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1 VÍNCULOS DE SOCIABILIDADE E RELAÇÕES DE TROCAS ENTRE FEIRANTES DE VIÇOSA, MG

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VÍNCULOS DE SOCIABILIDADE E RELAÇÕES DE TROCAS ENTRE

FEIRANTES DE VIÇOSA, MG

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VÍNCULOS DE SOCIABILIDADE E RELAÇÕES DE TROCAS ENTRE

FEIRANTES DE VIÇOSA, MG1

Juliana Lopes Lelis2

Neide Maria de Almeida Pinto3

Ana Louise de Carvalho Fiúza4

Sheila Maria Doula5

1As discussões apresentadas nesse artigo fazem parte do trabalho de Conclusão de Curso em Geografia

intitulado: “Transformações socioespaciais e precarização do trabalho no comércio informal da cidade

de Viçosa (MG): a outra face da relação entre cidade e comércio” e do projeto de pesquisa, em

andamento, no Programa de Pós-Graduação em Economia Doméstica, da Universidade Federal de

Viçosa, MG. 2Geógrafa. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Economia Doméstica pela Universidade

Federal de Viçosa (UFV), Minas Gerais, Brasil. [email protected] 3Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), Brasil, e

atualmente é Professora Adjunta do Departamento de Economia Doméstica da Universidade Federal de

Viçosa, Minas Gerais, Brasil. [email protected] 4Doutora em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de

Janeiro (UFRRJ), Brasil. Atualmente é Professora Adjunta do Departamento de Economia Rural da

Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais, Brasil. [email protected] 5Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil, e atualmente é

Professora Adjunta do Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa, Minas

Gerais, Brasil. [email protected]

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VÍNCULOS DE SOCIABILIDADE E RELAÇÕES DE TROCAS ENTRE

FEIRANTES DE VIÇOSA, MG

RESUMO

Esse trabalho pretende compreender a lógica presente nas trocas que acontecem

numa feira livre, bem como o significado que essas têm para a reprodução

econômica e social das famílias dos feirantes. Como procedimentos

metodológicos foram feitas observações e entrevistas semi-estruturadas. A

pesquisa revelou que a feira pode ser entendida como um espaço simbólico no

qual feirantes e freqüentadores obtêm o reconhecimento individual e social que

lhes permitem estabelecer relações de trocas materiais e simbólicas. A feira

revelou-se um lócus das estratégias de reprodução familiar onde a família

assume-se como uma referência de ordem moral, onde os feirantes encontram aí

um dos códigos de sua reprodução social. Nesse contexto, a feira não se constitui

apenas como um espaço de compra e venda de mercadoria, constituindo-se

também em um lugar de dádiva e de reciprocidade onde as trocas fundamentam-

se, em grande medida, nas afinidades, nos laços de amizade e nos vínculos

familiares.

Palavras-chave: feira livre, reciprocidade, família

ABSTRACT

This study pretends to understand the logic present in the exchanges that occur in

the street market, and the meaning that these exchanges have on the economic

and social reproduction for the families. Observations and interviews with the

merchants were used as methodological procedures. The research revealed that

the fair can be understood as a symbolic space in which merchants and visitors

get the individual and social recognition that allow them to establish material and

symbolic exchanges. The fair proved to be a locus of the strategies for family

reproduction where the family is assumed as a reference of moral order, by

which the merchants find one of the codes for their social reproduction. In this

context, the fair is not just a place for purchasing and selling of merchandise; but

also a place for gifts and reciprocity, where the exchanges are based on the

affinities, friendships, and family ties.

Keywords: street market, reciprocity, family.

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INTRODUÇÃO

O avanço do capitalismo trouxe consigo, de forma cada vez mais evidente,

a idéia da prevalência de um “etos” mais racionalista nas relações sociais e

comerciais. Para a economia clássica e contemporânea, por exemplo, o comércio

se caracteriza como sendo uma atividade regida pela lei da oferta e procura, cujas

trocas despersonalizadas, buscam apenas atender à demanda do consumidor

através da alocação mais eficiente dos recursos e da produção, sem que haja

excesso de lucros. Nessa perspectiva, o homem resume-se ao “homem

econômico” que procura equilibrar os seus recursos escassos à máxima

satisfação. Nessa linha de argumentação, os marxistas destacam que, com a

evolução do capitalismo, as relações sociais e econômicas se tornaram cada vez

mais marcadas por relações individualistas, egoístas e competitivas para garantia

da reprodução do sistema.

A despeito dessa perspectiva, alguns clássicos do pensamento

antropológico, como Marcell Mauss (1974), Marshall Sahlins (2003) e Lévi-

Strauss (1974) destacaram a importância das múltiplas racionalidades nas

relações de troca, principalmente, através da presença de hábitos, rotinas,

sentimentos de dádiva e reciprocidade. Segundo eles não ocorre, portanto, o

“determinismo econômico” defendido por muitos economistas. Assim, mesmo

nesta sociedade de racionalidade tão marcadamente econômica e objetiva,

determinados grupos sociais permanecem se guiando por valores que não podem

ser traduzidos, exclusivamente por ações pautadas por uma racionalidade

material.

Nessa linha de reflexão, os espaços passam a ser compreendidos como um

fato histórico, que são mantidos e reproduzidos pelas relações entre pessoas e

coletividades. É essa perspectiva que o presente trabalho pretende adotar para

analisar um espaço comercial, a feira livre. O pressuposto é que as relações

comerciais que se dão no espaço da feira explicar-se-iam pelas relações entre

pessoas e coletividades, ampliando o seu caráter de uma relação estritamente

comercial. Para além de uma simples compra e venda de produtos, a compra se

5

estabelecer-ia a partir dos laços de amizade e de parentesco. Nesse sentido, a

amizade construída e/ou sedimentada nesse espaço comercial e os vínculos

familiares que “institucionalizam” sentimentos de obrigação e pertencimento ao

coletivo familiar, garantiriam o estabelecimento e manutenção das relações

sociais na feira. O espaço da feira constituir-se-ia como um lugar simbólico

recoberto de sentimentos, palco de diferentes representações sociais, o que

propicia a manutenção e fortalecimento dos vínculos familiares e de amizade, por

sua vez, essenciais à reprodução social das famílias dos feirantes. Nesse

contexto, esse artigo tem como objetivo, compreender a lógica que está presente

nas trocas que acontecem entre os feirantes e freqüentadores do espaço da feira e

o papel da família na manutenção e reprodução dessa atividade.

2. APRESENTAÇÃO DO CAMPO EMPÍRICO E METODOLÓGICO DA

PESQUISA

Nossa pesquisa foi desenvolvida no espaço comercial de uma Feira Livre,

que está localizada na cidade de Viçosa, interior de MG. A feira livre é uma

forma espacial de comércio tradicional na cidade, sendo realizada apenas aos

sábados. A oferta de diferentes mercadorias, como produtos hortifrutigranjeiros,

derivados do milho e leite, artesanatos, industrializados e eletrônicos atrai um

número considerável de pessoas, de diferentes segmentos sociais, que além de

comprarem os produtos, também se apropriam do espaço para encontros e

diversão. A feira teve o seu início há aproximadamente quarenta anos (1967), na

administração do prefeito Geraldo Lopes de Faria. Para a sua criação houve

apoio da Prefeitura Municipal de Viçosa, EMATER (Empresa de Assistência

Técnica e Extensão Rural), EPAMIG (Empresa de Pesquisa Agropecuária de

Minas Gerais) e UFV. A criação desse espaço teve como motivação a pouca

disponibilidade de legumes e verduras no comércio local, que passaram a ser

comercializados na feira, provenientes dos municípios próximos. Atualmente, a

feira conta com a presença de, aproximadamente, 170 feirantes que

6

comercializam diferentes mercadorias, como produtos hortifrutigranjeiros,

derivados do milho e leite, artesanatos, industrializados e eletrônicos.

Para compreender a lógica que está presente nas trocas que acontecem

entre os feirantes e freqüentadores do espaço da feira livre da cidade de Viçosa

(MG) e o significado que as mesmas têm para a reprodução econômica e social

das famílias buscou-se, inicialmente, compreender esse espaço físico e social.

Para tanto, valemo-nos dos estudos de Gomes (2000) sobre o lugar enquanto um

espaço construído por relações sociais baseadas em sentimentos de identidade e

pertencimento. E ainda, para entendimento da lógica em que se estabelecem as

trocas materiais e simbólicas nesses espaços, buscamos aporte em alguns

clássicos do pensamento antropológico, como Marcell Mauss (1974), Marshall

Sahlins (2003) e Lévi-Strauss (1974). Esses estudiosos destacaram a importância

das múltiplas racionalidades nas relações de troca, principalmente, através da

presença de hábitos, rotinas, sentimentos de dádiva e reciprocidade.

No que se refere ao trabalho de campo, nossa inserção empírica deu-se

inicialmente, a partir de conversas com os feirantes para apresentar os objetivos

da pesquisa. Posteriormente a essa aproximação, os feirantes demonstraram

interesse em contribuir com o estudo. Entretanto, é importante ressaltar, que

alguns feirantes, principalmente aqueles do setor de industrializados ficaram

receosos com essa aproximação, alegando que tínhamos o interesse de fiscalizá-

los. Com o diálogo e o avançar da pesquisa essa indisposição se diluiu e esses

feirantes também contribuíram com a pesquisa.

Em seguida, iniciou-se a busca por dados e informações a partir de

observações diretas. De acordo com Marconi e Lakatos (2003, p.190): “A

Observação Direta Intensiva é realizada através de duas técnicas: observação e

entrevista” e é dividida em observação direta intensiva sistemática e observação

direta intensiva assistemática. A observação intensiva sistemática analisa

algumas características específicas de acordo com o objetivo da pesquisa. Já a

observação direta assistemática não possui o seu olhar específico para algumas

características, uma vez que busca perceber casualmente um fato que pode ser de

7

grande importância ao trabalho. Assim, a etapa de observação teve como

objetivo: obter informações e conhecer a dinâmica da feira, os seus atores sociais

e as relações sociais estabelecidas entre eles, como também os sentimentos que

permeiam essas relações.

Em continuidade, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os

feirantes com o intuito de se compreender os significados que a feira tinha para

eles; as relações com os seus frequentadores e com os outros feirantes e a

participação de membros familiares nessas atividades.

A entrevista foi realizada a partir de uma amostragem baseada na divisão

realizada pela Prefeitura Municipal de Viçosa (MG), que reparte a feira em

setores segundo os produtos comercializados: derivados (produtos derivados do

leite, como iogurtes, doces e queijos), industrializados (produtos que sofreram

processos industriais, como roupas, calçados, carnes defumadas, jornais e

outros), hortifrutigranjeiros, artesanato e alimentos para consumo imediato

(pastéis, caldo de cana e tapioca). No total existem oito barracas que

comercializam comida, sete de artesanato, noventa e quatro de

hortifrutigranjeiros, quarenta e um de industrializados e dezessete de derivados.

Esse número expressivo de comerciantes (172) levou-nos a constituir uma

amostra baseada no percentual estatisticamente significativo dentro de cada

segmento, mesmo considerando que, internamente, poderia haver diferenciações

socioculturais6. Assim, a amostragem constituiu-se da seguinte forma, conforme

quadro abaixo:

Quadro

6 Essa percepção confirmou-se no decorrer da pesquisa de campo. Existe uma divisão setorial da feira que

se baseia nos produtos comercializados por cada feirante. No entanto, internamente a esses grupos, não

existe uma homogeneidade dos padrões socioeconômicos e culturais. Como exemplo tem-se o setor de

hortifrutigranjeiros, que possui tanto feirantes que são produtores rurais e que com a ajuda dos membros

familiares busca na feira uma forma de complementar a renda familiar, quanto barracas que são

pertencentes a donos de mercados da cidade e que se utilizam desse espaço para aumentar a sua freguesia

e, consequentemente o seu lucro, sendo a lógica do trabalho baseada na contratação de empregados.

8

Nas discussões tratadas nos próximos tópicos, as informações foram

agrupadas de forma a se identificar os principais elementos emergentes da

pesquisa: reciprocidade, trocas materiais e simbólicas e laços familiares no

espaço da Feira Livre.

3. AS FEIRAS: LUGARES DE TROCAS MATERIAIS E SIMBÓLICAS

As feiras são formas comerciais antigas que se destacam pela manutenção

e reprodução das suas relações sociais, uma vez que ali estão presentes diferentes

sujeitos, com distintas identidades e em diferentes papéis: como feirantes,

freqüentadores e fregueses, sem que se possa dizer que há uma homogeneidade

nesses segmentos. Essa distinta composição faz da feira, um lugar que possui

diferentes representações sociais e significados. Entre o grupo dos feirantes,

distintos perfis socioeconômicos e culturais estão associados a diferentes

variáveis: situação no trabalho (se é dono do negócio ou contratado, se é um

negócio familiar ou não), dimensão do negócio, origem (origem urbana, ou

rural), tipo de produto vendido (agropecuário, industrializado, artesanato), dentre

outros.

Entre os feirantes da feira livre de Viçosa, a grande maioria tem uma

renda mensal próxima - 82% dos feirantes possuem uma renda mensal de até um

salário mínimo. São várias as procedências dos feirantes: agricultores familiares

que vem aos sábados para Viçosa comercializar seus produtos; artesãos que vêem

na feira uma possibilidade de divulgação dos seus produtos, comerciantes que

encontram na feira sua única opção de trabalho e os comerciantes que já possuem

outro ponto comercial na cidade e vendem seus produtos na feira como uma

forma de complementar a sua renda. Há ainda aqueles que desenvolvem essa

atividade por “entretenimento7”.

Isso não quer dizer que a feira não cumpra, de forma concomitante,

diferentes finalidades para os mesmos (ou distintos) sujeitos e grupos. Segundo

7 Conforme evidenciou Cleps (2004), no seu estudo “O comércio informal e a cidade”.

9

Huberman (1985), jornalista e escritor marxista norte-americano, em sua

principal obra “A História da Riqueza dos Homens”, entre os séculos XV e

XVIII, as trocas ocorriam, principalmente, em espaços como os mercados e as

feiras. Esses espaços, além de fornecerem mercadorias para os consumidores,

propiciavam também distração e divertimento, sendo um espaço que possuía

tanto um papel econômico, quanto social. Entretanto, no século XIX, na fase do

comércio monopolista-financeiro8, o comércio se caracterizou pela presença de

estabelecimentos comerciais fixos reduzindo a importância das feiras e dos

mercados.

Contrapondo-se a essa visão, Cleps (2004), uma geógrafa dedicada aos

estudos da geografia do comércio, destaca as diferentes representações e funções

sociais que possui o espaço da feira na atualidade. Para a autora, as feiras e

mercados ainda estão presentes em muitas cidades, com distintos perfis de

feirantes: aqueles que buscam nessa atividade a sua sobrevivência, sendo essa a

única opção de trabalho, aqueles que desenvolvem a atividade por entretenimento

ou ainda aqueles que vêem na feira um local de divulgação dos seus produtos

(artesãos).

Assim, diferentemente da visão econômica neoclássica e marxista, que

aborda as relações comerciais como resultado das leis naturais do mercado ou

como fruto da reprodução dos meios de produção capitalista, os mercados e as

feiras também são considerados espaços sociais, onde pessoas se relacionam

através das trocas, encontros e conversas. O espaço, nesse contexto, pode ser

percebido como um “lugar”, que na perspectiva do geógrafo Gomes (2000):

refere-se aos espaços de construção histórica, singulares, carregados de

simbolismo e que agregam idéias e sentimentos produzidos por aqueles que o

habitam, ou seja, lugares repletos de experiências, sentimentos de identidade e de

pertencimento individual e coletivo.

8O surgimento do comércio monopolista-financeiro está diretamente relacionado ao crescimento

econômico proveniente da Revolução industrial e se caracteriza pela centralização e concentração de

capitais a partir do sistema bancário, grandes corporações financeiras e mercado globalizado.

10

Essa visão corrobora com o estudo do geógrafo Servilha (2008), que

analisou as trocas materiais e simbólicas presentes no mercado de Araçuaí (MG).

Segundo ele, as trocas materiais estão correlacionadas a diferentes formas de

trocas simbólicas, ao convívio cotidiano e aos sentimentos de confiança. Desse

modo, são constituídas de relações e representações sociais que diferenciam um

mercado de troca e o comércio propriamente dito.

Alguns clássicos do pensamento antropológico, como Marcell Mauss

(1974), Marshall Sahlins (2003) e Lévi-Strauss (1974) destacaram a importância

das múltiplas racionalidades nas relações de troca, principalmente, através da

presença de hábitos, rotinas, sentimentos de dádiva e reciprocidade. Segundo eles

não ocorre, portanto, o “determinismo econômico” defendido por muitos

economistas. E ainda, conforme apontou Abramovay (2004), a racionalidade

econômica não é necessária para explicar o mercado, sendo esse só explicado

socialmente.

Nesse conjunto de discussões que relatam a existência de outros

sentimentos nas relações de troca, é de fundamental importância a obra do

antropólogo polonês Marcel Mauss: “O ensaio sobre a dádiva” (1974). Mauss

coloca que não ocorre uma simples troca de bens, de riquezas ou de produtos

entre indivíduos e sim entre coletividades, o que significa um contrato mais geral

entre tribos, clãs e famílias.

Para o autor, na dádiva, os bens trocados são de menor importância, pois o

que importa na verdade, é o ato de reciprocidade e o reforço de um laço

continuado. Além disso, o ato de dar, não é um ato desinteressado, pois não

existe dádiva sem a expectativa de retribuição. No presente recebido e trocado

cria-se uma obrigação, pois a “coisa” recebida não é inerte, ela possui uma alma,

ocorrendo, dessa maneira, um “vínculo de almas”. Assim, o ato da dádiva, que

implica uma contra-dádiva é o que determina as relações de reciprocidade.

Lévi-Strauss (1974) em seu artigo “Introdução a obra de Marcel Mauss”

destaca que as relações de dádiva e reciprocidade que foram estudadas por

Malinowski (1976), em sua etnografia sobre os argonautas do pacífico ocidental,

11

não se encontram presentes apenas nas sociedades primitivas, mas também em

nossa própria sociedade. Segundo ele, a nossa sociedade ainda contém a

atmosfera de dádiva, de obrigação e de liberdade misturadas, sendo observadas

em diferentes relações, principalmente de grupos. Nesse sentido, Sahlins (2003)

em seu livro “Cultura e razão prática” concorda com Lévi- Strauss (1974), ao

colocar que mesmo as relações econômicas estão baseadas nas relações culturais.

O que fica, pois, evidente nas perspectivas teóricas trazidas por esses

autores é de que nem tudo deve ser classificado exclusivamente em termos da

objetividade da compra e venda, uma vez que as relações são permeadas pela

subjetividade e, portanto, são também simbólicas.

No universo das trocas, a família, enquanto unidade de reprodução social

e biológica e um grupo de cooperação econômica e de consumo coletivo de bens

materiais e simbólicos, pode se colocar como um referencial simbólico

importante em relação aos princípios e orientações dos sujeitos. Isso se

evidencia na medida em que essa instituição se constitui num dos pólos onde se

processa a representação da sociedade, seja através da socialização dos filhos, ou

seja, por meio da convivência e da troca de informações e favores, atuando na

interpretação e sentido de existência dos seus membros. É esse o referencial

simbólico e de ordem moral segundo o qual os indivíduos se organizariam no

mundo social, sobre o qual tratou Sarti (2005).

Enquanto unidade de reprodução social e biológica e um grupo de

cooperação econômica e de consumo coletivo de bens materiais e simbólicos, as

relações de parentesco se colocam como fatores essenciais na consolidação da

estrutura familiar9. Sobretudo em relação às famílias pobres, alguns estudos

têm

evidenciado a importância das redes de parentesco envolvendo os vínculos

criados pela aliança ou afinidade e pela descendência tanto na sua dimensão

simbólica, como enquanto um sistema de transmissão de direitos e obrigações

entre sujeitos ligados por essas relações. Enquanto uma construção social a

família desempenha papel fundamental na “manutenção da ordem social, na

9Conforme evidenciou Durham (1983).

12

reprodução, não apenas biológica, mas social, quer dizer, na reprodução da

estrutura do espaço social e das relações sociais” (Bourdieu, 1993).

Essas perspectivas teóricas nos apoiaram nas análises que fizemos sobre

os espaços comerciais da feira livre de Viçosa, Minas Gerais, nosso próximo

tópico.

4. A CONSTRUÇÃO DE UM LUGAR: DÁDIVA E RECIPROCIDADE NA

FEIRA LIVRE DE VIÇOSA (MG)

As análises a seguir buscaram compreender as lógicas que estiveram

presentes nas trocas entre os feirantes e freqüentadores no espaço da feira livre,

bem como, o significado que essas trocas tiveram para a reprodução econômica e

social dos feirantes.

A pesquisa evidenciou que a configuração espacial, a organização dos

espaços e a distribuição das bancas na feira estiveram correlacionadas às relações

sociais e aos vínculos familiares e de amizade presentes entre os feirantes. A

divisão da feira realizada pela prefeitura municipal tinha o intuito de organizá-la

pelos produtos comercializados. No entanto, na prática, a forma de organização

dos espaços funcionava a partir de outras lógicas, que tinha nas relações pessoais

entre os feirantes, um forte elemento explicativo. Dessa maneira, apesar de haver

uma organização em termos do local da feira pela administração municipal, as

relações pessoais interferiam na organização do espaço. Assim, a divisão feita

pela prefeitura serve de balizamento, mas ela não é fielmente seguida pelos

feirantes que, quando têm oportunidades, se fixam próximos de amigos ou, ainda,

conseguem pontos de trabalho para outras pessoas que não estão cadastradas.

Nesse sentido, uma feirante do setor de artesanato ao ser indagada sobre o

ponto que estava ocupando, respondeu que estava ali somente há três semanas,

informando que aquele ponto tinha sido conseguido por uma amiga que tem uma

barraca ao lado. Segundo ela:

“Antes de a prefeitura notar que alguém abandonou esse

ponto, a minha amiga me avisou. Estou fazendo um teste,

13

se vender muito, eu continuo. Agora, se não compensar, eu

vou parar, não to perdendo nada mesmo!... (feirante, 26

anos)”

Apesar de serem comerciantes, muitas vezes, dos mesmos produtos, isso

não impede os feirantes de manterem relações de solidariedade entre si,

contribuindo para que os colegas-comerciantes constituam melhores condições

de comercialização.

A feira não se constitui apenas como um espaço de compra e venda de

mercadoria, constituindo-se também em um lugar de dádiva e de reciprocidade.

As trocas se davam tanto em termos materiais como no âmbito do simbólico. As

situações de trocas materiais entre os feirantes se evidenciaram: 1) nas ocasiões

em que os feirantes ficavam desprovidos de mercadorias para comercializações e

outros feirantes lhe ofereciam produtos para que pudessem comercializar

(situações observadas, sobretudo, nas barracas que vendiam produtos

hortifrutigranjeiros); 2) nas trocas entre os feirantes em relação àqueles produtos

hortifrutigranjeiros que não haviam sido vendidos, nos finais de feira10

e; 3) nas

trocas de mercadorias oferecidas como contra-dádivas aos feirantes que

ajudavam na montagem das barracas.

No campo do simbólico, as trocas de favores eram comuns entre os

feirantes, nas situações em que um feirante “tomava conta da barraca” para outro,

ou mesmo por uma ajuda na venda de algum produto. E também, na

sociabilidade existente entre os feirantes mais próximos, amigos ou familiares.

As formas de reciprocidades neste campo foram mais freqüentes, o que pode ser

explicado pelo próprio bem trocado: onde as trocas não são bens materiais e a

obrigação de retribuir se caracteriza por um ato formalizado a partir de palavras e

de laços de amizade, tornando a retribuição mais simples.

10Essas trocas denominadas “escambo” foram também observadas por Servilha (2008) no seu estudo

sobre o mercado de Araçuaí.

14

No que se refere à relação de troca dos feirantes com os seus

frequentadores11

, relações de confiança e reciprocidade marcaram as relações

estabelecidas por esses grupos. Nesse sentido, grande parte das pessoas que

freqüenta a feira não busca nesse local apenas a compra de produtos, mas sim um

espaço de encontros. A pesquisa evidenciou que os fregueses se dirigem a

barracas específicas de feirantes em que, ao longo do tempo, foram construídas

relações de amizade. A troca de mercadoria por dinheiro, não se resume a uma

compra e venda de um produto, mas sim, em uma ação enriquecida de

sentimentos de dádiva e reciprocidade, conforme apontou Servilha (2008) no já

citado estudo.

Essas relações de proximidade entre os feirantes e frequentadores tornam-

se possíveis devido a elementos existentes na dinâmica da feira, como as trocas

de palavras, a propaganda dos produtos feita a partir de falas e o contato direto

(toque) com a mercadoria. A troca de palavras aproxima o feirante e o freguês,

relação que não é possível em outras formas de comércio, como os

supermercados e compras realizadas pela internet. Como abordou Vedana

(2004), em seu estudo sobre a feira livre da cidade de Porto Alegre, o toque nos

alimentos é um contato necessário que restaura um gesto de aproximação do

corpo com as formas da comida, realizando, assim, uma aproximação na ordem

do simbólico. Para ela, o toque e o cheiro dos alimentos estão vinculados aos

símbolos da intimidade expressos na relação sensorial com os alimentos.

A partir desses atos efetivam-se as relações de dádiva e reciprocidade

entre frequentadores e feirantes. Nesse sentido, a escolha das mercadorias não se

baseia apenas no preço ou na qualidade do produto, mas também na relação que

se trava com quem está lhe vendendo, ocorrendo além de uma troca de bens, uma

troca de palavras: situações em que a rápida sociabilidade permite a venda de

uma mercadoria por um preço mais barato ou o oferecimento de quantidade

11As trocas são realizadas entre feirantes e frequentadores, uma vez que muitas pessoas se apropriam do

espaço da feira para passear e encontrar com os amigos não realizando uma relação de compra e venda,

por isso, nem todos os frequentadores são fregueses, mas pode-se dizer que todos os fregueses são

frequentadores.

15

maior de mercadoria pelo mesmo preço, em troca da amizade e/ou da

confiabilidade com a sua barraca. Nesse contexto, as compras tornam-se mais

demoradas, se comparadas a outros tipos de comércio, pois durante a venda,

trocam-se experiências, notícias ou histórias. Segundo Vedana (2004), a fala

também é um elemento importante, pois a fala dos feirantes introduz uma espécie

de intimidade nas relações de compra e venda diferentemente de outras que são

marcadas pelo individualismo e anonimato.

A feira livre de Viçosa é também um local de passeio e entretenimento

para aqueles que a freqüentam. Para muitos dos seus freqüentadores, a barraca do

pastel, por exemplo, simboliza muito mais que uma barraca de comida, mas um

espaço de sociabilidade. Nesse sentido, mais do que um espaço de comércio, a

feira é um espaço de inclusão e de solidariedade, caracterizando-se como um

espaço simbólico no qual os frequentadores obtêm o reconhecimento individual e

social, ou seja, como profissionais e como pessoas (Sevilha, 2008). Mas, além de

espaço de reconhecimento individual e social, a feira constitui-se em um espaço

que possibilita a reprodução social de uma parcela significativa dos feirantes que

tem nessa atividade, parte importante do seu provento.

Nesse sentido, destaca-se a presença da família que através de valores e

obrigações constitui-se como um coletivo fundamental na reprodução e

manutenção das relações sociais da feira Livre da cidade de Viçosa-MG, como

será abordado no tópico a seguir.

5. A FEIRA LIVRE COMO UM LOCUS DAS ESTRATÉGIAS DE

REPRODUÇÃO FAMILIAR

As trocas materiais e simbólicas estiveram fortemente relacionadas à feira

livre da cidade de Viçosa (MG). Na construção e manutenção dessas trocas, a

família assume um papel fundamental na medida em que os valores e

sentimentos compartilhados pelo grupo familiar fundamentam as relações

estabelecidas na feira. Assim, o entendimento das trocas realizadas na feira

perpassa pela compreensão da lógica de reprodução das famílias e, nesse

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contexto, a família assume o caráter de ordem moral e principal articuladora dos

processos de manutenção cotidiana e de reprodução social desses grupos.

Na feira livre, 86% dos feirantes realizam suas atividades a partir da mão-

de-obra familiar, sendo em menor percentual as situações de contratações de

empregados (14%). Para a maioria, o trabalho é feito pelos membros da família,

como mulheres, filhos, sobrinhos e irmãos. Assim, a lógica da reprodução social

das famílias orienta-se pelo grupo familiar e não pelo indivíduo. A dinâmica e

organização do trabalho dão-se a partir do grupo familiar tanto no momento da

venda e fabricação dos produtos, quanto pelas trocas simbólicas observadas entre

os seus membros. Nesse contexto, a família se coloca como uma instituição

social que cria diferentes estratégias para manter a sua sobrevivência material,

cultural e ideológica (Bourdieu, 1993).

Na feira livre de Viçosa alguns membros da família (filhos, irmãos,

sobrinhos e tios) mesmo possuindo emprego fixo, e tendo outras atividades a

realizar ou mesmo dedicar um tempo para si estavam presentes aos sábados na

feira livre para ajudar a mãe, irmão, tio ou algum parente. Essas situações podem

ser observadas nas falas a seguir:

“todo o sábado que eu teria para descansar, eu venho à

feira ajudar o meu tio porque ele trabalha sozinho... não é

certo eu ficar em casa a toa” (feirante, 30 anos).

“Eu fico muito feliz de estar aqui na feira, pois posso

ajudar a minha mãe, já que nos outros dias da semana eu

trabalho fora e por isso fica difícil ajudá-la” (feirante, 24

anos).

A participação da família acontece de forma coletiva, intermitente ou

sistemática, com a participação dos membros em diferentes momentos: no

momento da venda dos seus produtos, na sua colheita (produtos

hortifrutigranjeiro), no seu feitio (produtos artesanais) e/ou preparo (lanches).

17

Entre os feirantes – tal como evidenciaram Sarti (2005) 12

e Woortmann

(1987) 13

nos seus estudos – a família constitui-se um valor moral cuja ordem está

centrada no princípio da reciprocidade e das obrigações, cuja hierarquia dá-se a

partir da superioridade de toda a família e parentela sobre os indivíduos.

“Eu ajudo meu irmão todos os sábados, nem que seja um

pouquinho, porque é minha obrigação” (feirante, 25 anos),

“Como filho, eu tenho que ajudar os meus pais” (feirante,

24 anos).

A importância da família enquanto um valor moral para a reprodução

social do grupo evidencia-se também na possibilidade de “continuidade do

trabalho familiar” de várias gerações. Nesse sentido, ao assumir essa atividade o

feirante busca preservar esse “bem” e a lembrança da família. Segundo um

feirante da barraca de hortifrutigranjeiro:

“o meu pai montou essa barraca com muito sacrifício e

criou a gente com a ajuda do dinheiro que ele ganhava

aqui... e olha que a família é grande... somos nove filhos.

Ele morreu e agora eu tento continuar com a barraca...

isso era a vida dele. Quero continuar o seu trabalho!”

(feirante, 37 anos)

Nesse contexto, conforme aborda Lévi-Strauss (1980), em seu artigo “A

Família”, o parentesco não se exprime apenas numa nomenclatura, pois os

indivíduos se sentem obrigados uns em relação aos outros, em relação a uma

conduta determinada que se coloca em termos de respeito ou familiaridade,

direito ou dever, afeição ou hostilidade.

12No estudo de Sarti (2005), o valor da família como instituidora de uma moral, de prestígio e de poder

são mais preeminentes quando nos aproximamos das classes altas e classes populares.

13O estudo de Woortmann (1987) relata a experiência de camponeses no nordeste, que ao contratar

trabalho assalariado não negam o trabalho familiar e têm, como uma de suas razões, suprir as deficiências

quantitativas da família, de modo a permitir a continuidade do trabalho familiar na agricultura. A autora

aponta que, embora ocorrendo a diminuição de famílias e parentelas estendidas num mesmo espaço

domiciliar, as relações de obrigações permanecem a partir das regras de reciprocidade (dar, receber e

retribuir) que constituem num valor moral e simbólico entre as famílias.

18

Os princípios de obrigatoriedade e reciprocidade são fundamentais para o

desenvolvimento do comércio informal na feira livre e, portanto, para a

reprodução do grupo familiar. Nas relações de reciprocidade, segundo Mauss

(1981), a dádiva sempre implica numa contra-dádiva. Nesse sentido, nas trocas

ocorridas na feira-livre, a contra-dádiva esperada era, muitas vezes, a

manutenção dos laços sociais e simbólicos entre as famílias. Assim, muitos

familiares, não recebiam dinheiro pela ajuda, uma vez que a sua contra-dádiva ou

a sua “recompensa” estava na possibilidade de contribuir para a reprodução do

grupo. Para Mauss (1981) as trocas se iniciam no âmbito da família para

posteriormente serem compartilhadas com outras pessoas ou grupos.

“Por tudo que a minha mãe faz para mim, eu estar aqui

vendendo verdura, é o mínimo que posso fazer para ajudá-

la” (feirante, 18 anos).

“...é um trabalho em família. A minha mulher não trabalha

na feira comigo, mas ela que faz os queijos e iogurtes, e é o

meu filho que tira o leite. Assim, um ajuda o outro”

(feirante, 56 anos).

Para aqueles feirantes que contratam o trabalho assalariado (14%), essa é

uma condição de reprodução da família. Ao contratá-los supri-se a deficiência de

mão-de-obra da família, permitindo a continuidade do trabalho na feira e a

possibilidade de reprodução do grupo. Nesse caso, além dos vínculos dados pela

relação entre “empregado” e “empregador”, a maior parte tinha vínculos

familiares ou de amizade. Esse vínculo levava a que os feirantes não

identificassem essas relações dentro de um caráter estritamente comercial,

capitalista. Entre os feirantes, a maioria dizia “não ter uma relação de patrão-

empregado”, identificando as pessoas contratadas como “ajudantes”, o que

significava, inclusive, não ter uma remuneração adequada à função exercida. Ter

como empregado um parente, qualificava positivamente esses vínculos, na

medida em que se tinha uma maior confiança no empregado. Por outro lado,

esses vínculos que também estão associados a relações de subemprego,

naturalizavam, por vezes, relações de explorações empregatícias:

19

“eu pago um pouquinho para ele me ajudar!.... Mas é uma

quantidade simbólica, não é muito não!(feirante, 34

anos)”.

Outras falas, no entanto, revelaram situações entre feirantes e empregados

em conformidade com as normas contratuais que regem as regras de

assalariamento dentro do capitalismo:

“Aqui na barraca de doce, eu tenho três empregados que

contratei para me ajudar. Eles trabalham apenas nos

sábados e eu pago um dinheiro referente a essas horas”

(feirante, 36 anos).

Concluindo, para a maioria dos feirantes, a reprodução social do grupo por

meio do trabalho na feira exige a reciprocidade, que é determinada como um

“acordo geral” dentro do grupo. As pessoas que realizam a troca se sentem em

condições de fazê-la, já que sabem dos recursos que podem oferecer. Desse

modo, posteriormente, elas sentem-se confortáveis em receber. Portanto, no

contexto da feira livre, o parentesco cria uma obrigação moral de oferecer

auxílio, e uma vez dado, ele deve ser retribuído. Por outro lado, a posição de

beneficiário impõe uma obrigação moral de retribuir a ajuda em outro momento.

Os recursos podem assumir formas variadas, tais como: amor, serviço, dinheiro,

informações, bens tangíveis, ou status. No entanto, podemos dizer que, em si, os

vínculos não garantem reciprocidade e trocas na feira, mas o tipo do vínculo que

se construiu. Conforme pontua Godbout (1999), são as características dos

vínculos pelos quais circulam as coisas e os serviços é que dão sentido àquilo que

circula.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho teve como objetivo compreender a lógica que está presente

nas trocas que acontecem entre os feirantes e freqüentadores da feira livre da

cidade de Viçosa (MG), bem como o significado que essas têm para a reprodução

econômica e social das famílias dos feirantes. O pressuposto foi de que as

interrelações construídas no espaço de informalidade são influenciadas por uma

20

racionalidade econômica, mas também pela lógica interna dos grupos familiares.

Essa ultima dimensão, na nossa perspectiva, ultrapassava os determinantes

econômicos, sendo também influenciada pelos valores e sentimentos

compartilhados pelo grupo familiar, fundamentando as relações estabelecidas na

feira. Assim, o entendimento das trocas realizadas na feira perpassava pela

compreensão da lógica de reprodução das famílias.

A categoria lugar foi trazida para compreender a feira livre como um

espaço de construção histórica, singular, carregada de simbolismo e que agrega

idéias e sentimentos produzidos por aqueles que a habitam (GOMES, 2000). As

observações diretas e as entrevistas com os feirantes confirmaram os nossos

pressupostos evidenciando que, para além de um espaço de trabalho – para

muitos – única forma de sobrevivência, a feira é também um lugar simbólico

recoberto de sentimentos, palco de diferentes representações sociais. Nesse

contexto é também um local que permite a manutenção dos laços de amizade,

familiares e divertimento/lazer.

Na feira, a família coloca-se como uma importante referência assumindo o

caráter de um valor moral, encontrando aí um dos códigos de sua reprodução

social. Entre os familiares as trocas assumem um caráter diferente daquelas que

ocorrem num mercado, quer sejam elas, troca de palavras ou de bens materiais.

Na lógica de organização dos grupos familiares dos feirantes, prepondera uma

lógica coletiva, onde o grupo se sobrepõe ao indivíduo, enquanto uma forma de

estratégia de sobrevivência do grupo. Esse caráter familiar coletivo tem papel

fundamental na manutenção da atividade e na possibilidade de reprodução social

do grupo. As trocas exigem a reciprocidade, que se coloca como um “acordo

geral” dentro do grupo. Assim, podemos dizer que, mesmo sendo influenciada

por uma dinâmica econômica de cunho racionalista, as trocas comerciais

realizadas na feira leite em Viçosa, se orientam por valores e princípios que não

se guiam apenas pela lógica do “lucro”.

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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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