor para festas naquela noite. Depois dealgumas bebidas, o efeito foi totalmente o contrário, e eu comecei a ficar totalmente deprê. Eu

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reconheci muita gente, algumas até vieram falar comigo, mas não tinha muito o que dizer. Empouco tempo eu descobri o que cada um deles fazia, em que curso estavam, ondetrabalhavam, e nada daquilo realmente importava.

Comecei a ficar realmente tonta então fui para o jardim. Senti um súbito cheiro de cigarro, umcheiro doce e diferente, e eu só conhecia uma pessoa que fumava aquela marca.

­Hey, você. Não deveria beber tanto assim, ou coisas ruins podem acontecer ­ eu reconheciaquela voz.

Me virei.

­Ai­meu­Deus­que­que­você­fez­com­o­seu­cabelo ­ eu soltei sem pausa entre as palavras.

­Cortei ­ Diego respondeu.

­EU VI!!! ­ talvez estava um pouco alta demais, pois estava gritando ­Isso não é justo, eu só tenamorei por causa do seu cabelo. Haha.

­Que bom, porque a gente não namora mais.

Eu devo ter feito alguma careta.

­Hey ­ eu disse ­ você lembra da ultima coisa que me disse? Você disse que eu deveria terficado um pouco triste, eu pareço triste o suficiente pra você? ­ então eu apontei para a minhacamisa manchada de alguma bebida ­ porra, derrubaram isso em mim.

­Não, mas você me parece um pouco deprimente.

­Ah, cala a boca.

­E essa não foi a ultima coisa que eu disse.

­Que seja ­ eu disse me jogando no chão e sentando. Talvez eu fosse vomitar, não sei.Diego se aproximou e me passou o cigarro, que eu traguei e tossi um pouco. Devolvi pra ele.

­Eu fui demitida do meu emprego e larguei a faculdade, agora to aqui de volta pra onde tudocomeçou, então desculpa se eu pareço um pouco deprimente.

Ele riu e se sentou do meu lado.

­Você sempre vai voltar.

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­O que isso quer dizer? ­ eu realmente não sabia, mas poderia imaginar diversos sentidos praela. Sentidos da qual eu não me orgulharia ­ Aliás, porque você ficou? Não existe nada aqui pranós...

­Esta é uma boa pergunta ­ ele virou seus olhos incrivelmente azuis na minha direção e ficoume fitando de forma perturbadora ­ talvez devessemos discuti­la qualquer dia desses.

­Não, por favor ­ respondi. Minha cabeça girava muito.

Eu decidi me deitar em seu colo, primeiro porque precisava deitar, segundo porque estavacarente, terceiro, porque foda­se.

­Por que você saiu do Mad House? ­ perguntei. Talvez conversar me mantesse acordada.

­Eu não queria mais aquilo.

­Ah… ­ tive a impressão de que ele também não falaria muito sobre aquele assunto ­ Cara,estou tão cansada…

­Eu sei.

­Cara, você gostava de mim? ­ Eu definitivamente não estava mais pensando.

Ele apenas deu um meio sorriso de deboche seguido de um "feh" habitual.

­Por que… você me deixou ir embora? Eu era só uma criança estúpida, talvez… se vocêtivesse dito que não, eu nunca teria ido ­ eu continuei.

­Não importa agora, Juninho.

­É sério, eu pensei muito sobre isso.

­Por que? Isso foi há séculos atrás… ­ ele sorria tranquilamente, como se não houvessemágoas.

­Eu só queria entender, sabe, porque foi tão difícil deixar o Daniel ir embora, foi como dar um tirono peito toda manhã, morrer, e ter que levantar pra tomar outro tiro.

­A gente está falando sobre ele?

­Não! ­ eu gritei, me apoiando com os cotovelos. De repente, nossos rostos estavam muitopróximos, e eu pude ver a seriedade no rosto dele ­ Eu só…

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Então vomitei. Bem em cima de sua calça jeans. Só me lembro dele me levando até o banheiroe segurando meu cabelo enquanto eu vomitava estrondosamente na privada, depois seguroumeu rosto com as duas mãos dando uns tapinhas nas bochechas. Acho que eu estavadesmaiando. "Fica comigo!" ele dizia. Ai meu Deus, eu me sinto tão mal. "Fica acordada!".Acho que vou morrer. Outro tapinha. Nada. Um jato de água no rosto e eu despertei.

­Deus, me sinto como uma adolescente imbecil que tomou seu primeiro porre ­ eu disse.

Ele riu, então minha missão estava cumprida. Ele encostou na parede parecendo aliviado.

­Você quer saber porque te deixei ir embora? Porque é assim que o meu amor funciona, eu nãoqueria que você pertencesse a mim, eu queria que fosse livre. Foi por causa disso que meapaixonei por você de qualquer forma… porque você era livre.

Eu nunca tinha ouvido a palavra "amor" e "se apaixonar" sendo usadas por Diego para definiralgum sentimento seu, muito menos em uma única frase. Eu estava tão confusa.

­Isso é uma piada? Você não deveria estar contando piadas pra pessoas no meu estado! Meubraço tá dormente, okay?! Eu acho que to morrendo… você não devia ficar fazendo… essascoisas… é sério!

­Não estou brincando…

Ele sorriu, mas a aquela altura não sabia mais definir se era um sorriso de desprezo, de pena,ou sei lá do que.

­Vamos, eu vou te levar pra casa ­ ele disse, me pegando pelo braço e passando­o sobre seusombros.

Ele me colocou dentro do taxi e entrou comigo. Alguns minutos depois já estávamos na frenteda casa da minha mãe. Ele tocou a campainha.

­Não… não tem ninguém em casa. É dia de jantar fora com o Tsui… ­ eu sussurrei, porque erao máximo que podia fazer.

­Onde estão suas chaves? ­ ele perguntou.

­...bolso… da calça...

Ele checou os bolsos da minha calça e tirou o molho de chaves, girou na fechadura, e a estaaltura, eu estava debruçada sobre ele, então ele apenas me colocou no colo e me levou pradentro. Aquela cena me parecia familiar. Eu quis chorar só de lembrar que o Daniel já tinha feitoaquilo comigo, e passado a noite ao meu lado. Não, não era justo.

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­Pare de chorar, a mamãe vai chegar em casa logo ­ ele disse, rindo.

­Eu devo ser uma eterna piada pra você, né?

­É, sim… ­ ele respondeu sem um pingo de remorso.

­Então é verdade? Você me amava mesmo?

­Amava.

­No pretérito imperfeito?

­No pretérito imperfeito. ­ ele confirmou.

­Por que nunca me disse antes?

­Não sei, porque este sou eu ­ ele disse, respirando fundo ­ É melhor eu ir nessa.

­Obrigada. Você sabe. Eu poderia ter morrido. Estou tão bêbada.

­Está. Você vai ficar bem? ­ Ele perguntou, eu fiz que sim com a cabeça.

Ele se levantou e foi até a porta, então parou um pouco antes de fechar a porta.

­Não, eu menti, não no pretérito imperfeito.

E foi embora. Eu queria deixar ele ir embora? Ouvi seus passos quando descia asescandalosas escadas de madeira. Eu o deixaria ir embora? Ele alcançara o hall de entrada eagora girava a maçaneta. Então foi como uma descarga de adrenalina, eu pulei da cama edesci as escadas correndo.

­Diego, espere! ­ eu gritei, e ele se virou ­ Eu também menti… não vai ficar tudo bem.

Ele apenas sorriu e disse:

­Eu já sabia.

Ficamos nos encarando por algum tempo, até que ele disse:

­Então, o que quer fazer?

­Não sei, eu…

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­Quer ir pra minha casa?

­Okay.

Quando chegamos, descobri que, bem, ele tinha saído da casa da mãe e agora dividia umacasa com um tal de Jonas (ele não estava em casa). O lugar era bem arrumado por serhabitado por dois homens, talvez mais arrumado que o meu apê.

­Quer tomar um banho? ­ ele perguntou. Eu fiz que sim com a cabeça, então ele me indicou obanheiro.

Tentei tirar a roupa começando pela camiseta, mas algo deu muito errado e eu fiquei entalada.Diego percebeu e me segurou pelos braços, puxando a camiseta calmamente para cima. Elenão disse nada, apenas continuou a tirar a minha roupa, o que foi um pouco erótico, só que elenão fez nada. Apenas me colocou dentro do box e ligou o chuveiro. Depois trouxe uma toalhalimpa e algumas roupas. Bem, não era como se ele nunca tivesse me visto antes. Só que eunão sabia o que ele estava pensando e meus pensamentos corriam soltos…

Quando saí, ele já tinha trocado as calças vomitadas e estava deitado na cama, lendo algumarevista, acho.

­Você se importa se eu deitar? ­ perguntei, só em caso. Ele apontou para a cama como sedissesse “seja bem vinda” e eu deitei do lado dele de barriga pra cima ­ e eu acho que nãoconsigo fazer nada além disso hoje.

­Eu não costumo me aproveitar de garotas completamente debilitadas.

­É mesmo? Você não parecia se importar, há alguns anos atrás… ­ eu disse, mas dormiimediatamente depois disso.

Quando acordei, na manhã seguinte ­ a cabeça latejando,é claro ­ Diego não estava, mas tinhadeixado o café da manhã pronto em cima da mesa. Cereal com algumas frutas, iogurte, cafécom leite… “Saudável”, pensei. Dei uma olhada na casa. Não era pequena nem grande, e adecoração era simples. No canto da sala, um case de guitarra, ou baixo, muito provavelmente.Em cima da mesinha de centro, um notebook aberto com algumas pilhas de papéis e livros,muitos livros na estante. Ele não me parecia o tipo de cara que gostava de estudar, mas talvezesta fosse uma das coisas que não sabia sobre ele.

Estava terminando o café da manhã quando ele chegou com uma sacola da farmácia, que meentregou “Aspirina” ele disse. Eu agradeci. Dei uma bela reparada: ele vestia calça de moletome chinelo. Acho que nunca tinha visto ele tão a vontade.

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­Então, o que você faz da vida agora que não toca mais na banda? ­ perguntei.

­Eu traduzo livros, basicamente ­ isso explicava a pilha de papéis... Manuscritos ­ Eu trabalhode casa, o que é ótimo, porque posso me dedicar a outras coisas também.

­Tipo?

­Tipo música ­ ele respondeu como se fosse a coisa mais óbvia do mundo ­ e você?

­Atriz numa companhia de teatro de Londres… era pequeno… e houve “corte de gastos” o queexplica meu status atual de “desempregada”. Eu estava odiando tudo aquilo, de qualquer forma­ eu disse colocando a louça na pia e lavando o que tinha acabado de usar.

Quando terminei, bati as mãos em sinal de “trabalho cumprido” e perguntei:

­Então, o que temos pra hoje?

­Quer dar uma volta?

Fiz que sim com a cabeça, vestimos os tênis e fomos para a garagem. Percebi que tinha umamoto alí que não me lembrava de ter visto no dia anterior.

­Essa moto… tava aqui ontem?

­Não, eu fui buscar na casa do Brunão hoje de manhã… Não podia arriscar te levar de moto pracasa ontem naquele seu estado deplorável.

­Oh, obrigado pela parte que me toca.

Ele me entregou o capacete e subimos na moto. Fazia um bom tempo que não me sentia,digamos, tão confortável. Estava usando as roupas de Diego, e não me importava. Estavacagando para o que as pessoas achavam. Existia algo naquela cidade que tinha meincomodado por anos a fio, e eu sabia que eram aqueles olhares de estranheza das pessoas, eagora, eu não me importava mais. Me senti livre.

­Não sabia que era tão bom no inglês ­ eu comentei, tentando puxar assunto. Estávamosandando pelo centro da cidade e tomando um sorvete bem gordo ­ Eu sofri muito para mecomunicar em Londres nos primeiros meses. Quase ninguém me entendia, nem entendianinguém, nem mesmo o Louis, que além de tudo, era francês. A gente não entendia o que ooutro dizia, mas pelo menos, pra compensar, a gente transava muito. Só ficou estranho quandoele me pediu em casamento, então percebi que a comunicação estava bem lesada mesmo.

O Diego ficou rindo da minha verborragia, ou rindo apenas de mim mesmo.

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­Então você namorou um cara francês, quão clichê isso pode ser…

­É, sei lá… esses franceses tem alguma coisa que eu não sei explicar… haha.

­Eu me tornei bom em inglês porque queria entender as letras das minhas bandas preferidas.

­Faz sentido.

Era uma tarde de domingo agradável e eu comecei a me preocupar com o que faria da minhasegunda­feira, o que não era bom, porque eu já não tinha mais um plano do que fazer da minhavida no geral. Voltamos para casa e eu conheci o Jonas, que era um cara bem legal apesar desuper tímido. Ele foi para o quarto e eu jogava video­game enquanto Diego trabalhava um poucoem seu notebook.

­Está entendiada? ­ ele perguntou e notei que me observava.

­Não! Só estou, hum, preocupada… Não quero te atrapalhar nem nada.

­Pode ficar o quanto quiser. Jonas vai ficar feliz em estar perto de uma presença feminina, estedeve ser o mais perto que esteve de uma garota em meses.

­Wow ­ eu respondi ­ Mas, hum, se você diz, então vou abusar de você mesmo.

Primeiro, não percebi o que tinha feito. Não pensei antes de falar, mas depois notei que talvez,incoscientemente, eu estivesse querendo dizer aquilo com segundas intenções, TALVEZ.

Ele estreitou os olhos e depois fechou o note, dizendo: “Querida, você pode abusar de mim oquanto quiser”. E eu fiquei lá parada, o jogo rolando na tevê, muitos gritos, e então ouvi um“game over”. Olhei do controle para o Diego, que continuava impassível, me fitando daquele seujeito genuinamente perturbador. Eu queria fazer aquilo? Eu estava prestes a fazer aquilo? Euestava preparada? Era só sexo. Mas era só sexo? E quanto a aquela confissão amorosa?Minha cabeça entrou em pane. Ele percebeu e riu.

­Você é tão fácil, eu poderia fazer isso pra sempre.

­Poderia? É, acho que poderia… ­ eu sussurrei mais pra mim mesma.

­Se te incomoda, posso colocar um colchão pra você aqui na sala.

­Não me incomoda. Sinceramente, queria dormir abraçada com alguém… Não, queria dormirabraçada com você. Mas pode ser que seja pedir demais.

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Ele deu de ombros, o que foi o suficiente para mim. Ele arrumou a cama e foi escovar osdentes. Eu tentei me aconchegar o melhor possível antes dele chegar. Então ele deitou e meabraçou na posição “conchinha” e mesmo tendo ouvido falar que era uma péssima posição etudo mais, foi o que ele fez. E dormiu, ou pelo menos eu pensava que sim. Algumas horasdepois, ele disse:

­Está acordada?

­Tô ­ respondi ­ Não consigo dormir… tenho pensando muito sobre amanhã e quão perdidaestou.

Então eu me virei para ele e ficamos frente a frente.

­Não se preocupe demais.

­Se você diz… ­ respondi, ainda desesperançosa.

­Apenas… ­ e ele acariciou meu rosto, colocando meu cabelo atrás da orelha ­ espere para ver.

­Desde quando você diz esse tipo de coisas… hum, otimistas?

­Eu sou uma pessoa otimista, você não sabia?

­Não é, não.

­Você tem razão. Na verdade eu queria dizer que vai ser uma merda por muito tempo, muitotempo mesmo, e você vai se odiar por ter desistido de tudo, e vai viver uma vida cheia dearrependimentos e remédios pra depressão.

Eu quis rir mas estava um tanto quanto cansada para isso, então apenas sorri. Fiquei paradaenquanto ele enrolava meu cabelo em seus dedos, imaginando se ele estava fazendo aquilopara me fazer sentir melhor ou porque ele simplesmente queria ficar comigo.

­Eu… ­ comecei, criando coragem ­ isso não deveria ser tão difícil...

Então Diego afastou a mão de mim, como se soubesse sobre o que eu estava pensando. Achoque ele estava tentando me seduzir. Não, eu tinha certeza. E Deus, como eu queria aquilo,talvez nunca tivesse deixado de querer. Eu podia não saber o que sentia, emocionalmentefalando, mas eu queria aquilo, então o beijei. E ele me beijou de volta, acariciando as partes domeu corpo que estavam expostas, e depois enfiando a mão por debaixo da camiseta.

Ele me salvou naquele dia da festa. Não porque eu estava quase desmaiando e poderia termorrido, mas porque ele olhou pra mim. E eu finalmente pude compreender o sentido de todas

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aquelas coisas. Ele era capaz de me amar e de confiar em mim, de um jeito que eu nemmesmo merecia mas que decidi aceitar.

Seis meses depois

Quando me dei conta, já estava morando na casa do Diego, mas ele quis oficializar me pedindopra ficar, e eu aceitei com a condição de que pudesse pagar uma parte do aluguel. Um tempodepois, arranjei um emprego na escolinha de teatro que a antiga professora do colégio tinhaaberto. Ela disse que era ótimo ter uma “atriz bem sucedida na europa” como professora, masé claro que eu não era nada daquilo. De qualquer forma, era bom trabalhar com criançasporque elas não eram tão hipócritas quanto as outras pessoas, e além disso, eu aprendi mais ládo que em todos os anos de curso. Eu estava me encontrando no mundo, e não tentandodesesperadamente me encaixar.

O meu pai estava muito melhor e a resposta dos médicos era animadora. O câncer haviadiminuido bastante e ele havia ganhado mais tempo de vida. Nunca se falava em cura, mastudo bem, porque não existe cura para a morte de qualquer forma.

As coisas começaram a mudar quando recebi uma carta da minha antiga roomate, dizendo queestava saindo do apartamento, o que queria dizer que eu teria que pagar todo o aluguel sozinha,bem, meu pai teria que fazer isso, e ele já estava pagando por uma coisa que eu nem estavausando há meses. Pela primeira vez, pensei que deveria voltar, pelo menos para resolver estasquestões pendentes.

Pensei por alguns dias qual seria a melhor forma de contar, mas cheguei a conclusão que averdade deveria ser dita assim como se tira um band­aid. Então, quando eu disse que estavapensando em voltar, o Diego não perguntou porque ou por quanto tempo, apenas disse que“tudo bem”. Aquilo me deixou um pouco incomodada. Mas quando ele parou de falar comigo,isso me incomodou ainda mais.

­Por que você não diz o que pensa? Sei lá, você está bravo porque eu disse que iria voltar praLondres?

­Eu não estou bravo.

­Então o que é? É difícil viver com seu silêncio.

­Não estou silencioso, eu apenas não tenho nada pra dizer.

­Nada? ­ Insisti.

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­Nope ­ ele respondeu de um jeito irritantemente debochado.

Mas eu estava começando a ficar com raiva.

­Por que você disse todas aquelas coisas pra mim no dia da festa? Por que tudo aquilo e porque tão tarde? Eu estava magoada, e fodida pra caralho, mas mesmo assim quis dar umachance pra… isso! Sei lá, não sei de mais nada.

­Eu disse o que eu disse e não posso voltar e apagar tudo. É assim que as coisas são.

­Você me pediu pra ficar na sua casa, puta que pariu!

­O que você quer que eu diga? ­ ele se alterou ­ Que eu quero que você fique? Você sabe queeu não faria isso, eu disse isso naquele mesmo dia. Então não tente me testar ou seja lá o queé isto que está fazendo. Apenas vá, e faça o que tem que fazer, e volte, se achar que deve. Maseu não posso prometer que estarei aqui até lá.

Eu sabia com quem estava me metendo, mas aquelas palavras doíam pra caralho. Porque elehavia me pegado num momento de fragilidade e só agora eu estava me recuperando. Eleestava certo, eu não podia pedir a ele que me esperasse, assim como eu não poderia dizerquando ou se voltaria. Todas as variáveis do nosso relacionamento estavam dando as caras, evou te dizer, não eram nada fáceis.

­Vem cá ­ ele disse, estendendo o braço ­ desculpa, tudo bem. Vamos resolver isso depois.

­Eu ainda tô brava.

A discussão valeu apenas pelo sexo de reconciliação, que costumava ser bem mais radical queo normal. É como se a gente quisesse provocar dor e ao mesmo tempo sentir dor, porque a dorfísica era nosso melhor remédio. Eu não teria pensado da mesma forma duas semanas depois,quando acordei passando muito mal.

­Eu sabia que não devia ter comido aquele sushi! ­ eu gritei entre um vômito e outro.

Tomei um remédio para enjoo, o que não adiantou nada porque horas depois estava de volta aobanheiro. Não sabia que um sushi poderia fazer tanto estrago, quando finalmente me lembrei dodetalhe mais importante daquela empreitada. Minha mente simplesmente fez tilt, e tudo fezsentido. Não, não, não. Eu sai do banheiro de costas, olhando aquela bacia cheia de vômito, asmãos na cabeça, quando Diego apareceu, meio preocupado, perguntando:

­Que foi? Você tá bem?

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Ele caminhou até o banheiro e viu todo aquele vômito, e quase perguntou alguma coisa, entãoele percebeu a minha expressão de desespero e também deve ter tido algum tilt, porqueapenas disse: “Vou na farmácia pra você”.

Ele trouxe uns três testes de gravidez diferentes, e todos ­ claro ­ deram positivo. Eu apenascontinuava repetindo mentalmente não, não, não como se isso pudesse reverter a situação. Eutava na maior encrenca do universo e não podia acreditar.

­Eu achei que fosse por causa do nervosismo, por causa da viagem, sabe… isso já aconteceucomigo antes, então não me preocupei, mas aí lembrei que já faz mais de duas semanas…Ai­meu­Deus­eu­to­muito­fodida.

Diego sentou na privada e começou a roer as unhas, pensativo. Então ele olhou pra mim, edepois voltou a roer as unhas.

­Quão fodida está a Juno? Muito fodida! ­ eu comecei a cantarolar pra espantar um ataquecardíaco eminente.

Então o Diego levantou e me puxou pelos braços até o quarto, me jogando na cama logo emseguida. Ele arrancou a camisa e pulou em cima de mim, e começou a me beijar loucamente.Eu não sabia se estava entendendo então parei por um segundo:

­Pera, o que a gente tá fazendo?

­Eu não sei, isso importa agora?

Eu fiz que não com a cabeça, afinal aquela não era a melhor hora para se pensarracionalmente, e umas boas doses de endorfina seriam bem­vindas. Tentei fingir que nadadaquilo estava acontecendo, mas no dia seguinte vi os palitos com sinalzinho de "mais" jogadosno lixo e meu estômago revirou. Era tão sério quanto poderia ser, e eu estava menos dezporcento preparada.

Minha viagem estava marcada para ali alguns dias e eu decidi ir mesmo assim, sob o pretextode que usaria esse tempo para pensar no que fazer. Isso incluía decidir sobre o aborto, porqueeu definitivamente preferia fazer isso na Europa, caso fosse minha decisão.

O Diego me abraçou e disse “se cuida”, mas eu podia ver a preocupação na sua voz. A culpanão era dele, mas acho que ele se sentia culpado. Eu também era uma idiota, porque às vezesa vida parecia tão fácil que a gente se descuidava. Eu tinha vinte e três anos e estava grávida, enem ao menos tive coragem de contar a minha mãe. Fui para Londres chorando praticamente ovôo inteiro, como se ainda fosse uma criança que se perdeu dos pais.

Chegando no flat, eu tive um surto psicótico e acabei jogando fora boa parte das minhas tralhas.

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Arrumei o apartamento inteiro e até mesmo organizei os filmes e Cds em ordem alfabética. Euestava ficando maluca só de imaginar um alien crescendo na minha barriga a todo instante, aideia era aterradora.

Cruzei com alguns amigos pela rua, tomamos chá juntos, e eu tentei parecer o mais normalpossível. Eu disse que estava namorando e que talvez voltasse para o Brasil. Eles queriam queeu ficasse, mas eles não tinham uma decisão de proporções estratosféricas pra tomar, entãoeu os desculpava.

No décimo dia em Londres eu estava me sentindo tão deprimida que deu pena de mim mesma.Aquela tinha sido uma péssima decisão, de ir para um país distante completamente sozinha, eutinha certeza, e foi quando a campainha tocou. Eu continuei olhando e olhando para a pessoado outro lado da porta, sem nenhuma reação.

­Tô atrasado ­ ele disse, sorrindo e jogando a mala no chão.

­Mas… por que? ­ eu perguntei, ainda confusa.

­Eu não sei, tive o súbito impulso que deveria vir.

Eu não podia parar de olhar pra ele, é verdade. Os cabelos castanhos, presos pelo óculos desol no topo da cabeça. Mesmo que não tocasse mais numa banda, ele jamais perderia aquelear meio rebelde, meio rock'n'roll. Isso soava meio brega, mas eu gostava. Eu gostava de olharpra ele, pra seu rosto meio delicado e meio anguloso.

­Vai me convidar pra entrar? ­ ele perguntou elevando uma sobrancelha.

Eu abri espaço para ele passar pela porta, ele caminhou até a sala e deixou o óculos em cimada mesinha, assim como o celular que tirou do bolso.

­Então, como estão as coisas? ­ ele perguntou sentando no sofá.

­É… bem… ­ respondi um tempo depois.

Ele sorriu, e eu sabia que aquele sorriso queria dizer alguma coisa. Ele sabia me ler tão bemque me dava raiva. Eu caminhei até ele, abri a boca, mas não consegui dizer nada. Entãoapenas fiquei alí parada, sem saber o que pensar. Porque ele tinha vindo todo o caminho atéLondres? Eu queria saber mais que tudo, e não queria respostas evasivas.

­Ainda tendo aqueles enjôos chatos… ­ eu disse, finalmente.

Ele ainda estava sentado mas me puxou pelo braço, me abraçando pela cintura. Eu envolvi suacabeça, acariciando seus cabelos, que eram incrivelmente macios. Enquanto isso, ele passava

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as mãos sobre as minhas costas, pela minha cintura, pelo meu quadril, e chegando naspernas... devo dizer que senti falta do contato. Fechei os olhos e apenas senti enquanto ele metocava. O que eu podia fazer se era uma pessoa tão… física.

Então ele parou, e ficou me observando enquanto me contorcia. Ele deu aquele seu sorrisocínico, então eu o empurrei pelo peito e sentei sobre ele. Ele enfiou as mãos por debaixo domeu vestido.

­Eu acho melhor aproveitar enquanto você não está gorda e extremamente grávida.

Eu dei um soco em seu peito, ele gritou e fez uma cara de sofrimento.

­Hey! Isso dói. Você devia saber melhor a força que tem…

­Eu sinto falta disso ­ confessei.

­Do que?

­Você sabe, bater nas pessoas.

­Você sempre pode fazer aulas de boxe.

­Não ­ eu disse, balançando a cabeça negativamente ­ eu quero dizer, bater nas pessoas deverdade.

­Você me assusta às vezes.

Talvez ele ter vindo tenha sido tipo uma segunda confissão de amor. Era isso o que ele queriadizer? Pra dizer a verdade, eu estava cansada de tentar fugir, de viver uma vida solitária, cheiade casos superficiais e pessoas estranhas na minha cama. Cheia de mágoas. Eu fiz isso porum tempo porque achava que deveria, que me faria feliz, que precisava desesperadamente serlivre. Mas eu queria ser assim tão livre quanto Diego acreditava? Talvez eu só quisesse quepelo menos alguma coisa desse certo. Então me perdi naquele azul infinito… eu amava aquelecara na minha frente? O que era o amor? Mas quer saber, era ele que estava alí e maisninguém. E caralho, nada daquilo fazia sentido. Um namorado de adolescência. Alguém quenunca realmente conheci. Alguém que olhava pra mim como se eu já fosse completamenteimportante. E quando foi que ele se tornou tão importante pra mim…?

­Diego… ­ eu comecei, sem pensar muito ­ você quer ser o pai do meu filho?

Ele apenas sorriu seu sorriso sexy e disse "estava esperando você perguntar".

­Isso quer dizer que…eu vou ser uma mãe? Eu vou ser uma mãe? Meu Deus, eu amaldiçoei

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minha mãe por anos e agora vou ser uma delas… Isso é terrível.

De repente, eu já tinha tomado minha decisão. Talvez eu já tivesse decidido desde o começo,por isso estava sofrendo, porque este era o caminho mais tortuoso, mais longo e difícil. Eradifícil aceitar, e dava um nó na garganta de imaginar, mas nós continuamos. Nós nos tornamosaquele tipo de pessoa, mas quer saber, eu não me importava nem um pouco.

...Continua?