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XI Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis 1 XI Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq 19 a 23 de outubro de 2015 Violência de Gênero e as suas Interseccionalidades Rubia Abs da Cruz Mestranda em Direitos Humanos [email protected] UniRitter Laureate International Universities RESUMO O presente artigo busca traçar um breve panorama das Convenções Internacionais de Direitos Humanos em relação aos direitos humanos das mulheres, a violência de gênero e as discriminações específicas enfrentadas pelas mulheres. Nesse sentido o artigo abordará o conceito de violência de gênero, trazendo um curto histórico em relação a esse conceito e sua relação com as demais subordinações enfrentadas pelas mulheres, como por exemplo, a classe social ou a raça e etnia, que se apresentam sob a forma de violências e discriminações que se interseccionam, para além da violência de gênero experimentada. Nesse sentido o artigo trará conceitos sobre as discriminações existentes nas Convenções Internacionais, na literatura e na doutrina, e tratará especialmente da discriminação interseccional, embora no âmbito internacional de direitos humanos o conceito mais utilizado seja de discriminações múltiplas. Finalizando, serão mencionadas decisões judiciais e quase judiciais relacionadas no sistema internacional de direitos humanos, em que tenha sido constatado um avanço quanto à interpretação das discriminações e das interseccionalidades na violência de gênero. A reflexão desse artigo consiste em entender os limites e abrangência do termo violência de gênero, buscando-se o valor jurídico desse conceito, vinculado às discriminações interseccionais, igualmente como um marco jurídico a ser construído. Introdução O presente artigo busca traçar um breve panorama das Convenções Interamericanas de Direitos Humanos em relação aos direitos humanos das mulheres, falando sobre violência de gênero e as discriminações específicas enfrentadas pelas mulheres. Nesse sentido o artigo inicia trazendo as Convenções Internacionais, em especial a Convenção para Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres CEDAW (ONU) e a Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres, conhecida como Belém do Pará (OEA), abordando igualmente a Convenção pela Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial e a Convenção para Pessoas com Deficiência, por entender-se que essas Convenções

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1 XI Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação

SEPesq – 19 a 23 de outubro de 2015

Violência de Gênero e as suas Interseccionalidades

Rubia Abs da Cruz

Mestranda em Direitos Humanos

[email protected]

UniRitter Laureate International Universities

RESUMO

O presente artigo busca traçar um breve panorama das Convenções Internacionais de Direitos Humanos em relação aos direitos humanos das mulheres, a violência de gênero e as discriminações específicas enfrentadas pelas mulheres. Nesse sentido o artigo abordará o conceito de violência de gênero, trazendo um curto histórico em relação a esse conceito e sua relação com as demais subordinações enfrentadas pelas mulheres, como por exemplo, a classe social ou a raça e etnia, que se apresentam sob a forma de violências e discriminações que se interseccionam, para além da violência de gênero experimentada. Nesse sentido o artigo trará conceitos sobre as discriminações existentes nas Convenções Internacionais, na literatura e na doutrina, e tratará especialmente da discriminação interseccional, embora no âmbito internacional de direitos humanos o conceito mais utilizado seja de discriminações múltiplas. Finalizando, serão mencionadas decisões judiciais e quase judiciais relacionadas no sistema internacional de direitos humanos, em que tenha sido constatado um avanço quanto à interpretação das discriminações e das interseccionalidades na violência de gênero. A reflexão desse artigo consiste em entender os limites e abrangência do termo violência de gênero, buscando-se o valor jurídico desse conceito, vinculado às discriminações interseccionais, igualmente como um marco jurídico a ser construído.

Introdução

O presente artigo busca traçar um breve panorama das Convenções Interamericanas de Direitos Humanos em relação aos direitos humanos das mulheres, falando sobre violência de gênero e as discriminações específicas enfrentadas pelas mulheres. Nesse sentido o artigo inicia trazendo as Convenções Internacionais, em especial a Convenção para Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres – CEDAW (ONU) e a Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres, conhecida como Belém do Pará (OEA), abordando igualmente a Convenção pela Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial e a Convenção para Pessoas com Deficiência, por entender-se que essas Convenções

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asseguram direitos em relação às violações e discriminações sofridas pelas mulheres.

Após é abordado brevemente o conceito de violência de gênero, trazendo um breve histórico em relação a esse conceito e sua relação com as demais subordinações enfrentadas pelas mulheres, como por exemplo, a classe social ou a raça e etnia, que se apresentam sob a forma de violências e discriminações que se interseccionam, para além da violência de gênero experimentada.

Nesse sentido o artigo trará conceitos sobre as discriminações para além dos encontrados nas Convenções citadas, encontrados na literatura e na doutrina, e tratará especialmente da discriminação interseccional, embora no âmbito internacional de direitos humanos o conceito mais utilizado seja de discriminações múltiplas, conforme análise.

Ao final serão mencionadas decisões judiciais e quase judiciais relacionadas no sistema internacional de direitos humanos, em que tenha sido constatado um avanço quanto à interpretação das discriminações e das interseccionalidades na violência de gênero. As considerações finais buscam a reflexão quanto aos limites e abrangência do termo violência de gênero, buscando-se o valor jurídico desse conceito, vinculado às discriminações interseccionais, igualmente como um marco jurídico a ser construído.

1. Convenções Específicas às Mulheres no âmbito do Sistema Interamericano

O Brasil é signatário de diversos tratados internacionais de direitos humanos, que no Brasil têm força e status supra legal, que impõem ao Estado Brasileiro o dever de combater as violações de direitos humanos, as discriminação e a violência contra as mulheres, garantindo um ambiente cultural e social positivo para a igualdade entre os seres humanos.

Nesse artigo abordaremos especialmente duas convenções internacionais que merecem nossa atenção: a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, CEDAW (ONU) e a Convenção Belém do Pará (OEA), relacionada especificamente ao combate à violência contra a mulher. O Brasil é signatário das duas Convenções, e portanto, deve respeitar e prestar contas dos seus cumprimentos à comunidade internacional.

Em 1979, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,

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tendo o Brasil ratificado a Convenção em 1984. Neste documento, a discriminação contra a mulher é entendida como “qualquer distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo que tenha por objeto anular o reconhecimento, o gozo ou o exercício de direitos humanos ou liberdades fundamentais pelas mulheres1.”

Partindo-se desta definição bastante ampla de discriminação, a violência contra a mulher se configuraria como uma forma acentuada de discriminação, na medida em que restringe o exercício dos seus direitos humanos. Esta temática foi melhor trabalhada na Recomendação Geral n. 19 da CEDAW, a qual expressamente declara que:

“(...) a violência baseada no gênero é uma forma de discriminação que compromete seriamente a capacidade das mulheres de gozarem de seus direitos e liberdades em um patamar de equidade em relação aos homens”.

2

A Convenção Belém do Pará definiu como violência contra a mulher toda ação ou conduta baseada em gênero que cause sua morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico da mulher, tanto no âmbito público como no privado. O Artigo 1º. Da Lei Maria da Penha3 em vigência no Brasil desde 2006 e fruto de um litígio internacional junto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, tem como base o artigo primeiro dessa Convenção, embora seja mais restrito, pois se limita ao âmbito doméstico e familiar e nas relações de afeto.

As formas de violência contempladas na Convenção são a física, sexual e a psicológica nos âmbitos da família, unidade doméstica ou em relações interpessoais, na comunidade, perpetrada por qualquer pessoa. Também pode ser perpetrada por agentes do Estado. A definição de violência de gênero é bem mais ampla na Convenção Belém do Pará do que na Lei Maria da Penha, que protege as mulheres somente nas relações familiares, domésticas e de afeto, embora amplie a violência sofrida para patrimonial e moral, além da psicológica, física e sexual.

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher4 (Convenção de Belém do Pará) foi adotada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos em 6 de junho de 1994 e ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995. Aprovada em âmbito regional, seu texto inovador reconheceu a violência contra a mulher como uma

1 http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/discrimulher.htm Acesso 21/09/2015

2 http://compromissoeatitude.org.br/wp-content/uploads/2012/08/SPM2006_CEDAW_portugues.pdf Acesso 21/09/2015

3 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm

4 http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/belem.htm

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grave violação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais (preâmbulo) e impôs aos Estados-parte o dever de condenarem todas as formas de violência contra a mulher e adotarem, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas orientadas a prevenir, punir e erradicar esta violência.

Além dessas Convenções específicas quanto aos direitos das mulheres, destaco outras Convenções, visto que a discriminação e a violência contra as mulheres, para além das questões de gênero, ocorrem por outros fatores como os raciais, citando-se assim a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial5 que traz nos seus primeiros artigos algumas formas de discriminações.

A Convenção para Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial avança em reconhecer a discriminação múltipla ou agravada, compreendendo que podem ocorrer mais de um dos critérios proibidos de discriminação em seu artigo 1.3.

E ainda a Convenção para Pessoas com Deficiência6 define em seu Artigo 6º. que trata de Mulheres com deficiência:

Os Estados Partes reconhecem que as mulheres e meninas com deficiência estão sujeitas a múltiplas formas de discriminação e, portanto, tomarão medidas para assegurar às mulheres e meninas com deficiência o pleno e igual exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

5 Artigo 1 Para os efeitos desta Convenção:

1. Discriminação racial é qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes. A discriminação racial pode basear-se em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica.

2. Discriminação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no Artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um objetivo ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

3. Discriminação múltipla ou agravada é qualquer preferência, distinção, exclusão ou restrição baseada, de modo concomitante, em dois ou mais critérios dispostos no Artigo 1.1, ou outros reconhecidos em instrumentos internacionais, cujo objetivo ou resultado seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes, em qualquer área da vida pública ou privada.

6 Discriminação por motivo de deficiência significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em

deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável.

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Somente em 1993 foi possível garantir o reconhecimento em âmbito internacional de que os direitos das mulheres são direitos humanos, ficando expresso na Declaração e Programa de Ação de Viena (item 18) que: “Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos universais.”7 (Conferência de Viena, 1993).

2. Violência de Gênero

É necessário reconhecer que as dinâmicas das relações de gênero têm pontos de encontro com outras dinâmicas sociais em que as diferenças produzem desigualdades, discriminações e violências. “Gênero não é uma dimensão encapsulada, nem pode ser vista como tal, mas ela se intersecciona com outras dimensões recortadas por relações de poder, como classe, raça e idade”.(Debert e Gregori, 2008 p.4).

Na nossa sociedade na maioria das vezes tais diferenças implicam em relações de poder que transformam as diferenças em desigualdades. Para acessar a complexidade da violência de gênero, é preciso desvendar as estruturas e seus mecanismos a partir da perspectiva de gênero, o que não ocorre em geral, na sociedade. A violência de gênero é uma das expressões dessas relações de poder entre masculinos e femininos que objetiva manter as relações de desigualdade e de subalternidade entre homens e mulheres ou entre quem se comporta e apresenta performances atribuídas ao gênero feminino8. Nesse artigo não serão abordados aspectos em relação a como as pessoas definem seu gênero.

Antes da Lei Maria da Penha9 promulgada em 2006, não havia o conceito de violência de gênero no campo jurídico, embora houvesse um discurso feminista sobre violência de gênero nas mais variadas áreas. A questão da desigualdade de poder é explícita nas diferenças de gênero, e mesmo constando expressamente na Lei Maria da Penha, na prática encontra muita resistência para sua efetividade.

Pensando no conceito de violência de gênero é importante trazer brevemente outros conceitos:

A nomenclatura violência contra a mulher (noção criada pelo movimento feminista a partir da década de 1960), violência conjugal (outra noção que especifica a violência

7 http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/direitos/tratado9.htm

8 Pessoas transexuais homens ou mulheres, travestis e homossexuais.

9 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm

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contra a mulher no contexto das relações de conjugalidade), violência doméstica (incluindo manifestações de violência entre outros membros ou posições no núcleo doméstico - e que passou a estar em evidência nos anos de 1990), violência familiar (noção empregada atualmente no âmbito da atuação judiciária e consagrada pela recente Lei "Maria da Penha" como violência doméstica e familiar contra a mulher) ou violência de gênero (conceito mais recente empregado por feministas que não querem ser acusadas de essencialismo)? (Debert e Gregor, 2008, p. 6).

Sem entrar aqui no debate sobre essencialismo, o importante é saber o que significa e como são empregadas cada uma dessas definições em termos analíticos, bem como as limitações e paradoxos apresentados. Nesse artigo trabalharemos com violência de gênero por entender que as intersecções entre violência e gênero e demais discriminações, permite avançar a análise sobre as dinâmicas que configuram posições sociais e negociações de poder nessas relações. E ainda, a importância desse conceito está no fato de ser a violência de gênero, mais abrangente que os demais conceitos, pois esse tipo de violência tem como base as assimetrias de poder verificadas em determinadas relações sociais marcadas pelo gênero, não se restringindo somente à violência familiar ou doméstica, por exemplo.

Entende-se que a violência de gênero pensada em um contexto mais amplo, em que se verifiquem outras discriminações, receberam um conceito interessante de Judith Butler (2004) de acordo com Debert e Gregori:

Butler trata o conceito em termos foucaultianos: as regulações de gênero são organizadas em um aparato de poder por meio do qual a produção e a normatização do masculino e do feminino tomam lugar a partir de variadas formas, como, por exemplo, hormônios ou cromossomos. Trata-se de um aparato que institui constrangimentos, mas não conduz a uma estabilidade definitiva. Deve ser visto, nesse sentido, como um conjunto de dispositivos que cria desigualdades de poder e, simultaneamente, está

aberto a transformações. (Debert e Gregori, 2008, p. 29).

Mesmo na família existe a intersecção de concepções sobre sexualidade, educação e sobre o lugar social de cada um dos integrantes, e que implicam variadas posições de poder. Ou seja, para além da violência de gênero, podem ocorrer outras formas de discriminação que se sobrepõem.

3- Violência de gênero e sua relação com as Discriminações

A investigadora equatoriana Gioconda Herrera, ao analisar a articulação de raça e etnia, classe social e de gênero assinala que essa articulação “solo puedo capatarse si volcamos el analises a la relación que cada una de las categorias de desigualdad establece entre si.” (Aguilar, 2014, p.11).

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Nessa mesma linha Marfil Francke fala na “Trenza de dominación” como uma tripla opressão, de gênero, de classe e de raça e etnia. (Aguilar, 2014, p.11).

Para essa análise devemos entender o entrelaçamento entre raça e sexo, dentro da economia política e das relações de poder e de classe, de raça e de gênero. Podemos dizer que as discriminações interseccionais se embasam em uma perspectiva de poder e de desigualdade.

Algumas das dificuldades encontradas no mundo jurídico em relação ao reconhecimento das discriminações, ocorrem porque não são percebidas as especificidades mencionadas e suas interseccionalidades. Não há uma visão quanto às questões de gênero, nas histórias de violências sofridas, na pobreza estrutural, no analfabetismo, no pertencimento racial ou étnico de povos originários ou no desenvolvimento cultural.

A ausência de lei específica sobre discriminação interseccional ou de reconhecimento dessas vulnerabilidades dos direitos humanos que vinculem o pertencimento étnico racial ou de gênero, e essa necessária intersecção, nem sempre percebida, faz com que se utilizem estereótipos de gênero para fundamentar decisões, reproduzindo assim, situações discriminatórias e de violência que afetam o Direito, o acesso à justiça e especialmente, as pessoas.

Para Kimberle Crenshaw, precursora da concepção de interseccionalidade em que vincula gênero e raça,

(...) a busca de marcos conceituais e operativos para enfrentar a as desigualdades e discriminações através de leis é uma tarefa estratégica que busca influir não somente no processo de categorização, de interpretação de categorias existentes e das formas que se essas se articulam, mas sobretudo, na busca dos significados e conceitos que

impulsionem um processo emancipador da dominação e da subordinação.(Crenshaw, 1991, p.13).

Existe a necessidade de contarmos com um marco legislativo internacional que tenha em conta a forma que outras identidades e fatores de subordinação e diferenciação atuam. A raça e etnia, a origem, a classe social, a religião, a orientação sexual, a deficiência entre outras vulnerabilidades, atuam de maneira conjunta ao sexo e ao gênero, seja simultaneamente ou de maneira cumulativa, determinando a desvantagem estrutural das mulheres na sociedade. Um marco jurídico nesse sentido trará respostas através de medidas públicas, legislativas e judiciais destinadas a enfrentar as mais variadas formas de discriminações na sociedade, cada dia mais complexa e multifacetada.

4- Conceitos de Discriminação

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Para além dos conceitos encontrados nas Convenções Internacionais citadas no início do artigo, as noções sobre discriminação não são uniformes e se encontram em construção, inclusive quanto à nomenclatura, que no marco jurídico internacional conta atualmente com a denominação de “discriminação múltipla”. Esses conceitos existentes se embasam na sociologia da academia feminista e no Direito, na legislação internacional de direitos humanos.

Serão destacados três conceitos de discriminação10 por serem os mais recorrentes: discriminação múltipla, discriminação composta e a discriminação interseccional.

A “discriminação múltipla” (Aguilar, 2014, p.18) é quando uma pessoa sofre várias discriminações por motivos distintos em tempos distintos, não simultaneamente e de maneria cumulativa. “És basicamente un reconecimiento de la acumulación de distintas experiências discriminatórias.”(Aguillar, 2014, p.18). No sistema de proteção de direitos humanos se usa principalmente essa terminologia, discriminação múltipla.

A “discriminação composta” (Aguilar, 2014, p.18) é quando a pessoa sofre discriminação por mais de dois motivos ao mesmo tempo, sendo que as discriminações se reforçam uma em relação a outra, criando uma carga adicional. Tem uma perspectiva quantitativa.

A “discriminação interseccional” (Aguilar, 2014, p.19) é quando existem vários motivos de discriminações que confluem simultaneamente dando lugar a uma discriminação específica, que não pode ser entendida se os distintos fatores de discriminação, não tivessem operado de maneira concorrente. Tem uma perspectiva qualitativa.

En suma, de más importante contribución de la discriminación interseccional reside en no aportar un único criterio de discriminación aislada o sucesivamente, pero se vuelve a la intersección de varios criterios, conjunta y simultáneamente. Se trata de un abordaje atento para cuestiones estructurales y contextuales necesarias para la comprensión y el enfrentamiento del fenómeno discriminatorio, evitando también los riesgos de la súper inclusión y de la sub inclusión”. (Rios e Silva, 2014, p.9).

Uma mulher negra não é somente mulher e nem somente negra, entretanto, sofre discriminações específicas pela sua condição de mulher negra, já que essas discriminações confluem simultaneamente.

Definem ainda os autores:

10

Existem várias formas de denominar a discriminação múltipla, seja “desvantagens múltiplas”, “dupla/tripla

discriminação”, “discriminação multidimensional”, “discriminação interseccional”, “subordinação interseccional”, “vulnerabilidade interseccional”(Aguiller, 2014, p.17).

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En este contexto, por lo tanto, se utiliza la expresión “discriminación interseccional” como categoría jurídica, que se refiere a la comprensión de la discriminación múltiple como fenómeno original, irreductible e inasimilable al sumatorio de diversos criterios prohibidos de discriminación, sean estos simultáneos o no. (Rios e Silva, 2014, p. 11).

5- A Interseccionalidade no Marco dos Direitos Humanos

Importante citar parte do documento elaborado por Kimberlé Crenshaw e outras feministas que foi aplicado no processo preparatório da Conferência de Durban em 2002, que faz uma reflexão sobre a interseccionalidade:

La interseccionalidad es una conceptuación del problema que intenta capturar tanto las consecuencias estruturales como las dinâmicas de la interación entre dos o más ejes de subordinación. Más específicamente, aborda la manera en que el racismo, el patriarcado, la opresión de clase y otros sistemas de discriminación crean desigualdades de fondo que estruturam la posición relativa de las mujeres, las razas, las etnicidades, las clases, y otros similares en la sociedad.”(Aguilar, 2014, p.23).

No sistema universal de direitos humanos foi registrada preocupação com a discriminação interseccional experimentada por mulheres presas na Conferência Mundial sobre Mulheres Presas. Os documentos internacionais observaram as inúmeras barreiras para as mulheres nessas condições:

“(...) intensificar los esfuerzos para garantizar el ejercicio, igual de todos los derechos humanos y libertades fundamentales para todas las mujeres y niñas que enfrentan múltiples barreras para su fortalecimiento y el avance a causa de factores como raza, edad, idioma, etnia, religión, cultura o deficiencia o porque son los pueblos indígenas.” (NACIONES UNIDAS, 1995). (Rios e Silva, 2014, p. 11).

E ainda no sistema universal, a decisão da Comissão Europeia em 2007, que entendeu que “La discriminación interseccional ocurre cuando dos o más criterios prohibidos interaccionan, sin que haya posibilidad de descomposición de ellos”. (Rios e Silva, 2014, p. 11).

O Comitê para Eliminação da Discriminação Racial menciona que dentro da garantia de um tribunal independente e imparcial se entende como exigência “que los jueces sean conscientes de la diversidad social y de las diferencias asociadas a los orígenes, sobre todo raciales”.(Recomendação Geral 23, 1997)11.

O reconhecimento mais recente e talvez o mais específico da discriminação múltipla na jurisprudência veio do Comitê de Direitos Econômicos e Sociais e Culturais (CESCR). Em maio de 2009 a CESCR emitiu

11

Comité para la Eliminación de la Discriminación Racial, Recomendación general N° 23, relativa a los derechos de los

pueblos indígenas, 51° período de sesiones, U.N. Doc. HRI/GEN/1/Rev.7 at 248 (1997).

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a Observação Geral No. 20 e entre outros aspectos essenciais, define a discriminação múltipla e se refere também à discriminação interseccional:

Algunos individuos o grupos sufren discriminacion por más de uno de los motivo prohibidos, por ejemplo, las mujeres pertenecientes a una minoria étnica o religiosa. Esa discriminacion acumulativa afeta a las personas de forma especial y concreta y merece

particular consideracion y medidas especificas para combatirla.12 (Observação Geral 20,

2009).

E ainda mencionou o Comitê (CESCR), a interseccionalidade quando entendeu na Observação Geral 20, que um ou mais motivos proibidos de discriminação podem ocasionar uma nova forma de discriminação cumulativa.

O Comitê de Direitos Humanos na Observação Geral No. 28 sobre a igualdade entre homens e mulheres, no parágrafo 30 considerou que a discriminação contra as mulheres estaria “entrelaçada” com outras razões de discriminação.

Uma das decisões mais importantes em relação a interseccionalidade entre raça e gênero é do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial na Observação Geral No. 25 sobre as dimensões de gênero e de discriminação racial. Esse documento explica o que significa discriminação interseccional além de diferenciar tipos de discriminações interseccionais.

O Comitê CEDAW avançou em algumas Observações Gerais em relação a interseccionalidade, verificando ser inevitável a análise de discriminações múltiplas. Nesse sentido menciono as mais significativas. A Observação No. 18 (1991) menciona a dupla discriminação e as situações de vulnerabilidades que se acumulam em relação às mulheres deficientes. A Observação No. 19 (1994) se refere a fatores que constituem as raízes da violência contra as mulheres, articulando esses fatores estruturais como os papeis tradicionais, os estereótipo de gênero e as práticas de controle em relação às mulheres, com as formas concretas de violência, influindo com essa observação, para a abordagem da interseccionalidade em outras instâncias das Nações Unidas como na Relatoria Especial sobre Violência contra as Mulheres.

Cite-se Roger Raupp Rios e Rodrigo da Silva quanto ao não reconhecimento da interseccionalidade:

En el sistema regional interamericano, se destaca el Pacto de San José de Costa Rica (OEA, 1969), firmado en 22/11/1969, donde hay la mención, en diversos momentos, sobre la prohibición de discriminación acrecida de una lista de criterios prohibidos (artículos 1º, ítem 1, 13, ítem 5, 17, ítem 2, 24 y 27, ítem 1) i . Pero, no hay alusión, en

12

Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Observação Geral 20 E/12/GC/20 del dos de Julio 2009. Parágrafo 17.

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momento alguno, sobre la discriminación múltiple, la discriminación aditiva o compuesta o la discriminación interseccional. (Rios e Silva, 2014 p. 14).

No Brasil não tratamos de discriminação múltipla, mesmo com a incorporação do direito internacional dos direitos humanos no ordenamento brasileiro, embora tenhamos ratificado todas as Convenções já citadas. Além das Convenções, temos compromissos políticos firmados em Conferências da Organização dos Estados Americanos, onde as conclusões são no sentido de combater todas as formas de discriminação.

Considerações Finais

Embora tenhamos Convenções que assegurem os direitos das mulheres a não sofrer discriminações e violências, além de outras Convenções relacionadas que igualmente protegem as mulheres pela sua condição racial, étnica ou de deficiência, ainda é necessário analisar os sistemas de subordinação das interseccionalidades encontrados na literatura e doutrina e nos instrumentos jurídicos internacionais citados, visando garantir de forma mais efetiva o direito à não discriminação.

Os Comitês relacionados às Convenções, demonstraram ser um dos caminhos possíveis, antes da construção de um marco específico, para elaboração de protocolos interpretativos que possam dar conta das discriminações interseccionais, ampliando a proteção das pessoas. Nesse sentido deve ser analisado de que maneira as estruturas de subordinação e discriminação convergem, pois são difíceis de serem visibilizadas e identificadas entre as inúmeras vulnerabilidades de uma mesma pessoa. Os esforços atuais são no sentido de incorporar a discriminação interseccional como um marco analítico e jurídico.

Na breve análise realizada, é possível afirmar que há uma inclusão normativa gradual do tema da discriminação interseccional, considerando as decisões, Recomendações, Observações Gerais e os conceitos de discriminação encontrados em âmbito internacional, destacando-se a discriminação múltipla, com conteúdo mais quantitativo, mas com aberturas em relação ao conceito de discriminação interseccional em uma perspectiva qualitativa das discriminações. Também é possível afirmar, que embora o conceito de violência de gênero seja o mais amplo para trabalhar a violência contra a mulher, e compreenda as relações de poder em relação aos sexos ou gêneros, ainda não consegue dar conta das outras discriminações que as mulheres enfrentam por suas condições específicas. Embora possamos afirmar que as reflexões sobre violência de gênero aceitem outras perspectivas de discriminações, ainda não foi construído um conceito de violência de gênero que consiga analisar outras discriminações. O conceito de violência de gênero

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pensado em perspectivas mais amplas, poderá também se constituir em um marco analítico e jurídico que possa dar conta das discriminações e violências sofridas pelas mulheres de forma igualmente interseccional.

BIBLIOGRAFIA:

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DEBERT, Guita Grin, GREGORI, Maria Filomena Gregori. Violência de Gênero, novas

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