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AUDIODESCRIÇÃO E LUGAR DE FALA: 1 O papel do consultor com deficiência visual na audiodescrição AUDIODESCRIPTION AND PLACE OF SPEECH The role of the visually impaired consultant in audiodescription Ana Cláudia e Silva Xavier 2 Anita Rezende Resumo: Este artigo visa analisar os modelos atuais da prática da audiodescrição, estabelecendo um debate teórico acerca de conceitos pertinentes à técnica e relatando a experiência do projeto de pesquisa Cinema ao Pé do Ouvido (PUC Minas) após o ingresso de um consultor/pesquisador deficiente visual. As autoras propõem que a atuação do consultor com deficiência visual no processo de elaboração da audiodescrição proporciona uma aproximação dos lugares de fala das instâncias de produção e recepção, tornando a mediação mais eficiente e coerente com o atual paradigma da Inclusão. Palavras-chave: deficiência visual, audiodescrição, lugar de fala, agenciamento, reconhecimento. 1 Trabalho apresentado no GT Estéticas, Imagens e Mediações. 2 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Programa de Pós- Graduação em Comunicação Social; [email protected], [email protected]. e-mail do(s) autor(es). [Salve este texto como: Nome e Sobrenome Instituição Artigo.doc ex.: marina_almedeia_UFMG_artigo.doc] VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais https://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

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AUDIODESCRIÇÃO E LUGAR DE FALA:1

O papel do consultor com deficiência visual na audiodescrição

AUDIODESCRIPTION AND PLACE OF SPEECH

The role of the visually impaired consultant in audiodescription

Ana Cláudia e Silva Xavier2

Anita Rezende

Resumo: Este artigo visa analisar os modelos atuais da prática da audiodescrição,

estabelecendo um debate teórico acerca de conceitos pertinentes à técnica e relatando a

experiência do projeto de pesquisa Cinema ao Pé do Ouvido (PUC Minas) após o ingresso de

um consultor/pesquisador deficiente visual. As autoras propõem que a atuação do consultor

com deficiência visual no processo de elaboração da audiodescrição proporciona uma

aproximação dos lugares de fala das instâncias de produção e recepção, tornando a mediação

mais eficiente e coerente com o atual paradigma da Inclusão.

Palavras-chave: deficiência visual, audiodescrição, lugar de fala, agenciamento,

reconhecimento.

Abstract: This article proposes an analysis of the current models of audiodescription,

establishing a theoretical debate about the relevant concepts to the technique and telling the

experience of the research project Cinema ao Pé do Ouvido (PUC Minas) after a visually

impaired consultant/researcher joined the group. The authors suggest that the participation of

the visually impaired consultant during the audiodescription process brings the places of

speech closer to the instances of production and reception, making mediation more efficient

and coherent with the current paradigm of inclusion.

Keywords: Visual impairment, audiodescription, place of speech, agenciality,

aknowledgement.

1 Introdução1 Trabalho apresentado no GT Estéticas, Imagens e Mediações.2 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social ; [email protected], [email protected]. e-mail do(s) autor(es). [Salve este texto como: Nome e Sobrenome – Instituição – Artigo.doc ex.: marina_almedeia_UFMG_artigo.doc]

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Embora o declínio da dimensão verbal na contemporaneidade seja algo altamente

questionável, o lugar capital ocupado pela imagem visual ou audiovisual é, de fato, algo

inegável. O Cinema, especificamente, que já teve sua morte decretada inúmeras vezes,

continua muito forte, ainda que (ou justamente por causa dessa adaptação) suas condições de

produção e circulação tenham mudado e se diversificado.

Partindo da premissa de que, ao se produzir um filme, sempre se prevê um público

potencial, leitores-modelo daquela obra, podemos dizer que a acuidade visual normal é uma

competência requerida dos espectadores. (MAYER, 2012). Levando isso em conta, é possível

dizer que pessoas com um comprometimento grave da visão estão usualmente excluídas do

público esperado do Cinema. Isso equivale a dizer que estão comumente alijadas não só da

experiência estética da espectatorialidade cinematográfica, como também dos processos

interacionais relativos ao Cinema, seja do ponto de vista do entretenimento, seja da formação

de uma bagagem sócio-cultural comum (pois nosso conhecimento do mundo é

frequentemente perpassado pela experiência cinematográfica). Uma das maneiras de se sanar

essa questão e incluir essa parcela da população como público em potencial é o emprego do

recurso da audiodescrição (AD).

De maneira sucinta, a audiodescrição permite o acesso de pessoas com deficiência

visual a informações imagéticas, por meio de sua descrição sonora. No caso do Cinema, a

locução pode ser ao vivo e sincronizada com o filme, ou gravada e mixada junto ao áudio

original da obra.

Enquanto atividade profissional, a AD começou a tomar forma nos EUA, no início da

década de 1980, com o casal Margaret e Cody Pfanstiehl, responsável por diversas

experiências na TV, no teatro e em outros espaços culturais. Pouco depois, a prática da

audiodescrição começou a se consolidar também em parte da Europa, principalmente na

Inglaterra, Espanha, França e Alemanha.

No Brasil, o público foi apresentado à AD em 2003, no evento Assim Vivemos:

Festival Internacional de Filmes sobre Deficiência e, desde então, algumas mostras de cinema

já incorporaram o recurso à sua programação habitual. A Ancine (Agência Nacional de

Cinema) divulgou recentemente uma norma, que exige a inclusão da AD para o financiamento

de filmes. Na TV aberta, todos os canais são obrigados a disponibilizar seis horas de

programação audiodescrita por semana (e a previsão é que esse número aumente

progressivamente).

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No universo acadêmico, a AD foi conceituada na dissertação de mestrado do norte-

americano Gregory Frazier em 1974, mas teve uma evolução tímida até os anos 2000, quando

houve uma forte aproximação do tema com a área da Tradução, em todo o mundo.

Atualmente, essa ligação continua forte, embora o assunto também venha sendo abordado nas

áreas de Educação, Psicologia e Comunicação. Larissa Costa afirma que "atualmente, as

principais metodologias abordadas em pesquisas sobre a AD são TTS text-to-speech (fala

sintética), eye-tracking, narratologia, tradução dos roteiros de AD, audiosubtitling

(audiolegendagem) e pesquisa de recepção.” (COSTA, 2014, p.51-52). Dessas, a única

abordagem que abarca concretamente as falas dos indivíduos com deficiência visual é a

pesquisa de recepção.

Se o primeiro papel dos estudos de recepção em AD foi o de validar o recurso, na

conjuntura atual, nos parece que a questão mais urgente é amplificar a escuta dessa recepção.

Aliás, esse também é um ponto importante para sintonizar os estudos relativos ao tema com o

campo da Comunicação, a partir de uma abordagem mais centrada na interação. Aqui,

evocamos Braga, que diz: “Contrariamente a perspectivas mais tradicionais, que enfatizam a

mensagem e seu emissor, adoto a fórmula de que a comunicação está na escuta. Os estudiosos

da recepção vêm estudando com boa produtividade esse ângulo da questão comunicacional.”

(BRAGA, 2012, p.30).

Não há a menor dúvida de que o uso de grupos focais, frequente nas pesquisas em

recepção de AD, é de extrema importância para esse exercício de escuta, porém talvez não

seja suficiente iniciar o diálogo somente na fase final do processo. Por motivos óbvios, o

roteiro de AD precisa ser criado por videntes, pessoas com acuidade visual considerada

normal, que têm particularidades cognitivas e perceptivas essencialmente diferentes de

indivíduos que não enxergam. Na pesquisa e na prática profissional, é comum a presença de

um consultor com deficiência visual, que analisa a AD finalizada, antes da exibição aberta ao

grupo. A partir do feedback dado, a peça audiodescrita pode ser modificada mas, tendo acesso

somente ao produto e não ao processo, a intervenção do consultor fica limitada. Uma solução

possível seria incluir a perspectiva do consultor desde o início do processo. A questão que se

coloca é: isso realmente criaria uma convergência maior entre os lugares de fala das instâncias

de recepção e produção da AD?

Esse é o ponto que nos dispomos a discutir, tendo como base as mudanças ocorridas na

dinâmica do grupo de pesquisa Cinema ao pé do ouvido, da PUC-Minas, a partir do ingresso

de um consultor/pesquisador com deficiência visual. Como principais desdobramentos na

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dinâmica de trabalho, destacamos o enriquecimento das discussões dos roteiros e locuções de

AD, bem como uma transformação positiva na relação com o grupo focal. Essa nova fase do

Projeto também incitou o grupo a buscar outros caminhos, teóricos e exploratórios, para

compreender melhor o público para quem a AD se dirige.

Pretendemos pautar a discussão principalmente nas estratégias discursivas de autor e

leitor de Umberto Eco, relacionando-as ao conceito de lugar de fala, tal como proposto por

José Luiz Braga, com ênfase no contexto concreto do discurso e por Foucault, que lhe destaca

a dimensão do poder. Problematizaremos essa dimensão, ligada à apropriação e à articulação

do lugar de fala, a partir dos conceitos de agenciamento e reconhecimento.

2 SOBRE A AUDIODESCRIÇÃO

Antes de iniciarmos a reflexão específica sobre a audiodescrição, é importante a

situarmos dentro do contexto atual da Inclusão. Para isso, faremos um brevíssimo histórico

sobre o assunto.

O movimento pró-inclusão começou nos anos 80 e 90, ao redor do mundo, como uma

forma de questionar o modelo médico, que considerava a deficiência como um problema em

si, cujas consequências danosas poderiam ser minimizadas com tratamento médico, mas não a

ponto de possibilitar uma produtividade e sociabilização normais (as poucas pessoas que

conseguiam alcançar isso o faziam às custas de muito esforço, e eram consideradas exceções à

regra). O bem estar das pessoas com deficiência deveria ser garantido, então, pela família e

por políticas públicas assistencialistas. (ARNAIZ, 2005).

A principal reivindicação proposta pelo movimento, nesse primeiro momento, era a

inclusão de alunos com deficiência na chamada educação regular. Com essa mudança, o

espaço e os profissionais da educação seriam tão responsáveis pela Inclusão, quanto os alunos

com deficiência. No Brasil, a Inclusão escolar tomou força nos anos 2000, e vem sendo

implementada desde então, ainda que com uma série de problemas sérios.

Ainda que a Educação Inclusiva tenha um longo caminho a percorrer no país, é

possível perceber que essa discussão não está mais restrita ao ambiente de aprendizagem.

Esse alargamento do conceito já era esperado, visto que o Modelo Social, ligado ao conceito

de Inclusão, prega a ampla autonomia da pessoa com deficiência, e essa só pode ser

alcançada, se as vivências em outros espaços também forem acessíveis. A acessibilidade,

aliás, seria a face visível e concreta da inclusão. Sassaki (2009) defende que existem seis

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dimensões de acessibilidade, que não se excluem entre si: atitudinal, comunicacional,

metodológica, instrumental, programática e arquitetônica. No presente caso, nos interessa

especificamente a dimensão comunicacional.

Entende-se como acessibilidade comunicacional toda ação que facilita a interação entre as pessoas e o ambiente. São exemplos de instrumentos de acessibilidade comunicacional: a libras - língua brasileira de sinais, a audiodescrição, entre outros instrumentos tais como: o código de escrita Braille, os softwares leitores de tela como o Virtual Vision, Jaws e o NVDA, legendas em português e aparelhos tecnológicos que oferecem recursos para ampliar a recepção de informação das pessoas surdas ou cegas, ou com paralisia cerebral, etc. (TAVARES, 2011, p.4).

Consideramos a audiodescrição como um recurso de acessibilidade comunicacional,

por proporcionar às pessoas com algum comprometimento da visão a possibilidade de

compreensão e fruição do conteúdo visual de produtos, obras e eventos. Esse acesso é

possibilitado por um tipo específico de descrição sonora, que procura transmitir dados

objetivos (cor e forma, por exemplo) e subjetivos (como expressões faciais) relativos à

imagem, sem, no entanto, a caracterizar de forma demasiadamente detalhista ou explanatória.

O objetivo ideal da AD é munir o receptor de informações suficientes para que ele

construa um quadro de sentidos e sensações, em seus próprios termos. O grande desafio é

tentar trabalhar o mundo imagético de forma que ele possa ser apreendido como algo mais

familiar ou, pelo menos, menos estranho, por pessoas que não têm (ou não têm mais) um

contato direto e pleno com ele. A respeito da AD aplicada ao Cinema, David ressalta que:

Cabe sublinhar que, embora existam gradações, transformações e passagens do conhecimento "sobre" para o conhecimento por familiaridade, e vice-versa, eles não se substituem. Em nosso caso, a audiodescrição, por sua natureza verbal, porta a marca de um conhecimento "sobre". Por isso, ela não é capaz nem deve ser concebida para substituir a experiência direta do espectador. Por certo, ela pode ser meramente informativa e funcionar bem. Todavia, consideramos que o desafio é fazer com que ela componha com as falas dos personagens e com os demais elementos sonoros do filme, entrando em ressonância com eles, e produza um conjunto articulado e dotado de sintonia afetiva. É esse conjunto que será apreendido pela experiência direta do espectador. Neste caso, a linguagem utilizada na audiodescrição é um conhecimento capaz, ao mesmo tempo, de propagar sensações. Ela não possui apenas uma dimensão lógica e intelectual, mas também afetiva. (DAVID, 2012, p.131).

Talvez haja um certo exagero nessa questão da afetividade, pois o fato dela estar numa

categoria considerada mais primária não garante que será reconhecida de forma mais direta.

De qualquer forma, acreditamos que a audiodescrição pode ser sim considerada uma

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mediação complexa, mais do que puramente linguística. Ela poderia ser definida como uma

mediação entre impressões visuais e imagens auditivas, que se propõe a ampliar as

possibilidades de interação das pessoas com deficiência visual. Por possibilidades de

interação, entendemos processos de significação em relação à obra e ao seu universo,

processos de aprendizagem relacionados, de alguma forma, ao universo imagético, e

processos de formação de conceitos, e gostos pessoais. Nessa perspectiva, a audiodescrição

seria também um instrumento de acessibilidade atitudinal, pois estaria contribuindo para o

empoderamento das pessoas com deficiência e, consequentemente, para a diminuição de

estigmas e preconceitos relacionados a essa parcela da população.

3 LUGAR DE FALA OUTROS CONCEITOS PERTINENTES

A linha que permeia esse artigo é o conceito de lugar de fala. Em Umberto Eco (1983),

esse termo se relaciona à ideia de leitor-modelo, condição postulada pelo autor empírico, em

relação ao potencial do leitor de significar o texto em questão. O leitor-modelo é previsto de

antemão, mas também é construído no próprio texto, através de estratégias discursivas,

apresentadas pelo autor-modelo. Seguindo esse princípio, o leitor–empírico seria livre, mas

não onipotente, visto que há várias indicações de caminhos a seguir. A atribuição de

características e competências a esse leitor pressuposto define, em parte, o seu lugar de fala

(pois ele mesmo também é responsável pela delimitação do seu espaço no discurso). O

mesmo acontece, de forma semelhante, na direção inversa, pois:

Se ao programar a estratégia narrativa do seu texto o autor-empírico pressupõe um leitor modelo, de acordo com Eco podemos pensar que o leitor-empírico, como sujeito concreto dos atos de cooperação, ao tentar preencher as lacunas deixadas no texto pressupõe uma hipótese de autor, o autor-modelo. (MAYER, 2012, p.33).

Essa relação bidirecional entre autor-modelo e leitor-modelo pode ser compreendida

como um contrato de leitura, que, segundo Verón (1995), seria um acordo tácito entre as

instâncias da produção e do reconhecimento, marcado por diferentes estratégias de

enunciação. Para garantir um bom fluxo comunicativo, é necessário que tal contrato seja

maleável, se adaptando conforme a situação e a condição dos leitores . No caso da

audiodescrição, como uma modalidade de mediação entre dois sistemas de signos, podemos

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pensar que esse contrato ocorre em duas etapas, pois o audiodescritor, invariavelmente, se

alterna nas posições de leitor-modelo e autor-modelo.

A audiodescrição tem que ser um mecanismo de mediação concebido para que cada um possa suscitar suas próprias interpretações, cabendo ao audiodescritor ser um leitor-modelo a fim de transmitir de maneira clara as possíveis intenções do produtor audiovisual e fazer com que a pessoa com deficiência visual faça suas inferências. (TELLES, 2014, p.24 25).

Apesar de essa afirmação prever a liberdade interpretativa dos espectadores com

deficiência visual, a ênfase dada às “intenções do produtor audiovisual” nos alerta para o risco

de se escorregar em direção à velha equação assimétrica entre a produção, instância mais

palpável e a recepção, comumente difusa e fugidia. O próprio Eco (1983) nos lembra que a

pressuposição de um autor (mesmo que passível de muitos equívocos) é pautada em algo mais

concreto, pois parte do próprio texto e do ato de enunciação, enquanto a pressuposição de um

leitor geralmente é baseada em hipóteses menos garantidas. A partir disso, constatamos que a

compreensão do lugar de fala do espectador da AD passa, necessariamente, por uma

aproximação empírica. Nesse sentido, o uso de grupos focais é muito rico, pois nos permite

avistar o espaço desses indivíduos, dentro de uma situação discursiva concreta. Como nos diz

Braga: “Ao tratar uma situação, uma fala constrói um lugar de fala na realidade social e no

conjunto de discursos socialmente disponíveis.” (2000, p. 169). Considerando a articulação

entre a enunciação, a situação em que ela se dá e o contexto sócio-cultural mais amplo, é

possível conjugar as dimensões linguística e sociológica da fala, numa visão mais ampla e, ao

mesmo tempo, mais próxima da realidade. Se considerarmos, como Foucault (1998), que

lugares de fala são também espaços de poder constituídos e legitimados, relacionados à posse

de capital simbólico, definir o espaço ocupado pela recepção da AD se torna uma questão

capital. Como o recurso é direcionado a um grupo historicamente marginalizado, o lugar de

fala, que deveria ser apropriado pelas pessoas com deficiência visual, é frequentemente

sequestrado por pessoas próximas, num ímpeto geralmente benevolente, mas prejudicial.

Spivak (2010) nos alerta, especificamente, para o problema epistêmico do intelectual

que assume a fala no lugar daquele que estuda, anulando suas possibilidades próprias de

discurso e impossibilitando a evolução de seu lugar de fala. Spivak parte do contexto dos

Estudos Subalternos, originados no sul da Ásia na década de 70, que buscavam analisar

questões locais pós-coloniais. No entanto, o conceito que a autora dá para o termo

‘subalterno’ nos parece bastante universal no que se trata de minorias e grupos sociais

oprimidos. O termo é aplicado então “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos

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modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política ilegal, e da

possibilidade de se tornarem membros plenos do extrato social dominante”. (SPIVAK, 2010,

p. 12).

Ao problematizar o agenciamento de sujeitos pelo intelectual, a autora critica o

discurso que se apropria da fala de uma minoria sem de fato dá-la voz. A construção de um

discurso de resistência que não inclui a fala do próprio oprimido estabelece esse sujeito como

mero objeto. “Agir dessa forma, Spivak argumenta, é reproduzir as estruturas do poder e

opressão, mantendo o subalterno silenciado, sem lhe oferecer uma posição, um espaço de

onde possa falar e, principalmente, no qual possa ser ouvido”. (GOULART ALMEIDA apud

SPIVAK, 2010, p. 12).

Pinto (2015) estabelece um questionamento bastante semelhante, ao debater a forma

como a audiodescrição vem sido feita atualmente.

É prática corrente – já que determinada por injunções legais – a oferta de linhas de áudio dedicadas ao uso por públicos com dificuldade de visão. Entretanto, isso vem sendo feito de maneira empírica e, como não podia deixar de ser, centrada na experiência de quem vê. Portanto, a audiodescrição, que vem sendo praticada atualmente, diz ao cegos aquilo que nós vemos. Por outro lado, algo me diz que a percepção deles deveria ser deles. Isso talvez mereça um raciocínio um pouco mais alongado, naturalmente com o grande risco de ensinar o vigário a rezar o Padre Nosso. (PINTO, 2015, p. 185).

Assim, ao indagar “Pode o subalterno falar?”, Spivak não questiona a capacidade de

articulação ou enunciação do subalterno, mas sim a prática de um agenciamento de sujeito,

que determina que ele deva submeter sua voz a um outro que, já inserido no discurso

hegemônico, estaria mais apto a realizar reinvindicações. Ao lermos um trabalho que se

propõe a recuperar a consciência do subalterno, encontrar o silêncio que o autor impõe ao

grupo que estuda é nos depararmos com um sintoma epistêmico. Logo, a autora propõe que o

intelectual não apenas busque apresentar um problema e a partir dele criar seu próprio

discurso insurgente, mas sim crie espaços onde a voz do subalterno seja ouvida sem a

necessidade de um interlocutor hegemônico. Através da articulação da fala do sujeito por si

mesmo, cria-se o embate contra a subalternidade e, consequentemente, a evolução do lugar de

fala. Tal articulação está estreitamente ligada à noção de reconhecimento.

Politicamente, mobiliza-se o termo reconhecimento de diversas formas; sempre

ligando-o às concepções de justiça e à luta contra práticas opressivas. Mendonça (apud

Avritzer et al, 2013) realiza um apanhado das diversas concepções do conceito, situando-o

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contemporaneamente. Apesar de ele mesmo reconhecer a necessidade por estudos mais

empiricamente aprofundados, sua conceituação aponta os principais caminhos teóricos da

representação política.

1 – Autorrealização - citando Charles Taylor e Axel Honneth, o autor estabelece que

conceituar o reconhecimento é fundamental para a compreensão de processos sociais,

estabelecendo um horizonte normativo, a partir do qual será determinado o justo. Nesse

contexto, justo seria o mundo onde os sujeitos seriam capazes de se autorrealizarem. Nesta

primeira conceituação exige-se uma política que considere tanto a igualdade quanto elementos

diferenciadores que permitam a autenticidade dos sujeitos. “Para Honneth (2003a), a

autorrealização se constrói ao longo dos processos de interação social, os quais permitem, ou

negam, aos sujeitos o desenvolvimento de uma autorrelação saudável”. (MENDONÇA 2013).

Este estado possui três dimensões igualmente importantes a serem garantidas ao sujeito: os

relacionamentos afetivos que promovem a autoestima, a exerção de direitos pautados pela

igualdade universal e promotores do autorrespeito e a possibilidade de valorização através da

contribuição social, trazendo a autoestima em uma sociedade mais ampla. As rupturas nas

garantia de tais direitos são, para o autor do artigo, um importante propulsor na busca da

evolução moral da sociedade e da inclusão de sujeitos insurgentes.

2 – Tolerância – em sua segunda conceituação, Mendonça (2013) busca a constatação

de Galeotti (2002) quanto ao processo de formação de Estados Liberais, edificados sobre

esforços individuais de tolerância às diferenças individuais e privadas. Para a autora, essa

questão é fundamental quando grupos minoritários tem seus direitos desrespeitados pelo

discurso hegemônico. A partir da luta desses grupos pelo reconhecimento, indivíduos

estigmatizados trazem o questionamento às tradições existentes e reconfiguram o que é

estabelecido como justiça social, promovendo a tolerância pública e o reconhecimento da

diferença. “A compreensão da tolerância como reconhecimento faria parte de uma política da

identidade que afirma publicamente identidades coletivas de públicos excluídos, assegurando-

lhes apoio e proteção”. (MENDONÇA, 2013, p. 121).

3 – Paridade de participação – a terceira conceituação, encontrada nos escritos de

Nancy Fraser, se orienta a partir de princípios morais universais e não de impressões

subjetivas do sujeito oprimido, contestando os ideais da autorrealização. Para a autora, a

injustiça é a negação do status de membro de uma sociedade. Logo, é necessário reconhecer

as diversas formas de exploração dos grupos oprimidos e “contestar padrões

institucionalizados de desvalorização cultural e de marginalização econômica. A promoção da

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justiça requereria, pois, a superação da subordinação social”. (MENDONÇA, 2013, p. 123).

Ela propõe uma definição tridimensional de reconhecimento, onde incorpora-se “a dimensão

política da representação ao lado da dimensão econômica da distribuição e da dimensão

cultural do reconhecimento” (FRASER apud MENDONÇA, 2013, p. 123). O reconhecimento

estaria então ligado à conflitos sociais de natureza cultural e condições de igualdade entre

sujeitos.

4 – Luta afirmativa – o quarto conceito, baseado em Markell, afirma que a promoção

da justiça partiria da percepção inicial de união social frente à incerteza do destino humano.

Para ele, as lutas pelo reconhecimento de identidades minoritárias poderia causar uma pulsão

competitiva entre grupos, sendo que o ideal seria que se obtivesse a consciência de que:

Tal política poderia iluminar a compreensão das “estruturas subjacentes do desejo que animam relações sistemáticas de desigualdade” (Markell, 2003, p. 89). A política do acknowledgement descortinaria a condição ontológica de fragilidade dos seres humanos diante de um futuro imprevisível e produzido relacionalmente. (MENDONÇA, 2013, p. 125).

5 – Consideração do interlocutor - o quinto e último conceito apresentado considera

essencial que o sujeito seja reconhecido enquanto interlocutor e que a partir disso as normas

vigentes sejam revisadas em parcerias, reconfigurando as estruturas de interações sociais.

O essencial nessa abordagem é a consideração do outro em uma troca discursiva que possibilite a construção conjunta de um contexto mais propício à configuração de normas, valores e decisões considerados justos. Nessa concepção, o próprio conceito de reconhecimento permanece como significante aberto, passível de lutas e conflitos interpretativos. (MENDONÇA, 2013, p. 127).

Assim, através do diálogo obtém-se o reconhecimento mútuo de opiniões, que são

igualmente ouvidas e consideradas no processo de delineação de normas que conduzam as

interações sociais.

Apesar de cada conceituação apontar pontos válidos, acreditamos que este quinto

conceito de reconhecimento seja o que mais se alinha ao propósito do grupo de pesquisa cuja

experiência delinearemos aqui. A presença de um consultor com deficiência visual se mostrou

essencial para os estudos desenvolvidos no grupo, já que videntes e não-videntes possuem

concepções cognitivas tão diferentes. Evidenciaram-se questões óbvias para o cego, mas de

difícil apreensão para aqueles que enxergam. Questões estas que, quando não abordadas,

tornavam a prática audiodescritiva redundante, limitada e impalatável.

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4 RELATO DE EXPERIÊNCIA – PROJETO CINEMA AO PÉ DO OUVIDO

O Projeto Cinema ao Pé do Ouvido (CPO) surgiu como um desdobramento da

pesquisa de mestrado de Flavia Mayer, orientada pelo Prof. Julio Pinto, no Programa de Pós-

graduação em Comunicação da PUC-Minas. Seu principal objetivo é investigar os limites e

possibilidades da audiodescrição, principalmente em relação ao Cinema. Ligado à Pró-reitoria

de Extensão, o Projeto conta, atualmente, com membros oriundos da Comunicação Social,

Psicologia, Letras e Pedagogia, envolvendo os níveis de graduação, mestrado e doutorado,

sob coordenação do Prof. Julio Pinto.

A meta primordial do Projeto CPO é pesquisar integralmente os processos da

audiodescrição, de forma experimental e exploratória, na tentativa de investigar as diversas

possibilidades do recurso, em relação ao seu potencial significativo, afetivo, pedagógico e

formativo.

Embora já estejam em curso investigações relacionadas à aplicação da AD em diversas

modalidades audiovisuais e também em imagens estáticas, o foco do Projeto continua sendo o

Cinema. Nesse caso, o processo de desenvolvimento da AD consiste na elaboração de três

roteiros individuais, que são minuciosamente discutidos em grupo, até que se chegue a um

único roteiro final. Esse roteiro é então gravado e mixado junto ao áudio original do filme

para, enfim, ser exibido a um grupo focal de pessoas com deficiência visual.

Desde o início do Projeto CPO, a participação dos espectadores com deficiência visual

mostrou-se fundamental, tanto para a análise de técnicas narrativas e descritivas, quanto para

a discussão da dimensão sonora da AD, incluindo aí tanto características da própria locução

até a inserção de novos elementos sonoros no filme. Os encontros com o público sempre

foram muito proveitosos mas, por serem limitados em tempo e quantidade, o diálogo nem

sempre se desenvolvia plenamente. Dessa maneira, o Projeto reconheceu a necessidade de

contar com a participação permanente de um pesquisador com deficiência visual, ao longo de

todo o processo de elaboração da AD, assim como nas discussões teóricas . Assim, no início

de 2014, um consultor3, que havia sido voluntário no grupo focal anterior, ingressou no

Projeto.

3O termo consultor talvez não seja o mais adequado para caracterizá-lo, pois ele não atua de forma pontual, mas sim ativa e continuamente na elaboração dos roteiros e da locução de AD. Porém, na ausência de uma designação melhor, adotamos, provisoriamente, esse termo.

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Gabriel Aquino, graduado em pedagogia pela PUC Minas, perdeu a visão

completamente aos 16 anos, devido ao Glaucoma. As experiências iniciais de Gabriel com a

vivência cultural enquanto deficiente visual foram frustrantes.

A apatia frente tais atividades é um processo comum na vida de quem está privado da visão. A grande maioria se acostuma a isso, passando a desprezar a importância de participar e frequentar os ambientes culturais. Porém, outros superam essa apatia, com o desejo de serem socialmente e culturalmente ativos, independentemente da deficiência. E é assim que buscamos métodos e ferramentas para suprir a falta de acessibilidade nos espaços de lazer, cultura e entretenimento. (informação verbal)4.

Hoje, aos 22, ele acompanha ativamente as produções cinematográficas e televisivas

através da audiodescrição. Se antes da aplicação da técnica ele contava com descrições

improvisadas de amigos e familiares, agora tem essa vivência de forma autônoma. Vale

ressaltar que a AD feita informalmente pelo círculo social do cego é, claro, uma ferramenta

interessante para o convívio. No entanto ela obviamente não elimina a necessidade de uma

técnica desenvolvida e aplicada profissionalmente com base em estudos cuidadosos de

mediação.

O interesse por produtos visuais e a memória visual de Gabriel o colocam em uma

posição privilegiada de análise da aplicação da audiodescrição. Por conhecer ambas as

percepções do vidente e do não vidente, Gabriel guia os roteiristas através das melhores

formas de comunicar a imagem, recorrendo ao seu repertório imagético e às próprias

experiências como cego. Mas é preciso frisar, a essa altura, que, assim como não basta

enxergar para ser um bom audiodescritor, não basta ser deficiente visual para ser um bom

consultor.

Assim como o audiodescritor-roteirista, ele precisa ter bom domínio do português,

conhecimento teórico da influência da linguagem do produto audiovisual na obra e

precisa levar em consideração que o público da AD é bem amplo e heterogêneo,

entendendo que determinados elementos são colocados na AD para perfis específicos,

possibilitando que as ADs elaboradas por profissionais contemplem a maior parte das

pessoas, em suas heterogeneidades. (CAMARA, 2014, p.6)5.

4 Entrevista concedida às autoras.5 O próprio Câmara é um consultor, que trabalha numa dinâmica de trabalho parecida com a do Projeto CPO.

Até onde sabemos, são os únicos grupos no Brasil a incluir o consultor em todo o processo de audiodescrição.

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A partir dessa fala, percebemos que o consultor precisa saber que está no processo

como representante de um grupo muito heterogêneo e que, para responder pelas pessoas desse

grupo, precisa conseguir se colocar no lugar delas. Sempre se parte do princípio que a AD

deve contemplar de pessoas com cegueira profunda e congênita a pessoas com baixa visão.

Da mesma forma, esperamos que o recurso possa ser compreendido (em dimensões

diferentes, certamente) por indivíduos com níveis variados de escolaridade e engajamento

cultural. O ingresso de Gabriel no Projeto provocou mudanças profundas não só na maneira

como prevemos esses espectadores-modelo da AD, mas também no modo como nos

relacionamos diretamente com alguns deles.

A compreensão desse público em potencial foi profundamente alterada com o ingresso

de Gabriel n Projeto. profundas em três âmbitos diferentes: na compreensão do público em

potencial, nas reflexões teóricas acerca do conceito de mediação e na dinâmica de trabalho do

Projeto.

Primeiramente, a sua presença colocou em pauta questões relacionadas a práticas

sócio-culturais. Por ser uma pessoa desenvolta e envolvida com causas relacionadas à

deficiência, através dele conseguimos saber mais sobre alguns hábitos e convicções relativos a

pessoas com deficiência visual. Algumas das discussões que se mostraram ser essenciais para

que a AD refletisse a forma como o cego se orienta em seu cotidiano envolveram a

compreensão da percepção de espacialidade do cego, o relacionamento com cores, hábitos

culturais e artísticos (frequência em museus, cinemas), etc.

Houve também um interesse grande em temas especificamente relacionados à

percepção e cognição do deficiente visual, como mobilização de atenção e possibilidade de

construção de quadros visuais mentais. Apesar de não ser uma questão consensual, existe uma

corrente teórica que considera possível que mesmo cegos congênitos são capazes de elaborar

esses quadros.

Damásio (2000), em seu livro O mistério da Consciência, refere-se à imagem mental

como um padrão mental e afirma que as imagens mentais não são apenas visuais.

Para o autor, o termo imagens mentais se constitui de todas as modalidades

sensoriais – visual, auditiva, olfativa, gustativa e somatossensitiva, sendo esta última

representada por várias formas de percepção como a temperatura e a dor. (Takimoto,

2014, p. 31).

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Essa questão ficou muito clara durante as discussões de roteiros nas reuniões do

Projeto. À medida em que íamos discutindo as descrições, o consultor realmente ia formando

um quadro mental, inclusive com uma riqueza impressionante de detalhes visuais, que eram

explicitados, para sabermos se encontravam correspondências visíveis na obra. Sua

capacidade não pode ser automaticamente estendida a todos os deficientes visuais, porque tem

a ver com sua história pessoal e com a sua vivência com a deficiência visual. Ainda assim,

ela indica uma possibilidade a ser melhor explorada – como construir um cenário sensorial a

partir da AD.

Em relação às reflexões teóricas, a ênfase dada à interação no processo de elaboração

da AD incitou a problematização do conceito de AD como modalidade de tradução. Se

critérios como equivalência e objetividade já são questionados em traduções interlinguais, são

ainda mais complicados em uma tradução intersemiótica. A ideia, defendida em muitas

pesquisas, de que o significado está contido nas imagens, passou a fazer cada vez menos

sentido. Não é possível descolar um sentido único de uma imagem. Não existem parâmetros

diretos de equivalência. Usando um exemplo simples, nem mesmo emoticons, criados para

serem ícones de rápida apreensão, são entendidos da mesma maneira, por pessoas diferentes.

Assim, mesmo que não seja uma denominação incorreta, optamos por não usar o termo

tradução intersemiótica e sim, mediação.

Assim, acreditamos que ao partir das possibilidades de impressão deixadas por

imagens visuais, podemos buscar sua ressonância em imagens auditivas, que por sua vez irão

provocar uma série de impressões lógicas e sensoriais em quem as recebe. Os critérios de

ligação, assim, estariam mais pautados nas experiências possíveis de leitura e de vida e,

portanto, mais próximos dos espectadores. A participação do consultor traz a reformulação do

leitor modelo da obra visual, permitindo o mapeamento dos potenciais subjetivos da obra.

O consultor com deficiência visual leva para o processo da audiodescrição a percepção imediata, típica e exclusiva daqueles que estão privados da visão. Subsidia aqueles que, somente fechando os olhos, jamais teriam as mesmas percepções do mundo como alguém verdadeiramente cego. (informação oral).6

Sobre a dinâmica de elaboração de AD, as primeiras alterações foram verificadas nos

processos de discussões de roteiros, que passarem a ser avaliados minuciosamente pelo grupo

inteiro, incluindo o consultor. Muitos elementos que pareceriam adequados antes, passaram a

ser problematizados. Para exemplificar, em determinado filme de animação, um tatu bolinha

6 Entrevista concedida às autoras.VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais

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era jogado como uma bola por uma minhoca antropomorfizada. Para o consultor, que não

conhecia o pequeno bichinho, o nome “tatu-bola” logo o remeteu ao mascote da Copa e,

obviamente, aquela cena pareceu muito estranha. Supondo que parte dos espectadores

também não teriam essa referência, o grupo decidiu usar o termo tatuzinho de jardim, como

uma forma de indicar o seu tamanho diminuto e o local em que costuma viver. Além disso, a

forma do seu corpo foi descrita para indicar a maneira como ele se enrolava e se abria

facilmente.

Mas, provavelmente, a maior mudança tenha sido a atenção que o grupo passou a dar a

dimensão sonora da AD. Como nos lembra Câmara:

...a AD não é independente e só faz sentido em conjunto com as falas e efeitos

sonoros do produto audiovisual original. O público – pessoas com deficiência visual

– percebe o produto como um todo coerente a partir dos elementos disponíveis,

quais sejam, diálogos ou falas, efeitos sonoros e AD. Do mesmo modo, o

audiodescritor não percebe os diferentes canais (visual e acústico) do original

separadamente, e sim como um todo coerente. Braun assinala que uma importante

questão reside aí: a forma como o audiodescritor, a partir do todo coerente, identifica

e isola as informações que não são acessíveis ao público com deficiência visual, mas

que são essenciais para a construção de um todo coerente (ver Braun, 2007, p. 2,3).

(CÂMARA, 2014, p.2).

Como o consultor assiste, primeiramente, só ao áudio original do filme, ele pode nos

atentar para as informações sonoras do filme. Barulhos como os de portas que se abrem,

carros passando, objetos que caem no chão podem ter significados reduzidos para o público

vidente que vê as ações ocorrerem . Porém, para o cego, esses sons são suficientemente

significativos para que eles deduzam o que se passa na cena. Logo, é mais interessante que a

AD se abstenha de descrever a ação, permitindo que o barulho exerça seu potencial

significativo. A locução, da mesma forma, ganhou uma grande importância, passando a ser

trabalhada em suas várias dimensões, como volume, tom, ritmo e fluidez da fala. Através

dessas modulaçoes, a AD pode encontrar o tom exato para se harmonizar com o filme, mas

ainda ser percebida como um elemento externo. Além disso, é possível sintonizá-la (sempre

de forma sutil) com o tipo de narrativa, o gênero e a concepção estética de um filme.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A audiodescrição, enquanto ferramenta de assessibilidade, é essencial para a inclusão

de um grupo social marginalizado no que se trata da produção visual. Especialmente por ser

tão essencial para a qualidade da educação e da vida cultural desse grupo, sua aplicação deve

ser feita de forma cuidadosa, considerando as especificidades do seu público.

Atualmente, a AD é bastante pautada na tentativa de uma mímese tradutória que,

obviamente, tem seu embasamento na experiência visual do tradutor (PINTO, 2015). Ao criar

o foco em uma emissão que presupõe a partir da experiência visual aquilo que é desejável

traduzir, a AD negligencia as experiências subjetivas do receptor. Cria-se um relacionamento

unilateral onde as características cognitivas e as experiências subjetivas do cego não são

reconhecidas e experiência deste fica limitada àquela do audiodescritor.

Estabelecer um diálogo entre audiodescritor e deficiente visual é essencial para que a

técnica aborde corretamente as lacunas existentes em produtos não assessíveis. A

audiodescrição que escolhe não considerar a fala do pessoa com deficiência visual durante

seus processos de produção reforça, ao se abster, discursos marginalizadores que distanciam o

cego de produtos aos quais tem direitos.

Estabelecer o indivíduo com deficiência visual enquanto interlocutor é fortalecer seu

lugar de fala ao exigir que ele seja reconhecido como público. Nesse ponto, o consultor

deficiente visual é o grande destaque da prática, criando o espaço para que odeficiente visual

se articule a partir de um papel de liderança e criando conteúdos assessíveis e de grande

relevância cultural. Aqui ele deixa de ser mero receptor daquilo que o vidente escolhe

transmitir, abandonando um papel marginal e fixando uma forte voz dentre os discursos

hegemônicos.Necessitar do recurso da audiodescrição não fez de minha experiência com o audiovisual algo meramente passivo. Incluí-me no processo por perceber que equívocos podem ser corrigidos antes do produto chegar ao público final. Realizar a consultoria em audiodescrição é acreditar que podemos ter maior qualidade ao possibilitar que alguém enxergue o mundo tal como lhe é de direito enxergar. (informação oral).7

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Disponível em . Acesso em: 29/09/2015

7 Entrevista concedida às autoras.VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais

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