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31 Violência e desigualdade social: desafios contemporâneos para o Serviço Social JOSÉ FERNANDO SIQUEIRA DA SILVA * Resumo: Este artigo trata da violência estrutural como um complexo social que constitui o processo de reprodução do capital na contemporaneidade, tendo como referência principal as ricas contribuições marxianas sobre a emancipação política e a emancipação humana. Oferece, ao mesmo tempo, algumas indicações para sintonizar o trabalho profissional do assistente social em face dos imensos desafios necessários à emancipação humana. Palavras-chave: violência, Serviço Social, trabalho profissional, emancipação humana. Violence and social inequity: contemporary challenges for the Social Service Abstract: This article discusses the structural violence as a social complex which nowdays constitutes a process of reproduction of the capital and whose main references are the rich contributions of * Assistente social, doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e professor do Departamento de Serviço Social da UNESP-Franca. Líder dos grupos de estudo “Violência e Serviço Social” (Geviss) e “Teoria Social de Marx e Serviço Social”. E-mail: [email protected]

Violência e Desigualdade Social

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    Violncia e desigualdade social: desafios contemporneos para o Servio Social

    Jos Fernando siqueira da silva*

    Resumo: Este artigo trata da violncia estrutural como um complexo social que constitui o processo de reproduo do capital na contemporaneidade, tendo como referncia principal as ricas contribuies marxianas sobre a emancipao poltica e a emancipao humana. Oferece, ao mesmo tempo, algumas indicaes para sintonizar o trabalho profissional do assistente social em face dos imensos desafios necessrios emancipao humana.

    Palavras-chave: violncia, Servio Social, trabalho profissional, emancipao humana.

    Violence and social inequity: contemporary challenges for the Social Service

    Abstract: This article discusses the structural violence as a social complex which nowdays constitutes a process of reproduction of the capital and whose main references are the rich contributions of

    * Assistente social, doutor em Servio Social pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC) e professor do Departamento de Servio Social da UNESP-Franca. Lder dos grupos de estudo Violncia e Servio Social (Geviss) e Teoria Social de Marx e Servio Social. E-mail: [email protected]

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    Marx about political and human emancipation. At the same time, the article also offers some indications for the professional social worker facing the large challenges of human emancipation.

    Keywords: violence, Social Service, professional work, human emancipation.

    Ser radical atacar o problema em suas razes. Para o homem, porm, a raiz prprio homem.

    (Marx, 2005a, p. 94).

    Introduo

    Perseguir e perquirir a dinmica da violncia que se objetiva na sociedade contempornea sua produo e reproduo no apenas um desafio, mas uma necessidade para descortinar a trama que envolve as relaes sociais neste incio de sculo. Mais do que enfrentar um assunto extremamente diversificado que forosamente tem incomodado a sociedade brasileira, estamos diante de um tema concretamente fincado na realidade, o qual impacta e se imbrica com o trabalho profissional do assistente social e dele exige respostas que podem ou no endossar o circuito social violento.1 Isto, por si s, desafia uma profisso marcada pelo insuprimvel carisma interventivo e, ao mesmo tempo, pela absoluta necessidade de um aporte terico denso e consistente que auxilie a apropriao da realidade como concreto pesado (Marx apud Fernandes, 1989, p. 409). Trata-se de um tema absolutamente atual embora no seja novo que se reproduz

    1 O trabalho profissional somente pode existir (no sentido marxiano da palavra) quando este se configura como prxis profissional (entendida como relao crtica entre teoria e prtica edificada a partir dos desafios concretos impostos profisso). Neste sentido, vivel afirmar com todos os limites que o assistente social pode exercer algum tipo de criao (com base em certo pr teleolgico Marx, 1983) vinculado s suas condies objetivas como trabalhador assalariado.

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    e sofre metamorfoses sob condies objetivas marcadas pela sociedade burguesa madura na era dos monoplios (Netto, 1992), considerando particularidades assentadas nos marcos do capitalismo brasileiro. Iniciativas mais consistentes para enfrentar esse complexo social carecem, evidentemente, de aes que superem os limites de uma profisso, embora no prescindam dela. Investigar esta trama procurando sintonizar o Servio Social com os grandes desafios deste incio de sculo (permeados por mltiplas formas de violncia adoadas por profundas desigualdades sociais sob dada historicidade) , no mnimo, caminho necessrio para a formao e para a consolidao de massa crtica suficientemente capaz de no ser dragada pela mercantilizao contnua das relaes humano-sociais. Diante disto, preciso resistir banalizao e naturalizao da violncia freqentemente tomada como mera ao isolada e pontual maquinada por mentes insanas e generalizada como a violncia urbana , analisando sua complexidade como fenmeno material que compe as relaes sociais de produo e reproduo do ser social na ordem burguesa abrasileirada.

    Violncia estrutural e sociedade de classes

    A reconstruo da violncia como categoria histrica produzida e reproduzida sob dadas condies e relaes assentadas na sociedade de classes (considerando as especificidades implcitas na formao da sociedade brasileira), um grande desafio na contemporaneidade. Trata-se de um caminho necessrio para repensar o Servio Social como uma profisso terica e praticamente qualificada para atuar criticamente em uma realidade marcada, ao mesmo tempo, pela crise do capital e por suas incansveis estratgias de reproduo e perpetuao.

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    So inmeras as anlises cotidianamente formuladas sobre a violncia. Essas orientaes algumas delas mais elaboradas, com certo grau de organizao e com impactos tambm no mbito do Servio Social , no se cansam de quantificar e especular sobre os tipos de violncia, suas caractersticas e suas causas freqentemente vistas como pontuais e circunscritas ao ncleo familiar, ao espao domstico, aos grupos associados ao banditismo e ao trfico de drogas, por exemplo. So ressaltadas, ento, situaes que vo do indivduo (incluindo aqui de forma generalizada os denominados desvios psicolgicos e de comportamento), at a complexa e maldita violncia urbana (entendida, sob este espectro, como assaltos, seqestros, furtos, crises e levantes nas cadeias e penitencirias, entre outros). Neste contexto, se reaquecem velhas frmulas baseadas no eixo repressohigienizao (normalmente travestidas de discursos democrticos que agem em defesa do cidado produtivo, trabalhador e consumidor Silva, 2007, p. 144-145), bem como se materializam alternativas sustentadas na ampliao e no enriquecimento de estratgias de atuao na realidade que continuam, por outros caminhos mais discretos, a penalizar, criminalizar e controlar os pobres.

    O problema no est em reconhecer a existncia de diversas formas de objetivao e particularizao da violncia (alis, reais e em nada desprezveis), mas na incapacidade de lidar com esta categoria na sua totalidade, ou seja, como fenmeno universal que se particulariza sob dadas condies e se expressa inteiramente nas singularidades (ainda que no se revele, jamais, na sua complexidade, imediatamente). Neste sentido, so castradas as possibilidades de uma perseguio sria da dinmica do real e, conseqentemente, o concreto no pode ser capturado como elemento constituinte da dinmica das relaes sociais. So valorizados, assim, estudos pontuais

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    e especficos (que revelam abstratamente, e em si mesmos, a verdade), circunscritos ao objeto delimitado, lgica de quem o interpreta (a seu modo e de acordo com a sua posio de classe) ou, na melhor das hipteses, a uma comportada ainda que elaborada dinmica sistmica (Vasconcellos, 2005). Instaura-se, desta forma, o reino do relativismo composto por verdades compreendidas a partir de mltiplos e fragmentados marcos tericos explicativos (sob o espectro da ps-modernidade) ou por simples senso comum. Como lembra Lukcs (apud Netto, 1981, p.131), ao tecer comentrios sobre as mltiplas deformaes da cincia moderna,

    o relativismo, a luta contra a aplicao do princpio da causalidade (substitudo pela probabilidade estatstica), o desaparecimento da matria tudo isso utilizado em larga escala visando difundir um relativismo niilista e um misticismo obscurantista.

    Como salienta Octvio Ianni (2004, p. 168), a violncia no pode ser enquadrada em um conceito. Trata-se de um acontecimento excepcional que revela dimenses desconhecidas da vida social (com manifestaes individuais e coletivas, histricas e psicolgicas, subjetivas e objetivas), produzindo impactos econmicos, polticos e socioculturais. A violncia, de forma geral, revela um desejo de destruio do outro, daquele que diferente e estranho, que foge dos padres socialmente estabelecidos. Procura, com isto, exorcizar questes de difcil soluo e sublimar situaes e cenrios absurdos embutidos na sociabilidade e no jogo de foras sociais.

    A anlise da dinmica da violncia na contemporaneidade exige, dentro da perspectiva da totalidade, uma postura investigativa que evite tratamentos focais ou, ao contrrio, excessivamente generalistas desta categoria. preciso reconhecer que a violncia como qualquer complexo social se manifesta imediatamente nos indivduos (seja naqueles

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    que violentam, seja nos que so violentados), individualidades estas que sentem concretamente inmeras carncias e necessidades humanas.2 No entanto, a violncia no um fenmeno circunscrito dinmica individual, submetida unicamente a vontades pessoais. Trata-se de uma ao que conta com indivduos seres sociais sujeitos/objetos inseridos em processos sociais reconstrudos sob dadas condies histricas que potencializam a ao violenta e oferecem o terreno por onde se formam individualidades. Neste contexto, os homens utilizam-se de diversos instrumentos a seu dispor com o objetivo de ferir, avariar ou destruir a natureza do oponente. Neste sentido, a fora despendida com certo vigor (intensidade) e com objetivos determinados atrelados direta ou indiretamente ao jogo de foras inscritas na dinmica social contraditria, realizando finalidades diversas que jamais podem ser consideradas unicamente pessoais. Assim sendo, a violncia um complexo social potencializado por indivduos sociais, ainda que aparea, inicialmente, como um fenmeno individual.

    Seguindo esta argumentao, extremamente importante afirmar que o estudo da violncia na sociedade brasileira contempornea e suas repercusses particulares no Servio Social, devem considerar a atuao dos indivduos sociais no reino do capital e na sua forma de reproduo em escala ampliada (o capitalismo). Isto no significa que toda forma de violncia deriva diretamente desta ordem societria (ainda que ela seja intrnseca e estruturalmente violenta), mas que, no mnimo, a ordem do capital oferece o terreno scio-histrico e as condies objetivas para a materializao de todo e

    2 Nos Manuscritos econmico-filosficos de 1844, Marx (2004) aponta que a satisfao de carncias humanas (comer, vestir, dormir, entre outras), pressupe, mas no viabiliza, por si s, necessidades humanas (sua realizao como ser humano genrico, que efetiva suas potencialidades como ser social livre e criativo). O reino das necessidades requer a superao do capital e de sua lgica reprodutiva seu modo de reproduo em escala planetria: o capitalismo.

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    qualquer processo violento (por mais pontual que parea). Trata-se, ento, de reconhecer, com toda radicalidade, que as condies atuais de reproduo do capital neste incio de sculo marcada, entre outras coisas, por profundos impactos no mundo do trabalho e pela mercantilizao contnua das relaes sociais (evidentemente sob os ditames da propriedade privada), desencadeiam e alimentam muitos processos sociais violentos (nem sempre reconhecidos como tais, quase sempre naturalizados Silva, 2007) e, tambm, temperam as relaes humano-mercadolgicas entre seres sociais potencializando e enriquecendo as decises e as aes dos indivduos sociais.

    Neste sentido, o eixo temtico eleito pelas organizaes profissionais na rea de Servio Social (com destaque para a trade CFESS/CRESS/ABEPSS), como parte dos 50 anos de regulamentao da profisso, tema este centrado na relao entre a desigualdade social, o desemprego e a violncia, de extrema relevncia para provocar uma discusso mais qualitativa que extrapole abordagens focais sobre a violncia, sua origem e sua reproduo. Nesta direo, duas questes importantes precisam ser ressaltadas: quais os aspectos que devem ser explicitados para descortinar a complexa relao entre as mltiplas formas de desigualdade social e a violncia produzida e reproduzida na sociedade burguesa brasileira deste incio de sculo? Como os assistentes sociais esto lidando com este terreno pantanoso que limita ao extremo a emancipao poltica dos pobres (centrada precariamente na satisfao de algumas carncias humanas), tambm considerando que esta forma de emancipao ainda que relevante no , em absoluto, suficiente emancipao humana?

    Marx (2005a), nos seus estudos de juventude, j expressava os limites da emancipao poltica e suas

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    diferenas em relao emancipao humana. Reconhecendo a sua importncia e sua necessidade histrica efetivada com participao do Estado e sem oferecer qualquer trgua feudalidade que antecedeu a ordem burguesa, o autor claro ao expressar os limites e as possibilidades da emancipao poltica:

    A liberdade do egosta e o reconhecimento desta liberdade so a expresso do reconhecimento do movimento desenfreado dos elementos espirituais e materiais que formam seu contedo de vida. Por conseguinte, o homem no se libertou da religio; obteve, isto sim, liberdade religiosa. No se libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. No se libertou do egosmo da indstria, obteve a liberdade industrial. (...) O homem real s reconhecido sob forma de indivduo egosta; e o homem verdadeiro, somente sob a forma de citoyen abstrato. (...) a emancipao poltica a reduo do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivduo egosta independente e, de outro, a cidado do estado, a pessoa moral. (Marx, 2005a, p. 41-42 grifos do autor).

    A emancipao humana, por outro lado, ainda que no prescinda da emancipao poltica, surge da superao de seus limites e se realiza atravs da negao do cidado burgus, abstrato, submetido sociedade de classes e propriedade privada. A fora poltica dos homens no se destaca das foras sociais necessrias revoluo. Criam-se, portanto, as condies para a realizao do humano-genrico, ou seja, de um devir sustentado na realizao das potencialidades humanas de um homem pleno e verdadeiramente livre tambm em sua individualidade.

    Somente quando o homem individual real recupera em si o cidado abstrato e se converte, como homem individual, em ser genrico, em seu trabalho individual e em suas relaes individuais, somente quando o homem tenha reconhecido e

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    organizado suas forces propes3 como foras sociais e quando, portanto j no separa de si a fora social sob a forma de fora poltica, somente ento se processa a emancipao humana. (Marx, 2005a, p. 42).

    O iderio burgus afirma que o reino da liberdade se circunscreve emancipao poltica, ou seja, ao cidado abstrato, sob os ditames do capital, inserido no circuito mercadolgico, sendo seu potencializador e consumidor. Sob esta tica, a desigualdade entendida, no seu limite, como falta de igualdade de oportunidades para que os indivduos, livremente, a partir de seus dotes pessoais, democraticamente se emancipem na livre concorrncia. Todo este processo, evidentemente, esvaziado de seu contedo de classe. A desigualdade, ento, naturalizada sob o argumento do mrito que valoriza os mais capazes, criativos e preparados (os mais fortes). So criados, assim, os paradigmas necessrios insero dos indivduos que, segundo esse espectro ideolgico, no esto suficientemente capacitados para lidarem com as regras naturalmente estabelecidas pela sociedade de mercado.

    Os diversos programas e projetos sociais que administram a pobreza lidam, de uma forma ou de outra, com este contexto. O eixo excluso/incluso social, freqentemente tomado como jargo, reproduz o discurso do cidado abstrato que, no caso brasileiro, sob a ordem do capital abrasileirada, aprofunda-se como precrio e minimalista. O que significa excluir e incluir? Estas so algumas questes que precisam ser analisadas com cuidado para que seja possvel explorar ao mximo os limites e as possibilidades das aes assistenciais e os mais recentes desafios que se colocam com a implantao, por exemplo, dos Centros de Referncia de Assistncia Social (o complexo

    3 Prprias foras (citao mantida a partir do texto original).

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    CRAS/CREAS) e o Sistema nico de Assistncia Social (SUAS). preciso ter claro que os indivduos sociais excludos no se situam fora do modelo econmico, social, poltico e cultural vigente e que, portanto, a pobreza um complexo social que no se destaca do processo de reproduo do capital. O moderno excludo faz parte deste circuito produtivo (mesmo como desempregado ou como subempregado), sendo que a desigualdade social intrnseca a este modelo, embora discursivamente se diga exatamente o contrrio impe um nvel de vida precrio aos pobres. A nfase no binmio excluso/incluso nos parece problemtica uma vez que, sobretudo sob as condies de reproduo do capital em pases como o Brasil, a prpria emancipao poltica precria (j que as aes so, com muita freqncia, pontuais, focais e minimalistas). O problema se agrava quando se cr que o aprofundamento desta forma de cidadania possvel para pases latino-americanos desembocar, automaticamente, na emancipao humana. Neste sentido, as provocaes de Lessa (2007) so importantes:

    (...) Somente podemos pensar que a emancipao poltica uma etapa histrica no caminho da emancipao humana no preciso sentido de que o comunismo apenas pode vir a ser a partir do patamar do desenvolvimento das foras produtivas possibilitado pelo capitalismo. Mas no h qualquer sentido, nos termos colocados por Marx, considerar que a radicalizao da emancipao poltica possa realizar o milagre de convert-la em mediao para a emancipao humana (...). (Lessa, 2007, p.47)

    A reflexo apresentada por Lessa ainda mais provocativa quando so consideradas as aes precrias que permeiam as polticas sociais brasileiras (com especial destaque para a poltica assistencial). O que dizer, por exemplo, do valor legal de do salrio mnimo para determinar o acesso aos benefcios da Lei Orgnica da Assistncia Social (LOAS), por

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    mais importante que possa significar o repasse destes recursos e a luta que foi empreendida para que eles se efetivassem legalmente? Como considerar, hoje, o Programa Bolsa-Famlia ou os inmeros programas de transferncia de renda (em nvel, municipal, estadual ou federal), como espaos para a realizao da emancipao poltica (ainda que seja a emancipao poltica propiciada pelo capital no Brasil nas condies histricas deste incio de sculo)? Como discutir, neste esterco de contradies, a emancipao humana? Estas so questes que no podem ser descaracterizadas como reflexes tericas descabidas, desconectadas do possvel ou contra os pobres (como se no existissem outras alternativas). Elas no significam paralisia diante da incontestvel e insuprimvel realidade, mas, ao contrrio, questionam a qualidade e a pertinncia do que vem sendo concretamente realizado, bem como com qual direo poltico-ideolgica este processo vem sendo conduzido (inclusive pelos assistentes sociais). Trata-se de um exerccio absolutamente essencial para, no mnimo, desestabilizar consensos que naturalizam aes como sendo as nicas possveis. Contribui, ainda, para que os profissionais que atuam na rea social repensem as complexas relaes cotidianamente estabelecidas entre a violncia (que, nesta situao, no chamada como tal), a desigualdade social (em suas mltiplas expresses particulares) e os programas e projetos sociais que tambm esto sendo gerenciados por profissionais de Servio Social.

    Embora o capital se reproduza em ditaduras ou em democracias supondo, inclusive, compatibilidades entre [...] cidadania e misria, cidadania e explorao do trabalho pelo capital, cidadania e desemprego [...] (Lessa, 2007, p. 48), preciso frisar que as lutas travadas em conjunturas marcadas por regimes totalitrios de direita (e parte da esquerda latino-americana conhece bem isto) no ocorrem da mesma forma

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    se comparadas, por exemplo, com as democracias liberais. As estratgias para manter ou questionar a ordem no so as mesmas nas ditaduras e nas democracias, ainda que a emancipao humana seja a referncia insubstituvel para negar os limites da emancipao poltica. Equivocam-se aqueles que se rendem s democracias oficiais sejam elas liberais ou pautadas nos resqucios do Welfare State e s suas inmeras sedues parlamentares-representativas que limitam as lutas esfera nica do Estado (burgus) e acreditam no gradualismo delas (hoje claramente assumido como o possvel por setores da esquerda).4 Por outro lado, no campo das lutas sociais e das condies objetivamente dadas, abandonar a esfera do Estado e entreg-la aos urubus inclusive o gerenciamento de direitos funcionais, sim, reproduo do capital , pode configurar-se como perda de espao de luta e ampliao da violncia estrutural contra as camadas pobres da populao. Parece que este limite tambm precisa ser pensado com criticidade por aqueles que sabiamente teimam em reafirmar, na era do capital, a radicalidade da emancipao humana. preciso, portanto, saber em qual direo esta defesa de direitos deve ser feita.

    No se trata, est claro, se devemos ou no lutar contra a abolio dos direitos criados e mantidos por meio do Estado, j que esta uma imposio histrica da qual os revolucionrios, os emancipadores humanos no tm como se furtar. A questo outra: como devemos travar esta luta, de qual perspectiva devemos defender os direitos ameaados dos trabalhadores para que consigamos acumular fora tendo em vista a emancipao humana. (Lessa, 2007, p. 55).

    Sendo assim, preciso, sim, explicar as mltiplas formas de violncia objetivadas na sociedade contempornea (das

    4 Alm daqueles que, definitivamente, abandonaram os parmetros da emancipao humana. Neste caso seria importante perguntar: ser que, alguma vez, nestes casos, a emancipao humana foi realmente referncia?

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    suas manifestaes mais individuais s suas expresses coletivas), rechaando anlises pontuais deste complexo social que compe a natureza da ordem societria hegemnica neste incio de sculo. O indivduo, neste contexto, no uma simples ameba desprezvel diante do movimento geral da sociedade (um telespectador funcionalmente moldado sem resistncias ou conformismos anulado como sujeito histrico possvel), mas tambm no um ser perdido em uma fragmentao absoluta imersa em um mar de subjetividades explicativas da verdade. O indivduo, como sujeito e objeto de processos sociais violentos , ao mesmo tempo, a pessoa (evidentemente com sua subjetividade que expressa carncias e necessidades humanas) e o genrico (o ser que contm as determinaes universais). Essas dimenses so inseparveis e recolocam mltiplas possibilidades de interveno. Sob tais condies, os homens tomam decises, formulam e implementam aes tendo por base um legado histrico e as condies histricas objetivamente dadas.

    Essas discusses remetem a uma questo importante para o Servio Social: como reconstruir a violncia como um complexo social que no exterior profisso e s aes implementadas pelos assistentes sociais? A relao violncia-profisso se expressa no apenas nas aes cotidianas dos profissionais diante das demandas imediatamente apresentadas pelos usurios (a criana violentada, a mulher espancada, a famlia desempregada, entre outros), mas tambm nos encaminhamentos que eles prprios, na interveno profissional, esto construindo ou simplesmente endossando por meio de programas e projetos sociais submetidos lgica reprodutiva do capital. Essas aes estatais, de terceiro setor, filantrpicas ou fundadas na articulao entre elas (alis, muito freqentes Pereira, 2003; Montao, 2002) , so, evidentemente, determinadas por orientaes que, de antemo,

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    limitam e formatam o alcance de seus programas e projetos.5 Em outras palavras, quais as respostas cotidianamente construdas e implementadas pelos profissionais de Servio Social marcadas por momentos simultneos de resistncia e de conformismo diante do institudo , considerando as manifestaes da violncia na sua forma estrutural na gesto (elaborao, execuo e avaliao) de programas e de projetos sociais? possvel qualificar a atuao desses profissionais na direo da emancipao humana, sem perder de vista os limites da emancipao poltica do cidado burgus e o espao sociocupacional do assistente social (com suas inerentes contradies)? Reflitamos um pouco nesta direo.

    Servio Social, afirmao de direitos e resistncia de classe

    Cabe discutir, neste momento, quais os parmetros gerais que devem nortear a atuao profissional do assistente social no contexto citado, considerando o Servio Social como uma profisso inscrita na diviso social e tcnica do trabalho (Iamamoto & Carvalho, 1985) e os imensos desafios relacionadas com a emancipao humana. Os assistentes sociais, na contemporaneidade, atuam de forma privilegiada no gerenciamento de programas e de projetos sociais do mais variados tipos e nveis. absolutamente necessrio polemizar nesta direo e em outras ainda desconhecidas, desconsideradas ou abandonadas no tempo pela prpria profisso.

    O Servio Social ocupou, desde sua origem, uma posio de gerente das tenses imediatamente manifestadas

    5 O terceiro setor, com sua lgica fundada na racionalidade empresarial e no aprimoramento do voluntariado (que, diga-se de passagem, no pode ser mecanicamente identificada com a velha filantropia), no coloca em questo a emancipao humana. O reino da liberdade o reino da incluso social dos desafortunados como cidados consumidores.

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    nos indivduos sociais advindas da contradio estrutural entre capital e trabalho. A questo social e suas particulares expresses de forte teor violento sempre desafiaram o cotidiano profissional dos assistentes sociais, que reforaram essa dinmica como tambm, pelo menos intencionalmente, a questionaram. No possvel, portanto, negar o carter funcional das polticas sociais (situadas no mbito da emancipao poltica) e dos diversos tipos de interveno profissional que, a partir delas, foram se configurando. Ao mesmo tempo, a profisso passou por importantes revises que permitiram no apenas a sua modernizao conservadora, mas a sua aproximao com um legado terico-crtico inspirado, sobretudo, na tradio de Marx (com todos os seus limites, desafios e problemas Netto, 1991).

    Muitos profissionais atuam no mbito das polticas sociais, sobretudo naqueles setores diretamente relacionados com a assistncia social e a sade. O processo de redemocratizao poltica brasileira vivenciada ao longo dos anos 80 do sculo XX , sintonizou a profisso com algumas importantes reformas jurdicas e sociais subsidiadas pela Constituio de 1988: a Lei Orgnica da Assistncia Social (LOAS), o Sistema nico de Sade (SUS), o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), o Estatuto do Idoso, os Conselhos de Direito e Tutelares, o Sistema nico de Assistncia Social (SUAS), a implantao dos Centros de Referncia de Assistncia Social (o complexo CRAS/CREAS), a lei Maria da Penha que estabelece parmetros para coibir a violncia contra as mulheres entre outras importantes legislaes e polticas, municipais, estaduais e federais, envolvendo relaes de gnero, raa e etnia, por exemplo. Assistiu-se, ao mesmo tempo, uma proliferao de aes genericamente caracterizadas como de terceiro setor, sustentadas em parcerias com o setor pblico estatal e, como j explicitado, em aes voluntrias consideradas como de responsabilidade social.

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    Se por um lado preciso defender, sim, conquistas inscritas no mbito da emancipao poltica no perodo ps-autoritrio brasileiro, por outro lado necessrio ter claro que tais reformas no efetivaram e no efetivaro, por si s, a emancipao humana. Mais ainda, como j foi dito, a defesa de uma ao gradualista e etapista no trar, diretamente, por meio de um aprofundamento dos direitos, a emancipao humana. fundamental, tambm, discutir claramente como essas polticas esto sendo elaboradas e implementadas, analisando como o profissional de Servio Social tem se inserido nessa trama. A questo que se coloca no somente para os assistentes sociais se esse tipo de emancipao poltica possvel de ser objetivada nas condies de reproduo do capital no Brasil deste incio de sculo (marcado, inevitavelmente, por aes que tendem ao minimalismo) pode ter alguma utilidade para a emancipao humana.

    A realizao de direitos pode ser til emancipao humana se as tenses implcitas na composio deste tipo de emancipao poltica (seus limites e possibilidades), forem forcejadas nas suas prprias contradies como direitos abstratos (no reais Marx, 2005a). Assim, a emancipao humana no ser alcanada pela simples afirmao de direitos (abstratos e legalmente inscritos muito comum em pases latino-americanos). Ao contrrio, poder se desenvolver por meio de atitudes e aes permanentes que demonstrem as contradies no apenas entre o que est previsto em lei e sua incoerncia prtica,6 mas, sobretudo, contradies que revelam a incapacidade e a impossibilidade desses direitos romperem com o criadouro da violncia estrutural: a apropriao privada da produo social (a propriedade privada). Evidentemente esta no uma tarefa de uma profisso, ou das profisses, j

    6 Basta, para isto, observar o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) e sua materialidade nos dias atuais.

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    que elas esto limitadas por sua prpria natureza e alcance. Exigir delas que realizem tal tarefa , no mnimo, insano. Porm, sem qualquer concesso ao idealismo, preciso sintoniz-las na direo da emancipao humana que, por sua vez, evidentemente, extrapola os marcos das profisses.

    crucial analisar, com criticidade, os aspectos em que no vale a pena insistir, a fim de evitar que, ingenuamente, neles se invista potencial profissional precioso (dada a sua disfuncionalidade para a emancipao humana), potencial esse que deveria estar voltado para aqueles aspectos importantes ligados administrao pblica e estatal de direitos que jamais devem ser entregues de bandeja aos bicos carniceiros dos urubus. Grande parte dos espaos objetivamente disponveis para os profissionais de Servio Social pode ser qualificada, e alguns outros devem ser descartados com firmeza (ainda que faam parte da dinmica do real). Neste terreno marcado por um esterco de contradies e diversas armadilhas (e no h como ser diferente) , h de se ressaltar e valorizar, ao mesmo tempo, outros aspectos desconsiderados ou pouco considerados. Como est registrado nos estudos de Iamamoto e Carvalho (1985), o Servio Social, como profisso

    [...] responde tanto a demandas do capital como do trabalho e s pode fortalecer um ou outro plo pela mediao de seu oposto. Participa tanto dos mecanismos de dominao e explorao como, ao mesmo tempo e pela mesma atividade, da resposta s necessidades de sobrevivncia da classe trabalhadora e da reproduo do antagonismo nesses interesses sociais, reforando as contradies que constituem o mvel bsico da histria. A partir dessa compreenso que se pode estabelecer uma estratgia profissional e poltica, para fortalecer as metas do capital ou do trabalho, mas no se pode exclu-las do contexto da prtica profissional, visto que as classes s existem inter-relacionadas. (Iamamoto & Carvalho, 1985, p. 75).

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    Este patamar inaugurado por Marilda Iamamoto na dcada de 80 do sculo XX e suas consideraes crticas sobre o messianismo e o fatalismo so importantes para que no esperemos do Servio Social:

    o que ele objetivamente no poder jamais oferecer: a revoluo e a emancipao humana (uma tarefa da prxis social). Porm, ao mesmo tempo, isto impe profisso a necessidade dela forcejar nesta direo nos nveis de atuao profissional em que isto possvel e nem todos eles o so , sem gradualismos e etapismos sustentados na sobrevalorizao do papel desempenhado pelos direitos. (Iamamoto,1994, p. 113).

    Este o grande desafio posto para aqueles que esto sintonizados com o projeto de inteno de ruptura (Netto, 1991). Desconsiderar esta possibilidade significa inscrever as diferentes aes dos profissionais e a profisso em todos os seus nveis de interveno no campo nico da reproduo do capital. Isto no apenas arrebenta com o Servio Social como tambm, simultaneamente, engessa as possibilidades que esto inscritas na correlao de foras (dentro e fora dos espaos institucionais), anulando o profissional como sujeito histrico possvel capaz de comprometer-se tica e politicamente , nas suas pequenas e grandes aes, com a emancipao humana (mesmo sabendo que a sua profisso, em si, no a realizar). Evidentemente que so nulas as possibilidades do profissional desenvolver aes afinadas com a emancipao humana (no sentido tratado neste artigo), em espaos sociocupacionais restritos filantropia (ainda muito comuns na rede assistencial) ou s propostas baseadas na responsabilidade social cidad centrada na incluso social do cidado como consumidor e na meritocracia de mercado que restringe a noo de justia social a zero e naturaliza a desigualdade social. preciso reconhecer isto com toda clareza e no criar iluses. Posto isto, explicitemos os aspectos essenciais sem os quais no podemos considerar

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    o Servio Social e a atuao profissional como esferas teis emancipao humana.

    O primeiro deles no nada novo e se impe como um desafio bsico e imenso categoria na contemporaneidade: a formao profissional sustentada na composio de uma massa crtica que atue insistentemente na direo da prxis profissional. Neste nvel os problemas no so pequenos. Eles vo desde o absoluto abismo entre a academia e os mais remotos confins da interveno profissional (no geral, muito distantes entre si), passam pela perversa e irresponsvel expanso das unidades de ensino (que se configuram em cursos precrios tambm vulgarizados pelo ensino distncia) e desembocam em problemas relacionados com a superficialidade, com o ecletismo terico e com uma errnea viso sobre o significado do pluralismo profissional. A unidade diversa entre teoria e prtica a prxis profissional deve ser evidentemente plural, mas no sentido de incorporar, criticamente, orientaes distintas sem eliminar o necessrio debate. Precisa, ainda, ter uma direo coletiva (hegemnica) assumida pela categoria profissional. O assistente social deve estar voltado para reconstruo da dinmica do real como concreto-pensado, movimento este que no est circunscrito sua cabea, sua lgica (a lgica pensada), mas lgica da realidade (da coisa em si Marx, 2005b, p. 39) que o provoca e exige dele posies e aes materiais. Para tanto importante romper o medocre isolamento profissional e detonar a arrogncia acadmica. Sobre isto Yazbek (2005) e Simionatto (2005) so precisas:

    Esse descompasso se pode observar tambm na pesquisa que, muitas vezes, no consegue trabalhar a universalidade contida no singular, que no faz os vnculos e as passagens de nossa compreenso terico-metodolgica da realidade para

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    situaes singulares que configuram nosso exerccio profissional cotidiano. tarefa da pesquisa evidenciar os processos sociais e histricos de um tempo e lugar, em suas mltiplas dimenses, nos mostrando como a realidade se tece e se move pela ao de sujeitos sociais. (Yazbek, 2005, p. 155-156).

    Consideradas as particularidades das aes investigativas e interventivas, verifica-se um deslocamento da produo de conhecimentos dos objetos reais da profisso para o movimento geral da sociedade, sem efetuar-se o caminho de volta. Evidencia-se a dificuldade tanto em passar do geral ao particular, de categorias mais abstratas para situaes mais concretas, quanto em relao ao procedimento inverso, realizando um movimento de superao crtica. Trata-se de compreender de que forma as complexas determinaes sociais das novas condies histricas se materializam em situaes e problemas sociais especficos do campo profissional, que no podero ser captados somente pelo domnio da razo terica deslocada do real, ou inversamente, de um real que se esgota em si mesmo. (Simionatto, 2005, p. 58).

    H, portanto, necessidade de investir profundamente na qualidade da formao profissional, comprometida com a densidade terica, prtica e investigativa dos assistentes sociais, no sentido h pouco reivindicado (diga-se de passagem, uma verdadeira contracorrente na ps-modernidade). No mbito da formao profissional, em todos os seus nveis (desde a graduao at a livre docncia dentro e fora do espao acadmico), estes so desafios absolutamente essenciais.

    Um segundo aspecto importante e diretamente vinculado ao primeiro (na medida em que tambm potencializado e qualificado por ele), remete forma como os assistentes sociais esto ocupando os mltiplos espaos e respondendo s diversas demandas que imediatamente lhes so apresentadas. Embora tais demandas caoticamente e imediatamente se expressem no cotidiano profissional (com uma existncia material

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    incontestvel que no pode ser simplesmente ignorada), isto no significa que a profisso e os profissionais devam assumir prestativamente, altruisticamente e acriticamente, da forma como inicialmente so encaminhadas, as solicitaes e desafios. preciso lembrar, por exemplo, que muitas conquistas do perodo ps-ditatorial brasileiro certamente situadas no campo da emancipao poltica , tm sido competentemente capturadas e empobrecidas a favor do retrocesso e do conservadorismo burgus deste incio de sculo. comum, por exemplo, a convivncia, hoje, de um defensor do extinto Cdigo de Menores com o Estatuto da Criana e do Adolescente, sem grandes incompatibilidades e at com certa coerncia. O mesmo ocorre, por exemplo, com defensores e colaboradores de regimes autoritrios que tranqilamente se dizem representantes da sociedade civil nos Conselhos de Direito ou se proclamam defensores das crianas e dos jovens nos Conselhos Tutelares.7

    A afirmao de direitos no realiza, mesmo que radicalizada, a emancipao humana. O seu empobrecimento e banalizao ou, em outras palavras, a sua captura e utilizao a partir dos interesses de mercado que restringem e empobrecem as noes de democracia e de cidadania para os mais fortes, tambm so srios e concretos obstculos emancipao humana. Esse contexto se torna ainda mais grave quando tudo isto desenvolvido tendo por base as conquistas que significaram pelo menos legalmente certa emancipao poltica de importantes segmentos populacionais, bem como quando executado por profissionais que acreditam que essas aes promovem, por si s, emancipao humana. Isto no significa, em absoluto, que tais espaos no devam ser ocupados e potencializados pelos assistentes sociais,

    7 Diga-se de passagem, o prprio ECA e a proliferao de conselhos abrem brechas nesta direo ao sacralizarem e nivelarem a sociedade civil.

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    mas que isto deve ser feito com clara direo tico-poltica comprometida com a emancipao humana (ainda que ela no se realize, jamais, nos marcos da profisso). Caso contrrio melhor deixar que os urubus cuidem do jantar e demonstrem, com suas forces propes, seus objetivos e intenes.

    Sendo assim, a luta no pode deixar de ocupar espaos oficiais e institucionais (pelo menos aqueles que propiciam a contradio e o debate), ainda que tenhamos claro que essas instncias so absolutamente insuficientes. Com todas as suas limitaes, a atual implantao dos CRAS, por exemplo, pode ser desenvolvida de diferentes maneiras. Se, por um lado, pode significar inclusive com o apoio dos profissionais de Servio Social simples extenso de velhas e novas prticas coercitivas e tuteladoras dos ncleos familiares (hoje priorizados pela maioria dos programas e projetos sociais), tambm, ao contrrio, pode ter outros rumos que propiciem e favoream boas condies para potencializar capacidades individuais e coletivas de organizao e reivindicao. Para tanto, preciso, entre outras coisas, formar profissionais capazes de potencializar mltiplas instncias que ponham em movimento foras comprometidas com a emancipao humana e, ao mesmo tempo, rechacem aquelas que esto contra isto. exatamente neste sentido que as frases de Iamamoto (2000, p. 21) devem ser consideradas:

    [...] as possibilidades esto dadas na realidade, mas no so automaticamente transformadas em alternativas profissionais. Cabe aos profissionais apropriarem-se dessas possibilidades e, como sujeitos, desenvolv-las transformando-as em projetos e frentes de trabalho.

    Um terceiro e ltimo aspecto a ser considerado, remete ao necessrio e desprestigiado vnculo do Servio Social com os movimentos sociais e com os trabalhos populares. No se deseja, com isto, ressuscitar velhas frmulas de

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    conscientizao pautadas no catecismo sectrio de perfil autoritrio-dogmtico, mas, ao contrrio, revitalizar um importante espao que sintoniza a profisso com outras instncias absolutamente necessrias prxis social. Isto significa que importante retomar a conversa com o povo, conhecer suas necessidades e demandas atuais, abandonar o isolamento tcnico-institucional e o posto unicamente gerencial, criando melhores condies para enriquecer os espaos oficiais exatamente com aquilo que eles no possuem: potncia contestatria. Esta oxigenao vem sendo absolutamente rompida seja pela cooptao de lideranas ou pelo proposital desprestgio e isolamento destes espaos (encarados, no mximo, como esferas a serem manejadas e manobradas por interesses de cpula). Ao mesmo tempo, o trabalho profissional dos assistentes sociais pode contribuir para que as lutas empreendidas pelos diversos movimentos locais, regionais e nacionais no se resumam a reivindicaes pontuais e desarticuladas entre si (um srio problema que afeta os diversos movimentos sociais e a sua prpria sobrevivncia). Portanto, revitalizar o vnculo com os movimentos sociais e qualificar o trabalho popular caminho necessrio para estabelecer importantes contatos entre a academia, os movimentos e as demandas sociais. neste rico celeiro que devemos concentrar nossas foras produtoras de conhecimento, ainda que, tambm aqui, os problemas sejam muitos. O trabalho popular , assim, importante espao para qualificar esta relao no sentido de perseguir a prxis social sem desqualificar a prxis profissional e as importantes conquistas no campo da emancipao poltica (com todas as suas limitaes). Mais ainda, oxigena o trabalho profissional no campo institucional e exige, dele, aes no mnimo diferenciadas. Como assinalou Marx (1987, p. 126), na segunda tese sobre Feuerbach, na prxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto , a realidade e o poder, o carter terreno de seu pensamento.

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    Quadros vanguardistas do Servio Social tm acreditado na importncia da defesa dos direitos e participado, com honestidade e dedicao ( preciso dizer isto), do desenvolvimento de propostas governamentais que tambm foram eleitas a partir de bandeiras populares (como no caso do Partido dos Trabalhadores e do governo Lula). No entanto, as recentes reflexes explicitadas por Netto (2004) reforam as preocupaes apontadas neste artigo:

    O registro de que estamos nessa hora da verdade, que pe prova as vanguardas profissionais (das quais representantes respeitveis esto exercendo funes no aparelho governamental), deve ser feito sem que dele derivem julgamentos de valor acerca do comportamento de protagonistas singulares. Tambm aqui a questo no se coloca no plano individual ou biogrfico: coloca-se coletivamente, como questo para as organizaes da categoria em todos os nveis acadmico, profissional, etc. E coloca-se exigindo um debate coletivo, um amplo confronto de idias e posies, com a reiterao dos mesmos procedimentos abertos e democrticos que nos levaram constituio do projeto tico-poltico. (...) Salvo melhor juzo, s nos resta, enquanto categoria profissional, preservar, contra ventos e mars, a autonomia para conduzir e aprofundar as exigncias do projeto tico-poltico: preservar a autonomia de nossas organizaes (o conjunto CFESS-CRESS, a ABEPSS e, no caso dos estudantes, a ENESSO) em face do governo e do PT (e de todo e qualquer outro partido). (Netto, 2004, p. 24).

    O desafio est materialmente posto. Discutamos e indiquemos alternativas.

    Comentrios conclusivos

    Evidentemente so insuprimveis as tenses entre uma profisso que surgiu claramente atrelada s bases do pensamento conservador catlico para administrar tenses

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    oriundas da relao capital-trabalho, e uma teoria social crtica estruturalmente comprometida com a superao da ordem burguesa e a emancipao humana: a teoria social de Marx. Por outro lado, este vnculo conservador do Servio Social no se impe como uma determinao fatalista que impede a reconstruo do exerccio profissional do assistente social como um espao que pode, ainda que sob o campo da emancipao poltica e dos limites intrnsecos de uma profisso, sintonizar-se com a emancipao humana. Isto, portanto, no pode se objetivar a partir de posies e iniciativas que atribuam emancipao poltica e profisso, aquilo que elas, por si s, no oferecero. A interlocuo entre o Servio Social e a produo crtica sustentada em Marx e em sua tradio, no apenas til para a ampliao do capital cultural dos profissionais de Servio Social e para a qualificao das reflexes e das alternativas edificadas a partir do concreto pensado. Trata-se de uma relao crucial para forcejar e criticar ao mximo as relaes historicamente estabelecidas, na era dos direitos, entre o pensamento conservador (nas suas diversas expresses) e o exerccio profissional dos assistentes sociais, freqentemente marcado por aes tuteladoras e reiteradoras da ordem hoje hegemnica em escala planetria: a burguesa. Por outro lado, o marxismo pode, na contemporaneidade, apropriar-se criticamente de inmeros temas de altssima relevncia social atravs do Servio Social. Esta base emprica advinda do exerccio profissional de extrema riqueza, ainda que carea, inegavelmente, de reconstruo crtica.

    Embora seja inadequado afirmar a possibilidade de se constituir um Servio Social marxista, absolutamente legtimo e necessrio valorizar uma aproximao qualificada entre eles. Como lembra Netto (1989, p. 101), sem Marx, e a tradio marxista, o Servio Social tende a empobrecer-se. Ao desqualificar a contribuio oferecida por Marx e por sua

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    tradio, o Servio Social perde boas condies para sintonizar a profisso com o significado radical contido na noo marxiana de emancipao humana. Empobrece, por conseqncia, sua insero crtica no campo da emancipao poltica e expe o profissional a maiores riscos para perpetuar, na sua prpria ao, a violncia implcita no processo de reproduo do capital neste incio de sculo.

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