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Vidas quebradas: reflexos do crack

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Livro escrito enquanto estive preso dentro da penitenciária de São Pedro de Alcântara/SC. Vidas quebradas é um projeto pessoal, realizado no interior da Penitenciária de Segurança Máxima de São Pedro de Alcântara. A convivência nesse ambiente hostil e triste fez com que eu idealizasse este livro, com o intuito de transmitir um pouco do que presenciei e percebi.Muitas das personagens foram criadas com base em pessoas verdadeiras, com personalidades similares ou distintas. Algumas, como a própria Maria Pascoalina, que surgiu em homenagem à minha falecida avó paterna, e o Surdo, homenageando um falecido amigo chamado Rafael, que era mudo de nascença e consumia crack.Lenilson é a mescla de muitos que conheci durante os anos em que permaneci preso; Capitão é uma caricatura da sociedade, corruptível. Outros, criei a partir de relatos fornecidos por meus colegas de cela, como a Vitória e o José. Com muita dedicação, este livro foi escrito. Trata-se de uma ficção com apelo social, baseado em um cotidiano transtornado por um mal cada vez mais comum: as drogas.

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Reginaldo Osnildo

Vidas quebradas: reflexos do crack

1ª edição

Florianópolis

Diretoria da Imprensa Oficial e

Editora de Santa Catarina

2014

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Edição da Diretoria da Imprensa O� cial e Editora de Santa Catarina

Projeto grá� co e diagramaçãoHeloisa de Oliveira Ganzo

RevisãoJaqueline Sinderski Bigaton

FICHA CATALOGRÁFICACatalogação na publicação – CIP – BrasilArquivo Público do Estado de Santa Catarina

Ficha catalográ� ca elaborada pela Bibliotecária Giovania Nunes (CRB-14/993)

Diretoria da Imprensa O� cial e Editora de Santa CatarinaRua Duque de Caxias, 261 - Saco dos LimõesCEP 88045-250 - Florianópolis - SC

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Agradecimentos

Agradeço, primeiramente, a Deus. Aos agentes penitenciários que me forneciam folhas e canetas. Em

especial ao Paulo de Bem. Aos reclusos na época, Carlos José Santos (Pé de Cabra), Paulo Roberto da Rosa (Paulinho) e Rogério Fernandes Gonçalves (Buchecha), que me aguçaram as ideias e me incentivaram.

E ao governo do Estado de Santa Catarina por este projeto, sem o qual nada estaria concreto realmente.

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Dedicatória

Dedico este projeto, em especial, aos meus falecidos pais: Tereza Maria Lopes e Osnildo Orlando Barbosa.

Para a tia Albertina e o tio Laudeli. Meu irmão, Íon Cézar Cardoso. Meu padrasto, Márcio Cézar. Minha

esposa, Rosicléia Duarte de Moraes, e minha enteada, Adrielly Moraes.

Jamais esqueceria Eloisa Kniss e minha avó, Maria Pascoalina, responsável pelo batismo

da personagem central.

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Sumário

Apresentação ............................................................................. 11

Maria Pascoalina ....................................................................... 15

Inocêncio dos Anjos .................................................................. 23

Pós-Inocêncio ............................................................................ 31

A vida e m... do Playboy ............................................................ 35

O Surdo e o Mudo ..................................................................... 43

Reintegração .............................................................................. 49

Soldado usuário ......................................................................... 57

Soldado do morro ..................................................................... 63

Mais um José ............................................................................. 69

Vitór... ia ................................................................................... 75

O ban... ban... ban... bandido .................................................. 81

Jesus dos Santos Emanuel ......................................................... 85

Reflexões de uma cidadã ........................................................... 91

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Apresentação

Vidas quebradas é um projeto pessoal, realizado no interior da Penitenciária de Segurança Máxima de São Pedro de Alcântara. A convivência nesse ambiente hostil e triste fez com que eu idealizasse este livro, com o intuito de transmitir um pouco do que presenciei e percebi.

Muitas das personagens foram criadas com base em pessoas verdadeiras, com personalidades similares ou distintas. Algumas, como a própria Maria Pascoalina, que surgiu em homenagem à minha falecida avó paterna, e o Surdo, homenageando um falecido amigo chamado Rafael, que era mudo de nascença e consumia crack.

Lenilson é a mescla de muitos que conheci durante os anos em que permaneci preso; Capitão é uma caricatura da sociedade, corruptível. Outros, criei a partir de relatos fornecidos por meus colegas de cela, como a Vitória e o José.

Com muita dedicação, este livro foi escrito. Trata-se de uma ficção com apelo social, baseado em um cotidiano transtornado por um mal cada vez mais comum: as drogas.

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Não Calar

Há uma regra fundamental quando se vive como nós estamos a viver - em sociedade, porque somos uns animais gregários - que é

simplesmente não calar. Não calar! Que isso possa custar em comunidades várias a perda de emprego ou más interpretações já o sabemos, mas

também não estamos aqui para agradar a toda a gente. Primeiro, porque é impossível, e segundo, porque se a consciência nos diz que o caminho é este

então sigamo-lo e quanto às consequências logo veremos.

José Saramago

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Maria Pascoalina

Meu nome é Maria Pascoalina, sou psicóloga efetiva do sistema penitenciário. Nos meus primeiros dias como funcionária em um estabelecimento

penal de cidade grande, em um estado rico e bem estruturado deste belo país chamado Brasil, deparei-me com a face deformada da sociedade.

Ao entrevistar alguns reclusos do complexo penitenciário ao qual, na época, fui designada, compreendi. Senti impotência, em meio a tantas coisas que anteriormente me eram alheias. Surgiu-me a ânsia de reformar o mundo, lutar por um ideal de libertação, ensinar sobre, e mostrar para muitos o que diariamente passa despercebido: o crime.

O que é o crime? Sentimos o crime quando somos atingidos diretamente por ele; ao

chegar ao lar e perceber que algo foi furtado, ao sermos assaltados no semáforo ou perdermos alguém para as balas perdidas. É, infelizmente, enquanto nada disso nos atinge, ignoramos a existência desse briaréu moderno, mas ele está ali, agarrando e devorando dezenas e centenas de milhares de vítimas, por diversas formas diferentes. E uma dessas formas é o crack.

As entrevistas, em questão, tinham como objetivo analisar o comportamento, as futuras metas e a mente de alguns presos que haviam alcançado o período regulamentar para benefícios de progressão de regime. Dependia, em parte, de minha análise para que tal fosse concedido.

Eis que, analisando a dicção, a postura, o passado e os pensamentos de alguns deles, cheguei a uma conclusão: o mal do século é uma pedra. Apenas isso, uma pequena pedra de crack. Aquele que não usa, talvez venda; o que não vende, talvez carregue; o que não carrega, de alguma forma está envolvido, seja como participante ativo ou passivo, ou, ainda, como nós, vítimas dessa catástrofe social.

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***

Antes de passar no concurso público para o cargo que agora exerço, habituei-me a registrar, com um pequeno gravador portátil que possuo, tudo que julgasse importante. Nesse meu primeiro dia de serviço, estava com ele funcionando a todo vapor. Quase tudo que foi conversado, naquela pequena sala que me foi fornecida para o exercício da função, consegui registrar.

Naquele momento não me passava pela mente transformar o meu trabalho em um livro aberto ao público, até porque não imaginava o que me esperava. Porém, trago hoje a você, um dos maiores interessados nessa questão demasiado polêmica, minha análise sobre a situação e alguns depoimentos recolhidos naquela sala, nos poucos minutos que tive de conversa com cada um.

Reforço que, para facilitar o seu entendimento, prezado(a) leitor(a), tendo em vista que os mesmos possuem toda uma linguagem para se comunicar nesse mundo paralelo, substituí as gírias complexas que foram ditas pelos presos por palavras de compreensão popular, no entanto, alguns erros modestos de pronúncia em suas falas permaneceram propositalmente – nada que pudesse dificultar a compreensão –, corrigi apenas os erros mais grotescos.

Transcrevi as entrevistas com o intuito de transmitir o cotidiano de alguns desses supostos perturbadores da ordem, não cabe a mim julgá-los pelo que já haviam ou estavam cumprindo, mas algo neles era comum e é esse algo que tenciono mostrar-lhe. A sequência em que os depoimentos foram colhidos não condiz exatamente à ordem com a qual foram enumerados nesta narrativa, no entanto, assim dispostos, podem ser melhores compreendidos.

Espero, através dessas vivências alheias que, como eu, você possa entender que existe um mal bem próximo a nós que precisa ser combatido. Sou uma simples psicóloga, e esta obra foi a maneira que encontrei para chamá-lo(a) para a batalha. Tenciono que, ao final da leitura deste livro, você tenha uma posição convicta de como deve agir em relação à essa droga mortal. Não está em mim guiá-lo(a) ou dizer como deve agir em relação a tudo que será aqui mencionado; simplesmente espero, com muita convicção e fé, que você compreenda que o mal está próximo. Não ignore, procure uma maneira de lutar, use sua sabedoria e tenho certeza que encontrará algo com

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que lutar nesta guerra. Venceremos se nos unirmos pelo bem maior.Independente de sua classe social, de sua religião, de sua cor ou

idade, você não está escape do crack; não feche seus olhos para o que está acontecendo; o que aconteceu na vida dessas pessoas aqui citadas pode acontecer com você, direta ou indiretamente.

Não está em mim criticar, porém, tenho visto muitas campanhas alertando para o não uso dessa droga da morte. Apoio integralmente essa nobre iniciativa, no entanto, não acontece o mesmo com os que já são usuários – compreendo que a prevenção é o melhor remédio, mas, não podemos ignorar a doença; se assim fizermos, ela se propaga.

Talvez nossos governantes pudessem ampliar os programas de reabilitação para os viciados; quem sabe uma reformulação na justiça, abrangendo melhor a questão; investimentos na informação para alertar o povo seriam bem-vindos e programas sociais para melhor tratar os necessitados seriam também de bom grado.

Bem, melhor que eu pare um pouco, por enquanto, sobre essas análises políticas e sociais, caso contrário, tão cedo não exponho o que realmente é importante no momento: a realidade dos excluídos e suas vidas quebradas.

Com o decorrer da leitura você entenderá melhor o porquê deste termo, excluídos.

Vamos lá...Não coloquei data, mas estávamos na primeira década do século XXI.

***

“Hoje é o meu primeiro dia como efetiva naquela penitenciária, confesso que estou com um pouco de medo, mas vamos lá, seja o que Deus quiser.”

Lembro que era bem cedo quando gravei essas palavras, o sol ainda não havia nascido e eu já estava de pé, tamanha era minha ansiedade.

Para chegar até esse cargo estudei muito, completei a faculdade, trabalhei por um tempo em um colégio infantil por contrato, passei no concurso e fui submetida a alguns testes extras depois. E, com a graça de Deus, tudo deu certo.

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Cheguei bem cedo; o porteiro do complexo pediu minha identificação. Enquanto estava do lado de fora, nada podia ver, a não ser um enorme portão de aço e um muro maior ainda – imenso, colossal, gigantesco. Haviam guaritas postas em cada extremidade do muro que avistei; só depois que pude tomar conhecimento que nas laterais e nos fundos do complexo também existiam guaritas, mas, no primeiro momento, pouco percebi.

Liberada minha entrada, o portão se abriu, não muito, apenas o suficiente para minha passagem. O primeiro passo que dei para o interior daquele estabelecimento me abalou a estrutura, senti como se um cobertor peludo e molhado tivesse sido colocado sobre meus ombros, não sei como descrever melhor essa sensação, a dificuldade para o meu caminhar era imensa, como se uma barreira em minha mente tivesse sido criada, minha vontade era fugir, como se eu fosse a criminosa. Senti medo daquele lugar, muito medo.

A primeira impressão que tive naquele princípio de caminhar foi de estar em uma gigantesca colmeia. A parede que avistei no momento inicial de reconhecimento me passava a impressão de um enorme favo de mel, não em sua doçura, mas, por seus pequeninos compartimentos, ou habitat, que poderiam ser comparados aos cubículos que aparentavam os lares das larvas de abelhas, que foram desocupados e adocicados pelo pólen. O sol, surgindo lentamente por trás do imenso paredão repleto de janelinhas, cobria a brancura da muralha com o dourado de seus raios, assimilando-o ainda mais à cor do mel. Os zumbidos das falas dos presos, que já estavam acordados naquele momento, juntavam-se entre si e a distância, na qual eu me encontrava das conversas paralelas, não me permitia compreender; no entanto, o som que ouvi naquele momento era de gigantescas abelhas operárias.

Melhor não sei explicar, a sensação foi surpreendente, se um dos agentes prisionais não tivesse surgido e perguntado se eu estava perdida, teria eu ali permanecido por dias, sem me movimentar. Catatônica, foi assim que fiquei, como se tivesse voltado para minha infância, quando brincava com minhas coleguinhas de estátua. Uma voz em meu subconsciente deu o grito e paralisei.

Segui o agente prisional que se dirigiu a mim. Antes de adentrar ao monumental empreendimento ressocializador, paramos no refeitório, onde

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nos foi servido um café matinal reforçado. Todos me cumprimentaram e parabenizaram pelo meu primeiro dia, alguns me deram conselhos diversos sobre não confiar nos presos e jamais ficar sozinha com um deles. Ouvi e guardei, poderia me ser útil.

***

“Não posso me esquecer de jamais ficar sozinha com um preso e não confiar neles. Estou apavorada!”

Gravei isso, no banheiro, enquanto lavava meu rosto para tentar acordar daquele pesadelo momentâneo. Hoje compreendo que um pouco foi mitologia, impregnada em meu subconsciente pelas lendas urbanas que circulam na sociedade.

Trocaram-se os plantões, apresentei-me aos demais que substituíram os agentes da noite anterior, e, só depois de estabilizados, cada um em seu posto, me mostraram o local que trabalharia nos dias seguintes. Tratava-se de uma pequena sala com duas cadeiras e uma mesa entre essas, havia um arquivo de metal com quatro gavetas desocupadas e algumas prateleiras fixas nas paredes que rodeavam o recinto, além de quatro pequeninas entradas de ar na extremidade superior oposta à porta.

Quando perguntei aos funcionários o que havia acontecido com a psicóloga anterior, emudeceram. Fiquei imaginando mil e um possíveis acontecimentos trágicos, novamente meu subconsciente criando situações baseado em fofocas.

***

“Sinceramente, me decepcionei. Esta sala está parecendo uma tumba. Aqueles quatro buracos, de dez centímetros de raio, creio eu, no alto da parede, jamais substituirão uma janela. Está abafado!”

No momento que gravei isso, não tinha conhecimento que minha sala estava sendo reformada; essa saleta citada seria apenas provisória.

Em relação à minha antecessora, sei que ela afastou-se por problemas

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particulares referentes à saúde, nada mais descobri desde então.Meus primeiros momentos naquela penitenciária foram torturantes.

Arregacei as mangas e limpei todo aquele ambiente tenebroso. Enquanto limpava, meu colega de serviço, que era o assistente social do referido complexo, me explicou rapidamente como deveria proceder dali em diante, me entregou algumas folhas e saiu. Terminei a limpeza e, só então, dei a atenção devida ao conteúdo.

***

“Tenho em minhas mãos a ficha carcerária de diversos detentos; hoje mesmo preciso fazer um relatório especificado sobre cada um deles. Devo lembrar-me de trazer um vaso de flores para melhorar o ambiente.”

Analisei minuciosamente cada folha. Em seguida, chamei um agente prisional e solicitei que me trouxesse os presos que especifiquei em uma folha de papel, que viessem um após o outro.

Meu serviço estava apenas começando.Sentada, permaneci aguardando. Sem saber o que esperava, fiquei

desenhando um psicopata em minha mente. Até aquele momento meu psicológico estava travando, não conseguia pensar positivo, somente calamidades e tragédias.

Eis que surgiu.Liguei o gravador.Desliguei.O agente prisional colocou o preso na cadeira, em frente à mesa, e

saiu. Imediatamente levantei-me e o segui. Perguntei-lhe por que havia me deixado sozinha com o preso e ele respondeu:

– Pois é, dona, não sabia que psicóloga tinha que ser contratada com segurança particular anexado ao pacote. Façamos assim, hoje você se vira, amanhã o próximo plantão te arruma um guarda-costas, certo?

Dito isso, desapareceu por entre os corredores gradeados.Retornei à sala com meu pânico redobrado, talvez até triplicado.Em meus primeiros minutos no complexo fui aconselhada a jamais

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ficar só com um deles e, de repente, ali estava, completamente desamparada. Analisando a ocasião, atualmente compreendo que um pouco foi fantasia minha. Porém, confesso, meus colegas poderiam ter sido mais compreensivos, especialmente aquele brutamontes ignorante que, aliás, hoje é muito amigo meu, mas, naquele momento, deixou a desejar.

Sentei em minha cadeira e observei o preso que ali foi colocado para que conversássemos. Perguntei se poderia gravar a entrevista, ele consentiu.

Tratava-se de um homem de aproximados cinquenta anos, baixa estatura e porte físico atlético. Em sua ficha constava a idade, seu delito – tráfico de drogas –, bom comportamento registrado até então, não possuía advogado e não recebia visitas de familiares.

Foi ótimo ter conversado com ele primeiro, era um homem simples e bem educado, isso desmistificou meus anseios.

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Inocêncio dos Anjos

– Qual o seu nome? – perguntei, mesmo sabendo a resposta, apenas para confi rmação, evitando assim erros na análise.

– Inocêncio dos Anjos, senhora. – respondeu ele.Enquanto falava, sua cabeça permanecia abaixada, não sei dizer se por

vergonha ou respeito. Prossegui:– Você sabe por que está aqui, Inocêncio?– Sei, sim. É para saber se estou apto a voltar para a sociedade, senhora.

– respondeu ele, ainda com a cabeça baixa.– Pois bem, se você não conversar comigo olhando diretamente nos

meus olhos, creio que não poderei ajudá-lo muito. – disse isso com muita difi culdade, porém, em tom enérgico.

Imediatamente ele ergueu seus olhos, compreendeu que a liberdade dele em parte dependia daquela entrevista, desculpou-se. Disse a ele que não era preciso desculpar-se, que estava ali para ajudá-lo e bastava que conversássemos, nada mais. Esclareci-lhe que, o que não quisesse falar ou responder, não seria obrigado. Ele sorriu e seu sorriso me acalmou.

– Pelo que foi preso, Inocêncio? – para algumas das perguntas que fi z, já possuía resposta, no entanto, precisava deixá-lo à vontade e isso era um começo.

– Tráfi co de drogas, senhora. Fui preso dirigindo um carro, forrado com crack, de um estado a outro. – disse ele.

– Tem advogado? – perguntei.– Não. A droga não era minha propriedade, apenas receberia um

dinheiro para transportá-la. – respondeu.– Quer me contar o que aconteceu? – indaguei-o.– ...

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– Inocêncio, posso ajudá-lo muito. O que me diz? – insisti.Ele pensou um pouco e iniciou seu relato.

Antes de ser preso por tráfico de drogas e estar sozinho nesta penitenciária, eu era alguém, um cidadão de bem, honesto e trabalhador. Passei muitas dificuldades em minha vida, porém, adquiri um lar, conquistei minha esposa e fui abençoado por Deus com duas filhas lindas. Com muito suor e sacrifício, consegui comprar os bens necessários para o dia a dia, sustentei minhas filhas e eduquei-as. Nunca deixei faltar nada dentro de casa. Vi minhas filhas crescerem e casarem.

Pouco tempo antes de minha decadência, fui procurado por um rapaz da comunidade onde moro, queria que eu guardasse armas e drogas, recusei com muita prudência, tinha medo de sofrer represálias por parte dele. Depois desse dia, sempre que esse indivíduo me via, cumprimentava-me e me aliciava, pedia que, assim que eu mudasse de ideia, eu o procurasse. Sempre recusei.

Aconteceu que, minha esposa resolveu, certo dia, fazer um check-up geral em sua saúde e foi constatado um tumor maligno no abdômen. O tratamento era caríssimo, mas resolvemos de imediato começá-lo. Vendi um veículo que possuía para dar de entrada e parcelei o restante. Passei a ir para o serviço a pé ou de bicicleta, fiz esse sacrifício de todo meu coração.

Mas sabe como é, senhora... Nem sempre as coisas ajudam. Eu era funcionário em uma metalúrgica automotiva e recebia um salário suficiente para me equilibrar, não era uma vida complicada, tão pouco fácil demais. Encaixamos as parcelas salgadas do tratamento, com muito amor, no nosso orçamento. Infelizmente surgiu a crise.

Triste hora para esses bancos mundiais entrarem em falência. A indústria no qual eu trabalhava era uma multinacional, dormi empregado e acordei, dia seguinte, no meio da rua. Todos os nossos planejamentos foram por água abaixo, inclusive a questão da saúde de minha esposa.

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Entrei com um processo na justiça requerendo os valores rescisórios de meu contrato trabalhista, com o dinheiro da saída poderia quitar as parcelas restantes e manter o bem-estar de meu amor. Só que os executivos dessa empresa evaporaram, senhora. Fiquei transtornado. Com algumas economias que ainda restavam passamos um mês, veio outro e as contas começaram a surgir, eu não podia perturbar minha esposa. ela precisava de paz. Por um bom tempo procurei por serviços informais, mas sabe como é, senhora... Essa crise foi uma “marolinha” que alcançou muita gente, não só eu.

Um dia, quando caminhava completamente desgostoso da vida, sem esperança e entristecido, encontrei-o, acredito que o mais certo é dizer que ele me encontrou, o aliciador.

– Meu caro, Inocêncio. Como vai, amigão? – ele me cumprimentou.

– Terrível, meu caro, terrível! – desabafei.– Em que posso ajudar, companheiro? – me perguntou.

Tive a impressão de ter visto um brilho em seus olhos, mas, no momento, não me impressionou muito, eu tinha muito com o que me preocupar.

– Estou procurando serviço, somente isso! – falei e tentei me desvencilhar da armadilha que ele estava montando.

Quando dei alguns passos rumo ao meu lar, ele me chamou. Por bom senso, resolvi não ignorá-lo. Foi quando ele jogou a frase chave:

– Sei como você pode salvá-la!Minha primeira vontade foi agredi-lo, porém, essa

frase foi a melhor maneira de me persuadir, tudo até aquele momento me levou a tal conversa. Quando me dei conta, estava pronunciando uma palavra que dizia tudo:

– Como?Ele me abraçou e começou a caminhar comigo, meus

passos eram automáticos. Sem perceber de que forma, quando dei por mim estava em uma residência, sentado no sofá, rodeado por vários malandros armados e recebendo instruções.

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Fui contratado!Naquele dia, recebi como instrução o simples fato de

levar uma mochila de onde estávamos até a cidade vizinha, recebi o dinheiro para a passagem de ônibus e o pacote. Alguns tapinhas nas costas foram o incentivo final.

Instantaneamente me vi dentro do coletivo com o endereço nas mãos. Não conseguia pensar. Cheguei ao destino sem ao menos ver o que a mochila continha; acreditava que seria melhor se não soubesse, pelo menos por desencargo de consciência. Embaixo do endereço existia anotado um número de celular, fui até um telefone público e efetuei a ligação a cobrar.

Fui atendido por uma mulher do outro lado da linha, ela pediu que eu esperasse em uma pizzaria próxima; o lugar era tranquilo e sempre foi utilizado para essas ocasiões. Encontrei o estabelecimento com facilidade, entrei e aguardei. Sem demora alguma chegou a mulher, sentou-se à minha frente, pegou a mochila e pediu para que eu esperasse ali mesmo, solicitou uma pizza ao garçom, algo para beber e quitou. Feito isso, desapareceu.

A pizza surgiu acompanhada de um refrigerante, estava tranquilo e resolvi me alimentar, após o primeiro pedaço de massa mastigado comecei a me indagar o que a mochila continha e, antes de completar meu pensamento, ele surgiu. O aliciador me entregou um envelope com a quantia combinada, me acompanhou na refeição e, em seguida, despediu-se:

– Até a próxima, Inocêncio.Pensei que não teria próxima, mas disse-lhe:– Até!Com o dinheiro que consegui naquele serviço, quitei

contas e as parcelas que estavam atrasadas do tratamento, ainda sobrou para comprar mantimentos para nos manter por um tempo. Novamente saí para procurar oportunidades, nada encontrando.

O tempo passou e novas contas começaram a surgir. Minha esposa foi internada para completar a quimioterapia e eu

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me vi em apuros financeiros. Por todo lugar que eu caminhava, eu o via. Cheguei a imaginar que ele me seguia, mas não. Eu havia sido aliciado uma vez pelo destino e esse mesmo destino o colocava novamente em meu caminho.

Um dia, em meio a tantas tribulações, fui procurá-lo, desabafei sobre minha situação e disse a ele o valor que me faltava, ele sorriu e falou que tinha o serviço ideal para mim, uma viagem. Em apenas poucas horas, conseguiria o valor que me perturbava e me sobraria um pouco ainda para manter-me. Aceitei.

Hoje me arrependo, senhora. Por diversas vezes, minhas filhas ofereceram-me ajuda, e eu, orgulhoso que só, recusei. Veja como é as coisas, para aquele criminoso da comunidade não conseguia dizer não. Novamente não quis saber o que estava levando; lembrar que o ajudava já me transtornava, saber como, iria me abalar ainda mais.

Desta vez foi um carro o que transportei. Ele me entregou uma passagem de ônibus, a documentação de um veículo, sua chave e um endereço com nome e telefone. Levou-me na rodoviária e me disse que aguardaria na mesma pizzaria da cidade vizinha.

Em poucas horas cheguei ao destino, tranquilo, efetuei um telefonema e apareceu um mecânico em um guincho, levou-me até ali perto e me mostrou o veículo. Era um popular, desses de fácil acesso a quase todas as classes sociais. Embarquei, após constatar que o tanque estava cheio, e peguei o caminho de volta. Na metade do percurso, passei a ter a impressão de estar sendo seguido, no entanto, não me preocupei, não sabia o que estava transportando e isso me manteve calmo.

Estacionei o automóvel na lateral do estacionamento; adentrei e sentei na mesma mesa do encontro anterior. O local estava movimentado e o garçom demorou um pouco para atender-me. Quando ele notou a minha presença, perguntou o que eu queria, aleguei apenas esperar por alguém e pedi-lhe um refrigerante. Sem demora, fui servido.

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Ali, naquele ambiente, me senti à vontade, relaxei. Enquanto degustava o líquido que me foi entregue, observei rapidamente os demais que estavam no espaço. Em algumas mesas mais afastadas de onde me encontrava, havia uma ou duas famílias, não sei ao certo, eram mais de quinze pessoas, tinha idosos, crianças e alguns jovens, comemoravam algo. Do meu lado esquerdo, dois homens vestidos de preto conversavam em tom de voz reduzido. No meu lado direito, um casal; o homem devia ter seus quase sessenta anos e a moça que o acompanhava, em torno dos trinta. Sem contar os garçons que eram no total de três, os entregadores de pizza que iam e vinham constantemente e as pessoas que não pus reparo.

Pois é, senhora, dois, dos que estavam nesse local, eram policiais civis e estavam investigando há tempo o aliciador. Eu, bem inocente, não desconfiei de nada. Inocente entre aspas, senhora. Eu era um criminoso naquele momento, só depois, refletindo, que fui me dar conta das minhas atitudes. Antes que eu terminasse minha bebida não alcoólica, ele chegou, sentou na minha frente e sorriu, perguntou se eu havia pedido algo para comer, diante da minha negativa, chamou o garçom.

O senhor e a moça que estavam do meu lado direito se levantaram. Nesse exato momento, o garçom fez um sinal para que o aliciador aguardasse, quando ele olhou novamente para mim e sorriu, o casal sacou de armas e gritaram enfurecidos, disseram ser policiais e nos mandaram deitar no chão. Todos que estavam ali presentes nos olharam, um dos dois homens que estavam no meu lado esquerdo desmaiou, o outro gritava desesperado por ajuda, sua voz era de um tom melífluo e seus gestos gritantes e afeminados.

Deitei-me e fui algemado, ele também. Deitado no chão, escutei ele me dizer para que eu assumisse, do contrário, minhas filhas não seriam poupadas. Não abalei-me, mas entendi. Fomos levados para fora, uma grande operação havia sido montada. Uma ambulância levou o homem desmaiado, ainda pude ouvir algo sobre princípio de enfarte, o companheiro dele chorava.

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A operação tinha como principal objetivo impedir nossa fuga. Como missão secundária, averiguar todo o local próximo, a pizzaria foi revirada e as famílias que comemoravam algo foram importunadas, e todos os presentes tiveram que ser minuciosamente revistados.

O carro que eu transportei foi arrombado por policiais, a rua transformou-se em um campo de guerra. Tumultos causados por curiosos precisaram ser contidos pelas viaturas que foram chamadas para o reforço de pessoal. Os funcionários do estabelecimento não escaparam do fatídico. Três policiais da equipe de narcóticos, acompanhados de cães farejadores, adentraram no recinto tendo esse totalmente desocupado.

Um dos investigadores que estava grudado ao veículo que eu trouxe, gritou aos demais:

– Encontrei!Havíamos sido separados, eu estava no compartimento

traseiro de uma viatura próxima ao carro, o aliciador foi levado por outra para o distrito policial. Quando o policial deu o grito de alerta, o carro foi cercado. A mulher que havia me dado a voz de prisão e me algemado levantou a porta traseira da viatura ao qual eu estava retido e perguntou se tudo que foi encontrado era meu. Em suas mãos tinham placas de drogas. Imediatamente surgiu a imagem de minha esposa e filhas em minha mente; temendo pela vida delas, confirmei com um aceno de cabeça. A policial fechou a porta traseira da viatura com toda força que possuía, o barulho da batida ecoou por alguns minutos em minha mente.

Assumi tudo senhora, dentro do carro tinha quarenta e sete placas de crack, totalizava quase cinquenta quilos. O aliciador foi liberado e eu fiquei autuado em flagrante. Naquele momento eu engolia meu orgulho. De lá até agora passei por muita coisa, apanhei da policia e apanhei de bandidos. Eu não sou criminoso, senhora. Não conhecia as regras deles, isso me atingiu muito no começo, aprendi a dançar conforme a música.

Depois de uns dias, minha esposa veio me ver, chorou

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muito, disse que não me abandonaria, mas estava muito triste com minha atitude. Disse também que minhas filhas dificilmente me perdoariam, pediu que eu refletisse e que tivesse paciência, o tempo cuidaria de tudo.

Fui condenado alguns meses depois, minha esposa parou de fazer o tratamento e acabou falecendo dias após o meu aniversário; o câncer, que estava sendo tratado à base de quimioterapia, alastrou-se depois que o tratamento foi interrompido; minhas filhas me escreveram uma carta na qual disseram que jamais me perdoariam.

Lágrimas...

Perdoe-me senhora... Sei que esses problemas particulares são meus... Agradeço por ter me ouvido... Nestes três anos que estou preso, foi a primeira vez que desabafei após a morte de minha amada... Sabe de uma coisa, senhora? Se arrependimento matasse... Eu faria parte da estatística.

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Pós-Inocêncio

Depois desse desabafo, reconfortei-o, fi z anotações favoráveis em sua fi cha carcerária, que seria anexada ao seu exame criminológico. Dei a ele a minha palavra, se dependesse apenas de mim, ele seria solto.

Que coisa, não? O que um homem, ou uma mulher, não é capaz de fazer por quem ama? Não quero justifi car o erro dele, erro é erro, mas que fi quei abalada com sua história, fi quei. Lembro-me que, depois dessa entrevista, não demorou muito e ele saiu, foi liberto.

Simpatizei com seu Inocêncio, compreendi a atitude dele, mesmo não aprovando. Não era certo ele querer ajudar sua esposa com a vida ou a desgraça de outros cidadãos. Tudo bem, ele estava carregando sua cruz, que Deus o abençoe, nem sei como ele está hoje, oro para que esteja bem. Prometi que iria chamá-lo novamente, para uma conversa sobre seus problemas. Após ter me despedido de seu Inocêncio, o agente levou-o e veio com o seguinte.

Era um jovem bem vestido e perfumado, nesta penitenciária não era obrigatório o uniforme, tinha um sorriso bonito e emanava simpatia. É... As aparências realmente enganam. Não simpatizei com ele naquele momento, sentou-se na cadeira e espreguiçou-se, seu sorriso maroto foi desmanchado para me dizer gracinhas, sorte minha que o agente prisional ainda estava presente. O preso foi repreendido sem que eu precisa-se me manifestar. Aliviei-me ao perceber que ele entendeu o recado.

A ele não pedi, simplesmente comuniquei que iria gravar a conversa. Falei a ele que o que não quisesse que fosse gravado, bastava não dizer. Comuniquei que estava ali para ajudá-lo e a liberdade estava nas mãos dele. Indaguei seu nome, ele permaneceu em silêncio. Respirei fundo e me levantei, ele apenas me observou, abri a porta e lhe falei:

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– Se você não gosta da liberdade, dê o espaço desta cadeira em que está sentado para quem quer sair deste lugar!

Não fui ignorante, pois não sou assim, mas minhas palavras soaram firme. Tocar na palavra liberdade mexeu com ele. Desculpou-se e prometeu colaborar. Esqueci-me de desligar o gravador, mais tarde quando escutei isso, me impressionei com a atitude que tive; a conversa com seu Inocêncio me fortaleceu de alguma forma, compreendi que nem todos tinham mentes criminosas e cada qual precisava ser tratado a sua maneira. Com esse tinha que ser assim, firme.

Vou trocar seu nome por um apelido; ele é filho de uma pessoa importante da sociedade. Mesmo tendo a autorização dele, identificá-lo me traria complicações, chamá-lo-ei de Playboy.

Fiz as perguntas de praxe e conduzi a conversa a uma situação que ele se sentiu à vontade para abrir-se. Contou-me seus anseios e seus erros; alguns, mais graves, não detalhou, outros brandos, gesticulou, minuciosamente relatando. Peço que me desculpe por ter omitido algumas partes da gravação, essa foi a condição dele para autorizar-me a revelar sua história.

Talvez você tenha me entendido, erroneamente, quando falei que não simpatizei com ele. Sinceramente, me compadeci de sua situação, mas simpatia foi o que senti por seu Inocêncio, sofredor que cometeu erros e se arrependeu. Esse jovem, além de não ter se arrependido, revelou-me sentir-se superior ao cometer seus delitos. O Playboy sempre soube da minha opinião, conversei diversas vezes com ele depois desse dia, não posso ser hipócrita ao ponto de dizer a mim mesma que ele poderia mudar por vontade própria, nesses casos somente o poder de Deus para modificá-los. Observe algumas palavras dele:

– Pois é, senhora. Cometi tudo isso aí por causa da pedra, depois que eu conheci essa droga maldita, sinto-me diferente.

– Qual é a sensação? O que leva você a fumar ou a querer muito fumar?– A sensação é inexplicável. Vejamos, imagine que você está no meio

do Saara, percorreu a metade dele debaixo do sol quente a cinquenta graus e, de repente, surge um oásis. Aí você bebe um pouco de água e... A sensação é quase isso, só que melhor. Agora volte dez minutos antes de achar o oásis e

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terá uma grande vontade de beber água. O crack se assemelha. Só tem uma coisa, senhora, aqui no Brasil não temos Saara, mas temos a pedra. Depois que fumou a primeira... Se for preciso atravessar o deserto inteiro para fumar outra... Acredite, não só a pessoa consegue o feito, como faz em tempo recorde. É uma verdadeira maldição!

– Como assim uma maldição?– Senhora, já viu filme de zumbi? Ou melhor, sabe esses filmes

dramáticos que o homem ou a mulher fazem de tudo para agradar o outro... Pôxa! Como posso explicar? Eu troquei minha família pelo crack. Preciso explicar mais?

– Esse assalto, pelo qual você foi condenado, foi por causa do crack?– O assalto? É uma longa história senhora, mas vamos lá...

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A vida e m... do Playboy

Já disse, não me arrependo do que fi z e se precisar faço de novo. Se eu quiser fumar e não tiver dinheiro, vou à luta, desse mesmo jeito. A senhora quer saber? Vou contar desde que me lembro...

Meus pais são proprietários de uma rede de hipermercados, espalhados pelo Brasil. Nunca faltou nada para mim, exceto afeto. Fui criado por empregados. Meu pai é um “corno manso” e minha mãe uma “vagabunda”! Desculpe, senhora, desculpe.

Fui criado à revelia e sem carinho. Nasci em um mundo egoísta; todos ao meu redor me bajulavam por eu ser fi lho de magnata, sempre desprezei a todos que andavam comigo por esse motivo. Essas pessoas da classe alta são muito cheias de hein, hein, hein! Não é meu mundo.

Com treze anos comecei a fumar cigarros no colégio. Em três meses de vício, já havia me enturmado com uns rapazes do colégio vizinho ao meu; era, na realidade, uma escola pública com boa estrutura, porém, diferentíssima da minha, que tinha muita pompa. Nunca fui muito a favor dessas frescuradas.

Então, me envolvi com essa molecada e comecei a faltar às aulas para divertir-me com eles. Fumávamos cigarros, desvendávamos o princípio da adolescência e, às vezes, íamos ao bairro vizinho para jogar futebol, na periferia. Nesse bairro, conheci a maconha e a bebida. Em pouco tempo troquei meus novos amigos...

Eu não ia mais à periferia divertir-me em uma “pelada” com os companheiros, e sim para me enturmar cada vez mais com aquelas novas amizades. Em tempo recorde, já sabia manusear a

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droga e, por ter conhecimento com contas, fui convidado para auxiliar na contabilidade em um ponto de drogas.

Vivia dois mundos. Em casa, fingia-me bonzinho para que os empregados nada dissessem aos meus pais; na rua, mostrava-me maléfico para adquirir respeito entre meus novos companheiros. Passei a andar armado.

Além da contabilidade, comecei a levar drogas para o colégio. Induzi muitos a usar; as meninas me olhavam diferente, me viam como o maioral. Na realidade, eu era o mesmo, só o que mudara foi o fato de eu ter me tornado maconheiro. Quando eu não levava maconha para o colégio, os novos adeptos vinham “intimar”, queriam de qualquer maneira “fumar um”.

O tempo me levou a traficar no interior do estabelecimento educacional, cheio de pompa. Tornei-me a mancha negra do local. Ainda menor, fui preso na sala de aula com um revólver. Meu pai nem apareceu na delegacia, me mandou um advogado; depois dessa prisão sosseguei um pouco. Quando eu digo que sosseguei, senhora, foi só de vender. Fumar maconha e beber, não parei, já fazia parte do meu sangue.

Anos depois, já tendo alcançado a maioridade, frequentando boates e noitadas, conheci a cocaína. Estava com um grupo de amigos, e uma das meninas que nos acompanhava serviu-se daquele pó. Fiquei curioso e pedi a ela para experimentar, ela me disse que não tinha mais e o “papelote” (ou peteca) era caríssimo. Mostrei a ela muito dinheiro e perguntei onde comprar. Foi então que ela me puxou pelo braço...

Não preciso dizer o que aconteceu, não é, senhora?Acordei na tarde do outro dia em um motel com essa

moça, e eu não era mais o mesmo. A cocaína me dava muita disposição, ficava elétrico e eufórico. Eu bebia muito e o pó cortava o efeito da bebida; para mim, só isso já era o suficiente, mas vinha acompanhado de outras sensações e tudo o mais.

Eu não trabalhava, senhora. Lembra que eu disse que meu pai tem muito dinheiro? Então, não vendi cocaína, mas me envolvi novamente com outro grupo de pessoas; aos poucos,

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meus companheiros de baladas foram sendo, entre aspas, substituídos. A noite tornou-se uma festa constante e eu, aos poucos, perdia a mínima responsabilidade que me restava. Meu pai me deu um carro bom, e um dia, sem dinheiro para usar, na madrugada, penhorei o carro por alguns papelotes com o traficante. Meu carro foi usado para cometer uma chacina.

A polícia chegou até o veículo e acabou mordendo um dinheirinho de meu pai para abafar o caso. Ele me tirou o carro. Nessa época estava amasiado; meu pai me cortou as finanças e ela me abandonou. Passei a viver sozinho, consegui um emprego em um escritório, como auxiliar administrativo, e, por um tempo, endireitei-me.

Nesses tempos de vacas magras controlei-me. Reduzi o consumo de álcool e só cheirava cocaína nos finais de semana. Minha mãe se tornou atenciosa ao perceber minha melhora. Sabe aquela atenção a distância? Tipo... Serviço de atendimento ao consumidor? Ela me ligava só para fazer sugestões e reclamações. Descontrolei-me depois de um tempo e voltei a usar cocaína todos os dias, até que... Conheci o crack.

Senhora, essa droga é horrível. Não horrível de usar, se fosse ruim, ninguém mais usava. Ela é ruim nas suas consequências; em pouco tempo, me vi no fundo do poço.

Certa vez, com vontade de usar cocaína, saí pela madrugada com muita “instiga”. Infelizmente, o ponto onde eu comprava drogas estava cercado pela polícia, desviei e fui parar em outra comunidade, observei um grupo que estava alvoroçado e percebi que eles usavam algo. Mostrando dinheiro, facilmente me enturmei.Ensinaram-me como fumar e boom, explodiu em mim a catástrofe.

Naquela noite, fumei todo meu dinheiro e tudo que vestia, saí dali, de manhã, com uma calça de moletom, cortada na altura do joelho, fazendo um quê de bermuda, deram para que eu não andasse pelado, até minhas meias levaram. Não fui roubado, não, senhora. Vendi tudo para fumar e, se tivesse mais para vender, o faria.

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Nesse mesmo dia, fui trabalhar, estava novamente diferente. Pela manhã inteira fiquei pensando no crack, essa droga é maldita por causa disso, domina nossa mente. No horário do almoço voltei para o beco onde havia passado a noite e fumei mais. Boom, não fui trabalhar na tarde desse dia. Não demorou muito e perdi o emprego. Aos poucos perdi tudo que tinha. Perdi não, vendi.

Quando as vacas realmente emagreceram mesmo, isso em questão de meses, pensei em roubar. Desempregado não tinha como conseguir dinheiro. O primeiro lugar que roubei foi uma das casas de praia de meu pai, convidei alguns de meus novos amigos e, planejado tudo, fizemos a “limpeza” na casa. Desse dia em diante, boom, transformei-me novamente.

Toda vez que eu queria usar crack e não tinha dinheiro, saía para roubar. Nunca fui corajoso, senhora, simplesmente passava uma propaganda enganosa de bandido mal. Na realidade, a coragem só me surge quando eu não tenho crack para fumar, fico revoltado. Agora, quando uso, fico assustado; penso que meu pai vai aparecer a qualquer momento e passo um tempão espreitando, no aguarde. Ele nunca vem! Na real, acabo pagando para me sentir assim, essa é minha viagem.

Já te contei algumas coisas que fiz, não vá contar para ninguém senhora, por favor... Senão... É mais cadeia para mim.

Sabe esse assalto que estou preso? Fui assaltar um homem certa vez, munido de uma faca, só que, ao me aproximar, percebi que era um colega dos meus tempos de escola, na adolescência, filhinho de papai. Me tratou excepcionalmente bem e me convidou para entrar em seu apartamento, consenti. Eu estava bem vestido e ele não notou a faca. Quando eu falo que essa droga é maldita, acredite, senhora!

Subi até seu apartamento, em nenhum momento tinha outro pensamento que não fosse o crack. Cada passo que dava, a vontade de fumar aumentava; meu intestino remexia-se em meu interior, só no desejá-la, e eu imaginava o que ele teria de bom para que eu pudesse vender. Estava ansioso, eu queria

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sair o quanto antes dali e fumar, fumar, fumar... Eu queria fumar o crack!

Quando entrei no seu lar, fiquei abismado. Tinha tanta coisa de valor, senhora. Bastou que ele fechasse a porta e eu avancei sobre ele. Dei uns tapas e joguei-o ao chão. Ele pensou em gritar, puxei a faca, silenciou. Tranquei a porta e retirei a chave; a alguns passos de nós, avistei o telefone, retirei o fio da parede, do aparelho, e amarrei-o. Percorri o recinto para averiguá-lo, retornei com um pano e um lençol, reforcei as amarras e abafei sua boca. Feito isso, arrastei-o até o banheiro e o larguei lá.

Me senti dono de tudo! Fui ao seu quarto, onde achei uma mochila e uma bolsa. Vesti algumas peças de roupa e coloquei outras na mochila. Achei, em uma gaveta, alguns relógios, correntes e pulseiras de prata e uma corrente de ouro, um notebook e uma câmera digital. Foi só. Na sala de estar. coloquei o aparelho de DVD na bolsa, coloquei também alguns litros de destilados importados, escoceses e muito mais. O celular que ele jogou sobre o sofá, peguei. Caminhei por toda casa e nada mais me interessou, exceto um quadro pendurado na parede e o tapete, decidi que, se não encontrasse dinheiro, os levaria.

Fui até o banheiro e perguntei sobre dinheiro; ele balançou a cabeça negativamente. Havia perfumes em uma prateleira fixa na parede sobre a pia, trouxe todos, senhora. Depois de colocá-los na bolsa, enrolei o tapete, era muito lindo, a senhora ia gostar. Continuando, a casa era minha, eu que mandava ali, fixei-me no quadro, decidi levá-lo; quando o retirei, foi que avistei o cofre.

Irado, corri até o banheiro e o enchi de cascudos. Não foi nada agressivo, foi mais para assustá-lo. Depois do susto que dei nele, perguntei a senha, ele arregalou os olhos. Sorri maleficamente e debochei dele, sentei no chão ao seu lado, com a faca na mão, e o apavorei. Permaneci por dez minutos fazendo pressão psicológica em sua mente, mostrei a ele os prós e os contras de se apegar ao dinheiro, ele cedeu.

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Tirei a mordaça e ele me ditou a senha desejada, anotei no celular que era dele e corri para a sala. Estando aberto o cofre, encontrei em seu interior muito dinheiro, senhora. Joguei tudo na mochila; tinha até uns documentos, trouxe junto. Não queria perder tempo. Assim que peguei o conteúdo do cofre, saí. Ignorei o quadro jogado no chão, também deixei o tapete. Desci as escadas com a bolsa nas mãos e a mochila nas costas. Em meu semblante havia um sorriso, mesmo que maligno. Em meu pensamento, a vontade de fumar. Eu iria fumar muito.

Infelizmente fui preso, senhora. Não desfrutei de nada. Na hipervontade de fumar, deixei-o sem a mordaça e com a porta do banheiro aberta. Arrastando-se, ele conseguiu pedir ajuda e chamar a polícia. Fui pego a três quarteirões da casa dele, caminhando rumo ao ponto de drogas.

Me espancaram e me levaram ao distrito policial. A vítima apareceu e me reconheceu. Ele veio com uma ideologia de bom moço, me falou que, se eu me internasse em uma clínica, ele retirava a queixa. Eu aceitei.

Ele pegou o celular que eu havia subtraído e fez uma ligação. Fiquei observando-o, ele estava a uma distância razoável, mas eu não podia ouvi-lo. Nos primeiros momentos dessa ligação, gesticulou e falou de maneira que passou a impressão de tentar convencer alguém, me olhava e apontava para o teto. Momentos depois, ficou de costas para mim, pareceu estar discutindo. Desligou o celular e permaneceu por segundos parado, pareceu-me que estava refletindo. Deduzi que ele estava conseguindo a internação para mim.

Veio em minha direção. Algo em mim queria lutar naquele momento, surgiu-me uma esperança. Pela primeira vez, alguém se importou comigo realmente, mesmo eu tendo feito tudo que fiz, ele quis me ajudar. Parou na minha frente. Eu estava algemado, fiquei olhando-o com cara de bobo. Ele disse:

– Me desculpe, falei com seu pai e ele disse que você precisa aprender a lição...

Me iludi!

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– Não vou retirar a queixa, sinto muito. – ele concluiu e retirou-se.

Havia fantasiado oportunidades, senhora; ninguém jamais realmente me amou. Sabe quando eu me sinto bem? Só quando estou drogado de crack! Estralado! Nunca irei largá-lo! O crack é minha família. Eu amo o crack e ele me ama. Já falei, se precisar roubar de novo para fumar, sai da frente...

Como disse, não coloquei tudo o que ele falou, mas creio que seja suficiente para você, leitor(a), compreender um pouquinho de sua história trágica. Alguns delitos que ele me contou, e que não anexei nesta transcrição, assemelham-se a esse, pelo qual ele foi condenado. Não havia detalhes de nomes, tão pouco de locais específicos. Mesmo que algum leitor me aponte o dedo, me julgando, quem sabe até criticando-me pelo fato de não expor esses crimes, ressalto que, no momento em que esse projeto estava sendo passado para o papel, a minha intenção era apenas revelar o que o crack fez na vida desse jovem promissor, e não investigar delitos alheios.

Ainda enquanto este projeto estava sendo passado para o papel, o jovem, com qual eu não havia simpatizado no primeiro encontro, foi assassinado por policiais em uma residência de pessoas de bem, assaltando-a. Assisti todo o drama pela televisão.

O playboy que contou essa história realmente chegou ao fundo do poço; faltou alguém disposto a estender-lhe a mão. Tendo invadido essa residência meses após sair da cadeia, apossou-se de uma faca e fez a família que ali residia como refém.

Se eu tivesse me esforçado mais para ajudá-lo, quem sabe não teria revertido esse papel que ele desempenhou. No fundo ele era uma pessoa boa, infelizmente deixou se influenciar por ideologias negativas.

A polícia invadiu o local e não pensou duas vezes. Ele não foi identificado, talvez a pedido de seus pais. Eu o vi no monitor da minha casa com a faca na mão, segurando uma mulher pelo pescoço. Reconheci-o. Foi a última vez que o vi.

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Mesmo sabendo que ele não está mais entre nós, fisicamente, acredito que esta frase é impactante e, como eu escreveria para que ele lesse, escrevo agora para que sirva para outro playboy que esteja se iludindo com essa droga devastadora.

Caro Playboy, se você estivesse lendo, veria que cumpri minha palavra, na esperança que tivesse largado esse vício.

Muitas vezes, procurar entender resolve mais que acusar.

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O Surdo e o Mudo

O seu Inocêncio e o Playboy foram os únicos que transcrevi, um após o outro. Todos os demais, que agora citarei, foram ouvidos alternadamente e organizados na sequência seguinte para melhor compreensão.

O Surdo e o Mudo eram dois jovens franzinos que foram presos no mesmo artigo: furto. Um realmente era surdo-mudo e o outro participou da entrevista como porta-voz.

Essa conversa eu não pude gravar. Foi minha última oitiva e todas as minhas fi tas estavam preenchidas, porém, por lembrar cada momento dessa tão delirante ocasião, posso narrar detalhadamente.

Já cansada de um dia inteiro, estressante, de serviço e tendo ouvido antes dessa, um bambambã, não acreditei ao ver dois rapazes entrarem algemados, juntos, pelo tornozelo. Restava-me apenas um nome para ser entrevistado. Desengonçadamente, passei a palma das mãos sobre os olhos, pensando se tratar do cansaço. Enganei-me. Realmente eram dois.

A dupla permaneceu em pé, fi quei, por segundos, com minha consciência em órbita, sem compreender a situação, chamei o agente prisional, o Brutamontes; lembra? Então, ele veio, olhou-me e, sem nada responder, saiu e retornou com uma cadeira, deixou-a e desapareceu pelo mesmo corredor anteriormente citado.

Ao perguntar qual dos dois era o meu entrevistado, Surdo apontou para seu parceiro e disse:

– É ele, dona!Surdo, era o vulgo que esse jovem possuía. Por estar sempre junto

com seu companheiro, que é surdo-mudo de nascença, recebeu essa nomenclatura diferenciada. Cabe ressaltar que, em todo o complexo,

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só o Surdo entendia o Mudo e vice-versa. Só para constatar, o complexo penitenciário em que fui efetivada possuía, nada mais, nada menos, que dois mil reclusos, sem contar os funcionários. Senti-me frustrada por não conhecer a Libras (Língua Brasileira de Sinais). Sorte que o Surdo estava ali, e de surdo nada tinha.

Prossigamos. Mesmo algemados com “marca-passos”, sentaram um em frente ao outro, de maneira que o Surdo me ouvia e, com as mãos livres, gesticulava para o Mudo, esse, após compreender, respondia em gestos, e, em seguida, Surdo dirigia-se a mim.

Por ter os dois presentes em minha saleta, além da vida do Mudo, conheci também a trajetória do Surdo. Ambos nasceram na mesma comunidade e se tornaram órfãos. Quando muito jovens, ainda crianças, os pais de ambos foram assassinados em uma mesma chacina. Cada um, a seu tempo, foi levado para a mesma instituição governamental. Lá se conheceram e formaram uma bela amizade que se perpetuou através dos anos.

Ainda quando crianças, em torno de seus nove para dez anos, de acordo com o que se recordam, fugiram do ambiente no qual residiam e foram viver nas ruas. Inicialmente, como pedintes, sobreviviam de esmolas. Na realidade, nessa atividade, Surdo é que desempenhava melhor papel. Mudo sempre o acompanhava com seu olhar de necessitado, olhar esse que não precisava ser interpretado; podiam observar em sua face, eu pude observar.

Por muito tempo morando nas ruas, conheceram todos os tipos de pessoas. Um protegia o outro dos demais moradores de rua. Conheceram a cola de sapateiro; na realidade, Surdo conheceu primeiro e Mudo o acompanhou. Surdo era o irmão mais velho de Mudo nessas situações. Mudo se espelhava em tudo no Surdo. O que Surdo dissesse, com as mãos ou com o olhar, Mudo obedecia. Mesmo tendo essa autoridade total sobre as atitudes do amigo, Surdo não se prevalecia dele, pelo contrário, o pouco que tinham era dividido em iguais partes. Depois da cola, se perderam no crack. Como sempre, o primeiro a experimentar foi Surdo, Mudo o acompanhou na viagem. Amigos unidos, irmãos pelo destino, dominados pelo vício.

Depois que passaram a consumir o crack, seus laços se reforçaram. Percorriam bairros inteiros, de cidade em cidade, atravessaram estados,

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sempre pedindo. Sobreviviam com a ajuda da população, vez ou outra recebiam um não, normal, quem pede precisa se acostumar com a negativa alheia também.

Segundo nosso amigo Surdo, ainda nesse tempo que pediam, não estavam totalmente possuídos pela droga, mas depois do primeiro furto, tudo mudou. Certo dia, contou-me Surdo, enquanto caminhavam por uma dessas cidades que tanto percorreram, pararam em frente a um portão colossal em uma casa magnífica. O proprietário estava a aparar o gramado e sua esposa a regar flores, as crianças brincavam pelo quintal.

O proprietário do monumental e espetacular imóvel paralisou ao observá-los q distância. Desligou sua máquina de cortar grama e caminhou até eles. Mudo, agarrado nas grades do portão da residência, com uma mão em cada barra de ferro vertical, a face entre as mesmas, observava para dentro de tão caloroso lar, o ambiente familiar era agradável e demonstrava carinho e afeição. Tendo visto Mudo a analisar sua propriedade, o homem excomungou-o, ao contrário de Surdo, ele realmente era surdo e não entendeu a reação do cidadão.

E o Surdo, que observou a propriedade por relances, continuou a caminhar a passos lentos, não ouvindo os brados desse pai de família enfurecido. Quando percebeu, Mudo estava recebendo uns “tabefes”. Correndo para interceder, gritou que seu irmão era deficiente, nada adiantou. Foram acusados de larápios e ambos apanharam sem nada ter feito. A esposa desse homem impediu que as agressões prosseguissem e pediu que fossem embora. Foram sim, mas não muito longe.

Pela primeira vez, em seus corações nasceu-lhes o sentimento de revolta, nada fizeram, no entanto foram agredidos de igual forma. Ainda não tinham alcançado a adolescência, faltando, a ambos, poucos meses. Essa agressão foi o divisor de águas, até então, usavam o crack, moravam na rua, mas eram dignos e pacíficos.

Fico imaginando, jovens que têm lar e pais para impedi-los de cometer loucuras, pais esses que dão afeto e instrução e nada deixam faltar em casa, enlouquecem. O que podemos dizer sobre essas duas vítimas da catástrofe social? O que você acha que fizeram?

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Voltaram ao escurecer, defecaram no gramado e, com as mãos, espalharam nas paredes da residência. Mudo achou tudo muito divertido, por ele fariam isso todas as noites, por todo lugar que passassem. Quando me contou isso, Surdo gargalhou. lembrando-se da cena. E o pior; mesmo dizendo que ele fez errado, não controlei meus risos. Deus me perdoe, mas, imaginando a cena, achei muito engraçado.

No movimento desse vandalismo, percorrendo de um lado ao outro a casa, encontraram uma abertura. Mudo gesticulou dizendo que foi ele quem encontrou a janela aberta. Lavaram as mãos e resolveram entrar. Segundo contou-me Surdo, já no interior da residência, perceberam que estavam em uma espécie de depósito com centenas de garrafas deitadas, deduzi se tratar de uma adega de vinhos, mas ele não soube me responder.

Pois bem, os dois juntos caminharam pelos corredores da enorme propriedade, desvendando cada aposento. No abrir de portas, agiam com extrema cautela e, percebendo o caminho livre, entravam. Estando no interior da casa, a festa foi feita.

Ainda com muito cuidado, procuraram por qualquer coisa que os agradasse. O primeiro perímetro averiguado por eles, após a adega, segundo nosso amigo, que de surdo nada tem, assemelhava-se a uma sala de cinema, o seguinte foi um enorme salão com mesas e depois havia um bar. Passaram por um quarto desocupado, sem muito luxo e por um quarto com pessoas dormindo, provavelmente esse era dos empregados. Disseram-me que nada viram que pudesse agradar e, mesmo com o ambiente à meia luz, a janela estava aberta e a lua cheia refletia seus brilhos noturnos para o interior, puderam ver que não era o agressor dormindo.

Após isso, entraram em outros corredores. Foram à cozinha, onde se alimentaram muito – nessa parte da história, Mudo se empolgou. A cada parte que Surdo me contava, ele me transmitia, quase que simultaneamente, os sinais que permitiam ao Mudo participar da compreensão do assunto. Fez gestos de glutão e, pelo que entendi, muita coisa foi parar em seu bolso para depois. Surdo me disse que era chocolate, comeram muito chocolate naquele dia, ou melhor, naquela noite.

No quarto das crianças não quiseram entrar, apenas se maravilharam

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da porta com tantos ursos de pelúcia e brinquedos. Ficaram encantados com tanta coisa, mas não mexeram em nada ali. Já no aposento do casal, Surdo entrou e foi pegando o que entendia por objetos de valor; trouxe um par de sapatos masculinos, a carteira e um celular. O casal dormia. Não levaram muitos objetos, porém, a facilidade que encontraram para fazê-lo transformou-os completamente naquela noite.

Ao sair dali, foram à procura de um ponto de drogas, onde venderam os furtos para usar. Na carteira do cidadão havia uma quantia equivalente a três salários mínimos, todo o dinheiro foi para o consumo do crack. Nova transformação ocorreu-lhes. Até então, fumavam desbaratinadamente, vez ou outra. Depois desse evento, passaram a fumar compulsivamente, a toda hora.

Estagnavam em um local por um tempo e furtavam diversas residências. Escolhiam outro local e idem. Assim, novamente, percorreram muitas cidades. No princípio da mudança, saíam a pedir, e as casas que não os ajudassem tornavam-se alvos do desejo compulsivo. Depois de um tempo, apenas decidiam os alvos, as escolhas eram feitas por diversos fatores – grau de dificuldade, possível lucro e rota de fuga eram os mais influentes na decisão.

Especializaram-se. Tornaram-se adultos, e o consumo excessivo da droga, aliado à má alimentação, não permitiu o desenvolvimento corporal dos mesmos, por isso, tornaram-se homens franzinos. Os dois foram presos, juntos, pela investigação da Polícia Civil. Suas estaturas e habilidades não permitiam a prisão em flagrante. Foram filmados pelas câmeras de um condomínio, já em idade adulta, e isso lhes rendeu alguns anos de reclusão.

Surdo continuou fumando crack. Mudo, no momento da entrevista, falou-me em gestos que quase morrera de overdose. Sua interpretação foi tão real e dramática, seu desespero era tão visível em seus olhos, que compreendi quando Surdo me disse que o amigo havia dado um tempo.

Na malandragem é comum dizer que o malandro não para com um vício, ele dá um tempo, mas, pelo que vi, Mudo parou, ficou com tanto medo da morte que não usou mais desde então. Quando já estava terminando a conversa, Surdo me disse que havia sido condenado por tráfico dentro do sistema penitenciário, por isso, apenas Mudo estava ganhando o benefício da progressão de regime.

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Mais tarde, procurando entender como a justiça condenava alguém deficiente, descobri que os dois foragiram-se da delegacia depois de presos, isso fez com que fossem condenados à revelia.

Movimentei alguns palitos e consegui a liberdade para o Mudo. Encaminhei-o a uma instituição especializada onde ele poderia aprender a sobreviver honestamente na sociedade. Lá, conseguiu uma profissão e encontrou pessoas com os mesmos problemas, ressocializou-se.

Para minha tristeza, meses após essa entrevista, Surdo foi encontrado, no cubículo onde morava, suspenso pelo pescoço, com as pernas inertes. A princípio, suicídio. Sei que Surdo não seria capaz de se enforcar, acredito que ficou devendo drogas. Às vezes, um ligado ao outro. Infelizmente, nada posso confirmar, são apenas especulações.

Uma vez encontrei Mudo na rua, ele estava acompanhado de uma oriental muito linda, os dois sorriam e conversavam sem nada dizer, observei-o de longe e sorri também. O pouco que consegui fazer por ele, foi muito.

Vez ou outra, ainda me lembro do que espalharam naquela parede. Sei que fizeram errado, mas quando recordo começo a rir sozinha. E isso ocorre com frequência. Ainda me dói o coração lembrar que não consegui ajudar Surdo, que Deus o tenha em bom lugar!

No Brasil e no mundo existem muitos Surdos que ouvem bem, e mesmo assim, não querem escutar. Aconselhei-o a parar com o crack, não me ouviu. Mudo, sem me ouvir, já havia aprendido. No Brasil e no mundo existem muitos Mudos que querem parar com o vício, mas não sabem se expressar, ou, quando o sabem, não os compreendemos. Se nos esforçarmos um pouco, o que se faz de surdo não morrerá e o que não consegue falar, se tornará alguém.

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Reintegração

Você amigo (a), já ouviu falar sobre centro de recuperação de drogados? Se ainda não, por que o desinteresse? Se já tem conhecimento, o que fez para ajudar? Já passou pela sua mente que um ex-usuário de drogas pode ser um criminoso a menos nas ruas?

Talvez, se nos importássemos mais com os problemas que nos cercam e nos empenhássemos em modifi cá-los, poderíamos caminhar mais tranquilos, sem medo das balas perdidas, dos assaltos, até mesmo sem medo das drogas aliciando nossos fi lhos, amigos e irmãos.

É compreensível o fato de quase sempre estarmos de mãos atadas quando se trata da luta pela liberdade social. Você já pensou quão bom seria se, neste exato momento em que você está lendo este livro, tivesse a pura convicção que não existe crime ao seu redor?

Não amigo(a), não estou fantasiando. Extinguir a criminalidade por completo é quase que impossível. Eu sei e você sabe disso. O homem é um ser de natureza frágil e falha. Corruptível. Mas o que você tem feito para colaborar na luta por essa “paz mundial”?

Talvez você pense que nada pode fazer, e talvez esse pensamento derrotista esteja tão impregnado em sua mente que já faça parte do seu dia a dia, mas, pergunto-lhe: e se a rua em que você mora for interditada? Você e os demais moradores encontrarão um tempo para se mobilizar? Chamarão as autoridades? Imprensa? E se o seu time de futebol local classifi car-se para a fi nal do mundial? Reunirá amigos para torcer pelo mesmo objetivo? Pois é! O crime e o crack incomodam mais que uma rua interditada e dão mais alegria quando vencidos do que um título mundial de futebol. Nenhum de nós está livre de se tornar vítima dessa catástrofe social.

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Estou chamando sua atenção para esse assunto porque no decorrer das oitivas, conversei com um rapaz e o caso dele me foi curioso. Achei interessante expô-lo.

Caio Silveira é seu nome, usuário compulsivo de crack, foi preso furtando a bolsa de mulher dentro de um hipermercado. Antes desse delito, Caio nunca tinha efetuado semelhante ato. Nem ladrão ele é, mas foi preso no desespero da abstinência. Perguntei-lhe:

– Pelo que você foi preso, Caio?– Furto, senhora! – respondeu-me ele.– O que furtou? – insisti.– Uma bolsa feminina. – concluiu ele.– Por quê? – tornei a insistir.Entristecido, ele me respondeu com lágrimas tentando escapar de

seus olhos:– Faltou-me apoio, senhora.Indaguei-lhe qual o apoio que ele esperava encontrar e disse-lhe

que ficasse à vontade em falar, que, na medida do possível, iria ajudá-lo. Foi quando ele contou-me:

Senhora, antes de ser preso, eu estava internado em um centro de recuperação. Desde os dezessete anos que fumava essa droga maldita...

Na época da entrevista, Caio estava com trinta anos, era um rapaz forte, mas sua aparência nos passava uma noção de idade acima dos quarenta. A droga acabou com ele.

Jamais havia roubado uma agulha sequer de alguém. Em compensação, todo dinheiro que conseguia, proveniente do meu suor, ia para o consumo dessa.

Um belo dia... Belo entre aspas, senhora. Força de expressão, a senhora sabe, né? Para o usuário não tem dia belo! Pois é, eis que um dia conscientizei-me de meus erros, após refletir sobre minha vida resolvi abandonar o vício. Eu

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estava me acabando, aos poucos, eu acelerava meu processo de envelhecimento, sentia-me enfraquecido e desnorteado, meu psicológico estava totalmente abalado e já havia perdido todas as pessoas que me amavam. Perdi não senhora, troquei-os pelo vício.

Nessa crise de identidade que enfrentei, criei forças e optei pela mudança. Saí à procura de centros de recuperação especializados, até os de menos aptidões me seriam de grande auxílio. Penei muito, percorri estados, senhora. Precisava de um apoio, de uma palavra amiga, e vamos e viemos, como está difícil conseguir isso nos dias atuais.

Mas consegui. Aqui perto encontrei uma casa de apoio aos dependentes químicos, havia alimentação, me forneceram roupas, estudos, ensinam profissões das mais variadas: marcenaria, olaria, serralheria, jardinagem etc. Trata-se de um ambiente administrado por uma organização não governamental empenhada na ressocialização. O trabalho dos internos e as doações feitas por pessoas de boa vontade, que ainda acreditam em um mundo melhor, quitam os custos da manutenção.

Após seis meses internado, tornei-me o mais antigo dos que ali estavam para se reabilitar. Vi muitos chegarem, trazidos por seus pais ou amigos, e não permanecerem dias. O local era um campo aberto, mais precisamente um sítio, não havia muros, não me sentia preso, pelo contrário, jamais me senti tão bem em minha vida. Tornei-me monitor, não estava sendo tratado como ex-usuário, e sim como um novo ressocializador. Sentia-me orgulhoso, era um exemplo vivo de recuperação.

Mesmo recebendo muitos elogios dos paraninfos e filantropos que ali iam para tomar conhecimento dos resultados, eu não me sentia totalmente livre do vício. Sabia que não estava preparado, é fácil você ficar afastado por um tempo da droga e se recuperar fisicamente, o difícil é você deparar-se com ela e vencê-la. Sinceramente, senhora, tenho medo do crack.

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O que me abalava no internamento era ter a certeza de que não poderia vencê-lo. Com muita luta, estava conseguindo me dominar, até que...

Nesse momento, Caio chorou. [narrador]

... fecharam a clínica e nos colocaram para fora com tudo.

Fiquei abismada e perguntei: [narrador]– Quem fechou?– A prefeitura, senhora. – respondeu-me.– Mas por que fizeram isso? – indaguei, inconformada.

O porquê, ao certo, não sei dizer. Acontece que surgiu um grupo de engravatados, acompanhados da polícia, estavam com uma ordem de despejo e falaram para o encarregado da clínica algo sobre reintegração de posse. Até acredito que fosse possível que o terreno fosse público, talvez um erro no cartório, sei lá. Não é minha especialidade.

Uma coisa eu sei, senhora, ali nenhum interno estava sendo sustentado pelo governo ou prefeitura, fosse o caso. A questão é que não estava rendendo lucros para o “leão”. O que não dá lucro, hoje em dia, é considerado perda de tempo. A senhora consegue me compreender? O governo municipal não investia nesse tipo de iniciativa e impediu quem estava se empenhando.

Veja bem, senhora, analise minha situação: saí de meu estado e cidade natal em busca de melhores condições de vida. Encontrei, depois de muito sacrifício e procura, um ambiente onde podia me regenerar, meus dias foram preenchidos com muita paz e sabedoria. Aos poucos fui acreditando em minha reabilitação, e, aos poucos, adquiri confiança, fiz novos amigos e planejei expectativas para meu futuro. Tornei-me novamente alguém, nasci de novo.

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Quando fecharam o centro de recuperação, juntamente com os outros internos, fui largado ao relento. A propriedade foi destruída depois de todos os móveis e eletrodomésticos terem sido jogados para fora. Das pessoas que estavam ali para tratarem seu vício, um pouco mais da metade morava por perto, os demais eram de outros municípios ou estados, assim como eu. Desses, quase todos tinham para onde retornar, exceto eu e mais dois, que fomos recolhidos nas ruas por almas bondosas.

Muitos, nesse dia, não foram para seus lares.Consegui um lugar para passar algumas noites, aceitei

só por aquela em questão. No dia seguinte, pus-me a caminhar. Esse companheiro que me apoiou nesse momento difícil era interno também, já havia passado por ali várias vezes e nunca conseguiu se controlar.

Esse era meu maior medo naquele momento. Acabei cedendo. Ele chegou, apareceu com a droga mortal e... Boom! Usei.

Por essa razão, saí novamente a caminhar sem rumo. Fiquei tanto tempo me purificando espiritualmente, trabalhando meu psicológico e acabei sendo derrotado. Depois de ter caminhado um pouco, veio a fissura, uma vontade incontrolável de consumir novamente. Vendi tudo ou, melhor, o pouco que possuía. Estava desesperado em um curto espaço de tempo.

Com trocados insuficientes para comprar outra pedra, entrei no hipermercado, onde fui preso. Minha intenção não era furtar, mas, sim, comprar cigarros e algo que pudesse mastigar. O cigarro eu solicitaria para a atendente na hora de sair, o alimento procurei pelos imensos corredores.

Pelos corredores, minha mente trabalhava em função do crack, fiquei muito tempo sem usar, mas o fato de ter consumido novamente me retransformou. Eu queria fumar, precisava, meu corpo pedia, minha mente gritava por mais uma “bola”. Enquanto minhas pernas prosseguiam e meu coração pulsava, meus pensamentos estavam fora do corpo, estava mecanizando meus gestos.

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Avistei aquela bolsa! Nunca havia roubado antes, mas sabe como é o vício, senhora? É, talvez não saiba. Espero sinceramente que não. Estar viciado nessa droga maldita é não controlar os próprios instintos. Assim como os veículos só funcionam com combustíveis, a pessoa passa a depender do crack para prosseguir vivendo. Ele domina suas ações, você passa a querer o crack de qualquer forma, a qualquer custo, toda hora. A vida se movimenta em torno daquele intenso desejo e nada tem mais valor. O valor supremo torna-se o crack.

Pois bem, senhora, quando eu avistei aquela bolsa sobre o carrinho de compras parado no meio do corredor, tive a impressão que ela me chamava. Não medi as consequências, na realidade, só imaginava a quantidade de drogas que conseguiria fumar. Sabe quando ocorre nos desenhos infantis de algum personagem cobiçar algo e ver na situação uma oportunidade de ganhar dinheiro, aparecendo cifrões em seus olhos? É, acho que nos meus brilhavam montanhas de pedras de crack.

Não consegui me controlar, fui impulsivo, a droga me controlava a distância, tornei-me uma marionete dessa epidemia. Saí correndo do estabelecimento comercial com a bolsa debaixo do braço, não consegui disfarçar que estava roubando. Sabia que estava fazendo errado, sentia que todos me olhavam, mas a droga me dominou por completo.

Caio chorou novamente.

Fui preso no estacionamento, em fuga. Na verdade, dei apenas alguns passos para fora do hipermercado. Quando me pegaram, me bateram muito. Agora estou aqui, senhora, na sua frente. Eu tentei, Deus sabe que tentei. Se pudesse, acredite, parava de fumar. Preciso de ajuda, senhora, e rápido. A senhora consegue me internar?

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Consegui. Caio Silveira foi transferido, depois de quarenta e cinco dias, para uma clínica particular, por ordem judicial, após atenderem minha solicitação. Quando estava saindo de transferência, fez questão de mandar-me um recado, estava escrito assim:

Muito obrigado por ter me auxiliado, senhora.Não se esqueça daquele projeto, faço questão que meu depoimento sirva para alertar muitas das tan-tas pessoas que estão se perdendo nesse vício. Para aqueles que estão usando, que abandonem. Para aqueles que nunca usaram, que nem pensem em fazê-lo. Espero que consiga alertá-los. Conte comigo!

Novamente agradeço. Fique na paz de Nosso Se-nhor Jesus Cristo!

Caio Silveira.

Que a paz esteja com você, Caio.

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Soldado usuário

Surpreendi-me com o primeiro que entrevistei após o almoço, tratava-se de um ex-policial e estava preso por tráfi co de drogas. Enquanto aguardava por ele, sem saber qual sua condição, refl etia sobre a última conversa que tive pela manhã. Fiquei pasmada com a crueldade relatada por um soldado do tráfi co. Isso estava na minha mente, ardia em brasas.

Fazia anotações e raciocinava, enquanto a porta de meu escritório temporário estava aberta. No refeitório solicitei ao Brutamontes que me trouxesse o próximo detento da lista assim que estivesse disponível para fazê-lo. Aguardei. Em meio a tantos pensamentos confl ituosos sobre assunto tão complicado, que relatarei no próximo capítulo, vi uma cena que confundiu ainda mais meus pensamentos.

Alguns minutos após ter me sentado e recomeçado minha análise, o agente prisional surgiu. Trazia consigo um homem troncudo e de bigode volumoso. Sua cara era carrancuda e seu olhar desconfi ado. Essa fi gura estava sem algemas e falava com o funcionário em um tom de muita liberdade. Antes de retirar-se, e essa foi minha surpresa, o agente prisional Brutamontes bateu continência ao preso e esse lhe disse:

– Dispensado, soldado!O homem era um ex-capitão da polícia. Não é necessário dizer qual

era seu batalhão, até porque de nada nos seria útil. Ele, quando em serviço, combatia o narcotráfi co. Irei denominá-lo por sua antiga patente, Capitão. Aliás, era assim que era chamado pelos presos e pelos agentes prisionais, esse era o motivo da continência e o da minha surpresa.

Capitão contou-me que se especializou em manusear armas e investigar quadrilhas do tráfi co. Um ótimo atirador enquanto profi ssional a serviço da sociedade. Por ter um bom diálogo e facilidade de se infi ltrar,

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constantemente negociava com os traficantes antes de prendê-los.Geralmente, fazia-se passar por varejista nesse ilícito comércio,

por negociante de armas e, certas vezes, por ladrão. Sempre à frente dessas operações, realizava-as com sucesso, nunca precisou efetuar um tiro. Tornou-se um mito.

Certa vez, assumiu um caso especial por sua dificuldade em elucidação. Nesse caso, o Capitão precisou se passar por usuário de crack. O crack nessa época, disse-me ele, estava surgindo das profundezas.

– Provavelmente, dona Maria, em outro local já existisse, mas no meu batalhão surgiu como novidade. Sabe como é, dona, tudo que não se conhece, não se deve tocar. Um bom policial investiga antes de agir. Foi o que fiz!

Segundo ele, esse foi seu erro fatal.

Dona Maria, eu aluguei um quarto em uma pensão da comunidade onde estava investigando e consegui um serviço de servente de pedreiro, informalmente. Decidi me ocupar desse caso por, no mínimo, dois meses. Trabalhei para pedreiros do bairro e, aos poucos, fui me enturmando. Passei a frequentar os bares que eles frequentavam e a jogar futebol com esses novos companheiros. Criei uma vida paralela à minha realidade, se é que me compreende. Conforme avançava um passo em direção aos meus alvos, ali permanecia.

Através dos pedreiros, conheci usuários de cocaína e me envolvi. Saíamos, no início, juntos para baladas noturnas e boates adultas. Desses, conheci uns metidos a malandros. Sabe aqueles palermas que andam armados na comunidade para impressionar as meninas ou oprimir os humildes? Esses eram assim! Eles que me apresentaram o crack. Colhi algumas amostras e levei para a análise. Fingi-me usuário e me envolvi em outro grupo. Era nesse que eu queria ter chegado.

Passado mais de três meses dessa tal investigação, eu estava no meio dos noias, consumidores. Na primeira semana, me obriguei a comprar droga no ponto de venda, a tão falada boca de fumo. O esquema era complexo e precisava ser

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analisado minuciosamente. Certa vez, um soldado do tráfico, armado, desconfiou de mim; para não morrer, fumei uma na frente dele e ele me liberou. Passei a me vestir mal e a fumar uma todas as noites. Erro fatal.

Naquela primeira pedra de crack que fumei, me senti muito amedrontado pela situação que vivenciei. Uma adrenalina fora do comum me apoderou, peguei gosto pela tal. Nos dias seguintes, com um desejo ardente, passei a fumar incessantemente, minha razão tentava me dizer que era puro ofício. Tentei me enganar. E por um tempo consegui.

Efetuamos aquela enorme prisão com sucesso, ninguém foi ferido e muita coisa foi apreendida. Pensei, naquele momento, que o esforço valeu a pena. Fui muito aplaudido por meus companheiros pelo brilhante desempenho que obtive, porém, o preço foi caro, minha liberdade. Tornei-me dependente sem saber.

Depois dessa firma ilegal, surgiram outras com o mesmo propósito, e outras, e mais ainda. Sempre em nome da lei, efetuei prisões e mais prisões.

Certa vez, abordei um usuário, ele carregava algumas pedras de crack nas mãos. Dei-lhe uns puxões de orelha, uns gritos no ouvido e dispensei-o. Era um humilde trabalhador sofrendo pelo vício. Confisquei sua droga e coloquei no porta-luvas da viatura, ali ela permaneceu. Nesse dia, no fim de meu turno, levei meu parceiro para casa e fui embora com o veículo. Minha esposa me aguardava com o alimento sobre a mesa.

Chegando a minha casa, parei a viatura no lado de fora, em frente ao portão, mexi no painel para ver se não havia esquecido nada; fui direto ao porta-luvas. Inconscientemente eu estava sendo comandado por algo. Peguei-as. Não cheguei nem mesmo a entrar em meu lar. Fumei todas e saí muito louco a procurar por mais. No outro dia, dei uma boa desculpa para minha esposa e tudo ficou bem. Hoje ela não está mais comigo.

Não consegui resistir, dona Maria. Quando eu as vi, tremi. Meu corpo pediu por elas. Meu pensamento dizia não. O

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desejo foi mais forte. Eu sabia que não devia. Sempre sabemos, dona, não podemos experimentar a primeira. Depois de usar pela primeira vez não adianta correr, não terá mais onde se esconder, ela te segue por todos os lugares. A droga se une aos seus pensamentos e passa a controlá-los. Ela torna-se parte de seu ser, o seu corpo torna-se escravo dela. Ela nos faz acreditar que é a própria essência de nossa existência, e que precisamos consumi-la para melhor viver. É uma realidade imensamente triste e é extremamente difícil resistir.

Veja bem, dona Maria, eu não prendia mais os pequenos traficantes, confiscava suas drogas para usar. Os grandes traficantes me pagavam propina e eu consumia mais. Outras drogas, eu apreendia e levava para amigos que fiz no submundo. Montei um negócio paralelo.

O crack me transformou, relaxei nas investigações e fui afastado temporariamente por distúrbios de personalidade. Agiram errado, passei a ter mais tempo para fumar. Dominei pontos de droga e treinei recrutas para que roubassem os concorrentes, rivais. Tornei-me um deles, com apenas uma, cheguei ao ponto de me tornar o que tanto lutei para vencer. Tornei-me o inimigo da sociedade quando fumei o crack pela primeira vez.

Quando percebi que estava sendo investigado, deixei de me envolver pessoalmente e deixei meus recrutas administrando, acompanhava tudo de longe. Meu telefone foi grampeado, as ligações que recebia e efetuava foram responsáveis por minha prisão. Sabe quem comandou a operação que me prendeu, dona? Meu antigo parceiro.

Rastreando meus telefonemas, chegaram ao local onde eu receberia o dinheiro de meu gerente, meu braço direito no esquema criminoso. Montaram uma operação tão bem estruturada que eu não seria capaz de imaginá-la até aquele momento. Sabendo de minhas habilidades e capacidades pensaram que eu fosse reagir. Sempre fui uma pessoa de bem.

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Aquela pedra de crack que fumei, naquela noite, diante do soldado do tráfico, foi uma sementinha de maldade plantada em meu coração. Conforme eu fumava, me tornava mais e mais espiritualmente cego. Inverti valores por completo. Tornei-me, com o perdão da palavra, um lixo de pessoa.

Somente no momento que me deram voz de prisão é que percebi aonde havia chegado e no que tinha me tornado, não me agrediram e não reagi. Pior que isso, senti em seus olhares o sentimento de pena para comigo. Eles, sem nada me dizer, me disseram o quanto eu havia me tornado um fracasso. Minha colaboração foi plena, entreguei tudo o que tinha e assumi minha participação. Sou homem, dona, precisei arcar com meus erros. Fui exonerado.

Perguntei:– Você se arrepende disso tudo?Respondeu-me com outra pergunta: – Como assim, dona?Reformulei minha pergunta: – Você se arrepende de ter cometido crimes?Eis que: – Me arrependo de ter fumado a primeira pedra de crack, junto dela

veio o pacote completo da desgraça. Se eu pudesse voltar atrás... Como não posso, resta-me recomeçar. Você vai me ajudar nisso, dona?

Conclui: – Tranquilize-se. Dependendo de mim, você recomeçará sua vida em

breve. No que eu puder auxiliar, assim o farei. Se você fosse dizer algo para alguém que nunca usou o crack, o que diria?

Inconscientemente, o projeto deste livro estava se formando na minha mente, essa pergunta que fiz me faz pensar que eu premeditava esse projeto. Incrível, mas não sonhava com este livro até então.

– Diria o seguinte: amigo, ou amiga, você sabe que se amarrar uma enorme pedra grandiosa no corpo e mergulhar no oceano irá morrer. Concorda? Pois bem, a menor pedrinha de crack, quando consumida uma

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única vez, que seja, te leva a um lugar mais profundo que o ponto mais obscuro desse oceano. Se não quer chegar ao fundo desse poço, não use crack!

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Soldado do morro

Depois da conversa que tive com o Playboy, que Deus o tenha, algo em mim ordenou para que gravasse todas as seguintes conversas, ainda bem que isso eu fi z. Na última entrevista, antes do horário de almoço, entrou em minha pequena caixa de fósforos, usada como ambiente temporário, um homem de muletas; ele não possuía metade da perna esquerda e caminhava com difi culdades. Sentou-se. Comecei:

– A conversa será gravada, tudo bem? Ele nada disse, apenas acenou sua cabeça afi rmativamente. Depois desse seu silêncio, iniciou-se a mais terrível conversa que já

tive com um ser humano, acompanhe esse ping-pong de perguntas e respostas e tire suas próprias conclusões:

– O que aconteceu com sua perna?– Tiroteio.– Pelo que você está preso?– Homicídio.– Está muito tempo preso?– Anos.– Tem família?– Não!– Pelo que matou?– Guerra.– Se arrepende?– Não!– Usa drogas?– Crack!– Muito tempo?

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– Bastante.– Por que não larga?– Impossível.– Por quê?– Gosto.– Tem para onde ir?– Não!– Para onde vai?– Mundão.– E depois?– Fumar.– Você quer fumar ainda?– Sim!– Está pensando nela agora?– Acertou.– Com que dinheiro vai comprar?– Trabalhando.– Tem profissão?– Segurança.– Já trabalhou onde?– Boca.– Boca? Que boca?– Tráfico.– O que fazia?– Proteção.Marcas de tiros em seus braços eram visíveis.– Foi lá que recebeu os tiros?– Sim.– Teve alguma morte?– Duas.– Quem foram? Pode dizer?– Polícia.– Por quê?

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– Mistério.– Essa sua guerra começou por quê?– Dívida.– Dívida?– Cobrança.– Vieram cobrar dinheiro seu?– Cobrei.– E aí?– Matei!– Por dinheiro?– Vingança.– Vingou o quê?– Honra.– Foi desonrado?– Muito.– Como?– Roubado.– O que te roubaram?– Crack.– Matou com arma de fogo?– Facada.– Quantas?– Uma.– Foi acidental?– Não.– Por que matou, então?– Vício.– Você não fala mais do que uma palavra?– Falo.– E por que não me explica melhor?– Dor, senhora.Dito isso, ele se levantou e ergueu sua blusa. Seu corpo tinha dezenas

de perfurações cicatrizadas, todas as lesões foram ocasionadas por projéteis

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de armas de fogo. Sentou-se e bateu com a muleta no maxilar inferior e disse:– Platina.Desconversei, me senti constrangida com a cena que presenciei,

mesmo sabendo seu nome, prossegui:– Não perguntei seu nome.– Lenilson.– Do quê?– Santos.– Algo mais?– Castro.– É só?– Só!– Quer ajuda, Lenilson?– Sim.– O que quer?– Liberdade.– Você me dá sua palavra de que não vai mais cometer crimes?– Não.– Por que não?– Fumo.– Você fuma? O que isso te faz?– Descontrole.– Por quê?– Sobrevivência.– São muitas guerras?– Muitas! – O que espera do futuro?– Nada.– Como assim, nada? Não pensa em ser melhor?– Não.– Não desista do mundo. A sociedade pode ajudá-lo, você não crê

nisso?– Não.

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– Por quê?– Realismo.– Você não acredita em mim?– Não.– No que acredita?– Nada.– Toma remédios?– Sim.– Para quê?– Distúrbios.– Que tipo de distúrbios?– Bipolar.– Você tem isso?– Não!– Então, por que toma?– Substitui.– Só pensa em drogas?– Só no crack, senhora.Quando ele me disse essas últimas palavras, emudeci. Não consegui

mais falar, meu raciocínio paralisou. Anotei algumas palavras em sua ficha e dispensei-o. Fui almoçar.

No refeitório, junto dos meus companheiros de profissão, perguntei o porquê de aquele homem estar preso. Contaram que ele abriu o abdômen de seu amigo. Esse havia engolido pedras de crack para não dividir com Lenilson, e foi assassinado por ele, que queria fumar a qualquer custo. Desde então, Lenilson ficou assim.

Contaram que Leni, como era conhecido em sua comunidade, era soldado do morro. Matava a pedido do traficante local. Era muito eficiente nisso. Ainda menor de idade, executou entre vinte e trinta pessoas; o número é incerto. Boatos, espalhados pelo vento, dizem que é muito mais do que isso. A maioria foi para cemitérios clandestinos ou cremados clandestinamente.

Soube que os tiros que Leni recebeu foram em um duplo homicídio. Ele estava com o traficante e outro soldado quando a polícia invadiu a casa, os

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dois foram mortos, mas Leni sobreviveu. Não se sabe como, mas os policiais dessa operação desapareceram. No dia dessa conversa Leni completava doze anos preso; para não mandá-lo diretamente para a sociedade, solicitei uma transferência para ele terminar sua pena em um hospital psiquiátrico. Ainda hoje essa conversa mexe com minha mente, é impossível prever até que ponto o crack pode levar alguém.

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Mais um José

Olhando em seus olhos, perguntei:– Seu nome?Respondeu:– José Raimundo Correia.Continuei:– Idade?Continuou:– Vinte anos.Respirei fundo e insisti nas perguntas:– Por que está preso, José?Com a maior calma do mundo, ele me disse:– Tráfi co e porte de arma.Tentei pescá-lo:– O que você possui?– Como? Não entendi. – me disse confuso.Reformulei a pergunta:– O que você conquistou com o tráfi co?Sua resposta me trouxe muita refl exão:– Eu vendia para sobreviver, pagar contas de água, luz e aluguel. Moro

com minha mãe, meu pai me abandonou quando eu ainda era pequeno. Um dia eu cansei de ver minha mãe sofrendo para me sustentar. Comecei a pegar pequenas quantidades. Repassava aquela cota diária no beco e ia para casa. Tendo o dinheiro do patrão na mão, tá tudo certo, tranquilidade total.

– E quando não paga o patrão? – perguntei.– Aí, o bicho pega! Já vi muitos morrerem ao meu lado. Sem contar os

que não morreram do meu lado, mas sempre me acompanharam na correria,

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e morreram. É frequente, pequenos traficantes usam a droga e ficam devendo por isso. Aí, é sem chance! Morre pelo crack! Tem aqueles usuários que, depois de perderem seus empregos e familiares, não conseguem mais dinheiro para fumar. Aí eles vendem para manter o vício. Esses geralmente não roubam. Mas tem aqueles que, depois de perder tudo, caem na ladroagem!

– Você já roubou? – insisti.– Eu não uso crack, sobrevivo dele, não quero viver para ele. Já vi

usuário fazer coisa feia por causa do crack. Sem falar na prostituição. Vi muitas meninas inocentes se perderem nas esquinas da vida por essa droga maldita. Usou uma, já era! Perdeu!

– Por que estava armado? – perguntei.Ele foi sincero:– Proteção!Tentei me aprofundar:– Se protegia de quem?Sua resposta foi vazia:– De tudo e de todos!Estava perdendo a conversa, ele pareceu não gostar de detalhar, fiz

uma pergunta simples e comum:– Você tinha paz?– Nunca se tem paz nessa vidinha! Ou você se cuida muito bem, ou

morre. O usuário pode te matar para usar a droga. O traficante do outro beco te mata se vender menos que você. Hoje em dia, por incrível que pareça, tem até policial matando, não são todos, mas tem sempre um ou outro mau caráter fardado. No submundo, o mais ligado ainda corre o risco. Imagina se eu ia dormir no ponto. Queria viver, por isso tinha arma!

– Você tem pena dos usuários? – tentei ver seu interior.– Cada um escolhe o seu caminho. O que eu posso dizer é: não use. Se

eu não vender, tem quem venda. Eu preciso me alimentar e o que não falta é comprador.

Ainda analisando-o, perguntei:– Você não pensa em trabalhar?Ele se indignou:

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– Trabalhar no quê? Cadê a oportunidade?Para acalmá-lo, mostrei preocupação:– É tão difícil assim?– Não terminei meus estudos. Sei que um pouco é culpa minha, mas

se o governo não me deixasse passando fome, eu teria continuado a estudar. Desde muito cedo, saía para vender balas na sinaleira, entreguei panfl etos e capinei quintais pela comunidade. Raciocine: desde pequeno eu estava sendo excluído. Enquanto famílias tinham o que comer e podiam colocar suas crianças nos colégios, eu ia pra peleja. O que aconteceu? Fui marginalizado! As crianças, com melhores condições que as minhas, cresceram e estão com os melhores empregos. Para ser sincero, estão com quase todos os empregos. Enquanto eles se especializavam, eu brigava por um prato de comida. Cansei! Minha mãe começou a fraquejar. Sabe como é a idade, né?

Estava comovida, mesmo assim prossegui:– Você tem irmãos?– Graças a Deus que não! Já pensou? Mais um nesse sofrimento.

Quando minha mãe fi cou doente, precisou de remédios. Aonde que eu ia arrumar dinheiro? Foi a pergunta que eu me fi z. Procurei o trafi cante; sabe aquele que domina um território? Fui até ele. Expliquei minha situação e pedi ajuda. Não fui aliciado, eu o procurei. Muitos jovens de hoje procuram a malandragem para se enturmar, ganhar nome ou dinheiro. Muitos nem precisam, mas querem estar na moda, usar roupas boas, frequentar as baladas frequentadas por todos e tudo o mais que os outros fazem. Eles são iludidos pela falsa sensação de poder. Sinceramente! Se eu não precisasse, não estaria nessa vida. Me diz: quem vai me ajudar? Você?

Ele foi sarcástico, mas eu estava decidida:– Eu posso te ajudar!– Como me ajudaria? – perguntou ele, surpreso.Sabia que podia trazê-lo para o lado do bem, ele não era uma má

pessoa. Indaguei:– Do que você precisa mais?– Preciso que ajude minha mãe! Entrei nessa para ajudá-la, agora ela

está lá, sozinha. Está passando mais difi culdade ainda. Sabia que trabalhando

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aqui na cadeia eu consigo mandar dinheiro para ela? Loucura! Se eu tivesse conseguido um trabalho assim, não tinha sido preso, mas foi só na cadeia que eu consegui um emprego. Você acha que a vida é justa?

– Sim, eu acho! – respondi, bambaleando.– Achar não é ter certeza. Se você tem dúvidas, imagine eu? – ele disse

isso com uma tristeza no olhar.Fui direta:– Você quer mudar de vida, José?– Se eu tivesse um emprego decente, com que pudesse ajudar minha

mãe e sobreviver humildemente, não mexeria mais com drogas. Acredite, se eu trabalhasse honestamente, seria um traficante a menos nas ruas. Você, que faz parte da sociedade, se importa com a minha sobrevivência?

Respondi:– Eu me importo, José. Vou te ajudar!Desacreditando, ele me disse:– Até agradeço. Não vou é me iludir. Para a sociedade, eu sou apenas

mais um José...Consegui com que o serviço social da comunidade onde José morava

desse auxílio a sua mãe. Providenciei livros didáticos para ele e encaminhei um ofício a um Centro Estudantil de Educação, explicando sua situação e pedindo ajuda. Para sua liberdade, José ganhou uma bolsa de estudos, com materiais inclusos, em um curso profissionalizante. Conquistei seu emprego para quando saísse e larguei tudo em suas mãos. Coube a ele a escolha.

E ele escolheu certo. Saindo da cadeia, foi direto ao emprego e confirmou sua vaga. Dias depois, passou a frequentar o cursinho e, aos poucos, adquiriu gosto pela leitura. Vez ou outra ele me escreve cartas, respondo-as elogiando seu desempenho e dizendo que continuo acreditando nele. Ele tem meu número de telefone e não mora tão longe. Escreve as cartas para mostrar o que tem aprendido. Aprendeu muito.

Em uma de suas cartas, escreveu-me isso:

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Querida Maria Pascoalina,

Muito obrigado por ter acreditado em meu po-tencial. Minha mãe melhorou muito, a alegria que ela sente por me ver longe da desgraça a curou. Se existisse no mundo mais pessoas como você, inte-ressadas em guerrear contra o crack, pacificamen-te, com sabedoria e amor, o crack não teria mais valor. Se uma Maria, todo dia, ajudar um José em situações semelhantes, o mundo se tornará melhor. Perdoe-me por não ter acreditado antes em sua be-nevolência, espero que compreendas as infinitésimas vezes que fui ignorado e menosprezado pela socie-dade. Só mesmo uma alma como a sua, para usar o amor ao próximo com tanta simplicidade e eficiên-cia. Agradeço a Deus por ter conhecido você. Minha mãe lhe agradece muito, manda um abraço muito carinhoso e deseja muita paz e harmonia para você e seus familiares.

Carinhosamente, de seu amigo,

um novo José.

* Fiquei pensando, dona Maria... Quantas vidas dei-xaram de ser prejudicadas com a minha mudança... Você imagina?

Assim como José, também penso nisso. Infelizmente, eu não possuo a resposta. E você? Tem noção de quantas vidas deixam de ser prejudicadas quando ajudamos um José qualquer?

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Vitór... ia

Vitória, na realidade, era o nome fi ctício de Vitor Rhamia. Esse, ou essa, se encontrava preso por assalto. Quando Vitória me apareceu aquele dia, toda siliconada, de calças justas e camiseta mostrando o umbigo, não acreditei. Realmente, veria muitas coisas ainda. Seu cabelo era raspado por normas do complexo, esse era coberto por um lenço rosa, combinando com sua calça e detalhes da camiseta. Figura surpreendente essa Vitória. Já foi logo me perguntando:

– Qual é o babado amiga?Sorri e fi quei a observá-la.– Gostou? Me custaram os olhos e não foram os da cara. – disse-me

ela, em pé, referindo-se aos seus seios e nádegas.Pedi-lhe educadamente:– Sente-se, Vitor, por favor!– Não, menina, meu nome é Vitória. Já fui Vitor um dia. – retrucou ela.– Desculpe-me! – sua espontaneidade me deixou sem jeito. – Sente-se,

Vitória, por favor.– Obrigado, menina. – disse-me ela, sentando graciosamente.– Me chame por Maria. – foi minha vez de retrucar.– Tudo bem. – assentiu.Iniciei:– Pelo que foi pres...a?Ela, sem perceber minha dúvida, respondeu suspirando:– Assalto, Maria. Fui presa por assalto.Prossegui:– O que roubou?– Faço programas, sou uma profi ssional do sexo, especialista do

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amor, modéstia à parte. Saio com homens para conseguir dinheiro, preciso sobreviver e sustentar meus vícios. Cada bofe que me procura... – suspirou. – Não são todos os homens que são realmente homens. Em um desses programas, assaltei o homem que estava me acompanhando. Sempre carrego uma lâmina na boca, conhece essas giletes de barbeiro? Uma dessas. Ele foi agressivo e resolvi assustá-lo, não tinha interesse nos seus pertences. Modestamente, sou bem requisitada. Se eu te contasse alguns dos meus amantes, cairia seu queixo! Pois bem, levei seus pertences pessoais e, a alguns metros depois, joguei fora. Utilizei a lâmina, colocando-a em seu pescoço, colada à artéria principal, dominei-o. Incrível como muitos homens se transformam nessas horas.

Risadas sutis.– Foi isso, levei o que tinha e saí andando. Fui presa num posto de

combustível. Aqui estou, simples assim. O susto me saiu caro. Mas tá bom, logo acaba. Até fiz novos amiguinhos.

Risadinhas, novamente.– Permite-me uma pergunta indiscreta? – insisti.Ela me disse:– Pergunte, menina. Desculpe... Maria.Prossegui:– Quando você... Sabe?Ela sabia:– Me transformei?Confirmei:– É! E por que essa escolha?

A culpa é do crack, Maria. Quando eu tinha lá pelos meus dezenove aninhos, conheci essa droga. Ainda era Vitor, um garotão bem apessoado. Gostava de meninas como você, e tinha uma namoradinha. A droga consumiu-me tudo, perdi coisas e pessoas. Ao recordar, me abala, sinto falta. Quando perdi o amor de meus pais, me marginalizei. Passei a viver em albergues públicos e casas de amigos. Troquei muita coisa por essa droga.

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Certo dia, quando não tinha dinheiro, me prostitui. Fiquei algumas horas importunando o traficante local, queria a todo custo fumar. Ele desceu suas calças e eu entendi o recado. Fiz sexo oral nele, naquele dia, para fumar crack. Foi automático. O crack manda mais nessas horas.

Frequentemente, quando não tinha dinheiro, voltava até ele e repetia o ritual. O crack, Maria, o crack foi o divisor de águas em minha vida. Em uma ocasião, quando esperava repetir o ritual amoroso, fui surpreendida. Ele queria minha virgindade, se é que me entende. O incrível é que barganhei só um pouco, cedi por duas pedras de crack.

Feito isso, passei a viver somente nessa função. Esse meu homem foi preso, me vendi para muitos outros depois. Embarquei na vida de orgias, mas permaneci no crack só até conhecer a Mãe.

A Mãe foi um travesti que me mostrou as manobras desse mundo obscuro. Ensinou-me a caminhar, a me vestir e me maquilar. Mãe era cafetina de um bando de meninas. Enturmei-me com elas, todas eram travestis. Foram elas que me livraram do vício do crack. Hoje, fumo só uma taba, cigarro de maconha, de vez em quando pra relaxar. É meu calmante natural. Geralmente as pessoas começam fumando maconha e se perdem no crack. Eu comecei no crack e hoje não o fumo mais.

Não aconselho maconha pra ninguém. Vício é vício e faz mal sempre! Até mesmo nosso alimento diário, quando o transformamos em vício, nos faz mal, imagine as drogas.

Estava muito curiosa e não resisti:– Você não tem saudade de ser homem?– Não, Maria! – respondeu-me ela, com convicção. – Adoro ser Vitória,

é um nome poderoso. Sou mais mulher que muitas mulheres e mais homem que muitos homens. Maria, Vitória é p-o-d-e-r-o-s-a!

Gargalhadas.

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– E esse silicone? – perguntei.Eufórica, ela me disse:– Ah! Você gostou, é?Disse que admirava a coragem dela e ela prosseguiu sua narrativa.

Passei a trabalhar para a Mãe e a estudar, formei-me em massoterapia. Antes da cirurgia, eu trabalhava dobrado. Durante o dia, Vitor, nas noites, Vitória. Aprendi a economizar e consegui o dinheiro necessário para a operação; de quebra consegui, sem levantar suspeita, uns dias para me recuperar. Sem que ninguém soubesse, viajei para outro estado e fiz a cirurgia com o melhor no ramo.

Foi só colocar silicone, Maria. Multiplicaram-se dezenas de vezes os meus amantes. Larguei a massoterapia e me tornei profissional do amor, com horários marcados antecipadamente; minha agenda vivia cheia. Se não fosse aquele homem ignorante, eu já estaria na Europa agora. Estaria p-o-d-e-r-o-s-í-s-s-i-m-a!

Precisava perguntar:– Se arrepende de ter usado crack?– Sim! – sem pestanejar, ela exclamou.Insisti:– Mesmo acontecendo essa mudança radical em sua vida?Ainda com firmeza e confiança, respondeu:– Ainda assim, Maria!Perguntei-lhe o motivo. Ela prosseguiu:

O usuário sofre muito, todos acusam e poucos procuram entender. Quando o ser humano usa essa droga, não tem controle total sobre suas atitudes. Geralmente é induzido a fumar pelos outros, “os amigos”, aqueles mesmos “amigos” que, depois de te verem na sarjeta, te abandonam e debocham da tua situação.

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Amigo de verdade faz o que a Mãe fez por mim, te alerta, te ensina e te apoia. Depois que eu estava completamente perdida, no fundo do mais profundo dos poços, agonizando, a Mãe me ajudou a dar a volta por cima. Ela estendeu a mão e me levantou.

Afinal, quem fuma o crack não vive, agoniza; a vida está sempre por um fio. Se eu pudesse dizer algo aos que usam... Pensando bem, para esses é mais difícil de dizer qualquer coisa. Se eu pudesse dirigir minhas palavras a todo aquele que conhece um usuário, seja o viciado homem ou mulher, pediria para que o ajudasse. Uma simples conversa. Devemos lutar por eles, mostrar que é possível uma vida nova. A vida é feita de altos e baixos. Precisamos estender as mãos e ajudá-los a levantar.

Se minhas palavras pudessem chegar aos ouvidos daqueles que estão pensando em usar, ou, ainda, no ouvido daqueles que vão se deparar com essa droga na caminhada da vida, diria primeiramente às meninas que o mundo está cheio de homens lindos no puro suco da juventude. Digam não ao crack! Não queiram ser o que eu vi por essa vida. Fumando crack, a mulher perde o valor. Todos a desprezam, inclusive ela mesma.

Já vi amigas se venderem por uma raspa de cachimbo. Sabe, Maria, quando fazemos brigadeiro e fica aquela doçura grudada na panela? Já vi mulheres se venderem por algo parecido, mil vezes pior para a saúde. Mulher tem que se valorizar!

Sou Vitória porque larguei o crack! No ouvidinho dos gatinhos, falaria bem suave, para enlouquecê-los, mas diria umas verdades: se você não tem medo de nada na vida, garotão, é o mais bonito e mais inteligente, e eu sei que é, por que se perder no crack? Seja um homem vitorioso por não usá-la. Se quiser entrar para o nosso time de p-o-d-e-r-o-s-a-s, não use o crack, não é preciso! Procure a vitória dentro de você, sem crack, e encontrará! Acredite nisso!

Você acha que eles se derreteriam com essa minha voz sensual, Maria?

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Vitória aprendeu a lição da maneira mais amarga, ela não foi presa por culpa do crack, nesse assalto, mas foi o crack que iniciou o molde do seu forte temperamento.

A vitória é vivida com a vida. Os derrotados, como muitos usuários assim são tratados, precisam de um incentivo para se igualar a Vitória.

Depois desse dia, não tardou em ganhar sua liberdade. O que anda fazendo, não sei, mas seu pensamento é o certo.

Ajudar é a melhor prevenção. Todos merecem uma chance. E a vitória pode estar em um simples gesto.

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O ban... ban... ban... bandido

Mencionei esta conversa no início da história do Surdo e do Mudo. Trata-se da situação de um cidadão que domina o tráfi co de drogas da região, ele é o verdadeiro bambambã das pedras de crack. Não vou citar suas características físicas por questão de segurança, tanto minha quanto de meus familiares, assim como manterei seu nome incógnito por esses motivos. Chamarei ele de Alguém.

Alguém domina toda a distribuição de crack na região, ele é o fornecedor, o articulador e o general de todos os criminosos que trabalham com a droga da morte.

Não citando seu nome e alguns trechos omitindo, eis parte da conversa:– Você está preso por quê?– Tráfi co.– Com que quantidade?– Não fui preso com nada, tá me tirando pra idiota?– De maneira alguma...– É bom mesmo, eu lá sou homem de carregar prêmios? Fui preso por

gravações e fi lmagens.Alguém é o topo da pirâmide, na sociedade clandestina, do submundo

das drogas. Começou nesse mundo paralelo ainda criança. Nessa idade, permanecia nos pontos mais altos dos morros ou em becos estratégicos das “baixadas”, com sinalizadores e foguetórios. Sua primeira função foi alertar os trafi cantes da chegada de viaturas e gangues rivais.

Na época que Alguém era “olheiro”, vigia, dos pontos de drogas, o crack não estava tão disseminado na sociedade e a criminalidade não era tão compacta e complexa como nos dias atuais.

Na medida em que Alguém crescia, sua posição na hierarquia do tráfi co

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aumentava. Adolescente, tornou-se vendedor de pequenas quantidades, em seguida, recebeu uma arma e tornou-se soldado.

O soldado do tráfico, geralmente, é aquele mais disposto, alerta e inteligente. São escolhidos por sua tenacidade e coragem. Nem sempre iniciam com conhecimentos de armas e táticas; no decorrer das experiências criminosas é que adquirem, ou não, essa habilidade de guerrilha. Na falta das qualidades necessárias ou de contingente baixo, qualquer associado pode ser recrutado a soldado. Inclusive crianças. O soldado torna-se o defensor da droga e dos pontos de venda. Alguns soldados tornam-se sanguinários e são comumente designados para execuções e linhas de frente nas guerras do tráfico.

Alguém se tornou cruel nos tempos de soldado da localidade onde vivia, passou a ser o braço direito dos gerentes das bocas e dos chefões da época. Fazia cobranças e efetuava pagamentos, conheceu toda a mecânica do esquema ilícito. Ensinava os novos recrutas com as poucas táticas que dispunha e algo mais que aprendera. Especializou-se em fazer lavagem cerebral nos novos adeptos, conquistava-os com a ilusão de fama e poder.

Conforme os gerentes dos pontos de drogas foram sendo presos, Alguém colocava seus recrutas de confiança para administrar. Inconscientemente, Alguém estava se tornando o líder supremo.

Na briga pelos pontos de droga da região, os chefões de Alguém foram mortos, morreram junto desses alguns aliados e recrutas. Alguém se tornou, da noite para o dia, a voz mais forte da torre de comando. Era o que estava mais alto na pirâmide hierárquica, além de ser o mais preparado para exercer a função. Depois que Alguém assumiu o comando da distribuição das drogas, trouxe o crack com força total. Em cada ponto de drogas sob seu comando, espalhado na sociedade, foi distribuída essa droga mortífera. Muitos de seus rivais na venda de entorpecentes se viciaram, sendo mortos ou presos. Muitos de seus aliados também se viciaram, contraindo dívidas exorbitantes. Alguém os executou.

Aos poucos, Alguém colocava pessoas de sua confiança no poder. Até alguns de seus antigos inimigos se associaram a ele. Alguém montou uma gigantesca rede de distribuição e seu atual inimigo passou a ser a sociedade.

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A meta de Alguém sempre foi adquirir poder e riqueza, mesmo que para isso precisasse sugar a essência de todos os cidadãos de bem.

Foi o que aconteceu. A sociedade, sem saber os planos de Alguém, talvez até sabendo e ignorando suas capacidades, não percebeu que o crack estava perto de suas casas, colégios e praças. Quando acordaram para a realidade, Alguém já havia disseminado essa droga como uma epidemia.

O crack dominou porque a população não estava imune, ou protegida; agiu igual a qualquer doença que se propaga quando estamos debilitados.

Por esse motivo, Alguém se ofendeu quando perguntei a quantidade de drogas com a qual fora preso. No seu ponto de vista, quem manuseia a droga são os “laranjas”, funcionários, ele manuseia somente os lucros.

– O que você vendia?– De tudo, mas a fonte do dinheiro é o crack.– Você não tem pena dos usuários?– Tá de bobeira? Cada um escolhe seu caminho. Não coloco arma na

cabeça de ninguém para comprar droga minha, eles compram porque querem.– Compram porque estão viciados.– Aí! Tu usa? Tu não usa, então, fi zesse a escolha certa. Se vicia o boca

aberta que quer experimentar. A droga tá nas ruas como o veneno tá nos mercados. Vê se todo mundo sai por aí tomando veneno?

– Não sai bebendo veneno, mas morre igual.– Dona! O que mata não é o crack! O que mata é a maldade que o crack

injeta, é a pressão psicológica que a polícia causa nos trafi cantes, é a “fi ssura” dos usuários, é o sistema, dona. O sistema é que mata os outros.

– Como assim, o sistema?– O sistema é um monstro que se alimenta de maldades. Se você

parar de fazer maldades, não cairá nas garras do sistema, simples assim. O que o crack faz é estimular o mal. Ele aliena as pessoas, tanto viciados quanto vendedores.

– Aliena de que forma?– Tipo assim, o usuário, se preciso for, mata pra usar. Eu que não uso,

mato o usuário que me deve ou me entrega para a polícia. Tem aqueles que matam para fi car com a fonte de dinheiro. Sem contar a polícia, que mata para

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proteger a sociedade, e os cidadãos, que matam em legítima defesa.– O que é a fonte de dinheiro?– A fonte de dinheiro é aonde se concentra a maior parte dos usuários;

se não tiver usuário, não tem comércio de drogas. É tão simples, matemática básica: dois mais dois é igual a quatro.

Alguém morreu nas garras do sistema no mesmo dia em que tivemos essa conversa. Ele teve uma crise e foi encaminhado ao hospital, mas não resistiu. Toda a maldade cultivada durante sua vida foi agravante para sua morte, por ataque cardíaco.

Não coloquei seu nome por não ter sua autorização para fazê-lo. Alguém morreu, mas sempre terá outro alguém em seu lugar. Dois mais dois é igual a quatro. O controle da epidemia está em cuidar dos doentes, foi a mensagem que captei de Alguém. Simples assim.

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Jesus dos Santos Emanuel

Enumerei a situação do jovem Emanuel, como gosta de ser chamado, para ser o último a ser apresentado, pela lição de vida que nos transmite. Não tanto a sua, que é de um vitorioso, mas a de sua mãe, Sofi a de Jesus, que se tornou o assunto mestre em nossa conversa. Acompanhe:

– Seu nome?– Jesus dos Santos Emanuel. – respondeu-me o jovem franzino que

estava sentado à minha frente. – Pode me chamar de Emanuel, senhora.– Muito bem, Emanuel, por que está preso? – perguntei. – Tentativa de homicídio, senhora. – sua voz saiu em tom muito baixo,

envergonhado.– Por que você tentou matar alguém? – perguntei surpresa.– Foi o crack, senhora. – ele me disse, ainda envergonhado.Exclamei:– Você também, Emanuel?Percebendo minha reação, ele respondeu, com voz fi rme desta vez:– Não fumo mais, senhora. Me arrependi de meus atos, por favor, não

me recrimine.Senti seu drama em seu semblante. Falei-lhe:– Desculpe, Emanuel. Quer me contar o que houve?A ponto de chorar, ele revelou:– Dei uma facada no braço de minha mãe...Levantei da cadeira indignada e olhei para o teto, respirei fundo e

controlei meu sentimento. Minha vontade era gritar com ele, sua aparência frágil me deixava forte, e o que ouvi me revoltou. Brandamente o reprimi:

– Da sua mãe, Emanuel?– Já me arrependi, senhora. Deus é testemunha. – ele me convenceu.

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– Tudo bem. Quer contar-me? – insisti.– Com doze anos de idade, quando saía, depois da aula, com meus

amigos para empinar pipa, conheci o crack. Depois disso, só desgraça. – me disse ele.

***

Sofia de Jesus é uma brasileira que paga seus impostos com compromisso e lealdade a seu país. Sofredora, como a maioria das mães brasileiras é, digo isso porque, para ser mãe, hoje em dia, neste turbulento país, é preciso suportar o sofrimento da insegurança. Ela criou seu filho com muito carinho, amor e educação. Pelo menos tentou.

Da noite para o dia, viu seu pequeno filho chamado Jesus, carinhosamente chamado por ela de Manú, mudar de personalidade. Ele tornou-se impaciente e rebelde e, aos poucos, foi desistindo dos estudos. Como uma mulher virtuosa e sábia que é, desconfiou que algo estava errado, e passou a cuidar com mais zelo das atitudes do seu pequeno Manú. Tarde demais, ele já havia experimentado o crack.

Em pouco tempo o pequeno Manú tornou-se desleixado e completamente revoltado, envolveu-se com outros elementos de mesma personalidade do bairro e, como a maioria dos usuários, passaram a fazer arruaça.

Sofia continuou trabalhando honestamente, sempre tentando ajudar seu filho. Manú vivia as noites inteiras na rua. Sofia não conseguia dormir em paz, vez e outra ia à sua procura pelos becos, vielas e praças da localidade. Emanuel tornou-se adolescente. Sofia conseguiu convencê-lo a trabalhar aos dezessete anos, pelo menos isso, já que não tinha mais gosto pelos estudos. Emanuel foi, porém, todo seu dinheiro era para o crack.

Sofia não desistia.Ele permaneceu trabalhando. Com a insistência de sua mãe, se

internou em uma clínica. Durante o tempo em que ficou internado, um período de seis meses, seus companheiros no uso da droga foram dispersos. Alguns deles foram mortos pelos cobradores do tráfico, outros foram presos vendendo ou roubando para fumar.

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Dona Sofia apegou-se à espiritualidade, frequentando denominações religiosas que desconheço. Emanuel não especificou. Em contato direto com Deus, adquiriu mais força para lutar nesta batalha interna, incessante, e vencer a guerra que travava por seu filho Manú.

Quando Emanuel saiu da clínica, estava com dezoito anos e desintoxicado das propriedades maléficas da droga. Seu serviço lhe aguardava, voltou a ser o rapaz simpático e carismático como quando mais jovem e inocente.

Sofia aprofundou-se na espiritualidade, em agradecimento ao que Deus havia feito em sua vida. Decidiu retribuir a benção conquistada.

Tempos depois, seu filho retornou ao vício. Foi pior dessa vez, roubou tudo que possuíam dentro de casa para fumar. Quando digo tudo, refiro-me desde a torneira de metal do banheiro até as telhas da pequena garagem da residência. Quando não havia mais nada para ser vendido, Sofia tentou conversar com seu filho, esse, revoltado por não ter a droga que tanto precisava, agrediu-a com a faca que tinha em mãos e fugiu em seguida.

Sofia saiu atrás dele com seu braço cortado na altura do bíceps, sangrando muito, desmaiou. Sobreviveu porque foi levada pelos vizinhos ao hospital. Perdeu parte do movimento do braço atingido, em consequência do ataque.

Emanuel foi preso, Sofia decidiu que assim seria melhor, pelo menos seu filho ficaria longe das drogas. No decorrer das visitas que fazia na penitenciária, fez com que seu filho compreendesse sinceramente seus erros. Ele se arrependeu. Converteu-o para sua crença.

O ataque que sofreu fez com que fosse aposentada em seu serviço. Com seu filho preso e convertido, tinha todo o seu tempo livre, sem preocupações. Resolveu se preocupar com os outros usuários. Saía a caminhar pela cidade onde morava e pelas cidades vizinhas, pedindo auxílio para sua luta contra o vício do crack.

Certo dia, conversando com um influente empresário do ramo de automóveis, explicou seu objetivo, disse-lhe que tinha a intenção de recuperar dependentes químicos do vício do crack. Pediu-lhe uma colaboração financeira, garantiu-lhe resultados, e fez com que visse as vantagens de não se ter usuários nas ruas.

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O empresário fez um acordo com dona Sofia. Pôs ela dentro de seu veículo e saíram de carro pela cidade. Quando pararam em uma esquina, o empresário lhe disse:

– Dona Sofia, está vendo aquele rapaz?– Sim, vejo.– Se você convencê-lo a se internar para fazer o tratamento, não só lhe

ajudo financeiramente, como também entro nesta guerra pacífica.Sofia de Jesus conseguiu.O jovem era filho do empresário, há mais de oito anos estava vivendo

nas ruas sem entrar em contato com a família. Seu pai frequentemente o observava a distância, sem se aproximar. Acompanhou-o todo esse tempo de longe. Naquele dia viu-o entrar no carro junto com Sofia, e o melhor, disposto a recomeçar.

O homem forneceu um terreno para dona Sofia. Juntos buscaram por mais ajuda e, em pouco tempo, construíram um enorme alojamento com cozinha e uma pequena sala de aula munida de biblioteca. Inicialmente o filho do empresário ficou em uma clínica particular, porém, terminado o alojamento, mudou-se para lá e ajudou a construir as demais partes do centro de reabilitação. Novos internos chegaram. Sofia buscou alguns na rua, outros eram filhos de seus vizinhos, parentes de amigos e indicados pelos paraninfos e mantenedores do local.

Dona Sofia tornou-se uma grande amiga, vez ou outra encaminho um preso daqui para ela. Emanuel também foi para lá quando saiu, os anos que esteve preso foram os mesmos que Sofia levou para construir sua obra.

***

– O que você fará quando sair? – Vou ajudar minha mãe. – me disse ele.– Gostaria de conhecê-la. O que levou Emanuel à mudança foi o amor incondicional de sua mãe

por ele, assim como o amor incondicional do empresário por seu filho perdido no mundo. Ambos os pais aguardaram pacientemente pela reviravolta na vida

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de seus filhos.Sofia saiu ao mundo querendo ajudar os outros quando viu seu

filho realmente disposto a mudar. O empresário, ao perceber a vontade de mudança em seu filho, acreditou que é possível reverter a situação.

Atualmente, os quatro trabalham voluntariamente na luta contra o crack. Os dois jovens se recuperaram, constituíram família e são cidadãos de bem. A clínica conta, ainda, com mais oito monitores, ex-usuários, e abriga mais de oitenta internos. Há projetos para ampliação.

O número de vagas é limitado, porém, as poucas sementes plantadas são suficientes para dar ótimos frutos no futuro.

Imagine quantas pessoas cada ex-usuário deixa de aliciar, reduzindo o aumento de dependentes. Quantos homicídios e latrocínios são evitados, reduzindo a taxa de mortandade causada por eles. Quantos furtos e assaltos não são realizados, reduzindo a criminalidade. Quantos pontos de tráfico deixarão de vender, por falta de ter quem comprar e quantas famílias se reestruturarão, propagando o amor.

Às vezes, o que nos falta é iniciativa!

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Vidas quebradas: reflexos do crack

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Reflexões de uma cidadã

Tendo ouvido o Surdo e o Mudo, arrumei a papelada com todas as anotações feitas e encaminhei todas as possíveis manifestações que podiam ser feitas em prol dos mesmos. Encerrado meu expediente, me despedi dos agentes prisionais e outros companheiros e fui embora, rumo ao lar. Passei o dia inteiro nessa grande batalha psicológica; assimilei, em poucas horas, os tormentos e problemas de tantos reclusos.

O sol se deitava do outro lado do portão, o céu estava avermelhado, poucas nuvens persistiam em fi car. Quando olhei para trás, esperando que o portão se abrisse, vi a muralha com seus quadradinhos acesos. Depois de um dia inteiro de sofrimento, com certeza estavam refl etindo sobre seus erros. Ou será que não?

O portão se abriu e fui para casa com minha mente borbulhando em refl exões. Todos esses problemas foram causados, direta ou indiretamente, pelo crack. Além desses que apresentei, conversei com estelionatários e criminosos sexuais que nada tiveram de infl uência pela droga em questão.

Todos estavam carentes de ajuda, cada um precisava ser ajudado à sua maneira. Essa é a questão! Que atitude tomar quando estamos sozinhos nessa situação? Como ajudar aqueles que foram abandonados pela sociedade? Gostaria de ter a força de Sofi a de Jesus. Como não tenho, passei a noite inteira acordada, refl etindo. Conforme soluções iam surgindo, eu fazia anotações.

Mas, como ajudar aqueles a quem não conheço? O pouco que ajudo é muito para eles, mas e os outros? E aqueles usuários que querem largar o vício e não tem a quem recorrer? E os pequenos trafi cantes que estão nessa vida para sustentar suas famílias? E aqueles pequenos fl agelados que vivem nas ruas? E a falta de clínicas? Como conscientizar a população? Como uni-los em um único ideal?

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Reginaldo Osnildo

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Toda essa confusão em minha mente foi o resultado do impacto que aquele primeiro dia de serviço me causou. A descoberta da verdadeira realidade, que não está tão encoberta quanto pensamos. Surgiram várias dúvidas, mas apenas uma resposta.

Informar e transmitir a vivência dessas vidas quebradas pelo crack. Se eu escrevesse um livro sobre a vida dessas pessoas, será que conseguiria fazer com que os leitores tomassem conhecimento do que o crack é capaz de causar? Talvez sim.

Só que surgiu um problema: a autorização dos detentos. Se eu conseguisse a permissão de todos, poderia fazer com que os cidadãos de bem se unissem, não apenas para acusar, mas para lutar pacificamente. Para pedir soluções aos políticos, para fazer com que a sociedade se mobilize em prol de um único objetivo: vencer o crack.

Nada pode nos impedir de pensar no crack, nos seus usuários, nas consequências que o crack deixou em nossa sociedade, e no que ainda pode causar se empurrarmos com a barriga. O crack não é a única causa da violência, mas é um de seus aceleradores, propulsor da tão temida criminalidade que nos causa tanta insegurança. É óbvio que, se eliminássemos o crack de vez do mundo, o crime continuaria a existir, porém, acredite, é estatisticamente comprovado que o crack dissemina o mal.

Não conseguindo dormir naquela noite, saí bem cedo, e antes do horário já estava na penitenciária. O segundo dia não foi tão apavorante quanto o primeiro. Lá chegando, procurei por Brutamontes e pedi que me levasse na cela de todos os presos para quem precisava pedir a autorização. Como bom cidadão que ele é, explicada a situação, me acompanhou.

O primeiro da lista que fiz era o bambambã, que, lamentavelmente, faleceu durante a madrugada. Só depois de um tempo foi

que optei por mudar seu nome e contar de igual forma sua história. José morava no mesmo cubículo que Alguém, disse-me que tentou salvá-lo, mas não adiantou, perceba suas palavras:

– Conte comigo, senhora. Quero ajudar com o relato da minha vida. Deus quis levá-lo. Assim como Alguém, desta vida ninguém leva nada. Fique com Deus, senhora.

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Falei com Vitória e ela fi cou deslumbrada com a ideia. Já estava acordada quando cheguei à porta da cela, se eu não dissesse estar com pressa, me tomaria o dia todo. Consegui sua permissão. Nosso amigo Emanuel estava no cubículo ao lado e gritou afi rmando apoio total; Vitória fez muito escândalo, quando percebeu que ele havia escutado a conversa toda. Mais uma autorização concedida.

Procurei seu Inocêncio, ele apoiou a ideia. Caio também, e me mandou, posteriormente, uns comentários extras que postei no livro entre as conversas.

O Playboy me autorizou, mas com uma condição, e sendo seu pai muito infl uente, concordei, trocando seu nome real por um fi ctício. Prefi ro assim.

Para conseguir a autorização de Lenilson, aquele da platina no maxilar, tive que prometer-lhe uma transferência, foi o mais difícil de conseguir, só depois de três dias pude confi rmar a vaga no hospital psiquiátrico, tive que fazê-lo assinar um documento. Não confi o nele.

O Capitão fi cou meio desconfi ado, mas autorizou, me disse apenas que omitisse o nome dele e o batalhão que trabalhou. O restante liberou. Ele sabia que eu não exporia sua vida abertamente, permitiu que eu usasse o que julgasse necessário.

Restaram-me o Mudo e o Surdo. Na realidade, para convencer o Mudo bastava convencer o Surdo. Foi o que fi z. Como já era de se esperar, os dois moravam juntos. Ao me ver, sorriram muito, nem foi preciso convencê-los. Quando os vi, senti um enorme bem estar e retribui o sorriso, derreteram-se. O incrível nesses dois é que eles haviam se tornado um só. Se não tivesse visto o Mudo bem, atualmente, não descansaria. Ainda me corta o coração lembrar a morte do Surdo.

Tive que fazer tudo isso às pressas, o mal-humorado do Brutamontes queria ir para casa, tinha terminado seu plantão.

Espero que as histórias aqui relatadas tenham cumprido seu objetivo, que elas tenham logrado êxito em seu real propósito. Depois dessas, escutei muitas histórias da vida real, são muitas as vidas quebradas pelo crack.

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Composição e impressão

ESTADO DE SANTA CATARINASecretaria de Estado da AdministraçãoDiretoria da Imprensa Oficial e Editora de Santa Catarina

Florianópolis - SC (48) 3665-6200

O.P. 4982

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CUSTOSEM

LEI Nº 15.019

100CÓPIAS

Esta é mais uma obra publicada por meio do projeto Cem Cópias

Sem Custo, Lei nº 15.019, que criou o programa de incentivo à

produção literária e cultural, permitindo ao escritor catarinense,

ou aqui radicado há mais de três anos, publicação de obras a

custo ZERO.

A Lei prevê ainda que 30% de cada 100 cópias impressas serão

doados às bibliotecas e escolas públicas, visando permitir e

estimular a leitura e a correta aplicação da ortografia da nossa

língua pátria.

Este programa vai tornar as obras e os autores conhecidos de um

público importante que está despertando para o sabor da leitura.

E, certamente, despertará nesses leitores o sabor da escrita.

Cem Cópias Sem Custo

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Biblioteca Escolar:Conquistando respeito eadmiraçãoRaquel Pacheco

Brincando de PoetizarVilmar Machado Euzébio

Gato & SapatoMarta Eliane S. Carvalho

Por aí... uma aventurasolitáriaRonei B. Amandio

Química Mágica – aexperimentaçãoPedro Penteado do Prado

Último RefúgioTherezinha Cacilda Monteiro

Mann

Michell Foitte

Versos em você

As Aventuras de Queno eGuaráKátia Eli Pereira e João

Fernandes da Silva Júnior

Ana maria Pereira Peixe

A Doença de AlzheimerVera Lucia Vieira Rodrigues

(Organizadora)

A História da Escola da Seta

Celulose Irani, um marcono desenvolvimento doOeste CatarinenseArlete Maria de Quadros

Dragão OcultoClara Irmes Macário

Elenir Cericatto

Estado, Constituição eCidadania

Tarcísio Voss

Estruturalismo naMicrofísica da Educação

Jazz, Cinema & UtopiaCarlos Holbein Antunes de

Menezes

Rita Cornejo

Livro do TempoVagner Antonio Hartcopf

Poemas Reunidos

Therezinha Cacilda Monteiro

Mann

Prisioneiros do Passado