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Vieira 2010 a Fertilidade Como Eixo Do Divino Em Ugarit

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fertilidade

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  • KUBABA 1, 2010 ISSN: 1647-7642 http://www.fcsh.unl.pt/kubaba

    A FERTILIDADE COMO EIXO DO

    DIVIO EM UGARIT:

    O CASO DE BALU

    Joo Pedro Vieira

    Universidade de Lisboa

    RESUMO

    O presente artigo avalia sucintamente a importncia de Balu na

    mitologia ugartica, explorando a dimenso da fertilidade e servindo-

    se essencialmente dos dados fornecidos pelo Ciclo de Balu. Balu ,

    acima de tudo, um dispensador de fertilidade e garante da

    continuidade vital do cosmos e especialmente da humanidade. Nesse

    sentido, a actuao fertilizadora ou vital do deus garante o equilbrio

    das fronteiras entre vida e morte, entre caos e cosmos, assegurando de

    forma providencial e salvfica a vida e prosperidade da humanidade.

    ABSTRACT

    The present article briefly assesses the importance of the Ugaritic god

    Balu in Ugaritic mythology. It explores Balu's fertility dimension

    primarily using the data offered by the Cycle of Balu. Above all,

    Balu provides fertility and secures the continuity of the living

    cosmos, especially mankind. As such, Balu's vital or fertilizing action

    reassures the equilibrium of the boundaries between life and death,

    cosmos and chaos, sustaining human life and human prosperity in a

    providential and salvific way.

    O divino constitui indubitavelmente um dos pilares centrais das

    mundivises semitas antigas, um eixo conceptual e existencial estruturador

    que confere realidade parte essencial da sua ordem, sentido e

    razoabilidade. A evidente eminncia desta temtica justifica plenamente,

    portanto, uma abordagem especfica da sua concretizao prtica na

  • Joo Vieira

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    literatura ugartica e especificamente numa das suas mais importantes

    manifestaes o CB. A, Balu assume uma posio axial que se

    manifesta numa pluralidade de formas, sendo porventura a fertilidade a mais

    significativa das manifestaes desse deus para o universo mitolgico e

    religioso ugartico.

    Reconhecendo a existncia de foras numinosas nos mais marcantes

    e influentes fenmenos da natureza e da existncia humana, a religio

    ugartica, como todas as culturas do conglomerado civilizacional em que se

    insere, reifica-as em entidades antropomorfizadas tanto do ponto de vista

    psicolgico como fisionmico e social. So essas entidades, nas quais se

    projecta uma inteno ou vontade que lhes confere dinamismo psicolgico

    (Saraiva, 2003: 441-442), que explicam o comportamento desses

    fenmenos, csmicos e sociais, e assim descrevem o seu funcionamento. As

    principais figuras da literatura mitolgica ugartica e muito particularmente

    do CB situam-se, de facto, neste quadro.

    O panteo divino envolvido no CB conspicuamente retratado

    atravs de uma ptica funcionalista segundo a qual os atributos explicam e

    definem a natureza dos deuses, os quais corporizam objectivamente grandes

    realidades, mais que grandes personagens (Ramos 2000: 203). Esta

    observao est em total consonncia com a orientao global da mitologia

    ugartica, que se tende a concentrar sobre o funcionamento do universo em

    detrimento da questo das suas origens, numa atitude mais ligada

    experincia pragmtica do ambiente e s questes da procriao e da

    produo (Ramos, 1997: 34). Conquanto nenhum texto literrio ou

    mitolgico ugartico verse ou se refira explicitamente a um relato das

    origens, a mitologia acaba por fornecer inevitavelmente um quadro

    referencial que opera na mundividncia de Ugarit na qualidade de

    sucedneo das origens. Por isso, em certa medida, lcito afirmar que a

    mitologia ugartica trata da questo das origens in medias res.

    Balu simultaneamente o grande protagonista do CB e a mais

    notria expresso desta perspectiva funcionalista sobre a constelao

    Abreviaturas utilizadas:

    CB Ciclo de Balu CBDD .. O Combate entre Balu e o Deuses do Deserto Dt. Deuteronmio EA Epopeia de Aqhatu EK .... Epopeia de Kirta LBY ..... Luta entre Balu e Yammu LBM ..... Luta entre Balu e Mtu PB O Palcio de Balu Sl. . Salmos

  • A fertilidade como eixo do divino em Ugarit

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    mitolgica ugartica. Tamanho protagonismo justifica que o presente

    exerccio de prospeco em torno da temtica do divino no CB, e de um

    modo geral na literatura ugartica, se concentre sobre Balu e sobre as

    funes de fertilidade desse deus principal.

    Divindade uraniana, Balu concentra um conjunto de funes e

    atributos bastante diversos, num caso de concreo mitolgica que revela

    quer a importncia que lhe era atribuda no sistema religioso ugartico, quer

    a associada ocorrncia de fenmenos sincrticos com outras divindades

    uranianas semitas, nomeadamente Addu. O raio (Pidrayu)1, o trovo e a

    tempestade, assim como as nuvens, o vento, a chuva, a neve, o orvalho

    (allayu) e o brotar das guas (Arayu) so manifestaes da sua natureza,

    do seu poder e aco csmica beneficente e providencial para com a

    humanidade (PB 1.3 I 22-25, II 38-41, III 26-28, IV 25-27; 1.4 I 16-18, V 6-

    9, VI 8-11, VII 25-34, 38-41. LBM 1.5 II 7, V 6-8, 10-11. EK 1.16 III 5-8.

    EA 1.19 I 38-46)2. a partir do seu palcio que Balu e exerce essa

    actividade eminentemente fertilizadora sobre a terra e reprime o

    ressurgimento das foras caticas personificadas por Yammu (PB 1.4 VI 12-

    13).

    De facto, plenamente identificado com os atributos e manifestaes

    uranianas de Balu, o palcio representa a solidez da monarquia divina e

    csmica, consistindo num espao e instrumento primacial no exerccio das

    funes de fertilidade intrnsecas realeza. De notar que a formalizao e o

    pleno exerccio da realeza de Balu foram apenas possveis atravs da

    construo e ocupao do palcio. A resistncia esboada relativamente

    abertura de um orifcio no seu palcio, enfatizando o receio do

    ressurgimento do caos, mostra tambm a necessidade de conservar e gerir os

    elementos que asseguram a fecundao da terra (PB 1.4 VI 8-11). O palcio

    funciona assim como um microcosmos, um espao onde se concentra a

    ordem do universo e onde essa mesma ordem garantida e emanada: o

    palcio simboliza a ordem e torna-a concomitantemente possvel (Fisher,

    1965: 318-320).

    Balu integra-se, desta maneira, num tipo divino partilhado pelos

    diversos sistemas religiosos semitas do longo arco siro-mesopotmico,

    mantendo por isso relaes de identidade estrutural com divindades desses

    1 Pidrayu, filha de Balu e seu atributo funcional, poder representar no a luz no seu aspecto pacfico, mas sim o fulgor do relmpago (PB 1.4 VII 11), inseparvel da funo de fertilidade intrinsecamente associada a Balu. 2 Na utilizao de fontes ugarticas tomou-se por referncia a fixao do texto ugartico e respectiva traduo apresentados em Olmo Lete, 1981: 157-177 (LBY), 179-212 (PB), 213-235 (LBM), 289-323 (EK), 367-401 (EA), 481-486 (CBDD).

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    sistemas no exclusivas nem necessariamente originadas por fenmenos de

    assimilao sincrtica. Os atributos de Adad e Yahweh, divindades s quais

    se circunscrever o seguinte exerccio comparativo, partilham com Balu os

    mesmos atributos csmicos e a mesma actuao providencial e salvfica em

    benefcio da humanidade.

    No eplogo do Cdigo de Hammurapi (L 64-80), Adad intitulado

    Senhor da Abundncia e -lhe atribudo o poder de privar a terra dos

    transgressores da chuva dos cus e da gua dos rios, flagelando-a com a

    misria e a fome, ensurdecendo-a com o estrondo dos seus troves e

    levando-lhe por fim uma destruio comparvel, nas suas propores, s

    consequncias catastrficas do Dilvio (Sanmartn, 1999: 154-155).

    Similarmente, no Atraass, Adad, por ordem de Enlil, quem retm as

    chuvas e as guas dos rios e lana um vento abrasador sobre a terra,

    fustigando a humanidade com a seca e a fome (Bottro e Kramer, 1993:

    543). Diversas outras passagens do relato do Dilvio, nas edies paleo-

    babilnica e neo-assria do Atraass, salientam quer a beneficncia, quer a

    ira destruidora de Adad (Bottro e Kramer, 1993: 546, 550, 556), devendo

    acentuar-se que este ltimo aspecto est visivelmente ausente da

    personalidade divina de Balu, cuja aco para com a humanidade se define

    exclusivamente pela proteco e beneficncia, no pela punio: ou seja,

    Balu age invariavelmente em favor da humanidade3.

    J a relao com Yahweh situa-se num outro mbito cronolgico,

    considerando a sua posterioridade relativamente a Balu e o longo perodo

    de coexistncia entre as duas divindades aps a desagregao poltica de

    Ugarit. As afinidades entre os dois deuses podem ser apreciadas atravs de

    diversas passagens da tradio veterotestamentria e estendem-se para alm

    do domnio dos eptetos. Yahweh aquele que cavalga os cus (Dt. 33:26),

    pelas nuvens (Sl. 68:5), delas fazendo o seu carro (Sl. 104:3), o que

    corresponde coerentemente imagtica uraniana de Balu enquanto "Auriga

    das Nuvens" (rkb rpt e. g. LBY 1.2 IV 8. PB 1.4 III 18, V 60). Mais

    significativos so os paralelos assentes na imagem da soberania real.

    semelhana de Adad e de Balu, Yahweh figurado na sua dimenso

    aterradora de senhor dos relmpagos, do trovo e da tempestade (Sl. 18:8-

    16). Os relmpagos de Yahweh so como flechas e colocam os seus

    inimigos em fuga: em PB 1.4 VII 29-41, Balu infundia terror sobre os seus

    3 Balu partilha similaridades estruturais com outras divindades celestes do espao cultural mesopotmico, e. g. Enlil, que em Enlil e 4inlil 146-149 retratado com o senhor do cu que faz brotar as plantas, produz a abundncia e ergue a tempestade (Bottro e Kramer 1993: 111).

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    inimigos atravs do trovo e do raio, comparado a uma lana de cedro. J

    em Sl. 104:1-30, a majestade csmica e a excelsitude de Yahweh so

    exaltadas atravs da obra da criao e da sua aco providencial para com

    todos os seres, realando-se a sua ligao efectiva com a fecundidade da

    terra e a prosperidade: Yahweh quem faz brotar os rios donde bebem todos

    os animais (vv. 10-11), quem derrama a chuva sobre as montanhas (v. 13),

    quem faz germinar a erva que alimenta o gado e faculta ao homem que dela

    tire o po, o vinho e o azeite (vv. 14-15).

    imagem de Sl. 104:1-30, a maior parte das manifestaes de

    Balu, eminentemente atmosfricas, esto intrinsecamente relacionadas com

    a sua funo de dispensador da fertilidade, sobretudo na sua vertente

    agrcola, j que do ponto de vista animal a fecundidade aparenta ser regida

    por Anatu (Day, 1992: 182-185), alter ego de Balu e sua principal e

    incondicional aliada, esposa e irm. No ritual de magia simpattica que

    Kirta efectua com o objectivo de forar o regresso das chuvas, o rei

    oficiante exalta reiteradamente a relao ntima e natural entre a chuva, a

    fecundidade da terra e a agricultura: a chuva de Balu, senhor dos sulcos da

    arada (LBM 1.6 IV 3-14), uma delcia para a terra e para a semente do

    trigo depositada no sulco; como perfume na aradura e como um diadema

    sobre o cume do outeiro (EK 1.16 III 5-11). Cabe notar, neste ponto, que as

    vsceras dos emissrios de Yammu que Balu violentamente derrama pelos

    campos podero cumprir excepcionalmente a mesma funo fertilizadora

    atribuda gua (LBY 1.2 I 43-44).

    Decorrentemente, a ideia de abundncia e prosperidade, componente

    notrio do ideal de felicidade e plenitude, est intrinsecamente adstrita ao

    potencial divino de Balu. Essa ideia no lhe exclusiva, embora nele se

    concretize de forma particularmente intensa. Registe-se, por exemplo, a

    dimenso e capacidade espectaculares do clice que Balu empunha num

    dos profusos banquetes divinos que pontuam CB (PB 1.3 I 8-17), assim

    como a proverbial riqueza e magnificncia do seu palcio, para a construo

    do qual concorrem os mais preciosos e dignos metais (PB 1.4 VI 34-35, 36-

    38).

    No obstante, a funo essencial de Balu a distribuio da

    fertilidade, em torno da qual gira toda a sua actividade de conservao,

    potenciao e renovao das foras vitais do cosmos. nessa medida que

    Balu pode ser tomado como expresso personificada da totalidade csmica,

    dentro do antagonismo estrutural entre vida e morte implcito no confronto

    com Mtu. alis nesse confronto, por meio da mitologia do combate, que

  • Joo Vieira

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    a funo de manuteno da ordem ou equilbrio csmico adstrita a Balu

    mais eloquentemente se revela. Balu o senhor da vida, razo pela qual a

    concede como uma ddiva quele que o alimenta, lhe d de beber e o

    celebra cantando (EA 1.17 30-32). Em LBM, aps um percurso sinuoso de

    bravura e sacrifcio, Balu consegue superar a prpria morte, redefinindo as

    regras de funcionamento do universo at ento assentes e colocando-se

    assim em condies de dispensar proteco limitada aos homens perante a

    voracidade e arbitrariedade da morte (Xella, 1991: 102, 119).

    Sendo imputado a Balu o controlo da gua fertilizadora nas suas

    diversas formas, rapidamente as suas manifestaes atmosfricas adquirem

    uma dimenso providencial e salvfica principalmente concretizada em prol

    da humanidade. O seu reinado tem por propsito saciar os deuses e os

    homens, distribuindo universalmente a abundncia e a prosperidade (PB 1.4

    VII 49-52). A prpria existncia da sociedade dos deuses e dos homens,

    ameaada pela actividade hostil de um conjunto de foras caticas

    encimadas por Mtu e Yammu, depende da actividade benfica de Balu

    (LBM 1.5 VI 23-25; 1.6 I 6-9). O desaparecimento de Balu repercute-se

    directa e severamente nos ciclos naturais e na existncia humana: no

    confronto contra Mtu, a catbase de Balu coincide com o final das

    colheitas e o incio da poca estival, inaugurando uma poca de esterilidade

    que se repercute no desfalecimento da humanidade, esvaziada do seu alento

    (LBM 1.5 II 3-6; 1.6 II 17-19).

    So variadas as sequncias textuais em que se apreciam as

    repercusses nefastas do desaparecimento de Balu e da falncia das suas

    funes csmicas, nelas se descrevendo a grande consequncia natural dessa

    situao de desequilbrio: a seca. Assim, a derrota de Balu s mos das

    ferozes divindades do deserto transforma a terra numa extenso ressequida e

    seca os ribeiros dos campos que Ilu engrossara (CBDD 1.12 II 40-45). Do

    mesmo modo, a realeza sucednea de apu ressequira os campos, no

    cumprindo a funo de fertilidade intrnseca ao desempenho da realeza

    divina e humana (LBM 1.6 IV 1-5). Por fim, registe-se a escassez e a

    tremenda seca que os rituais de magia simpattica respectivamente

    executados por Kirta e Danilu no foram capazes de solucionar, incapazes

    de suscitar a manifestao providencial dos atributos de Balu (EK 1.16 III

    1-16. EA 1.19 I 38-46).

    Em suma, necessrio enfatizar a profunda relao entre Balu, a

    realeza e a fertilidade. De facto, Balu assume uma dupla realeza em que os

    aspectos csmicos e polticos esto densamente imbricados e funciona,

  • A fertilidade como eixo do divino em Ugarit

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    desse modo, como arqutipo celeste da monarquia terrestre, um cuidador

    universal. No entanto, mais que pela esfera do poder, da realeza enquanto

    manifestao de fora e poder, pela esfera da fertilidade que os atributos

    divinos desta figura mitolgica central se tornam mais influentes e

    significantes para a estrutura do cosmos e para a humanidade, ao garantir as

    prprias condies ambientais indispensveis existncia humana tal como

    a sociedade ugartica a conhecia. a que aparenta residir o verdadeiro

    ncleo mitolgico de Balu.

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