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12 UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ POLYANA VIDAL DUARTE A DIMENSÃO PRINCIPIOLÓGICA DA PROTEÇÃO POSSESSÓRIA E A FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE NOS TERMOS DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

POLYANA VIDAL DUARTE

A DIMENSÃO PRINCIPIOLÓGICA DA PROTEÇÃO POSSESSÓRIA E A

FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE NOS TERMOS DA

CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

Rio de Janeiro

2016

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Polyana Vidal Duarte

A DIMENSÃO PRINCIPIOLÓGICA DA PROTEÇÃO POSSESSÓRIA E A

FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE NOS TERMOS DA

CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação stricto sensu em Direito Público e Evolução Social, da Universidade Estácio de Sá, como requisito parcial para obtenção do Título de Doutora.

Orientadora: Profª Dra. Edna Raquel Hogemann

Rio de Janeiro

2016

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Aos meus pais, Márcio e Dirce.

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AGRADECIMENTOS

Ninguém é bom demais; ninguém é bom sozinho. Dessa forma, inicio agradecendo

minha orientadora, profª. Dra. Edna Raquel Hogemann, pelo aprendizado e incentivo na

realização desse trabalho. Agradeço aos demais professores do Programa de Pós-Gradução

stricto sensu da UNESA pelo contributo inestimável no aprimoramento acadêmico. À

UNESA, por tornar possível a realização desse sonho por meio da bolsa de estudos

concedida.

Aos meus pais, pelo apoio incondicional.

À Profª Drª Maria Teresinha, pelas palavras de incentivo e pela ajuda nos

momentos difíceis. Gratidão eterna!

Aos amigos, pela compreensão das ausências constantes e intermináveis.

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“Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam.”

Paulo Freire

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RESUMO

Esta pesquisa tem por objeto o instituto da posse, na esteira dos princípios da Constituição da

República do Brasil, vigente desde 5 de outubro de 1988, particularmente da função social da

posse. Os objetivos são os seguintes: examinar a natureza jurídica da posse em processo

evolutivo seu tratamento no Direito Comparado; analisar a evolução da regulamentação

fundiária no Brasil e o reforço à propriedade privada, desde a colonização até meados do

Século XX; examinar a proteção possessória e a função social como paradigma reitor do uso

da propriedade, a partir da principiologia da Constituição de 1988; analisar a jurisprudência

dos tribunais superiores (STJ e STF) referente a conflitos que envolvem o conceito e o

instituto da posse, tomando como critério a principiologia constitucional alusiva à função

social da posse. Do ponto de vista metodológico, trata-se de pesquisa descritiva, indutiva, que

tomou como fontes estudos de doutrinadores que se dedicaram a investigar o assunto desde os

primórdios da colonização brasileira, até a atualidade, bem como a legislação pertinente,

destacando-se a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; o Estatuto da Cidade

(Lei n° 10.257/2001); Estatuto da Terra (Lei 4.504/64); Programa Minha Casa, Minha Vida

(12.424/2011); chegando, por fim, ao Código Civil (Lei 10.406/2002). Também foi

consultada a jurisprudência de tribunais superiores brasileiros, no período compreendido entre

1971 e 2005. Finalmente apresentam-se conclusões no sentido de promover avanços no

sentido da compreensão dos problemas atuais e de identificar compromissos do legislador e

do judiciário, tendo em mente a concretização da Posse como Direito Real, atendendo ao

princípio constitucional de garantir um mínimo de condições de vida digna a todos os

brasileiros.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Real de Posse; Função Social da Posse; Dignidade da

Pessoa Humana; Jurisprudência.

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ABSTRACT

This research has as object of investigation the Institute of ownership, in the wake of the

principles of the Constitution of the Republic of Brazil, particularly in respect of the social

function of the possession. The objectives are as follows: to examinate the legal nature of

ownership and their evolutionary process in comparative law; to analyze the evolution of land

regulation in Brazil and strengthening private property, since the settlement until the mid-20th

century; to examinate the possessory pledge protection and social function as a major

paradigm of the use of property, from the principiologia of the Constitution of 1988; to

analyze the case-law of the higher courts for the conflicts involving the concept, and the

ownership, taking as a criterion the constitutional principiologia allusive to the social function

of the property. From the methodological point of view, it is descriptive, inductive research,

which took as sources studies of doctrinators who dedicated themselves to investigate the

matter since the dawn of Brazilian colonization to the present day, as well as the relevant

legislation, including the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988; the status

of town (law n° 10,257/2001); Status of Land (4,504 Law/64); My House, my Life program

(12,424/2011); coming, finally, to the Civil Code (Law 10,406/2002) It was also queried the

jurisprudence of Supreme courts, in the period 1971 e 2005. Finally we present some

findings to promote advances in the sense of understanding of the current problems and to

identify the lawmaker and of the judiciary, bearing in mind the implementation of the

Possession as Real Law, in view of the constitutional principle of guaranteeing a minimum

decent living conditions for all Brazilians.

KEYWORDS: Right to ownership and possession; The Social function of possession;

Dignity of human person; Jurisprudence.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...............................................................................................................12

1 PERSPECTIVA JURIDICA DO INSTITUTO POSSESSÓRIO................................18

1.1 Natureza jurídica da posse.....................................................................................18

1.2 A posse no direito comparado...............................................................................37

2 REGULAMENTAÇÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL E SEUS REFLEXOS NA POSSE E

PROPRIEDADE DA TERRA.........................................................................................44

2.1 Período da colonização como fundamento............................................................44

2.2 Lei n. 601/1850 (Lei de Terras) como reforço à propriedade privada...................52

2.3 Código Civil de 1916 e a proteção de interesses privados....................................59

2.3.1 A posse no Código Civil brasileiro de 1916 65

2.4 Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/64) e a perspectiva do acesso à terra por meio da reforma

agrária..............................................................................................................................69

3 PROTEÇÃO POSSESSÓRIA E A FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE

PROPRIEDADE NO SÉCULO XX...............................................................................72

3.1 Construção do novo paradigma da função da propriedade....................................72

3.2 Função social da propriedade nas Constituições brasileiras de 1934 a 1967/1969......

.....................................................................................................................................78

3.3 Os princípios como condição de possibilidade à Função Social da

Propriedade.............................................................................................................................84

3.3.1 Princípios são ideais de justiça no Direito Natural..........................................................85

3.3.2 Princípios como fontes subsidiárias de aplicação da lei no Direito Positivo ..................87

3.3.3 Princípios como normas jurídicas fundamentais ............................................................90

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3.3.4 A possível distinção entre princípios e regra ..................................................................95

3.4 Releitura da posse a partir da principiologia constitucional .....................................101

3.4.1 Suporte axiológico da dignidade da pessoa humana na Constituição cidadã ...............101

3.4.2 Contornos atuais da função social da propriedade ........................................................105

3.4.3 Função social da posse ..................................................................................................115

3.5 Estatuto da Cidade e os mecanismos legislativos para a funcionalização da propriedade

urbana.........................................................................................................................118

3.6 A Constituição Brasileira de 1988 como paradigma do Direito Civil ......................123

3.7 Eficácia horizontal dos direitos fundamentais ............................................................131

3.7.1 Eficácia indireta ou mediata dos direitos fundamentais nas relações privadas .............133

3.7.2 Eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas ...............134

3.8 A posse no Código Civil/2002 ........................................................................................138

4 O DIREITO REAL DE POSSE: ANÁLISE DO ENUNCIADO DA SÚMULA 84 DO STJ

.......................................................................................................................................147

4.1 Considerações preliminares em torno da proteção da posse adquirida por meio do

contrato de promessa de compra e venda ..........................................................................153

4.2. O primado da formalidade em detrimento da pessoa (Súmula 621 do STF) versus a

proteção da dignidade do possuidor e a função social da posse (Súmula 84 do

STJ)........................................................................................................................................156

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................177

REFERENCIAS............................................................................................................186

ANEXO .................................................................................................................................202

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INTRODUÇÃO

A fim de melhor compreender o estudo desenvolvido na presente Tese, faz-se

importante demonstrar os fatores que motivaram a pesquisa do tema “A dimensão

principiológica da proteção possessória e a funcionalização do direito de propriedade nos

termos da constituição cidadã”.

A posse, objeto de investigação desta Tese, como forma de apropriação e de

exploração da terra, acompanha a trajetória da sociedade brasileira e tem suscitado

controvérsias e debates doutrinários, os quais ensejaram significativas transformações na

legislação e jurisprudência.

A Constituição da República de 1988, ao consagrar a função social da propriedade,

inaugurou novo paradigma reitor do entendimento e aplicação do referido instituto. A medida

é de substancial relevância, particularmente quando se considera os graves problemas que

caracterizam a distribuição das propriedades urbanas e rurais; a falta de moradia; o êxodo do

campo, causador da concentração de populações socialmente marginalizadas nas periferias

urbanas, que sobrevivem em condições precárias e inaceitáveis segundo o critério de que a

dignidade humana requer um mínimo de subsistência, sob todos os aspectos.

Há no país um enorme contingente de imóveis em situação de irregularidade por não

atenderem aos requisitos formais previstos na lei, em especial o registro do imóvel no

Cartório imobiliário. Motivos diversos justificam essa situação, tais como o elevado custo dos

emolumentos registrais, e a falta de conhecimento das formalidades previstas na Lei n.

6.015/73. Sendo assim, o titular da propriedade muitas vezes não corresponde à pessoa que

exerce, de fato, o ius possessionis sobre o bem.

Com base nessa problemática, que será descrita com detalhes ao longo da Tese, em

termos gerais, defende-se que a noção de posse como direito real é importante para a

efetividade do acesso à justiça, eis que tal concepção representa mudança de paradigma no

tratamento do referido instituto, historicamente fragilizado frente ao direito à propriedade.

A interpretação tradicional adversária da posse como direito real assenta-se no

cenário de uma sociedade excludente e elitista, marcada pela concentração de bens de toda

natureza nos domínios dos segmentos posicionados no ápice da pirâmide social. Porém, a

Constituição da República inaugura novo cenário, que encaminha para mudança de

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paradigmas no que se relaciona com a garantia de direitos nas diferentes áreas, inclusive

naquelas concernentes aos direitos patrimoniais. Tendo em vista que o detentor da posse

aproveita o bem como dono, ele confere função social ao imóvel.

No delineamento do estudo, investiga-se a natureza jurídica da posse, demonstrando

que, apesar de tratar-se de instituto jurídico complexo, em algumas situações, pode ser

considerada como direito subjetivo de natureza real. Como se aludiu, o avanço exige

compromisso de mudança de paradigma, implicando a relativização da característica numerus

clausus dos direitos reais, haja vista que transformará o rol taxativo de direitos reais elencados

no art. 1.225 do Código Civil em elenco exemplificativo.

Por evidente, a mudança se restringe àquelas situações que o empreendimento do

possuidor confere a função social à terra ocupada, em detrimento de um proprietário

desidioso, que abandonou o bem. Para essas hipóteses, a presente Tese defenderá a natureza

jurídica da posse a partir da interpretação civil-constitucional dos institutos do Direito Civil.

Compreendendo que a Súmula 84 do STJ instituiu uma releitura da posse levando-se em

consideração a realidade social brasileira, e fundamentada na principiologia constitucional,

pode-se afirmar que atualmente a posse comporta distintas naturezas jurídicas, dentre elas, a

de direito real.

Com esses breves argumentos, o propósito da pesquisa é demonstrar que a posse

funcionalizada evidencia contornos de direito real, prevalecendo, quando confrontada, sobre

os direitos reais de garantia, em especial a hipoteca, e sobre o direito de propriedade, nas

circunstâncias em que deixa de cumprir sua função social.

As análises apontadas na presente Tese objetivam oferecer um ponto de partida para

a edificação do direito possessório no país, que tem como bases estruturantes o princípio da

dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da função social da propriedade. Tais

princípios propiciam a releitura legislativa e jurisprudencial do instituto possessório

A despeito de sua relevância, nos limites desta investigação, não se tem o intuito de

apresentar um conceito acabado da posse, pois se trata de um instituto complexo, de difícil

enquadramento conceitual em termos absolutos. Dessa forma, a pesquisa restringe-se a

releitura do instituto possessório a partir do filtro principiológico da CRFB/88, que provocou

a mudança no tratamento do instituto pela legislação e Tribunais Superiores no país.

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Dessa forma, será analisada a Súmula 84 do STJ, que representa o marco na

superação do modelo oitocentista da posse até então admitido pelos Tribunais Superiores no

país. Tendo como precedente jurisprudencial o Recurso Especial 188-PR, a Súmula 84 do STJ

revogou a Súmula 621 do STF para aferir contornos de direito real à posse que cumpre função

social, aproximando o Direito brasileiro da realidade social, no intuito de promover a

efetividade dos princípios constitucionais acima mencionados.

Esta Tese, dentro da Área de Concentração Direito Público e Evolução Social, na

linha de pesquisa Novos Direitos e Direitos Fundamentais do curso de Doutorado em Direito

da Universidade Estácio de Sá (UNESA), apoia-se nos argumentos que justificam sua

relevância social e jurídica, que serão a seguir demonstrados.

A concentração das terras acompanha a história da sociedade brasileira, desde sua

colonização, o que tem acarretado consequências sócio-políticas e culturais, como a

preservação do poder de mando no âmbito de determinados segmentos e a exclusão da

maioria do povo dos benefícios da evolução do país.

Importa ressalta para melhor compreensão dessa problemática, que a estrutura

fundiária brasileira nasceu sob o signo da grande propriedade – o latifúndio. Passados séculos

desde a chegada dos portugueses no país, esse quadro ainda se faz presente na realidade

brasileira, provocando conflitos em torno da terra, tanto no meio rural como nas cidades. Num

primeiro momento, o Direito procurou criar instrumentos para defender os interesses dos

proprietários em detrimento dos possuidores.

Após inúmeras lutas e convulsões sociais realizadas no intuito de democratizar o

acesso a terra, o Estado assumiu, pelo menos no plano da retórica, o compromisso de integrar

as camadas marginalizadas do sistema fundiário brasileiro por meio da redistribuir da terra.

Sob vigorosa pressão de movimentos populares, Executivo, Legislativo e Judiciário tentam

modificar o direito proprietário brasileiro, para transformar a propriedade em instrumento de

integração social, abandonando, assim, a sua trajetória histórica de exclusão.

Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo empenham-se para atender a proposta de

ajustar os institutos da posse e propriedade à realidade social brasileira. Reconhecem a

necessidade de remodelar a propriedade construída nos moldes oitocentistas, de forma a

transformá-la em instrumento orientado para o desenvolvimento do homem, sobrepujando a

antiga noção de que representava fim em si mesma.

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No bojo do confronto de interesses pela concentração de terras versus distribuição, a

Constituição Federal consagrou os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana,

da solidariedade social e da função social da propriedade, os quais precisam ser efetivados,

para não permanecerem no plano da retórica.

Ao Judiciário, cabe efetivar os instrumentos legislativos referentes à propriedade e a

posse diante dos casos concretos. Nessa direção, o poder Legislativo está encarregado de

elaborar os instrumentos legais que harmonizem o direito subjetivo de propriedade à sua

função social prevista na Constituição Federal de 1988; como também alinhar o instituto

possessório com os princípios constitucionais, considerando que a posse tem relevante

importância social e, portanto, merece vigora proteção legislativa.

A pesquisa está organizada em quatro capítulos, conforme se resume a seguir:

No primeiro capítulo, intitulado “Perspectiva Jurídica do Instituto Possessório”,

aborda-se a natureza jurídica da posse em processo evolutivo, levando-se em consideração as

divergências doutrinárias em torno da definição do instituto possessório. Será analisado,

também, o tratamento jurídico da posse no Direito Comparado.

No segundo capítulo, sob a designação de “Regulamentação Fundiária no Brasil e

seus reflexos na Posse e Propriedade da Terra”, contempla-se o fundamento da concentração

da propriedade brasileira, desde a colonização; a Lei de Terras (de 1850), como reforço à

propriedade privada e o tratamento ao instituto no Código Civil de 1916. Nesse momento

serão analisadas as bases provenientes do sistema liberal-burguês do sistema jurídico francês,

que foram estruturantes do direito de propriedade e de posse no Brasil.

No terceiro capítulo, com o título de “Proteção Possessória e a Funcionalização do

Direito de Propriedade no século XX”, confere-se prioridade ao exame do novo paradigma

reitor da função da propriedade; da abordagem da Função Social da Propriedade nas

Constituições brasileiras; ao Estatuto da Terra por meio de Reforma Agrária e, finalmente da

Releitura do instituto da Posse a partir da principiologia da Constituição de 1988.

Cumpre assinalar que o estudo está assentado na premissa de que a propriedade

imobiliária nos dias atuais e, principalmente, a função social que ela deve exercer requerem

análise alicerçada na principiologia constitucional. Nessa perspectiva, a Constituição Federal

busca realizar seus objetivos por meio de princípios fundamentais que não são meras normas

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programáticas, eis que têm a categoria de normas jurídicas que precisam ser dotadas de

efetividade, na estrutura do sistema jurídico brasileiro.

Com base nesse pressuposto, o estudo do Capítulo 3 inicia com a análise da

trajetória histórica da normatização dos princípios jurídicos, a começar da fase jusnaturalista,

passando pelo período do positivismo jurídico, até chegar à fase atual em que se encontram os

estudos relativos à teoria principiológica.

No quarto capítulo, intitulado “O Direito Real de Posse: Análise do Enunciado da

Súmula 84 do STJ” enfrenta-se um dos elementos primordiais da Tese, eis que se analisa a

jurisprudência dos Tribunais superiores (STJ e STF) referente a conflitos que envolvem o

conceito e o instituto da posse, tomando como critério a principiologia constitucional alusiva

à função social da propriedade.

Dessa forma, será demonstrado que a posse pode ser considerada sob 4 (quatro)

aspectos distintos no Direito brasileiro, ou seja, posse-fato; posse ad usucapionem, posse ad

interdicta e o direito real de posse.

Quanto aos procedimentos metodológicos, a pesquisa orienta-se na perspectiva

indutiva, segundo o modelo teórico crítico-dialético, tendo em vista que o instituto da posse e

seus desdobramentos em termos legais e jurisprudenciais caminham pari passu com os

movimentos da sociedade brasileira, em sua luta pela correção das distorções históricas que

impregnam o tratamento aos direitos, inclusive aqueles relacionados à propriedade e posse, no

cenário brasileiro.

As fontes de consulta foram constituídas por:

-Legislação: Constituições brasileiras de 1824 a 1988; Lei de Terras de 1850; Código

Civil de 1916; o Estatuto da Terra (Lei 4.504/64); Estatuto da Cidade (Lei n° 10.257/2001);

Programa Minha Casa, Minha Vida (12.424/2011); chegando, por fim, ao Código Civil (Lei

10.406/2002).

- Doutrina: compreende obras de pensadores constitucionalistas e civilistas

brasileiros e estrangeiros, cuja produção propicia subsídios à análise do conceito, alcance,

requisitos e efetividade da posse, além de fundamentos que podem subsidiar o trabalho dos

profissionais e estudiosos do Direito, quando se trata do instituto em tela, com destaque para

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as obras de Marcos Alcino Azevedo Torres; Gustavo Tepedino; Luiz Edson Fachin; e José

Carlos Moreira Alves.

- Jurisprudência: mormente a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do

Supremo Tribunal Federal, no período compreendido entre 1971 e 2005.

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1 PERSPECTIVA JURIDICA DO INSTITUTO POSSESSÓRIO

1.1 Natureza jurídica da posse

Sob a perspectiva formal de análise, a posse foi reestruturada na codificação francesa

com base no Direito Romano e, posteriormente, tal codificação serviu de modelo para outros

ordenamentos jurídicos, influenciando diversos países no ocidente, inclusive o sistema

jurídico brasileiro. No Direito oitocentista francês, a posse recebia proteção por ser a forma de

se exteriorizar o direito proprietário, ficando assim, subjugada ao direito de propriedade.

Apesar de intimamente ligada ao domínio, a posse deve ser vista de maneira

independente, como instituto capaz de cumprir sua função social e econômica, sem levar em

conta exclusivamente o direito de propriedade.

O sistema jurídico francês, porém, não atribuía importância à posse por ser a mesma

uma situação fática e, portanto, desestabilizadora da segurança negocial. Tendo em vista que

o Código Civil Francês voltava-se para atender aos interesses da nova classe burguesa que

ascendia ao poder, esse instituto não interessava, haja vista a dinâmica adotada pela burguesia

de circulação da riqueza por meio da compra e venda da propriedade.

Nesse cenário, a posse refletia a concepção filosófica, política e jurídica

caracterizada pelo Estado Liberal. Posteriormente, a posse encontrou justificativa em

diferentes correntes doutrinárias, com destaque para a Teoria Subjetiva da Posse de Savigny, e

a Teoria Objetiva de Ihering.

Vários doutrinadores tentaram conceituar esse instituto complexo, que ainda hoje

provoca discussão no meio jurídico, dividindo as opiniões dos doutrinadores entre aqueles que

entendem ter a posse natureza jurídica de um direito real e aqueles que a interpretam como

situação fática que recebe proteção jurídica.

Porém, é de grande relevância jurídico-social a definição de sua natureza jurídica,

haja vista que, a depender de seu entendimento como fato ou como direito, essa classificação

terá reflexos no âmbito jurídico, e principalmente social, pois o possuidor poderá receber

variáveis níveis de proteção.

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A investigação da posse constituiu árduo desafio aos pesquisadores do Direito ao longo

da história. A noção moderna tem suas raízes calcadas no Direito Romano; posteriormente,

sofreu influência do direito germânico medieval e do direito canônico. A partir do século XIX, o

instituto foi retrabalhado nas doutrinas de Savigny e Ihering, que influenciaram as codificações

ocidentais contemporâneas. No decorrer do século XX, a posse foi revista nas doutrinas

sociológicas de Raymond Saleilles, Hernandez Gil e Ruggiero, que deram nova roupagem ao

instituto possessório.

Tomando como base a natureza sui generis do referido instituto, no presente capítulo

aborda-se sua natureza jurídica, destacando a polêmica referente à caracterização específica

como fato ou direito. Para alargar a abrangência do olhar, em paralelo ao direito pátrio, busca-se

apontar que em decorrência da secular divergência em torno da sua natureza jurídica, a posse é

disciplinada de forma distinta nos diversos sistemas jurídicos com tradição no Civil Law, em

especial no sistema jurídico português, espanhol, francês, italiano e alemão.

No Direito Romano, confundia-se o conceito de posse com o de propriedade, e também

com os institutos processuais que visavam a sua proteção. Não se pode precisar se o

reconhecimento da posse ocorreu antes ou após o da propriedade. No entanto, a autonomia desse

instituto em relação à propriedade ocorreu ainda no período romano, em decorrência da proteção

interdital. Nos sistemas jurídicos modernos, são conceituados como institutos autônomos.1 Nesse

sentido, destaca José Luis Lacruz Berdejo (et. al) 2:

A consideração independente da posse se inicia no Direito romano quando o pretor decide amparar, contra o despojo por vias de fato, o mero assentamento de um particular em uma parcela do ager publicus (onde é impossível o dominium privado, porque o dominus é o povo romano): não, certamente, mediante uma ação, porque dito particular carece do que hoje chamamos “direito subjetivo”, senão mediante uma solução administrativa

1 Sobre a separação do instituto possessório em relação ao direito de propriedade, Fernando Luso Soares afirma: “creio que – particularmente nos nossos dias – já ninguém de boa fé pode pôr em dúvida, para lá das divergências conceptuais possíveis, que a posse oferece-nos a fisionomia de um poder sobre as coisas propriamente qualificado. Superando a mera detenção, ela não corresponde à relação de propriedade. Incorpora antes, em si, algo de social, juridicamente primário, que não começa com a propriedade. O facto humano da utilização das coisas é ontológica e gnosealogicamente anterior à forma de consciência e à institucionalização que a propriedade privada representa.” SOARES, Fernando Luso. Ensaios sobre a posse como fenômeno social e instituição jurídica. In: RODRIGUES, Manuel (Org.). A posse: Estudos de direito civil português. Coimbra: Almedina, 1996, p. LXIX.

2 BERDEJO, José Luis Lacruz, et. al. Elementos de Derecho Civil III: Derechos Reales. Volumen Primero: Posesión y Propiedad. 2. ed. revisada y puesta al día por Agustín Luna Serrano. Madrid: DYKINSON, 2003, p. 21.

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dirigida à cobrança da posse, ou seja, à situação de assentamento ou tenência: o interdito uti possidetis. Este modo de defesa de uma concreta situação de fato se aplica logo a outras, e singularmente ao dono quando foi privado recentemente do contato físico com a coisa de sua propriedade, e a quem resulta muito cômodo se amparar a esta solução administrativa que não lhe exige a prova de seu domínio. Finalmente, no Direito pós clássico, os interditos são concedidos a quem tinham a coisa, não como proprietários, senão como titulares de certos direitos reais limitados (quasi-possessio).3 (tradução livre)

No direito romano, a construção jurídica da posse resultou no uso dos interditos, e na

condução ao domínio, por meio da usucapião. Decorrente da possibilidade de defesa

interdital, os romanos designaram a posse passível de defesa pretória como ius possessionis;

que remete à posse em si, relacionada àquele que afirma possuir a coisa naquele instante,

independente da existência de um direito sobre a coisa. Por sua vez, o ius possidendi é o

direito de possuir4, que implica a faculdade de possuir uma coisa, em decorrência de um

direito sobre ela.

Na vigência do Direito Romano, a natureza jurídica da posse não se revestiu de

concepção unitária, variando desde uma situação fática, até seu reconhecimento como direito

real. Sob esse enfoque, o conflito atual em torno da definição da natureza jurídica da posse já

se fazia presente na seara do Direito Romano5.

José Carlos Moreira Alves analisa a controvérsia milenar, esclarecendo que a mesma

decorre dos aspectos singulares da posse: “é por causa dessas singularidades que, há séculos,

3 “La consideración independiente de la posesión se inicia en el Derecho romano cuando el pretor decide amparar, contra el despojo por vías de hecho, el mero asentamiento de un particular en una parcela del ager publicus (donde es imposible el dominium privado, porque el dominus es el pueblo romano): no, desde luego, mediante una acción, porque dicho particular carece de lo que hoy llamamos “derecho subjetivo”, sino mediante un remedio administrativo dirigido al recobro de la posesión, es decir, la situación de asentamiento o tenencia: el interdicto uti possidetis. Este modo de defesa de una concreta situación de hecho se aplica luego a otras, y singularmente al dueño cuando ha sido privado recientemente del contacto físico con la cosa de su propiedad, y a quien resulta muy cómodo acogerse a este remedio administrativo que no le exige la prueba de su dominio. Finalmente, en el Derecho posclásico, los interdictos acaban por concederse a quienes tenían la cosa, no como propietarios, sino como titulares de ciertos derechos reales limitados (quasi-possessio).”

4 José Carlos Moreira Alves esclarece que “no direito romano pré-clássico, desde tempos bastante remotos, encontra-se a senhoria de fato (possession) ao lado da senhoria de direito (potestas, mancipium, dominium)”. ALVES, José Carlos Moreira. Posse: Evolução Histórica. Rio de Janeiro: Forense, 1999. v. 1, p. 14.

5 José Carlos Moreira Alves no intuito de justificar esse conflito milenar, afirma que “essa multissecular controvérsia decorre da complexidade da posse...”. ALVES, José Carlos Moreira. Posse: Evolução Histórica. Rio de Janeiro: Forense, 1999. v. 2, p. 73.

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a natureza jurídica da posse vem desafiando a argúcia dos juristas que se ocuparam desse

problema.”6

Modernamente, a posse foi disciplinada pelo Código Civil Francês, que seguiu as

características inauguradas pelo Direito Romano. Tal codificação influenciou diversos

ordenamentos jurídicos no Ocidente, inclusive o Código Civil Brasileiro de 1916. Em largos

traços, pode-se afirmar que as normas referentes à posse na primeira codificação civil

brasileira seguem a trilha do Código Civil Francês e, por consequência, do Direito Romano.

Na regulamentação francesa, a posse estava vinculada à propriedade, sendo aquela

entendida como poder de fato sobre o bem, enquanto que a propriedade representava poder

jurídico sobre o mesmo. Em outras palavras: a posse trazia a lume a forma pela qual a

propriedade se exteriorizava; por isso era alvo de proteção. Portanto, protegia-se a posse para

garantir a propriedade.

A codificação oitocentista prestigiava o “ter”, em detrimento do “ser” e, nessa linha

de compreensão, a propriedade se sobrepunha à posse, pois trazia maior segurança no trânsito

jurídico dos bens. No contexto específico do Código Napoleônico, a concepção de posse

espelha o modelo filosófico, político e jurídico do Estado Liberal, instituído pela Revolução

Francesa.

Outro aspecto de particular significado para a presente análise é a tendência a

conferir natureza peculiar à posse, quando comparada aos demais institutos do Direito Civil,

que comportam classificação pontual entre direitos obrigacionais, direitos reais ou obrigações

propter rem, porque ela não preenche completamente as características de determinada

categoria dogmática. Conforme lição de José Carlos Moreira Alves7, a natureza jurídica de

um instituto requer enquadrá-lo na categoria dogmática a que se ajustam suas características.

No caso, não basta que o instituto jurídico apresente determinadas características

contempladas na seara dogmática; é preciso que detenha todos os seus elementos essenciais.

No plano doutrinário, a natureza jurídica e conceitual da posse é alvo de debates

entre autores nacionais e estrangeiros. Sob esse ângulo, há três correntes principais: a primeira

confere prioridade à situação fática; a segunda a defende como direito e, por fim, a corrente

6 Idem, p.73.

7 Idem, p.96.

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eclética8 congrega elementos das anteriores, concebendo a posse, como fato e direito

simultaneamente.

Caio Mário da Silva Pereira9 apresenta as três correntes que se dedicam à definição

do instituto. Conforme sua análise, a primeira proposição (a posse é um fato) tem sido

sustentada por juristas do porte de Cujacius, Donnellus, Voet, Windscheid, De Filipis,

Trabucchi, ao passo que a segunda (a posse é um direito), encontra guarida nos estudos de

Accursius, Bartolo, Ihering, Molitor, Cogliolo, Teixeira de Freitas, Edmundo Lins e a terceira

(a posse é um fato e um direito, simultaneamente) vem amparada por Savigny, Merlin,

Namur, Domat, Ribas, Lafayette.

É interessante ressaltar a contribuição de Savigny para a evolução do instituto

possessório, após a promulgação do Código Civil francês. Defendendo o predomínio da

natureza jurídica fática da posse, Savigny10 sublinha que o instituto, apesar de compreendido

como fato, não ignora a relevância jurídica de seus efeitos. O autor em tela afirma que:

A posse se apresenta certamente como um poder puramente de fato sobre uma coisa, sem ter nenhum caráter legal. Mas, neste estado está protegido contra certas violações, e por causa desta pretensão é precisamente pelo que existem regras concernentes à aquisição e à perda da propriedade como se fosse um direito. Se trata agora de indicar o fundamento desta proteção e desta assimilação da posse a um direito, e isto é o que vamos fazer. Este fundamento consiste na união deste estado puramente de fato com a pessoa que possui e cuja inviolabilidade serve ao mesmo tempo para protegê-la contra toda espécie de violações que poderiam também se dirigir contra a pessoa mesma. A pessoa em efeito deve estar sempre ao abrigo de toda violência, e se ela se comete, sempre é uma injustiça cujas consequências podem porém ser diversas.11 (tradução livre)

8 Em obra conjunta, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald ressaltam que a posse possui uma característica tridimensional, pois “... o fenômeno da posse ingressa no Direito através de três vias: a) posse real – seria a posse decorrente da titularidade da propriedade ou de outro direito real (v.g. usufruto, superfície); b) posse obrigacional – é a posse que advém da aquisição do poder sobre um bem em razão de relação de direito obrigacional (v.g. locação, comodato); c) posse fática – também chamada de posse natural, exercitada por qualquer um que assuma o poder fático sobre a coisa, independentemente de qualquer relação jurídica real ou obrigacional que lhe conceda substrato, sendo suficiente que legitimamente seja capaz de utilizar concretamente o bem. Haverá, portanto, uma configuração tridimensional da posse.” FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 47.

9 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v 4, p. 25.

10 SAVIGNY, M. F. C. de. Tratado de la posesión: según los principios del Derecho Romano. Colección Crítica del Derecho. Edición y Estudio Preliminar “Ciencia del Derecho en Savigny”, de José Luis Monereo Pérez. Granada: Comares, 2005, p. 25.

11 “La posesión se presenta desde luego como un poder puramente de hecho sobre una cosa, sin tener ningún carácter legal. Pero en este estado es protegida contra ciertas violaciones, y a causa de esta pretensión es

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O pensador mencionado12 sublinha que a posse encontra alicerce em situação fática e

não somente no direito:

Assim, quando nos perguntam que lugar deve ser designado à posse no sistema geral dos direitos, deveremos fazer esta declaração: a posse por si mesma, como direito não ocupa nenhum lugar, porque não é tal direito; mas o que ela produz e por cuja causa toma o caráter de um verdadeiro direito e necessita de regras particulares sobre a aquisição e a perda, é o dos interditos possessórios, por consequência um direito obrigatório.13 (tradução livre)

Fernando Luso Soares destaca a importância da doutrina de Savigny, tendo vista ter

sido elaborada logo após a promulgação do Código Civil Francês, que trouxe a propriedade

privada ao centro de proteção do Direito, ficando a posse regulamentada apenas no Título da

prescrição aquisitiva. Nessa perspectiva, Savigny defendeu a posse como instituto autônomo e

não subjugado à propriedade.

Fernando Luso Soares14 reitera o contributo de Savigny para a teoria da posse, eis

que na sua compreensão, do ponto de vista metodológico e conteudístico, o autor romanista

reduziu a posse a um mínimo básico dotado de autonomia relativamente à propriedade.

Precisamente por isso, Savigny constitui “um expoente da independentização da noção

possessória”, num momento em que a doutrina dominante apontava no sentido contrário,

dando respaldo a extrema rigidez do individualismo dominial. Até então, a propriedade,

expressando a liberdade de dominar, trazia a consequência da posse. Os pressupostos tinham

como alicerce o fato de a mesma constituir gérmen do domínio; propriedade em potência.precisamente por lo que existen reglas concernientes a la adquisición y a la pérdida de la propiedad como si fuese un derecho. Trátase ahora de indicar el fundamento de esta protección y de esta asimilación de la posesión a un derecho, y esto es lo que vamos a hacer. Este fundamento consiste en la unión de este estado puramente de hecho con la persona que posee y cuya inviolabilidad sirve al mismo tiempo para protegerla contra toda especie de violaciones que podrían también dirigirse contra la persona misma. La persona en efecto debe estar siempre al abrigo de toda violencia, y si ésta se comete, siempre es una injusticia cuyas consecuencias pueden sin embargo ser diversas.”

12 Idem, p. 28.

13 “Así, cuando se nos pregunte qué lugar debe designarse a la posesión en el sistema general de los derechos, deberemos hacer esta declaración: la posesión por sí misma, como derecho no ocupa ningún lugar, porque no es tal derecho; pero el que ella produce y por cuya causa toma el carácter de un verdadero derecho y necesita de reglas particulares sobre la adquisición y la pérdida, es el de los interdictos posesorios, por consiguiente un derecho obligatorio.”

14 Idem, p. XLVI-XLVII.

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Em interessante conclusão, Fernando Soares15 esclarece que, ao identificar a posição

autônoma da posse, de modo algum, Savigny pretendeu que ela não pudesse apresentar-se

como “emanação” do direito de propriedade, o ius possidendi. O que ele afirmou

categoricamente foi a existência de direitos exclusiva e estritamente resultantes da posse: o ius

possessionis; nesse sentido, sustentou que só o ius possessionis constituía o núcleo próprio da

teoria possessória. Com tal caracterização, a posse ocupa lugar equidistante da propriedade e

da mera detenção. Assim, Savigny considerava que a proteção interdital constituía a única

consequência imputável à posse por si só.

Em breve tentativa de síntese, pode-se dizer que Savigny interpretou a posse como

instituto autônomo em relação ao direito de propriedade, em decorrência da tutela interdital,

pois os interditos possessórios serviam à posse (em suas diversas manifestações) e não apenas

à posse ad usucapionem, que possibilita a aquisição da propriedade por meio da usucapião.

Tratando do assunto, Fernando Luso Soares16 leciona que, mesmo que não se saiba se

Savigny compreendeu devidamente o alcance de sua interpretação, a tese dele é revestida de

imensa valia do ponto de vista histórico-social, para revelar que o gozo e a utilização dos bens

pelo homem ganha significação e validade jurídica fora dos quadros do direito de

propriedade, de forma a demonstrar que a titularidade formal não é tudo.

Segundo leitura de Fernando Luso Soares, a autonomia da teoria possessória de

Savigny ficou comprometida a partir do momento que ele vinculou a posse à necessidade do

animus domino do possuidor, configurando esse ânimo como elemento estrutural do instituto

possessório17. Nessa linha de pensamento, Soares18 acrescenta ser crítica a circunstância de o

progresso teórico consequente do contributo independentizante de Savigny ter sido

neutralizado em alguma medida.

Os autores que defendem ser a posse uma situação fática e não um direito conferem

ênfase às consequências jurídicas, embora não a caracterizem como um direito subjetivo.

15 Idem, p. XLVIII-XLIX.

16 Idem, p. L.

17 Fernando Luso Soares constata a fragilidade da autonomia possessório na doutrina de Savigny fazendo a seguinte indagação: “Qual, entretanto, a consequência crítica desta constatação? Desde logo, e imediata, uma: - a de que SAVIGNY reconheceu, no final de contas, a superioridade (melhor, a dominância) do direito de propriedade. Para ele, não bastou a consciência e a vontade de deter: - o animus possessório só o é enquanto tende para a propriedade.” Idem, p. LI-LII.

18 Idem, p. LI.

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Nessa vertente, pode-se destacar a doutrina de Pontes de Miranda19, entendendo que a posse,

antes de entrar para o mundo jurídico, deve ser compreendida apenas como um fato social, ou

seja, um acontecimento fático sem proteção da lei. Nessa perspectiva, não há dever jurídico da

coletividade a que corresponderia direito ao possuidor, pois existem apenas interesses fáticos

em presença uns dos outros. No entanto, o autor traz a possibilidade da posse se tornar um

direito, afirmando que:

O sistema jurídico só vem a interessar-se por ela, como situação real, quando alguém, por via de fato, vai contra ela, ou quando ela ofende a algum direito alheio. Então, o sistema jurídico protege a posse, ou protege o direito contra a posse. É o momento da entrada da posse no mundo jurídico. O direito quer paz, dentro dêle e fora dêle. Quieta non movere!

Ainda conforme entendimento do clássico pensador pátrio20, apenas quando se

verificar ofensa ao princípio Quieta non movere é que se pode admitir a posse como um

direito; isto é, em ius possessionis. E acrescenta textualmente:

A posse, em si, é res facti, e sòmente res facti. Nem conseguiu fazê-la direito subjetivo o direito romano pós-clássico quando lançou mão de analogias com o direito. Torná-la res iuris seria deformá-la, levando até ela o colorido que sòmente convém ao que já entrou no mundo jurídico.

Ihering dedicou-se ao estudo do instituto da posse e sua doutrina foi acolhida por

diversos ordenamentos jurídicos, inclusive no Brasil, que adotou a Teoria Objetiva da Posse,

tanto no Código Civil de 1916, quanto no Código de 2002. Ihering21 ressaltou que a posse

deve ser reconhecida como interesse que requer e merece proteção. Para fundamentar sua

interpretação, acrescenta o autor que todo interesse protegido por lei “deve receber do jurista

o nome de direito, considerando-se como instituição jurídica o conjunto dos princípios que a

19 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado: Parte Especial – Direito das Coisas: Posse. 4. ed. São Paulo: RT, 1983. Tomo 10, p. 5.

20 Idem, p. 13.

21 IHERING, Rudolf von. Teoria simplificada da posse. Tradução de Fernando Bragança. Belo Horizonte: Livraria Líder e Editor, 2009, p. 37-38.

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ela se referem. A posse, como relação da pessoa com a coisa, é um direito; como parte do

sistema jurídico, é uma instituição de direito.”

Em contraposição à teoria possessória de Savigny, Ihering defende que a posse

possui natureza jurídica de direito sui generis. A esse respeito, é oportuno refletir sobre os

esclarecimentos do autor22, quando menciona que o desafio de saber se a posse é um direito

ou um fato subsiste como controvérsia não resolvida entre os estudiosos da ciência jurídica.

Ele identificou a opinião dominante de que se trata de um direito, pois a posse não mais

representa simples fato, que desaparece perante o direito, eis que constitui espécie particular,

por sua natureza diferente dos demais.

Em continuidade o autor 23 destaca que, tomando-se como pressuposto que “os

direitos são interesses juridicamente protegidos”, não pode haver a menor dúvida de que é

necessário reconhecer o caráter de direito à posse. A importância da posse se justifica no fato

dela constituir a condição da utilização econômica da bem. Juntamente a esse elemento

substancial da noção jurídica, o direito acrescenta à posse um elemento formal – a proteção

jurídica, de que decorrem as condições de um direito. Se a posse não fosse protegida, não

constituiria, na verdade, senão mera relação de fato sobre a coisa; porém, desde o momento

que é protegida, assume característica de relação jurídica, o que vale tanto como direito.

Ihering24 analisa a relatividade subjacente aos direitos reais e também à posse,

afirmando que as características integrantes dos direitos reais, dentre elas, a eficácia erga

omnes, não possuem conteúdo rígido, tendo sua eficácia relativizada pelo próprio sistema

jurídico. A longa transcrição exposta a seguir se justifica pela clareza de sua lição:

A posse, diz-se, sucumbe na luta contra a propriedade, isto é, na reivindicação; ela não pode, pois, constituir um direito. Se a conclusão fosse justa, a propriedade não seria tampouco um direito, porquanto mesmo nesse caso ela sucumbe, por sua vez, sob a ação pessoal de rescisão (...). O credor hipotecário pode sempre pôr termo à propriedade do devedor pela venda da coisa, e o devedor pode dar fim em qualquer momento ao direito do credor pagando a dívida. O mesmo acontece com a posse em sua relação com a propriedade.

22 Idem, p. 29.

23 Idem, p. 32-33.

24 Idem, p. 37.

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Ademais, segundo seu entendimento, o fato de a posse ter suas raízes calcadas em

um fato, não lhe retira a natureza jurídica, pois o mesmo também acontece com outros

institutos presentes no mundo do direito25. O que distingue a posse dos demais direitos é que o

fato jurídico que lhe dá origem terá que se prolongar, para que a mesma possa ser protegida26.

Em todos os demais direitos, onde menciona como principais a propriedade e a obrigação, o

direito separa-se desde o momento em que nasceu o fato que o engendrou. Para elucidar,

lembra que, nos casos da ocupação, de contrato, do delito, o fenômeno refere-se ao passado,

subsistindo apenas as consequências. Sendo assim, “na posse, pelo contrário, a manutenção da

relação de fato é a condição do direito à proteção – o possuidor não tem um direito senão

enquanto ou quando possui.” Mais uma vez, é inelutável a necessidade de recorrer à

transcrição textual da lição com que nos brinda o autor em comento.

Em outros termos, em todos os demais direitos o fato é a condição transitória do

direito; na posse, é a condição permanente. É deste modo, como na posse, que o direito e o

fato se completam – o direito nasce com o fato e desaparece com ele: um não existe sem que

exista o outro. Acontece o mesmo com o direito de personalidade que compartilhou a sorte do

da posse, pelo que alguns jurisconsultos quiseram tão equivocadamente, como fizeram com a

posse, negar-lhe o caráter de um direito. Assim como a posse acha-se unida à existência do

estado de fato destinado a protegê-la, assim também o direito de personalidade está ligado à

existência da pessoa; nasce e morra com ela – neste caso, o fato e o direito também

concordam-se completamente.

Característica peculiar à posse (jus possessionis) consiste na hipótese de que as ações

possessórias (Reintegração de Posse; Manutenção de Posse e Interdito Proibitório) exigem a

demonstração de que o possuidor ofendido era detentor de posse que foi perdida. Na

circunstância, é premente a demonstração fática da posse. A dependência da situação fática

para a configuração do direito aos interditos está na raiz da polêmica sobre o assunto.

Na ausência da situação fática para configurar o jus possessionis, a pessoa não está

ao alcance da proteção jurídica que as Ações Possessórias conferem. Os Interditos

Possessórios somente poderão ser utilizados, se comprovada a situação fática da posse; ou

25 Destaca Ihering que “negar-se o direito de posse somente porque redunda como conseqüência de um fato, é preciso também negar o direito do credor e o de sucessão, porque a relação entre o fato gerador do direito e a conseqüência jurídica é exatamente a mesma, e, com efeito, não há um só direito que não pressuponha um fato gerador de direito. Todos os direitos, sem exceção, aparecem como conseqüências jurídicas, isto é, como conseqüências juridicamente protegidas em favor daqueles a quem devem eles aproveitar.” Idem, p. 33-34.

26 Idem, p. 35.

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seja, fora dos limites do jus possessionis, não há proteção a demandar, pela simples

inexistência do direito. Marcos Alcino de Azevedo Torres27 trata do tema e adverte que “a

propriedade sobrevive sem o exercício da posse, de forma abstrata, com base no título

aquisitivo. A posse não sobrevive, sem a realidade de sua existência, não sendo razoável

imaginar posse meramente abstrata”.

A natureza peculiar da posse também é reconhecida por José Carlos Moreira Alves28,

quando identifica que a posse, só ocasionalmente (ex occasione), é tutelada pelas ações

possessórias, o que não ocorre com os fatos jurídicos em geral, tutelados por meio de ações,

os direitos deles decorrentes, e não eles em si mesmos. Na mesma oportunidade o doutrinador

em comento sublinha que o nascimento dos fatos jurídicos não acontece, “como sucede com a

posse – por atos que o direito disciplina (os denominados modos de aquisição da posse), nem

se extinguem por outros (os chamados modos de extinção da posse) também regulados pela

ordem jurídica...” Esclarece Moreira Alves na obra mencionada, que os autores que sustentam

ser a posse um direito subjetivo se estribam na circunstância da sua proteção jurídica, pois

tem ela a seu serviço a coação do Estado.

Ao tratar da posse como direito subjetivo, José Carlos Moreira Alves29 é taxativo ao

entender que a posse, mesmo quando recebe tutela jurídica, difere-se ontologicamente dos

diretos subjetivos em geral, tendo em vista que estes são protegidos em face de qualquer

lesão, o que não ocorre com a posse, cujo direito só se manifesta contra determinadas lesões.

Dessa forma, o autor considera que a posse somente é uma garantida ex ocasione, ou seja, em

determinadas lesões, e prossegue afirmando que:

... além disso, a tutela do direito subjetivo pressupõe necessariamente a existência dele (a reivindicatória pressupõe a preexistência do direito de propriedade, e visa tão-somente à recuperação de uma das suas faculdades jurídicas – o ius possidendi), o que não ocorre, em nosso sistema jurídico, com a ação de reintegração de posse, que pressupõe a perda da posse por um dos ataques contra os quais a ordem jurídica outorga ao possuidor tal ação.

27 TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A Propriedade e a Posse: um confronto em torno da função social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 303.

28 ALVES, op. cit., p. 102.

29 Idem, p. 104.

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A peculiaridade da posse atrai a discussão para o conceito de direito subjetivo, o

qual, segundo Francisco Amaral30, “(...) é o poder que a ordem jurídica confere a alguém de

agir e de exigir de outrem determinado comportamento”. Caio Mário da Silva Pereira31 trata

do tema, esclarecendo que:

No lugar próprio (nº 5, vol. I) conceituamos o direito subjetivo na simbiose dos elementos teleológicos (Ihering) e psicológicos (Windscheid), entendendo com Jellinek, Michoud, Ferrara, Saleilles, Ruggiero, que é um poder de vontade para a satisfação de interesses humanos, em conformidade com a norma jurídica. À luz dessa noção, procedemos à caracterização da posse. Não deve perturbar a questão a circunstância de em toda posse assomar uma situação de fato, pois que numerosas relações jurídicas aparentam igualmente uma situação desta ordem, sem que se desfigurem perdendo a condição de direito. A propriedade mesma, como todo direito real, vai dar numa posição de fato. E nem por isto deixa de ser um direito, paradigma, aliás, de uma categoria de direitos.

José Carlos Moreira Alves32 destaca que o fato que dá origem à posse é diferente

daquele que faz nascer o direito subjetivo, eis que a posse, distintamente do que gera direitos

subjetivos (que, uma vez nascidos, independem daqueles), é necessariamente duradouro (não

importando sua duração), pois “a posse só existe enquanto ele perdura, o que implica dizer

que a posse é um estado de fato”. No entanto, acrescentando seu entendimento a respeito da

posse, o autor esclarece que a posse é estado de fato disciplinado pelo direito; logo instituto

jurídico. O problema repousa na circunstância de a posse poder ser vislumbrada por dois

aspectos diversos: o estado de fato – que é a relação entre a posse e a coisa, qualquer que seja

a conceituação que se lhe dê – e as consequências jurídicas que resultam desse estado de fato,

e que, por se projetarem em face de outras pessoas, integram relações jurídicas.

Enfrentando o tema, alinhado à teoria eclética, Santiago Dantas33 compreende que a

posse resulta da circunstância de dependência material em que o titular se coloca em face da

coisa, mas o direito confere-lhe tal proteção, que não se pode deixar de reconhecer, na

situação do possuidor, de vínculo jurídico ligando a pessoa do titular à coisa. Para ilustrar,

30 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, 188.

31 PEREIRA, op. cit., p. 26.

32 ALVES, op. cit., p. 75.

33 DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil III. Coleção Clássicos da Literatura Jurídica. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1984, p. 22.

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Dantas menciona que o possuidor pode recuperá-la por meio de ação competente e pode

transmitir, fazer cessão da posse e, se morrer, transfere-a aos seus herdeiros. Trata-se,

portanto, de genuíno “vínculo jurídico que se cria, que se extingue, que se transmite, embora

esse vínculo resulte não de um título, mas de um fato.”

Pietro Perlingieri34 entende que o locus da posse se encontra num poder

juridicamente relevante, lembrando ser frequente a definição da posse como situação “de

fato”. Ele assinala que o Código Civil italiano faz referencia à posse, no art. 1.140, como do

“poder sobre a coisa que se manifesta em uma atividade correspondente ao exercício da

propriedade ou de outro direito real”. A esse respeito, traz à reflexão o exemplo de

proprietário que abandonou um terreno e um fulano que entra no terreno e se comporta como

proprietário: cultiva-o, colhe os frutos e até mesmo constrói uma casa. Apesar de a doutrina

usualmente definir tal situação como “de fato”, daí não resulta que a mesma seja

juridicamente irrelevante. Isso porque, na análise de Pietro Perlingieri (supramencionado):

O Código, no art. 1.140 ss., não somente define a posse, mas prevê também uma meticulosa disciplina: tutela os direitos do possuidor, regula o seu exercício. Quando um sujeito se apossa (apossamento) de fato, sem que se tenha um direito de se apossar, segue uma “situação dita de fato juridicamente relevante”. A posse não é um poder de fato sobre a coisa, mas um poder juridicamente relevante (art. 1.148 ss. Cód. Civ.) que se manifesta em uma atividade correspondente ao exercício da propriedade ou de outro direito real.

Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves35 também se alinham à teoria eclética da posse,

sublinhando sua estrutura peculiar, por estar alicerça alicerçada em uma situação de fato, no

entanto destacam que de igual modo outros direitos também estão. No entanto, para os autores

a posse se torna um direito:

.. à medida que o ordenamento jurídico concede ao possuidor o poder de satisfazer o direito fundamental de moradia, naturalmente defere-lhe uma gama de pretensões que lhe assegurem proteção perante terceiros, o que revela nitidamente a existência do direito subjetivo de possuir. Qualquer direito subjetivo tem sua origem em um fato jurídico. Todavia, a polêmica

34 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 143.

35 FARIA, op. cit., p. 41-42.

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41

despertada pela natureza da posse – fato ou direito – é intensificada pela inexistência de uma terminologia capaz de distinguir o fato jurídico que lhe dá origem do direito subjetivo que o secunda.

Reconhecendo a natureza sui generis da posse, afirma Guillermo G. Valdecasas36:

Pode-se definir a posse como um poder de fato sobre uma coisa. A posse consiste no fato mesmo desse poder, independentemente de que se ajuste ou não ao direito. Por isso, a posse é, antes de tudo, um fato e, como tal, se distingue claramente do direito. Mas, um fato ao que a ordem jurídica atribui importantes efeitos jurídicos, entre os que destacam a proteção da posse em si, abstração feita de que seja ou não conforme o direito, e a possibilidade, em determinados supostos, de se converter em direito definitivo sobre a coisa pelo transcurso do tempo (usucapião). Estas consequências jurídicas que se derivam do fato da posse, fazem dela, ao próprio tempo, um direito subjetivo (ius possessionis), embora de nível inferior à propriedade e os outros direitos reais, frente aos quais sucumbe, quando é impugnada em tempo e forma legais. Por isso se diz que a posse é um direito real provisional, pois, diferente dos direitos reais definitivos, somente está protegida provisionalmente, ou seja, enquanto o possuidor não seja vencido em juízo por quem ostente o direito correspondente. Convém ter sempre presente a existência de ambos aspectos, fático e jurídico, na posse.37 (tradução livre)

Em face do exposto, não é possível conceituar a posse como direito absoluto, pois,

apesar de sua natureza poder se enquadrar na concepção de direito, em determinadas

situações; em outras, não ultrapassa a situação fática, que implica o risco de o possuidor ser

privado do bem.

36 VALDECASAS, Guillermo G. La Posesión. Colección Clássicos Contemporáneos. Granada: Editorial Comares, 1953. v. 3, p. 1-2.

37 “Se puede definir la posesión como un poder de hecho sobre una cosa. La posesión consiste en el hecho mismo de ese poder, independientemente de que se ajuste o no a derecho. Así pues, la posesión es, ante todo, un hecho y, como tal, se distingue netamente del derecho. Pero un hecho al que el ordenamiento jurídico atribuye importantes efectos jurídicos, entre los que destacan la protección de la posesión em sí, abstracción hecha de que sea o no conforme a derecho, y la posibilidad, en determinados supuestos, de convertirse en derecho definitivo sobre la cosa por el transcurso del tiempo (usucapión). Estas consecuencias jurídicas que se derivan del hecho de la posesión, hacen de ella, al propio tiempo, un derecho subjetivo (ius possessionis), si bien de inferior rango a la propiedad y los demás derechos reales, frente a los cuales sucumbe, cuando es impugnada en tiempo y forma legales. Por eso se dice que la posesión es un derecho real provisional, pues, a diferencia de los derechos reales difinitivos, sólo es protegida provisionalmente, esto es, mientras el poseedor no sea vencido en juicio por quien ostente el derecho correspondiente. Conviene tener siempre presente la existencia de ambos aspectos, fáctico y jurídico, en la posesión.”

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42

No entanto, considerar a posse como direito real confere ao possuidor poderes sobre

o bem, de que decorrem consequências jurídicas e sociais relevantes e instiga a reflexão sobre

a possibilidade de constituir direito real ou obrigacional. A discussão é pertinente e repousa

em dois ramos do Direito Civil, desde o período romano.

De pronto, vale ressaltar que os direitos reais38 apresentam características específicas,

distintas dos direitos pessoais39. Entre outras peculiaridades, são diferentes os sujeitos e

objetos dessas duas relações jurídicas (direitos reais e direitos obrigacionais). O sujeito ativo e

passivo que compõem a relação jurídica de direito obrigacional são, respectivamente, o credor

e devedor, e o objeto abarca prestação de dar, fazer ou não fazer. Nos direitos reais, os

sujeitos ativo e passivo são, por um lado, o titular de um direito real e, por outro, a

coletividade e o objeto um bem corpóreo.

Sob o enfoque jurídico, os direitos reais têm caráter absoluto e oponibilidade erga

omnes. Sobre o assunto, destaca Gondinho40 que, na esteira da inviolabilidade, o direito real

não pode ser violado, o que impõe o dever geral de abstenção da teoria personalista do

vínculo real, segundo a qual o direito real constitui relação jurídica entre o titular e as pessoas

da coletividade. Por outro lado, a oponibilidade determina a eficácia dos poderes do titular do

direito real em seu vínculo direto ou indireto com os sujeitos interessados em determinada

38 Destacam-se apenas algumas características mais importantes dos direitos reais, relevantes ao estudo da posse.

39 Sobre a distinção existente entre os direitos reais e os direitos obrigacionais, destaca José Puig Brutau que: “Direitos reais e direitos de crédito formam os dois grandes ramos dos direitos patrimoniais. Uns e outros representam as duas maneiras básicas de poder dar satisfação a um interesse juridicamente protegido. No direito real, o titular pode realizar atos de uso, usufruto e disposição que afetam de maneira direta ao objeto econômico do direito; por isso a proteção jurídica se limita, primeiramente, a impor a todos os não titulares um dever de abstenção, o dever de não interferir nos atos de uso, usufruto e disposição do titular. No direito de crédito, o interesse juridicamente protegido somente pode se satisfazer pela mediação de atos alheios, ou seja, através da prestação de um sujeito obrigado de maneira direta e pessoal a proporcionar ao titular o valor protegido pelo direito. Entre os direitos reais e os direitos de crédito media, de forma estritamente analítica, a radical diferença que separa os direitos absolutos dos direitos relativos.” (tradução livre).

“Derechos reales y derechos de crédito forman las dos grandes ramas de los derechos patrimoniales. Unos y otros representan las dos maneras básicas de poder dar satisfacción a un interés jurídicamente protegido. En el derecho real, el titular puede realizar actos de uso, disfrute y disposición que afectan de manera directa al objeto económico del derecho; por ello la protección jurídica se limita, en principio, a imponer a todos los no titulares un deber de abstención, el deber de no interferir en los actos de uso, disfrute y disposición del titular. En el derecho de crédito, el interes jurídicamente protegido solo puede satisfacerse por la mediación de actos ajenos, es decir, a través de la prestación de un sujeito obligado de manera directa y personal a proporcionar al titular el valor protegido por el derecho. Entre los derechos reales y los derechos de crédito media, desde un punto de vista estrictamente analítico, la radical diferencia que separa los derechos absolutos de los derechos relativos.” BRUTAU, José Puig. Fundamentos de Derecho Civil. 3. edición. Barcelona: BOSCH, 1989. v. 1. Tomo 3, p. 11.

40 GONDINHO, André Pinto da Rocha Osório. Direitos reais e autonomia da vontade: o princípio da tipicidade dos direitos reais. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 41-42.

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situação jurídica real. Nesta vertente analítica, “a oponibilidade expressa os reflexos do

vínculo real na esfera de terceiros que venham a se encontrar em determinada situação

jurídica ou de fato em relação à coisa.” O indicador mais evidente da natureza real de um

direito não repousa no exercício de poderes em relação àquele bem – situação jurídica de

natureza pessoal, como acontece na locação e no comodato, mas na oponibilidade a terceiros.

Assim compreendida, a oponibilidade é elemento fundamental à caracterização dos direitos

reais.

Como exposto, no presente trabalho, defende-se que a posse, em determinadas

circunstancias, detém eficácia erga omnes41, assumindo a forma de direito real, que relativiza

a característica numerus clausus desse direito.

Diversa é a situação alusiva aos direitos pessoais, como ocorre com os contratos. Via

de regra, geram efeitos apenas entre as partes contratantes, de que decorre oponibilidade inter

partes (ou relativa), vinculando apenas credor e devedor. Embora a relatividade seja

predominante nos direitos pessoais, alguns são oponíveis a terceiros, como ocorre com a

estipulação em favor de terceiro.

A evolução da teoria contratual imprimiu profundas mudanças no âmbito dos direitos

pessoais, em especial no que se refere ao dogma da autonomia da privada, restringindo os

limites volitivos das partes em decorrência da ponderação com demais princípios contratuais,

em especial com o princípio da boa-fé objetiva; função social do contrato; e princípio do

equilíbrio econômico.

Outra distinção entre os direitos reais e pessoais se relaciona ao ius persequendi (ou

direito de sequela), presente no conteúdo dos direitos reais, conferindo ao titular a

prerrogativa de perseguir a coisa, onde e com quem ela esteja. O direito de sequela decorre do

princípio da aderência, no sentido de que os direitos reais se aderem ao bem; por isso, o titular

pode buscá-lo onde ele se encontrar, e com quem ele estiver.

Outra perspectiva concernente aos direitos reais gira em torno do fato de os mesmos

serem numerus clausus42 ou taxativos, e tipificados em lei. O sistema jurídico impede às

41 Os autores Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, no entanto, entendem que “a oponibilidade erga omnes da posse não deriva da condição de direito real patrimonial, mas do atributo extrapatrimonial da proteção da moradia como local de resguardo da privacidade e desenvolvimento da personalidade do ser humano e da entidade familiar.” FARIA, op. cit., p. 47.

42 Segundo definição de Gondinho, “podemos dizer que o princípio do numerus clausus se refere à impossibilidade de criação, pela autonomia da vontade, de outras categorias de direitos reais que não as

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44

partes de criarem direitos reais, ao contrário do que ocorre com os direitos pessoais, podendo

as partes livremente estipular espécies contratuais, haja vista a permissão legal dos contratos

atípicos.

No tocante à fonte, ou seja, em relação à possibilidade de sua criação, os direitos

reais são considerados numerus clausus (ou taxatividade), como destaca André Pinto da

Rocha Osório Gondinho43. O mencionado pesquisador refere que o princípio do numerus

clausus leva à impossibilidade de criação, pela vontade, de outras categorias de direitos reais

que não as estabelecidas em lei, ou, ainda, que os direitos reais não podem resultar de

convenção entre sujeitos jurídicos. Quanto ao conteúdo estrutural, cumpre respeitar a

tipicidade desses direitos, cujos limites são estabelecidos em lei. O autor em tela44 sublinha

que a definição desses direitos deve guardar coerência com conteúdo estrutural dos poderes

conferidos ao titular da situação jurídica de direito real, afirmando que “a tipicidade é

corolário necessário do princípio do numerus clausus, pelo qual há competência exclusiva do

legislador para a criação de categorias de direitos reais.”

Infere-se do que foi exposto que somente o legislador possui legitimidade para criá-

los; os direitos reais possuem um rol numerus clausus45, ao passo que os direitos pessoais são

numerus apertus, elenco meramente exemplificativo.

Ao tratar do tema em perspectiva histórica, Gondinho46 identifica importante

contribuição da Revolução Francesa, com a introdução do princípio do numerus clausus, que

produziu efeitos transformadores na fonte de produção dos direitos reais, impondo restrições à

intervenção da autonomia da vontade na seara desses direitos. Embora o legislador francês

não tenha apresentado regra expressa alusiva a numerus clausus, elencou algumas “figuras de

direito real, estabelecendo-lhes limites de conteúdo e duração.”

estabelecidas em lei, ou, ainda, que os direitos reais não podem resultar de uma convenção entre sujeitos jurídicos.” GONDINHO, op. cit., p. 16.

43 Idem, p. 16.

44Idem, p. 16.

45 Gondinho define o princípio da tipicidade afirmando que “o estabelecimento destes direitos não pode contrariar o conteúdo estrutural dos poderes conferidos, pelo ordenamento jurídico, ao titular da situação jurídica de direito real. Esta necessidade de respeito à estruturação dos poderes conferidos ao titular decorre do conteúdo típico dos direitos reais previstos na lei. A tipicidade é assim, um corolário necessário do princípio do numerus clausus, pelo qual há competência exclusiva do legislador para a criação de categorias de direitos reais. Idem, p. 16.

46 Idem, p. 22.

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45

Numa interpretação literal do art. 1.225 do Código Civil, a posse não pode ser

considerada como direito real, pois não está apresentada, segundo o critério de numerus

clausus47, com definição expressa na lei. Todavia, a consideração da posse como direito

relativiza a concepção clássica desse princípio, dando-lhe nova configuração.

Ao refletir sobre a possibilidade de relativização do princípio do numerus clausus no

sistema jurídico brasileiro em decorrência do princípio da autonomia da vontade, Gondinho48

assinala que os defensores do princípio do numerus clausus observam que a definição

indiscriminada de direitos reais, pela autonomia da vontade, poderia acarretar graves

consequências para terceiros, “para a segurança das relações jurídicas, para a economia

fundiária e para o próprio capitalismo nacional.”

Defendendo a autonomia privada para a criação de novos direitos reais, Gondinho49

assinala que são débeis os argumentos usados para justificar a exclusão da autonomia da

vontade. Entretanto, o autor admite a necessidade de cautela, “pois é preciso, para um correto

juízo de valor, compreender as possibilidades e dificuldades de um sistema aberto de direitos

reais.” Além disso, segundo interpretação do autor em tela, no ordenamento jurídico pátrio, é

vigente o princípio do numerus clausus dos direitos reais, “sem que isso signifique

irreversíveis prejuízos e obstáculos para o progresso da espontaneidade social, como

defendem, com alarme, os simpatizantes do numerus apertus.”

Em sentido contrário à relativização do princípio numerus clausus, afirma Gustavo

Tepedino50 que essa concepção (taxatividade) é justificada nos dias atuais tendo em vista que

os direitos reais são dotados de eficácia erga omnes, podendo atingir, dessa forma, situações 47 Gondinho destaca em sua obra que o próprio sistema jurídico francês aceitou a relativização do princípio numerus clausus dos direitos reais, devido à inexistência de previsão legal consagrando expressamente esse princípio, após a codificação napoleônica. Dessa foram, o seu reconhecimento foi proveniente de “um movimento doutrinário e jurisprudencial que reconhecia certas figuras de direitos reais que não estavam previstas no código francês, como o direito de superfície, de caça e a enfiteuse.” Idem, p. 25. Assim como a doutrina, também a jurisprudência francesa caminhou nesse sentido, afirmando o autor que “... os tribunais franceses têm se inclinado para a validade da criação convencional de algumas situações jurídicas de direito real, mesmo que não previstas pelo sistema legal. É certo afirmar, todavia, que alguns doutrinadores, a despeito das manifestações jurisprudenciais nesse sentido, têm-se demonstrado avessos à idéia (sic) de um sistema de numerus apertus para o Direito das Coisas.” Idem, p. 26-27. E conclui o autor afirmando que “apesar dessa tendência verificada na experiência francesa, ocorreu, no final do século XIX, em grande parte das legislações ocidentais, a consolidação definitiva do princípio do numerus clausus. Prevaleceu, para tanto, o argumento de que a criação de novos direitos reais era prejudicial ao sistema econômico, face à eficácia erga omnes que as relações assim criadas acabam por adquirir. A existência de uma vicissitude convencional, oponível erga omnes, incidindo sobre um determinado bem, representaria uma diminuição no seu valor negocial, o que seria contrário aos interesses capitalistas.” Idem, p. 27-28.

48 Idem, p. 49-50.

49 GONDINHO, op. cit., p. 61-62.

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jurídicas de terceiros, podendo criar paralelamente o dever genérico de abstenção, sem o

prévio consenso da coletividade. Dessa forma, o autor entende que a constituição de um novo

direito real depende do legislador, haja vista “que a reserva legal para a predisposição de uma

nova figura real é inderrogável, por traduzir princípio de ordem pública.”

Em termos amplos as características dos direitos reais propiciam segurança jurídica e

poder ao titular do bem, o que não ocorre com o direito obrigacional, cujo inadimplemento

situa-se na seara das perdas e danos.

Admitida como direito, a posse se enquadra na categoria dos direitos reais. Como

sublinhado por Santiago Dantas51, para entender a natureza desse direito, é preciso identificar

o dever jurídico a ele correspondente. Então se descobrirá que se trata de dever dos membros

da sociedade de não perturbar a continuidade possessória, a não ser pelos meios legais. Trata-

se, pois de um direito absoluto, ou seja, com eficácia erga omnes. E complementa, “já que o

objeto da posse é a coisa, totalmente entregue ao possuidor, também se vê que não pode ser

direito da personalidade e sim direito real. É legítimo, portanto, incluir-se a posse ao lado dos

direitos reais...”.

O reconhecimento da posse como direito real implicará releitura das características

desses direitos, haja vista a relativização ocorrida em muitas das suas peculiaridades, o que

traz implicações à evolução da hermenêutica jurídica.

1.2 A posse no direito comparado

O instituto da posse também é muito debatido e regulamentado de diferentes formas

nos ordenamentos estrangeiros. Esse pressuposto fica claro quando se analisam os tratamentos

conferidos pelos sistemas jurídicos português, espanhol, italiano, alemão e francês, os quais,

de certa maneira, influenciaram o direito brasileiro.

50 TEPEDINO, Gustavo. A disciplina jurídica da multipropriedade imobiliária. 1991. 207 f. Tese (concurso de Professor Titular de Direito Civil) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1991, p. 125-126.

51 DANTAS, op. cit., p. 22-23.

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47

No sistema português, a posse é considerada um poder, como explicitado no art.

1.251.º do Código Civil: “posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma

correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”52

Manuel Rodrigues53 comenta que a natureza jurídica da posse no Direito português é

controversa e a lei lhe atribui vários efeitos. No entanto, afirma que “a posse é, pois, um

direito” 54. Para sustentar seu posicionamento apoia-se no fato de que a lei confere proteção ao

possuidor, e assim, perturbados ou esbulhados, terão uma ação própria para protegê-los.

Dessa forma, a posse se reveste de todos os caracteres de um direito.

Em sentido contrário, Manuel Rodrigues cita Oliveira Ascensão55, para quem a posse

era direito real no Código de 1867, pois o artigo 504.º autorizava “a acção de restituição de

posse não só quanto ao esbulhador, como contra qualquer terceiro para quem o esbulhado

houvesse transferido a coisa por qualquer título.” Delineou-se então a inerência, própria do

direito real. Todavia, o artigo 1281.º (do Código luso vigente) alterou a situação, concluindo o

autor que “agora a acção de restituição só pode ser exercida contra o esbulhador e herdeiros, e

ainda contra quem estiver na posse da coisa e tiver conhecimento do esbulho, como vimos.

Com isto perdeu a posse a natureza de direito real.”

Apontando a tendência do Direito lusitano de considerar a posse um direito

subjetivo, merece relevo o art. 1268.º do Código Civil Português, que disciplina a presunção

da titularidade do direito, nos seguintes termos: “1 – o possuidor goza da presunção da

titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registro

anterior ao início da posse ...”56

No Direito Espanhol, a posse como direito subjetivo está regulamentada no artigo

430, assim formulado: “posse natural é a detenção de uma coisa ou o desfrute de um direito

por uma pessoa. Posse civil é também uma detenção ou disfrute unidos à intenção de ter a

coisa ou o direito como seu.”57 (tradução livre)

52 Código Civil. Coleção Legislação. Coordenadora Isabel Rocha. 17. ed. Porto: Porto Editora, 2014, p. 221.

53 RODRIGUES, op. cit., p. 33,

54 Idem, p 37.

55 ASCENSÃO, Oliveira. Direitos Reais, 1978, p. 298, apud RODRIGUES, Manuel (Org.). A posse: Estudos de direito civil português. Coimbra: Almedina, 1996, p 38-39.

56 Código Civil, op. cit., p. 224.

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48

Reforçando o direito de posse na legislação espanhola, o art. 446 estabelece que

“todo possuidor tem direito a ser respeitado em sua posse; e, se for inquietado nela, deverá ser

amparado ou restituído em dita posse pelos meios que as leis de procedimentos

estabelecem.”58 (tradução livre)

A doutrina predominante no direito espanhol reconhece a posse como direito

subjetivo. Sendo assim, Berdejo59 assinala que apesar da posse se apresentar de forma

controversa no decurso da história, o direito civil espanhol a recepcionou como um direito:

Entre os romanistas anteriores a Savigny a discussão, sobre se a posse é um fato ou um direito subjetivo, foi inflamada, ao fio de dois textos tão conhecidos como inconciliáveis: o de Paulo, segundo o qual possessio est res facti, non iuris; e o de Papiniano, para quem non est corporis, sed iuris. Depois de Savigny se tende a sintetizar e conciliar os aspectos jurídicos e fáticos da posse, ou a distinguir, como muito romanistas do presente século, entre a etapa do Direito clássico, na que a posse se consideraria como um fato, e a justinianea, que tende a ressaltar seu valor jurídico. Na Espanha, depois de uma etapa posterior à codificação na que prepondera a tese da posse-direito, à raiz da reforma hipotecária de 1944, que excluiu a posse – ao mero fato de possuir – do Registro da propriedade, numerosos autores mantiveram seu caráter meramente fático. Logo, a doutrina mais recente tende a se inclinar pela condição de direito subjetivo da posse.60 (tradução livre)

57 “posesión natural es la tenencia de una cosa o el disfrute de un derecho por una persona. Posesión civil es esa misma tenencia o disfrute unidos a la intención de haber la cosa o derecho como suyos.” Código Civil. Edición preparada por José Carlos Erdozain Lópes, bajo la dirección de Rodrigo Bercovitz Rodríguez-Cano. 34ª ed. Madrid: Editorial Tecnos, 2015, p. 216.

58 “todo poseedor tiene derecho a ser respetado en su posesión; y, si fuere inquietado en ella, deberá ser amparado o restituido en dicha posesión por los medios que lãs leyes de procedimientos establecen.” Idem, p. 218.

59 BERDEJO, op. cit., p. 30.

60 “Entre los romanistas anteriores a Savigny la discusión, sobre si la posesión es un hecho o un derecho subjetivo, fue enconada, al hilo de dos textos tan conocidos como inconciliables: el de Paulo, según el cual possessio est res facti, non iuris; y el de Papiniano, para quien non est corporis, sed iuris. Después de Savigny se tiende a sintetizar y conciliar los aspectos jurídicos e fácticos de la posesión, o a distinguir, como mucho romanistas del presente siglo, entre la etapa del Derecho clásico, en la que la posesión se consideraria como un hecho, y la justinianea, que tiende a resaltar su valor jurídico. En España, tras una etapa posterior a la codificación en la que prepondera la tesis de la posesión-derecho, a raíz de la reforma hipotecaria de 1944, que excluyó a la posesión – al mero hecho de poseer – del Registro de la propiedad, numerosos autores mantuvieron su carácter meramente fáctico. Luego, la doctrina más reciente tiende a inclinarse por la condición de derecho subjetivo de la posesión.”

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De acordo com Pedro de Pablo Contreras61, a posse pode ser considerada um direito

tendo em vista que o possuidor goza de proteção por meio de ações judiciais que visam

assegurar a continuidade da sua posse:

Considerada como mera detenção, a posse é, sem dúvida, um fato jurídico: um fato da vida real ao que o ordenamento ata determinadas consequências jurídicas. (...) Mas, se se observa que entre ditas consequências jurídicas está, com caráter definidor e substancial, a atribuição ao possuidor de uma ação que lhe permite reagir frente a qualquer perturbação ou despojo procedente de um terceiro, fazendo que estas cessem e recuperando a coisa mesma e o exercício das faculdades de uso y gozo sobre ela que vinha ostentando [§ 109], não se pode senão concluir que é, também, um direito. Um direito, sem dúvida, real, porque real é a ação que em todo caso o protege; mas um direito real, isso sim, muito peculiar.62

No Direito Francês a posse está disciplinada no artigo 2255, que a define da seguinte

forma: “la possession est la détention ou la jouissance d’une chose ou d’un droit que nous

tenons ou que nous exerçons par nous-mêmes, ou par un autre qui la tient ou qui l’exerce em

notre nom.”63 Henri Mazeaud64 (et. al.) estabelecem a diferença entre posse e propriedade no

Direito Civil francês, afirmando que a primeira se refere a uma situação fática, e a segunda se

configura num direito real:

O proprietário ou titular de outro direito real (usufruto ou servidão, por exemplo) têm sobre uma coisa as prerrogativas reconhecidas pelo direito, um poder jurídico. Esse poder existe independentemente de seu exercício pelo titular: o proprietário pode, de fato, não exercer nenhum domínio, nenhuma apreensão material sobre a coisa; o poder jurídico sobre a coisa permanece. (...) A posse, é o poder de fato. A propriedade, o usufruto, ou outro direito real, é o poder de direito. Para saber quem é possuidor, nós examinamos a

61 CONTRERAS, Pedro de Pablo, et al. Curso de Derecho Civil III. 2. ed. Madrid: COLEX, 2008, p. 262.

62 “Considerada como mera tenencia, la posesión es, indudablemente, um hecho jurídico: um hecho de la vida real al que el ordenamiento anuda determinadas consecuencias jurídicas. (...) Pero, se si observa que entre dichas consecuencias jurídicas está, con carácter definitorio y sustancial, la atribución al poseedor de una acción que le permite reaccionar frente a cualquier perturbación o despojo procedente de un tercero, haciendo que estas cesen y recuperando la cosa misma y el ejercicio de las faculdades de uso y goce sobre ella que venía ostentando [§ 109], no puede sino concluirse que es, también, un derecho. Un derecho, sin duda, real, porque real es la acción que en todo caso lo protege; pero un derecho real, eso si, muy peculiar.”

63 Code Civil. Paris: Les éditions des Journaux officiels, 2014, p. 314.

64 MAZEAUD, Henri; et. al. Leçons de Droit Civil: Obligations Théorie Générale; Biens Droit de Propriété et ses démembrements. Paris: Éditions Montchrestien, 1956. Tome 2, p. 1108.

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50

situação fática, sem verificar se essa situação de fato, corresponde a uma situação de direito, isto é se o possuidor é proprietário ou titular de outro direito real.65 (tradução livre)

No Código Napoleônico de 1804, a posse está disciplinada no Livro III, no terceiro

Capítulo inserido no Título XXI que trata da Prescrição. O sistema jurídico francês não trata a

posse como um instituto autônomo do direito das coisas, ficando sua importância vinculada à

prescrição aquisitiva, motivo pelo qual parece ter sido considerado no Código.

No Direito italiano, a posse está disciplinada no artigo 1.140 que determina que “a

posse é o poder sobre a coisa que se manifesta em uma atividade correspondente ao exercício

da propriedade ou de outros reais direitos. Pode se obter diretamente ou por meio de outra

pessoa, que tenha a detenção da coisa.66” E o Código Civil italiano prossegue a disciplina da

posse conceituando-a no artigo seguinte, art. 1.141, que afirma que “presume-se a posse

daquele que exercita o poder de fato, quando não se prova que tenha começado a exercitá-

lo simplesmente como detenção (...)67” (tradução livre)

Portanto, haverá presunção de possuidor para todo aquele que estiver no exercício do

poder fático sobre o bem, salvo se houver prova de mera detenção, conforme art. 1.141.

Portanto, no sistema jurídico italiano, a posse é um fato. Nesse sentido, afirma Giuseppe

Trabucchi68:

A posse não é um direito. Não devemos confundir a posse com o direito de possuir (ius possidendi) que diz respeito ao proprietário. Pode-se falar, na

65 “Le propriétaire ou le titulaire d’un autre droit réel (usufruit ou servitude, par exemple) ont sur une chose des prérogatives reconnues par le droit, un pouvoir juridique. Ce pouvoir existe indépendamment de son exercice par le titulaire: le propriétaire peut, en fait, n’exercer aucune maîtrise, aucune emprise matérielle sur la chose; il n’en a pas moins sur ele un pouvoir juridique. (...) La possession, c’est le pouvoir de fait. La propriété, l’usufruit, un autre droit réel, c’est le pouvoir de droit. Pour savoir qui est possesseur, on examine donc la situation de fait, sans rechercher si cette situation de fait, correspond à une situation de droit, c’est-à-dire si le possesseur est propriétaire ou titulaire d’un autre droit réel.”

66 “Il possessso è il potere sulla cosa che si manifesta in un’attività corrispondente all’esercizio della proprietà o di altri diritto reale. Si può possedere direttamente o per mezzo di altra persona, che ha la detenzione della cosa.”

67 “si presume il possesso in colui che esercita il potere di fatto, quando non si prova che ha cominciato a esercitarlo semplicemente come detenzione (...)”

68 TRABUCCHI, Giuseppe. Commentario breve al Codice Civil. 5. ed. Pavoda: CEDAM, 1997, p. 983.

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verdade, das consequências jurídicas interligadas pelo ordenamento ao estado de fato do possuidor, ius possessionis, mas que se tenha presente que se trata de uma tutela provisória, que não se confunde com aquela de um verdadeiro e próprio estado de direito: esta cessa diante de eventual demonstração do verdadeiro direito.69 (tradução livre)

Pietro Perlingieri70 diferencia a natureza jurídica fática da posse em contraposição ao

direito real de propriedade no ordenamento italiano, afirmando que:

O legislador define a posse como o “o poder sobre a coisa” (e o art. 1141 determina que se trata de um “poder de fato”) que se manifesta em uma atividade correspondente ao exercício da propriedade ou de outro real direito (1140). Para explicar a natureza da posse, a doutrina tradicional se preocupa em contrapor este “poder de fato” ao poder jurídico que descende da titularidade do direito real sobre o bem: por isso é normal (comum) qualificar a posse como “situação de fato”, em contraposição à propriedade e aos outros direitos reais, que são qualificados “situações de direito”.71 (tradução livre)

Reforçando o entendimento de que a posse permanece como uma situação fática,

apesar da proteção jurídica que o ordenamento italiano confere a ela, Alberto Trabucchi72

destaca que “a tutela da posse, como tutela da condição de fato, é por sua essência de caráter

provisório: não é a defesa de um direito. A posse não é um direito (...) mas um estado de fato

69 “Il possesso non è un diritto. Non dobbiamo confondere il possesso con il diritto a possedere (ius possidendi) che spetta al proprietário. Si può parlare, invero, per le conseguenze giuridiche connesse dall’ordinamento allo stato di fatto del possesso, di un ius possessionis, ma va tenuto presente che si tratta di una tutela provvisoria, che non si confonde con quella di un vero e proprio stato di diritto: essa cessa di fronte all’eventuale successiva dimostrazione del vero diritto.”

70 PERLINGIERI, Pietro. Manuale di Diritto Civile. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1997, p. 200.

71 “Il legislatore definisce il possesso come ‘il potere sulla cosa’ (e all’art. 1141 precisa che si tratta di un “potere di fatto”) ‘che si manifesta in un’attività corrispondente all’esercizio della proprietà o di un altro diritto reale’ (1140). Per spiegare la natura del possesso la dottina tradizionale si preoccupa di contrapporre questo ‘potere di fatto’ al potere giuridico che discende dalla titolarità del diritto reale sul bene: si è soliti perciò qualificare il possesso come ‘situazione di fatto’, in contrapposizione alla proprietà e agli altri diritti reali, che sono qualificati ‘situazioni di diritto’.”

72 TRABUCCHI, Alberto. Instituzioni di Diritto Civile. 23. ed. Pavoda: CEDAM, 1978, p. 434.

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no qual foram interligadas consequências jurídicas importantes e numerosas...”73 (tradução

livre)

No tocante ao Direito Alemão, a posse está disciplinada no BGB como sendo

expressamente uma situação fática74, de acordo com o § 854, que determina que a posse de

uma coisa é adquirida pela obtenção do poder de fato sobre ela. O Código Civil brasileiro de

1916, influenciado pelo Código alemão, define a posse como sendo o exercício, de fato, das

faculdades da propriedade ou domínio. No entanto, Clóvis Beviláqua75 a conceitua como

sendo um direito de natureza especial (ius possessionis):

A posse, considerada em si mesma, funda-se em um mero fato e se apresenta como estado de fato; mas uma vez firmada, nela a ordem jurídica, em atenção à paz social e à personalidade humana, respeita o que ela apresenta ser, reconhece o jus possessionis, o direito de posse, que os interditos defendem. Eis a explicação desta forma especial do direito. É um interesse, que a lei protege, portanto é um direito. Não direi que seja um direito real, porque, na sistemática do direito civil pátrio, não há outros direitos reais, além dos declarados no art. 674 do Código Civil; mas, segundo acima se disse, um direito especial...

Pode-se verificar, portanto, que a natureza jurídica da posse é controversa nos

diferentes sistemas jurídicos; e no Brasil, a doutrina também é divergente no tocante a sua

definição. Para a construção conceitual do instituto possessório no sistema jurídico brasileiro,

é importante a participação dos Tribunais Superiores, conforme será analisado no Capítulo 4.

73 “La tutela del possesso, come tutela dello stato di fatto, è per sua essenza di carattere provvisorio: non è la difesa di un diritto. Il possesso non è un diritto (...) ma uno stato di fatto cui sono connese conseguenze giuridiche importanti e numenose....”

74 Destaca José Carlos Moreira Alves: “com efeito, no BGB, para que haja posse se exige, expressamente, apenas o poder de fato sobre a coisa (‘§ 854. A posse de uma coisa é adquirida pela obtenção do poder de fato sobre a coisa’). ALVES, op. cit., p. 296.

75 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. 5. ed. Atualizada por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1957. v. 1, p. 39.

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2 REGULAMENTAÇÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL E SEUS REFLEXOS NA POSSE E

PROPRIEDADE DA TERRA

2.1 Período da colonização como fundamento

A estrutura fundiária no Brasil radica no modelo colonizador adotado por Portugal,

para efetivar seu domínio sobre o território brasileiro. Esse paradigma deu origem aos

latifúndios, à concentração do poder econômico e político do país e à exclusão de

significativo contingente de cidadãos socialmente excluídos.

Tal política de distribuição das terras ainda hoje motiva conflitos no campo e na

cidade. Por sua natureza e devido à incongruência em relação aos comandos da Carta Magna

de 1988 quanto à efetividade da função social da propriedade e ao direito à moradia, o

problema desafia os poderes da República e os cidadãos.

Historicamente, o poder público pátrio evidenciou o cuidado de regulamentar o

instituto, como se demonstrará na continuidade do estudo até a promulgação do primeiro

Código Civil Brasileiro de 1916.

Cumpre recordar que, em 1500, as terras brasileiras pertenceram por direito aos

conquistadores, em decorrência do Tratado de Tordesilhas firmado entre Portugal e Espanha,

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em 149476. Com tal fundamento, em 1534, Dom João III dividiu o território brasileiro em

capitanias hereditárias, concedidas a particulares, no intuito de conter invasões de outros

países e racionalizar o uso dos parcos recursos financeiros disponíveis para ocupar o vasto

território conquistado e, ao mesmo tempo transformar a colônia brasileira em fonte de lucros

para a Coroa portuguesa.77 Nessa linha de entendimento, transferiu-se aos donatários (em

maioria, nobres, banqueiros, homens de negócios próximos ao rei de Portugal) a missão de

colonizar, proteger e administrar a capitania recebida, e em contrapartida, explorar os recursos

naturais encontrados.

Do ponto de vista formal, as capitanias hereditárias constituíram-se por meio de dois

documentos: a Carta de Doação, que atribuía ao donatário a posse hereditária da terra; e a

Carta Foral, que estabelecia os direitos e deveres dos donatários. As terras brasileiras

continuavam pertencendo o Estado português, embora os donatários usufruíssem da terra.78

Somente com o sistema sesmarial79, deu-se início à transferência das terras brasileiras

da instância pública para a privada. A regulamentação dessas doações ocorreu por meio da

Lei das Sesmarias80, criada em Portugal pelo Rei Fernando I, em 1375, em decorrência da

crise de abastecimento provocada pela Grande Peste que assolou os países europeus, da

carência de mão-de-obra no campo, entre outros motivos. Para atender aos requisitos do

cultivo e povoamento das terras do Estado português, recém-formado e sem condições de

76 TORRES, op. cit., p. 13.

77 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Legitimação de Posse: dos imóveis urbanos e o direito à moradia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 12-13.

78 SILVA, Leandro Ribeiro da. Propriedade Rural. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 73-74.

79 Segundo Lígia Osório Silva, “a origem da palavra sesmaria ainda provoca algumas divergências. Para alguns, ela vem da palavra latina caesinae, que significa os cortes ou rasgões feitos na superfície da terra pela relha do arado ou pela enxada. Para outros a palavra vinha do verbo sesmar, quer dizer, partir, dividir ou demarcar terras. Outros ainda afirmam que as terras distribuídas eram chamadas de sesmarias porque o agente que repartia as terras devolutas era o sesmeiro, uma espécie de magistrado municipal, escolhido entre os homens bons da localidade, integrante do sesmo ou colégio de seis membros, encarregado de distribuir o solo entre os moradores. Mas é possível que a palavra sesmeiro tenha outra origem: derivaria da palavra sesma ou sesmo, que era a sexta parte de qualquer coisa. Como essas terras se acostumavam dar com foro ou pensão de um sexto, daí poderia ter surgido a apelação de sesmeiro e talvez até mesmo de sesmaria. SILVA, Ligia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996, p. 21.

80 De acordo com Carlos Marés, “verificando que faltavam braços para lavrar a terra, havendo concentração de pessoas ociosas e famintas nas cidades, o Rei de Portugal, D. Fernando, em 1375, obrigou os proprietários de terras a produzir sob pena de expropriação e aos braços livres a trabalhar para os proprietários, estabelecendo salários máximos e os vinculando a contratos que tivessem a duração de pelo menos um ano. Com isso criava o Instituto das Sesmarias, com o qual obrigava a todos transformarem suas terras em lavradio, sob pena de não o fazendo, as perderem a quem quisesse trabalhar, além de penas severas que poderiam variar de expropriação, açoites ou desterro.” MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2003, p. 30.

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organizar a produção agrícola, decidiu-se conceder a cidadãos portugueses porções de terras a

serem exploradas. 81

Sistema de ocupação similar ao das sesmarias foi praticado por Portugal durante a

reconquista cristã de terras ocupadas pelos mulçumanos. Eram as chamadas presúrias, que

guardavam semelhanças com o regime em exame. Sobre as presúrias, Marco Alcino de

Azevedo Torres82 informa que a maioria era composta por pessoas próximas ao rei de

Portugal, esclarecendo que:

Em Portugal vigia, como de regra noutras nações, desde a Idade Média, o princípio de que pertenciam ao rei, juridicamente por título originário, as terras conquistadas dos infiéis, a propriedade territorial abandonada, aquelas consideradas sem dono efetivo e terrenos baldios, mas a dificuldade de defesa e de cultivo fazia com que os reis deixassem, sem intervenção prévia, passar muitos bens para as mãos de particulares, aqueles que por seu próprio interesse defenderam ou ajudaram a defender as terras dos inimigos exteriores. Com isso, aquelas terras outrora ermas e desérticas tornavam-se povoadas e produtivas. Esta situação fática chamou-se de presúria – ocupação das terras sem dono, das terras que por conquista tinham passado a fazer parte da propriedade real.

A Lei das Sesmarias83, tanto em Portugal como na colônia brasileira, exigia dos

particulares o cultivo das terras recebidas. No Brasil, a regularização das sesmarias

acompanhou o modelo adotado em Portugal; todavia, na prática, assim como em Portugal, o

aproveitamento das terras doadas não correspondeu à previsão legal. Apesar da

obrigatoriedade do cultivo estar prevista expressamente na lei, as terras não cultivadas

continuaram na posse dos donatários, que igualmente não se ativeram aos limites territoriais,

conforme previsão legal.

As capitanias não ficavam sob o domínio completo dos donatários, pois eles poderiam

ocupar apenas as terras especificadas na Carta de Doação, devendo doar o restante para os

sesmeiros, pois a capitania tinha a finalidade de promover a colonização, conforme ordens de

Portugal, fundamentadas na intenção de evitar a formação dos latifúndios improdutivos.

81 TORRES, op. cit., p. 18-21.

82 Idem, p. 18.

83 O regime de sesmarias em Portugal foi incorporado nas Ordenações Afonsinas em 1446, com algumas modificações, e posteriormente foi incorporado nas Ordenações Manuelinas de 1521, e nas Ordenações Filipinas de 1601, no Título XLIII do Livro Quarto.

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Pelas Cartas de Sesmarias transferiam-se aos donatários poderes políticos para

promover a administração, justiça e defesa da Capitania recebida. Entretanto, os donatários

eram pessoas influentes na Coroa Portuguesa e não trabalhadores braçais, fato que prejudicou

o almejado desenvolvimento das capitanias.

Conforme estudos de Leandro Ribeiro da Silva84, era difícil encontrar pessoas que

preenchessem os critérios para receber sesmarias: elas deveriam ter condições de administrar

as terras, além de situação econômico-financeira para desenvolvê-las. Ademais, era raro

identificar alguém disposto a abandonar, juntamente com suas famílias, o conforto da

Metrópole para enfrentar a aventura nas terras distantes do Brasil, sem segurança no sucesso

do empreendimento. Vale notar que diversos concessionários de sesmarias nem vieram ao

Brasil, e dessa forma “os atos concernentes a essas concessões foram invalidados e as terras

transferidas a outras pessoas ou, simplesmente, mantidas em poder do Estado, como também

poderiam ser invadidas por terceiros, como veio a ocorrer posteriormente.”

Os donatários deveriam doar85 extensões de terras a quem se interessasse por elas,

normalmente, familiares e amigos, designados como sesmeiros, em obediência às condições

estabelecidas pela Lei das Sesmarias. Segundo Leandro Ribeiro da Silva86, a doação de

sesmarias constituía a transferência do direito de propriedade útil e resolúvel relativa a uma

extensão de terra, com o fim de cultivá-la, extraindo dela a produção de bens destinados à

subsistência, à alienação e ao pagamento de tributos sobre a produção87.

O mencionado diploma legal tinha o objetivo de promover a funcionalização e cultivo

das terras transferidas aos donatários e sesmeiros, sob pena da sanção de expropriação. A

ocupação das terras também se destinava à extração de bens para exportação, gerando lucro à

84 SILVA, op. cit., p. 77.

85 Márcia Maria Menendes Motta analisando a natureza jurídica das sesmarias, afirma que “a lei de sesmarias (...), havia se instituído para fazer face à crise da agricultura do século XIV e condicionava a doação de terras à obrigatoriedade do cultivo. Há sólidos vestígios de que, desde cedo, o que se transmitia – em grande parte das doações – era um domínio perpétuo e alienável. Ao mesmo tempo, ela se tornara o instituto jurídico que sedimentou a propriedade legal das terras aos desbravadores dos territórios do Ultramar, tornando-se com o tempo o ‘título legítimo’, o documento que referendava a propriedade de alguns, em detrimento de outros.” MOTTA, Márcia. Direito à terra no Brasil - A gestão do conflito: 1795-1824. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2012, p. 218.

86 SILVA, op. cit., p. 83.

87 Porém o autor destaca que “o destinatário das Cartas de Doação ou donatário, não era senhor absoluto das terras, porque não dispunha do domínio ou direito de propriedade, mas era uma espécie de usufrutuário, sesmeiro ou repartidor.” Idem, p. 73-74.

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metrópole, como ocorreu com as terras destinadas à produção de cana-de-açúcar, produto de

valor comercial considerável na Europa.

No período colonial brasileiro, a Europa vivia o mercantilismo econômico, e baseado

nesse sistema, o comércio entre a metrópole e a colônia era regulamentado pelo Pacto

Colonial, onde a metrópole adquiria produtos tropicais e exportava produtos manufaturados,

obtendo sempre balança comercial favorável. Seguindo a cartilha do mercantilismo europeu, o

Brasil se tornou fonte de riquezas para Portugal e a Lei das Sesmarias nas terras brasileiras

nutriu esse sistema por meio da monocultura nas propriedades latifundiárias. Tal processo

ocorreu de maneira distinta em Portugal, onde a Lei das Sesmarias tinha como objetivo

incentivar a produção de alimentos e o desenvolvimento da população.

Além da aquisição das terras pelo sistema de doações das sesmarias, muitas pessoas se

apossaram diretamente do solo, sem a prévia concessão da Coroa, tendo em vista que o

processo aquisitivo não era fácil e simples, o que ocasionou o surgimento das posses de terras,

sem que houvesse um título que as legitimasse.

Não obstante a obrigatoriedade do cultivo, muitos sesmeiros arrendaram (ou

venderam) as terras recebidas a pequenos lavradores, contribuindo para o surgimento da

figura do posseiro e dificultando a demarcação das sesmarias. Como consequência, a Coroa

Portuguesa perdeu o controle do sistema de distribuição de terras no país.

O Alvará de 05 de outubro de 1795 denunciava o início do conflito em torno da terra

no Brasil. Ele evidenciava o descontrole da distribuição das terras brasileiras pela Coroa

Portuguesa, e admitia a necessidade urgente de limitar a extensão territorial das terras

concedidas e, principalmente, de promover a demarcação dessas terras. Porém, os próprios

fazendeiros eram favorecidos com a imprecisa delimitação dessas terras, que propiciava sua

expansão.

Leandro Ribeiro da Silva88 leciona que a demarcação das sesmarias brasileiras era

precária, devido à inexistência de normas regulatórias, o árduo trabalho, bem como à ausência

de mão de obra capacitada e de recursos materiais. A carência de regulamentação do

procedimento demarcatório é compreensível porque a lei mencionada tinha o propósito

precípuo de suprir deficiências rurais portuguesas, cujas terras se encontravam ociosas devido

à fuga dos camponeses. Por seu turno, as terras brasileiras ainda não tinham sido cultivadas;

88 Idem, p. 79.

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eram terras virgens. Outra peculiaridade brasileira era a grande disponibilidade de terra,

absolutamente despovoada. No início da colonização, essas características tiveram decisiva

influência na irregularidade e dimensão das sesmarias. Como exemplos o pesquisador

mencionado aponta:

(...) como sucedeu com Brás Cubas, que recebeu uma sesmaria com área que abrangia cerca de 30% (trinta por cento) do atual Estado de São Paulo. Fato idêntico ocorreu posteriormente com João Fernandes Vieira, em Pernambuco, e Jerônimo de Albuquerque, cujas sesmarias atingiam acentuada parte das terras do Nordeste.

A Coroa inseriu no texto do documento em tela a necessidade de se promover

equilíbrio na distribuição de sesmarias, a fim de evitar a formação dos latifúndios, que já se

consolidavam no país. Porém, o referido Alvará foi suspenso no ano seguinte pelo Alvará de

10 de dezembro de 1796, em decorrência da dificuldade prática de promover a medição, em

face da falta de pessoas qualificadas à incomensurável tarefa, em tão vasto território.

As capitanias encontraram inúmeros obstáculos e, ao compreender o risco que corria

o projeto colonizador, Portugal optou por centralizar o governo do Brasil nas mãos de uma

pessoa. O sistema de Capitanias Hereditárias vigorou até o ano de 1549; a partir de então, o

rei de Portugal criou novo sistema administrativo para o Brasil: o Governo-Geral. Tomé de

Souza foi o governador-geral, designado para administrar o território brasileiro, com as

funções antes atribuídas aos donatários.

Embora tenha vigorado por pouco tempo, o sistema das Capitanias Hereditárias

deixou marcas profundas na divisão do território brasileiro. Esse modelo de distribuição de

terras deu origem à injusta e opressiva estrutura latifundiária no país, fomentando

desigualdade econômico-social e suas consequências para a sociedade atual e futura.

O regime instituído pela Lei das Sesmarias limitou o acesso à terra, tendo em vista

que foram doadas pelos donatários às pessoas próximas (familiares e amigos). Os limites

quantitativos estabelecidos pela lei para as concessões não foram observados, criando-se

imensas extensões territoriais concentradas nas mãos de poucos sesmeiros, com

consequências na organização fundiária do país.

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Conforme análise de Carlos Frederico Marés89, no século XVI já se apresentavam

indícios de que a concessão de sesmarias poderia criar problemas quanto à organização

fundiária do país, mas de nada serviu a limitação imposta às concessões que deveriam ser do

tamanho da capacidade do beneficiário em aproveitar a terra. Esse limite foi desrespeitado

inúmeras vezes, mesmo porque a produção que deveria se dar na colônia não era do tipo de

subsistência, mas, ao contrário, do tipo mercantilista, de produtos para o mercado. Nos

séculos XVII e XVIII, as concessões se transformaram em nascedouro de latifúndios. Se, no

início, serviram como instrumento de conquista externa, para que Portugal se apropriasse do

território, uma vez estabelecido o poder português transmutou-se em mecanismo de conquista

interna, servindo de consolidação do poder do latifúndio, porque as concessões passaram a ser

uma distribuição da elite para si mesma, fonte do exercício e preservação do poder.

Como se pode inferir, a distribuição de terras no Brasil foi elitista desde sua origem,

o que repercutiu nos terrenos rurais, como posteriormente, nas cidades que começaram a se

formar. Esse sistema impossibilitou a democratização do acesso à terra, principalmente aos

negros trazidos da África e seus descendentes, que permaneceram na periferia do sistema

social e enfrentam o problema da moradia até a atualidade.

Com o fim do regime das Sesmarias em 1822, novas concessões não poderiam ser

feitas; porém, as já existentes foram legitimadas pela Lei n° 601 de 1850, desde que tivessem

sido concedidas em consonância com a legislação e o proprietário respeitasse o critério da

demarcação da terra, tornando-a também produtiva.

A partir da Lei n° 601, as sesmarias transformaram-se em propriedades privadas, e o

título de sesmaria serviria apenas para provar a legitimidade da origem da propriedade. A

terra passa a ser considerada não apenas objeto de uso, mas principalmente mercadoria de

troca.

É importante acrescentar que, mesmo após a Independência do Brasil em 1822,

continuou vigorando no país a legislação portuguesa referente ao instituto possessório,

especialmente as Ordenações Filipinas. Até a promulgação do Código Civil de 1916, não

havia legislação sistematizadora do instituto possessório com o cuidado de definir seu regime

jurídico específico e completo. Somando-se às Ordenações Filipinas, encontravam-se poucas

referências na legislação nacional.

89 MARÉS, op. cit, p. 62.

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Os quatro primeiros livros das Ordenações Filipinas fazem raras e assistemáticas

menções à posse, instituída seguindo o modelo construído pelo Direito Romano e pelo Direito

Costumeiro de Portugal.

A Constituição Imperial (primeira Constituição brasileira) foi promulgada em 1824,

dois anos após a extinção do regime das sesmarias. No caput do artigo 179 da Lei Maior,

estabeleceu-se que “a inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos cidadãos brasileiros,

que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade (...)” e, no inciso XXII

do mesmo artigo, determinou-se que “é garantido o Direito de Propriedade em toda a sua

plenitude (...)”.

Analisando a Constituição Imperial, percebe-se que não se regulamentaram as

formas de aquisição da propriedade da terra, o que somente ocorreu com a promulgação da

Lei de Terras, em 1850. Essa Constituição se restringiu a proteger, em termos formais, o

direito de propriedade, ficando indiferente em relação ao instituto possessório. Sendo assim,

ao proteger o direito de propriedade, impedia a devolução das terras não cultivadas e

determinava o confisco das terras apenas em casos muito especiais. Os maiores beneficiados

com a disciplina do Texto Constitucional foram os grandes latifundiários, eis que não foi

prevista qualquer punição aos donos de latifúndios improdutivos.

A Constituição Imperial não atribuiu expressamente a função social à propriedade,

limitando-se a assegurar o pleno exercício dos poderes inerentes ao domínio, ressalvada a

necessidade pública.

A Constituição da República, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, de cunho

liberal90, garantiu as clássicas liberdades privadas, civis e políticas. Ela assegurou, no art. 72,

§ 17, a inviolabilidade da propriedade, resguardando o direito à desapropriação por

necessidade ou utilidade pública. A Constituição Republicana não trouxe qualquer inovação

ao texto constitucional anterior, silenciando, também, em relação à função social da

propriedade.

90 De acordo com Reinaldo de Lima Lopes, “se a Constituição do Império havia pelo menos feito referência ao direito à educação que seria garantido pelo governo – no ensino fundamental – a Constituição Republicana silencia completamente sobre qualquer ‘direito social’. Próprio do direito constitucional eram apenas as questões de soberania nacional, separação de poderes, sistema representativo, liberdades civis. O triunfo do liberalismo na República, dentro da cultura jurídica, é inquestionável. É tão profundo que mesmo as modernizações que iriam de qualquer maneira competir ao Estado para fazer avançar o próprio capitalismo na sociedade brasileira são continuamente questionas pelos tribunais federais.” LOPES, Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 369.

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61

2.2 Lei n. 601/1850 (Lei de Terras) como reforço à propriedade privada

Como se expôs, de início, o acesso a terra ocorreu por meio da posse e não do título,

pois os donatários e os sesmeiros não eram titulares das propriedades, mas legítimos

possuidores das mesmas. A propriedade privada sobre as terras consolidou-se com a Lei n°

601/1850, também denominada Lei de Terras. Conforme análise de Marco Aurélio Bezerra de

Melo91 “com a Lei de Terras, verifica-se a forma como as posses dos particulares se

transformariam em propriedade no solo brasileiro”. No entanto, outros doutrinadores

entendem que, no sistema das sesmarias, os sesmeiros poderiam ser considerados

proprietários. Nesse sentido, discorre Marcos Alcino de Azevedo Torres92:

Pode-se imaginar que decorridos quase três séculos e meio das primeiras concessões, muitas devem ter cumprido as condições, transformando-se em propriedade privada. Os próprios autores por vezes se referem a proprietários, por outras, a concessionários. Mas esta ilação nos permite concluir que a propriedade privada entre nós teria surgido quando o primeiro concessionário atendeu às exigências de sua carta de concessão.

A legitimação da posse possibilitada pela Lei n° 601 conferiu às sesmarias a qualidade

de propriedade privada. A partir de então, esse diploma legal passou a incidir sobre toda a

normativa da primeira lei brasileira referente à terra. O documento que comprovava

legalmente a propriedade era o título de concessão de sesmaria e, durante longo período,

constituiu única fonte legítima de aquisição de propriedade; ou seja, só poderiam ser

considerados legítimos os contratos de transmissão de propriedade que tivessem como origem

aquele título.

91 MELO, op. cit., p. 23.

92 TORRES, op. cit., p. 76.

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Esse documento legal oficializou, por meio da legitimação de posse prevista no art.

1193, a transferência da propriedade das terras públicas para os particulares94. Seguindo o

modelo proprietário europeu instituído pelo sistema capitalista, a propriedade privada foi

transformada em mercadoria, tornando-se objeto de lucro, e não poderia mais ser obtida por

meio de doações, pois esse modelo não atendia ao interesse capitalista predominante.

Conforme teor da Lei n° 601 (art. 1° e 14), as terras que não tinham dono (nem

possuidores) eram consideradas devolutas95, pertencendo ao Estado e somente poderiam ser

adquiridas por meio da compra e venda.

No século XIX, a Europa vivencia a implementação do Estado Liberal, conferindo à

propriedade privada o conceito de direito individual absoluto e ilimitado, ao qual a posse se

subjugava. Nesse cenário, delinearam-se novos contornos aos direitos individuais, com realce

àqueles do proprietário.

Nesse modelo, o Estado não poderia tomar a terra sem indenização, mesmo que fosse

improdutiva ou necessária para fins sociais. Transformada em mercadoria, a propriedade

adquire valor no mercado, devendo o Estado compensar o proprietário pela necessidade de

seu uso, no dever de recompor o patrimônio do titular.

Trata-se de sistema diferente do vigente nas Sesmarias, que autorizava a intervenção

do Estado, sem indenização nas propriedades improdutivas, possibilitando sua retirada. Com a

93 Art. 11: “Os posseiros serão obrigados a tirar titulos dos terrenos que lhes ficarem pertencendo por effeito desta Lei, e sem elles não poderão hypothecar os mesmos terrenos, nem alienal-os por qualquer modo. Esses titulos serão passados pelas Repartições provinciaes que o Governo designar, pagando-se 5$ de direitos de Chancellaria pelo terreno que não exceder de um quadrado de 500 braças por lado, e outrotanto por cada igual quadrado que de mais contiver a posse; e além disso 4$ de feitio, sem mais emolumentos ou sello.”

94 É importante destacar a análise de Rousseau sobre o surgimento da propriedade privada: “o primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer isto é meu e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estancas e cobrindo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Não escutem esse impostor! Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra é de ninguém!’.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2012. v. 704, p. 80.

95 Art. 3º: São terras devolutas: § 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal. § 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. § 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei.§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.

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hegemonia do Estado Liberal, nem o Estado, nem a sociedade podem intervir na propriedade

alheia, transformada em direito absoluto96.

Entre o fim da Lei das Sesmarias, em 1822, até a vigência da Lei 601/1850, iniciou-se

um período de posse sobre as terras devolutas, pois não mais se podia adquirir a terra por

meio da sesmaria97. Entre 1822 a 1850, simultaneamente às sesmarias já existentes, a posse

foi o meio utilizado para a ocupação da terra, sendo que, tanto os lavradores humildes se

apossaram de um pedaço de terra para tirar seu sustento e de sua família, como os grandes

latifundiários alargaram os limites de suas possessões.

De acordo com estudo de Marco Aurélio Bezerra de Melo98, o período compreendido

entre 1822 a 1850 teve como característica a utilização da posse originária como mecanismo

de aquisição de titularidades imóveis, ficando o instituto da propriedade em total ocaso, pois a

proibição da concessão de sesmarias, forma jurídica formalmente aceita pelo Estado para a

aquisição de bens de raiz, estimulou uma corrida pelas terras brasileiras, sendo favorecidos os

mais velozes e poderosos. A filosofia insculpida no regime sesmarial brasileiro de aquisição

de enormes extensões de terras, ainda que não tivesse o seu titular condições de explorar,

ficou impregnada na oligarquia rural da época. Nesse contexto, os latifúndios foram

sedimentados com a Lei de Terras (1850), “quer pela confirmação e revalidação das

sesmarias, quer pela legitimação das posses.”

96 Afirma Carlos Frederico Marés que “toda a teoria justificadora da propriedade privada, de Locke a Rousseau, passando pela esperança de Voltaire (‘propriedade é liberdade’), tem como fundamento a liberdade, porque o mesmo homem que é livre para escolher seu trabalho o haverá de ser para dispor dos frutos do trabalho, dos bens amealhados. Esta legitimação da propriedade pelo trabalho, e pelo contrato, adquire contornos dramáticos nas Américas e no Brasil. Aqui a propriedade não é fruto do trabalho livre, é fruto do saque dos bens indígenas, ouro, prato, milho, batata, cacau ou terra e do trabalho escravo. A liberdade formal da propriedade individual perde o véu de pureza e humanidade nas Américas e mostra a cara desnuda e rude da usurpação.” MARÉS, op. cit., p. 60.

97 Sobre o período compreendido entre a suspensão das sesmarias até a aprovação da Lei de Terra, afirma Marés, “este período os agraristas chamam ‘regime de posse’, porque somente havia posse nas terras ainda não apropriadas individualmente pela confirmação das sesmarias. Mas o nome é impróprio. Não havia sequer posse, mas ocupação, considerada clandestina e ilegítima. As pessoas simplesmente ocupavam terras vazias e as transformavam em produtivas. A partir deste fato iam tentar um título junto ao Governo, que não o concedia, alegando não haver lei que regulamentasse a concessão. Ao contrário, havia ações do Estado coibindo a ocupação, especialmente de pequenos posseiros. (...) Coibia não pelas conseqüências de uma eventual desordenação territorial, mas para que os novos trabalhadores livres que chegavam e que viriam a ocupar o lugar dos escravos, e os libertos não se vissem tentados a procurar essas terras desocupadas para trabalhar por conta própria e deixassem de ser empregados das fazendas, obedecendo a mesma lógica das concessões de sesmarias. Havia mudado o sistema jurídico, mas não a lógica da dominação”. Idem, p. 66.

98 MELO, op. cit., p. 20.

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No tempo transcorrido entre a extinção da concessão das sesmarias e a Lei 601,

merecem realce a monocultura (como o café) nos latifúndios formados e a plantação de

subsistência das pequenas áreas territoriais, onde grupos familiares exerciam posse. Conforme

análise de Messias Junqueira99, a propriedade das terras brasileiras, nesse período, poderia ser

assim classificada:

1 – Terras Públicas incorporadas, como próprios, ao patrimônio da Nação, da Província ou do Município; 2 – Terras Públicas, simplesmente aplicadas ao uso público nacional, provincial ou municipal; 3 – Terras Públicas, habitadas e cultivadas efetivamente por particulares, em virtude de cartas de sesmaria, ou por força de concessões governamentais, sem que os sesmeiros e concessionários houvessem preenchido as condições sob que lhe foram outorgadas suas sesmarias e concessões; 4 – Terras Públicas, habitadas e cultivadas efetivamente por particulares, a título de simples ocupação mansa e pacífica; 5 – Terras Públicas, que por força de legítimo título de aforamento estavam no domínio útil dos particulares; 6 – Terras Particulares, todas aquelas que se achavam na propriedade plena dos particulares, em virtude de título legítimo, isto é, em virtude de título hábil em direito para constituir e transferir o domínio dos bens de raiz; 7 – Terras Públicas desocupadas.

Aparentemente, a Lei 601 trouxe a exigência de que as terras cumprissem função

social100 pois, para legalização, as posses teriam que ser pro labore ou pro moradia101. Porém,

na prática, nenhuma medida foi tomada para dar efetividade ao preceito legal, continuando os

latifúndios improdutivos indiferentes à função social.

Um dos aspectos positivos da Lei 601, regulamentada pelo Decreto n° 1.318/1854, foi

a possibilidade de formação de pequenas propriedades, com a legitimação das posses,

democratizando, ao menos no plano teórico, o acesso do pequeno agricultor à terra.

Ruy Cirne Lima102 ilustra que, à época da colonização, apropriar-se e cultivar terras

devolutas tornou-se prática corrente. Com o transcurso do tempo, passou a ser vista como 99 JUNQUEIRA, Messias. As Terras Devolutas na Reforma Agrária. São Paulo: RT, 1968, p. 65-66.

100 Art. 4º: “Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, que se acharem cultivadas, ou com principios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionario, ou do quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições, com que foram concedidas.”

101 Art. 5º: “Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente...”

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forma legítima de aquisição do domínio, até em substituição ao desvirtuado regime das

sesmarias. Em sequencia e à medida que ocorreu a expansão geográfica, a posse intensificou-

se. A ocupação tomou o espaço das concessões do poder público, representando, segundo

palavras do doutrinador referido:

o triunfo do colono humilde, do rústico desamparado, sobre o senhor de engenhos ou fazendas, o latifundiário sob o favor da metrópole. A sesmaria é o latifúndio, inacessível ao lavrador sem recursos. A posse é, pelo contrário – ao menos nos seus primórdios –, a pequena propriedade agrícola, criada pela necessidade, na ausência de providência administrativa sobre a sorte do colono livre, e vitoriosamente firmada pela ocupação.

Porém, não se proporcionou a todos a possibilidade de acesso à terra; em decorrência

do regime de escravidão em vigor, escravos eram impedidos de adquirir imóveis. Com a

Abolição da Escravatura, em 1888, não havia mais a legitimação de posses e a propriedade

somente poderia ocorrer por meio da sucessão hereditária, ou mediante contratos de compra e

venda, troca ou doação de terras.

Na passagem do regime de propriedade de terras para a forma jurídica absoluta e

individual, poder exclusivo da vontade, a reforma hipotecária de 1864 contribuiu fornecendo

as bases para a organização registral e a concepção da transcrição como modo de aquisição da

propriedade, fortalecendo o sistema de privatização, trazido pela Lei de Terras de 1850. O

Código Civil, promulgado posteriormente, apenas reforçou o modelo de mercantilização da

terra instituído na fase anterior.103

A Lei de Hipoteca n. 1.237 de 1864 favoreceu a absolutização do direito de

propriedade, ao disciplinar juridicamente a hipoteca, instrumento útil de mobilização do

patrimônio fundiário. Ao mesmo tempo, instituiu a necessidade de registro dos imóveis para

102 LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. 5. ed. Goiânia: UFG, 2002, p. 51.

103 Laura Beck Varela afirma em sua obra que “é o Código Civil de 1916 que cria o registro de imóveis em sentido amplo, aproveitando o registro geral organizado em virtude da reforma hipotecária (...). A transcrição passou, destarte, de mera formalidade, complementar à legislação hipotecária, a verdadeiro modo de aquisição da propriedade.” VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna: um estudo de história do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 192.

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dar publicidade e oponibilidade erga omnes dos Direitos Reais, mais tarde incorporado ao

Código Civil de 1916104.

A propriedade privada agroeconômica conferiu status e poder político aos grandes

latifundiários105, inaugurando o fenômeno sócio-político do coronelismo, no início do período

republicano no Brasil, no final do século XIX e começo do XX.

Quanto ao poder dos coronéis nesse período histórico, são esclarecedoras as

observações de Ricardo Moura106, principalmente, quando assinala que, já nas eleições de

1894, os cafeicultores demonstraram sua força, elegendo Prudente de Morais. Desde a posse

até 1930, houve vigoroso fortalecimento das oligarquias cafeeiras na vida política nacional. A

estrutura política viciada, conhecida como ‘a política café-com-leite’, em que se evidenciou a

hegemonia da dupla de estados mais poderosos à época: São Paulo e Minas Gerais. A política

estadual era controlada por grupos políticos os quais, com respaldo nos coronéis, fazendeiros,

ricos, influentes, que desfrutavam de poder quase absoluto sobre o povo, particularmente no

meio rural, manipulavam os resultados das eleições, perpetuando-se no poder. Devido ao seu

poder, exercido à margem e acima da lei, praticavam largamente a fraude eleitoral, lançando

mão de quaisquer meios, tais como: “falsificação de títulos, das listas eleitorais, de urnas, de

votos, intimidação aos elementos da oposição.”

104 Idem, p. 7.

105 Sérgio Buarque de Holanda destaca em sua obra que “nos domínios rurais é o tipo de família organizada segundo as normas clássicas do velho direito romano-germânico, mantidas na península Ibérica através de inúmeras gerações, que prevalece como base e centro de toda a organização. Os escravos, como os agregados, dilatam o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do pater-famílias. Esse núcleo bem característico em tudo se comporta como seu modelo da Antiguidade, em que a própria palavra “família”, derivada de famulus, se acha estreitamente vinculada à ideia de escravidão, e em que mesmo os filhos são apenas os membros livres do vasto corpo, inteiramente subordinado ao patriarca, os liberi. (...) Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem para sua tirania. (...) O quadro familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades. Representando, como já se notou acima, o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família, a família colonial fornecia a ideia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens.” HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 27. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2014, p. 95-96.

106 MOURA, Ricardo de; et. al. História. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1993. v. 2, p. 136.

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Os donatários e sesmeiros, em paralelo à apropriação de extensas fazendas107, no

período da República passaram a ser agraciados com títulos nobiliárquicos concedidos

durante o Império. O autor em tela arremata:

O título de coronel conferia autoridade de direito e não apenas de fato aos grandes fazendeiros, confirmando o poder da oligarquia e sua autoridade para comandar a vida política do país. Como consequência, além de controlar a economia, os latifundiários exerciam o poder político no país.

No final do século XIX e início do século XX, cerca de 70% da população vivia no

campo, na condição de extrema miséria e abandono. O espaço rural era o palco das decisões

políticas e os grandes proprietários recebiam a patente de coronel, com a prerrogativa de

obrigar o povo e os escravos a manter a ordem e a obediência. Os coronéis comandavam a

Guarda Nacional, recrutando pessoas alinhadas aos interesses do governo e das elites,

utilizando das forças policiais para a manutenção da ordem.

Num clima de insatisfação, gerado pelas circunstâncias mencionadas, a guerra de

Canudos foi acontecimento histórico de oposição à extrema pobreza a que o sertanejo estava

reduzido, principalmente os recém-libertos escravos, que se recolheram no sertão nordestino,

excluídos do acesso a terra e com reduzidas oportunidades de emprego.

Esse panorama propiciou o surgimento do líder Antônio Conselheiro, que fomentou

a esperança do povo submetido à situação de extrema pobreza. O fanatismo religioso,

associado às difíceis condições de vida motivaram o conflito civil que se estendeu de

novembro de 1896 até 5 de novembro de 1897. Ao analisar esse episódio na história

brasileira, Ricardo Moura108 relata que a população rural era acometida de doenças, do

analfabetismo e vitimada pela miséria e abandono do governo, submetida ao paternalismo dos

coronéis, prosseguia à espera do cumprimento de promessas nunca cumpridas. 107 Sobre esses primeiros tempos em que predominava o ambiente rural no Brasil, Sérgio Buarque de Holanda descreve como era a realidade vivida nos engenhos de cana-de-açúcar, que preponderavam naquela época: “Nos domínios rurais, a autoridade do proprietário de terras não sofria réplica. Tudo se fazia consoante sua vontade, muitas vezes caprichosa e despótica. O engenho constituía um organismo completo e que, tanto quanto possível, se bastava a si mesmo. Tinha capela onde se rezavam as missas. Tinha escola de primeiras letras, onde o padre mestre desasnava meninos. A alimentação diária dos moradores, e aquela com que se recebiam os hóspedes, frequentemente agasalhados, procedia das plantações, das criações, da caça, da pesca proporcionadas no próprio lugar. Também no lugar montavam-se as serrarias, de onde saíam acabados o mobiliário, os apetrechos do engenho, além da madeira para as casas...”. HOLANDA, op. cit., p. 94.

108 Idem, p. 155.

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Com o transcurso do tempo e, sem vislumbrar possibilidades de avanços, protagoniza

movimentos de rebeldia, de caráter messiânico. Numa luta desigual tais movimentos são

combatidos com violência pelo Estado, insensível ao problema social. Como exemplo, o autor

em tela traz a lume o que ocorreu em Canudos, na Bahia, de 1893 a 1897. Nesse período,

merece realce a resistência das populações sertanejas contra a opressão do latifúndio.

Conforme descrição literal do autor em comento:

Canudos refletia a miséria, o abandono e a falta de perspectiva das massas rurais, impotentes diante da seca e oprimidas pelos latifundiários. Os sertanejos (jagunços, como eram chamados), uniram-se em torno do líder messiânico Antônio Conselheiro, originando uma resistência dramática e desesperada contra a estrutura agrária do sertão. Apesar de resistirem a três ataques de forças do governo, em 5 de outubro de 1897 os habitantes de Canudos foram totalmente massacrados.

À época, reivindicações e movimentos sociais, como as greves, eram consideradas

casos de polícia, que deveriam ser tratadas com repressão armada, evidenciando o descaso do

governo frente aos problemas sociais. Nesse passo, a violência oficial foi constante para

reprimir as reivindicações sociais por melhores condições de vida e proteger os coronéis no

poder.

Com a chegada de Getúlio Vargas à Presidência da República na Revolução de 1930,

o coronelismo perdeu força, com reflexos na implementação da democracia no país. Todavia,

até os dias atuais, persiste o populismo, com a prática de supostos favores, compra de votos

em paralelo à cultura de corrupção, nepotismo e fraudes diversas.

2.3 Código Civil de 1916 e a proteção dos interesses privados

Na esteira do modelo liberal dominante na Europa, o Código Civil Brasileiro de 1916

regulou a propriedade como direito absoluto no art. 524, nos moldes do Código Napoleônico.

Para garantir a segurança nas relações interprivadas, o contrato de compra e venda cercou-se

de formalidades, como o registro imobiliário, guardando compatibilidade com o parâmetro da

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estabilidade necessária às trocas proprietárias, favorecendo o acúmulo de riquezas nas mãos

da elite econômica.

O foco da atenção do Direito concentrou-se na transferência da propriedade,

mediante a qual o contrato, respaldado no princípio da autonomia da vontade, protegia,

sobretudo, os interesses patrimonialistas da burguesia em ascensão. Tratava-se então de

autonomia, no sentido da garantia à propriedade individual.

Nesse sentido, Eduardo Takemir Kataoka109 lembra que a propriedade, no sistema

codificado, é indicador do sucesso de cada homem, através do resultado do livre jogo do

tráfego jurídico, em que o legislador supostamente opera como árbitro de regras neutras, que

exercem o mínimo de influência sobre os resultados. Ademais, trata-se de direito absoluto que

só encontra limites no intento de garantir a paz pública e a fruição dos demais proprietários. O

sistema funcionava por meio de garantias à livre concorrência. Nesse passo, a tipicidade dos

direitos reais se orientava para delimitar os bens em jogo no tráfego, libertando a terra dos

encargos feudais, o que beneficiava a burguesia, que ascendeu vitoriosa, em substituição à

nobreza, das Revoluções liberais.

Também se observava a premência de definir os atores do tráfego jurídico, mediante

aplicação das regras relativas à personalidade e à capacidade jurídicas. Trata-se do segundo

alicerce de sustentação do sistema: as titularidades e o modo de exercer os direitos derivados

da propriedade. Além disso, os negócios jurídicos eram expressões da vontade das partes no

espaço jurídico, sendo que essa vontade poderia externar-se de toda e qualquer forma, com o

fito de permitir a livre circulação dos bens.

A propriedade reflete o ideal liberal da Revolução Francesa, ao garantir poderes

exclusivos ao seu titular, que representava a maior expressão do direito privado na

modernidade.110 Teoricamente, entendia-se que qualquer pessoa é livre para ser proprietário,

independente do estrato familiar ou ocupacional.

109 KATAOKA, Eduardo Takemir. Declínio do Individualismo e Propriedade. In: Problemas de Direito Civil-Constitucional. Coord. Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 460/461.

110 De acordo com Caio Mário, “a Revolução Francesa pretendeu democratizar a propriedade, aboliu privilégios, cancelou direitos perpétuos. Desprezando a coisa móvel (vilis mobilium possessio), concentrou sua atenção na propriedade imobiliária, e o Código por ela gerado – Code Napoléon – que serviria de modelo a todo um movimento codificador no século XIX, tamanho privilégio deu ao instituto, que com razão recebeu o apelido de ‘código da propriedade’, fazendo ressaltar acima de tudo o prestígio do imóvel, fonte de riqueza e símbolo de estabilidade.” PEREIRA, op. cit., p. 61.

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Nessa linha de entendimento, os contratos se submetiam ao princípio romano pacta

sunt servanda, segundo o qual os contratos estipulavam leis entre as partes, não podendo ser

revistos e modificados pelo Judiciário, mesmo que estabelecessem prestações

desproporcionais. As novas regras incentivavam a negociação da propriedade, transferida por

meio desses contratos, cuja regulamentação privilegiava os aspectos formais em detrimento

do objeto a ser transferido.

Essa mudança de perspectiva fez com que a terra passasse a ser considerada como

bem de troca, em detrimento do uso, o que causou impactos negativos sobre as sociedades

posteriores a esse período. Sob outro ângulo de análise, não se pode ignorar que a terra não é

um bem qualquer, mas uma fonte de trabalho, alimento e moradia do ser humano.

Nesse período, fortaleceu-se o individualismo proprietário, eis que o sistema jurídico

conferiu privilégio aos interesses do indivíduo proprietário. Nessa perspectiva, o sistema

jurídico conferiu ao proprietário ampla liberdade e proteção para contratar e dispor de seus

bens. O direito de propriedade tornou-se direito subjetivo e ilimitado, por excelência. Em tal

cenário, a maioria da população, destituída do acesso à propriedade da terra, foi jogada na

exclusão pelo Código Civil de 1916.

A esse respeito, vale recordar que a codificação brasileira seguiu o modelo francês

oitocentista. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na França, de 1789, atribuiu

precedência à propriedade dentre os direitos naturais, qualificando-a como direito inviolável e

sagrado. Segundo análise de John Gilissen111, “a Declaração dos Direitos do Homem de 1789,

em seu art. 17, considera o direito de propriedade como ‘inviolável e sagrado, do qual

somente podia ser privado em caso de necessidade pública, mediante prévia e justa

indenização’.”

Na vigência do Estado Liberal, a propriedade tinha contornos conceituais abstratos e

conferia ao proprietário poderes absolutos. No cenário, vale destacar a produção de

pensadores como Rousseau e Locke, dentre outros, que fornecem a base filosófica para

estabelecimento do novo modelo de Estado Liberal.

111 GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003, p. 635.

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Rousseau112 trouxe a lume as bases filosóficas ao modelo de Estado Liberal. Em seu

entendimento, o ente estatal é fruto da opção dos homens, que abrem mão de parte da sua

liberdade para constituir uma instituição cuja finalidade é assegurar a paz necessária ao

desenvolvimento das iniciativas individuais. Guardando coerência com essa premissa,

defendia a propriedade privada e a proteção dos direitos de seu legítimo ocupante113, que ele

descreveu como sendo o primeiro ocupante. Porém, parecia preocupado com o uso racional

da propriedade114, o que se depreende da citação transcrita a seguir:

Em geral, para outorgar, sobre um terreno qualquer, o direito de primeiro ocupante, são necessárias as seguintes condições: primeiramente, que o terreno não seja ainda habitado por ninguém; em segundo lugar, que só se ocupe a quantidade de que se precisa para subsistir; em terceiro lugar, que se tome posse, não por uma vã cerimônia, mas pelo trabalho e cultura, único sinal de propriedade que, na falta de títulos legais, deve ser respeitado por outros.

Na ideologia do liberalismo, privilegia-se o Estado mínimo, que atua como árbitro,

sem interferência na esfera privada. No cenário em tela a igualdade de oportunidades

restringe-se ao plano formal, prevalecendo a visão privatista e individualista da sociedade. A

proteção à liberdade individual se sobrepõe às ações e iniciativas estatais, que não deve se

intrometer no desenvolvimento das atividades comerciais e industriais.

112 Destaca Rousseau na sua obra que “esta passagem do estado da natureza para o estado civil produz no homem uma mudança muito marcante, substituindo, em sua conduta, o instinto pela justiça, e dando-lhe às ações a moralidade que lhes faltava antes. É só então que a voz do dever, sucedendo ao impulso físico e ao direito ao apetite, faz o homem, que até então não tinha olhado senão para si mesmo, ver-se forçado a agir por outros princípios, e consultar a razão antes de escutar suas inclinações. Embora se prive, nesse estado, de várias vantagens, que lhe provêm da natureza, ele as ganha tão grandes, suas faculdades se exercem e se desenvolvem, as idéias se alargam, os sentimentos enobrecem, toda a sua alma se eleva a tal ponto que, se os abusos desta nova condição não o degradarem, muitas vezes abaixo da que saiu, deveria bendizer, sem cessar, o feliz instante que dela o arrancou para sempre, e que, de um animal estúpido e limitado, fez dele um ser inteligente e um homem. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social: Princípios do Direito Político. Coleção RT Textos Fundamentais 6. Tradução J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 35.

113 Afirma Rousseau que “o direito do primeiro ocupante, por vezes mais real que o do mais forte, não se torna um verdadeiro direito senão após o estabelecimento do de propriedade. Todo homem tem, naturalmente, direito a tudo o que lhe é necessário; mas o ato positivo que o torna proprietário de algum bem, o exclui de todo o resto. Tendo feito sua parte, deve limitar-se aí e não tem mais nenhum direito à comunidade. Eis porque o direito de primeiro ocupante, tão fraco no direito da natureza, diz respeito a todo homem civil. Respeita-se menos nesse direito o que é dos outros, do que aquilo que não é seu.” Idem, p. 37.

114 Idem, p. 37.

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John Locke115 foi um dos precursores do liberalismo: ele considerava a propriedade

privada como direito natural do homem, como se depreende do transcrito a seguir:

quer levemos em conta o direito que os homens têm, depois de nascidos, à própria preservação, como nos dita a razão natural, e portanto, ao alimento, à bebida e a tudo que a natureza oferece para a subsistência, quer consideremos a revelação, que nos enumera as concessões feitas por Deus a Adão, a Noé e seus filhos, fica patente que Deus, conforme diz o rei Davi (SL 113, 24), “deu a terra aos filhos dos homens”, concedendo-a em comum a todos os homens.

Para o pensador supramencionado, pelo trabalho, a propriedade comum transferia-se

para a seara individual, que deveria ser protegida de qualquer intromissão. O fundamento

lockiano da propriedade privada estava na iniciativa e capacidade humana de transformar a

natureza por meio do trabalho. Ele estabelece um vínculo indissociável entre a

propriedade, liberdade e trabalho. Partindo dessa premissa, a propriedade privada é oponível a

todos os demais, como deixa claro no texto transcrito a seguir116:

Embora a terra e todos os seus frutos sejam propriedade comum a todos os homens, cada homem tem uma propriedade particular em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho de seus braços e a obra das suas mãos, pode-se afirmar, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire da natureza no estado em que lho forneceu e no qual o deixou, mistura-se e superpõe-se ao próprio trabalho, acrescentando-lhe algo que pertence ao homem e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, agregou-lhe com seu trabalho um valor que o exclui do direito comum de outros homens. Uma vez que esse trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem tem direito ao que foi agregado, pelo menos quando houver bastante e também de boa qualidade em comum para os demais.

Por evidente, o fundamento do direito à propriedade privada em Locke está sediado

no trabalho e os limites desse direito estão contidos nas leis naturais, deixando transparecer

115 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Tradução Alex Marins. Col. Obra-Prima de Cada Autor. São Paulo: Martin Claret, 2011, p. 29.

116 Idem, p. 30.

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que o filósofo em comento defendia a função social da propriedade como limite ao direito de

propriedade, como sublinha no que se transcreve a seguir117:

A mesma lei da natureza que nos dá acesso à propriedade, também a limita. “Deus nos deu de tudo abundantemente” (I Tim 6.17) – é o que diz a voz da razão confirmada pela inspiração. Mas até que ponto no-lo deu? Para usufruir. Podemos fixar o tamanho da propriedade obtida pelo trabalho pelo tanto que podemos usar com vantagem para a vida e evitando que a dádiva se perca; o excedente ultrapassa a parte que nos cabe e pertence aos outros. Deus nada criou para o homem desperdiçar e destruir.

A aparente ideia socializadora da propriedade, quando ele afirma que a capacidade

de uso limita o direito de propriedade, é desmistificada posteriormente, quando ele defende

que a mesma poderá ser ilimitada, quando transformada em capital, dinheiro, metais; ou seja,

bens que não se deterioram poderiam ser acumulados ilimitadamente. Para Locke118, essa

liberdade de acúmulo deveria ser protegida pelo Estado. Tratando do assunto, Carlo Frederico

Marés119 comenta que:

Locke em sua construção teórica justifica a acumulação capitalista, reconhecendo que a propriedade pode ser legítima e ilimitada se se transforma em capital, em ouro, em prata, em dinheiro. É evidente que não poderia imaginar o resultado dessa acumulação para o século XX, nem mesmo sonharia com a revolução industrial e a violentíssima acumulação primária dos séculos XVIII e XIX, mas defendia as ideias mercantilistas de então, garantindo uma legitimidade teórica e moral para a propriedade privada, acumulável, disponível, alienável, como um direito natural.

Apesar de não considerar a propriedade o único direito natural, ele a considerava em

um patamar superior aos demais. Locke considerava a posse inserida no conceito de

propriedade, sem distinção entre ambas.

117 Idem, p. 31-32.

118 Nesse sentido, ele afirma que “tudo indica o quanto seja preferível o grande número de homens à extensão dos domínios; e que o grande mérito de um governo está no aumento das terras e no seu bom aproveitamento; e o príncipe que for tão sensato e inspirado que garanta com leis justas e sábias liberdade, proteção e estímulo à indústria honesta dos homens contra a opressão do poder e partidos tacanhos, tornar-se-á em breve um vizinho incômodo...”. Idem, p. 38.

119 MARÉS, op. cit., p. 24/25.

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Enquanto na Idade Média a propriedade foi considerada como jus utendi, ou meio de

subsistência familiar, com o surgimento do sistema capitalista, a mesma passou a ser

considerada como mercadoria. Locke desenvolveu seu conceito de propriedade de acordo

com os interesses da burguesia emergente, ávida por acumular capital. Assim, a propriedade

se transformou em mercadoria lucrativa, tratada como fim em si mesma, propiciando ao

proprietário exercer poderes exclusivos e ilimitados sobre o bem. Esse modelo proprietário foi

inserido nas Constituições Liberais como direito fundamental.

No cenário brasileiro, a primeira Constituição Republicana manteve, nos moldes da

Constituição de 1824, o direito de propriedade com os contornos de intocabilidade, mesmo

por parte do Estado120. A filosofia liberal utilizada para justificar os institutos estruturantes da

legislação civil francesa, quais sejam, a família, o contrato e a propriedade, influenciou

também o primeiro Código Civil brasileiro, que se assentou nos moldes da codificação

oitocentista.

2.3.1 A posse no Código Civil brasileiro de 1916

Situada no cenário que marcou o direito privado no século XIX, quando se

supervalorizou o direito de propriedade, no Código Civil de 1916, atribuiu-se à posse menor

significado jurídico. Conforme análise de Cristina Strazzacappa121:

Em 1916, surgiu nosso primeiro Código Civil, reafirmando a manutenção da propriedade privada. O latifúndio foi se solidificando, ao contrário do que acontecia em vários países do mundo, onde reformas agrárias eram propostas, sempre tendo por base a função social da terra.

120 Destaca Cristina Strazzacappa que “segundo alguns historiadores, houve tentativas de alguns governos estaduais de desenvolver uma agricultura familiar, doando terras a pequenos agricultores. Mas as reações por parte da classe dominante foram autoritárias e até violentas. Os latifundiários, sentindo-se ameaçados de perder suas propriedades, continuaram a se apropriar de terras, valendo-se de suas influências e do relacionamento com políticos.” STRAZZACAPPA, Cristina. A luta pelas Terras no Brasil: Das sesmarias ao MST. São Paulo: Moderna, 2006, p. 36.

121 Idem, p. 37.

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O Código Civil de 1916 não inovou em relação ao instituto possessório; em

conformidade com as teses preponderantes à época, a posse foi regulamentada no art. 485. É

interessante reiterar que duas correntes principais dedicavam-se à definição do instituto da

posse a partir do século XIX: a Teoria Subjetiva de Savigny e a Teoria Objetiva de Ihering.122

Apresentando a Teoria Subjetiva de Savigny no que se refere à posse, Manuel

Rodrigues123 elucida que para Savigny ela é a aparência física da propriedade, sendo, dessa

forma, a materialização do direito proprietário. O poder físico exercido sobre o bem, de modo

exclusivo e permanente, se traduz pelo corpus, que somado ao elemento existente na própria

vontade do possuidor, animus, que se configura na intenção exercer o direito de propriedade,

perfazem, na integralidade, o conteúdo conceitual da posse.

Como se ressaltou em momento anterior, Savigny contribuiu sobremaneira para a

compreensão do instituto da posse. Segundo análise de Washington de Barros Monteiro124:

Tanto o conceito do corpus como o do animus sofreram mutações na própria teoria subjetiva. Realmente, numa primeira fase, o corpus consistia no simples contacto físico com a coisa, no contacto direto e permanente do possuidor com a coisa possuída. Posteriormente, porém, ele passou a consistir na mera possibilidade de exercer esse contacto, tendo sempre a coisa à sua disposição.

A crítica considerada mais importante à Teoria Subjetiva de Savigny procedeu de

Ihering125, ao admitir a posse sem a presença do corpus, ou sem que exista o animus, nos

moldes estruturados por Savigny. Para Ihering, a Teoria de Savigny não justificava a posse na

locação, no usufruto, ou na superfície, por exemplo, pois o locatário, usufrutuário e

superficiário teriam o corpus, porém sem o animus de proprietário; por outro lado, o locador,

o nu proprietário e o proprietário superficiário teriam o animus de dono, mas estariam

privados do contato físico com o bem. Inexistindo um dos elementos fundamentais, corpus ou

animus, não existiria a posse.122 Ihering se contrapôs à concepção de Savigny, ao ressaltar que a posse abarca dois elementos imprescindíveis: corpus e animus. O corpus seria a apreensão material da coisa, enquanto o animus se caracterizaria pela intenção de dono.

123 RODRIGUES, Manuel. A Posse: estudo de Direito Civil Português. Coimbra: Almedina, 1996, p. 70.

124 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 3, p. 17.

125 IHERING, op.cit., p. 41.

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Para Ihering a posse deve ser entendida como comportamento de dono da coisa126; ou

seja, o possuidor comporta-se como dono, mesmo não o sendo127. O comportamento de dono

tem subjacente o animus; assim entendido, o elemento psíquico baseia-se no agir, na

exteriorização das faculdades do domínio (usar, gozar, dispor e reaver); e não na

intenção/querer ser dono.

O teor artigo 485 do Código Civil de 1916 indica que o legislador brasileiro adotou a

Teoria Objetiva de Ihering na definição do instituto possessório, ao determinar que possuidor

é todo aquele que exerce alguns dos poderes inerentes ao domínio; em outras palavras, é todo

aquele que pode usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa.

De acordo com Ihering, o possuidor comporta-se como dono da coisa; exterioriza tal

comportamento perante terceiros, independente da “intenção” de ser dono da coisa. Por isso,

em termos gerais, a posse tem como fundamento uma situação fática, de exteriorização dos

atos possessórios perante terceiros.

Numa interpretação literal da legislação civil de 1916, o legislador brasileiro

reconheceu na posse uma situação fática em detrimento de um direito, ao definir que o

possuidor é aquele que exercer “de fato” os poderes inerentes ao direito proprietário.

Inspirado no BGB que considera no § 854 ser a posse uma situação fática, o

legislador brasileiro conceituou a figura do possuidor no art. 485 do Código Civil de 1916,

nos moldes do direito alemão. Interpretando o instituto da posse previsto no Código Civil de

1916, Pontes de Miranda128 afirma que:

O que mais importa saber-se é que o direito contemporâneo (à frente, e melhor que todos os outros sistemas jurídicos, o sistema jurídico brasileiro) chegou à caracterização da posse como fato puro, como acontecimento do mundo fáctico, que sòmente penetra no mundo jurídico quando algum ato jurídico ou alguma investida na esfera de ação de outrem suscita a tutela jurídica da posse. Daí poder-se dizer que a posse entra no mundo jurídico,

126 Ihering admitia a posse sem a presença do corpus, ou sem que exista o animus, como ocorre nas hipóteses de locação, usufruto, superfície, entre outros exemplos. Para esse autor, a posse deve ser entendida como comportamento de dono da coisa; ou seja, o possuidor comporta-se como dono, mesmo não o sendo. O comportamento de dono tem subjacente o animus; assim entendido, o elemento psíquico baseia-se no agir, na exteriorização das faculdades do domínio (usar, gozar, dispor e reaver); e não na intenção/querer ser dono.

127 Ihering se contrapôs à concepção de Savigny, ao ressaltar que a posse abarca dois elementos imprescindíveis: corpus e animus. O corpus seria a apreensão material da coisa, enquanto o animus se caracterizaria pela intenção de dono.

128 MIRANDA, op. cit., p. 17.

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como fato jurídico stricto sensu, quando objeto de algum ato jurídico ou quando ofendido o status quo, indispensável à paz social. A posse, só por si, não se juridiciza; a posse não é mais do que um dos elementos do fato jurídico stricto sensu (posse + ato jurídico, ou posse + ofensa à ordem social)

É importante destacar que a Teoria Subjetiva de Savigny não foi completamente

desprezada pelo sistema jurídico brasileiro, sendo empregada, por exemplo, no instituto da

usucapião.

Contemplando o contexto sócio-político, o modelo de Estado Liberal revelou-se

ineficiente frente aos problemas existentes nos finais do século XIX e início do século XX,

em virtude do processo de industrialização inaugurado na Europa. Em função da maior

concentração da população nos centros urbanos e da exploração, das condições de vida dos

trabalhadores atuantes na produção fabril, verificaram-se intensos movimentos de protestos e,

em paralelo, a difusão das ideias socializantes. Nesse cenário, destaca-se o movimento

socialista, com a Comuna de Paris, o Anarquismo italiano, a Revolução Russa e Mexicana.

A partir do século XX, o instituto possessório foi revisitado pelas Teorias

Sociológicas da Posse, cujos principais doutrinadores são: Silvio Perozzi, na Itália; Raymond

Saleilles, na França; e Hernandez Gil, na Espanha. Desenvolvidos ao longo do século XX,

esses estudos contribuíram para a autonomia do instituto em relação à propriedade, pois

destaca o caráter econômico e a importância social da posse, ao mesmo tempo em que

defende que a propriedade também deverá cumprir função social129.

As abordagens sociológicas da posse, que serão analisadas com mais vagar na

continuidade do estudo, interpretam o instituto por meio de filtro dos valores sociais, tendo

em vista a importância socioeconômica que o possuidor realiza ao utilizar faticamente o bem.

129 De acordo com Fábio Konder Comparato, “As revoluções do final do século XVIII assentaram, com a abolição dos privilégios estamentais, a igualdade individual perante a lei. Abriu-se, com isso, uma nova divisão da sociedade, fundada não já em estamentos, mas sim em classes: os proprietários e os trabalhadores. (...) Foi justamente para corrigir e superar o individualismo próprio da civilização burguesa, fundado nas liberdades privadas e na isonomia, que o movimento socialista fez atuar, a partir do século XIX, o princípio da solidariedade como dever jurídico, ainda que inexistente no meio social a fraternidade enquanto virtude cívica. A solidariedade prende-se à idéia de responsabilidade de todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo ou grupo social. É a transposição, no plano da sociedade política, da obligatio in solidum do direito privado romano. O fundamento ético desse princípio encontra-se na ideia de justiça distributiva, entendida como a necessária compensação de bens e vantagens entre as classes sociais, com a socialização dos riscos normais da existência humana. (...) É também com fundamento na solidariedade que, em vários sistemas jurídicos contemporâneos, consagra-se o dever fundamental de dar à propriedade privada uma função social.” COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 63-65.

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2.4 Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/64) e a perspectiva do acesso à terra por meio da

reforma agrária

Conforme analisado, os conflitos relacionados à posse e propriedade da terra no

Brasil se intensificaram no início do século XX e a necessidade de reforma agrária no país era

cada vez mais urgente. No intuito de dirimir convulsão social iminente, o governo se propôs a

trabalhar na reforma agrária do país, conforme consta no art. 16 da Lei de Terras (Lei n°

4.504/64), com o objetivo de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do

trabalhador rural, e também combater o injusto sistema latifundiário sedimentado, prevenindo

a formação de minifúndios, haja vista não consistirem mecanismo ideal de aproveitamento da

terra130. Em síntese, havia uma predisposição estatal, no plano da retórica, na promoção do

princípio da função social da propriedade.

O Estatuto da Terra, promulgado em 1964131, formalmente propunha-se a promover o

controle das tensões sociais e, ao mesmo tempo, dar continuidade ao modelo proprietário

capitalista do patronato rural.

Cristina Strazzacappa132, analisando o contexto sócio-político da lei nº 4.504

esclarece que sua elaboração ocorreu em um momento de grandes conflitos sociais, com o

objetivo de conter as tensões geradas pelo processo de desapropriação de terras e

concentração de capital nas mãos dos latifundiários. Porém, conforme análise da autora

mencionada, o Estatuto deu outra direção aos propósitos da reforma, “ao incentivar a

mecanização no campo e aumentar a safra de grãos, com a prática da agricultura extensiva,

como a da soja, visando à exportação e sacrificando as pequenas culturas de arroz, feijão e

130 Como se pode constatar, as ações de redistribuição de terras no Brasil por parte do governo são decorrentes das pressões dos movimentos sociais, se transformando em ações de resolução dos conflitos, ao invés de se consolidarem como política pública permanente e estrutural para o campo brasileiro.

131 Apesar do golpe militar de 1964 ter ocorrido como uma reação às medidas tomadas pelo Presidente João Goulart que sinalizavam sua intenção em promover uma reforma agrária no país, foi justamente o primeiro governo militar que organizou a legislação indispensável para a concretização da reforma agrária. Uma das medidas mais importantes foi a Emenda Constitucional nº 10, de 09 de novembro de 1964, de iniciativa do Poder Executivo, que possibilitou a desapropriação das propriedades rurais. Posteriormente foi aprovado o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64).

132 STRAZZACAPPA, op. cit., p. 44.

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milho.” Como compreensível, as consequências foram trágicas: no período 1970-1980,

incrementou-se a migração rural, com gravíssimos reflexos para o povo pobre que vivia no

meio rural, como para a infra-estrutura urbana.

O Estatuto da Terra propôs mudanças profundas no direito de propriedade dos

imóveis rurais, condicionando seu exercício ao cumprimento da função social, conforme

consta no art. 2°, que define a funcionalização da propriedade133. Rompendo teoricamente

com o perfil patrimonialista proposto pelo Código Civil de 1916, essa legislação determinou

poderes e deveres do proprietário rural.

O mencionado diploma legal estabeleceu que a propriedade imóvel, além de atender

aos interesses do proprietário, deveria observar os interesses dos não proprietários,

respeitando o meio ambiente, os direitos dos trabalhadores, o aproveitamento econômico do

imóvel, de modo a favorecer o bem-estar de todos. Esse documento legislativo contemplou

igualmente a responsabilidade do Poder Público quanto à democratização do acesso à terra.

A proposta formal era de transformar a estrutura fundiária brasileira por meio de uma

política nacional de reforma agrária. As sanções pelo inaproveitamento da terra previstas no

art. 47 incluem as penas de tributação progressiva e desapropriação para colonização pública

e particular.

A reforma agrária parecia próxima, pois a legislação previa mecanismos eficientes

para promover a redistribuição de terras no Brasil, prometendo o desmantelamento da

estrutura latifundiária improdutiva, vigente até então. Com esse propósito, o Estatuto da Terra

criou dois órgãos: o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária – IBRA e o Instituto Nacional de

Desenvolvimento Agrário – INDA.

No art. 1°, § 1°, o documento em tela preconiza um “conjunto de medidas que visem

a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso,

a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”.

133 Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei. § 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente: a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem. (grifo nosso)

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Sem atingir o objetivo principal de concretizar a reforma agrária, o Estatuto da Terra,

ao invés de promover o justo acesso à terra e a sua função social, contribuiu para o

desenvolvimento do capitalismo no campo, por meio da modernização dos latifúndios,

mediante crédito rural subsidiado pelo governo e incentivos fiscais.

A implantação da tecnologia no meio rural acarretou o desemprego de trabalhadores,

os quais, sem condições de sobrevivência, deslocaram-se para as periferias das cidades,

formando grandes aglomerados que até hoje habitam ambientes destituídos dos direitos

sociais essenciais. Com esse processo, os problemas fundiários que se concentravam na zona

rural foram transferidos para as cidades.

Atualmente, a atualização do Estatuto da Terra é objeto de projeto de lei (PL 7038-

A) de autoria do ex-senador Osmar Dias (PR), que tramita desde 2010 na Câmara dos

Deputados.

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3 PROTEÇÃO POSSESSÓRIA E A FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE

PROPRIEDADE NO SÉCULO XX

3.1 Construção do novo paradigma da função da propriedade

O compromisso com valores sociais começou a fazer parte dos textos constitucionais

no decorrer do século XX; todavia, a função social da propriedade é conceito antigo, já

presente nas obras134 de Aristóteles135, que, ao descrever a forma de disposição da propriedade,

afirmava que:

... embora cada homem possua seus próprios bens, ele põe algumas coisas à disposição dos amigos, e também faz uso de alguns bens destes, como se fossem bens comuns. Os laceudemônios, por exemplo, usam os escravos, cavalos e cachorros uns dos outros, como se fossem seus proprietários; e quando lhes faltam provisões quando estão em uma viagem, eles se apropriam do que encontram nos campos. Portanto, é evidente que é melhor que a propriedade seja particular, mas que o uso seja comum; e é uma tarefa específica do legislador produzir nos cidadãos essa disposição benevolente.

Na contemporaneidade, sob influência de diversos fatores, verificou-se a

preocupação com superar o dogmático individualismo proprietário, para transformá-lo numa

noção de propriedade que também atendesse aos interesses da sociedade. Entre outros

elementos de ordem sócio-cultural para essa transformação, pode-se destacar: o catolicismo

social; a doutrina sociológica da propriedade, defendida por pensadores como Leon Duguit; e

as teses socializantes do marxismo136.

O ideário socialista, na vertente marxista, foi a primeira grande crítica ideológica à

propriedade burguesa e suas funções, na concepção do liberalismo econômico. O ideário do

134 Aristóteles afirmou também, em outra passagem, que: “... tem-se como característica do homem prudente ser ele capaz de bem deliberar sobre o que é bom e proveitoso para si mesmo, não num ramo em particular – por exemplo, o que é bom para sua saúde ou vigor – mas o que é vantajoso ou útil como recurso para o bem-estar em geral”. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2002, p.167-168.

135 Idem. Política. Tradução de Pedro Constantin Tolens. Coleção A Obra-Prima de Cada Autor. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 85.

136 TORRES, op. cit., p. 162-171.

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socialismo desenvolveu-se na Europa, em meados do século XIX, quando vieram a lume

vigorosas críticas à estrutura e funcionamento da propriedade privada e aos reflexos do

sistema capitalista na vida das pessoas.

Karl Marx é o representante maior desse ideário, que sobrevalorizava a liberdade de

iniciativa e, portanto, de apropriação dos resultados dos empreendimentos econômicos, em

detrimento das relações sociais e pessoais, transformando o operário em peça de trabalho. Nas

palavras de Boaventura de Souza Santos137, “um dos maiores méritos de Marx foi o de tentar

articular uma análise exigente da sociedade capitalista com a construção de uma vontade

política radical de a transformar e superar numa sociedade mais livre, mais igual, mais justa e

afinal mais humana.”

Os socialistas expõem sérias críticas à supremacia do capital sobre o trabalho138, que

resulta na distribuição desigual da riqueza e relega os trabalhadores (proletários) à pobreza e à

marginalização social.

Em obra conjunta – O Manifesto Comunista – Marx e Engels apresentaram o que

consideravam o conflito social fundamental: o antagonismo entre a burguesia e o

proletariado139. Nesse contexto, o Estado é apresentado como defensor dos interesses da

burguesia, sem qualquer autonomia em relação à classe dominante140.

Nessa perspectiva de análise, o desfecho da luta entre classes seria a revolução do

proletariado, cujo ponto culminante seria o fim da burguesia, o encerramento da organização

da sociedade em classes, a abolição da propriedade privada, causa principal da exploração dos

homens pelos capitalistas141. Conforme lição de Leo Huberman142, Marx e Engels

alimentavam a utopia de que, em algum momento da história, as forças sociais de produção

não mais poderiam ser reprimidas pelos limites decorrentes da apropriação individual da

propriedade privada pelos capitalistas. Como consequência, construir-se-ia “uma nova e 137 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão e Alice: o social e o politico na pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 42.

138 GONDINHO, op. cit., p. 401.

139 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. Tradução de Maria Lucia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013, p. 10.

140 Idem, p. 13.

141 Idem, p. 26.

142 HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Tradução de Waltensir Dutra; atualização e revisão técnica de Márcia Guerra. 22. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2014, p. 182.

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harmoniosa sociedade, na qual a propriedade e o controle dos meios de produção seriam

transferidos das mãos de uns poucos capitalistas apropriadores para os muitos produtores

proletários.” Analisando a propriedade privada, Marx e Engels143 advertem que:

Vocês estão horrorizados com a nossa intenção de acabar com a propriedade privada. Mas, na sua sociedade, a propriedade privada já acabou para nove décimos da população. A sua existência para os poucos deve-se simplesmente à sua não-existência para estes nove décimos. Vocês nos condenam, portanto, pela intenção de acabar com uma forma de propriedade, a condição necessária para aqueles cuja existência é a não-existência de qualquer propriedade para a maioria imensa da sociedade. Em resumo, você condena a nossa intenção de acabar com a sua propriedade. Precisamente isso. É essa, exatamente, a nossa intenção.

Os capitalistas modernos (burguesia) eram designados por Engels como parasitas

sociais, pois transformaram a terra em mercadoria; produto de lucro e não mais o local de

moradia e subsistência. Numa análise histórica da propriedade privada, Engels144 denunciou

que:

Além da riqueza em mercadorias e escravos, além da riqueza em dinheiro, surgia agora também a riqueza em terras. O direito de posse de cada um sobre as parcelas de terreno que lhe haviam sido transmitidas originalmente pela gens ou pela tribo, agora se havia de tal forma consolidado que essas parcelas de terra lhe pertenciam por herança. O que, nos últimos tempos, eles exigiam acima de tudo era ficarem livres dos direitos que as comunidades gentílicas tinham sobre essas parcelas, direitos que para eles se haviam transformado em entrave. (...) A propriedade livre e plena do solo não significava apenas a possibilidade de possuir o solo sem limites e sem restrições, mas também a faculdade de aliená-lo. (...) O que isso significava ficou-lhe bem claro por meio do dinheiro, inventado ao mesmo tempo que a propriedade privada da terra. A terra podia agora tornar-se mercadoria, ser vendida ou penhorada. Logo que se introduziu a propriedade privada da terra, criou-se a hipoteca.

Como exposto, o marxismo formulou importante crítica ao sistema de propriedade

privada, estabelecido no intento de atender aos interesses da burguesia, advindos da filosofia

143 MARX, op. cit., p. 36.

144 ENGELS, Frederich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Ciro Mioranza. São Paulo: Lafonte, 2012, p. 157-158.

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liberal que transformou a propriedade em direito individual e excludente. O pensamento

marxista influenciou o ideário alusivo à estrutura da sociedade no decorrer do século XX.

Somando-se à crítica do marxismo e do socialismo de forma geral, a Igreja Católica

também contribuiu para a reflexão e revisão do conteúdo do direito de propriedade por meio

da edição das encíclicas papais, na segunda metade do século XX, mediante a formação da

Comissão Pastoral da Terra (CPT), no Brasil.

Referindo-se à contribuição da CPT, Ulbado Silveira145 recorda que a atuação da

Igreja em relação à reforma agrária teve início na década de 1960, no contexto das lutas pelas

reformas de base. Até então, a atividade pastoral da Igreja privilegiava a dimensão religiosa,

sem abordar a problemática social.

A pastoral rural foi inaugurada sob liderança do bispo de Campanha (MG), Dom

Inocêncio, com tendência reacionária. Em 10 de setembro de 1950, a Igreja através deste

prelado realizou sua primeira atividade sobre a situação no campo, oportunidade em que

congregou fazendeiros, padres e professores rurais. A motivação do encontro era conter a

“agitação que estava chegando ao campo”, trazendo consigo o risco de que trabalhadores

rurais se afastassem do catolicismo, como ocorrera com os operários urbanos.

Diante dessa ameaça, entenderam oportuno “desproletarizar o operário dos campos,

evitar o êxodo que levava os trabalhadores para a cidade e os tornava vulneráveis à agitação e

ao aliciamento dos comunistas”, como registraram em documentos produzidos por outros

membros do episcopado.

Todavia, a Igreja mudou radicalmente sua posição com a criação da CPT, assumindo

o compromisso de “empenhar no processo global de reforma agrária do nosso País, dando

cumprimento ao espírito e à letra o Estatuto da Terra”. Dessa foram, revelou-se nova

fisionomia de um segmento da Igreja no meio rural. A comissão teria por finalidade

“interligar, assessorar e dinamizar os que trabalham em favor dos homens sem terra e dos

trabalhadores rurais”.

Por meio da Doutrina Social, que congrega ensinamentos doutrinários veiculados

com o objetivo de estabelecer os princípios e diretrizes do catolicismo em relação à

145 SILVEIRA, Ubaldo. Reforma Agrária: A esperança dos ‘sem-terra’. Franca: UNESP-FHDSS, 2003, p. 85-86.

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organização social e à política desenvolvida pelas nações, alguns segmentos do catolicismo

assumiram papel relevante na defesa da função mais solidária do direito de propriedade.

Orientada pelas encíclicas, a Doutrina Social contribuiu na difusão da ideia de

socialização da propriedade. Nesse ponto, merecem relevo: a Rerum Novarum146, de Leão

XIII, que defendia a propriedade privada, mas condenava a falta de justiça social decorrente

da má distribuição de riqueza, sendo a favor da intervenção do Estado na economia na defesa

dos mais pobres; e a Mater et magistra, de João XXIII, que denunciava a desigualdade

econômica e defendia maior solidariedade entre os povos. No tocante à propriedade

imobiliária, o Papa João Paulo II, na Encíclica Sollicitudo rei socialis, de 1988, fez referencia

a uma espécie de “hipoteca social” que deveria pesar sobre cada propriedade.

No campo doutrinário, a ideia de função social da propriedade tomou vulto com a

obra de Leon Duguit147, que contestava a natureza de direito subjetivo da propriedade,

identificando uma função social a ser exercida por seu titular. Segundo palavras textuais do

autor citado:

Advertirei com o exposto, a fundação da nova concepção de propriedade. Nas sociedades modernas, em que veio a prevalecer a consciência clara e profunda da interdependência social, assim como a liberdade é o dever do indivíduo de utilizar sua atividade física, intelectual e moral no desenvolvimento dessa interdependência, assim a propriedade é para todo possuidor de uma riqueza um dever, a obrigação de orden objetiva, de empregar a riqueza que possui para manter e aumentar a interdependência social (…) A propriedade não é, pois, o direito subjetivo do proprietário, é a função social do detentor da riqueza.148 (tradução livre)

146 Carlos Frederico Marés ressalta que “depois de Santo Tomás, no século XIII, até o século XIX, há um silêncio da Igreja sobre o tema, o que significou abençoar a propriedade feudal e logo depois a mercantil, dela cobrando dízimos e indulgências, sem críticas ou anátemas. Com a tomada de poder pela burguesia e a constituição dos Estados Nacionais, a Igreja católica passou a defender oficialmente a propriedade privada, abençoando, então, disposições como a da Constituição Portuguesa. Mesmo quando a Igreja Católica começou a construir uma posição crítica ao liberalismo, com a Encíclica Rerum Novarum (1891), o fez em defesa da propriedade privada contra o socialismo que propunha a sua abolição. Muito recentemente a Igreja, oficialmente, passou a ter posição mais contundente em relação à propriedade da terra, especialmente quando o Papa João Paulo II, em 1979, no discurso inaugural do Seminário palafoxiano de Puebla de lós Angeles, México disse: ‘sobre toda propriedade pesa uma hipoteca social’...”. MARÉS, op. cit., p. 22.

147 DUGUIT, Leon. Las Transformaciones generales del Derecho Privado desde el Código de Napoleón. Traducción de Carlos G. Posada. 2ª ed. Madrid: Francisco Beltran, 1920, p. 177-178.

148 “Advertirés con lo expuesto el fundamento de la nueva concepción de la propiedad. En las sociedades modernas, en las cuales ha llegado a imperar la conciencia clara y profunda de la interdependencia social, así como la libertad es el deber para el individuo de emplear su actividad física, intectual y moral en el desenvolvimiento de esta interdependencia, así la propiedad es para todo poseedor de una riqueza el deber, la obligación de orden objetivo, de emplear la riqueza que posee en mantener y aumentar la interdependencia

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A mobilização da massa proletária, reivindicando melhores condições de vida e de

trabalho, fez emergir a discussão em torno das questões sociais e a luta pela revisão da ordem

capitalista. O Estado passou a ser pressionado a intervir contra a exploração desenfreada

sobre a classe trabalhadora e pobre, abandonando a postura de mero árbitro dos conflitos

sociais. Defendia-se a intervenção estatal no sentido protecionista, assumindo o Estado, no

plano da retórica, posição a favor dos excluídos do sistema capitalista, no intuito de

humanizar as relações interclassistas.

A preocupação com as questões sociais delineou as características do Estado de

Bem-estar Social, cujo foco recaiu em direitos como: educação, cultura, saúde pública,

previdência, relações trabalhistas, entre outros. Assim concebido, o Estado assume a função

de organizar a política e a economia, no intuito de promover a defesa social.

No plano teórico, portanto, o Estado Social149 intervém na ordem econômica e social

para promover a igualdade material entre os membros da sociedade. Essas prestações estatais

passam a ser reconhecidas como direitos dos cidadãos.

Dedicando-se ao tema, Paulo Bonavides150 elucida que a origem do Estado social

radica no ideal de justiça, igualdade e liberdade. Com essa orientação, trata-se da “criação

mais sugestiva do século constitucional, o princípio governativo mais rico em gestação no

universo político do Ocidente.” Ao mesmo tempo em que lançou mão de meios

intervencionistas para estabelecer o equilíbrio na repartição dos bens sociais, estabeleceu um

regime de garantias concretas e objetivas, coerentes com “a concepção democrática de poder

vinculada primacialmente com a função e fruição dos direitos fundamentais, concebidos

doravante em dimensão por inteiro distinta daquela peculiar ao feroz individualismo das teses

liberais e subjetivistas do passado.”

social. (...) La propiedad no es, pues, el derecho subjetivo del propietario; es la función social del tenedor de la riqueza.”

149 Bonavides destaca em sua obra que “esse contraste que assim estabelecemos nos permite escapar ao erro usual de muitos que confundem o Estado social com o Estado socialista, ou com uma socialização necessariamente esquerdista, da qual venha a ser o prenúncio, o momento preparatório, a transição iminente. Nada disto. O Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletário, que o socialismo marxista intenta implantar: é que ele conserva sua adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que não renuncia.” BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 11. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, p. 183-184.

150 Idem, p. 12.

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Para que o direito de propriedade assumisse feição mais solidária, era necessária a

tutela estatal. Como afirma Thomas Hobbes151, por natureza, o homem é lobo do homem.

Com base no dever de solidariedade, fortaleceu-se o ideário da função social da propriedade

privada, primeiro passo no sentido de valorização do instituto da posse no século XX, haja

vista que a necessidade de funcionalização representa estar na posse efetiva do bem.

Como se demonstrará na continuidade da pesquisa, a funcionalização social da

propriedade também desfruta de lugar destacado nos textos constitucionais brasileiros, a

começar pela Constituição de 1934, a primeira a mencionar expressamente a necessidade da

funcionalização social da terra.

3.2 Função social da propriedade nas Constituições brasileiras de 1934 a 1967/1969

A partir da segunda metade do século XIX, ganharam terreno as teses que

preconizam a solidariedade social. A esse respeito, é pertinente sublinhar que a ideologia que

deu fundamento às revoluções liberais do século XVIII perde força diante da insurgência dos

movimentos sociais organizados para denunciar os prejuízos sociais advindos da política

promovida pelo Estado Liberal.

Em decorrência dos graves problemas sociais paralelos ao advento da Revolução

Industrial e à insurgência dos trabalhadores, são reconhecidos os Direitos Humanos de 2ª

dimensão, também denominados direitos sociais. De natureza reivindicatória, diferente dos

direitos liberais (de 1ª dimensão), os direitos sociais exigiam prestação positiva do Estado, no

sentido de comportamento ativo de proteção social.

Nesse cenário, foram elaboradas as constituições sociais, sendo a Constituição

Mexicana (1917) e a Constituição de Weimar (1919) as precursoras do novo formato

constitucional e pioneiras na regulação da função social da propriedade. Sua influência

151 Segundo Thomas Hobbes, “... se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para o seu fim (que é principalmente a sua própria conservação, e às vezes apenas o seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro. E disto se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único outro homem, se alguém planta, semeia, constrói, ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para o desapossar e privar, não apenas do fruto do seu trabalho, mas também da sua vida e da sua liberdade. E por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros". HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de Heloísa da Graça Burati. Coleção Biblioteca Clássica. São Paulo: Rideel, 2005, p. 75.

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repercutiu nos diversos ordenamentos. O constitucionalismo social foi de grande relevância

para a implantação e consolidação dos direitos sociais. De acordo com Marcelo Novelino152:

A declaração dos direitos sociais por meio das diversas Constituições se fortaleceu a partir do século XX, com a segunda geração de direitos fundamentais, ligados à igualdade material. O atendimento aos direitos sociais exige prestações positivas dos poderes públicos, razão pela qual são denominados direitos de promoção ou direitos prestacionais. A implementação desses direitos é feita mediante políticas públicas concretizadoras de determinadas prerrogativas individuais e/ou coletivas, destinadas a reduzir as desigualdades sociais existentes e a garantir uma existência humana digna. Os principais destinatários da proteção conferida por esses direitos são os hipossuficientes e os mais fragilizados.

Desde o reconhecimento dos direitos de 2ª dimensão, o homem não procura mais se

defender do Estado; ao contrário, vai ao seu encontro em busca de proteção e cumprimento do

dever de justiça social. Essa vertente encontra respaldo em Joaquim de Sousa Ribeiro153:

Nesta óptica, o Estado deixa de ser encarado como o potencial inimigo dos direitos individuais, surgindo antes como seu garante, a quem cabe tomar providências em todos os planos e em todas as direcções, para a sua salvaguarda na vivência social.

No início do século XX, o Estado brasileiro defrontou-se com o problema dos não-

proprietários, ao mesmo tempo em que a sociedade é instada a promover a solidariedade

social. Nesse contexto, a retórica do Direito volta sua atenção para a recuperação dos

excluídos, os marginalizados pelo sistema capitalista, aqueles cuja liberdade e igualdade

nunca se efetivaram.

No Brasil, a Constituição de 1934 reconheceu os direitos sociais, inaugurando a

possibilidade de construção de um Estado de Bem Estar Social. Com essa configuração, a Lei

Maior consagrou o direito à melhoria das condições de vida para a maioria dos brasileiros, em

substituição ao antigo sistema de privilégios sociais e econômicos da elite rural do país.

152 NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2009, p. 481.

153 RIBEIRO, Joaquim de Sousa. Constitucionalização do direito civil. In: Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra, v. LXXIV, p. 729-755, 1998, p. 742.

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Essa Carta constitucional, comprometida com a justiça social, inaugura a exigência

de que a propriedade privada ultrapasse a dogmática construída pela codificação francesa, que

a considerava como direito individual, para atender também aos interesses sociais.

Inspirada na Constituição de Alemã de Weimar (1919), no art. 113, parágrafo 17,

determinava que o direito de propriedade deverá ser exercido em conformidade com o

interesse social e coletivo. Como ressaltou Cristina Strazzacappa154, “foi o primeiro e tímido

arremedo de valorização social da terra, infelizmente omitido na Constituição seguinte.”

A Constituição de 1934 centrou a atenção nas questões sociais, representando, por

isso, inovação em relação aos textos constitucionais anteriores. Em posição propedêutica,

estabeleceu que o direito à propriedade não poderia ser exercido contra o interesse social ou

coletivo. Pelo texto do documento constitucional em tela, a propriedade privada poderia

submeter-se à desapropriação, não somente por necessidade e utilidade pública, mas também

por exigência do bem público.155

Porém, o texto constitucional condicionou a eficácia do art. 113 à regulamentação de

lei complementar, jamais editada. Por oportuno, destaca-se que apesar de a função social da

propriedade estar inserida na ordem constitucional desde a década de 1930, continuou a

predominar no Brasil a concepção individualista e patrimonialista da propriedade, nos moldes

definidos no Código Civil de 1916.

A Carta Magna, outorgada em 10 de novembro de 1937, resguardou o direito de

propriedade no seu art. 122, n. 14, assegurando que o conteúdo e os limites desse direito

deveriam ser estabelecidos por lei que regulasse o seu exercício.156 Não obstante reconhecer o 154 STRAZZACAPPA, op. cit., p. 37.

155 Constituição do Brasil de 1934 (promulgada em 16 de julho de 1934) – Art 113: “A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á subsistência, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: (...) n. 17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou collectivo, na fórma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indemnização. Em caso de perigo imminente, como guerra ou commoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito a indemnização ulterior”.

156 Constituição do Brasil de 1937 (promulgada em 10 de novembro de 1937) – Art. 122: “A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...) 14 – (alterado pela nova redação dada pela Lei Constitucional n° 5 de 10/03/1942 – D.O.U. 10/03/1942) “O direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia ou a hipótese prevista no §2° do art. 166. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício”. Art. 166, §2°: “Declarado o estado de emergência em todo o país, poderá o Presidente da República, no intuito de salvaguardar os interesses materiais e morais do Estado ou de seus nacionais, decretar, com prévia aquiescência, do Poder Legislativo, a suspensão das garantias

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caráter não absoluto do direito de propriedade, a Carta de 1937 retroagiu em relação à

anterior, ao excluir do texto o interesse social e coletivo como atributo da propriedade157.

Por sua vez, as terríveis consequências das guerras mundiais tiveram grande

repercussão na ordem social e jurídica, despertando a consciência do homem para a

importância do respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.

Alicerçada no contexto sócio-político de resgate à democracia e influenciada pelo

movimento de valorização do ser humano emergente do pós guerra, a Constituição de 1946

modificou substancialmente a previsão normativa da propriedade no ordenamento jurídico

brasileiro. Além de colocá-la no elenco dos direitos e garantias fundamentais (art. 141, § 16),

inseriu-a também no Título destinado à Ordem Econômica (art. 147), condicionando o

exercício do direito de propriedade ao bem-estar social.158

As primeiras propostas de reforma agrária se fizeram presentes na Constituição de

1946, que previa a desapropriação de terras para a realização de reforma agrária, mediante

indenização a ser paga em dinheiro. O uso da terra voltou a vincular-se ao bem estar social 159.

Porém, a burocracia para a realização das desapropriações, somada à alegada falta de recursos

constitucionais atribuídas à propriedade ...”

157 De acordo com a análise de Cristina Strazzacappa, a Constituição de 1937 “omitiu propositadamente o que havia de inovador na Constituição anterior. Essa omissão mostrou a verdadeira face do presidente, que ficou conhecido como um símbolo trabalhista (por causa da criação da Consolidação das Leis do Trabalho, legislação que trouxe certos benefícios somente a trabalhadores da indústria e do comércio), mas que pouco ou nada fez em favor dos trabalhadores da terra. Há quem justifique essa omissão pelo fato de ele ter governado o país numa época de transição econômica. O Brasil, por longo tempo, foi um país essencialmente agrícola e recebeu muito dinheiro dos países estrangeiros com a venda de açúcar, café e borracha. Entretanto, essas exportações começaram a mostrar sinais de queda. A do açúcar foi causada pelo aumento do consumo do açúcar de beterraba na Europa. Fora isso, os países europeus começaram a comprar açúcar de Cuba. A queda nas exportações de café e borracha ocorreu em razão da concorrência da África e da Ásia, que ofereciam os mesmos produtos a preços menores.” STRAZZACAPPA, op. cit., p. 37.

158 Constituição dos Estados Unidos do Brasil – 1946 (promulgada a 18 de setembro de 1946) – Art. 141: “A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade nos termos seguintes: (...) § 16 (Já alterado pela Emenda Constitucional n° 10 de 09/11/1964) – É garantido o direito de propriedade, salvo no caso de desapropriação por necessidade ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, com a exceção no §1° do art. 147. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a indenização ulterior.” Art. 147: “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.”

159 STRAZZACAPPA, op. cit., p. 38.

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para as devidas indenizações, tornou ineficaz a previsão constitucional, ocasionando reduzido

número de desapropriações no período compreendido entre as décadas de 1940 e 1950160.

Apesar de tímidas, em decorrência da pressão social, as iniciativas de reforma agrária

no país intensificaram-se a partir da Constituição de 1946, revigorando o movimento de luta

pelo acesso à terra.

Ubaldo Silveira161 é elucidativo, ao comentar que, nos anos 1940, teve início etapa

marcante na luta dos trabalhadores do campo pela terra. Com o fim da ditadura Vargas, os

movimentos populares conquistaram espaço, amadureceram e desenvolveram a consciência

dos interesses da classe. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) dando suporte às

reivindicações trabalhistas, fundou as ligas camponesas, que perderam vigor com a decretação

da ilegalidade do partido, em 1947.

Não obstante a adversidade, verificou-se intensificação da organização dos

trabalhadores rurais nas diferentes regiões brasileiras, sobretudo no Nordeste. Revigoraram-se

as ligas camponesas e, com liderança do deputado Francisco Julião, veio ao debate a condição

de escravos a que os trabalhadores rurais estavam submetidos. Com tal amadurecimento, as

ligas, bem como os trabalhadores rurais de várias regiões do Brasil, passaram a enfrentar a

dominação econômica e política dos proprietários sobre os camponeses e se organizaram em

torno da tese da implantação da reforma agrária.

Em decorrência da forte pressão social dar efetividade ao comando constitucional

referente à propriedade e função da propriedade, o Estado brasileiro criou alguns órgãos

governamentais, tais como: “Banco Nacional de Crédito Cooperativo, Comissão Nacional de

Política Agrária, Companhia Nacional de Seguro Agrícola, Conselho Nacional de

Administração de Empréstimos Rurais, Instituto Nacional de Imigração e Colonização”162,

160 Idem, p. 38.

161 SILVEIRA, op. cit., p. 19.

162 Idem, p. 20-21.

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entre outras organizações163 que igualmente contribuíram para o avanço dos debates no

tocante à reforma agrária no país.

Durante o governo de João Goulart, revisou-se o artigo 147 da Constituição de 1946,

ao mesmo tempo em que se promulgou o Decreto nº 4.132/62, definindo os casos de

desapropriação por interesse social. Em março de 1963, instituiu-se o Estatuto do Trabalhador

Rural, Lei nº 4.214/62, que, protegendo o lavrador, fomentava a reforma agrária.

Porém, as propostas de reformas de base encontraram forte oposição de proprietários

de terra e de lideranças da classe média, e em contrapartida às pretensões da esquerda,164 a

população foi submetida ao Golpe Militar de 1964, que representou ruptura democrática e

retrocesso no tocante à reforma agrária165. Apesar disso, data do período a promulgação do

Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64).

163 Ubaldo Silveira expõe em sua obra que “Com o nascimento da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB) e o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER), na década de 1950 e princípios de 1960, o clima político para a mobilização rural se tornou mais propício. Com isso evidencia-se um fato novo no meio rural, a ponto dessas organizações e várias outras mobilizadas em diversos estados brasileiros se reunirem em Punta del Este, Uruguai, em 1960, a fim de analisar a questão agrária e traçar algumas diretrizes. Os componentes dessa reunião comprometeram-se a realizar extenso programa de reforma agrária incluindo o latifúndio, o minifúndio e a terra mantida sem uso ou improdutiva. (...) Outro fato que contribuiu para as discussões avançarem sobre a reforma agrária foi o I Congresso Nacional dos Trabalhadores Agrícolas e Lavradores realizado em Belo Horizonte (MG), novembro de 1961.” Idem, p. 21-22.

164 Destaca Ubaldo Silveira que “... no Brasil, o que veio caracterizar o governo de João Goulart foi a discussão de um conjunto de medidas consideradas necessárias, pelas esquerdas e pelos progressistas, para superar o atraso histórico, sair da crise global em que a nação estava mergulhada, integrar as populações marginalizadas na vida nacional e encaminhar o País rumo ao desenvolvimento. Esse conjunto de medidas recebeu o rótulo de “Reformas de Base”, a saber: Reforma Agrária, Reforma Urbana, Reforma da Empresa, Reforma Eleitoral, Reforma Administrativa, Reforma Fiscal Tributária, Reforma Bancária, Reforma Cambial, Reforma Educacional e Reforma da Consciência Nacional. De todas as reformas, a mais polêmica foi a Reforma Agrária, que polarizava a maioria dos debates, em todas as esferas. A questão central de sua proposta era o questionamento do direito da propriedade privada dos maios de produção. Na mesma direção estavam a Reforma Urbana e a Reforma da Empresa, que colocavam em xeque a propriedade privada. Enfatizava-se a função social da propriedade.” Idem, p.28.

165 Afirma Ubaldo Silveira que “no Brasil, a terra sempre foi e continua sendo o grande símbolo de poder. Deter tal monopólio significa, antes de tudo, dominar e dispor da força de trabalho no meio rural. É neste sentido que, mesmo antes de 1964, os militares e seus aliados mantiveram significativa atuação no campo. Com a tomada do poder político pelos militares, o Estado passou não só a representar, mas também a defender os interesses da classe dominante. Os movimentos sociais, as organizações das classes populares e as entidades defensoras de propostas de reformas de base para o País foram silenciados através da censura, da repressão, da tortura e do aniquilamento de várias lideranças. Na época, o Estado passou a ser apresentado, não como aparelho de dominação, mas como organismo neutro e, por isso capaz de reger as relações entre proprietários e trabalhadores, a fim de encobrir seu autoritarismo.” Idem, p.32.

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O texto constitucional de 1967166 disciplinou o direito de propriedade, tanto no

Capítulo destinado aos Direitos e Garantias Fundamentais (art. 150, §22), quanto no Título

destinado à Ordem Econômica e Social (Título III, art. 157, III). A Constituição de 1967 foi a

primeira Carta brasileira a utilizar o termo função social da propriedade.

A Emenda Constitucional n. 1/69 manteve o prescrito na Constituição de 1967

quanto à realização do desenvolvimento nacional e da justiça social pela ordem econômica e

social, embasando-se em princípios taxativamente elencados, incluindo o princípio da função

social da propriedade (Título III, art. 160, III).167

3.3 Os princípios como condição de possibilidade à Função Social da Propriedade168

Para conquistar o status de norma jurídica e, principalmente, de norma

constitucional, o conceito de princípios percorreu longa trajetória, a começar pela superação

da visão jusnaturalista, que os considerava na perspectiva da justiça universal, caracterizada

pela generalidade, abstratividade e imutabilidade. Em sequência, os princípios ultrapassaram

a perspectiva do dogmatismo positivista, que os caracterizava genericamente, considerados

como normas jurídicas válidas, embora desprovidas de eficácia.

166 Em síntese, a inefetividade do princípio da função social da propriedade durante o período militar é abordada na obra de Ubaldo Silveira, afirmando o autor que “na gestão dos governos militares, os órgãos encarregados de administrar a questão fundiária não corresponderam aos anseios dos trabalhadores rurais. A questão agrária não foi contemplada entre as suas prioridades de ação. Todavia concentraram esforços no sentido de dar prosseguimento à modernização dolorosa da agricultura brasileira. Em resumo, durante esse período, o Estado se envolveu na questão fundiária, na tentativa de administrar o conflito existente na área rural, sem promover a reforma agrária. Mas o período foi marcado pela penetração do capitalismo no campo e conseqüentemente não só o grande êxodo rural como a expropriação e a violência no meio rural.” Idem, p. 44.

167 Constituição da República Federativa do Brasil – 1967/1969 (Emenda Constitucional n° 1 de 17 de outubro de 1969) Art. 153: “A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade nos termos seguintes: (...) §22 – “É assegurado o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, ressalvado o disposto no art. 161, facultando-se ao expropriado aceitar o pagamento em título da dívida pública, com cláusula de exata correção monetária. Em caso de perigo público iminente, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior.” Art. 160: “A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: (...) III – Função social da propriedade ...”

168 O conteúdo desta parte da pesquisa resulta de atualização do exposto na Dissertação de Mestrado em Direito Público apresentada pela autora desta Tese e aprovada por banca examinadora em 22/11/2007. DUARTE, Polyana Vidal. Funcionalização principiológica da propriedade e a perspectiva superficiária no Brasil contemporâneo. 2007. 114 f. Dissertação (conclusão do curso de Mestrado) – Universidade Estácio de Sá (UNESA), Rio de Janeiro, 2007.

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O reconhecimento dos princípios como norma jurídica ocorreu gradualmente, não

sem que houvesse controvérsias doutrinárias. Parte dos estudiosos defendia que a norma tinha

significado distinto dos princípios, situando-se hierarquicamente sobreposta a eles.

Atualmente, a doutrina, por unanimidade aceitar a normatividade dos princípios, segundo o

pressuposto de que a norma é o gênero, do qual os princípios e as regras são espécies169.

A seguir, descreve-se brevemente a trajetória de principais pensadores que se

dedicaram ao estudo do tema, a começar pelo tratamento conferido aos princípios na fase

jusnaturalista; em continuidade, sob a óptica positivista, para, em seguida, chegar ao momento

atual em que se atribui relevo aos estudos relativos à teoria principiológica.

3.3.1 Princípios são ideais de justiça no Direito Natural

No século XVI, inaugurou-se a moderna concepção do direito natural, cuja principal

influência foi o intuito de superar a conotação religiosa, hegemônica durante a Idade Média.

Na época, sob os pressupostos da cultura laica do direito natural conferiu-se relevo à natureza

e à razão humana, em detrimento dos ideais cristãos, que vinculavam o direito natural aos

dogmas e à vontade divina.

No jusnaturalismo moderno, o indivíduo, definido como ser racional, que buscava a

justiça por meio da razão, foi considerado como a base do direito. A partir dessa premissa, o

direito natural moderno distingue-se do direito natural clássico por sua antropologia.170

Conforme interpretação de Hespanha171, os pensadores jusnaturalistas orientavam-se

segundo a crença “no poder da razão individual para descobrir as regras do justo, de um justo

169 Segundo Luís Roberto Barroso, “a novidade das últimas décadas não está, propriamente, na existência de princípios e no seu eventual reconhecimento pela ordem jurídica. Os princípios, vindos dos textos religiosos, filosóficos ou jusnaturalistas, de longa data permeiam a realidade e o imaginário do Direito, de forma direta ou indireta. (...) O que há de singular na dogmática jurídica da quadra histórica atual é o reconhecimento da sua normatividade.” BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro. In: ______ (Org.). A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 28-29.

170 Sobre esta transição, José Reinaldo de Lima Lopes relata que “há uma nova antropologia em gestão: opondo-se ao homem animal político da tradição aristotélica, e ao conceito organicista de sociedade da civilização corporativa da Baixa Idade Média, o individualismo impõe-se a pouco e pouco.” LOPES, op.cit.,p. 180.

171 HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1998, p. 150.

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que fugisse à contingência, por se radicar numa ordem racional (quase matemática) da

natureza (mathesis universalis), de que a razão participava.” Nesse passo, buscou explicar a

origem do Direito a partir do racionalismo. António Manuel Hespanha172 esclarece que:

Para o racionalismo (...) o direito constitui uma ordem preestabelecida – inscrita na natureza humana ou na natureza das coisas –, à qual se pode aceder mediante um uso adequado da razão. (...) nas épocas em que domina uma concepção racionalista do direito, se propõe uma técnica, mais ou menos rigorosa, de encontrar racionalmente o justo. Como agora se acredita que o direito pode ser encontrado raciocinando através de um uso adequado da razão, toda a preocupação dos juristas é fixar o caminho, o curso, que a razão terá que percorrer (discurso) para encontrar a solução jurídica. E vai surgir, assim, uma intensa actividade metodológica tendente a descobrir as correctas regras do pensamento jurídico.

Pressupunha-se que os direitos naturais eram inatos a cada homem e sua legitimidade

advinha de uma ética superior, que deveria ser seguida por todos. O jusnaturalismo

assentava-se no reconhecimento de um conjunto de valores humanos legítimos, que

independiam da existência de norma emanada do Estado. Por natureza, o homem era detentor

do direito à liberdade, que deveria ser preservado e respeitado pelo próprio Estado. Ao redor

dos direitos naturais, gravitavam princípios fundamentais inerentes à natureza humana e,

portanto, neutros em relação a qualquer ordem política ou jurídica.

Os ideais de liberdade, defendidos pelos jusnaturalistas, serviram de inspiração para

as revoluções liberais do século XVIII; seus pressupostos serviram como argumentos

contrários à tradição medieval. É pertinente recordar que a filosofia jusnaturalista impregnou

importantes documentos, como a Declaração de Independência dos Estados Unidos (1.776), e

a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1.789). Esse liame encontra respaldo na

seguinte observação de Franz Wieacker173: “...quer a soberania popular da revolução francesa,

quer federalismo americano (Jefferson) foram (...) fundados no direito natural ...”.

Em paralelo, o direito natural forneceu o suporte ideológico à positivação do direito,

contribuindo intensamente, a partir do século XVIII, para o movimento de codificação.

172 Idem, p. 111.

173 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução de António Manuel Hespanha. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004, p. 308.

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Porém, paradoxalmente, a codificação representou o apogeu e o declínio do direito natural, eis

que sua emergência fez com que, desde então, se admitisse apenas o direito codificado.

Sob a perspectiva jusnaturalista, os princípios foram erigidos à categoria do

universal, com as características de imutabilidade e univocidade. Mais uma vez, vale recorrer

a António Manuel Hespanha174 quando explicita que “abre-se a época do direito natural

racionalista, em que se acredita que os princípios superiores do direito são um produto da

razão que, ao elaborá-los, revela uma ordem universal.”

O direito natural tratou os princípios jurídicos como axiomas subjetivos, pois o seu

elenco e conteúdo variavam de acordo com os valores ínsitos em cada sujeito. Os

jusnaturalistas não manifestavam consenso sobre os princípios jurídicos, pois, mesmo aqueles

princípios considerados unânimes, eram impregnados de conteúdo vago, de difícil aplicação

aos litígios concretos. Assim considerados, os princípios jusnaturalistas restringiram-se à

seara axiomática, desprovida do caráter normativo, cujo conteúdo se limitava ao âmbito de

ideais almejados pela sociedade.

3.3.2 Princípios como fontes subsidiárias de aplicação da lei no Direito Positivo

Na Era Moderna, o direito positivo alcançou espaço a partir da segunda metade do

século XIX e predominou, no âmbito da ciência jurídica, até a primeira metade do século

XX. À medida que o direito natural se consolidou nos códigos oitocentistas, o positivismo

sobrepujou a visão jusnaturalista do Direito.

Vários doutrinadores contribuíram para o desenvolvimento do positivismo. Entre

todos, cumpre destacar Hans Kelsen, o grande pensador da sua geração. Os estudos de

Kelsen orientavam-se para conferir autonomia científica, método e objeto próprio ao direito,

depurando-o de influências sociológicas, políticas ou éticas. No intuito de dotar a ciência do

direito de imprescindível pureza metodológica, ele defendeu a dissociação entre o direito e a

moral175. Nas palavras do clássico doutrinador176:

174 HESPANHA, op. cit., p. 135.

175 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 67.

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De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto.

Para Kelsen177, os objetos da ciência jurídica seriam os fatos; não os valores. Por

isso, os juristas estavam impedidos de emitir juízos de valor, sempre irracionais e relativos.

Nessa linha de análise, postulou a separação absoluta entre o ser e o dever-ser (sollen-sein),

visualizando o tema direito e moral sob a perspectiva herdada de Immanuel Kant178, que

defendia a absoluta separação de ambos.

O positivismo jurídico representou esforço para pensar e aplicar o direito com

neutralidade, sem referência a valores. O propósito foi transformar o direito em conformidade

com as regras da produção científica, supervalorizando o padrão formalístico-dedutivista, em

detrimento do conteúdo material. Orientado por essa vertente teórica, ao interpretar o direito,

o jurista deveria dar preferência aos conceitos abstratos e às deduções lógicas, subjacentes aos

conceitos formais.

O positivismo empreendeu intensa busca no sentido da objetividade, apartando o

sujeito (intérprete) do objeto (norma), na tentativa de preservar a norma jurídica de opiniões e

preferências, conferindo-lhe o caráter de ciência, destacada da interpretação e da razão

prática, e associada à razão instrumental e ao cálculo. Assim definida, toda ciência objetiva

separar os juízos de fato dos juízos de valor. A distinção entre eles decorre da natureza

diversa que assumem: os juízos de fato têm o objetivo de informar a constatação apurada da

realidade de forma neutra, fazendo um relato imparcial, ao passo que os juízos de valor

176 Idem, p. 1.

177 Idem, p. 68-119.

178 KANT, Emmanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 21-33.

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representam tomada de posição sobre a realidade. Para o positivismo, a ciência jurídica

fundamenta-se exclusivamente em juízos de fato.179

Decorre desses postulados que o positivismo jurídico concebeu o direito como

dogmático, com o conhecimento voltado apenas para a lei e o ordenamento jurídico. Os

conceitos eram considerados como dogmas, não sujeitos à revisão ou discussão. Como tal, o

direito justificava sua legalidade em si mesmo; não era no âmbito da ciência jurídica que se

deveria travar a discussão acerca das questões sobre sua legitimidade.180

O formalismo positivista aplica(va) o direito por meio de estruturas formais. Com

essa orientação, preenchidos os critérios estabelecidos pela lei, a norma era considerada

válida, independentemente de ser justa. Como assinalado, nesse cenário, o direito apartava-se

formalmente da moral.

Ao método positivista associou-se a concepção voluntarista, que entendia o direito

como a expressão da palavra do legislador, a quem competia a estrita aplicação da norma. De

acordo com António Manuel Hespanha181, pela concepção voluntarista do direito, o jurista

deve “interpretar, da forma mais humilde possível, a vontade da entidade que quis o direito.”

Este autor182 acrescenta que “a atitude do voluntarismo não é, de modo algum, pensar o

direito, mas, em vez disso, obedecer ao direito.”

Nesse modelo, o Estado tornou-se a única fonte normativa, não podendo o aplicador

da lei extrapolar a formulação explícita nos preceitos legais. Impediu-se dessa maneira o

exercício do papel criativo juiz, no ajuste do discurso legal ao caso concreto. Competia-lhe

apenas aplicar os comandos gerais e abstratos, (supostamente) atuando como árbitro

imparcial. Em outras palavras: a interpretação da lei termina por limitar-se a um processo

silogístico de subsunção dos fatos às normas, devendo o elemento declarativo prevalecer, em

detrimento do elemento produtivo/criativo do direito, na adequação às peculiaridades do caso

concreto.

179 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi; Edson Bini; Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006, p. 131.

180 BARROSO, op. cit., p.24.

181 HESPANHA, op. cit., p. 111.

182 Idem, p. 111.

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O positivismo considerava o sistema jurídico, pretensamente completo e coerente,

apenas continha regras logicamente claras, livre de contradições e, sobretudo, de lacunas. As

eventuais lacunas deveriam ser resolvidas internamente pelos costumes, analogia e princípios

gerais de direito, como consta no art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, que

assim determina que na omissão da lei, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os

costumes e os princípios gerais de direito.

Como evidente, nessa fase, nos códigos, os princípios jurídicos nada mais eram do

que princípios gerais, último critério na aplicação do direito. Tratava-se, pois, de fontes

normativas subsidiárias, atuando como técnica de integração para preencher os vazios

normativos, satisfazendo, assim, os anseios de segurança jurídica defendida pelo positivismo.

Vistos como fontes jurídicas inferiores às leis, eram delas deduzidos. Apesar de expressos no

ordenamento jurídico, tendo, portanto, validade, os princípios estavam impregnados de

conteúdo vago e impreciso, não alcançando efetividade na aplicação aos casos concretos.

3.3.3 Princípios como normas jurídicas fundamentais

A crise do direito positivo legalista coincide com a ascensão dos princípios

jurídicos. Analisando as fases histórias do jusnaturalismo e do juspositivismo até adentrar no

período atual, António Manuel Hespanha183 afirma que:

Historicamente, o período compreendido entre os séculos XIV e XVII corresponde à formação “indutiva” do “sistema jurídico” exigido por uma certa mundividência. A partir do século XVIII, o sistema está perfeito, os seus axiomas elaborados, e o pensamento jurídico limita-se a explicá-los dedutivamente, sem qualquer propósito crítico – é a pandectística. No trânsito do século XIX para o século XX inicia-se uma nova tarefa de recomposição do sistema, pois a introdução de instituições jurídicas exigidas por necessidades novas origina uma crise interna no sistema jurídico-conceitual, ainda hoje em aberto.

183 HESPANHA, op. cit., p. 123.

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Paralelamente à retomada dos valores para o plano jurídico no pós 2ª Guerra

Mundial, verificou-se vertiginosa ascensão do Direito Constitucional. A Constituição passou a

ocupar o centro do sistema jurídico, até então ocupado pelo Direito Civil.

Analisando esse fenômeno, Luiz Edson Fachin184 designa-o como a “Virada de

Copérnico”, em significativa comparação com a descoberta de Nicolau Copérnico que, em

1543, anunciou que o Sol, e não a Terra, era o centro do sistema solar. A constitucionalização

do Direito, oriunda da Europa, espalhou-se pelo mundo, sendo incorporada também pelo

legislador constituinte de 1988, trazendo para o centro dos debates a perspectiva da cidadania

e justiça social.

Assim concebida, a Carta de 1988 é a matriz dos princípios e dos valores que

permeiam o direito positivo brasileiro e servem de alicerce à ordem jurídica. Os princípios

constitucionais situados no ápice do ordenamento, dotados de superioridade material,

albergam os valores éticos mais relevantes firmados pela sociedade e pelo Estado brasileiro.

Nesse passo, o desrespeito a um princípio constitucional implica ofensa a todo o sistema

jurídico, pois se trata de insurgência contra os valores fundamentais do sistema.

A Lei Maior privilegia os anseios de justiça da sociedade brasileira, assentados em

estrutura principiológica que resguarda e, ao mesmo tempo, impulsiona a construção de uma

sociedade livre, justa e solidária. A partir do movimento de constitucionalização do direito,

conferiu irretorquível vigor à consolidação dos princípios jurídicos e valores mais elevados.

Ruy Samuel185 comenta que:

O conceito de Constituição sofreu desenvolvimentos respeitantes a sua função, estrutura e sentido no Direito Constitucional contemporâneo, que a trata como norma jurídica, com força normativa potencializada, para poder atender às tarefas jurídico-políticas do estado democrático de direito.

A “constitucionalização do direito” provocou efeito expansivo das regras e princípios

constitucionais sobre o ordenamento jurídico infraconstitucional, condicionando a

184 FACHIN, Luiz Edson. “Virada de Copérnico”: um convite à reflexão sobre o Direito Civil brasileiro contemporâneo. In: ______ (Coord.). Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 317-324.

185 ESPÍNDOLA, Ruy. Conceitos de princípios constitucionais: elementos teóricos para uma formulação dogmática constitucionalmente adequada. 2. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 5

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interpretação das regras e princípios relativos a todos os ramos do direito. Todo o direito

passa pelo filtro constitucional, sede dos princípios mais importantes do ordenamento

jurídico, que expressam os valores essenciais da sociedade, verdadeiros instrumentos de

concretização da justiça.

A constitucionalização realiza-se, sobretudo, pela técnica da interpretação do Direito

conforme a Constituição, por meio da qual o intérprete dará sentido às normas

infraconstitucionais. Desenvolve-se, assim, nova metodologia de interpretação, sob a premissa

de que a norma não contempla todas as hipóteses. Há problemas cuja solução não se encontra

no conteúdo abstrato da norma, o que desafia o intérprete a avançar para além da subsunção

do fato à norma.

O intérprete passa a desempenhar papel importante na criação do Direito; para tanto,

utiliza-se das cláusulas gerais, dos princípios jurídicos, da ponderação, da argumentação, entre

outros procedimentos.

O tema é complexo. Tratando do mesmo, Luís Roberto Barroso186 lembra que:

O Direito, ao contrário de outros domínios, não tem nem pode ter uma postura puramente descritiva da realidade, voltada para relatar o que existe. Cabe-lhe prescrever um dever-ser e fazê-lo valer nas situações concretas. O Direito tem a pretensão de atuar sobre a realidade, conformando-a e transformando-a. Ele não é um dado, mas uma criação. A relação entre o sujeito do conhecimento e seu objeto de estudo – isto é, entre o intérprete, a norma e a realidade – é tensa e intensa.

As ideias de justiça e legitimidade tornaram-se o cerne da preocupação dos juristas

contemporâneos, que reconhecem a inviabilidade de discutir algum direito, sem levar em

consideração os valores morais protegidos pela sociedade.

De acordo com os ensinamentos de Radbruch187:

... só a moral é capaz de servir de fundamento à força obrigatória do direito. (...) Só pode rigorosamente falar-se de normas jurídicas, dum dever-ser

186 BARROSO, op. cit., p. 26.

187 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução de L. Cabral de Moncada. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1977, p. 109.

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jurídico, duma validade jurídica, e portanto de deveres jurídicos, quando o imperativo jurídico for dotado pela própria consciência dos indivíduos com a força obrigatória ou vinculante do dever moral.

Atualmente, dispõe-se de valores transformados em princípios jurídicos, com

normatividade e eficácia plena e direta. O salto dos princípios dos Códigos para a

Constituição alterou sua função no ordenamento jurídico, pois, do mais baixo grau de

hierarquização positiva, como fonte subsidiária do direito, se transformaram no fundamento

de toda a ordem jurídica, guiando e fundamentando todas as normas infraconstitucionais.

Dessa forma, atenuou-se a rígida separação entre o direito público e o direito privado, que

teve sua origem no século XVIII, com as codificações.

Entende-se que os princípios gerais de direito estão incluídos no conceito de

princípios constitucionais. Para Paulo Bonavides188:

O exame teórico da juridicidade dos princípios constitucionais é indissociável de uma prévia indagação acerca da eficácia normativa dos princípios gerais de Direito cujo ingresso nas Constituições se faz com força positiva incontrastável, perdendo, desde já, grande parte daquela clássica e alegada indeterminação, habitualmente invocada para retirar-lhes o sentido normativo de cláusulas operacionais. A inserção constitucional dos princípios ultrapassa, de último, a fase hermenêutica das chamadas normas programáticas. Eles operaram nos textos constitucionais da segunda metade deste século uma revolução de juridicidade sem precedentes nos anais do constitucionalismo. De princípios gerais se transformaram, já, em princípios constitucionais.

Vale ressaltar a observação de Eros Grau189 que “os princípios gerais de direito que

descobrimos no interior do ordenamento jurídico são princípios deste ordenamento jurídico,

desde direito. Por isso, não reconheço a existência de princípios gerais do direito, senão

apenas de princípios gerais de direito.”

Os princípios jurídicos, além de estabelecer as diretrizes do sistema jurídico, visam à

unidade a harmonia a ele: atuam como elos, elementos articuladores que garantem a

congruência e compatibilidade de todas as normas do ordenamento jurídico.

188 BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 258-259 .

189 GRAU, Eros. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 46.

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Os princípios estão vinculados entre si; as diretrizes valorativas cruzam-se

reciprocamente, em várias direções, até se efetivarem, segundo a perspectiva do imbricamento

ou entrelaçamento dos princípios.

Além de vinculantes, os princípios constitucionais mantêm coerência com o a

evolução do ideário político e social, sob a premissa de que o direito constitui sistema aberto.

Nesse sentido, Fernando Noronha190 afirma que:

Sendo o direito um sistema social aberto e subsistema da sociedade global, ele não se justifica por si mesmo; é a sociedade, ou os grupos que detêm o poder político, que fornece as metas que ele deve cumprir, que dá os valores pelos quais ele deve orientar-se e que lhe pede que solucione as situações fáticas de conflito, ou potencialmente geradoras de conflitos. Todos estes elementos constituem os inputs que alimentam o sistema jurídico.

Conforme análise de Paulo Bonavides191, os princípios podem ser classificados de

acordo com as funções que desempenham no ordenamento jurídico: fundamentadora,

interpretativa e supletiva. Na função fundamentadora, de magna importância no direito

constitucional contemporâneo, os princípios ostentam eficácia derrogatória e diretiva.

Aos princípios cabe, além da ação imediata, quando diretamente aplicáveis a

determinada relação jurídica, outra, de natureza mediata, que é a de funcionar como critério

de interpretação do texto constitucional: é incorreta a interpretação da regra, quando dela

derivar contradição, explícita ou velada, com os princípios.

Na hipótese da regra admitir mais de uma interpretação, prevalece aquela que for

mais coerente com os princípios. Quando a redação sugerir interpretação mais extensa ou

restrita que o princípio, justifica-se a interpretação extensiva ou restritiva, respectivamente,

para calibrar a adequação da regra ao princípio.

Por intermédio da função supletiva, realiza-se a integração do Direito,

suplementando os vazios, ou eventuais ausências de sentido regulador das regras positivadas.

Na lacuna de regra específica para regular dada situação, cumpre suprir o espaço com

fundamento na solução aludida pelos princípios.

190 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações: fundamentos do direito das obrigações: introdução à responsabilidade civil. São Paulo, Saraiva, 2003. v. 1, p. 98.

191 BONAVIDES, op. cit., p. 283-284.

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104

Como se depreende, os princípios jurídicos são o fundamento do ideário do sistema

constitucional, atuando como reitores da ordem jurídica; fonte primária; ponto de partida de

toda a elaboração normativa fundamental do Estado.

3.3.4 A possível distinção entre princípios e regra

Niklas Luhmann192 entendeu o Direito como um sistema autopoiético. Poiesis é um

termo grego que significa produção, ao passo que autopoiese denota autoprodução. O termo

surgiu na literatura internacional, em 1974, num artigo publicado pelos chilenos Francisco

Varela e Humberto Maturana, que expuseram uma concepção biológica, com o intuito de

explicar o fenômeno da vida.

A autopoiese tenta definir os seres vivos como sistemas que produzem

continuamente a si mesmos, recompondo componentes desgastados. Seus estudos levam a

concluir que um sistema autopoiético é, ao mesmo tempo, produtor e produto, funcionando

com circularidade produtiva.

Resulta daí a diferença fundamental entre sistemas fechados (não admitem

interferência de novos elementos advindos do meio externo) e abertos (relações dinâmicas

assumem agregação de novos elementos externos ou transmutação interna).

Niklas Luhmann trouxe a sistemática da autopoiese, oriunda da Teoria Sistêmica da

Sociologia, para explicar o sistema jurídico. Nessa linha de entendimento, a validade do

192 Para Luhmann, “autopoiesis significa que um sistema reproduz os elementos de que é constituído, em uma ordem hermético-recursiva, por meio de seus próprios elementos. (...) Neste sentido, a comunicação autopoiética do direito transmite, tanto na vida cotidiana como na prática organizada da decisão, a qualidade normativa da comunicação, e reproduz, com isso, a si mesma. Isto pode ser realizado segundo o código do direito, tanto através do símbolo comunicativo “jurídico”, como também por mediação do símbolo comunicativo “antijurídico” (mas não, por exemplo, através do símbolo comunicativo “útil”). A ambivalência contraditória assegura a universalidade do código; ele pode ser aplicado a todo comportamento humano e a todas as situações relevantes neste contexto, já que tudo é ou jurídico, ou antijurídico (mas não: um pouco jurídico). O estrito hermetismo recursivo do sistema, que corresponde sociologicamente à diferenciação social de um sistema funcional para o direito, significa que não pode haver nem input normativo, nem output normativo. O direito não pode importar as normas jurídicas de uma (sic) ambiente social (não existe nenhum “direito natural”), tampouco pode dar normas a este ambiente (as normas jurídicas não podem valer como direito fora do direito). A normatividade é o modo interno de trabalhar do direito, e sua função social consiste, precisamente, em que cumpra a missão de disponibilidade e modificação do direito para a sociedade.” LUHMANN, Nicklas. O enfoque sociológico da teoria e prática do direito. Tradução de Cristiano Paixão, et. al. In: Revista Seqüência, Florianópolis, UFSC, ano 15, n° 28, 1994, p. 19.

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105

Direito repousa em auto-referência, de tal forma que se replica; qualquer operação jurídica

reenvia resultado de operações jurídicas.

Em sentido contrário, na análise pós-positivista, o Direito emerge como sistema

aberto aos valores sociais, considerados suprapositivos, opondo-se, assim, a uma visão

autopoiética, tal como definida por Niklas Luhmann. Na visão de Canaris193, “a abertura do

sistema objectivo resulta (...) da essência do Direito positivo como um fenómeno colocado no

processo da História e, como tal, mutável.”

A abertura do sistema jurídico demonstra que ele não tem possibilidade de esgotar as

possibilidades do mundo da vida, precisando ser receptivo a elementos externos. Ao mesmo

tempo, não pode orientar-se pela característica da rigidez imutável, pois o direito é ciência

social, em permanente relação dialética com a sociedade.

Em importante passagem, Pietro Perlingieri194 dá sustentação ao que se expôs e

leciona:

O direito é ciência social que precisa de cada vez maiores aberturas; necessariamente sensível a qualquer modificação da realidade, entendida na sua mais ampla acepção. (...) O direito não pode ser apartado da sociedade, como queriam os positivistas. O conjunto de princípios e de regras destinado a ordenar a coexistência constitui o aspecto normativo do fenômeno social: regras e princípios interdependentes e essenciais, elementos de um conjunto unitário e hierarquicamente predisposto, que pode ser definido, pela sua função, como “ordenamento” (jurídico), e, pela sua natureza de componente da estrutura social, como “realidade normativa”. A transformação da realidade social em qualquer dos seus aspectos (...) significa a transformação da “realidade normativa” e vice-versa. A afirmação, ao contrário, da autonomia da ciência jurídica e as conseqüentes tentativas de definir a chamada “realidade jurídica” como alguma coisa que possa viver separadamente da realidade social, econômica ou política é herança que ainda pesa muito sobre os juristas e sobre o direito. Isso levou à criação de uma cultura formalista, matriz de uma “teoria geral do direito” sem (explícitas) “infiltrações” de caráter político, econômico, sociológico: como se o direito fosse imutável, eterno, a-histórico, insensível a qualquer ideologia.

193 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Tradução de Antônio Menezes Cordeiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989, p. 110.

194 PERLINGIERI, op. cit., p. 1-2.

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106

Nesse passo, os princípios jurídicos adquirem nova investidura, eis que passam a

constituir valiosos instrumentos à disposição do legislador para operar adaptações, ajustes e

transformações em um sistema aberto à sociedade. Por certo, para que o ordenamento

jurídico seja equilibrado, é necessário que disponha de normas jurídicas em forma de regras e

princípios. Se o sistema jurídico fosse composto somente de regras, a aplicação do direito

padeceria de automatismo, não raro, gerando injustiças. Em outro polo, um sistema jurídico

formado apenas de princípios abstratos ocasionaria insegurança jurídica. Portanto, o

equilíbrio do sistema jurídico, mormente o sistema constitucional, demanda inelutavelmente

regras e princípios.

Referindo-se aos princípios constitucionais, Daniel Sarmento195 afirma que:

Os princípios são muito importantes porque, pela sua plasticidade, conferem maior flexibilidade à Constituição, permitindo a ela que se adapte mais facilmente às mudanças que ocorrem na sociedade. Além disso, por estarem mais próximos dos valores, eles ancoram a Constituição no solo ético, abrindo-a para conteúdos morais substantivos. Por isso, seria inadmissível uma Constituição baseada apenas sobre regras. Ter-se-ia um sistema cerrado, incapaz de adaptar-se às mutações de uma sociedade cambiante, fechado para o mundo da vida, como para o universo dos valores. (...) É indispensável que, ao lado dos princípios, existam regras na Constituição, para que a abertura do sistema não destrua sua segurança e estabilidade.

No pensamento jurídico contemporâneo, verifica-se forte tendência à unanimidade

em reconhecer o status de norma jurídica aos princípios. Como referido, a distinção

relevante, nos dias atuais, não é mais entre princípios e normas, mas entre regras e princípios,

sendo as normas consideradas o gênero do qual os princípios e as regras são espécies. Vários

autores, a partir da década de cinquenta do século passado, dirigiram seus esforços para

definir esses elementos normativos.

O desenvolvimento da teoria principiológica tem débito significativo aos estudos e

reflexões de dois juristas: Dworkin e Alexy, verdadeiros precursores da teoria normativista

dos princípios jurídicos, cujo marco está exposto na obra Talking Rights Seriously, de Ronald

Dworkin196, publicada em 1977.

195 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 87-88.

196 Cf. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977.

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107

No mencionado trabalho, Dworkin se contrapõe à doutrina positivista,

particularmente no que se refere à rígida separação entre direito e moral, eis que se dedicou a

demonstrar a relação íntima entre argumentação moral e jurídica, propondo a fusão entre

princípios morais e jurídicos. Ele defendeu que princípio constitui um tipo de norma cuja

observação é requisito de justiça, especialmente quando se trata de decidir os “casos

difíceis”. Nessa circunstância, em havendo lacuna na lei, o problema deveria ser resolvido

mediante aplicação dos princípios, em oposição à visão positivista, que conferia ao

magistrado discricionariedade para resolver a questão.

O pensador em tela sublinha que a distinção entre regras e princípios ocorre pelo

modo de aplicação, pois as regras são descritivas e pretendem abranger os aspectos relevantes

para a tomada de decisão, indicando solução específica para o caso: sua principal

característica e a aplicação segundo a perspectiva do tudo ou nada. Assim entendidas, as

regras são (ou não) aplicadas de modo absoluto.

A colisão entre regras resolve-se no plano da validade, com a declaração de

invalidade de uma delas, aplicando-se um dos critérios: hierárquico, cronológico ou da

especialidade. O critério cronológico, também chamado de lex posteriori, indica que, entre

duas normas incompatíveis, prevalece a posterior: lex posterior derogat priori. A orientação

do critério hierárquico, denominado lex superior, é de que, entre duas normas incompatíveis,

prevalece a hierarquicamente superior: lex superior derogat inferiori. Já o terceiro critério,

considerado lex especialis, é aquele pelo qual, de duas normas incompatíveis, uma geral e

uma especial (ou excepcional), prevalece a segunda: lex specialis derogat generali.

Por outro lado, os princípios são normas finalísticas que instituem determinado

comportamento visando à realização de um fim. Também possuem a característica de

complementariedade, pois contêm apenas parte dos aspectos relevantes para a tomada de

decisão, sem que possam gerar solução específica. Seu alcance é trazer a lume razões

substanciais ou finalísticas à argumentação. Os princípios jurídicos contêm padrões que

devem, prima facie, ser realizados; ou seja, eles instituem deveres preliminares.

Dworkin acrescenta que, nos casos de colisão entre princípios, os quais não

determinam a hipótese de aplicação, a solução advirá pela dimensão de peso: o princípio com

peso relativamente maior sobrepõe-se ao outro, sem que este perca a validade.

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108

A partir das considerações de Dworkin, Alexy197 tornou mais preciso o conceito de

princípios jurídicos. De acordo com Alexy, as regras são mandados definitivos, enquanto os

princípios são mandados de otimização, caracterizados pela possibilidade de aplicação em

diversos níveis ou graduações, em consonância com as possibilidades jurídicas e fáticas.

Alexy argumenta que, havendo colisão entre dois ou mais princípios jurídicos,

compete ao aplicador do direito ponderar qual incidirá sobre a questão, utilizando-se, para

tanto, os critérios da proporcionalidade: necessidade, adequabilidade e proporcionalidade

stricto sensu. Sob essa perspectiva de análise, a solução tem seus alicerces calcados na

ponderação argumentativa que deverá levar em conta o necessário equilíbrio entre a

intensidade da restrição para o titular do direito e os valores que podem legitimar a restrição.

Tratando do assunto, Ana Paula Barcellos198 afirma:

De forma muito geral, a ponderação pode ser descrita como uma técnica de decisão própria para casos difíceis (do inglês “hard cases”), em relação aos quais o raciocínio tradicional da subsunção não é adequado. A estrutura geral da subsunção pode ser descrita da seguinte forma: premissa maior – enunciado normativo – incidindo sobre a premissa menor – fatos – e produzindo como conseqüência a aplicação da norma ao caso concreto. O que ocorre comumente nos casos difíceis, porém, é que convivem, postulando aplicação, diversas premissas maiores igualmente válidas e de mesma hierarquia que, todavia, indicam soluções normativas diversas e muitas vezes contraditórias. A subsunção não tem instrumentos para produzir uma conclusão que seja capaz de considerar todos os elementos normativos pertinentes; sua lógica tentará isolar uma única norma para o caso.

A doutrina contemporânea parece inclinada a admitir que a aplicação das regras ou

dos princípios ao caso concreto deve ser objeto de ponderação, deixando o intérprete de

aplicar as consequências estabelecidas, prima facie, em respeito às razões substanciais

expostas no caso.

197 Cf. ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Vladés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.

198 BARCELLOS, Ana Paula. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.), op. cit., p. 55.

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109

Humberto Ávila199 critica o modo de aplicação, segundo a perspectiva do tudo ou

nada das regras e defende que:

... o modo de aplicação não está determinado pelo texto objeto de interpretação, mas é decorrente de conexões axiológicas que são construídas (ou, no mínimo, coerentemente intensificadas) pelo intérprete, que pode inverter o modo de aplicação havido inicialmente como elementar. Com efeito, muitas vezes o caráter absoluto da regra é completamente modificado depois da consideração de todas as circunstâncias do caso. É só conferir alguns exemplos de normas que preliminarmente indicam um modo absoluto de aplicação mas que, com a consideração a todas as circunstâncias, terminam por exigir um processo complexo de ponderação de razões e contra-razões.

O autor200 em tela acrescenta que a ponderação não se restringe aos princípios,

podendo incidir também sobre as regras, tendo em vista que “qualquer norma possui um

caráter provisório que poderá ser ultrapassado por razões havidas como mais relevantes pelo

aplicador diante do caso concreto.”

O princípio da unidade determina que todas as disposições constitucionais detém

igual posição, devendo ser interpretadas harmonicamente; ou seja, tendo em vista a unidade

normativa constitucional, não se pode admitir hierarquia dos princípios em relação às regras

ou vice-versa.

Na mesma linha argumentativa, Luís Roberto Barroso201 esclarece que “inexiste

hierarquia entre ambas as categorias, à vista do princípio da unidade da Constituição. Isto não

impede que os princípios e regras desempenhem funções distintas dentro do ordenamento.”

Pode-se considerar, porém, hierarquia axiológica dos princípios entre si e destes em relação às

regras, embora não haja hierarquia normativa.

3.4 Releitura da posse a partir da principiologia constitucional

199 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 36.

200 Idem, p. 50.

201 BARROSO, op. cit., p. 30.

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110

3.4.1 Suporte axiológico da dignidade da pessoa humana na Constituição cidadã

O caráter cosmopolita da filosofia liberal da Revolução Francesa fez com que os

direitos inseridos na Declaração dos Direitos Humanos de 1789, influenciassem os diversos

ordenamentos jurídicos do mundo. Com esse alicerce, os Direitos Fundamentais nasceram nas

Constituições liberais do século XVIII, dando início a uma importante etapa no

reconhecimento formal desses direitos.

Porém, a plena afirmação dos Direitos Fundamentais só ocorreu no século XX, mais

precisamente, a partir da Segunda Guerra Mundial, cujos problemas serviram como

argumento para importantes transformações em defesa dos Direitos Humanos. Implementou-

se o movimento de internacionalização dos Direitos Humanos, mediante um sistema de

monitoramento e fiscalização desses direitos, cuja proteção constitui interesse da comunidade

internacional.

No plano interno dos países, esses direitos passaram a ser incorporados aos textos

Constitucionais, o que exigiu a criação de mecanismos para a sua efetiva defesa no âmbito de

cada Estado. Renan Lotufo202 destaca que imediatamente após a Declaração Universal de

Direitos, três países subscreveram e integraram esse elenco de esses direitos nas respectivas

Constituições. Hoje são 155 países que “Constitucionalizaram a Declaração Universal, não

sendo esta carta de direitos algo utópico, passando a ser algo concreto, algo positivado e que

produz efeitos nas legislações dos países.”

A Carta Magna de 1988 acolheu os Direitos Humanos e declara, logo no art. 1°,

inciso III, a proteção à dignidade da pessoa humana203, como norma que fundamenta o Estado

brasileiro. Esse é o suporte axiológico do sistema jurídico nacional, de tal forma que para ele

convergem os demais direitos fundamentais presentes no ordenamento. Nesse sentido,

Gustavo Tepedino204 esclarece que:

202 LOTUFO, Renan. Da oportunidade da Codificação Civil e a Constituição. In: O novo Código Civil e a Constituição. Org. Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 21.

203 Constituição Federal, Art. 1°: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: ...III – a dignidade da pessoa humana.” BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

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111

Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2° do art. 5°, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo Texto Maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento.

A rigor, a dignidade da pessoa humana é o epicentro do extenso catálogo de direitos

civis, políticos, econômicos, sociais e culturais que as Constituições e os instrumentos

internacionais propiciam aos indivíduos e às coletividades. Assim entendido, tal princípio

orienta toda a atividade legislativa, judiciária, administrativa e privada, no respeito à

dignidade do indivíduo como interesse superior e primeiro.

A localização da proteção à dignidade da pessoa humana no Título I da Carta Maior,

por si, traz a lume a importância do instituto, que serve de base interpretativa para todos os

direitos. Tal premissa confere unidade axiológica ao sistema jurídico-constitucional,

vinculando o aplicador do direito que, ao interpretar e aplicar as normas jurídicas, deverá

primar pela proteção à pessoa humana.

Entender o conteúdo substancial do princípio da dignidade da pessoa humana é

compreender que o ser humano é o fim de todos os empreendimentos do ente estatal e da

sociedade em seu conjunto. Nesse passo, o respeito a suas necessidades ultrapassa o plano

formal da declaração, para concretizar-se no cotidiano. Conforme análise de Fábio Konder

Comparato205:

... a idéia de que o princípio do tratamento da pessoa como fim em si mesma implica não só o dever negativo de não prejudicar ninguém, mas também o dever positivo de obrar no sentido de favorecer a felicidade alheia constitui a melhor justificativa do reconhecimento, a par dos direitos e liberdades individuais, também dos direitos humanos à realização de políticas públicas de conteúdo econômico e social, tal como enunciados nos artigos XXII a XXVIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

204 TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In: A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Coord. Gustavo Tepedino. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. XXV.

205 COMPARATO, op. cit., p. 24.

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112

A filosofia kantiana mostra que o homem, como ser racional, é um fim em si, e não

meio para outro fim. Nas palavras textuais de Kant206: “...o sujeito dos fins, isto é, o ser

racional mesmo, não deve jamais ser posto como fundamento de todas as máximas das ações

como simples meio, mas como condição suprema restritiva no uso dos meios, isto é, sempre

ao mesmo tempo como fim.”

As normas jurídicas encontram seu fundamento na premissa de que fim é o homem.

A dignidade da pessoa humana compreende o respeito ao outro, traduzida na máxima

kantiana207: “age de tal maneira que possa usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na

pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como

meio.” Atribuem-se ao pensamento kantiano as bases teóricas da noção da dignidade da

pessoa humana. Para Kant208, as coisas têm preço; a pessoa, dignidade:

No meio dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade. O que diz respeito às inclinações e necessidades do homem tem um preço comercial; o que, sem supor uma necessidades, se conforma a certo gosto, digamos, a uma satisfação produzida pelo simples jogo, sem finalidade alguma, de nossas faculdades, tem um preço de afeição ou de sentimento (...); mas o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer, dignidade.

Maria Celina Bodin de Moraes209 assinala os seguintes princípios como substrato

material da dignidade da pessoa humana: a igualdade; a integridade física e moral; a

liberdade; e a solidariedade. Segundo a autora, quando se admite a existência de outros iguais,

identifica-se a raiz do princípio da igualdade; se os iguais são alvo de idêntico respeito à sua

integridade psicofísica, é forçoso promover efetividade ao princípio regente da aludida

integridade; considerando-se a pessoa essencialmente dotada de vontade livre, é imperioso

206 KANT, op. cit., p. 68.

207 Idem, p. 59.

208 Idem, p. 65.

209 MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado.Org. SARLET, Ingo W. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 117.

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113

criar mecanismos jurídicos e sociais que promovam a liberdade; “enfim, fazendo ela,

necessariamente, parte do grupo social, disso decorrerá o princípio da solidariedade social.”

A dignidade da pessoa humana é direito inviolável e preexistente ao ordenamento

jurídico210, pois os textos que a estabelecem são declaratórios, e não constitutivos. Maria

Celina Bodin de Moraes211 afirma que “a dignidade humana (...) não é criação da ordem

constitucional, embora seja por ela respeitada e protegida.”

A dignidade é inerente à condição humana, sendo sua proteção um dever moral e

legal de todos. Tal princípio constitui limite material ao poder constituinte, conforme consta

no art. 60, inciso IV, parágrafo 4°, da Constituição Federal de 1988.

Ingo Sarlet212 considera a dignidade da pessoa humana como qualidade intrínseca e

distintiva de cada ser humano, credor de igual respeito e consideração por parte do Estado e

da comunidade. Esse conceito abriga um conjunto de direitos e deveres fundamentais

voltados à proteção da pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano e à

garantia de condições existenciais mínimas para que desfrute de vida saudável. Ademais, é

essencial “promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência

e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”

Como se expôs, a dignidade relaciona-se com valores morais e materiais de

subsistência, que, na seara jurídica se expressam no princípio da dignidade da pessoa humana,

que congrega vários direitos indispensáveis à vida. O conteúdo do mencionado princípio

alcança direitos individuais e direitos sociais.

O desrespeito à dignidade da pessoa humana foi um dos graves problemas do século

XX, marcado pela intolerância, discriminação, fome, violência, desigualdade social, guerras.

A luta pela concretização desse princípio constitui o principal desafio da contemporaneidade.

3.4.2 Contornos atuais da função social da propriedade

210 Em sentido contrário, encontra-se Pietro Perlingieri sustentando que a centralidade e a primazia da existência humana frente a todas as demais situações tuteladas pelo Direito têm fundamento na própria norma positiva. PERLINGIERI, op. cit., p. 3.

211 MORAES, op. cit., p. 115.

212 SARLET, Ingo. A Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60.

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114

A vigente Carta Constitucional disciplinou o direito de propriedade imobiliária no

Título III (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), assegurando a propriedade como direito

individual (art. 5°, XXII), submetido ao critério do cumprimento da função social (art. 5°,

XXIII). Assim como as duas últimas Constituições, esse critério situa-se entre os princípios

da ordem econômica, no Título VII.213

O fato de o constituinte contemplar a função social da propriedade, incluindo-a no

elenco dos direitos e garantias fundamentais, fez com que a mesma fosse alçada à categoria de

alicerce do regime jurídico-constitucional, devendo ser usada como parâmetro interpretativo

de todo o ordenamento jurídico. Nessa linha de entendimento, ao se tornar princípio

constitucional, a função social da propriedade se irradia para o tecido normativo, interagindo

com as normas de direito administrativo, de direito ambiental, urbanístico e, evidentemente,

do direito civil.

Pela normativa constitucional, o direito de propriedade representa garantia inviolável

do indivíduo (art. 5°, caput, XXII da CRFB/88), elevado à condição de norma fundamental,

sendo especificamente vinculada ao exercício de sua função social. Assim, se a propriedade

não atender à função social, ela perde a legitimidade jurídica e o seu titular deverá submeter-

se às sanções impostas pela lei.

Apesar de o direito de propriedade (art. 5°, XXII da CRFB/88) ser considerado

norma constitucional fundamental, ao lado da função social da propriedade (art. 5°, XXIII da

CRFB/88), esses direitos não podem ser postos no mesmo patamar hierárquico, pois a função

social da propriedade é axiologicamente superior ao direito de propriedade privada, levando 213 Constituição Federal de 1988 – Art. 5°: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXII: é garantido o direito de propriedade; XXIII: a propriedade atenderá a sua função social; ...” Art. 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) II – propriedade privada; III – função social da propriedade ...” Art. 182: “ A política de desenvolvimento, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. (...) §2°: A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor; ...” Art. 185: “São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: (...) II – a propriedade produtiva. Parágrafo único: A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social.” Art. 186: “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I: aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores.”

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115

em consideração os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no

art. 3°.

A função social da propriedade é conceito maleável, que tem contornos os mais

variados, conforme a época e lugar. Aplicada à propriedade, a função social designa que a

mesma deve servir para melhorar as condições sociais, satisfazendo não só os interesses de

seu titular. A ideia de função social da propriedade corresponde à necessidade de

solidariedade entre particulares, visando ao bem-estar de todos.

Tratando do assunto, Caio Mário da Silva Pereira214 afirma que a propriedade privada

é essencial ao regime capitalista, ao mesmo tempo em que preserva a ordem pública e garante

a utilização de bens próprios, nos misteres normais a que se destinam. Porém, na atualidade, o

interesse social sobrepõe-se ao individualismo, em qualquer circunstância. Por isso, quando se

compara o direito de propriedade em sua vertente romana com as concepções correntes,

constata-se que a doutrina atual, distancia-se dos conceitos clássicos.

A propriedade é direito individual, embora impregnado do interesse público no

aproveitamento, no intuito de correspondência com os anseios sociais. Predomina,

atualmente, o entendimento de que a propriedade compreende um complexo de normas

jurídicas de direito público e privado, o que a torna um instituto de natureza híbrida.

A função social da propriedade, por ser um princípio jurídico, não poderá aplicar-se

da maneira tudo ou nada, tendo em vista não possuir conteúdo descritivo que indique a

totalidade de condições necessárias à sua incidência. Ela deverá ser ponderada com outros

princípios jurídicos, diante do caso concreto. A função social da propriedade constitui norma

de aplicabilidade imediata, plenamente eficaz e vinculante da conduta do indivíduo e também

do Estado. O princípio em exame informa, direciona e determina o modo de concreção

jurídica de toda normativa, constitucional e infraconstitucional, relacionada à instituição

jurídica da propriedade, harmonizando-a com os fins legítimos da sociedade.

Não se trata de limite ao direito de propriedade, atuando com conteúdo negativo, mas

assume papel promocional, concepção positiva própria dos princípios constitucionais. Assim

concebida, tem dois efeitos distintos e independentes: orientar o intérprete na aplicação da lei

e condicionar a atividade legiferante futura.

214 PEREIRA, op. cit., p. 87.

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116

A eficácia da função social da propriedade não se subordina à atuação legislativa; ou

seja, não depende da adaptação da legislação infraconstitucional para se tornar norma jurídica

aplicável concretamente. Assim como as demais normas fundamentais, ela tem aplicação

imediata, incidindo diretamente nas relações interprivadas, conforme disposto no §1° do art.

5° da CRFB/88, não sendo mera norma programática.

Abordando o tema, José Afonso da Silva215 afirma que “a norma que contém o

princípio da função social da propriedade incide imediatamente, é de aplicabilidade imediata,

como são todos os princípios constitucionais”.

Luís Roberto Barroso216 defende que as normas constitucionais podem ser agrupadas

conforme as seguintes tipologias: normas constitucionais de organização; normas

constitucionais definidoras de direitos e normas constitucionais programáticas. Em relação às

últimas, Barroso217 ressalta que se trata de:

... disposições indicadoras de fins sociais a serem alcançados. Estas normas têm por objeto estabelecer determinados princípios ou fixar programas de ação para o Poder Público. Na Constituição de 1988, partilham dessa natureza, v.g., o dispositivo que consagra a “função social da propriedade (art.170, III) ...

Mesmo admitindo ser o conteúdo do princípio da função social da propriedade uma

noção vaga, imprecisa e abstrata, não se pode negar sua efetividade. A esse respeito, cumpre

levar em consideração que não há como definir exaustivamente, e casuisticamente, as

hipóteses de utilização social e anti-social da propriedade.

Ficará a critério do intérprete/aplicador da norma, em cada caso, a avaliação crítica a

respeito dos comportamentos submetidos à sua apreciação, exigindo-se dele uma

compreensão da realidade social e da pretensão normativa, pois somente no exame do caso

concreto é que se poderá afirmar se determinada propriedade cumpre função social.

215 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 285.

216 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 94.

217 Idem, p. 118.

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117

Caberá ao Estado por meio dos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo promover

e proteger o princípio fundamental da função social da propriedade. Nesse ponto, é muito

esclarecedora a análise de Rogério Gesta Leal218:

Assim é que entra o tema do Estado, enquanto instituição jurídica e política no Brasil, como responsável principal pela efetivação e proteção da função social dos direitos fundamentais, em particular da propriedade urbana e da cidade, evidenciando, definitivamente, ao menos no plano formal, o abandono de sua neutralidade e apoliticidade ao assumir funções políticas próprias e transformadoras das estruturas econômicas e sociais no sentido de uma realização material do princípio da igualdade.

O conteúdo axiológico da função social da propriedade é informado no texto

constitucional nos arts. 182 e 186, ao abordar especificamente as propriedades (urbana e rural)

e ao estabelecer a dignidade da pessoa humana como regra basilar para o exercício do direito

de propriedade. De acordo com a sistemática constitucional, será socialmente funcional a

propriedade que, respeitando a dignidade da pessoa humana, contribua para construir uma

sociedade livre, justa e solidária, ajudando na erradicação da pobreza e da marginalização e

reduzindo as desigualdades sociais e regionais.

Cumprirá função social a propriedade que promover os valores constitucionais

direcionados ao respeito e promoção da dignidade da pessoa humana, viabilizando a

implementação da justiça social, inibindo a especulação imobiliária e a improdutividade da

propriedade privada219.

Do exposto, depreende-se que propriedade é direito humano, fundamental,

preconizado pela CRFB/88 no art. 5°, inciso XXII; porém este direito não pode se transformar

em abrigo para uns e exclusão para outros.

218 LEAL, Rogério Gesta. A Função Social da Propriedade e da Cidade no Brasil: aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 113-114.

219 Gustavo Tepedino assinala que “A propriedade, portanto, não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos confins são definidos externamente, ou, de qualquer modo, em caráter predominantemente negativo, de tal modo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria espaço livre para suas atividades e para a emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade”. TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: ______ (Coord.). Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 317.

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118

Importa ressaltar que a propriedade deverá atender os fins legítimos da sociedade,

sendo utilizada em consonância com esses fins. O proprietário que for desidioso, não

utilizando as faculdades inerentes ao domínio, de forma a extrair os frutos que potencialmente

o imóvel possa produzir, ficará sujeito às cominações legais previstas na CRFB/88, no

Estatuto da Cidade e da Terra, Código Civil, entre outras legislações.

As sanções constitucionais220 subordinam os direitos dominiais às exigências de

justiça social, visando a realizar os fundamentos e objetivos constitucionais. A função social

da propriedade estabelece um direito-dever de agir e não apenas uma obrigação de não

fazer221. Assim, o proprietário tem o poder-dever de utilizar a sua propriedade. A esse

respeito, é muito elucidativo o posicionamento de Luiz Edson Fachin222, quando assinala que:

A idéia de interesse social corresponde ao início da distribuição de cargas sociais, ou seja, da previsão de que ao direito subjetivo da apropriação também correspondem deveres. Nessa esteira, passa-se a entender que esse direito subjetivo tem destinatários no conjunto da sociedade, de modo que o direito de propriedade também começa a ser lido como direito à propriedade. Gera, por conseguinte, um duplo estatuto: um de garantia, vinculado aos ditames sociais, e outro, de acesso.

A função social da propriedade constitui direito e garantia individual e coletiva, nos

termos do art. 5°, incisos XXII e XXIII da CRFB/88. Como garantia constitucional, dirige-se

a todos aqueles que, apesar de não serem proprietários, sofrem os efeitos da utilização da

220 A Constituição Federal estabelece no art. 182, parágrafo 4°, as formas sancionatórias para a propriedade que não cumprir a devida função social, estabelecendo para tanto que: “é facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente de: I – parcelamento ou edificação compulsórios; II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.” No tocante à propriedade rural, estabelece a Constituição Federal, no art. 184, caput, que “ Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em título da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja indenização será devida em lei.”

221 Segundo Eros Grau, “o que mais releva enfatizar, entretanto, é o fato de que o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário (...) o dever de exercê-la em benefício de outrem e não, apenas, de não a exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte da imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não fazer – ao detentor do poder que deflui de propriedade.” GRAU, Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1998: interpretação e crítica. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 250.

222 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 289.

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propriedade, quando esta não resulta em benefícios para a coletividade. Esse dado de

realidade transformou os não-proprietários em sujeitos de direito. Analisando essa

problemática em perspectiva histórica, Dabus223 destaca que:

Ao antigo absolutismo do direito, consubstanciado no famoso jus utendi et abutendi, contrapõe-se, hoje, a socialização progressiva da propriedade – orientando-se pelo critério da utilidade social para maior e mais ampla proteção aos interesses e às necessidades comuns.

A função social da propriedade não representa o limite ao direito proprietário. Ao

contrário, são institutos que dialogam entre si. José Afonso da Silva224 informa que a função

social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade, os quais

dizem respeito ao direito do proprietário, ao passo que aquela se refere à estrutura do direito

mesmo, ou seja, à propriedade. Pietro Perlingieri afirma que a função social da propriedade

privada não diz respeito exclusivamente aos seus limites, pois atinge o conteúdo global da

disciplina proprietária. Segundo entendimento do mencionado autor225:

A função social, construída como o conjunto dos limites, representaria uma noção somente de tipo negativo voltada a comprimir os poderes proprietários, os quais sem limites, ficariam íntegros e livres. Este resultado está próximo à perspectiva tradicional. Em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa (...) o conteúdo da função social assume um papel de tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos limites à função social. Esta deve ser entendida não como uma intervenção “em ódio” à propriedade privada, mas torna-se “a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito”, um critério de ação para o legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividades do titular.

223 MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao Direito de Propriedade: de acordo com o Código Civil 2002 e com o Estatuto da Cidade. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 68-69.

224 SILVA, op. cit., p. 284.

225 PERLINGIERI, op. cit., p. 226.

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120

A legitimidade do direito proprietário funda-se na função social. Dessa forma, não

estando o imóvel funcionalizado, não receberá tutela do sistema jurídico226; em outras

palavras: não pode o titular do domínio exercer o jus reivindicandi, sem provar o

cumprimento da função social adstrita ao seu bem. Essa inferência encontra respaldo na

análise de Gustavo Tepedino227, quando sublinha que, a despeito da disputa em torno do

sentido e do alcance da conceito de função social, constata-se um “patamar de relativo

consenso, a capacidade do elemento funcional em alterar a estrutura do domínio, inserindo-se

em seu ‘profilo interno’ e atuando como critério de valoração do exercício do direito, o qual

deverá ser direcionado para um ‘massimo sociale’.” A consequência é que quando

determinada propriedade se afasta de sua função social, “não pode ser tutelada pelo

ordenamento jurídico.” Com essa premissa, tanto os bens de produção, como os de consumo

estão impregnados de função social, que alcança “seu conteúdo – modos de aquisição e de

utilização.”

A divisão dicotômica do Direito em público e privado não comportava a incidência

da funcionalização social na propriedade. Tradicionalmente, o Direito operava essa divisão,

não havendo possibilidade de se aplicar a função social da propriedade em matéria de direito

privado, tendo em vista que a ideia de função somente se empregava nos conceitos de direito

público; por outro lado, o direito privado era regulado pela autonomia da vontade, em que

tudo se encontrava disponível para ser transacionado.

Sendo assim, somente ao Estado cominava-se o exercício de funções, razão pela qual

a categoria em questão é conceituada, sobretudo, pela doutrina publicística, não fazendo parte

das cogitações doutrinárias civilísticas tradicionais. Atualmente, a propriedade submete-se

primordialmente à ordem constitucional e, subsidiariamente, aos ditames do Código Civil e da

legislação infraconstitucional.

A partir do reconhecimento de que sobre a propriedade incide um interesse social,

paralelamente ao interesse privado do proprietário, o direito de propriedade não admite mais a

rígida divisão público/privado, nem se restringe ao limite de qualquer desses ramos, eis que

abarca características dos dois228.

226 Neste sentido encontra-se Pietro Perlingieri afirmando que “a ausência de atuação da função social, portanto, faz com que falte a razão da garantia e do reconhecimento do direito de propriedade”. Idem, p. 229.

227 TEPEDINO, op. cit., p. 319-320.

228 Segundo Gustavo Tepedino, “a propriedade com a sua função social, as limitações do solo urbano e as restrições ao domínio dão um novo conteúdo à senhoria, limitando internamente o conteúdo do direito de

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121

O direito de propriedade deverá ser exercido no intuito de promover os princípios

fundamentais previstos na Constituição Federal, em especial a dignidade da pessoa humana,

ultrapassando a perspectiva do exercício fundado predominantemente no livre arbítrio, para

propiciar o uso da propriedade de forma a contribuir para o bem social. Caberá aos

legisladores compatibilizar a legislação infraconstitucional com o princípio diretivo da função

social, tornando harmônico o sistema jurídico brasileiro229.

Em relação ao tema, Pietro Perlingieri230 acrescenta que a função social traz à tona

critério de interpretação da disciplina proprietária para o juiz e para os operadores jurídicos,

eis que se impõe uma interpretação conforme os princípios constitucionais. Conforme

palavras textuais do mencionado pensador:

A função social é operante também à falta de uma expressa disposição que a ela faça referência; ela representa um critério de alcance geral, um princípio que legitima a extensão em via analógica daquelas normas, excepcionais no ordenamento pré-constitucional, que têm um conteúdo que, em via interpretativa, resulta atuativo do princípio.

O magno alcance da função social relativiza a propriedade individualista da

codificação oitocentista, considerada direito absoluto do proprietário. Na perspectiva

absolutista, o titular do domínio tinha o poder de realizar na coisa, objeto do direito, tudo que

lhe aprouvesse, da maneira mais completa possível. A funcionalização relativizou esse poder,

condicionando-o ao interesse coletivo, conforme lição de Luiz Edson Fachin231. De acordo

com seu entendimento, o patrimônio individual não é “apenas fruto das oportunidades

propriedade. Não se trata, à evidência, de deslocamento para o direito público de certos tipos de propriedade, como se ao direito civil coubesse a disciplina de uma propriedade sem limites, no espaço que lhe restou, onde fosse possível expandir o mesmo individualismo pré-constitucional, podendo, então, finalmente, o titular, exercer a senhoria livremente, sem intervenção estatal. Ao contrário, todo o conteúdo do direito subjetivo de propriedade encontra-se redesenhado.” Idem, p. 20.

229 André Osório Gondinho acrescenta que “a função social impõe ao legislador ordinário que não conceda ao titular da propriedade, mediante normas infraconstitucionais, poderes supérfluos ou contraproducentes em relação ao interesse social positivamente tutelado, mas também que predisponha um estatuto que, em positivo, conceda ao titular aqueles poderes necessários para perseguir os objetivos constitucionais relevantes.” GONDINHO, op. cit., p. 421.

230 PERLINGIERI, op. cit., p. 227-228.

231 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p 39.

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individuais, mas algo que é antes definido pelo coletivo, dotado de um sentido social. Daí a

superação proposta dessas concepções clássicas sobre a pessoa e patrimônio.”

O direito subjetivo de propriedade e a função social se harmonizam. O direito

subjetivo, independentemente de qual for, será sempre vinculado ao cumprimento do interesse

social, porque a CRFB/88 adotou o princípio da dignidade da pessoa humana como

fundamento da ordem jurídica, não podendo mais ser identificada, nos direitos subjetivos,

uma visão individualista e patrimonialista, com a exclusão do outro. Os direitos subjetivos

não encontram na autonomia da vontade o seu exclusivo fundamento.

O princípio da autonomia da vontade era considerado o amplo poder das partes de

governarem suas relações jurídicas, objetivando unicamente a satisfação dos seus interesses,

encontrando limites apenas nas disposições expressas na lei. A partir da leitura civil-

constitucional, a autonomia privada desempenha uma função subsidiária na formação dos

negócios jurídicos, tendo em vista que primordialmente há de ser observada a incidência das

normas constitucionais.

No entanto, a autonomia privada também constitui um princípio constitucional, e

assim como os demais princípios, não possuiu uma incidência absoluta, devendo ser

relativizada por meio da ponderação com outros princípios e regras. Nesse contexto, Denis

Franco Silva232 assinala que:

Certos valores consagrados constitucionalmente, como a dignidade da pessoa humana (art. 3°, I) e até mesmo a previsão de uma regra geral de liberdade (art. 2°, II) permitem apontar a autonomia privada como um valor fundante. Por outro lado, na concretização deste valor detecta-se, atualmente, uma tendência descrita como socializante, nitidamente identificável não apenas no plano constitucional (com a previsão de direitos sociais, no art. 6°, da proteção ao consumidor, no art. 5°, XXXII e principalmente, do valor social do trabalho como um dos fundamentos da República, em seu art. 1°, IV), mas também na própria estrutura de regulação da atividade privada consagrada no Código Civil de 2002. Esta concepção social do exercício da autonomia refere-se a um exercício intersubjetivo, que se impõe na medida em que o processo de individualização somente ocorre a partir da convivência com o outro...

232 SILVA, Denis Franco. O Princípio da Autonomia: da invenção à reconstrução. In: MORAES, Maria Celina Bodin de (Coord.). Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 150.

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Há uma mudança paradigmática da concepção de direito absoluto, tal como assumida

no Direito Civil do século XVIII, quando foi considerado fonte legitimadora absoluta dos

negócios jurídicos e dos seus efeitos. As exigências de índole social e promocional dos

valores básicos do ordenamento se justapõem aos interesses privados dos indivíduos, porém

sem desnaturá-los. Assim, a autonomia privada deixou de ser considerada valor em si233,

vindo a sê-lo somente quando revela um interesse merecedor de tutela, de acordo com os

princípios e valores constitucionais. Sua compatibilidade com a ordem constitucional é que

lhe confere legitimidade jurídica.

3.4.3 Função social da posse

Embora o ordenamento jurídico brasileiro constitucional e infraconstitucional não

tenha previsto expressamente a função social da posse, como fez em relação à propriedade,

pode-se afirmar, por meio da análise teleológica/sistemática dos princípios jurídicos, e de

alguns institutos do Código Civil, como a usucapião, que a mesma se encontra em vigor no

ordenamento jurídico brasileiro.

Ana Rita Albuquerque234 salienta que os valores fundamentais e os objetivos do

Estado Brasileiro previstos na Constituição de 1988 valorizam sobremaneira o conceito de

cidadania, através da valorização da pessoa humana. Tais valores espraiam-se para os

diversos domínios jurídicos, inclusive para o direito privado. Por decorrência, alcançam o

instituto da posse, sublinhando seu aspecto social imanente. Particularmente em um sistema

jurídico que privilegia a pessoa humana e sobreleva “a natureza teleológica dos argumentos

sistemáticos, não se pode deixar de ter por incluída implicitamente, com princípio

constitucional positivado, a função social da posse.”

233 Para Pietro Perlingieri, “Hão de se delinear os aspectos nos quais se manifesta a autonomia privada. Tradicionalmente, afirma-se que ela se traduz, antes de tudo, na liberdade de negociar, de escolher o contratante, de determinar o conteúdo do contrato ou do ato, de escolher, por vezes, a forma do ato. É necessário verificar se esta ou estas liberdades, em razão da fisionomia que a autonomia privada assume com base nos princípios gerais do ordenamento, encontram correspondência efetiva na teoria dos atos. São esses princípios que servem de base para avaliar se a autonomia privada é digna de proteção por parte do ordenamento: ela não é, portanto, um valor em si. Revela-se indispensável o reexame da noção à luz do juízo de valor (giudizio di meritevolezza) de cada ato realizado, de modo tal que se possa deduzir se estes, individualmente considerados, podem ser regulados, pelo menos em parte, pela autonomia privada”. PERLINGIERI, op. cit., p. 18.

234 ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da Função Social da Posse: e sua consequência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 40-41.

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124

Admite-se que existem princípios jurídicos expressos e princípios jurídicos

implícitos na ordem jurídica, pois o Direito não se identifica com a totalidade das leis escritas;

ou seja, o Direito não está previsto na sua integralidade no texto da lei. Por serem o principal

canal de comunicação entre o sistema de valores e o sistema jurídico, os princípios não

comportam enumeração taxativa. Nessa ordem de interpretação, Eros Grau235 ressalta que:

cumpre distinguirmos, pois, os princípios positivados pelo direito posto (direito positivo) e aqueles que, embora nele não expressamente enunciados existem, em estado de latência, sob o ordenamento positivo, no direito pressuposto.

Admitida a função social da posse, o instituto assumirá os mesmos contornos

jurídicos da função social da propriedade. Nesses termos, Marcos Alcino Azevedo Torres236 é

taxativo ao afirmar que, “a função social em relação aos imóveis não se diferencia na

propriedade ou na posse.”

A função social da propriedade se espraia sobre o instituto da posse; a propriedade

estará cumprindo função social quando o bem (móvel ou imóvel) estiver no efetivo exercício

da posse237. Em relação à funcionalização da propriedade, é instigante a observação de Carlos

Frederico Marés238 informando que a propriedade, por ser um conceito, uma abstração, não

cumpre função social. Quem a cumpre é a terra, “independentemente do título de propriedade

que o Direito ou o Estado lhe outorgue.”

O uso efetivo do bem se traduz no cumprimento da função social da posse. Marcos

Alcino Azevedo Torres239 determina que “é através da prática de atos materiais na coisa que

235 GRAU, op. cit., p. 102-103.

236 TORRES, op. cit., p. 303.

237 Afirma Marcos Alcino de Azevedo Torres que “… conclui-se então que, na verdade, é a posse que tem função social e, através dela assim exercida, infere-se se o proprietário está cumprindo com seu compromisso (proprietário) e aí estará ele alforriado das consequências do sistema para descumprimento da funçao social.” Idem, p. 304.

238 Idem, p. 117.

239 Idem, p. 305.

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aquele que tiver a possibilidade de uso; isto é, a posse do bem, poderá atender à função

social”. O autor240 prossegue, afirmando que:

A tessitura da função social, tanto na propriedade quanto na posse, está na atividade exercida pelo titular da relação sobre a coisa à sua disposição. A função social não transige, não compactua com a inércia do titular. Há que desenvolver uma conduta que atende ao mesmo tempo à destinação econômica e à destinação social do bem.

A posse constitui-se instrumento de efetividade da função social da propriedade, pois

uma não existe sem a outra. Conferir função social a uma propriedade significa estar na posse

efetiva de um bem imóvel, utilizando-o de forma a atender não apenas aos interesses

particulares, mas contribuindo também para que os frutos da exploração do mesmo atenda às

necessidades sociais, seja cumprindo com deveres positivos (moradia/trabalho), seja

respeitando os limites impostos pelos direitos de vizinhança; regras da administração pública;

estatutos condominiais; entre outros regulamentos limitativos dos poderes de uso da terra.

Tanto a função social da propriedade, como a função social da posse objetivam

aniquilar o uso improdutivo da terra. Cumpre função social a posse que satisfaz as

necessidades básicas de uma sociedade, efetivando, assim, Direitos Fundamentais sociais,

bem como os objetivos constitucionais e o princípio da dignidade da pessoa humana. Sob essa

perspectiva de análise, a posse é um instrumento de proteção dos Direitos Humanos.

Ana Rita Vieira Albuquerque241 entende que o gérmen da funcionalização social do

instituto da posse repousa na necessidade social da terra, para o trabalho, para a moradia,

enfim, para atender a necessidades básicas subjacentes ao valor de dignidade do ser humano,

de cidadania, da proteção à personalidade e à própria vida.

A posse é o instrumento da concretização do dever constitucional de observância da

função social da propriedade. Para cumprir a função social da propriedade, a pessoa precisa

240 Idem, p. 308.

241 ALBUQUERQUE, op. cit., p. 12.

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possuir a coisa; Como bem esclarece Teori Zavaski242: “bem se vê, destarte, que o princípio da

função social diz respeito mais ao fenômeno possessório que ao direito de propriedade.”

Todavia, nem toda posse cumpre função social. O sistema jurídico dá respaldo a esse

entendimento, ao diferenciar a usucapião prevista no art. 1.238, caput, do Código Civil, que

se refere ao exercício da posse simples; da hipótese prevista do parágrafo único do mesmo

artigo, que se refere à posse qualificada; ou seja, que cumpre função social243.

Sendo assim, em se tratando do exercício de posse simples; isto é, sem o

cumprimento de sua função social, o prazo para o possuidor usucapir o bem será de 15 anos;

ao passo que, em havendo funcionalização do imóvel por parte do possuidor, o prazo para

usucapir será reduzido para 10 anos.

A importância do reconhecimento da função social da posse para a sociedade

brasileira repousa no fato de que a terra, no Brasil, constitui foco constante de tensões sociais

e econômicas, instabilizando as relações jurídicas entre proprietários e não proprietários,

causando acirrados conflitos entre as pessoas, com fortes repercussões em todas as esferas

sociais.

Ademais, a legislação sobre a propriedade e posse de bens imóveis aplicada no Brasil

desde o tempo da colonização foi mais favorável à proteção do proprietário em detrimento do

possuidor. Portanto, sob a perspectiva histórica, a posse e a função social desempenhada pelo

bem possuído foram irrelevantes para o sistema jurídico. Isso porque se prestigiavam os

interesses dos proprietários latifundiários, que dominavam a vida política do país.

Os problemas sociais brasileiros originados do uso improdutivo da terra trouxeram,

desde muito tempo, consequências negativas, como a concentração de terras nas mãos de

poucos, incremento da pobreza, na periferia urbana e no campo, elevados índices de

crescimento demográfico, insuficiência de moradia e de atendimento aos direitos essenciais

de significativos segmentos da população.

242 ZAVASKI , Teori Albino. A tutela da posse na Constituição e no projeto do Novo Código Civil. In: A reconstrução do direito privado. MARTINS-COSTA, Judith (Org.). São Paulo: RT, 2002, p. 844.

243 Nesse sentido, afirma Marcos Alcino de Azevedo Torres que “posse com função social e posse qualificada divergem da posse simples ou comum pela presença da atividade humana social e economicamente relevante e isto se dá, através da moradia, do desenvolvimento de alguma atividade comercial ou industrial, para os imóveis urbanos e na produção de bens, serviços e moradia para a propriedade rural. A função social na posse provoca então uma dicotomia entre posse qualificada ou posse social e posse simples ou comum.” TORRES, op. cit., p. 309.

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127

Diante desse cenário, tanto o Poder Legislativo, como o Poder Judiciário precisam ser

proativos no intuito de proteger a figura do possuidor, reconhecendo a importância da função

social da posse sobre o bem imóvel, para que a justiça social244 pretendida pela CRFB/88 saia

do plano da retórica e alcance a efetividade não seio da sociedade brasileira.

3.5 Estatuto da Cidade e os mecanismos legislativos para a funcionalização da

propriedade urbana

O problema da ocupação do espaço urbano nas cidades brasileiras se agravou com o

passar do tempo, configurando-se um processo histórico de exclusão social das pessoas

carentes, chegando aos dias atuais como um grave problema social com repercussões

diversas, dentre elas, a falta de titularidade da área ocupada. Como afirma Marco Aurélio

Bezerra de Melo245:

Um dos graves problemas sociais que afligem os cidadãos nas cidades é a falta de titulação dos imóveis que servem de moradia oriunda de ocupação coletiva consolidada no tempo, mas feita de forma inadequada sob o ponto de vista legal e sem o atestado oficial da propriedade.

O problema habitacional nas cidades, principalmente naquelas de médio e grande

porte, se agravou com a vinda maciça das pessoas oriundas do campo, em decorrência da falta

da implementação satisfatória da reforma agrária. Conforme esclarece Marco Aurélio Bezerra

de Melo246:

244 Para Ubaldo Silveira, “a Justiça Social nos parece ter dois objetivos: de um lado a abolição das disparidades entre classes, setores e povos; de outro, o crescimento dos recursos globais da sociedade. Em resumo, o princípio da justiça social supõe crescimento da economia e sua repartição social. A realidade social rural brasileira deixa claro que esse princípio nunca foi conhecido em (sic) muito menos colocado em prática. Em pleno século XXI, fala-se muito em justiça social, sem uma compreensão de seu real significado, ou pelos (sic) menos, em sua real efetivação.” SILVEIRA, op. cit., p.49.

245 MELO, op. cit., p.1.

246 Idem, p. 2.

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... a informalidade da ocupação do solo urbano, feita desordenadamente e inadequada aos ditames legais pode gerar instabilidade e insegurança jurídica para o cidadão favelado que, apesar de utilizar o imóvel urbano conforme a destinação social da moradia, experimenta constante ameaça de desalijo coletivo e sente-se excluído por não ter, o que é extremamente perverso, acesso a um endereço regular que o qualifique como morador da urbe, dificultando o seu acesso a empregos formais, crédito, além da discriminação social inerente. Esta situação pode ter por efeito o aumento do abismo social entre os brasileiros, chegando ao ápice da intolerância, do ressentimento e, culminando como mais um poderoso combustível – por que não? – para a violência que a todos oprime e escandaliza.

Apesar de o poder público ter se mobilizado na tentativa de funcionalizar o solo

urbano por meio de leis importantes promulgadas no país no decurso do século XX, essa

realidade se fez distante. Como exemplo dessas leis, pode-se apontar a Lei de Parcelamento

do Solo Urbano (Lei n. 6766/1979), e mais recentemente, o Estatuto da Cidade (Lei n.

10.257/2001). A pretensão do poder público com essas leis não se limitou a ordenar o solo

urbano, mas principalmente funcionalizá-lo, haja vista o crescimento das cidades no último

século.

Para cumprir essa finalidade, o Estatuto da Cidade trouxe instrumentos legislativos

para incentivar o melhor aproveitamento do solo como, por exemplo, o direito de superfície e

a usucapião coletiva; assim como as sanções para os casos de descumprimento da função

social, como IPTU progressivo, edificação compulsória e a desapropriação.

Nesse sentido, o art. 39 do Estatuto da Cidade determina que a função social da

propriedade é atingida, dentre outros requisitos, quando as exigências estabelecidas para a

ordenação da cidade são atendidas pelo imóvel; e também quando a propriedade atende às

necessidades dos cidadãos, contribuindo para uma melhor qualidade de vida, promovendo a

justiça social e o desenvolvimento da economia.

Esse diploma foi elaborado para regulamentar os arts. 182 e 183 da CRFB/88, que

trata da política urbana no país. O Estatuto da Cidade, conforme previsão contida no art. 1o,

parágrafo único, visa regular o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo. Pode-se,

afirmar, portanto, que a referida lei, como também a Lei n. 6766/1979 (Lei de Parcelamento

do Solo Urbano), pretendem combater a especulação imobiliária nas cidades brasileiras,

contribuindo para a efetividade do direito de moradia previsto no art. 6o da CRFB/88.

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129

Entretanto, na prática, pode-se observar a falta de efetividade das referidas leis.

Assim como o Estatuto da Terra, as leis que regulamentam o solo urbano são instrumentos

legislativos com ampla capacidade para a realização da funcionalização da propriedade

imóvel urbana no país. Tendo em vista a existência da legislação com qualidade técnica,

como também de órgãos governamentais para efetivá-las, causa indignação o volume de

imóveis nas grandes cidades que estão desocupados, sem cumprir nenhuma finalidade

econômica, inclusive prédios públicos, e por outro lado um grande número de pessoas sem

abrigo.

Entre outros motivos, a má distribuição da propriedade no país, seja ela urbana ou

rural, promove uma inquietação social que acaba fomentando a violência, tendo em vista que

a maior parte da população das grandes cidades brasileiras mora em zonas periféricas,

inexistindo a presença do Estado por meio de hospitais, escolas, coleta de lixo, saneamento

básico, o que contribui para o surgimento de um poder paralelo ao Estado, e de difícil controle

por ele. Pode-se verificar que em alguns lugares o Estado se faz presente somente por meio da

força policial repressiva. E assim as cidades crescem de forma desordenada, contrariando todo

o aparato legislativo, sem respeitar o meio ambiente, o mercado formal de trabalho, o acesso à

moradia digna.

Há uma perda social com essa inércia do poder público. Inúmeras vidas já foram

perdidas, e a violências nas reivindicações dos movimentos organizados criam um ambiente

de caos e insegurança social.

Pesquisas recentes divulgadas pelo IPEA247 (Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada), elaboradas com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-

2012), apontam uma estimativa de déficit habitacional no país em torno de 5 (cinco) milhões

de residências, fato que denuncia a existência de número significativo de pessoas que não

têm acesso à posse de um imóvel no país. O déficit brasileiro é majoritariamente urbano (85%

do total), restando à área rural um quantitativo aproximado de 742 mil famílias nesta

condição.

Apesar de estar prevista na CRFB/88 como direito fundamental, a moradia ainda

permanece no plano da retórica para muitos brasileiros. Além de fatores históricos, a crise de

moradia no Brasil também está associada ao modelo capitalista concentrador e excludente,

247 Em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=20656. Acesso em 31/01/2016.

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que promove o desemprego, subemprego e os baixos salários, fatos que dificultam o acesso à

habitação. Portanto, o déficit habitacional também encontra sua justificativa na distribuição

profundamente desigual da renda, como também nas condições específicas da produção e

comercialização capitalista da moradia, que impõem elevado preço à propriedade

regularizada.

Atualmente, a crise habitacional está agravada pela especulação imobiliária crescente

no país e pelo aumento dos preços dos imóveis e dos aluguéis, apontando-se, entre outras

justificativas para tal aumento, os eventos esportivos sediados pelo país. A título

exemplificativo, vale mencionar que os imóveis na cidade do Rio de Janeiro, desde 2008,

tiveram um aumento de 225%; em São Paulo esse aumento foi de 181%.248 Tal fato contribui

para o aumento do número de pessoas sem acesso à habitação.

Paradoxalmente, o IBGE (Instituto Nacional de Geografia e Estatística) divulgou o

resultado do Censo, mostrando que o número de domicílios vagos no país é maior do que o

déficit habitacional. Somente na cidade de São Paulo a pesquisa encontrou 400.000

(quatrocentos mil) imóveis vazios no Centro Antigo da Cidade. Existem hoje no Brasil,

segundo o Censo, pouco mais de 6 (seis) milhões de domicílios vagos249, incluindo os que

estão em construção. Ressalta-se que esses números não levam em consideração as moradias

de ocupação ocasional (de veraneio, por exemplo), nem as casas cujos moradores estavam

temporariamente ausentes durante a investigação mencionada.

Dados do IPEA, tomando por base a metodologia da agência da Organização das

Nações Unidas (ONU) para assentamentos humanos (UN-Habitat), indicam que 16

(dezesseis) milhões de brasileiros vivem em moradias precárias250; portanto, sem acesso à

água, luz, esgoto, escola ou posto de saúde, e sem título de propriedade.

Outro fenômeno preocupante é a densidade demográfica das favelas. De acordo com

os últimos dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em

2010, o número de habitantes nas favelas do país chegou a 11 (onze) milhões251. São pessoas

que vivem em situações subnormais, pela carência ou inadequação de serviços públicos de

248 Em: http://super.abril.com.br/blogs/crash/pronto-ja-temos-a-maior-bolha-imobiliaria-da-historia. Acesso em 31/01/2016.

249 Em: http://oglobo.globo.com/brasil/casa-propria-no-palanque-candidatos-inflam-planos-habitacionais-13473663. Acesso em 31/01/2016.

250 Em: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1119:reportagens-materias&Itemid=39. Acesso em 31/01/2016.

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qualidade, ocupando os territórios de forma densa e desordenada, que, na maioria dos casos,

são de domínio público, o que inviabiliza a aquisição futura da propriedade por esses

moradores, tendo em vista o impedimento constitucional da usucapião de terras públicas.

Outra face desse problema relaciona-se a questões ambientais, pois a população

excluída se aloja em áreas inadequadas, do ponto de vista de sua própria segurança, e também

no que diz respeito à preservação do meio ambiente. Há aglomerações de moradias em beiras

de rios, em regiões de mananciais, mangues e dunas, por exemplo. No município de São

Paulo, mais de 1 (um) milhão de pessoas vivem em áreas de proteção de mananciais252, o que

prejudica a qualidade da água que abastece a cidade e põe em risco o seu fornecimento futuro.

No campo, a situação não é diferente. A Comissão Pastoral da Terra veiculou o

relatório sobre os conflitos no campo no ano de 2015 que indicam 49 assassinatos, na maioria

posseiros, sem terras e assentados da reforma agrária.253 Para a Comissão da Pastoral da Terra,

esses dados evidenciam que não é por causa da ação dos sem-terra que a violência no campo

persiste, mas sim devido à violência sobre a qual se alicerçou todo o processo de ocupação

territorial brasileiro desde o tempo da Colônia até os dias de hoje.254

Diante desse cenário, tanto o Poder Legislativo, como o Poder Judiciário precisam

ser proativos no intuito de proteger a figura do possuidor, reconhecendo a importância da

função social da posse sobre o bem imóvel, para que a justiça social pretendida pela CRFB/88

saia do plano da retórica e alcance a efetividade não seio da sociedade brasileira.

Há muito a ser feito no país para que as pessoas que sempre estiveram excluídas do

sistema de distribuição das terras consigam alcançar a condição de cidadãos, com direito à

moradia digna e serviços públicos adequados, conforme está previsto há décadas na legislação

do país.

O direito à moradia, à aquisição de propriedade, a regulamentação da posse poderiam

ocorrer se houvesse vontade política para a realização de tal propósito. As leis já existem. Não

251 Em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/mais-de-11-milhoes-de-brasileiros-vivem-em-favelas. Acesso em 31/01/2016.

252 Em: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1119:reportagens-materias&Itemid=39. Acesso em 31/01/2016.

253 Em: http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes-2/destaque/3044-balanco-da-questao-agraria-no-brasil-em-2015. Acesso em 31/01/2016.

254 Em: http://www.vermelho.org.br/noticia/152369-8. Acesso em 31/01/2016.

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é necessária a criação de mais leis. O que precisa é sua aplicabilidade por parte dos poderes

públicos, no intuito de evitar que o solo se transforme unicamente em instrumento de

aproveitamento econômico. Nesse cenário, a atuação do Judiciário é de grande relevância.

3.6 A Constituição Brasileira de 1988 como paradigma do Direito Civil

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) inaugurou a filosofia da

proteção da dignidade da pessoa humana, irradiando tais valores para vários sistemas jurídicos

no mundo.

Como em diversos países, o Código Civil brasileiro (1916) foi inspirado no Código

Napoleônico, que atendia os anseios da burguesia inspirada pelos ideais do liberalismo

econômico. Nesse passo, o Código Civil brasileiro privilegiava a livre iniciativa, a

propriedade privada e instrumentos formais de circulação de riqueza, como o contrato, a

propriedade e o testamento.

Referindo-se ao ideal burguês, Cláudio Luiz Bueno de Godoy255 elucida que:

À classe burguesa que ascendia, cuja atividade de produção alterava a índole agrária da economia da Idade Média, convinha a instrumentalização jurídica ou a ideologia mesmo da liberdade contratual, a absolutização, quase que completa, da autonomia da vontade, quando revelada pela tríplice e intocável prerrogativa de escolher contratar, o que contratar e com quem contratar, de resto tanto quanto sucedia com o instituto da propriedade, longe de ser admitida como uma relação jurídica complexa, que impusesse também deveres ao proprietário e criasse direitos a centros de interesses opostos, não-proprietários.

O Código Civil de 1916 não fugiu ao modelo liberal da época e, no intuito de

garantir a estabilidade das atividades privadas, protegia o patrimônio, em detrimento de outros

valores atinentes à pessoa, conferindo ênfase ao ter e não ao ser. Para ser sujeito de direito;

ou seja, contrair obrigações e adquirir direitos, o indivíduo teria que possuir um patrimônio,

pois, para o Código, somente importavam as situações jurídicas de cunho patrimonial. 255 GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato: os novos princípios contratuais. Coleção Prof. Agostinho Alvim. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 4.

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O indivíduo era abstratamente considerado, na medida em que suas necessidades

básicas eram tratadas com indiferença, tanto pelo Estado, quanto pela sociedade. Os

interesses extrapatrimoniais eram tratados como secundários e marginais.

Teoricamente o Estado não interferia nas relações privadas; ao contrário, a ideologia

liberal renegava qualquer intervenção, entendendo-a como arbitrária. O cenário era de divisão

entre o direito público e o direito privado, em compartimentos estanques. O direito público

disciplinava unicamente a estrutura e funcionamento do Estado, enquanto que o direito

privado cuidava das relações intersubjetivas.

Tratando do tema, Gustavo Tepedino256 esclarece:

Afirmava-se, significativamente – e afirma-se ainda hoje nos cursos jurídicos –, que o Código Civil Brasileiro, como os outros códigos de sua época, era a Constituição do direito privado. (...) O direito público, por sua vez, não interferiria na esfera privada, assumindo o Código Civil, portanto, o papel de estatuto único e monopolizador das relações privadas. O Código almejava a completude, que justamente o deveria distinguir, no sentido de ser destinado a regular, através de situações-tipo, todos os possíveis centros de interesse jurídico de que o sujeito privado viesse a ser titular. (...) Segurança – é de se sublinhar – não no sentido dos resultados que a atividade privada alcançaria, senão quanto à disciplina balizadora dos negócios, quanto às regras do jogo.

No período das mazelas visíveis no pós-guerra, passou-se a admitir e até defender a

atuação do Estado, no intuito de corrigir desigualdades sociais. Foi quando se criou o Estado

de Bem Estar Social. Por força das circunstancias, teve início um movimento intervencionista

na economia, além de programas assistenciais.

Essa tendência obrigou o Direito Civil a se redimensionar. Em uma primeira fase,

criaram-se leis excepcionais, que regulavam setores não disciplinados pelo Código, em caráter

emergencial ou excepcional. Na segunda etapa, a evidência de lacunas no Direito Civil

provocou a aprovação de leis especiais, que disciplinavam determinados temas, não mais em

caráter excepcional. Nesse momento, o Código Civil perdeu seu caráter de estatuto exclusivo

das relações patrimoniais privadas.

Posteriormente, sucedeu-se uma terceira fase, na qual o legislador passou a criar leis

que tratavam amplamente de determinados assuntos subtraídos do Código Civil. Evidenciou-256 TEPEDINO, op. cit., p. 2-3.

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se, então, a proliferação dos chamados microssistemas, na denominada Era dos Estatutos.

Pode-se citar como exemplo de produção legislativa da época, a elaboração do Código de

Defesa do Consumidor, do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Lei dos Direitos

Autorais, da Lei de Locações, entre outras.

O Código Civil passou a ser tratado como fonte residual na disciplina de algumas

matérias. A legislação especial se expandiu e o âmbito de abrangência do Código Civil se

estreitou. Nesta fase, também se verificou a inclusão de princípios e normas de conteúdo

privatista nos textos constitucionais, no intuito de limitar a autonomia privada e estabelecer

deveres sociais no desenvolvimento da atividade econômica privada.

Por seu turno, as Constituições passaram a abarcar temas antes exclusivos do Código

Civil, como a função social da propriedade e a organização da família, entre muitos outros. O

Código Civil, até então definido como a Constituição do direito privado, cedeu espaço ao

Direito Constitucional.

Em relação ao assunto, é muito elucidativa a lição de Gustavo Tepedino257:

O Código Civil perde, assim, definitivamente, o seu papel de Constituição do direito privado. Os textos constitucionais, paulatinamente, definem princípios relacionados a temas antes reservados exclusivamente ao Código Civil e ao império da vontade: a função social da propriedade, os limites da atividade econômica, a organização da família, matérias típicas do direito privado, passam a integrar uma nova ordem pública constitucional. Por outro lado, o próprio direito civil, através da legislação extracodificada, desloca sua preocupação central, que já não se volta tanto para o indivíduo, senão para as atividades por ele desenvolvidas e os riscos delas decorrentes.

As Constituições democráticas, formuladas no pós-guerra e alicerçadas no princípio

da dignidade da pessoa humana, trouxeram à baila o descompasso entre os valores

constitucionais e a filosofia liberal da legislação civil. A incompatibilidade entre a esteira

constitucional e a legislação civil aconteceu em vários países.

A Itália foi o primeiro país a proclamar nova constituição após a Segunda Guerra

Mundial. O texto constitucional italiano acolheu plenamente a proteção e a defesa da

257 Idem, p. 7.

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dignidade da pessoa humana. O direito civil italiano, cujo Código havia sido promulgado em

1942, era baseado na produtividade do período fascista e na propriedade individual.

Nos códigos oitocentistas, o centro de gravidade dos direitos subjetivos era a

propriedade privada. Resguardava-se a autonomia privada, partindo-se do pressuposto de

que, teoricamente, podiam ser proprietários eis que eram igualmente livres para o exercício

deste direito. Também no Brasil, o Código conferia ênfase à tutela da atividade econômica do

homem-proprietário, tais como o contrato, o testamento, os direitos de sucessão e os regimes

de bens da relação matrimonial.

Nesse sentido, Cláudio Ari Mello258 afirma que:

O grande sonho do burguês era reduzir o homem a proprietário-contratante. (...) Aos poucos, contudo, a evolução da sociedade e da própria cultura jurídica impôs uma mudança do foco de atenção do direito privado acerca do homem e das suas relações sociais (...) Grande parte das nações ocidentais é formada por indivíduos sem propriedade, e as principais relações em que eles se envolvem concernem a bens distintos da propriedade imobiliária e seus acessórios, objeto da preocupação central do direito civil da primeira codificação. (...) Por outro lado, a descoberta da personalidade humana, como um aspecto inerente à natureza do homem e fundamental para a sua qualidade de vida, despertou a necessidade de tutelar alguns desses valores através do direito.

Com a evolução trazida pelo novo modelo constitucional, devido à notória

incompatibilidade do Código italiano com a Constituição, alguns doutrinadores submeteram

os conceitos civilistas ao filtro constitucional.

Veio a lume, então, o movimento denominado de Direito Civil Constitucional ou

Constitucionalização do Direito Civil, entre outras designações. De acordo com Teresa

Negreiros259, “o processo de constitucionalização do direito civil implica a substituição do seu

centro valorativo – em lugar do indivíduo surge a pessoa. E onde dantes reinava, absoluta, a

liberdade individual, ganha significado e força jurídica a solidariedade social.”

258 MELLO, Cláudio Ari. Contribuição para uma teoria híbrida dos direitos de personalidade. In: SARLET, Ingo W. (Org). O Novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 70.

259 NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 11.

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Esse movimento influenciou a doutrina brasileira, tendo em vista que o Código Civil

de 1916 refletia a filosofia individualista da revolução burguesa. O texto constitucional de

1988 conferiu novo papel ao direito civil, levando a doutrina nacional a repensá-lo sob à luz

dos fundamentos constitucionais. Operou-se, assim, verdadeira mudança paradigmática do

direito civil brasileiro, dando origem à perspectiva civil-constitucional260; ou seja, um direito

civil informado pelos princípios estabelecidos na Constituição, que passou a ser a mais

legítima fonte de irradiação dos valores que unificam axiologicamente todo o conjunto

normativo.

Como ressaltou Teresa Negreiros261, os institutos do Direito Civil, tais como a

família, o direito obrigacional e o real, o direito sucessório, entre outros, passam a disciplinar-

se tanto pelas normas inseridos no Código Civil, mas também pelas regras e princípios

previstos na Constituição Federal. Dessa forma, afirma a autora que “a hierarquia da

normativa constitucional, desde há muito reconhecida sob o ponto de vista teórico, torna-se

um objetivo a ser concretizado na prática.”

Nesse cenário, o patrimônio perdeu a centralidade no ordenamento civil, cedendo

espaço à pessoa concretamente considerada como titular de direitos e obrigações. Heloísa

Helena Barbosa262 presta interessante esclarecimento ao assunto, ao firmar que:

...substituiu-se a ótica liberal, individualista, patrimonialista do século passado, por uma visão que se pode denominar humanista. O homem continua como centro de estruturação do sistema jurídico, porém, não mais como produtor e motor da circulação de riquezas, e sim como ser humano, que deve ser respeitado e assegurado em todas as suas potencialidades como tal. O patrimônio deixa de ser o eixo da estrutura social, para se tornar instrumento da realização das pessoas humanas. Em outras palavras, o homem não mais deve ser ator no cenário econômico, mas regente das atividades econômicas. Insista-se: o homem deve servir do patrimônio, não ao patrimônio.

260 Para Luiz Edson Fachin, “... o Direito Civil-Constitucional evidencia três superações: a do monismo das fontes, a da rigidez literal da hermenêutica, e a da significação monolítica de institutos e figuras jurídicas fundantes da radiografia das relações sociais, como contrato, família e propriedade”. FACHIN, Luiz Edson. Ensaio sobre a incidência dos Direitos Fundamentais na Constitucionalização do Direito Privado Brasileiro Contemporâneo a partir do Direito Civil-Constitucional no Brasil. In: BRAGA, Renata (Coord). Direitos Fundamentais e Novos Direitos. 2ª série. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 68.

261 NEGREIROS, op. cit., p. 50.

262 BARBOSA, Heloísa Helena. Perspectivas do Direito Civil Brasileiro para o Próximo Século. In: Revista da Faculdade de Direito, Rio de Janeiro, UERJ/Renovar, n° 6 e 7, 1998/1999, p. 33.

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Como se expôs, as codificações editadas após a Segunda Guerra Mundial mudaram o

foco de atenção, passando a tutelar os direitos referentes à personalidade. Inaugurou-se um

movimento de despatrimonialização do direito civil, em que a primazia da propriedade cede

espaço ao ser humano como centro valorativo do sistema jurídico.

Se o patrimônio foi considerado atributo da personalidade263, quando essa era

analisada abstratamente, atualmente considera-se a pessoa concreta, com suas necessidades,

anseios e sentimentos. É a chamada repersonalização do direito, termo usado por Luiz Edson

Fachin264 que, ao explicitar seu significado, afirma que:

Esse movimento coloca no centro as pessoas e as suas necessidades fundamentais, tais como a habitação minimamente digna. Não se trata de acaso, mais uma vez, o fato de, atualmente, aparecer a noção de defesa do patrimônio mínimo: o módulo rural passa a ser impenhorável e o bem legal de família se insere neste momento em homenagem, não a valores patrimoniais, mas, sim, a certos valores que retiram a possibilidade da execução creditícia.

263 Para Luiz Edson Fachin, “o patrimônio foi considerado, por muitos autores ‘atributo da personalidade’. Duas reflexões devem ser levadas em consideração nessa perspectiva. Em primeiro lugar, a personalidade a que se está a referir-se é a personalidade abstrata, ou seja, aquela que é conferida pelo ordenamento, tornando alguém apto a ser sujeito de direitos. Não se trata da pessoa concreta, com necessidades, sentimentos, desejos, aptidões, mas de uma categoria abstrata, que não se confunde com o ser humano em concreto. Em segundo lugar, a idéia de que o patrimônio seria atributo da personalidade faz com que se chegue à idéia de que a personalidade se confunde com o próprio patrimônio. (...) Desse modo, privilegiar-se o patrimônio – ao contrário do que se poderia imaginar, em uma visão pouco aprofundada do que significaria essa noção de “atributo da personalidade” – é colocar à margem o valor constitucional da dignidade da pessoa humana. Esta tem agora, sob o texto de 1988, o status de princípio cardeal organizativo dentro do sistema jurídico, e toda regra, positivada ou proposta, que com esse princípio colide, no todo ou em parte, é inconstitucional.” FACHIN, Luiz Edson. Sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro: crítica à racionalidade patrimonialista e conceitualista. In: Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, v. LXXVI, 2000, p. 131.

264 FACHIN, op. cit., p. 78.

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Com efeito, da interpenetração dos seus conteúdos265 ofusca a dicotomia entre direito

público e direito privado. Muitas relações jurídicas, tidas tradicionalmente como privadas,

extravasam o interesse das partes envolvidas, passando a interessar também à coletividade.

Por outro lado, o Estado se vale da normativa privada em suas relações com particulares.

Em relação a summa diviso entre direito público e direito privado, acrescenta

Gustavo Tepedino266 que se torna inevitável a superação dessa divisão, haja vista a dificuldade

em se delimitar o exato território do direito público e do direito privado. Dessa forma, o autor

entende que a distinção entre os dois ramos do Direito ocorrerá pela prevalência do interesse

público ou do interesse privado da lei, e não pela inexistência da intervenção pública nas

atividades do Direito Privado, ou ao contrário, negando-se a participação dos cidadãos nas

esferas da administração pública. E acrescenta o autor que essa “alteração tem enorme

significado hermenêutico, e é preciso que venha a ser absorvida pelos operadores.”

Nesse movimento, assumem relevância jurídica as necessidades humanas. O

ordenamento jurídico, no intuito de promover o princípio da dignidade da pessoa, passa a

primar pelo desenvolvimento do indivíduo em todas as suas potencialidades, levando em

consideração as condições específicas da pessoa, criando, para isso, regimes diferenciados. A

leitura constitucionalizada do direito civil prima pelo ser sobre o ter. Porém, como ressalta

Pietro Perlingieri267 não se trata de uma redução ou aniquilamento do conteúdo patrimonial no

sistema jurídico, pois afirma o autor que o “momento econômico” integra a realidade social

organizada, e por isso não pode ser eliminado. Nesse sentido, autor afirma que:

A divergência (...) concerne à avaliação qualitativa do momento econômico e à disponibilidade de encontrar, na exigência de tutela do homem, um aspecto idôneo, não a “humilhar” a aspiração econômica, mas, pelo menos, a

265 Hannah Arendt faz uma importante observação sobre a noção indivisa de público/privado, alegando que “é em relação a esta múltipla importância da esfera pública que o termo ‘privado’, em sua concepção original de ‘privação’, tem significado. Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação ‘objetiva’ com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida. A privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes, o homem privado não se dá a conhecer, e portanto é como se não existisse. O que quer que ele faça permanece sem importância ou conseqüência para os outros, e o que tem importância para ele é desprovido de interesse para os outros.” ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 68.

266 TEPEDINO, op. cit., p. 19-20.

267 PERLINGIERI, op. cit., p. 33.

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atribuir-lhe uma justificativa institucional de suporte ao livre desenvolvimento da pessoa. (...) não pode ser “radicalmente alterada a natureza dos institutos patrimoniais do direito privado”. Estes não são imutáveis: por vezes são atropelados pela sua incompatibilidade com os princípios constitucionais, outras vezes são exaustorados ou integrados pela legislação especial e comunitária; são sempre, porém, inclinados a adequar-se aos novos “valores”, na passagem de uma jurisprudência civil dos interesses patrimoniais a uma mais atenta aos valores existenciais.

O legislador do Código Civil/2002 recorreu às chamadas cláusulas gerais, também

denominadas de cláusulas abertas, para viabilizar a entrada dos princípios e valores previstos

na Constituição Federal, na interpretação das normas contidas no atual Código Civil. As

cláusulas gerais podem ser definidas como normas incompletas, cujo enunciado não se

preocupa com enunciar a hipótese e todas as suas consequências. Assim entendidas, não

detêm autonomia típica de outras normas jurídicas, sendo destinadas a concretizar-se no

âmbito dos programas normativos de outras disposições, ainda que as mesmas, com

normatividade e tipicidade autônoma, sejam princípios.

As cláusulas gerais constituem importante instrumento utilizado pelo legislador

brasileiro para a constante atualização dos preceitos contidos no Código Civil/2002, além de

servir como porta de entrada dos princípios e valores constitucionais. Dessa forma, os

institutos do Direito não ficam ultrapassados com grande rapidez, pois podem ser adaptados

às alterações sociais por meio das cláusulas abertas. Com evita-se que novas leis tenham que

ser elaboradas.

Conforme lição de Gustavo Tepedino268:

Torna-se imprescindível (...) que o intérprete promova a conexão axiológica entre o corpo codificado e a Constituição da República, que define os valores e os princípios fundantes da ordem pública. Desta forma dá-se um sentido uniforme às cláusulas gerais, à luz da principiologia constitucional, que assumiu o papel de reunificação do direito privado, diante da pluralidade de fontes normativas e da progressiva perda de centralidade interpretativa do Código Civil de 1916.

268 TEPEDINO, op. cit., p. XX.

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140

A Constituição da República opera como foco de informações e o Código Civil de

2002 como corpo de normas, com cláusulas abertas que viabilizam a aplicação dos princípios

e valores constitucionais.

3.7 Eficácia horizontal dos direitos fundamentais

É pacífico o entendimento de que os direitos fundamentais vinculam a atuação do

Poder Público em todas as suas dimensões, sejam elas administrativas, judiciais ou

legislativas. Nessa direção, as Constituições contemporâneas contêm preceitos que

determinam expressamente a vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais.

Todavia, a proteção aos direitos fundamentais exige tutela em face de ameaças que podem

advir das relações privadas. A tênue fronteira entre o direito público e o direito privado

contribuiu para a incidência do direito constitucional nas relações privadas. Partindo dessa

perspectiva, indaga-se sobre a questão relativa à existência de outros destinatários das normas

de direito fundamental; ou seja, discute-se se estas normas obrigam também particulares, tema

que causa controvérsias doutrinárias.

O estudo sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivadas teve

início na década de cinquenta do século passado; a partir de então, instaurou-se o debate, tanto

na doutrina, quanto na jurisprudência, sobre a admissibilidade, a forma e o grau de incidência

dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.

A Alemanha foi o primeiro país a aplicar os direitos fundamentais diretamente nas

relações interprivadas, como se pode constatar no leading case denominado caso Lüth269. O

debate sobre a questão da eficácia dos direitos fundamentais ganhou significativo impulso na

Alemanha após o advento da Lei de Bonn, em 1948. Como esclareceu, Jane Reis270:

269 Este leading case ocorreu em 1950, quando um cineasta já “desnazificado” iria estrear um novo filme. Erich Lüth, então presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo, pressionou distribuidores e donos de cinemas para que não o incluíssem em sua programação. Sustentava Lüth que caso o filme entrasse em cartaz, seria dever dos “alemães decentes” não o assistir. O produtor e o distribuidor da obra, então, processaram-no por perdas e danos perante o juízo cível, o qual, aceitando as ponderações feitas, considerou aquelas declarações como uma incitação ao boicote e contrárias à moral e aos bons costumes. O réu foi proibido, com base no § 826 do BGB, de manifestar-se a respeito do filme. Lüth apresentou um reclamação constitucional, valendo-se do direito fundamental à liberdade de expressão (art. 5° da Lei Fundamental). A decisão do Tribunal Constitucional reformou, em favor de Lüth, a sentença do juízo cível e considerou ter havido, no caso, violação do direito à liberdade de expressão. MORAES, op. cit., p. 107-108.

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A concepção da constituição (sic) como estatuto axiológico da sociedade é produto do constitucionalismo germânico, tendo sido desenvolvida e estruturada na jurisprudência da Corte Constitucional a partir da vigência da Lei Fundamental de Bonn. A idéia central inerente a esta visão é a de que, por meio da constituição (sic), a comunidade estabelece um arsenal de valores que hão de orientar e conformar não apenas a ordem jurídica estatal, mas a vida social genericamente considerada. Nessa perspectiva, as escolhas valorativas postas na constituição (sic) – e que são exprimidas no rol de direitos fundamentais – devem orientar a ação do Estado e de todos os setores da sociedade.

Alguns autores defendiam a incidência direta dos direitos fundamentais tanto nas

relações do indivíduo com o Estado, quanto nas relações entre particulares (teoria da eficácia

imediata ou direta), enquanto outros admitiam apenas influência indireta dos direitos

fundamentais na esfera privada (teoria da eficácia mediata ou indireta).

3.7.1 Eficácia indireta ou mediata dos direitos fundamentais nas relações privadas

Os estudiosos que negam a possibilidade de invocação direta das normas

constitucionais na resolução dos litígios privados alegam que os particulares não podem

extrair direitos subjetivos privados (não previstos nas leis civis) diretamente do texto

constitucional. Outros argumentam que tal postura degrada o princípio da autonomia da

vontade, descaracterizando o direito civil. Outros ainda defendem a aplicação das normas

constitucionais, somente quando houver lacuna na legislação civil.

Para essa corrente teórica, a dimensão objetiva e valorativa dos direitos fundamentais

não tem incidência direta nas relações privadas; apenas implica a necessidade de o Estado

levar em conta tais direitos no momento da criação legislativa e quando da interpretação do

direito privado, atuando como mediador da aplicação dos direitos fundamentais no âmbito

privado.

270 PEREIRA, Jane Gonçalves. Apontamentos sobre a Aplicação das Normas de Direito Fundamental nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 149.

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Assim entendida, a eficácia horizontal das normas de direito fundamental somente

ocorreria de forma indireta ou mediata, no momento em que os legisladores criam as leis,

objetivando concretizar a normativa constitucional, ou então, quando o juiz interpreta o

direito privado à luz dos valores contidos nos direitos fundamentais.

Referindo-se ao assunto, Daniel Sarmento271 afirma que:

... para os adeptos da teoria da eficácia indireta, cabe antes de tudo ao legislador privado a tarefa de mediar a aplicação dos direitos fundamentais sobre os particulares, estabelecendo uma disciplina das relações privadas que se revele compatível com os valores constitucionais. Competiria ao legislador proteger os direitos fundamentais na esfera privada, mas sem descurar-se da tutela da autonomia da vontade. (...) Ao Judiciário sobraria o papel de preencher as cláusulas indeterminadas criadas pelo legislador, levando em consideração os direitos fundamentais, bem como o de rejeitar, por inconstitucionalidade, a aplicação das normas privadas incompatíveis com tais direitos (...). Apenas em casos excepcionais, de lacuna do ordenamento privado, e de inexistência de cláusula geral ou de conceito indeterminado que possa ser preenchido em harmonia com os valores constitucionais, é que se permitiria ao juiz a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, independentemente da mediação do legislador.

Esse entendimento reconhece que a eficácia direta dos direitos fundamentais nas

relações particulares acarretaria esvaziamento da autonomia privada, que também é um direito

fundamental, constitucionalmente protegido. A liberdade individual ficaria submetida ao

arbítrio dos juízes, tendo em vista que os direitos fundamentais são normas indeterminadas.

Portanto, para os defensores da eficácia indireta ou mediata, é somente por meio de

cláusulas gerais, inseridas no ordenamento civil, tais como os bons costumes, a boa-fé, a

função social da propriedade, entre outras, que operam o intercâmbio valorativo entre direito

público e direito privado, não se aplicando a norma fundamental diretamente nas relações

interprivadas.

3.7.2 Eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas

271 SARMENTO, op. cit., p. 241.

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Segundo a teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais, nas relações que

envolvam particulares, os direitos fundamentais incidem diretamente nas relações

interprivadas, conferindo validade jurídica aos negócios realizados entre os indivíduos. Isto

se deve, entre outros fatores, à expansão experimentada pelos direitos fundamentais nos

últimos tempos. De acordo com Juan María Bilbao Ubillos272,

A proeminência ou o sucesso dos direitos fundamentais na cultura jurídica atual encontra-se no fato de que as normas que os reconhecem são de aplicação direta e imediata, e que têm um conteúdo principial, um substrato muito aberto, por isso tendem a se expandir, a penetrar e preencher impetuosamente todos os interstícios do ordenamento. (...) Assistimos, com efeito, um processo de contínua expansão dos direitos fundamentais, em várias direções. Seu conteúdo se enriquece incesantemente: dia a dia, os tribunais descobrem novas posibilidades (às vezes inesperados) de penetração daqueles direitos, novos cenários nos quais se espera poder operar.273 (tradução livre)

No entanto, é importante destacar que os seguidores desta teoria não negam as

especificidades dessa incidência, nem a necessidade de ponderar o direito fundamental como

a autonomia privada dos particulares envolvidos no caso. Assim, a aplicação dos direitos

fundamentais diretamente nas relações interprivadas deverá respeitar limites de incidência, a

ser analisado de acordo com o caso concreto.

A aplicabilidade direta e imediata (art. 5°, parágrafo 1° da CF/88) da normativa

constitucional sobre as relações interprivadas resume a proposta metodológica da perspectiva

civil-constitucional. Nesse sentido, sustenta Luiz Edson Fachin274 que:

272 UBILLOS, Juan María Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales? In: SARLET, Ingo W. (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direitos Privados. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 306.

273 “El protagonismo o el éxito de los derechos fundamentales en la cultura jurídica actual radica en que las normas que los reconocen son de aplicación directa e inmediata, pero tienen un contenido principial, un sustrato muy abierto, por lo que tienden a expandirse, a penetrar y rellenar impetuosamente todos los intersticios del ordenamiento. (...) Asistimos, en efecto, a un proceso de continua expansión de los derechos fundamentales, en varias direcciones. Su contenido se enriquece incesantemente: día a día, los tribunales descubren nuevas posibilidades (a veces insospechadas) de penetración de aquellos derechos, nuevos escenarios en los que se estima que pueden operar.”

274 FACHIN, op. cit., p. 37-38.

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No domínio juscivilístico não estão tão-só as regras tradicionalmente aplicáveis às relações de Direito Civil. Chamadas à colação estão as normas constitucionais e nelas encartados os princípios constitucionais vinculantes e de caráter normativo. (...) Os princípios e as regras constitucionais se aplicam direta e imediatamente nas relações interprivadas. (...) As coordenadas constitucionais só têm limite nos próprios princípios, não podendo, assim, a solução concreta da legislação infraconstitucional, especial ou ordinária, contrastar essa diretiva máxima do Estado democrático de Direito.

Os Direitos Fundamentais não se restringem à limitação frente e contra o Estado,

pois são oponíveis perante os demais cidadãos, nas suas inter-relações cotidianas, tomando

corpo a expressão direitos públicos subjetivos. Por outro lado, não se pode esquecer que a

intervenção direta do Estado nas relações de direito privado não significa agigantamento do

direito público, em detrimento do direito civil.

Admitir que as normas constitucionais podem incidir diretamente sobre as relações

privadas somente em casos excepcionais é tese incompatível com a moderna hermenêutica

constitucional, pois desprestigia a força da Constituição no ordenamento jurídico.

Nessa linha, cumpre refletir sobre a seguinte análise de Pietro Perlingieri275:

Idêntico juízo também deve ser expresso àquela opinião – dita da “aplicabilidade (somente) indireta” – pela qual a norma constitucional poderia disciplinar uma relação de direito civil unicamente através da concomitante aplicação de uma norma ordinária, de maneira que, à falta de uma norma ordinária aplicável ao caso concreto, aquela constitucional não poderia atuar sozinha. As normas constitucionais – que ditam princípios de relevância geral – são de direito substancial, e não meramente interpretativas; o recurso a elas, mesmo em sede de interpretação, justifica-se, do mesmo modo que qualquer outra norma, como expressão de um valor do qual a própria interpretação não pode subtrair-se. É importante constatar que também os princípios são normas. Não existem, portanto, argumentos que contrastem a aplicação direta: a norma constitucional pode, também sozinha (quando não existirem normas ordinárias que disciplinem a fattispecie em consideração), ser a fonte da disciplina de uma relação jurídica de direito civil. Esta é a única solução possível, se se reconhece a preeminência das normas constitucionais – dos valores por elas expressos – em um ordenamento unitário, caracterizado por tais conteúdos.

275 PERLINGIERI, op. cit., p. 11.

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145

Porém, a dúvida que se coloca no tocante à aplicação desses direitos diretamente nas

relações interprivadas diz respeito à forma e à intensidade da incidência dos direitos

fundamentais, tendo em vista o princípio da autonomia privada, constitucionalmente

protegido.

Sobre esta questão, Daniel Sarmento276 faz a seguinte observação:

Não seria aceitável sujeitar o cidadão ao mesmo regime vigente para o Estado, na qualidade de sujeito passivo dos direitos fundamentais, diante da liberdade constitucionalmente desfrutada pelo primeiro, que se apresenta como corolário inafastável da sua dignidade como pessoa humana, em oposição ao caráter intrinsecamente limitado do segundo.

Depreende-se do exposto que a forma e a intensidade com que esses direitos

incidirão nas relações entre particulares terão que ser coerentes com o sistema constitucional

brasileiro, buscando extrair dele os modelos adequados para resolver o conflito entre tais

direitos e o princípio da autonomia privada, que é um desdobramento dos princípios da

dignidade humana e da liberdade, previstos, respectivamente, no art. 1°, III e art. 5°, caput e

inciso II da CF/88.

Atualmente, os direitos fundamentais penetram em todos os ramos do Direito.

Substitui-se a tradicional summa diviso do direito em público e privado pela técnica de

interpretação e aplicação do direito que melhor resguarda os direitos fundamentais da pessoa

humana.

Cumpre reiterar que os princípios constitucionais não se limitam a incidir nas

relações entre indivíduo e Estado, pois que eles incidem diretamente nas relações

interprivadas, no intuito de proteger o indivíduo plenamente. Cabe ao magistrado analisar o

caso trazido ao juízo, utilizando-se, para sua solução, além da normativa civilista tradicional,

as normas fundamentais do texto constitucional.

Como exposto, as normas constitucionais fundamentais têm aplicação direta e

imediata, além de servir como limite legislativo e condicionar a exegese das normas privadas.

Em outras palavras: contendo a Constituição Federal brasileira, normas jurídicas de eficácia

276 SARMENTO, op. cit., p. 5-6.

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plena, essas poderão incidir diretamente nas relações interprivadas, não necessitando de

mediação do legislador civil para terem efetividade.

3.7 A posse no Código Civil/2002

O Código Civil de 2002, guardando coerência com a principiologia da CRFB/88,

abandona a perspectiva patrimonialista e individualista que marcaram significativamente a

legislação civil anterior e garante maior proteção à pessoa, mesmo no âmbito das relações

privadas. Em respeito à Carta Magna, o Código se estruturou sobre os paradigmas da

eticidade, da operabilidade ou concretude e sociabilidade.

A codificação civil de 1916 era pautada num sistema normativo que conferia

predomínio à forma em detrimento do fundamento axiológico. No propósito de garantir a

segurança jurídica, a legislação civil primava pela subsunção do fato à norma, transformando

o magistrado em autômato do Direito, por meio do método interpretativo exegético.

Essa postura formalista do Direito encontra-se estruturada na Teoria Pura do Direito,

tal como definida por Hans Kelsen277. A pureza do método restringe o Direito e sua

interpretação ao prescrito pelo legislador, no intento de isolar o aplicador da lei de influxos

valorativos ou éticos, que seriam estranhos a uma ciência. A discussão em torno da Justiça se

circunscrevia à aplicação técnica da lei e a emanação da norma por iniciativa de uma

autoridade competente. Tratava-se de um sistema autopoiético, que não admitia a interlocução

metajurídica com a contribuição de ciências, como a Sociologia, a Filosofia, a Psicanálise,

entre outras. O Direito era a expressão do direito positivo legislado.

277 Para Kelsen, “a Teoria Pura do Direito, como específica ciência do Direito, concentra (...) a sua visualização sobre as normas jurídicas e não sobre os fatos da ordem do ser, quer dizer: não a dirige para o querer ou para o representar das normas jurídicas, mas para as normas jurídicas como conteúdo de sentido – querido ou representado. Ela abrange e apreende quaisquer fatos apenas na medida em que são conteúdo de normas jurídicas, quer dizer, na medida em que são determinados por normas jurídicas. O seu problema é a específica legalidade autônoma de uma esfera de sentido.” KELSEN, op. cit., p. 114.

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147

O positivismo empreendeu intensa busca no sentido da objetividade, apartando o

sujeito (intérprete) do objeto (norma), na tentativa de preservar a norma jurídica de opiniões e

preferências, conferindo-lhe o caráter de ciência, destacada da interpretação e da razão

prática, e associada à razão instrumental e ao cálculo. Assim definida, toda ciência objetiva

separar os juízos de fato dos juízos de valor. A distinção entre eles decorre da natureza

diversa que assumem: os juízos de fato têm o objetivo de informar a constatação apurada da

realidade de forma neutra, fazendo um relato imparcial, ao passo que os juízos de valor

representam uma tomada de posição sobre a realidade. Para o positivismo, a ciência jurídica

fundamenta-se exclusivamente em juízos de fato.278

Decorre desses postulados que o positivismo jurídico concebeu o direito como

dogmático, com o conhecimento voltado apenas para a lei e o ordenamento jurídico. Os

conceitos jurídicos eram considerados como verdadeiros dogmas, não sujeitos à revisão ou

discussão. Como dogma, o direito justificava sua legalidade em si mesmo e, assim, não era

no âmbito da ciência jurídica que se deveria travar a discussão acerca das questões sobre sua

legitimidade.279

O formalismo positivista fazia uma discussão dos conceitos como tais, validando o

direito por meio de estruturas formais. Com essa orientação, preenchidos os critérios

estabelecidos pela lei, a norma era considerada válida, independentemente de ser justa. Como

foi ressaltado, no cenário positivista, o direito encontrava-se completamente apartado da

moral.

Ao método positivista associou-se a concepção voluntarista, que entendia o direito

como a expressão da vontade do legislador, estando o seu conteúdo identificado com a

norma. De acordo com António Manuel Hespanha280, pela concepção voluntarista do direito,

o jurista deve “interpretar, da forma mais humilde possível, a vontade da entidade que quis o

direito.” Este autor281 acrescenta que “a atitude do voluntarismo não é, de modo algum,

pensar o direito mas, em vez disso, obedecer ao direito.”

278 BOBBIO, op.cit., p. 131.

279 BARROSO, op. cit., p.24.

280HESPANHA, op. cit., p. 111.

281 Idem, p. 111.

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148

Dessa forma, o Estado tornou-se a única fonte normativa, não podendo o aplicador

da lei desobedecer a vontade subjacente aos preceitos legais por ele instituídos. Por

consequência, não cabe ao juiz o papel criativo do direito, devendo limitar-se a aplicar os

comandos gerais e abstratos da lei, transformando-se em mero árbitro imparcial. Em outras

palavras: a interpretação da lei termina por limitar-se a um processo silogístico de subsunção

dos fatos às normas, devendo o elemento declarativo prevalecer, em detrimento do elemento

produtivo/criativo do direito.

Dessa forma, não havia espaço para a discussão dos valores e, em decorrência do

distanciamento entre o Direito e a Ética, inúmeras injustiças foram legalizadas durante o

decurso do século XX. A evolução do Direito ocorreu a partir do momento em que o

legislador se apercebeu que a palavra da lei não é suficiente para atender aos requisitos de

Justiça, cuja legitimação depende da aproximação entre Direito e Ética, por exemplo.

Inaugurando novo paradigma, o Código Civil de 2002 eleva a ética à condição de

princípio estruturante do sistema normativo. Explicando o alcance desse princípio na

legislação civil, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald282 esclarecem que se a ética é a ciência

do fim, elemento norteador da conduta de todos, o Direito, que sedia o pacto firmado pela

sociedade quanto a seus fins e ações, se concretiza mediante afirmação livre e racional do

valor justiça. Os pensadores em tela afirmam textualmente que “o ordenamento jurídico é um

elemento de luta e afirmação de justiça. Entre o direito-técnica e o direito-ética, deverá

prevalecer a força do Direito sobre o Direito força. Enfim, o Direito é uma técnica a serviço

de uma ética.”

Nessa linha de análise, os valores éticos adentram na codificação civil por meio dos

princípios trazidos expressamente pelo Código, ou mediante cláusulas abertas e conceitos

jurídicos indeterminados. Decorre dessa premissa que o Direito compreende e extrapola as

regras positivadas, podendo identificar outras fontes de manifestação para alcançar a Justiça.

Esse ponto de vista encontra respaldo em Miguel Reale, em sua Teoria

Tridimensional do Direito, quando sublinha que o Direito não é apenas a norma ou a letra da

lei; é mais que a vontade do Estado ou do povo. Ele reflete um ambiente cultural de

determinado lugar e época, em que os três aspectos – fático, axiológico e normativo – se

entrelaçam e exercem mútua influência, numa relação dialética, produzida ao longo da

história. Decorre desse entendimento que a norma constitui fato valorado pelo magistrado, de 282 FARIAS, op. cit., p. 26.

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acordo com os princípios constitucionais; portanto, (re)construída segundo o parâmetro

axiológico da Justiça.

No Código Civil de 1916, o ser humano concreto foi substituído por um sujeito

abstrato de direitos, haja vista que as especificidades e a concretude de cada pessoa eram

ignoradas pela lei, que se voltava para proteger o status formal dos integrantes da relação

jurídica: o contratante, o proprietário, o cônjuge, o testador... A lei tratava a todos como

rigorosamente iguais, ignorando as particularidades de cada pessoa.

Nesse passo, atingir a concretude por meio do reconhecimento da condição dos

agentes partícipes das relações jurídicas civis é um dos desafios do Código de 2002. Para

enfrentar esse repto, a codificação civilística traz o princípio da concretude ou operabilidade,

cujo escopo é aproximar os institutos do Direito Civil dos princípios protetivos da pessoa

inseridos na CRFB/88.

Todavia a definição legal é condição insuficiente, eis que a lei deve ser aplicada

considerando as múltiplas peculiaridades da pessoa humana, ou seja, sua realidade social,

cultural, econômica, entre outros fatores. Nesse sentido, são muito esclarecedoras as

observações de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves283 quando destacam que “as

desigualdades materiais e o contexto real da pessoa serão decisivos para que a sentença

consiga ‘dar a cada um o que é seu’. Teremos a chamada norma do caso, que propiciará a

verdadeira segurança jurídica ou jurisdicionado.”

Para trazer concretizar esse ideal, o Código deve ser um documento acessível à

compreensão; ou seja, a lei deverá estar redigida de tal forma que as pessoas consigam

compreender o seu direito. Afasta-se o preciosismo gramatical da legislação anterior, para

alcançar uma melhor efetividade do direito, ou seja, a sua operabilidade.

Estruturado no princípio da operabilidade e buscando um direito mais compreensível,

o Código Civil de 2002 buscou dirimir as controvérsias advindas dos textos rebuscados da

codificação anterior. Como exemplo, vale assinalar que o Código em comento separa e

esclarece os prazos prescricionais dos decadenciais, encerrando a discussão doutrinária e

jurisprudencial sobre o assunto, pois o Código anterior apresentava-os juntos, o que justifica a

perplexidade e dúvidas existentes até então.

283 Idem, p. 29.

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150

A sociabilidade é outro princípio reitor das relações interindividuais. Com

fundamento no princípio constitucional da solidariedade, buscou o legislador uma ponderação

com o individualismo liberal predominante na legislação civil anterior, o qual está na origem

das desigualdades sociais284. A proteção jurídica ao absolutismo da vontade (princípio da

autonomia da vontade) fomentou o desequilíbrio nas relações jurídicas, privilegiando os

interesses dos agentes econômicos: prestadores de bens e serviços. Busca-se, agora, a

aplicação de mecanismos jurídicos contrapostos ao desequilíbrio econômico-social fortalecido

pela legislação oitocentista.

A reflexão é muito pertinente, eis que a sociabilidade subsiste como desafio, devido

ao individualismo, marcante no sistema capitalista vigente. Olhar com generosidade para o

interesse do outro numa sociedade competitiva representa pretensão difícil de atingir.

Eis porque o sistema jurídico dispõe de instrumentos legislativos que estimulam a

sociabilidade, pois os institutos do Direito Civil agora estão impregnados de função social:

contrato, empresa, família, posse e propriedade. Dessa forma, busca-se não apenas a

satisfação individual nas relações civis, mas também, e de forma conjunta, a realização das

necessidades sociais. Ao incluir a sociabilidade como princípio estruturante da ordem civil, o

legislador busca enfrentar problemas alusivos à desigualdade material entre os indivíduos, nas

suas relações.

Observando os princípios expostos, o Código Civil de 2002 contempla igualmente

maior proteção à posse, principalmente quando exercida de boa-fé. Apesar de conceituá-la no

art. 1196 nos mesmos termos do Código Civil de 1916, esse instituto recebe novo sentido em

decorrência desses princípios estruturantes.

De acordo com a legislação civil, possuidor é aquele que exterioriza um

comportamento de dono; é aquele que parece ser o proprietário da coisa, aos olhos de

terceiros. Como exposto, o instituto da posse está diretamente ligado à noção de função social.

Tendo o possuidor um comportamento de dono, ele precisa evidenciar o uso ou fruição da

coisa, para que tenha sua posse caracterizada. O abandono do imóvel pelo possuidor

desconfigura a sua posse.

284 Daniel Sarmento alerta que “... esta autonomia privada não é absoluta, pois tem de ser conciliada, em primeiro lugar, com o direito das outras pessoas a uma idêntica quota de liberdade, e, além disso, com outros valores igualmente caros ao Estado Democrático de Direito, como a autonomia pública (democracia), a igualdade, a solidariedade e a segurança. Se a autonomia privada fosse absoluta, toda lei que determinasse ou proibisse qualquer ação humana seria inconstitucional.” SARMENTO, op. cit., p. 189.

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151

Assim como ocorre com a propriedade, a relação entre o possuidor e o bem terá

efeitos sociais consideráveis, que extrapolam os interesses individuais do possuidor para

atingir o meio social. A tutela da posse está diretamente ligada ao direito fundamental da

moradia (art. 6º da CRFB/88) e ao acesso aos bens vitais mínimos, indispensáveis à garantia

da dignidade à pessoa humana (art. 1º, III da CRFB/88).

Tratando do assunto, Marco Aurélio Bezerra de Melo285 afirma que a densidade

axiológica da posse, em um contexto sócio-econômico que oscila entre a pobreza e a miséria,

o qual adota a compra e venda e o direito hereditário como procedimento para a aquisição de

bens, a posse deve ser considerada como recurso que propicia o acesso a utilização dos bens

de raiz. Trata-se de procedimento intimamente vinculado à dignidade da pessoa humana (art.

1°, III, da CRFB) e ao direito constitucionalmente assegurado à moradia (art. 6° da CRFB).

Sob esse enfoque, ao lado do direito de propriedade, a posse está impregnada de relevante

importância social e econômica.

De certa forma, pode-se entender que o sistema jurídico brasileiro, numa releitura

civil-constitucional da posse, adotou a Teoria Objetiva de Ihering, reconstruída na perspectiva

do princípio da função social, em decorrência da influência das doutrinas sociológicas da

posse durante o século XX. Portanto, a posse só é reconhecida como direito, se e quando

cumprir função social, assim como acontece com a propriedade. Nessa perspectiva de análise,

Caio Mário da Silva Pereira286 defende que “o que sobreleva no conceito de posse é a

destinação econômica da coisa”.

Apesar de não disciplinar expressamente o princípio da função social da posse, é

evidente o avanço da legislação civil em relação ao instituto possessório, como se pode

depreender pelo conteúdo de alguns artigos a seguir examinados.

Inovando em relação à legislação anterior, o art. 1228, §4° possibilita a quem tenha

agido com boa-fé a oposição de sua posse, como defesa na Ação Reivindicatória movida pelo

proprietário desidioso, que deixa de cumprir a função social no aproveitamento do imóvel.

Porém, ampliando a interpretação dada ao termo “imóvel reivindicado”, o Enunciado 310 da

IV Jornada de Direito Civil, considerou a possibilidade de oposição da posse, não somente na

ação petitória, mas também na ação possessória proposta pelo proprietário.

285 MELLO, op. cit., p. 23-24.

286 PEREIRA, op. cit., p. 21.

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152

Ocorre que, em ambos os juízos (petitório e possessório), os possuidores ficariam à

mercê de possível ajuizamento de ação pelos proprietários para exercer seu direito à

desapropriação judicial privada. Dessa forma, o instituto perderia efetividade, num verdadeiro

retrocesso à conquista advinda com a novel modalidade de desapropriação trazida pelo

Código Civil de 2002.

Corrigindo tal erro ou dependência, o Enunciado 496, da V Jornada de Direito Civil

prescreve que “o conteúdo do artigo 1.228, §§4º e 5º, pode ser objeto de ação autônoma, não

se restringindo à defesa em pretensões reivindicatórias”.

Nessa interpretação, os possuidores que preencherem os requisitos da desapropriação

judicial privada por posse mediante trabalho não precisam aguardar ação dos proprietários,

podendo ajuizar demanda própria para garantir seu direito.

Esse artigo inserido no Código Civil de 2002 gerou controvérsia no meio acadêmico,

haja vista que, para alguns doutrinadores, ele se referia à hipótese da usucapião coletiva, nos

moldes do prevista pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), art. 10. Porém, em decorrência

da necessidade de indenização prevista no § 5º do mesmo artigo, a Jornada de Direito Civil

entendeu tratar-se de desapropriação judicial287. Esse ponto de vista encontra fundamento na

seguinte lição de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery288:

A norma cria a desapropriação judicial, considerada uma inovação do mais alto alcance, inspirada no sentido social de propriedade, implicando não só novo conceito desta, mas também novo conceito de posse, que se poderia qualificar como sendo posse trabalho.

No tocante ao pagamento da indenização, a Jornada de Direito Civil caminhou no

sentido de que o mesmo deverá ser feito pelos réus da Ação Reivindicatória, conforme

Enunciado 84. No entanto, incumbe ao Poder Público arcar com o dever dessa indenização,

quando tenha ocorrido intervenção da Administração Pública nos termos da lei processual,

287 Enunciado 307 da IV Jornada de Direito Civil: “Art.1.228. Na desapropriação judicial (art. 1.228, § 4º), poderá o juiz determinar a intervenção dos órgãos públicos competentes para o licenciamento ambiental e urbanístico.” (grifo nosso)

288 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil Comentado. 3. ed. São Paulo: RT, 2005, p. 635.

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153

por se tratar de políticas públicas de reforma urbana ou agrária e os possuidores forem

considerados de baixa renda, conforme Enunciado 308 da IV Jornada de Direito Civil.

A desapropriação por interesse particular deve atender aos seguintes requisitos: posse

ininterrupta, por mais de cinco anos por um número considerável de pessoas. Como se

ressaltou, o cumprimento da função social do imóvel ocupado pelos possuidores é

imprescindível para a proteção de sua posse.

Dessa forma, fundamentada no interesse social, a posse funcionalizada e de boa-fé

prevalece, quando confrontada com o direito de propriedade, no caso de o titular desse direito

real não ter usufruído do bem em respeito à função social.

No tocante ao instituto da usucapião, o art. 1238, parágrafo único, possibilita àquele

que tem sua posse qualificada pela função social, a aquisição da propriedade por meio da

usucapião por um prazo menor (10 anos), em relação ao possuidor com posse simples, cujo

lapso temporal para aquisição da propriedade é de 15 anos.

Importante inovação foi introduzida pelos artigos 1255, parágrafo único, 1258 e

1259, mediante os quais a lei se aproxima da realidade social brasileira. A esse respeito, é

comum a construção dos “puxadinhos” em imóveis vizinhos. Nessa prática, as pessoas

constroem suas casas ao lado, atrás ou cima de terrenos dos quais elas não possuem o título de

propriedade, mas com o consentimento do proprietário, principalmente nas circunstâncias de

parentesco. Exemplo corriqueiro dessa situação ocorre quando os pais autorizam os filhos a

construir atrás ou acima de suas casas, sem que regularizem a ocupação.

Na legislação civil anterior, ocorrendo algum impasse posterior à construção, o

proprietário poderia entrar com Ação Reivindicatória e retirar os possuidores do imóvel. Se

comprovada boa fé dos possuidores, restava-lhes apenas pleitear perdas e danos, devendo sair

do bem construído, quando não contavam tempo para oposição da usucapião em defesa,

conforme possibilita a Súmula 237 do STF.

Mitigando o milenar princípio da acessão que determina que o solo é

invariavelmente o bem principal em relação àquilo que nele se assenta, o Código Civil de

2002, no art. 1255, parágrafo único possibilita aos possuidores de boa-fé, donos do material

de construção, ou plantação, a aquisição da propriedade do imóvel, quando o valor das

construções/plantações exceder consideravelmente o valor da solo. Utilizando-se de um

conceito jurídico indeterminado, o legislador possibilita ao magistrado verificar o conteúdo

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154

econômico dessa acessão, como também o seu valor social (escolas, hospitais, creches...), e

deferir, ou não, a acessão inversa.

Os artigos 1258 e 1259 também relativizam o princípio da acessão, para possibilitar

que possuidores de boa-fé (ou de má-fé), possam adquirir a propriedade do vizinho, quando as

construções iniciadas em terreno próprio, invadirem o terreno alheio.

Esse inovador posicionamento do Código Civil está alinhado ao mandamento

constitucional de se promover uma sociedade justa, livre e solidária, protegendo o possuidor,

em face da reivindicação do imóvel feita pelo proprietário desidioso. Numa leitura civil-

constitucional, ficará com o imóvel aquele que demonstrar uso correspondente à função

social, seja um possuidor ou um proprietário. Com esse tratamento, relativiza-se a importância

atribuída ao título pela legislação anterior, para beneficiar o agente funcionalizador da terra.

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155

4 O DIREITO REAL DE POSSE: ANÁLISE DO ENUNCIADO DA SÚMULA 84 DO

STJ

Como se evidenciou ao longo desta pesquisa, o problema em torno da posse de bens

imóveis no Brasil, iniciado com a chegada dos portugueses, é atual e complexo, causando

diferentes problemas sociais. Tendo em vista dirimir a instabilidade social provocada por

esses conflitos e suprir as lacunas nos dispositivos legais em vigor, adquire relevo a atuação

do Poder Judiciário.

Nesse intuito, é necessário compatibilizar o instituto possessório regulamentado na

legislação infraconstitucional com os princípios inscritos na CRFB/88, precipuamente aqueles

que conferem ênfase à promoção da dignidade da pessoa humana, em paralelo à solidariedade

e a funcionalização da propriedade, todos elevados ao plano de direitos fundamentais, na

esteira do teor do art. 5º, inciso XXIII.

Os conflitos em torno da posse da terra tem estado presentes em distintas situações,

variando desde aqueles que lutam pelo acesso à terra, até quem é detentor da posse, porém,

devido à falta de título de propriedade, encontra-se às margens da titularidade formal exigida

pela lei.

No Brasil subsiste enorme contingente de imóveis289 em situação de irregularidade,

porque não estão registrados no Cartório de Registro de Imóveis em nome das pessoas que

exercem, de fato, o ius possessionis sobre o bem.

A falta de registro torna vulneráveis as relações jurídicas quanto a esses imóveis,

haja vista, por exemplo, a possibilidade de eles serem objeto de execução de hipoteca dada

pelo proprietário, que, por vezes, não se identifica com o real possuidor do bem, como será

analisado no presente capítulo.

A importância do registro imobiliário é destacada por Rafael Baleroni290 nas

seguintes hipóteses: quando a titularidade do imóvel representar garantia para o pagamento de

empréstimos; ou se possibilitar investimentos; ou ainda tiver repercussão no cumprimento de

289 Não existem dados oficiais de entidades governamentais ou não governamentais que apontem os números dessa realidade.

290 BALERONI, Rafael. As lições da propriedade: De Soto vai a Cantagalo. In: CASTRO, Paulo Rabello de (org.). Galo Cantou!: a conquista da propriedade pelos moradores do Cantagalo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011, p. 158.

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156

obrigações propter rem, como o pagamento de cotas condominiais e impostos. O autor291

ressalta a relevância do registro público imobiliário nos seguintes termos:

Não é mais tão simples consumir serviços públicos sem pagar por eles, usufruir de uma moradia sem pagar impostos ou descumprir acordos e se tornar inacessível. Assim, o direito de propriedade incentiva as pessoas a obedecerem à lei, sob pena de poder perder sua propriedade. Isso também faz com que contrapartes contratuais levem-nas mais a sério, pois possuem algo a perder em caso de descumprimento.

A propriedade irregular no país é fato comum, determinado por diversos fatores, tais

como a falta de conhecimento (por parte dos possuidores) da exigência legal do registro,

como também o alto custo do registro público para o poder aquisitivo de pessoas pobres, que,

não raro, utilizam todos os recursos financeiros disponíveis na aquisição do bem.

Eis porque , de rotina, há possuidores que adquiriram a posse do imóvel por meio de

contrato de promessa de compra e venda e, por desconhecerem as formalidades legais, se

consideram legítimos proprietários do bem.

Por outro lado, encontram-se os compradores que não conseguem registrar seus

imóveis, em decorrência do alto custo dos emolumentos registrais. Reflexo dessa situação

pode ser visto no Judiciário, que acumula inúmeros pedidos de declaração da usucapião, pois

ela se tornou a forma menos onerosa de regularizar a propriedade da terra.

Ressalta-se, novamente, que, no sistema legislativo brasileiro, subsistem resquícios

da propriedade individualista, exclusiva e excludente, construída nos moldes do sistema

oitocentista. Com essa influência, como será analisado adiante, ainda se verificam decisões de

juízes monocráticos que ignoram os sinais dos novos tempos, perpetuando na sociedade

brasileira esse modelo proprietário.

Carlos Frederico Marés292 presta relevante esclarecimento à reflexão sobre esse

problema:

291 Idem, p. 159.

292 MARÉS, op.cit., p.15.

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A cultura que confunde a terra e sua função humana, social, com o direito abstrato de propriedade, exclusivo e excludente, faz uma opção contra a vida. Mas porque, apesar de tão claras necessidades, tão evidentes lógicas, tantas mazelas sociais e ambientais continua tão difícil mudar a concepção da propriedade? Como se formou esta convicção tão arraigada de que a propriedade é o próprio homem e nenhum direito pode ser mais sagrado do que ela?

Como se analisou ao longo do estudo, o instituto possessório foi relegado a segundo

plano, vinculado ao direito proprietário desde as primeiras legislações vigentes no país. Tal

desprestígio ocorreu tanto na seara da legislação como da interpretação dos Tribunais, que

acolheu a cultura instituída pelo liberalismo burguês do Código Napoleônico.

Conforme analisado nos Capítulos iniciais, a primeira legislação civil brasileira

conceituou a posse como situação fática que, em determinadas circunstâncias, poderia receber

a proteção do Direito, mas ignorada, via de regra, quando em confronto com o direito de

propriedade.

No entanto, algumas leis promulgadas a partir de meados do século XX contribuíram

na ampliação protetiva desse instituto. Dentre essas leis, ressalta-se o Estatuto de Terras (Lei

nº 4.504/64); a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766/79); as Constituições de 1934,

1946 e a CRFB/88; o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), o Código Civil de 2002 (Lei nº

10.406/2002); e a lei que instituiu o Programa Minha Casa, Minha Vida (11.977/2009,

alterada pela Lei 12.424/2011).

Paralelamente, os Tribunais foram chamados a participar do debate em torno de

conflitos possessórios; algumas vezes posicionando-se favoravelmente à sua proteção, como

na Súmula 237 do STF. Ao interpretar o art. 550 do Código Civil de 1916, o STF entendeu

que, após preenchidos os requisitos da usucapião, o possuidor torna-se proprietário

independente da declaração judicial do seu direito. Dessa forma, pode arguir a usucapião em

matéria de defesa.

Em antagonismo à proteção possessória, entendeu o STF na Súmula 621 que o

possuidor não poderia utilizar-se dos embargos de terceiro, quando o contrato de promessa de

compra e venda não estivesse inscrito no Registro Imobiliário, como será analisado mais

adiante. No entanto, essa Súmula foi posteriormente revogada pela Súmula 84 do STJ para

admitir a oposição de embargos.

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158

É pertinente ressaltar que as Súmulas representam o resumo do entendimento

jurisprudencial, baseado em decisões reiteradas sobre o mesmo assunto, ou seja, elas

expressam o entendimento pacífico, reiterado, do Tribunal a respeito de um tema específico.

As súmulas objetivam conferir uniformidade às decisões de casos análogos, evitando, dessa

forma, sentenças/acórdãos divergentes.

Elas dividem-se em vinculante e não vinculantes. As Súmulas vinculantes têm efeito

erga omnes e devem atender aos requisitos do art. 103, “a” da CRFB/88, assim como a

Emenda Constitucional nº 45/04. Entre os requisitos necessários à elaboração da Súmula

vinculante, destaca-se a exigência de ser aprovada por 2/3 dos votos do Supremo Tribunal

Federal (8 votos) e deverá incidir sobre matéria constitucional que tenha sido objeto de

decisões reiteradas no STF. As Súmulas vinculantes somente poderão ser editadas pelo STF,

de ofício ou por provocação, e terão efeito vinculante em relação aos demais órgãos do

Judiciário e à Administração Pública.

As Súmulas referentes à posse não são vinculantes. Elas não têm força de lei;

portanto, não implicam obrigação de aplicação pelos juízes. Porém, como são entendimentos

pacificados pelos Tribunais Superiores (STF e STJ), habitualmente são seguidas.

Para o objeto da presente Tese, é muito relevante a Súmula 84 do STJ, que, ao

interpretar o art. 1046 do CPC, reconheceu a posse como direito real, haja vista ter-lhe

atribuído eficácia erga omnes, possibilitando ao possuidor o direito de sequela sobre o bem.

É importante destacar que a proteção jurisprudencial ao instituto possessório não teve

o intuito de aumentar a segurança jurídica no mercado imobiliário do país. Ao contrário; seu

fundamento assentou-se na pessoa do possuidor, ao destacar suas necessidades vitais em

relação ao bem possuído. Nessa linha interpretativa, protege-se a posse sobre um bem imóvel

em decorrência do seu valor de uso e não do valor de troca. Essa proteção visa à posse em si,

independente do direito à moradia, de propriedade, entre outros direitos. No entanto, a

proteção conferida à posse contribui de forma imediata para a efetividade desses direitos.

Por certo, as circunstâncias históricas e valores dominantes na sociedade brasileira

no decurso do século XX influenciaram a análise do instituto possessório pelos Tribunais.

Como se comentou, a insurgência dos movimentos sociais decorrentes do conflito fundiário

denunciou o estado alarmante em que se encontrava a distribuição de terras no país. E a

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formação dos latifúndios decorreu, entre outros fatores, das legislações protetivas ao

proprietário, provenientes dos séculos anteriores.

Reconhecendo a necessidade de proteção desses possuidores frente ao credor

hipotecário, o Ministro Athos Carneiro proferindo voto no Recurso Especial n. 188 do STF,

faz a seguinte análise:

Então se pergunta: entre as duas pretensões, a do credor, direito pessoal, e a do promitente comprador com justa posse, direito também pessoal, qual é aquela que merece maior tutela, maior proteção da ordem jurídica? Tenho a impressão de que levar nosso raciocínio para o terreno do direito registral importará na aplicação das normas jurídicas dentro de um, digamos assim, tecnicismo exagerado. (...) Creio mais conforme com as necessidades atuais do comércio jurídico a interpretação pela qual, no choque de interesses de dois direitos eminentemente pessoais (a própria penhora não é direito real, mas ato processual executivo), tanto um quanto outro, deve prevalecer o direito daquele que está na justa posse do imóvel, como seu legítimo pretendente à aquisição, e com o preço quitado, face ao direito do credor do promitente vendedor, dês que ausente, por certo, qualquer modalidade de fraude à credores ou à execução, como no caso dos autos. Esta orientação melhor se coaduna às realidades jurídico-sociais do nosso país, e impede sejamos sensíveis a estas realidades.

O reconhecimento de que a posse é direito real, com eficácia erga omnes e

possibilidade de sequela, confere efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Sobre a importância da proteção possessória, a doutrina diversifica sua fundamentação,

conforme analisa Caio Mário da Silva Pereira293:

Evitando as demasias, atemo-nos às teorias principais, como exemplificação típica, observando que uma justificam-na pela posse em si, outras em razão de diverso fator, quer específico (propriedade, pessoa do possuidor), quer genérico (paz social, interesse social). Para Bruns, protege-se a posse por si mesma, uma vez que o possuidor, pelo só fato de o ser, tem mais direito do que aquele que não o é (...). Kohler sustenta que se tutela a posse em nome da paz social, e não propriamente da ordem jurídica, como critério de manutenção do estado de paz necessário à vida em sociedade. (...) Para Gans o fundamento da proteção da posse reside no fato de que esta é uma propriedade incipiente. Diz Stahl que se ampara a posse tal qual se defende a propriedade, mas com a ressalva de que assim se procede como garantia ao estado de fato, que deve ser provisoriamente assegurado, contra quem intente fazê-lo cessar.

293 PEREIRA, op. cit., p. 37-38.

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Como aludido, no contexto brasileiro atual, com fundamento legal na CRFB/88, o

reconhecimento da posse como direito real orienta-se para a proteção da pessoa do possuidor,

sendo que o fundamento jurídico da proteção possessória radica no princípio da dignidade da

pessoa humana. Ademais a partir do alicerce principiológico, revigora-se a proteção em

decorrência da normatividade dos princípios constitucionais e da leitura civil-constitucional

dos institutos do Direito Civil.

Com respaldo nessa leitura, os Tribunais Superiores remodelam a natureza fática do

instituto possessório, ao mesmo tempo em que relativizam as características dos direitos reais

construídas pelos romanos, para considerar a posse como direito real, atribuindo-lhe, assim,

mais sólida garantia.

As Cortes pátrias caminham para o entendimento de que a posse funcionalizada

prevalece em relação ao direito de propriedade alheio à função social. Como exemplo, merece

realce o acórdão paradigmático da favela do Pullman, no Estado de São Paulo (REsp

75.659/SP), DJ 21/06/2005, em que a posse funcionalizada prevaleceu sobre a propriedade

abandonada.294

Em paralelo, é premente refletir sobre o previsto no art. 1.228, §4° e §5° do Código

Civil de 2002, que traz a possibilidade de Ação Reivindicatória promovida pelo proprietário,

ser oposta em defesa à posse ininterrupta e de boa-fé, exercida há mais de 5 anos por um

número considerável de pessoas que tenham realizado obras e serviços considerados de

interesse social e econômico relevantes, tomando, portanto, o imóvel do proprietário,

mediante justa indenização.

Preenchidos os requisitos legais, a posse se configura um direito real, com eficácia

erga omnes e possibilidade de sequela, como igualmente contemplado nas hipóteses dos arts.

1.255, parágrafo único; e arts. 1.258 e 1.259, analisados no Capítulo 3.

Vale igualmente recordar que a posse é instituto sui generis, que não comporta

definição uniforme, caracterizando-se, por natureza jurídica peculiar. Em determinadas

situações, ela será apenas situação fática, que não recebe proteção do sistema jurídico, como

294 Para o aprofundamento da análise desse acórdão (Ap. Cível 0041196-97.1993.8.26.0000 TJSP) recomenda-se a leitura da obra “A Posse como direito autônomo: teoria e prática no Direito Civil brasileiro”, de autoria do Marcos Alberto Rocha Gonçalves, p. 244-264. GONÇALVES, Marcos Alberto Rocha. A Posse como direito autônomo: teoria e prática no Direito Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2015.

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na hipótese do esbulho, em que o possuidor injusto e de má-fé não consegue impor seu direito

possessório frente ao proprietário, salvo na hipótese de o possuidor ter completado o tempo

necessário para usucapir, conforme determina a Súmula 237 do STF.

O que se verifica, no entanto, é que contemporaneamente a natureza jurídica da posse

passa por releitura, reforçada pelos valores da CRFB/88, que confere à terra função que

extrapola os interesses egoístas do seu dono, eis que deve atender também exigências e

interesses sociais. Em certos casos, o possuidor é a pessoa que comprovadamente corresponde

à função social do imóvel, mediante seu adequado uso ou fruição.

4.1 Considerações preliminares em torno da proteção da posse adquirida por meio do

contrato de promessa de compra e venda

Previamente à análise da promessa da compra e venda, segundo disciplina das

Súmulas 621 do STF e 84 do STJ, cumpre tecer alguns comentários a respeito da aquisição

possessória advinda da promessa de compra e venda desprovida de inscrição no Registro

Imobiliário. Desse problema adveio o pronunciamento do STF na Súmula 167, em

13/12/1963; e do STJ na Súmula 239, em 30/08/2000.

A Súmula 239 reforça o argumento de que os Tribunais Superiores no Brasil

manifestam tendência a rever o posicionamento referente à posse, que, num primeiro

momento, orientou-se pela filosofia liberal-burguesa da codificação oitocentista, para agora

privilegiar a proteção da pessoa do possuidor.

As Súmulas 167 do STF e 239 do STJ referem-se à hipótese de oponibilidade da

posse em face do promitente vendedor, no intuito de obter a adjudicação do imóvel. A posse

referida nessas Súmulas é adquirida por meio de contrato de promessa de compra e venda,

sem a devida inscrição, conforme exigência legal. A possibilidade de adjudicação

compulsória nessas circunstâncias gerou discussão no âmbito doutrinário e judicial.

O Decreto-lei nº 58/37, com redação dada pela Lei n. 6.014/73, possibilitou, no art.

22, que os contratos de compromisso de compra e venda e cessão de direitos de imóveis não

loteados, desde que não houvesse cláusula de arrependimento, e quitado o preço, tornavam-se

direito real oponível erga omnes, a partir da inscrição do título no Registro Imobiliário.

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162

Portanto, obedecendo aos requisitos legais, os contratos conferiam aos possuidores o direito à

adjudicação compulsória do imóvel em face do proprietário.

A necessidade de registro para a defesa da posse foi reforçada no art. 23 do Decreto-

lei, que determina que “nenhuma ação ou defesa se admitirá, fundada nos dispositivos desta

lei, sem apresentação de documento comprobatório do registo por ela instituído”.

Apreciando a matéria, o STF confirmou o posicionamento legislativo por meio da

Súmula 167, exigindo a formalidade da inscrição no Registro Imobiliário da promessa de

compra e venda, para a procedência da adjudicação do imóvel. Sendo assim, a Súmula 167

determinava que “não se aplica o regime do Dl. 58, de 10.12.37, ao compromisso de compra e

venda não inscrito no registro imobiliário, salvo se o promitente vendedor se obrigou a efetuar

o registro.”

Com a exigência do registro, tanto a lei, como a jurisprudência, primavam pelo

formalismo positivista para resguardar a segurança jurídica nas relações contratuais. Assim, o

compromisso de compra e venda somente ensejaria execução compulsória, quando cumpridos

os requisitos legais.

Esse posicionamento jurisprudencial foi aplicado de forma reiterada, exigindo-se o

registro para a possível adjudicação forçada de imóveis loteados (ou não), conforme se

depreende de julgados como os seguintes: RE 76.671; RE 81.858; e RE 90.632.

Entrando em vigor o Código Processo Civil de 1973, levantou-se novamente a

discussão em decorrência da redação do art. 639, que determinava que “se aquele que se

comprometeu a concluir um contrato não cumprir a obrigação, a outra parte, sendo isso

possível e não excluído pelo título, poderá obter uma sentença que produza o mesmo efeito do

contrato a ser firmado”.

No entanto, o STF ao reexaminar a matéria em face da nova lei, manteve o mesmo

posicionamento jurisprudencial, como pode ser verificado, a título exemplificativo, nos

seguintes julgados: RE 89.191; RE 89.864; e RE 84.828.

Dentre os motivos que o levaram a perseverar no entendimento anterior, pode-se

considerar o disposto na Lei n. 6.014/73, que reproduziu no artigo 22 a mesma determinação

do Decreto-lei 58/37.

Destaca-se, no entanto, que, nos casos em tela, a jurisprudência citada passava ao

largo da realidade social brasileira, uma vez que o trânsito imobiliário no país é feito, muitas

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vezes, à margem das exigências legais, ou seja, por meio de promessa de compra e venda não

registrada.

Avançando em direção ao contexto nacional, o STF caminhou para a modificação de

posicionamentos anteriores, como demonstra o REsp. 30/DF (89.8165-9, de 18/09/1989),

mediante o qual passa a considerar que o registro da promessa de compra e venda era

necessário somente para a oponibilidade em face de terceiros. Perante o vendedor, era

dispensável o registro como condição para a adjudicação compulsória. Dessa forma, o

Tribunal entendeu que a promessa de compra e venda tem por objeto um facere, que constitui

direito pessoal. Dessa forma, o seu cumprimento não está subordinado ao ingresso do título

do Registro Imobiliário, conforme interpretação do art. 16 do Decreto-lei 58/37295, que

possibilitava a eficácia da promessa de compra e venda entre as partes e estabelecia a

adjudicação compulsória sem nenhuma menção ao registro.

A necessidade do registro seria apenas para resguardar o promitente comprador no

caso de o promitente vendedor alienar o imóvel a terceiro. Portanto, essa legislação (Dl 58/37)

contemplava dois direitos distintos; um de natureza real, oponível a terceiro, e outro de

natureza pessoal, adstrito às partes.

Nessa linha, o STF modificou seu posicionamento por meio do enunciado da Súmula

239, de 30/08/2000, determinando que “o direito à adjudicação compulsória não se

condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóvel.” Por meio

dessa Súmula passou-se a proteger a posse do promitente comprador em face do proprietário.

A mudança na interpretação legislativa por parte do STJ fortalece o instituto

possessório, contribuindo para sua autonomia frente ao direito de propriedade. Anteriormente,

o possuidor que não efetuasse a inscrição da promessa de compra e venda no Registro

Imobiliário, não tinha qualquer proteção judicial, mesmo pagando integralmente o valor do

bem, e já estando de posse do mesmo. A modificação do posicionamento jurisprudencial para

considerar a posse oponível, ao menos em face do vendedor proprietário, conferindo ao

possuidor o direito à adjudicação do bem, mesmo quando não observados os requisitos

formais da lei, representou avanço na proteção da posse.

No entanto, a discussão em torno do assunto, ocorreu também na hipótese

disciplinada pelas Súmulas 621 do STF, e 84 do STJ, que sustenta o objeto da presente Tese.

295 Nesses termos, estabelece o art. 16 do Decreto-lei n. 58/37 que “Recusando-se os compromitentes a outorgar a escritura definitiva no caso do artigo 15, o compromissário poderá propor, para o cumprimento da obrigação, ação de adjudicação compulsória, que tomará o rito sumaríssimo”.

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No enunciado da Súmula 621, o STF entendeu não ser possível a oposição de

embargos de terceiro pelo possuidor, quando a promessa de compra e venda do bem imóvel

não tiver sido levada ao registro. Posteriormente, o STJ revogou essa Súmula (621) para

admitir a oposição dos embargos pelo possuidor, ainda que não tenha efetuado o devido

registro.

Portanto, as Súmulas analisadas na presente Tese referem-se à possibilidade de

oposição de embargos de terceiro pelos possuidores que tiveram a posse sobre o bem imóvel

ameaçada pela penhora ocorrida no decurso da ação de execução de hipoteca, movida pelo

credor hipotecário em face do proprietário do imóvel.

Nesse intuito, o exame recai na fundamentação jurídica dos votos proferidos no

Recurso Especial n. 188-PR (89.0008421-6) do STF, DJ 08/08/1989, por ser considerado

precedente relevante à edição da Súmula 84, que, por sua vez, traz à baila releitura da

natureza jurídica da posse para considerá-la direito real. Esse posicionamento tem repercussão

importante do ponto de vista social, pois essa interpretação da posse (como direito real)

resulta em maior proteção à pessoa do possuidor que funcionaliza a terra.

4.2 O primado da formalidade em detrimento da pessoa (Súmula 621 do STF) versus a

proteção da dignidade do possuidor e a função social da posse (Súmula 84 do STJ)

Anterior à CRFB/98, a Súmula 621 do STF, cujo precedente jurisprudencial foi

Recurso Extraordinário n. 73.527-PE, DJ 16/03/72, definiu que, na hipótese em que o

promitente comprador do imóvel não tivesse registrado o contrato e, posteriormente à

celebração deste, o legítimo proprietário tivesse apresentado o imóvel em garantia hipotecária,

não era cabível a oposição de embargos pelo possuidor – promitente comprador – pois a posse

sem registro não tinha efeito erga omnes. Portanto, nos termos da Súmula, no processo de

execução da hipoteca, a constrição da penhora era legítima e o credor hipotecário, por ser

titular de um direito real, poderia, sem oposição, executar o imóvel para saldar a dívida.

Assim entendida a relação jurídica, restava ao possuidor de boa-fé apenas o direito de receber

perdas e danos do proprietário.

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165

Essa era a interpretação do STF em relação ao art. 1.046 do Código de Processo Civil

de 1973, que determina que todo aquele que não for parte de um processo de execução e

estiver sofrendo turbação ou esbulho na posse dos seus bens “por ato de apreensão judicial,

em casos como o de penhora, depósito, arresto, seqüestro, alienação judicial, arrecadação,

arrolamento, inventário, partilha, poderá requerer lhe sejam manutenidos ou restituídos por

meio de embargos.” Na jurisprudência do STF, o possuidor sem registro do contrato não se

enquadrava na hipótese legal.

Os embargos de terceiro configuram ação de conhecimento de natureza constitutiva,

que segue o procedimento especial sumário, cuja finalidade é livrar o bem, ou direito de posse

ou propriedade de terceiro, da constrição judicial materializada por meio da penhora. Os

mencionados recursos visam a excluir os bens de terceiros, ilegalmente apreendidos em

demanda judicial, evitando, assim, o praceamento e a alienação ilegal e injusta do bem.

Humberto Theodoro Júnior296 define os embargos como ação que se orienta para

desconstituir o ato judicial abusivo, restituindo as partes ao estado anterior à apreensão

impugnada. Para Hamilton de Moraes e Barros297, os embargos de terceiro são “uma ação

especial de procedimento sumário, destinada a excluir bens de terceiro que estão sendo,

ilegitimamente, objeto de ações alheias”. No caso em tela, o objetivo dos embargos de

terceiro é liberar bem pertencente a um estranho à lide, o qual, no entanto, teve o seu bem

apreendido por ato judicial, como nas hipóteses narradas pelo art. 1046.

Esse dispositivo legal inaugurou dissidências no plano doutrinário e jurisprudencial,

sobre a possibilidade de oposição dos embargos de terceiro, na hipótese de contrato de

promessa de compra e venda não levado ao registro público. Como ressaltado esse debate

desencadeou a edição dos enunciados das Súmulas 621 do STF, e posteriormente, na Súmula

84 do STJ.

Num primeiro momento, o STF decidiu no sentido de impossibilidade de proteção ao

possuidor que não observasse a formalidade do registro da promessa de compra e venda junto

ao Cartório de Registro Imobiliário. Dessa forma, a Súmula 621 determinava que “não enseja

296 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de Execução: Cumprimento da Sentença. 21. ed. São Paulo: LEUD, 2002, p. 415.

297 BARROS, Hamilton de Moraes e. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977. v. 9, p. 358.

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embargos de terceiro à penhora a promessa de compra e venda não inscrita no registro de

imóveis”.

Portanto, para que a promessa de compra e venda atribuísse ao compromissário

comprador o direito real oponível a terceiros, era necessário que, além de não conter cláusula

de arrependimento, fosse também inscrita no Registro Imobiliário. Somente dessa forma

reconhecia-se o direito do possuidor de opor embargos de terceiro para proteger sua posse.

Como exposto, a controvérsia circundava a hipótese de serem admissíveis os

embargos em favor do simples possuidor. Argumentavam (Recurso Extraordinário 87.958-7,

fls. 422) que se a simples posse propiciasse a oposição de embargos, o imóvel penhorado

entregue em comodato, por exemplo, possibilitaria o comodatário de excluí-lo da penhora.

Nesse passo, o STF firmou entendimento no sentido de fortalecer o procedimento

burocrático de inscrição do contrato no Registro Imobiliário. Ademais, a promessa de compra

e venda deveria que conter cláusula de irrevogabilidade do contrato, para configurá-lo um

direito real. Afora isso, o promitente comprador seria considerado simples titular de direito

pessoal, e embora de posse do imóvel, não poderia atacar o ato de constrição judicial, como

ocorria, a título exemplificativo, com o comodatário, o locatário, o depositário, entre outros

possuidores.

Isso posto, não havendo a inscrição no Registro de Imóvel do referido contrato,

conforme determinação o art. 69 da Lei 4.380 de 21/08/64298, a promessa de compra e venda

não tinha eficácia erga omnes, produzindo mero efeito inter partes; somente a devida

inscrição protegia a posse sobre o bem.

Contextualizado historicamente, tal posicionamento do STF é anterior à

Constituição de 1988: a Súmula 621 foi aprovada em 17/10/1984 e as jurisprudências

precedentes a ela, e que lhe deram origem, foram construídas durante o regime militar. Na

vigência do militarismo, o governo primou pela proteção ao proprietário da terra em

298 De acordo com art 69 da Lei n. 4.380/64, “o contrato de promessa de cessão de direitos relativos a imóveis não loteados, sem cláusula de arrependimento e com emissão de posse, uma vez inscrita no Registro Geral de Imóveis, atribui ao promitente cessionário direito real oponível a terceiro e confere direito a obtenção compulsória da escritura definitiva de cessão, aplicando-se, neste caso, no que couber, o disposto no artigo 16 do Decreto-lei n. 58, de 10 de dezembro de 1937, e no artigo 346 do Código do Processo Civil.”

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detrimento do possuidor.299 Refletindo esse momento sócio-politico, o STF se posicionou no

sentido de proteger o credor hipotecário, em detrimento do possuidor.

No entanto, a jurisprudência foi avançando, para possibilitar que, mesmo nos

contratos não registrados, o promitente comprador poderia desconstituir a penhora por meio

de embargos de terceiro, desde que o compromisso fosse irretratável, com o preço pago e

promitente comprador tivesse a posse do imóvel. Com esse respaldo, o possuidor poderia

excluir o imóvel de execução promovida contra o promitente vendedor, por dívida ulterior à

promessa.

Modificando o entendimento anterior, entendeu o STJ que bastava a qualidade de

possuidor, conforme determina o art. 1046, § 1º do CPC, para configurar o tipo legal. Porém,

nem todo tipo pode ser defendida por embargos.

Nesse passo, o STJ considerou que os contratos, nos termos do art. 1.126 do Código

Civil de 1916, são aperfeiçoados pelo mútuo consentimento, independentemente de qualquer

outra formalidade; no mais, seria injusto por via oblíqua, anulá-lo e despojar o possuidor de

um bem e de um direito, sujeitando-o a uma contrição, por efeito de penhora, em razão de

dívida alheia.

A Súmula 621 do STF, que privilegiava o patrimônio em detrimento da pessoa do

possuidor, tornou-se insustentável diante da principiologia do texto constitucional de 1988,

como demonstrado no Capítulo 2 e 3. No entanto, ainda se encontram decisões embasadas no

contexto da codificação oitocentista.300

No Recurso Especial 188-PR o Ministro Bueno de Carvalho, proferindo o voto

contrário à Súmula 621, destaca que negar a possibilidade dos embargos ao possuidor de boa-

299 Sobre a proteção dos latifundiários durante o regime militar, José de Souza Martins esclarece que “essencialmente, o golpe de Estado assegurara que a propriedade da terra, isto é, a renda fundiária, continuaria sendo um dos fundamentos da acumulação e do modelo capitalista de desenvolvimento no Brasil.” MARTINS, José de Souza. Reforma agraria: o impossível diálogo sobre a História possível. Disponível: <http://www.scielo.br/pdf/ts/v11n2/v11n2a07.pdf> Acesso em 10/01/2016.

300 Cita-se, a título exemplificativo, decisão monocrática no processo nº 036.04.001705-8, da 2ª Vara Cível da Comarca de Jaraguá do Sul/SC, data do julgado: 27/04/2011: “... se ambas partes agiram de boa-fé, cabe decidir qual direito, perante a lei prevalece: a) o direito de quem firmou escritura pública de compra e venda (não levada a registro); ou b) o direito de quem firmou escritura pública de confissão de dívida com garantia hipotecária, devidamente registrada. À luz do art. 530, I, do CC/16, a embargante não adquiriu a propriedade do bem. Portanto, a embargante não tem direito real. Por outro lado, conforme os arts. 755 e 759 do CC/16, a embargada, credora hipotecária, tem direito real, podendo excutir a coisa hipotecada para satisfazer sua dívida. Em suma, o direito real de garantia da embargada prevalece sobre a o posse e o direito pessoal da embargante. Por isso, a penhora do imóvel deve ser mantida. Os embargos de terceiro devem ser rejeitados.”

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fé promove o enfraquecimento da sua posse enquanto um direito. Nesses termos, afirma o

Ministro:

… ao cerceamento do direito de ação, somar-se-ia, no caso, o drástico enfraquecimento da própria posse, que, em casos tais, transcende a mera realidade de fato para invocar a qualificação da posse legítima, ad interdicta (fundada em contrato), oponível ao esbulho perpetrado por sujeitos da ordem privada e, portanto, a fortiori, ao esbulho judicial que porventura seja praticado através da penhora ou de outro ato de apreensão.

Negar tutela à posse por meio dos embargos equivale a considerá-la mera situação

fática, sem qualquer repercussão jurídica. Equivaleria a enquadrá-la como fato comum,

ignorando a pessoa do possuidor e a função social que ele exerce com a utilização do imóvel.

Com a CRFB/88, é premente analisar a relação em comento à luz do princípio da

dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da função social da propriedade. Por meio

desses princípios a CRFB/88 trouxe novo paradigma para o sistema jurídico brasileiro,

primando pela valorização da pessoa humana e pela constitucionalização do Direito Civil.

Num país onde a regra é a posse da terra, e não a propriedade, torna-se impossível a

aplicação da lei ignorando a realidade social. Nesse sentido, o Ministro Athos Carneiro no

Recurso Especial n. 188-PR leciona que:

(...) ao apreciar este tema impressiono-me, sobremodo, com as consequências, no plano social, dos nossos julgamentos. Sabemos que no nosso país, principalmente nas camadas pobres da população, um grande número de negócios, e até direi, a maior parte dos negócios, é efetuada de maneira menos formal, e até absolutamente informal. Compram-se e vendem-se pequenos terrenos e casas apenas mediante a emissão de recibos, sinais de arras e mesmo de promessas de compra-e-venda ou “transferências de posse” redigidos de fora a mais singela. E é muitíssimo comum que esses documentos não venham a ser registrados no Registro de Imóveis, inclusive porque os termos em que estão vazados não permitiriam o registro. Para o registro imobiliário é necessário que o contrato revista determinados requisitos, o que exige, freqüentemente, a presença do tabelião ou do profissional do Direito.

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No mesmo julgado (Recurso Especial 188-PR), o Ministro Bueno de Souza traz à tona a precariedade habitacional no país, e elucida o que segue:

Em época mais recente, a explosão populacional, cada vez mais acentuada nas áreas urbanas, vem determinando a inevitável expansão das cidades maiores, com o incessante e irreversível aparecimento de loteamentos ou meros fracionamentos de antigas chácaras dos arredores, cujos proprietários, muitas vezes pessoas rústicas, são impelidos a esse improvisado empreendimento, da mesma forma que os adventícios, por sua vez, tangidos a adquirir pequenos lotes residenciais em áreas desprovidas de serviços públicos, onde constroem suas modestas habitações, fundados em contratos desprovidos de registro, pois o próprio loteamento é quase sempre irregular. Sobrevindo execução fiscal contra o improvisado loteador, os lotes já edificados são, obviamente, os preferidos pelos oficiais de justiça, para garantia do juízo. A não se admitir, sequer, a oposição de embargos de terceiro, fica a jurisdição impedida de tomar conhecimento das bases empíricas da demanda. Daí o que se me afigura o excessivo rigor do verbete 621, a que aludi, de início.

Mais coerente com o fundamento no Texto Constitucional de 1988, a Súmula 84 do STJ preconiza o diálogo entre o Direito e a Justiça, revogando, assim, o enunciado da Súmula 621 do STF de maneira a possibilitar oposição de embargos de terceiros por parte do possuidor, mesmo na hipótese em que o contrato de promessa de compra e venda esteja desprovido de registro civil.

A possibilidade de defesa da posse por meio dos embargos confere ao instituto a

natureza de direito real, em decorrência da eficácia erga omnes e do jus persequendi do bem.

Divergindo desse posicionamento, Marcelo Damanski301 defende que a Súmula 84 se refere à

posse ad usucapionem, e não ao direito real de posse. Ao analisar a posse do promitente

comprador que não efetuou o registro no Cartório competente, o autor destaca que a posse

fática do bem tem um papel fundamental para possibilitar a tutela. Destaca o autor:

A posse do promitente comprador tem sentido enquanto poder de fato, como poder efetivo representado pelo aproveitamento da utilidade econômica do imóvel. É especialmente desse modo que ela suscita nos demais a aparência da titularidade do direito de propriedade, notadamente quando é exercida

301 DOMANSKI, Marcelo. Posse: da segurança jurídica à questão social (na perspectiva dos limites e possibilidades de tutela do promitente comprador através dos embargos de terceiro). Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 296.

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como posse própria, com animus domini, conforme consagra a teoria de Savigny. A posse do promitente comprador somente poderá ser considerada como posse ad usucapionem a partir da quitação. (...) Havendo posse como de dono, oriunda do pagamento integral do preço, será perfeitamente possível ao promitente comprador invocar a tutela jurisdicional através dos embargos de terceiro, para eliminar a apreensão judicial da posse que se opere através da penhora, da arrecadação...

Atribuir à posse protegida pelos embargos o caráter de posse ad usucapionem, é

considerá-la um instituto vinculado ao direito de propriedade, pois a posse ad usucapionem é

uma posse com natureza de direito proprietário. É mais uma propriedade, e não uma posse.

No mais, os requisitos para a configuração da posse ad usucapionem são: posse com animus

domini, ininterrupta, sem oposição, exercida durante o prazo estipulado pela lei. Dessa foram,

a posse protegida pelo art. 1046 do CPC não se enquadra na concepção de posse ad

usucapionem.

No entanto, atribuir tais poderes ao possuidor, sem a devida inscrição do contrato

preliminar no Registro Imobiliário atinge a segurança jurídica do sistema. No Brasil, o

registro público é alicerçado nos princípios da legalidade, veracidade e publicidade. Nessa

vertente, o registro do contrato propicia que a situação do imóvel seja de conhecimento de

todos. Por extensão, tal providencia protege interesses de terceiros, dando-lhes a segurança

subjacente à fé pública que impregna os registros.

Tornando públicos os negócios jurídicos entre os membros da sociedade, o registro

confere maior segurança, previne fraudes e protege o crédito. Na senda romana, o Brasil adota

esse sistema para conferir autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos, conforme

determina o art. 1° da Lei 6.015/73.

O Ministro Sálvio de Figueiredo, ao proferir seu voto no Recurso Especial n. 188-

PR, manifestou coerência com a Súmula 621, por entender que ela oferece a almejada

segurança jurídica perseguida pelo sistema registral. Essa argumentação foi expressa nos

seguintes termos:

Há um sistema legal concernente à propriedade imobiliária e a sua observância preserva a confiabilidade dos registros públicos: o assentamento no álbum imobiliário (e somente ele) permite a oponibilidade erga omnes do

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direito. (…) O rompimento do sistema legal de transmissão da propriedade para atender a certas condições e casos, ensejaria casuísmos que poderiam conduzir à instauração de precedentes, pondo em risco a estabilidade, confiabilidade e segurança de todo sistema.

Porém, o sistema registral brasileiro não atende satisfatoriamente à população,

principalmente no interior do país, conforme ressaltam Pablo Stolze Galiano e Rodolfo

Pamplona Filho302, quando ressaltam que é muito difícil convencer o humilde lavrador de boa-

fé que o simples recibo firmado por quem vendeu a sua gleba de terra não é escritura pública

registrada, e, portanto, não vale como título dominial.

Ressalta-se que o Recurso Especial n. 188-PR (890008421-6) foi o precedente

jurisprudencial da Súmula 84 do STF. Os fundamentos utilizados nesse Recurso serviram para

afastar a incidência da Súmula 621 do STF, inaugurando, assim, nova interpretação ao art.

1.046 do CPC, mais alinhada ao contexto social brasileiro. Nessa linha argumentativa, o

julgamento dos recursos posteriores a ele admitiu a possibilidade de defesa da posse pelos

embargos. Como exemplos elucidativos, é pertinente mencionar as decisões referentes aos

seguintes recursos: REsp. n. 226-SP, (8900085093), DJ 19/09/1989; REsp. n. 696-RS

(890009976-0) , DJ 17/10/1989; REsp. 662-RS (890009939-6), DJ 17/10/1989; e o REsp.

1172-SP (890011126-4), DJ 13/02/1990.

Nessa direção, em 02/07/1993 o STJ revogou a Súmula 621 do STF por meio da

Súmula 84, para dar efetividade aos princípios constitucionais, protegendo a dignidade da

pessoa do possuidor que cumpre função social no imóvel sub judice, em detrimento do direito

hipotecário do credor.

Entendeu o STJ que, se a promessa de compra e venda é anterior ao ingresso da

execução e, observados os requisitos de validade, não se configura a hipótese de fraude à

execução, ficando dispensada, assim, a inscrição do contrato no Registro Imobiliário para a

oposição dos embargos de terceiro.

A fraude de execução, de acordo com a Súmula 375 do STJ, depende do registro da

penhora do bem alienado, ou da prova de má-fé do terceiro adquirente. Violando normas de

ordem pública, ela ocorre quando o devedor já tem contra si processo judicial capaz de

302 GALIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 165.

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reduzi-lo à insolvência e, nessa condição, aliena ou onera seu patrimônio, prejudicando o

processo e também os credores, que serão atingidos pelos efeitos decorrentes da sentença,

com a volta do bem onerado ou alienado ao patrimônio do devedor. Na fraude de execução,

de acordo com o art. 593 do CPC, o negócio jurídico será considerado existente e válido,

porém ineficaz com relação à execução, podendo o juiz determinar que a penhora recaia sobre

o bem, ou direito de posse ou propriedade de terceiro.

A fraude de execução não se confunde com a fraude contra credores, prevista no art.

106 e seguintes do Código Civil/02. Nessa última, a alienação ou oneração do bem para

fraudar os credores, no intuito de evitar a satisfação do crédito com a insolvência do devedor,

ocorrerá anteriormente a qualquer espécie de ação.

Na hipótese da Súmula 84, não ocorrerá nenhuma dessas fraudes, pois a inscrição da

penhora somente opera como prova de fraude à execução, para as transações posteriores a ela.

Estando o possuidor imitido na posse do imóvel em decorrência de negócio jurídico anterior,

não se configura fraude de execução, de acordo com Recurso Extraordinário n. 94.132-1.

Também não se verifica fraude contra credores, pois o imóvel é dado em garantia hipotecária

após a venda para o terceiro embargante. Ou seja, ao receber o bem em garantia, o credor não

cuidou de averiguar a situação fática do imóvel, para saber se o mesmo se encontrava em

condições de assegurar a procedência da execução.

Essa averiguação ocorre por meio das Certidões Cartorárias e Judiciais, e/ou de visita

ao imóvel, para detectar se o mesmo está sob a posse de alguém e em que circunstâncias a

posse é exercida. Dessa forma, é importante o credor hipotecário verificar a situação fática do

bem303. Todavia, não raro, a prática comercial ainda é impregnada pelo imediatismo, de modo

que o credor busca a realização do negócio jurídico, sem tomar a devida cautela, atingindo

eventualmente o terceiro de boa-fé.

A esse respeito, é interessante a indagação do Ministro Athos Carneiro no REsp. 188

do STF:

303 Luís Manuel Teles de Menezes Leitão afirma em sua obra que a publicidade referente aos direitos reais pode realizar-se de várias formas no direito português; dentre elas, o autor cita a posse como sendo a mais comum, e o registro como sendo a forma mais perfeita. De acordo com o autor, “a forma mais comum de assegurar a publicidade dos direitos reais é a posse.” O artigo 1268°, n° 1, do Código Civil português confere presunção de titularidade de direito ao possuidor, “exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registro anterior ao início da posse.” LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 28-29.

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É certo que, num plano puramente registral, o imóvel penhorado ainda é, tecnicamente, integrante do patrimônio do promitente vendedor. Mas, inclusive, com freqüência é difícil que o credor ignore que sobre aquele imóvel, cuja penhora postula, se exerce direito de outra pessoa, do promitente comprador e possuidor de boa-fé. O promitente vendedor ainda é dono do imóvel, mas o é sob aquele ‘minus’ derivado das obrigações que assumiu, de outorga da escritura definitiva, em virtude do contrato quitado de promessa de compra e venda. O patrimônio do cidadão não é constituído só dos seus direitos, mas também das suas obrigações. E o promitente vendedor tem a obrigação de garantir a posse transferida contratualmente ao promitente comprador, que a exerce em nome próprio. Então, se dirá: mas o credor não sabia disso; o credor considerava que o imóvel era do promitente vendedor; emprestou-lhe dinheiro, ou com ele negociou, confiante de que aquele imóvel fazia parte, sem ônus, do seu patrimônio. Será que essa assertiva corresponde às realidades práticas da vida? Será que o credor foi realmente averiguar no Registro Imobiliário e não atentou para a circunstância de que naquele imóvel estaria morando alguém, às vezes há muitíssimos anos, comportando-se como dono E a penhora, por sua vez, terá sido objeto de registro, de molde a ter eficácia perante terceiros?

A Súmula protege apenas o possuir de boa-fé. No âmbito possessório, analisa-se a boa-fé pelo critério subjetivo, que privilegia a intenção do agente, ao contrário do plano negocial que se pauta segundo a boa-fé objetiva; ou seja, o comportamento que não viola as regras e princípios do sistema jurídico, independente da intenção do agente.

O Código Civil/2002 determina no art. 1.201 que será de boa-fé a posse daquele que ignorar o vício ou obstáculo impeditivo da aquisição da coisa. Nessa circunstância, o possuidor tem a convicção de que a coisa lhe pertence; de que está na posse legítima do bem. A posse de boa-fé, embora íntima, admite elemento externo para facilitar sua comprovação: o justo título, cuja concretização ocorre mediante escritura de compra e venda, carta de arrematação, formal de partilha, contrato particular de compra e venda; enfim, de instrumento extrinsecamente adequado à aquisição derivada do bem.

No entendimento da Jornada de Direito Civil, o justo título se traduz pelo “justo motivo” que comprove a posse da pessoa sobre o bem, independente da sua materialização em instrumento público ou particular. Dessa forma, entendeu o Enunciado 303 da JDC que melhor se alinha à perspectiva da função social da propriedade o abrandamento do formalismo documental, possibilitando a prova do justo título por meio de testemunha, por exemplo. O justo título faz prova juris tantum de boa-fé, podendo ser produzida prova em contrário.

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Como aludido, o Código Civil de 2002 privilegiou o possuidor de boa-fé, ao introduzir artigos ausentes na codificação anterior, no intuito de ampliar a proteção da posse. Nessa senda, o art. 1.228, § 4° e 5° possibilita a desapropriação por interesse privado dos possuidores de boa-fé; e a acessão inversa lhes foi assegurada nos arts. 1.255, parágrafo único, 1.258 e 1.259. Reitera-se que esses artigos promovem a eficácia erga omnes da posse, sinalizando que o legislador civil a reconhece como um direito real nessas hipóteses. O Código Civil também privilegiou a posse de boa-fé, com a redução para cinco anos da usucapião ordinária, desde que o possuidor preencha os requisitos do art. 1.242, parágrafo único.

Fortalecendo a tendência predominante no sistema jurídico atual, no sentido de resguardar os direitos dos possuidores de boa-fé, o Ministro Sálvio de Figueiredo, relator do Recurso Especial n. 188-PR, destaca a importância da proteção à posse de boa-fé. Assim definida, a boa-fé se sobrepõe, quando ponderada com direitos de cunho patrimonialista, e até mesmo, conforme mencionado na decisão, à necessidade de segurança jurídica. De acordo com a decisão:

Há um sistema legal concernente à propriedade imobiliária e a sua observância preserva a confiabilidade dos registros públicos: o assentamento no álbum imobiliário (e somente ele) permite a oponibilidade erga omnes do direito. Destarte, a inscrição no Registro Público do contrato preliminar da compra e venda de imóvel imprime ao direito do adquirente o efeito que decorre do próprio domínio: oposição a todos. Enquanto não efetuada a inscrição, existe apenas o direito obrigacional do comprador, cujo inadimplemento, como é curial, se resolve em perdas e danos entre as partes. Em outras palavras, somente gera efeitos inter partes. Por outro lado, é de atentar-se para outro direito que não pode ser postergado: o de terceiro de boa-fé, que contrata com o alienante e tem no patrimônio deste a garantia do cumprimento das obrigações por ele assumidas. Ao buscar a satisfação de seu crédito pela via executiva, o credor se posiciona, até prova em contrário, como terceiro de boa-fé, com direito à constrição jurisdicional do patrimônio do devedor inadimplente, pela penhora dos bens que o integrem.

Na esteira da Súmula 84, o enunciado da Súmula 308 do STJ reforçou a proteção ao

possuidor de boa-fé, ao determinar que a “hipoteca firmada entre a construtora e o agente

financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem

eficácia perante os adquirentes do imóvel.”

A esse respeito, é usual que incorporadoras/construtoras busquem crédito junto aos

agentes financeiros, apresentando as unidades a serem construídas como garantia hipotecária.

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Paralelamente, construtoras/incorporadoras põem esses imóveis à venda, firmando contrato de

promessa de compra e venda com os consumidores. Nas hipóteses de não pagamento da

dívida por parte das construtoras/incorporadoras, os credores hipotecários interpõem Ação de

Execução da hipoteca para a satisfação do crédito, restando aos promitentes compradores o

pedido de intervenção judicial, para proteger seu direito à aquisição do imóvel. Em face do

dilema, os promissários compradores adquirentes das unidades, sem registro do contrato

preliminar, interpõem embargos de terceiro, para desconstituir a penhora dos imóveis, com

fundamento no art. 1.046 do CPC, utilizando o precedente da Súmula 84.

Tratando de problema como o descrito, interpretando os arts. 22 e 23 da Lei n.

4.864/65304, entendeu o Tribunal que o direito de crédito de quem financiou a construção das

unidades destinadas à venda pode ser exercido amplamente contra a devedora, mas contra os

terceiros adquirentes fica limitado a receber deles o pagamento das prestações, pois os

adquirentes da casa própria não assumem a responsabilidade de pagar duas dívidas: a própria,

pelo valor real do imóvel, e a da construtora do prédio.

Como se depreende, a legislação determina que o agente credor, ao verificar a

inadimplência da mutuária e ciente das vendas, deve imediatamente notificar os

compromissários, para que passem a pagar seus débitos diretamente a ele, não esperando os

débitos se avolumarem para, escudando-se na garantia hipotecária, executar os adquirentes.

É coerente a produção do legislador brasileiro, que protege o lado mais fraco da

relação contratual, ao resguardar o direito de posse sobre o imóvel dos promitentes

304 Lei n. 4.864/65 : “Art. 22. Os créditos abertos nos têrmos do artigo anterior pelas Caixas Econômicas, bem como pelas sociedades de crédito imobiliário, poderão ser garantidos pela caução, a cessão parcial ou a cessão fiduciária dos direitos decorrentes dos contratos de alienação das unidades habitacionais integrantes do projeto financiado. § 1º Nas aberturas de crédito garantidas pela caução referida neste artigo, vencido o contrato por inadimplemento da emprêsa financiada, o credor terá o direito de, independentemente de qualquer procedimento judicial e com preferência sôbre todos os demais credores da emprêsa financiada, haver os créditos caucionados diretamente dos adquirentes das unidades habitacionais, até a final liqüidação do crédito garantido.§ 2º Na cessão parcial referida neste artigo, o credor é titular dos direitos cedidos na percentagem prevista no contrato, podendo, mediante comunicações ao adquirente da unidade habitacional, exigir, diretamente, o pagamento em cada prestação da sua percentagem nos direitos cedidos. Art. 23. Na cessão fiduciária em garantia referida no art. 22, o credor é titular fiduciário dos direitos cedidos até a liquidação da dívida garantida, continuando o devedor a exercer os direitos em nome do credor, segundo as condições do contrato e com as responsabilidades de depositário. § 1º No caso de inadimplemento da obrigação garantida, o credor fiduciário poderá, mediante comunicação aos adquirentes das unidades habitacionais, passar a exercer diretamente todos os direitos decorrentes dos créditos cedidos, aplicando as importâncias recebidas no pagamento do seu crédito e nas despesas decorrentes da cobrança, e entregando ao devedor o saldo porventura apurado. § 2º Se a importância recebida na realização dos direitos cedidos não bastar para pagar o crédito do credor fiduciário, bem como as despesas referidas no parágrafo anterior, o devedor continuará pessoalmente obrigado a pagar o saldo remanescente.”

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compradores impedindo a execução da hipoteca. Dessa forma, o direito real de hipoteca ficou

esvaziado frente ao direito possessório. A posse assume natureza de direito real em

decorrência do dispositivo legal e, confrontada com outro direito real (hipoteca), prevalece

sobre ele.

Em consonância com a intenção do legislador em resguardar o direto possessório, a

Súmula 308, reiterando o teor da Súmula 84, confere prioridade aos princípios da dignidade

da pessoa humana e da função social, em detrimento do direito real hipotecário. Por meio

dessa Súmula, a posse funcionalizada prevalece sobre o crédito hipotecário.

Diante dos enunciados das Súmulas 84 e 308, verifica-se que a hipoteca passa por

releitura, quando confrontada com o instituto possessório. A hipoteca é um sistema de

garantia real, preterida à anticrese pela população, porque, nessa modalidade, o devedor

permanece na posse do bem. Na anticrese, pouco utilizada no cenário brasileiro, a posse é

concedida ao credor. A hipoteca é um direito real de garantia utilizada desde o Direito

Romano; no Brasil, foi instituída pela Lei 317 de 21/10/1843 e regulamentada pelo Decreto n.

842 de 14/11/1846. Atualmente está disciplinada em seus aspectos substanciais pelo Código

Civil de 2002, nos arts. 1.473 a 1.505; no tocante às formalidades procedimentais, encontra-se

regulada pela Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73).

Numa análise preliminar, a Súmula 84 pode sugerir que a hipoteca se transformou

num instituto jurídico inutilizável ao perder a eficácia erga omnes. Pode-se ainda alegar que

essa jurisprudência favorece a redução da segurança jurídica, haja vista a possibilidade da

invalidade da hipoteca, mesmo quando constituída sem qualquer vício que possibilite sua

nulidade.

Porém, é imprescindível recordar que os direitos não são cristalizados, nem aplicados

de forma absoluta. A ponderação entre o direito de crédito e o direito possessório, fomentada

pela necessidade de efetividade dos princípios constitucionais, é mais coerente com o

contexto social do país. Dessa forma, as características dos direitos reais deverão ser

revisitadas, levando-se em consideração os princípios constitucionais.

Não obstante esse robusto fundamento, a natureza jurídica da posse é definida no

Recurso Especial n.188 pelo Ministro Athos Carneiro como direito pessoal, e não direito real.

Nas palavras do Ministro: “… vemos aqui os dois pratos da balança: de um lado, temos o

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direito do credor, direito pessoal; do outro lado o direito, também pessoal, do possuidor e

promitente comprador.” (grifo nosso)

Ao refletir sobre esse aparente conflito de direitos, é forçoso recordar que os

institutos do Direito Civil, desde o período romano, se classificam em direitos pessoais

(subdividindo-se em Direitos da Personalidade e Direitos Obrigacionais) e direitos reais,

sendo a posse um instituto sui generis a essa classificação, assim como as obrigações propter

rem e as obrigações com eficácia real.

Como exposto no Capítulo 1, os direitos pessoais referentes às obrigações podem ser

típicos ou atípicos; sujeitando o devedor a uma prestação de dar, fazer ou não fazer; com

eficácia inter partes, haja vista que vinculam, via de regra, credor e devedor; e o credor

poderá demandar o patrimônio do devedor na hipótese de inadimplemento da obrigação. Por

seu turno, os direitos reais têm como objeto um bem corpóreo; abrange numerus clausus (ou

taxativos); típicos; com eficácia erga omnes; incidindo sobre eles o direito de sequela (ou jus

persequendi); são absolutos, eis que subordinam a coletividade ao dever de abstenção ao

direito do titular do direito real, entre outras diferenças.

Destaca-se que algumas figuras jurídicas se aproximam da natureza dos direitos

reais, como também dos direitos pessoais, como ocorre com as obrigações propter rem e as

obrigações com eficácia real; porém, não podem ser consideradas direitos reais.

As obrigações propter rem são também denominadas de obrigações híbridas ou

ambulatórias e obrigam o titular de um direito real a cumprir certas obrigações referentes ao

bem.

Já as obrigações com eficácia real são prestações em que há oponibilidade a terceiro,

quando houver anotação preventiva no Registro Imobiliário. Todavia, elas não perdem o

caráter de direito; apenas exigem obrigações excepcionais, sujeitas a previsão legal. Exigem

vínculo pessoal e, portanto, a existência das figuras do devedor e credor de uma prestação.

Como exemplo dessas obrigações, destaca-se o teor dos arts. 8º e 33 da Lei de Locação; e

também a retrovenda no Código Civil.

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Como se destacou, a posse possui natureza jurídica sui generis, comportando

diferentes classificações. Reforçando esse entendimento305, o Ministro Sálvio de Figueiredo,

relator do Recurso Especial n. 188-PR, fez a seguinte observação:

Ressalto, de início, que não se nega a via dos embargos de terceiro ao possuidor, uma vez que há expressa disposição legal autorizativa (art. 1046, §1º, CPC). Pertinente, a todas as luzes, no entanto, a objeção levantada pelo Ministro Moreira Alves no sentido de que nem sempre é possível essa via, como nos casos de comodatário, locatário, depositário etc. (RE n. 87.958-RJ)

Assim compreendido, no Brasil, o instituto possessório supõe quatro aspectos:

1) posse fato, ou seja, posse sem nenhuma proteção jurídica: ocorre, por exemplo, na hipótese

do invasor de um imóvel em relação ao proprietário do mesmo, pois o proprietário consegue

retirá-lo do bem desde que não se complete a prescrição aquisitiva, e poderá fazê-la por meio

de uma liminar com rito especial até um ano e um dia do esbulho/turbação. O invasor terá a

posse sob o bem depois de cessados os atos de violência ou clandestinidade, conforme

determina o art. 1.208 do CC/02. Porém, é uma posse que não se sustenta frente à posse do

legítimo possuidor do bem, ou diante de um direito de propriedade. Nesse caso, a posse

existirá no plano fático, porém sem repercussão no plano jurídico.

2) posse com proteção jurídica ou posse ad interdicta: ocorre nas hipóteses em que o

possuidor tem uma posse direito, com caráter sui generis, haja vista ser um direito que não

enquadra dessa divisão operada pelo Direito Civil: direitos pessoais e direito reais. Ela ocorre

nas hipóteses em que o possuidor pode ser valer das ações possessórias para garantir a

permanência da sua posse, ou seja, poderá defender juridicamente a posse sobre o bem.

Ocorre, por exemplo, com o locatário é esbulhado/turbado pelo locador ou terceiro. Também

ocorrerá a posse ad interdicta na hipótese em que o invasor de um imóvel é

esbulhado/turbado por terceiro que não se o proprietário/legítimo possuidor do imóvel, entre

outros exemplos.

305 Semelhante entendimento foi exposto no RE n. 94.132-1-RJ: “… a posse do promitente comprador se defende por via dos embargos de terceiro, não só porque legítima, mas também porque se convolará em posse de dono, com a obtenção afinal da venda definitiva, o que não ocorre em outras espécies de posse direta, como a do locatário, do comodatário, do depositário.”

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3) posse ad usucapionem: é a posse exercida de forma ininterrupta, sem oposição, com

animus domini. Cumprindo o prazo legal, essa posse torna-se ad usucapionem, dando origem

à usucapião. É uma posse que se configura no direito de propriedade. Na verdade ela é uma

propriedade, e não uma posse, haja vista que o art. 1.238 assim a determina:

Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.” (grifo nosso)

Interpretando o art. 550 do CC/16 que trazia o mesmo texto que o atual art. 1.238, o

STF determinou por meio da Súmula 237 a possibilidade de oposição da usucapião em defesa,

mesmo sem a sentença declaratória advinda de uma Ação de Usucapião. De acordo com o

Tribunal, a aquisição da propriedade pela usucapião não ocorre com a transcrição da sentença

declaratória, pois não é a sentença que constitui o direito do possuidor, como também não é a

transcrição que o torna proprietário do bem. A aquisição ocorre após a satisfação dos

requisitos legais, transformando a posse em propriedade.

Dessa forma, a lei determina que preenchidos os requisitos legais o possuidor se

torna proprietário do bem, ou seja, será um possuidor com posse ad usucapionem, podendo ou

não requerer ao juiz que seja declarado o seu direito de propriedade. Argumentou o Tribunal

no Recurso Extraordinário n. 18241/MG, que a necessidade da Ação de Usucapião e a

respectiva transcrição no Registro Imobiliário ocorre somente na hipótese do possuidor querer

se utilizar do ius disponendi, ou seja, para dispor do bem.

4) posse com natureza jurídica de direito real: ocorre nas hipóteses previstas na lei, haja vista

que os direitos reais, de acordo com a tradição do direito civil brasileiro, não pode ser criado

pela vontade das partes. Porém essa previsão pode ocorrer de forma expressa, como ocorre no

art. 1.225, inciso VII do CC/02, que torna real a promessa de compra e venda irretratável,

desde que inscrita no Registro Imobiliário; e o art. 59 da Lei n. 12.242/11, que possibilita a

legitimação da posse devidamente inscrita no Registro Imobiliário, cumpridos os requisitos

mencionados no referido artigo.

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O fato da posse não estar incluída expressamente no rol do art. 1.225 do Código

Civil, não lhe retira a possibilidade da natureza jurídica de um direito real, pois nas hipóteses

em que a lei confere à ela os elementos típicos desses direitos, tais como eficácia erga omnes

e jus persequendi, ela será um direito real, apesar de não haver previsão legal expressa nesse

sentido. Sendo assim, a posse assume natureza real nas hipóteses do art. 1228, § 1° e 2°; art.

1.255, parágrafo único; arts. 1.258 e 1.259 do Código Civil; art. 22 e 23 da Lei 4.864/65; art.

1046 do CPC, entre outros.

Portanto, o instituto possessório no sistema jurídico brasileiro não comporta uma

definição única, pois a posse assume diversas naturezas jurídicas, como acima exposto,

podendo ser uma situação fática apenas; ou um direito sui generis.

Pode-se afirmar que a natureza real da posse é recente no sistema jurídico brasileiro.

Daí a importância da Súmula 84, pois ela inaugura o debate em torno da posse a partir da

análise de um caso em concreto, e não por meio da discussão dos conceitos em si. O teor dos

votos proferidos no REsp. n.188 não faz referência às Teorias Possessórias de Ihering ou

Savigny, mas sim à realidade de como são realizados os negócios jurídicos no país, buscando

amparar os marginalizados de um sistema legal estruturado no patrimonialismo.

A definição da natureza jurídica da posse a partir de caso em concreto, como previsto

pela Súmula 84, partiu da interpretação de um artigo inscrito na lei (art. 1.046 do CPC),

levando em consideração a realidade social brasileira e os princípios fundamentais da

CRFB/88. Esse dado de realidade traz à evidencia de que a legislação em torno desse

instituto, construída a partir do século XVI, não é coerente nem compatível com a realidade

social do país, precisando de releitura.

É forçoso reconhecer que a estrutura, funcionamento e valoração dominante na

sociedade brasileira do século XXI é distinta daquela contemporânea ao Código Civil de

1916, quando a posse era dependente do direito de propriedade, porque o sistema jurídico era

elaborado pelos latifundiários, para atender aos seus interesses. Entretanto, a crescente

evolução dos movimentos sociais reclama por novas posturas dos operadores jurídicos, bem

como o reconhecimento da normatividade dos princípios constitucionais.

Nesse sentido, sublinha-se igualmente a relação dialética de mútua influência entre o

sistema jurídico e as tendências do desenvolvimento sócio-político. São os inputs e outputs

que se contrapõem a um sistema jurídico autopoiético.

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A Súmula 84 serviu de precedente para que a posse se configurasse como direito real

em outras situações, no intuito de fortalecer o instituto, quando confrontado com direitos de

cunho patrimonialista. Coerente com esse fundamento, posterior à edição da Súmula, julgada

em 02/07/1993, cujo precedente jurisprudencial (REsp n. 188) data de 08/08/1989, ocorreu o

julgado da Favela Pullman em 21/06/2005, que conferiu natureza real à posse funcionalizada

frente ao proprietário desidioso. O julgado serviu de paradigma para o art. 1.228, § 4° e 5°.

Também a Súmula 308 (DJ 25/04/2005), ao interpretar os arts. 22 e 23 da Lei n.

4.864/65 consolidou entendimento de que a garantia hipotecária não atinge o terceiro boa-fé

adquirente da unidade autônoma. Mais uma vez, recorreu-se ao precedente da Súmula 84 de

que o direito de terceiro adquirente, baseado na aquisição de boa-fé, não será afastado pela

ausência do registro do instrumento de compra e venda.

O Código Civil de 2002 representou significativo avanço em relação à codificação

anterior, admitindo a posse com natureza real nos artigos acima citados, ao mesmo tempo que

inseriu a promessa de compra e venda irretratável e registrada, no rol dos direitos reais do art.

1.225.

A Lei n. 12.424/2011, regulamentando a Lei n. 11.977 que disciplina o Programa

Minha Casa, Minha Vida, confere natureza real à posse para fins de moradia, por meio da

legitimação de posse, desde que devidamente inscrita no Registro Imobiliário e cumpridos os

requisitos elencados no art. 59 da Lei n. 12.424/11.

A Súmula 84 trouxe novos contornos para os institutos jurídicos nela previstos, quais

sejam: a posse, a propriedade e a hipoteca. A posse foi alçada ao status de direito real em

decorrência de oponibilidade erga omnes e do jus persequendi; por consequência, relativizou-

se o rol numerus clausus do art. 1.225 do Código Civil, pois o sistema passa a admite a

natureza real de direitos, mesmo sem expressa previsão legal nesse sentido.

Sendo assim, o possuidor poderá retirar o bem de uma ação de execução movida por

um credor hipotecário em face do proprietário do bem, sobressaindo sua posse com contornos

de direito real em face do direito hipotecário. Por outro lado a hipoteca perde a eficácia erga

omnes e o direito de sequela, típicos desse instituto desde o Direito Romano, quando

confrontada com a posse funcionalizada, e de boa-fé.

O posicionamento do STJ, portanto, relativiza a característica numerus clausus dos

direitos reais para admitir a natureza real de direitos não descritos expressamente como tal

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pela lei, além de possibilitar a eficácia erga omnes e o jus persequendi de uma posse

desprovida de registro prévio no Cartório de Registro de Imóveis.

Sobre a possibilidade de relativização do princípio da taxatividade (numerus clausus)

no sistema jurídico brasileiro, Marco Aurélio Bezerra de Mello306 leciona:

Importante registrar que no Brasil, a taxatividade não é um conceito absoluto – exatamente por não constar de expressa determinação legal (...). É importante que no estágio atual de revisão do direito civil tenhamos a possibilidade de mitigar o rigor da taxatividade, cumprindo o comando constitucional da função social da propriedade (art. 5º, XXIII da C.R.F.B.), pois a flexibilidade desse princípio permite a criação e o reconhecimento da realidade de figuras jurídicas importantes para a sociedade contemporânea a posse (...), direito de retenção, situações jurídicas reais no shopping center, multipropriedade imobiliária (sistema time-sharing) e o condomínio de fato.

Nessa ordem de raciocínio, em decorrência da CRFB/88, os direitos reais sofreram drástica evolução, a qual requer hermenêutica coerente com a concepção contemporânea. Ao conferir relevo à função social da propriedade, também a posse e demais direitos reais demandam releitura para tornar o Direito mais inclusivo e coerente com o Estado Democrático de Direito. A noção de propriedade e hipoteca como direitos reais absolutos resulta antijurídica, impulsionando nova e extensiva compreensão.

Explicitando melhor: na Constituição Federal de 1988, propriedade e posse assumiram

status de direito fundamental. A garantia de proteção da dignidade não se restringe ao

proprietário, mas estende ao possuidor, que padece de maior fragilidade na relação com o

proprietário, o que justifica ainda mais sua proteção pelo ordenamento jurídico.

A efetividade dos princípios da função social da propriedade, da solidariedade social e

da dignidade da pessoa humana situa o instituto possessório num patamar axiologicamente

superior aos direitos de cunho exclusivamente patrimonialista, como a hipoteca. Defender o

contrário é se alinhar à doutrina clássica oitocentista que defendia a supremacia dos direitos

patrimonialistas em detrimento da pessoa.

No contexto da funcionalização social da terra, o instituto da posse vem crescendo

de importância nos últimos tempos, haja vista que a posse, pelo seu exercício fático,

306 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito das Coisas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 6-7.

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desempenha a função social prevista constitucionalmente. Ressalta-se que a justificativa da

posse encontra-se diretamente na função social exercida pelo possuidor.

Em perspectiva histórica, a posse foi considerada expressão da propriedade; uma

exteriorização e desdobramento daquele e dos demais direitos reais. Protegia-se a posse

unicamente no intuito de proteger a propriedade. Porém, essa concepção perdeu força,

transmudando o instituto da posse de posição acessória para uma vertente autônoma,

possibilitando tutela legislativa independente. Apesar de intimamente ligada ao domínio, a

posse deve ser vista de maneira independente, como instituto apto a cumprir sua função social

e econômica, superando a exclusividade do direito de propriedade.

Atualmente, a posse não se caracteriza como fenômeno individual, mas como fato

social e jurídico impregnado de função social. Na reinterpretação do direito possessório,

incide sua feição e utilidade social. Admitir essa natureza jurídica à posse implica aceitar o

direito subjetivo de quem faz jus a uma vida digna, mediante acesso a patrimônio existencial

mínimo.

Ao contrário, negar a função social da posse é insistir em que apenas os proprietários

têm direito subjetivo sobre a terra, respaldando as doutrinas tradicionais que visualizam na

função social apenas seu caráter negativo; critério de imposição de limites ao direito subjetivo

de propriedade, não aceitando sua função promocional dos valores constitucionais

direcionados ao respeito da dignidade da pessoa humana, e de implementação da justiça

social. Há de ser reconhecida, no exercício da posse, a necessidade humana de moradia,

trabalho e dignidade.

Rente à realidade social, e estruturada sobre os princípios constitucionais, a Súmula

84 do STJ transpõe a fronteira do modelo liberal-individualista, para a construção de uma

nova hermenêutica do instituto possessório no plano jurisprudencial. A tutela da posse

corresponde à necessidade de tornar efetivos os princípios inscritos na CRFB/88. Esses

princípios inauguram novo paradigma à hermenêutica da relação entre a ordem econômica e

as exigências sociais e existenciais e seus desdobramentos em termos de casos concretos

levados a julgamento nos Tribunais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluindo o estudo, em que o núcleo central de análise foi o instituto possessório

contextualizado à luz dos princípios fundamentais da Constituição Federal de 1988, em

especial o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da função social da

propriedade/posse, com fundamento na doutrina, legislação e jurisprudência consultada,

chegou-se às conclusões abaixo explicitadas.

Foi analisado na presente Tese a trajetória dos princípios jurídicos, iniciando a

investigação no período de incidência do direito natural, ou seja, século XVI, momento em

que os princípios eram concebidos como fruto da razão, e fundados numa ética superior.

Dessa forma, os princípios representavam a expressão dos ideais abstratos de justiça, sendo

considerados direitos inerentes ao homem por natureza, objetivando estabelecer regras de

incidência geral e imutáveis, por serem naturais, e destituídos de eficácia normativa.

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O positivismo representou o apogeu do direito natural, na medida em que este foi

sendo inserido nos Códigos do século XVIII. No positivismo jurídico, os princípios foram

tratados como princípios gerais de direito, utilizados como fontes subsidiárias na aplicação da

lei, sendo utilizados como último critério a ser utilizado pelo intérprete para preencher as

lacunas do ordenamento jurídico, conforme determina o art. o art. 4° da Lei de Introdução ao

Código Civil brasileiro.

Vários fatores, no entanto, contribuíram para a superação do positivismo jurídico, de

forma a reconhecer o caráter normativo dos princípios jurídicos. Esse reconhecimento ocorreu

de forma gradual, e dessa forma, no direito contemporâneo tanto as regras como os princípios

são reconhecidos como normas jurídicas.

Dentre os fatores que contribuíram para esse reconhecimento, cita-se o declínio

moral do positivismo após a Segunda Guerra Mundial. Diante da legalidade das atrocidades

cometidas durante a II Guerra pelos regimes fascista e nazista, e o Direito buscou se

aproximar dos valores morais para se legitimar. Dessa forma, além de reencher o requisito da

legalidade, a norma deverá revestir-se da legitimidade. Esta aproximação entre direito e

moral ocorreu por meio dos princípios jurídicos.

Paralelamente, ocorreu a ascensão do direito constitucional, passando a Constituição

a ocupar o centro referencial do sistema jurídico, lugar antes ocupado pelo Direito Civil. As

Constituições inserem nos seus textos os princípios jurídicos que comportam os valores

sociais mais importantes, a exemplo da Constituição Federal brasileira de 1988. Tendo à vista

a relevância do conteúdo principiológico nelas abrigados, as Constituições passam a conter

normas efetivas.

Os princípios gerais de direito, ao migrarem do direito privado para o direito

constitucional, ganharam o status de princípios constitucionais, irradiando-se para todo o

ordenamento jurídico, condicionando as normas infraconstitucionais ao seu conteúdo

axiológico. Assim, os princípios constitucionais se transformam no fundamento do sistema

jurídico.

O papel da norma, a partir de uma postura principiológica, não é mais o de fornecer o

relato de todas as hipóteses. O intérprete do direito não poderá se restringir à técnica de

subsunção do fato à regra, pois há problemas que não encontram solução no seu relato

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abstrato. A interpretação e aplicação do direito requerem do intérprete a integração das regras

ao conteúdo axiológico dos princípios.

Assim, caberá ao intérprete o papel criativo do direito, não se admitindo, diante da

Constituição Federal de 1988, uma função interpretativa neutra, indiferente aos valores

sociais; ou seja, uma postura formalística-dedutivista, vinculada aos conceitos formais

contidos nas regras.

Os princípios encontram-se vinculados entre si, não podendo ser interpretados de

forma isolada. Assim, além de estarem vinculados uns aos outros, e de também vincularem as

regras, eles se alinham ao ideário político e social, tendo em vista ser o direito um sistema

aberto.

Essa abertura do direito, por meio dos princípios, significa que aquele não se

encontra numa perspectiva autopoiética (com a pretensão de esgotar, por intermédio de regras

específicas, todas as possibilidades do mundo real, tornando-se, assim, imutável e eterno),

pretende-se aberto para ser atual, acompanhando as transformações de uma sociedade em

constante mutação, com novas necessidades e perspectivas. O direito não deverá ter a si

mesmo como referência, mas sim o homem em sua evolução.

Atualmente, a doutrina caminha para o reconhecimento de que tanto as regras quanto

os princípios, não formam conceitos acabados, devendo o aplicador do direito ponderá-los

diante dos casos concretos, deixando de aplicar as consequências estabelecidas, prima facie,

em vista das razões substanciais consideradas pelo aplicador.

Um princípio, em especial, assumiu a primazia axiológica no direito, especialmente a

partir da Segunda Guerra Mundial, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana. A

ideia de proteção ao homem, na Era Moderna, ganhou impulso a partir de três importantes

declarações: o Bill of Rights, em 1689; a Declaração dos Direitos do Homem, em 1789; e a

Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Com a criação da ONU (Organização

das Nações Unidas), em 1945, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem por ela

proclamada, o direito busca efetivar, em nível internacional, a proteção aos Direitos

Humanos. Assim, vários Tratados, Protocolos, Pactos e Declarações estão sendo firmados

nesse sentido.

No plano interno dos Estados, as Constituições, que até então eram formadas, em

grande parte, de normas com conteúdo programático, voltadas principalmente para a

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organização política do Estado, passam a garantir a proteção aos Direitos Fundamentais. No

Brasil, a tutela da dignidade da pessoa humana se transformou em princípio fundador da

ordem constitucional, a partir de 1988, com a primazia axiológica sobre os demais princípios

e regras, tornando-se o bem mais importante a ser protegido e promovido pelo direito.

A dignidade da pessoa humana se fundamenta no respeito ao ser humano com

necessidades concretas e não ao indivíduo considerado abstratamente, numa visão

individualista. Respeitar a dignidade humana requer um olhar para o outro e não apenas para

si mesmo. Assim, na medida em que se respeita a dignidade do outro, está-se promovendo a

própria dignidade.

No Brasil, após o advento da Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 1916

teve que ser analisado à luz da principiologia constitucional, operando-se a denominada

constitucionalização do direito civil. Nesse novo cenário, o patrimônio perde sua centralidade

para a promoção da pessoa concretamente considerada.

A Constituição Federal de 1988 passou a regular matérias antes reservadas ao

domínio exclusivo do direito civil, como a propriedade e a família. Concomitantemente, o

Código Civil sofre a incidência dos princípios constitucionais, abrindo espaço para que seja

ofuscada a dicotomia precisa entre o direito público e o privado, diante da interpenetração de

seus conteúdos.

A abertura do Código Civil de 2002 aos princípios constitucionais acontece por meio

das cláusulas gerais nele inseridas, como se pode constatar nos arts. 421, 422, 1.228 e 1.035,

parágrafo único, entre outros artigos.

Por seu turno, o princípio da função social da propriedade, tal como definido na

Constituição Federal de 1988, no art 5°, inciso XXIII, encontra-se diretamente vinculado ao

princípio da dignidade da pessoa humana, que lhe confere conteúdo material, formando com

este as bases principiológicas que orientam o sistema jurídico brasileiro. Sob esse enfoque, o

próprio texto constitucional informa o conteúdo da função social da propriedade, ao

estabelecer a dignidade da pessoa humana como regra basilar para o exercício do direito de

propriedade.

O individualismo proprietário, regido pelo princípio da autonomia da vontade, entrou

em declínio a partir dos movimentos sociais da segunda metade do século XIX. Esses

movimentos trouxeram para debate o problema dos não-proprietários; ou seja, dos excluídos

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do acesso à propriedade, nos moldes do sistema capitalista e da codificação civil. O Estado,

então, passou a legislar de forma de promover a solidariedade social.

Pela normativa constitucional, a propriedade representa direito e garantia inviolável

do indivíduo (art. 5°, caput, XXII, da CF/88). Contudo, essa proteção constitucional somente

ocorrerá nos casos em que o exercício do direito de propriedade corresponder ao cumprimento

de sua função social, pois a propriedade que não a exercer estará sujeita às sanções impostas

tanto pela legislação constitucional, quanto pela infraconstitucional.

A função social da terra é endereçada à reflexão do juiz, do legislador e do titular do

direito de propriedade. Nessa perspectiva, analisou-se o instituto possessório no país no plano

social, legislativo, doutrinário e jurisprudencial.

A posse foi reestruturada na codificação francesa com base no Direito Romano, e

posteriormente tal codificação serviu de modelo para outros ordenamentos jurídicos,

influenciando diversos países no ocidente, inclusive o sistema jurídico brasileiro. No Direito

oitocentista francês, a posse recebia proteção por ser a forma de se exteriorizar o direito

proprietário, ficando assim, subjugada ao direito de propriedade. Apesar de estar intimamente

ligada ao domínio, a posse deve ser vista de maneira independente, como um instituto capaz

de cumprir sua função social e econômica sem levar em conta exclusivamente o direito de

propriedade.

O sistema jurídico francês, porém, não atribuía importância à posse por considerá-la

uma situação fática e, portanto, desestabilizadora da segurança negocial. Tendo em vista que

o Código Civil Francês voltava-se para atender aos interesses da nova classe burguesa que

ascendia ao poder, esse instituto não interessava, haja vista a dinâmica adotada pela burguesia

de circulação da riqueza por meio da compra e venda da propriedade.

Nesse cenário, a posse refletia a concepção filosófica, política e jurídica

caracterizada pelo Estado Liberal. Posteriormente, a posse buscou sua justificativa por meio

de diferentes correntes doutrinárias, com destaque para a Teoria Subjetiva da Posse de

Savigny, e a Teoria Objetiva de Ihering. Vários doutrinadores tentaram conceituar esse

instituto complexo, que ainda hoje promove discussão no meio jurídico, dividindo as opiniões

dos doutrinadores entre aqueles que entendem ter a posse natureza jurídica de um direito real,

e aqueles que a interpretam como uma situação fática que recebe proteção jurídica.

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Porém, é de grande relevância jurídico-social a definição de sua natureza jurídica,

haja vista que a depender de seu entendimento como um fato ou como um direito, essa

classificação terá reflexos no âmbito jurídico, e principalmente social, pois o possuidor poderá

receber variáveis níveis de proteção. Como se afirmou, a estrutura fundiária brasileira nasceu

sob o signo da grande propriedade – o latifúndio, quadro que não sofreu alterações

significativas, mesmo passados séculos desde a colonização.

É pertinente assinalar iniciativas do legislador, tendo em vista tornar efetiva a

propriedade e a posse da terra no país. Porém, a realidade se apresentou de forma distante

desse objetivo, sendo as legislações reiteradamente desrespeitadas pelo poder público e pelos

particulares. Devido à ineficácia legislativa, no decorrer da história brasileira, organizaram-se

vários movimentos sociais, todos dirigidos a enfrentar as injustiças ocasionadas pela exclusão

da maioria da população do acesso à terra (aqui entendida como direito de moradia ou de

trabalho no meio rural).

Entre os principais conflitos do século XX estão a Revolta de Canudos e Contestado.

Mais recentemente, dois movimentos sociais de expressão se consolidaram na luta pelo direito

à propriedade, tanto na área urbana - MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), como

na rural - MST (Movimento dos Sem Terra). A partir de meados do século XX criaram-se

várias organizações em defesa da reforma agrária, como as Ligas Camponesas e a Comissão

Pastoral da Terra, com o objetivo de contribuir para o debate da reforma agrário no país.

Diante de quadro, a propriedade imobiliária constitui foco constante de tensões

sociais e econômicas; propicia a instabilidade nas relações jurídicas entre proprietários e não

proprietários, com repercussões negativas em todas as esferas sociais.

Após longo e doloroso processo de lutas e convulsões sociais, incrementado no

transcurso dos anos 1960, o Estado assumiu, pelo menos no plano da retórica, o compromisso

de redistribuir a propriedade, integrando as camadas marginalizadas do sistema fundiário

brasileiro.

Sob vigorosa pressão de movimentos populares, o Executivo, Legislativo e Judiciário

trabalham no sentido de transformar a propriedade em instrumento de integração social,

buscando superar a longa trajetória de exclusão, e tentam redefinir o conceito de posse no

sistema jurídico nacional.

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Para tanto, há um árduo trabalho legislativo, jurisprudencial e doutrinário, não só

para redefinir os conceitos da posse e propriedade, mas, principalmente para dar-lhes

concretude, em atenção à realidade social.

Nessa direção, o poder legislativo está encarregado de elaborar os instrumentos

legais que harmonizem o direito subjetivo de propriedade à sua função social, prevista na

Constituição Federal de 1988. Ao Judiciário, cabe efetivar os instrumentos legislativos

referentes à propriedade diante dos casos concretos.

Como paradigma na modificação do tratamento jurisprudencial da posse, em

consonância com o conceito constitucional de cidadania, que recepcionou a concepção de

pessoa protegida no plano de seus valores e direitos fundamentais, tem-se o enunciado da

Súmula 84 do STJ, que interpreta a posse levando em consideração a realidade social do país.

Pode-se depreender do conteúdo textual dessa Súmula que a jurisprudência brasileira caminha

no sentido de estender a eficácia erga omnes à posse, facilitando com isso a defesa/proteção

da posse.

A Súmula 84 do STJ, alinhada aos preceitos da CRFB/88, revogou a Súmula 621 do

STF, dando contorno de direito real à posse proveniente de promessa de compra e venda

desprovida de registro. Dessa forma, tanto a posse como os direitos reais passam por uma

releitura jurídica.

Essa Súmula supre a lacuna legislativa, pois a lei brasileira ainda é tendenciosa a

proteger a propriedade em detrimento da posse, seguindo a tradição patrimonialista do direito

de propriedade. Dessa forma, a posse é trata de forma tímida pela legislação, que se posiciona

de forma omissiva na definição da natureza do instituto possessório.

Pode-se constatar, no entanto, uma lenta proteção por parte do legislador, que não

apenas está criando instrumentos jurídicos para o possuidor defender sua posse, como também

está beneficiando, em alguns pontos do ordenamento, o possuidor que efetivamente cumpre a

função social na propriedade. Como exemplo, cita-se a usucapião especial urbana e rural

trazidas pelas CRFB/88; a usucapião coletiva do art. 10 do Estatuto da Cidade; e de forma

inovadora na legislação civil brasileira, o Código prevê a possibilidade da acessão inversa no

art. 1.255, parágrafo único; a desapropriação por interesse privado, no art. 1.228, § 4° e 5°; e a

diminuição do prazo para a usucapião extraordinária, nas hipóteses da posse funcionalizada,

de acordo com o parágrafo único do art. 1.238.

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Outra significativa proteção possessória conferida pelo sistema jurídico ocorreu com

a promulgação da Lei n. 12. 424/2011, também conhecida como Programa Minha Casa,

Minha Vida, que considera expressamente a posse como um direito no art. 59 ao afirmar que

constitui um direito do possuidor a legitimação de sua posse para fins de moradia. O art. 60

complementa o enunciado do artigo anterior afirmando que o detentor do título de legitimação

de posse poderá, após 5 (cinco) anos de seu registro, requerer a denominada Usucapião

Cartorária, desde que cumpridos os requisitos exigidos.

Isso demonstra uma tendência do sistema jurídico brasileiro em reconhecer a posse

como um direito real. Na reinterpretação do direito possessório incide sua feição social,

ficando destacada a importância de sua proteção por parte do ordenamento jurídico em

decorrência de sua utilidade social, superando, assim o entendimento de que a mesma se

restringe a proteger o direito de propriedade.

Admitir a função social da posse é aceitar o direito subjetivo do não proprietário de,

por meio da terra, obter uma vida digna, assegurando, assim, um patrimônio existencial

mínimo. Ao contrário, negar a função social da posse é continuar acreditando que apenas os

proprietários têm direito subjetivo sobre a terra, respaldando as doutrinas tradicionais que

visualizam na função social apenas seu caráter negativo, ou seja, um critério de imposição de

limites ao direito subjetivo de propriedade, não aceitando sua função promocional dos valores

constitucionais direcionados ao respeito da dignidade da pessoa humana, e de implementação

da justiça social. Há de ser reconhecida, no exercício da posse, a necessidade humana de

moradia, trabalho e dignidade.

A noção de posse como direito é importante para o fortalecimento do instituto, que

historicamente foi fragilizado frente à propriedade. Tendo em vista que o possuir é aquele que

está se comportando como dono, ele confere função social ao imóvel. Assim, a posse

funcionalizada prevalece em detrimento de propriedade sem função social, ganhando

contornos de direito real.

A presente Tese, portanto, pretendeu demonstrar a importância jurídico-social de

considerar a posse um direito real, tendo em vista a realidade da sociedade brasileira, que se

constituiu por meio da formação de latifúndios, tornando-se um país de possuidores, e não de

proprietários.

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Na reinterpretação do direito possessório incide sua feição social, ficando destacada

a importância de sua proteção por parte do ordenamento jurídico, em decorrência de sua

utilidade social. Considerá-la um direito real amplia a proteção dos possuidores ante a

oponibilidade erga omnes, que é uma característica típica dos direitos reais. Portanto, o

possuidor poderá opor sua posse frente ao proprietário desidioso, ou seja, que não cumpre

função social na terra.

Para tanto, foi investigada a natureza jurídica da posse, demonstrando que apesar de

a mesma ser instituto jurídico complexo, ela pode ser considerada um direito subjetivo de

natureza real em algumas situações. Tal consideração implica na relativização da

característica numerus clausus dos direitos reais, haja vista que torna o rol taxativo de direitos

reais elencados no art. 1.225 do Código Civil em um rol exemplificativo. Porém, a posse não

pode ser considerada um direito real em todas as situações; mas naquelas em que o possuidor

cumpre função social na terra ocupada, em detrimento de um proprietário desidioso, ou seja,

que abandonou o bem. Portanto, ela assume diferentes naturezas jurídicas no Direito nacional.

É preciso sublinhar que a posse na perspectiva de um direito real não representa

ameaça ao direito de propriedade, nem aos demais direitos reais, como a hipoteca, eis que, no

âmbito do Estado Democrático de Direito, vive-se num modelo de sociedade marcada pelo

respeito aos direitos de todos.

Como mensagem final, sublinha-se que nunca serão demasiados os esforços para que

se reconheça, no exercício da posse, a necessidade humana de moradia, trabalho e dignidade.

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