Violência Gratuita - Miguel Cardoso

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Violncia gratuita27 de outubro de 2014Categoria:Ideias & DebatesComentar|ImprimirFace a tudo isto, e reconhecendo que os problemas da luta contra o estado das coisas so em grande medida problemas muito materiais, que nada tm de gratuito o que comer, onde ficar, como partilhar, como exercer a igualdade , julgo que devemos aceitar e at cultivar a gratuitidade de que somos acusados. PorMiguel Cardoso.Na fraseologia que vai acompanhando a crise e os conflitos que marcam o campo poltico actual, a expresso violncia gratuita tem assumido, ocasionalmente, um papel de relevo. Pese embora o seu sentido ser incerto e oscilante, pode servir para entrever algumas perturbaes recentes na ordem natural das coisas.Comecemos com umas pinceladas contextuais. A expresso arremessada por manifestantes e outros descontentes polcia e ao aparelho de Estado, para sinalizar episdios de abuso no seu regular uso da fora, por regra tido como legtimo. Por sua vez, as foras da lei e da ordem e, a seu lado, osmediacolam a etiqueta aos actos de uma srie de elementos perigosos, como quem faz soar um alarme. A este fogo cruzado junta-se ainda a voz dos movimentos sociais organizados, ordeiros, para designar quer o esquerdismo irresponsvel de uns quer o fascismo insidioso de outros. Em todos estes casos, por inteno ou deslize, a expresso violncia gratuita uma chamada ordem. Assinala a quebra de um contrato implcito, um desvio em relao a uma ideia do necessrio e da justa medida. Mas o adjectivo gratuito, ou a noo de gratuitidade, fazem bem mais do que isso: no se limitam a sugerir uma perda da sensibilidade e bom senso, mas umaperda de sentido. gratuito o gesto que se desviou, com maior ou menor alarido, do quetemoufazsentido.O escndalo da gratuitidade ser de difcil leitura e arrumao: no ter causa aparente, no decorrer das circunstncias. gratuito o gesto desnecessrio, intil, ocioso ou suprfluo. O injustificado e, at, injustificvel. Nesse sentido, a violncia gratuita duplamente violenta: por ser violncia e por ser gratuita. Por ser no apenas bruta, mas embruto. Significa isto que a acusao de violncia gratuita, mais do que apontar um mero excesso ou falha de legitimidade, um atestado de excluso do razovel e o razovel, sendo um terreno certamente vago, defendido com unhas e dentes. E, no raro, cassetetes. Para compreender o significado e alcance desta expresso importa, pois, examinar a distribuio de competncias no s no que toca ao exerccio legtimo da violncia, mas a prpria definio do espao de uma comunidade poltica fora do qual, aparentemente, se perde a razo.Antes de mais, no nos devemos deixar iludir pela aparente simetria, excesso contra excesso, dos dois lados da barricada desenhados acima a trao grosso. O jogo de espelhos entre ordem e desordem esconde grandes diferenas no significado, peso e efeito do termo violncia gratuita, dependendo de onde enunciado. Enquanto a gratuitidade da violncia policial ser um desajuste em relao a uma posio tida como legtima, a mesma frmula aplicada aos manifestantes parece designar a prpria posio que eles ocupam: no o desvio de uma posio, mas a sua posio enquanto desvio. Dito de outro modo: nos confrontos, tanto individuais como colectivos, entre a polcia e cidados, reconhece-se por vezes um excesso de fora por parte da polcia, mas qualquer uso da fora por parte de um cidado , em si mesmo, um excesso. Isto fora-nos certamente a ir virando a questo, perceber as suas vrias faces e nuances, mas no significa que estejamos aqui perante uma mera coincidncia verbal. Ou seja, no significa que a frmula violncia gratuita seja apenas um nome comum para designar realidades completamente dspares. H uma malha conjuntural, mas que decorre das prprias malhas com que se tece o capitalismo, que une estes diferentes fenmenos. A gratuitidade oferece-nos pistas cruciais para mapear o terreno instvel e conflituoso onde se encontram. Ganhamos em colocar a questo da gratuitidade com maior latitude do que a sua associao com a esfera da violncia pressupe. Nesse espectro mais largo, o tom de condenao esbate-se, visto que ao gratuito dado um lugar mesa da civilizao. A esse lugar habitualmente dado o nome de esttico, um lugar onde se goza de uma margem de liberdade em relao ao jugo do necessrio, s regras da convenincia, ou aos clculos de custo/benefcio que governam outras esferas. Mas esta ligeireza mantida dentro de uma reserva protegida, os seus efeitos contidos e, de preferncia, reencaminhados para os domnios menos vagos e soltos do trabalho e do valor. Ou seja, a liberdade do gratuito vista como um mero intervalo na injuno de produtividade ou, melhor ainda, produtividade por outros meios. Isto porque a aparente inocncia do gratuito contm em si mesma uma certa violncia, que irrompe enquanto tal logo que este sai deste lugar que lhe foi atribudo e se espalha. Quando assim acontece, parecem pressentir os guardies do estado das coisas, passa de mero divertimento a ameaa ao crculo mgico de produo e reproduo das relaes sociais existentes. Voltaremos a este ponto.Por agora, regressemos de novo esfera da violncia, onde o problema da gratuitidade ganha porventura maior urgncia, na medida em que toca num dos fundamentos da ordem poltica: o monoplio da violncia legtima por parte do Estado. Acontece e no por acaso que, no contexto da crise e da austeridade, se torna mais difcil aos agentes da violncia tida como legtima apontar com naturalidade e fora de evidncia para a sociedade do bem-estar que lhes competiria defender de perturbaes. Perante as cada vez mais bvias linhas de fractura no tecido social, multiplicam-se tambm os pontos de antagonismo que precisam de ser defendidos pela fora. medida que o Estado recua ou se demite das suas funes sociais, o terreno polariza-se, e a fronteira entre a polcia e os cidados ganha maior ferocidade. Embora seja exagerado dizer que vivemos em estado de excepo, isto , em plena suspenso do Estado de direito, certo que se multiplicam as zonas ou tempos desta suspenso. Pense-se, por exemplo, nas repetidas invocaes de tolerncia zero, nas intervenes policiais de legalidade dbia, no nmerodesproporcionadode polcias chamados a intervir em manifestaes e outros protestos, na presena habitual do Corpo de Interveno, ou na destruio de bens na sequncia do desalojamento de casas ocupadas. Tanta gratuitidade junta de desconfiar. Poderamos dizer: na verdade, este arreganhar de dentes nada tem de gratuito. Todos estes fenmenos so demonstraes de fora, com propsitos dissuasores bem claros. Nessa medida, estaro longe do suprfluo que o termo gratuito encerra. Poderemos lembrar, a este propsito, as clebres palavras de Nixon, que avisava os inimigos dos Estados Unidos que os americanos eram loucos e imprevisveis, com uma fora destruidora extraordinria nas nossas mos. A gratuitidade aqui, na forma de um corte ou suspenso na esperada proporcionalidade do uso da fora, uma forma de eficcia. Mas no quer isso dizer, uma vez mais, que se apaga o potencial interpretativo da noo de gratuitidade. Se a violncia, por oposio violncia gratuita, de tal modo constitutiva do que nos rodeia que ganha foros de naturalidade, de tal modo presente que se torna imperceptvel enquanto violncia, a gratuitidade assinala a incapacidade corrente de manter as pessoas no seu lugar por via de mecanismos de controlo mais subtis e subterrneos. Iluminam-se assim os vasos comunicantes entre os cordes policiais e o entranado de explorao e dominao que compe a violncia sistmica do capitalismo tambm ele cada vez mais visvel. A gratuitidade da violncia policial, enquanto desvio da norma, mostra-nos, justamente, que a rgua por onde se media a justa medida se quebrou. A linha que divide entre a norma e o excesso, que sempre foi esquiva, est mais difusa. Extremando um pouco o argumento, poderamos dizer que os dispositivos da ordem, nos dias que correm, no perdem o controlo num momento de exaltao passageira, antes perderam a capacidade de manter o controlo seno pela violncia. Visto de outro ngulo, mas ainda com a lente bifocal da relao entre o til e o gratuito: a violncia gratuita da polcia a forma como se manifesta a injuno da produtividade a imposio do til e do necessrio na hora da sua impossibilidade.H ainda um outro aspecto, porventura o mais importante, que reside no facto de, como prprio em tempos de crise, e quebradas que foram as promessas inscritas no contrato social, se comear a vislumbrar agratuitidade do prprio sistema. Este parece ter-se esvaziado de contedos e aparenta no ter um fim para l da sua prpria sobrevivncia. , nesse sentido, gratuito. E sendo o capitalismo gratuito, bem como cada vez mais difcil apontar para a brutalidade como algo de exterior ou acidental ao sistema, dados os danos visveis e recorrentes que causa, a sua violncia , precisamente, gratuita. Isto ajuda a entender a dificuldade em manter as pessoas no stio, trabalho que pertence ao sistema como um todo, e s em ltima instncia polcia. A crise actual no apenas financeira, mas de reproduo social. So cada vez mais os que se desencontram com o lugar que supostamente deviam ocupar: o de trabalhadores, teis, ou o de cidados, responsveis. Quer voluntariamente quer empurrados, h muitos que no servem nem rendem: so suprfluos, gratuitos. tambm dentro deste quadro que devemos entender o modo como a acusao de gratuitidade lanada a tudo aquilo que classificado como puro vandalismo, exaltao sem contedo ou raiva inconsequente (a violncia no seu estado de natureza, para usar um termo hobbesiano). A expresso violncia gratuita vai de par com a criminalizao do protesto, que o mesmo que dizer, com o seu afastamento do terreno poltico. Se extrairmos um gesto de luta ao contexto e razes que o enquadram, ou se essas razes so tais que a razo do sistema as desconhece, este surgir forosamente como gratuito. O mesmo dizer que a narrativa hegemnica, que se define precisamente por abafar o espao de explicaes que no as suas, detm o poder de declarar a gratuitidade, ou no, de um gesto. A causalidade no simplesmente abolida, mas diferida: veja-se o exemplo dos motins de Londres (Vero de 2011), de onde, a par do pasmo e susto, brotou um ramalhete de especialistas dedicados a dissecar as razes fundas do problema. E, no entanto, no meio de tanta explicao, restava algo de opaco: aquele algo que est a mais, aquilo que o rol de razes no cobre. A gratuitidade comea, precisamente, nesse ponto em que o fio de causa e efeito se rompe. A explicao dos explicadores no explica, procura apenas preencher o lugar vago da falta de explicao. Do encontro destes vrios elementos crise financeira e econmica, crise de reproduo social, crise de legitimao tem resultado um ntido aumento e generalizao do descontentamento. Neste contexto, um dos principais problemas parece residir no facto de ser cada vez mais difcil catalogar e identificar os arruaceiros, isolando-os do cidado comum. Alm disso, e apesar da criminalizao do protesto, tambm cada vez mais difcil colar o rtulo de violncia a aces como a ocupao ou a reactivao de edifcios deixados ao abandono. E, no entanto, apesar da natureza genericamente pacfica das manifestaes, bem como de outros modos de resistncia, o espectro de hostes desordeiras, capazes de transformar a cidade num palco de violncia gratuita, constantemente invocado. Arriscaria dizer que tal pouco tem a ver com a violncia. A violncia , afinal, a parte da gratuitidade que a polcia melhor entende. Prende-se, isso sim, com um espectro mais lato. Esse espectro o de uma gratuitidade mais vasta: um terreno que escape s definies existentes de utilidade ou clculos de custo/benefcio, a no ocupao de um lugar reconhecido na topografia poltica corrente, o exerccio de uma liberdade que no seja um mero intervalo na injuno de produtividade.Face a tudo isto, e reconhecendo que os problemas da luta contra o estado das coisas so em grande medida problemas muito materiais, que nada tm de gratuito o que comer, onde ficar, como partilhar, como exercer a igualdade , julgo que devemos aceitar e at cultivar a gratuitidade de que somos acusados. que no somos de todo estranhos no-gratuitidade a violncia disciplinada do trabalho, a rosca moda da cidadania responsvel, a negociao paciente com as instituies. Conhecemo-la, quando muito, bem demais. A no-gratuitidade foi-nos de tal modo martelada que nos tornmos brutos, insensveis aos seus chamamentos e sua ideia de progresso. Quando podemos, sempre que podemos, tomamos distncia e distramo-nos dos seus propsitos. Podemos at dizer que, para l de umaesterilidade, camos numa forma deimbecilidade, se o imbecil o que no percebe. Dispersmo-nos, e desperdimos os nossos talentos. Esquecemo-nos at, pelo caminho, de nos manifestarmos como deve ser. E assim pusemos, aparentemente, o p fora da poltica, tal como as suas fronteiras so definidas. Que caminho se abre ento? No dispomos de um trilho ou um enredo que possa transportar um Ns estvel de A a B, de projectar um curso, de colonizar o futuro. Mas na gratuitidade algo se produz, algo se organiza, algo se constri. Algo para o qual ainda no h nome. A gratuitidade no uma bandeira, um programa ou um fim em si mesmo, mas , precisamente, o nome para essa ausncia de nome. No quer dizer que apenas uma roda livre, uma espcie de mquina de movimento perptuo. Ou seja, no uma celebrao da inconsequncia, da esterilidade, da falta de futuro. o lugar disponvel, cheio de contradies e dificuldades, para o nosso desencontro com as definies existentes do til e do necessrio. Enquanto esperamos que o termo gratuito perca o seu sentido, ou pelo menos a sua fora coerciva, o gratuito pode ser a designao do terreno instvel de um trabalho outro, paciente, continuado. A nossa oficina este fruto estranho das nossas circunstncias, mas que no decorre delas ainda um amontoado de peas soltas e de utilidade duvidosa. No sabemos o que nela se produz. Esperamos que no produza cidados nem trabalhadores, e que no reproduza os sentidos ajustados a esses papis, ou os sentidos que hoje moram nas palavras. A gratuitidade assim um lugar o cho dos muitos lugares de disponibilidade para desvios do destino anunciado. Por agora, o trabalho ser sobretudo o de uma remoo dos fios que sustentam a ordem que nos enreda, e a ns com ela. A verdadeira violncia da gratuitidade, a sua maior e paradoxal utilidade, seria a de ir minando o ciclo de violncia sistmica, onde quer que ele opere. Para isso, falta-nos porventura um maior hbito de ligeireza, uma prtica, livre mas sustentada, de uma imensa e frgil gratuitidade colectiva.O presente artigo o terceiro de trs artigos inicialmente publicados no dossier Violncia do n. 3 da revista Imprpria. Editada pelo coletivo portugusUnipop, a Imprpria uma publicao em papel dedicada pesquisa e reflexo na rea do pensamento crtico.Etiquetas:Represso_e_liberdades