Videoclipe e Televisão Musical

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  • Videoclipe e Televiso Musical: Uma abordagem de gneros

    Thiago Soares1

    Resumo: A partir da premissa de que o videoclipe articula os campos da televiso e da msica popular massiva em suas estratgias de endereamento, localizamos na abordagem de gneros, um eficiente trajeto para a visualizao de interfaces capazes de dar conta da complexidade deste produto. A partir de autores que operam com o conceito de gnero televisivo propomos a insero do debate sobre gnero musical como sendo determinante na formatao de eficientes ferramentas de visualizao de estratgias miditicas.

    Palavras-Chave: 1. Gnero miditico 2. Videoclipe 3. Televiso musical

    O ponto de partida para a investigao analtica do videoclipe requer visualizar dois sistemas produtivos em tenso: a televiso e a msica popular massiva2. O clipe problematiza os tradicionais nmeros musicais televisivos3 e suas caractersticas ligadas performance do artista protagonista, inserindo elementos que caracterizariam um uso mais experimental dos recursos audiovisuais, assim como imbrica uma srie de estratgias discursivas4 atreladas s dinmicas da indstria fonogrfica, possibilitando, atravs deste audiovisual, compreender um conjunto de aes que reforcem elementos ligados aos valores (FRITH, 1996, p. 7) dos produtos musicais em circulao. Pensar o videoclipe dentro dos sistemas da msica popular massiva significa tensionar os elos constitudos entre o prprio videoclipe e a cano que o origina, identificar que esta cano est inserida dentro de uma lgica de produo da indstria fonogrfica e, estando arraigada neste sistema produtivo, compreender que o videoclipe um lugar sintomtico

    1 Doutorando em Comunicao e Cultura Contemporneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-

    mail: [email protected]. 2 Remetemos definio de Janotti Jr. (2005) de que a msica massiva supe as expresses que se

    valeram do aparato miditico contemporneo, ou seja tcnicas de produo, armazenamento e circulao tanto em suas condies de produo bem como em suas condies de consumo. 3 A referncia so os histricos registros de performances musicais, como apareciam em programas como

    The Kenny Everett Video Show, Top of the Pops ou mesmo, no Brasil, o Globo de Ouro ou os nmeros musicais do programa Fantstico (Globo). 4 As estratgias discursivas correspondem a um projeto concreto que obedece a determinados critrios de

    seleo e relevncia, dizendo respeito a decises tomadas no processo de produo, responsveis tambm pela escolha de mecanismos de expresso adequados manifestao dos contedos desejados (DUARTE, 2004, p. 42)

  • para identificar e problematizar as estratgias discursivas deste produto. Reflete-se sobre o clipe a partir de uma anlise miditica, que vem a ser o procedimento interpretativo atravs do qual os aspectos plsticos e miditicos de um produto so analisados de maneira inter-relacionadas. (CARDOSO FILHO e JANOTTI JNIOR, 2006, p. 12) No entanto, preciso considerar que as dimenses plsticas e miditicas do videoclipe esto circunscritas no sistema televisivo. Traar consideraes acerca do videoclipe no universo da televiso significa partir na busca por formas de compreenso de sua formatao enquanto um produto localizado diante de regras classificatrias e gerando estratgias de comunicao capazes de orientar os espectadores diante destes audiovisuais. Para Elizabeth Bastos Duarte (2006),

    os processos comunicativos televisivos se materializam em textos os produtos televisuais, cuja caracterstica principal a complexidade e a hibridao: no s seu contedo expressa-se simultaneamente atravs da articulao de diferentes linguagens sonoras e visuais como a gramtica das formas televisuais est em processo de permanente apropriao em relao a outras mdias. (DUARTE, 2006, p. 20)

    Relevante destacar que estes produtos televisuais esto articulados a estratgias de comunicabilidade, sendo, portanto, necessrio pensar de que forma estas estratgias se fazem presente nos produtos. Assim, estamos diante do conceito de gnero que, assumindo inmeras vertentes nos estudos acadmicos sobre produtos televisuais, apresentado como dotado de funcionalidade para as reflexes no nosso objeto.

    1. Sobre o gnero televisual

    Uma primeira perspectiva diz respeito ao conceito de gnero na televiso como uma forma de perceber como os produtos televisivos articulam uma fora modeladora e estruturante das competncias miditicas, atravs da qual pode-se compreender e analisar os jogos de repeties, imitaes e emprstimos dos produtos. (TESCHE, 2006, p. 76) Neste sentido, Tesche no se prope a visualizar descries essenciais da natureza intrsceca dos produtos, mas perceber como as convenes nos produtos da televiso, muitas vezes, so importadas de outros territrios culturais, de outros conjuntos de prticas significantes e so reelaborados a partir de premissas relacionadas a uma histria

  • do produto. Fala-se, portanto, de convenes que criam suas prprias dinmicas e no codificaes rgidas nos sistemas produtivos da televiso. (TESCHE, 2006, p. 77) O autor sinaliza para a relao entre gnero e prtica na produo televisiva, considerando o fato de que as categorizaes de gnero atravessam as condies de produo na medida em que propem uma forma de fazer, uma lgica de concepo e de ao que tensionam constantemente as naturezas classificatrias. Interessa, no gnero, a sua

    capacidade de servir como um ponto de ancoragem do acordo comunicativo como objeto de estudo semitico e cultural. (TESCHE, 2006, p. 83) Assim, desdobramentos e desarraigamentos do gnero do relevo a uma constante negociao com seus princpios sistemticos.

    Arlindo Machado (2001) prope a idia do gnero na televiso a partir de conceitos advindo da semitica russa de Mikhail Bakhtin. Para o autor, possvel compreender um gnero televisivo como uma fora aglutinadora e estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, com a finalidade de organizar meios expressivos de uma cultura de modo a garantir comunicabilidade a estes produtos. Alegando no ser possvel tratar de todos os gneros televisuais, Machado prope eleger aqueles que seriam os gneros mais exemplares da esfuziante diversidade genrica e aponta, assim, para os seguintes agrupamentos: formas fundadas no dilogo, narrativas seriadas, telejornal, transmisso ao vivo, poesia visual e videoclipe. (MACHADO, 2001, p. 71) Os agrupamentos a que Machado faz suas consideraes so reconhecidos, no a partir do conjunto de prticas significantes, mas diante da escolha de uma suposta qualidade em torno dos produtos indicados pelo autor.

    Franois Jost (2004) opera com o princpio do gnero na televiso como uma promessa diante das estratgias de imposio de sentido dos produtos na era da publicidade. O produto televisual, na contemporaneidade, vem acompanhado de uma multiplicidade de discursos (entrevistas, comunicados, releases, apresentaes, etc) que funcionam como articuladores do benefcio do prazer simblico do telespectador. O gnero, neste contexto, uma moeda de troca reguladora da ciculao dos produtos audiovisuais no mundo miditico, que se materializa em duas perspectivas no ato promissivo: uma que forja o horizonte de expectativas do qual o gnero portador e outra que opera com uma ambigidade pragmtica, identificvel atravs dos engajamentos dos

  • espectadores ou dos atributos exemplificados nas ferramentas de auto-promoo das mdias. (JOST, 2004, p. 29-30) Os gneros seriam, portanto, um terreno de confronto dos produtores, que precisam dotar seus produtos de uma identidade genrica; dos emissores, que precisam semantizar seus produtos a fim de torn-los desejveis e dos espectadores, para quem a categorizao uma idia necessria sua interpretao.

    A concepo de gnero televisivo presente em Gomes (2002) articula um lugar terico capaz de abarcar a visualizao das estratgias presentes nos produtos televisivos. Para Itania Gomes,

    o gnero televisivo um modo de situar a audincia em relao a um programa, em relao ao assunto nele tratado e em relao ao modo como o programa se destina ao seu pblico. Neste sentido, colocar a ateno nos gneros implica em reconhecer que o receptor orienta a sua interao com o programa e com o meio de comunicao de acordo com as expectativas geradas pelo prprio reconhecimento do gnero. (GOMES, 2002, p. 9)

    Pensando o gnero a partir de uma eficiente chave de anlise dos produtos, pode-se compreender a dinmica organizacional destes objetos miditicos da televiso diante da sua oferta no mercado televisivo e, conseqentemente, articulada a estratgias de captao de audincia. Ao convocar os Estudos Culturais, Gomes sinaliza incorporar sintomas contextuais (polticos, econmicos e, portanto, sociais) nas formas de reconhecimento dos gneros, propondo que a concepo discursiva do sentido atravessada por uma elaborao cultural que visa indicar estratgias de leituras dos produtos.

    Elizabeth Bastos Duarte (2006) constri a concepo do gnero na televiso a partir da noo de virtualidade, uma vez que o prprio gnero na televiso no passaria de uma abstrao, j que nenhum produto televisivo manifesta apenas as categorias genricas, em sentido estrito, em sua completa extenso e exclusvidade. Para a autora, o gnero funcionaria, em cada caso, como substncia de uma forma que sobre ele se projeta, decorrente da articulao entre subgneros e formatos, e no teria outra existncia possvel alm dessa de ser substncia em-formada. (DUARTE, 2006, p. 22) A noo de gnero na televiso, para Duarte, seria uma espcie de feixe de traos de contedo da comunicao que s se atualiza quando, sobre ele, se projeta uma forma de contedo e de expresso. Esta forma a que a autora se refere representada pela

  • articulao entre subgneros e formatos, esses sim, procedimentos de construo discursiva que obedecem a uma srie de regras de seleo e combinao. (DUARTE, 2006, p. 22) Ao articular as noes de gnero e formato, encarando o gnero como este conceito suposto e o formato na ordem da realizao, Duarte nos fornece maneiras de conceber aspectos relacionais e de ingerncia do terreno da msica popular massiva no universo dos gneros televisuais, capacitando-nos a aprofundar as nossas reflexes em direo perspectiva do videoclipe.

    2. Sobre o gnero musical

    As articulaes que traamos at este ponto dizem respeito reviso e, conseqente, apropriao de uma srie de autores dos estudos de televiso sobre gnero televisivo. Destacamos a necessidade de tratar o videoclipe como gnero televisivo, uma vez que este audiovisual apresenta, no campo televisual, os seus esquemas de disposies estveis e transponveis que interpretam experincias passadas como matriz de dinmicas discursivas. Dessa forma, traamos uma hiptese acerca da relao de gnero construda no mbito do videoclipe: como articula tanto os sistemas de produo de sentido da televiso quanto da msica popular massiva, as estratgias de endereamento do clipe vo tensionar dois direcionamentos genricos um proposto pela orientao do gnero musical e outro, pelo gnero televisivo. O videoclipe seria orientado, para tanto, para uma audincia televisiva, capaz de decodificar as estratgias inscritas nos prprios produtos, como tambm, teria seu direcionamento diante do universo imagtico dos gneros musicais, a partir de um compartilhamento de conceitos, idias e imagens acerca dos produtos em circulao da msica popular massiva.

    Aspectos ligados a uma imagtica dos gneros musicais e das performances inscritas nas canes so balizas capazes de compreender de que forma os videoclipes so orientados e supem as disposies de um pblico que os reconhecem. Por imagtica de um gnero musical, entende-se a configurao de endereamento atravs de um conjunto de imagens de divulgao de um produto da indstria fonogrfica genericamente orientado. Sabe-se que as classificaes genricas na msica borram os aspectos textuais dos gneros. H gneros musicais que nem sempre so identificveis

  • textualmente nas canes, deslocando o eixo classificatrio para uma instncia pragmtica (FABBRI, 2003, p. 8). Portanto, as classificaes genricas no campo da msica, em inmeros casos, obedecem a pressupostos de uma dinmica de reconhecimento do pblico consumidor num produto, no incorporando aspectos estritamente musicais. Os gneros musicais servem como aporte de endereamento dos produtos da msica popular massiva a partir de trs regras (JANOTTI JR, 2003, p. 36):

    1. regras econmicas, que envolvem as relaes de consumo (e os endereamentos presentes nesse circuito) nos processos de produo, difuso e audio do produto musical;

    2. regras semiticas, que abarcam as estratgias de produo de sentido e as expresses comunicacionais do texto musical, alm da conformao de valores ligados ao que considerado autntico em detrimento ao cooptado, ao modo como as expresses musicais se referem a outras msicas e como diferentes gneros trabalham questes ligadas aos modos de enunciao, s temticas e s letras;

    3. regras tcnicas e formais, como as convenes e habilidades que cada gnero pressupe dos msicos, ritmos, alturas sonoras e nas relaes entre voz e instrumentos, palavras e msica. Neste sentido, o exame destas regras genricas no campo do videoclipe abarca tanto a perspectiva de indentificao de modos de operao e ressignificao dos apontamentos ligados materialidade da msica popular massiva (a cano), bem como a percepo de como os prazeres da cultura popular massiva so parcialmente inscritos nos produtos que dela emergem.

    Refletir sobre as ingerncias das regras econmicas dos gneros musicais nos videoclipes significa identificar os itinerrios de consumo deste produto: os interesses comerciais que envolvem as gravadoras ou as instncias produtivas, as emissoras que os exibem, espaos que ocupam nas programaes, localizao nas grades e os trajetos de circulao, bem como as inmeras formas de apropriao do clipe como um produto da msica popular massiva. As regras semiticas genricas podem ser compreendidas nos videoclipes diante do espectro de criao audiovisual que relaciona clipes entre si,

  • operacionalizando um modo de enunciao ligado a temas, ambientes e cenrios que circunscrevam um videoclipe num modo de se evidenciar a partir da premissa da autenticidade. Se as regras tcnicas e formais na msica popular massiva dizem respeito s convenes que cada gnero empreende, do ponto de vista do ritmo, das alturas sonoras e nas relaes entre voz e instrumentos, palavras e msica; no mbito do videoclipe possvel pensar em como tais aspectos plsticos so orientados imageticamente a partir da noo de performance da cano.

    Por performance, compreende-se o conjunto signficante de uma cano que se presentifica produzindo sentido a partir de uma enunciao. No campo da msica popular massiva, esta enunciao da cano se faz de maneira miditica, estando disponvel em inmeros contextos distintos. A delimitao do termo performance como propomos utilizar neste artigo tem a inteno de valorizar os aspectos sonoros e especficos dos artistas que interpretam a cano. Quando nos referimos ao fato de que as canes trazem inscritas performances, precisamos deixar claro que trata-se de uma perspectiva que visa a se localizar no campo da produo de sentido. Ou seja: nos interessa discutir a performance inscrita na cano5 como a voz do artista se apresenta modulada, como a cano inscreve uma forma de dan-la, que cenrios podem ser evocados pelas performances inscritas nas canes, de que forma a audio de uma determinada voz j apresenta uma srie de conceitos socialmente e midiaticamente construdos.

    Entendemos que o conceito de performance parte de um material expressivo significante que dever produzir sentido em consonncia com questes de ordens cultural e contextual. Ou seja, a idia de que determinado objeto performatiza outro, coloca em circulao as materialidades expressivas dos produtos articuladas a maneiras pr-inscritas de leituras destes produtos. Conceitualmente, tentamos empreender o argumento de que videoclipes performatizam as canes que os originam, propondo uma forma de fazer ver a cano a partir de cdigos inscritos nas prprias canes populares massivas, mas

    5 Como atesta Danilo Fraga Dantas (2005), se h um corpo em uma cano ouvida por um meio auditivo,

    de certo no podemos mais v-lo. Mas, seu sexo, pulsaes, sentimentos, esto impressos na mdia sonora. Assim, na cano gravada, existiriam traos de performance que guiariam o ouvinte em sua escuta. Como ouvintes, estamos aptos a reconhecer esses traos e dar vida cano a partir de nossas prprias experincias seja ela cotidiana, no conhecimento das diversas entoaes, interjeies ou musicais, na identificao dos diversos gneros musicais e suas convenes (DANTAS, 2005: p. 6)

  • tambm diante da problemtica dos gneros musicais e das estratgias de endereamento dos produtos da indstria fonogrfica.

    Da lgica produtiva da msica popular massiva, o videoclipe ainda se configura como um produto que se enquadra nas configuraes de consumo dos DVDs musicais. Orientados atravs da premissa econmica da msica popular massiva, os DVDs musicais operam com estratgias de endereamento que pressupem levar em considerao: a histria do prprio artista protagonista do DVD; o ato performtico ao vivo, os desdobramentos e os aparatos cnicos envolvidos nos shows e turns; a estratificao a partir de gneros musicais ou a nomeao diante de uma varivel que determine a formatao de um determinado produto. Pode-se apresentar na relao entre o videoclipe e os ditames da indstria fonogrfica, uma srie de produtos que circundam e so gerados de forma a orbitarem em torno de uma determinada faixa musical ou de um lanamento de um lbum fonogrfico.

    As relaes de endereamento no universo do videoclipe implicam na compreenso de que as duas regras genricas televisiva e musical funcionam como articuladores de operaes complexas cujo princpio integra uma mxima de construo histrica capaz de incidir sobre as organizaes dos produtos. Mais uma vez, no se trata de obedincia ou desobedincia aos pressupostos genricos, mas a conduo de um processo de organizao dos produtos circunscritos sob dois espectros. Para considerar o videoclipe dentro desta lgica televisivo-musical, precisamos fazer uma passagem da entrada do sistema visual na relao entre msica e imagem e a construo do conceito de televiso musical.

    3. Musicando a televiso

    O videoclipe, que tem na Music Television (MTV) seu principal alicerce de divulgao (McGRATH, 1996, p. 31), assume sintomaticamente um papel de protagonista da televiso musical. Tranformar a televiso num meio musical significou, a partir de sua natural disposio audiovisual, potencializar a sua caracterstica de udio, fazendo com que o visual fosse atrelado a uma dinmica dos artistas da msica popular massiva. Compreende-se por televiso musical, os processos de produo e circulao de

  • produtos musicais atravs de emissoras de televiso segmentadas, ampliando o espectro de alcance destes produtos que passavam a no s ocupar um unico meio, o rdio (udio), mas se apresentavam de maneira massiva tambm numa configurao televisiva (visual). Relevante destacar que, antes propriamente do conceito de televiso musical ser disseminado, o cinema j instaurava como alicerce visual dos produtos musicais6, sobretudo atravs de filmes musicais protagonizados por astros da msica (The Beatles, Elvis Presley, etc). No entanto, h um fator que aproxima a televiso musical do rdio: a organizao de suas programaes a partir de uma dinmica ininterrupta de programas, intervalos e atrativos, apresentando gneros e formatos, alm de estruturas de produo anlogas. A televiso musical se presentifica em canais como MTV, VH1 e congneres.

    Muito se discutia, no incio da formatao da MTV nos Estados Unidos, no ano de 1981, se a televiso musical seria apenas um rdio com imagens (McGRATH, 1996, p. 13). A histria das rdios comerciais norte-americanas no final dos anos 70 ajuda a perceber sintomas de aproximao entre os sistemas radiofnicos e televisivos, compreendendo que tais aproximaes estariam circunscritas na perspectiva aglutinadora da cultura da mdia (KELLNER, 2001, p. 23). O ano de 1977 foi particularmente decisivo para tal aproximao: nos EUA, as rdios viviam um perodo de recesso com suas programaes maciamente voltadas para o pblico adulto enquanto a indstria fonogrfica passava por uma crise em funo das baixas vendagens de seus lbuns. Artistas da soul music e da msica country no funcionavam mais como alavancas de vendagens de LPs. A crise das rdios norte-americanas no final dos anos 70 reverberava na indstria fonogrfica. Visualizando esta cartografia, possvel perceber a profunda dependncia que, dentro da indstria fonogrfica, os meios de comunicao de massa possuem das instncias produtivas da msica popular massiva. Neste perodo, as

    6 preciso considerar a relevncia da imagem no campo da indstria da msica. Das capas dos discos, para

    os encartes, os artistas da msica passam a criar pequenos filmes que sintetizavam suas canes. Na dcada de 60, os Beatles fizeram curtas musicais para as canes Penny Lane e Strawberry Fields Forever. Tais filmes tinham circulao restrita, funcionavam apenas como material experimental do grupo. A indstria fonogrfica se apropria do dispositivo da imagem com a criao de filmes estrelados por popstars, como Elvis Presley (Jailhouse Rock de 1957) e The Beatles (A Hard Days Night, de 1964). A relevncia da imagem no campo da msica proporcional ao fortalecimento do star system no terreno da msica popular massiva. Programas de televiso como o The Kenny Everett Video Show e o Top of The Pops, que reproduziam a estrutura das paradas radiofnicas no ambiente televisivo, inseriam na programao das TVs abertas, atrativos musicais em apresentaes ao vivo, voltadas, de maneira geral, para o pblico jovem nova matriz de endereamento dos produtos da indstria da msica.

  • emissoras de rdio funcionavam como um ambiente capaz de gerar circulao para os produtos da indstria da msica, apresentando-se como a principal pea da engrenagem de divulgao massiva da msica.

    Um quadro de novas configuraes da circulao de produtos da msica, neste momento histrico, se apresenta:

    1. necessidade de um novo ambiente de divulgao dos produtos da indstria fonogrfica, uma vez que vivia-se uma visvel saturao do espao radiofnico como meio de circulao;

    2. entrada de novos sistemas imagticos de legitimao do artista no terreno musical, sobretudo o cinema musical e os filmes que se apresentavam como fortes aparatos para a construo do conceito de celebridade na dinmica do star system musical;

    3. crescimento e progressiva popularizao da televiso como eletrodomstico nas residncias, fazendo com que a prograo das emissoras de TV tivessem que se apresentar para toda a famlia, criando orientaes a partir dos pblicos que estivessem em casa em horrios pr-determinados;

    4. a progressiva ocupao de espaos publicitrios na televiso por produtos segmentados para mulheres, jovens, crianas e que, de incio, no se apresentavam como pblico-alvo potencial da TV comercial. A visualizao destas variveis ajuda na identificao das necessidades de implementao de uma televiso musical, que tivesse circunscrita no princpio da segmentao e fosse alicerce da formatao imagtica do star system no terreno da msica popular massiva.

    A MTV, emissora sntese da chamada televiso musical, nasce dentro de um contexto de segmentao dos contedos da televiso aberta e busca por espaos na televiso por assinatura. A histria da TV por assinatura pressupe enxergar duas fases distintas na sua expanso: a primeira, com vistas a fazer chegar sinais de TV nas mais longnquas localidades e a segunda, de endereamento segmentado dos contedos dispostos. A criao da MTV articula-se a esta segunda etapa de expanso e pode ser

  • percebida a partir do princpio da juno de instituies da mdia7. A televiso musical incorpora procedimentos de gerao de seus produtos que integram espaos do rdio, da televiso segmentada e das indstrias fonogrfica e cinematogrfica. As caractersticas da televiso musical estariam marcadamente articuladas a uma dinmica de circulao radiofnica atravs:

    1. do uso das listas e paradas dos mais pedidos artistas ou videoclipes que ocupariam os horrios nobres de seus principais programas;

    2. da conjuno do chamado single (ou msica de trabalho) entre rdio e televiso, ou seja, uma cano era divulgada a partir de um nico fragmento integrante do lbum fonogrfico e imposto pela instncia da indstria fonogrfica;

    3. do fortalecimento do star system da indstria fonogrfica e a importncia de formatao de contedos concomitantes ao lanamento dos lbuns (reportagens, cobertura de eventos, festas de premiao);

    4. da apario de uma escala transnacional de exibio do videoclipe, criando demandas de at ento inexistentes no campo da msica popular massiva, o que pode ser compreendido a partir de uma lgica da cultura pop mundial (STRAW, 1993).

    A partir de um conjunto de preceitos, a MTV passa a povoar sua programao no s com videoclipes, mas com outros programas televisivos que se articulam a uma perspectiva de linguagem orientada pelo clipe. A liberdade na concepo visual, a brincadeira com o uso dos artifcios tcnicos, o universo nonsense passam a povoar primeiramente as vinhetas da emissora, posteriormente os prprios programas. Os atrativos televisivos da MTV passam a ser criados como articuladores e antecipadores da promessa que estar diante de um videoclipe. Atrativos como Top 20, MTV Por trs da Cena, Total Request Live MTV funcionam como locais em que se apresentam as

    7 A emissora nasceu da unio de um canal infantil Pinwheel, que mais tarde virou o Nickelodeon, em

    parecria com a Warner-Amex Cable (a empresa de TV a cabo da Warner) e subsidiada pela financiadora de cartes de crdito American Express. Em 1985, com a gigantesca adeso de clientes aos servios da MTV, a emissora passou a ser administrada pela Viacom.Inc que, mais tarde, se transformaria na MTV Networks.

  • estratgias de imposio de sentido dos produtos e trazem a promessa do benefcio simblico para o espectador ao mesmo tempo em que demonstram elos determinantes entre a televiso musical e a indstria fonogrfica.

    Discutir os clipe a partir da perspectiva articulatria com os gneros musicais pressupe encontrar, nas estratgias de endereamento do gnero televisivo, uma brecha de visualizao dos campos da msica popular massiva e da televiso. Dentro da televiso musical, os gneros musicais funcionam no s como orientadores dos videoclipes, mas os inmeros formatos de clipes orientam a criao de programas que partam de uma orientao genrica, podendo citar Total Massacration, dedicado aos fs e curiosos do heavy metal ou o Amp, para os fs de msica eletrnica. Estes atrativos encontram-se dispostos nas lgicas de utilizaes do gnero pelos programadores ou produtores e tambm pelos espectadores. Cabe ao analista de videoclipes conceber de que forma os gneros televisuais e musicais podem ser de fundamental importncia para perceber as estratgias de comunicao inscritas nos prprios produtos e suas concepes mercadolgicas.

    4. Consideraes

    O duplo endereamento televisivo e musical do videoclipe est circunscrito numa lgica miditica. Portanto, possvel delimitar produes de sentido que demarquem aspectos ideolgicos dos textos, bem como seu alcance comercial (de pblico-alvo). Pensar o videoclipe a partir da noo dos estudos de gnero significa enxergar as dinmicas de condies de produo e reconhecimento, os indicativos de possibilidades de produo de sentido e de interao entre os modos de produo, circulao e consumo. A abordagem dos gneros ajuda a dar conta dos rtulos e das manifestaes particulares, bem como, do processo de produo de sentido na cultura miditica. Pressupe-se compreender as manifestaes materiais dos videoclipes ancoradas em seus aspectos expressivos e, consequentemente, na materialidade dos suportes em que circulam. As condies de produo e de reconhecimento, as estratgias de leitura e o campo social que abarca a produo do videoclipe tambm devem ser abarcados numa leitura miditica deste audiovisual. Compreender o videoclipe a partir da

  • chave analtica dos gneros pressupe visualizar um entrelugar nas estratgias de produo e no sistema de recepo que esto inscritos nos prprios produtos.

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