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Violência: que futuro para a humanidade?

Violência - que futuro para a humanidade · — Aí tens! — disse ao amigo. — É assim que nascem as guerras entre os homens. A conclusão podes tirá-la tu mesmo! ... no rio

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Violência:que

futuro para a

humanidade?

Índice

Enquanto........................................................................................................................... 1

As balas ............................................................................................................................ 3

O pássaro e a guerra.......................................................................................................... 1

Ynari: A menina das cinco tranças ................................................................................... 3

A estrela de Erika ........................................................................................................... 23

Os conquistadores........................................................................................................... 27

Violência «com sentido» e violência «gratuita»............................................................. 29

A guerra contra as crianças............................................................................................. 37

As armas engordam as economias.................................................................................. 51

A bomba está entre nós................................................................................................... 53

Um mundo perigoso ....................................................................................................... 73

O rito da guerra e a psique do guerreiro ......................................................................... 75

MyLai: uma análise da maldade em grupo..................................................................... 79

Quem luta perde sempre (conto indiano) ....................................................................... 91

Duas cabras numa ponte (conto russo) ........................................................................... 93

Tentando alcançar a lua (conto tibetano)........................................................................ 95

Um homem sem cabeça (conto argelino) ....................................................................... 97

Força (conto da África Ocidental) .................................................................................. 99

A guerra entre as galinholas e as baleias (conto das Ilhas Marshall) ........................... 103

O cão preto (conto indiano) .......................................................................................... 109

Diálogo e respeito mútuo.............................................................................................. 113

Sementes de violência .................................................................................................. 115

Para uma cultura da não-violência................................................................................ 121

1

Enquanto

ENQUANTO

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio

e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé

para ver como é;

enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas

e correr pelos interstícios das pedras,

pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;

enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,

órfãs de pais e de mães,

andarem acossadas pelas ruas

como matilhas de cães;

enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto

com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,

num silêncio de espanto

rasgado pelo grito da sereia estridente;

enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio

cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas

amassando na mesma lama de extermínio

os ossos dos homens e as traves das suas casas;

enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,

enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,

o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.

António Gedeão

Obra Poética Lisboa, Ed. João Sá Couto, 2001

3

As balas

José Fanha (org.) DE PALAVRA EM PUNHO

Porto, Campo das Letras, 2004

AS BALAS

Dá o Outono as uvas e o vinho

Dos olivais o azeite nos é dado

Dá a cama e a mesa o verde pinho

As balas dão o sangue derramado

Dá a chuva o Inverno criador

Às sementes dá sulcos o arado

No lar a lenha em chama dá calor

As balas dão o sangue derramado

Dá a Primavera o campo colorido

Glória e coroa do mundo renovado

Aos corações dá amor renascido

As balas dão o sangue derramado

Dá o sol as searas pelo Verão

O fermento ao trigo amassado

No esbraseado forno dá o pão

As balas dão o sangue derramado

Dá cada dia ao homem novo alento

De conquistar o bem que lhe é negado

Dá a conquista um puro sentimento

As balas dão o sangue derramado

Que as balas só dão sangue derramado

Só roubo e fome e sangue derramado

Só ruína e peste e sangue derramado

Só crime e morte e sangue derramado.

Manuel da Fonseca

1

O pássaro e a guerra

Nesta fábula dos Legas (do Zaire), um pássaro explica-nos como são absurdas as guerras dos homens.

Ai se os homens lhe dessem ouvidos…

Kansisi é um pássaro branco com as asas negras e faz o ninho nos bananais em redor

das aldeias. Testemunha da vida quotidiana das pessoas, sabe muita coisa sobre o

comportamento dos homens.

Por isso, um dia, o seu amigo Monkonia, pássaro que frequenta pouco estes sítios, veio

colocar-lhe um problema que há muito o apoquentava:

— Porque é que os homens fazem a guerra?

Kansisi deu uma gargalhada. Mas o amigo voltou a insistir:

— Os homens dizem que são inteligentes e racionais; como é que não conseguem,

então, estar de acordo? Não há ninguém que cometa tantas asneiras como eles.

— Por diversos motivos — respondeu Kansisi. — A avidez, a inveja, a vingança levam-

-nos a pegar em armas uns contra os outros. Guerreiam-se até por coisas banais, sem pensar

nas consequências. Anda comigo, que eu mostro-te um exemplo concreto.

Voaram juntos até à aldeia vizinha. Monkonia poisou numa folha de bananeira, de onde

2

podia observar tudo o que acontecia.

Era meio-dia, e o sol queimava. A aldeia estava deserta, parecia adormecida. Só uma

criança pequena brincava no meio do pó, junto de alguns potes de barro ainda frescos, a secar

ao sol antes de serem cozidos no forno.

Kansisi poisou num desses potes. A criança viu-o e correu para o espantar com um pau.

O pássaro voou para mais longe e a criança acabou por bater no pote, que rolou no chão, com

uma pequena mossa. Ao ouvir o barulho, a dona dos potes saiu cá para fora e deu duas

valentes chapadas na criança. Ouvindo a criança a chorar, a mãe agarrou num ramo de árvore e

deu com ele na mulher, que gritou por socorro. O marido dela saiu de casa com uma faca, e a

mãe da criança fugiu chamando pelo marido. Ouvindo esta barulheira toda, mais homens e

mulheres saíram de casa gritando e brandindo bastões, sachos e facas. Voavam insultos e

ameaças de todos os lados. Dez minutos mais tarde, a aldeia estava em pé de guerra: o clã da

dona dos potes contra o clã da outra mulher. Ninguém fazia ideia do motivo que causara esta

situação e nem queria saber nem pensar nas consequências do conflito. A briga durou o tempo

suficiente para provocar danos irreparáveis; houve mesmo mortos e feridos.

Entretanto, Kansisi, regressando para junto do amigo, contemplava com satisfação o

desenvolvimento da peleja.

— Aí tens! — disse ao amigo. — É assim que nascem as guerras entre os homens. A

conclusão podes tirá-la tu mesmo!

Ela está bem expressa em dois provérbios dos Lega:

O pássaro Kansisi provoca a guerra, mas fica em paz pousado na sua folha.

O estulto entra na rixa sem medir as causas nem os efeitos.

Além-Mar Abril 2004

3

Ynari A menina das cinco tranças

Era uma vez uma menina que tinha cinco tranças lindas e se chamava Ynari. Ela gostava

muito de passear perto da sua aldeia, ver o campo, ouvir os passarinhos, e sentar-se junto à

margem do rio.

Certa tarde, já o Sol se punha, Ynari ouviu um barulho. Não eram os peixes a saltar na

água, não era o cágado que às vezes lhe fazia companhia, nem era um passarinho verde. Do

capim alto saiu um homem muito pequenino com um sorriso muito grande. E embora ele não

fosse do tamanho dos homens da aldeia de Ynari, ela não se assustou.

O homem muito pequenino andava devagarinho e devagarinho se aproximou.

— Olá! — cumprimentou.

— Olá — respondeu Ynari, receando que estivesse a falar alto demais para o tamanho

do ouvido do homem muito pequenino.

— Desculpa, mas não sei o teu nome...

— Eu também não sei o meu nome... — desculpou-se o homem muito pequenino.

— Mas chamam-me homem pequenino.

— Ah, está bem... — sorriu Ynari, enquanto se deitava na relva para ficar mais perto

dele. — Eu tenho um nome só, quer dizer, uma só palavra: chamo-me Ynari.

— Ynari é um nome muito bonito — o homem sentou-se, ficando, assim, ainda mais

pequeno.

— Posso fazer uma pergunta, homem muito pequenino?

— Podes fazer muitas perguntas.

— De onde vens?

— Venho da minha aldeia, que fica mais para cima, junto à nascente do rio.

— E lá, na tua aldeia, são todos pequeninos?

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— Sim, somos todos mais pequenos que vocês, quer dizer, depende daquilo que

entendemos por «pequeno». Não achas?

— Nunca tinha pensado nisso. Sempre pensei que uma coisa menor fosse uma coisa

pequena...

— Pode não ser assim... Conheces a palavra «coração»?

— Conheço! — sorriu Ynari. — E não é só uma palavra, é isto que bate dentro de nós

— e mostrou no seu peito onde o coração batia.

— Claro, e... O coração é pequeno para ti?

— É... e não é! Cabe tanta coisa lá dentro, o amor, os nossos amigos, a nossa família...

— Vês? — disse o homem mais pequeno que ela. — Às vezes uma coisa pequenina

pode ser tão grande...

Os dois ficaram por um tempo calados, olhando o Sol que, do outro lado do rio, quase

já tinha desaparecido. Assim, tão amarelada que estava a tarde, parecia que o Sol se ia afogar

no rio e que os peixes, saltando, se queimavam nos seus raios avermelhados. Estiveram algum

tempo assim, até que Ynari começou a brincar com as suas tranças: eram cinco tranças lindas,

negras, compridas. A menina tinha olhos enormes que brilhavam muito e lábios carnudos

muito bonitos.

— E tu, de onde vens? — perguntou o homem mais pequeno que Ynari.

— Eu venho daquela aldeia ali — apontou a menina na direcção das cubatas. — Vivo

ali com a minha mãe, o meu pai, a minha avó e o meu povo.

— E quem te faz as tranças?

— Ninguém me faz estas tranças, porque elas não se desfazem... A minha avó diz que

eu já nasci com as tranças e que um dia vou saber porquê. Eu gosto muito de brincar com as

minhas tranças.

Levantaram-se, os dois, e caminharam junto ao rio. Agora o homem mais pequenino

que Ynari já não lhe parecia tão pequenino, nem era estranho caminhar ao seu lado, embora

ele fosse muito mais baixo do que a menina. De vez em quando, Ynari afastava os capins mais

altos para que o homem mais pequeno pudesse caminhar livremente.

— Não tens medo dos bichos? — ela perguntou.

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— Não. Os bichos não fazem mal nenhum... E mesmo a palavra «medo» pode ser vivida

de várias maneiras.

— Mas quando estás perto de uma palanca negra gigante, tens medo, ou não?

— Sabes, Ynari, nunca estive muito perto de uma palanca negra gigante, embora já a

tenha visto muitas vezes. E tu?

— Eu só a vejo de longe.

— A palanca negra gigante correu até perto de ti, fez-te mal?

— Não, nunca.

— Vês... não precisas de usar a palavra «medo».

— Também acho... — disse Ynari, dando a mão ao homem simplesmente pequeno.

Já era mesmo de noite. O céu não tinha nuvens nenhumas e estava cheio de estrelas para

se contar. Os dois olharam o céu, que era escuro e brilhante ao mesmo tempo.

— Olha tantas estrelas...

— Estou a olhar — disse o homem simplesmente pequeno.

— Parece que dançam! — Ynari sorria de contente.

— É verdade... parece mesmo. Deve ser altura de usarmos a palavra «admiração», não

achas? — sorriu o homem simplesmente pequeno.

— Acho, sim... Mas, olha, tenho que ir.

— Se tens que ir, tens que ir.

— Amanhã posso ver-te? — perguntou Ynari.

— Podes. Amanhã estarei ali, no mesmo sítio onde hoje nos encontrámos, junto ao rio,

ao nascer do Sol.

— Amanhã podemos brincar com mais palavras?

— Claro. Podemos sempre brincar com as palavras...! — sorriu o homem que já não

parecia tão pequenino.

— Bons sonhos — despediu-se Ynari, a correr. — Até amanhã.

— Até amanhã. Bons sonhos para ti também.

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Ynari voltou a correr para a sua aldeia e decidiu não dizer a ninguém que tinha

encontrado um homem que era pequenino mas que não era tão pequenino assim. Os

caçadores tinham regressado, e o povo estava à volta da fogueira, contente com a caçada, de

modo que ninguém lhe ia ralhar por chegar tarde. Ynari não gostava de ver os olongos

mortos, embora a sua avó lhe tivesse explicado que os homens da sua aldeia só caçavam para

comer.

Já deitada, a menina das cinco tranças sentiu que a avó se aproximava. A avó, que se

mexia devagarinho porque era muito velhinha (e que também estava a ficar pequenininha

embora não tão pequenininha como o homem que já não lhe parecia tão pequenino), veio

deitar-se ao pé dela.

— Estás triste por causa dos olongos? — a avó perguntou.

— Não… Hoje o meu coração não ficou triste. Hoje… — e Ynari quase revelou o seu

segredo.

— Hoje o quê? — perguntou a avó.

— Nada, avó… Não te posso contar ainda. Mas hoje foi um dia muito especial para

mim — disse Ynari, deu um beijinho à avó e adormeceu.

No dia seguinte, muito cedo, mesmo antes de os galos cantarem, Ynari afastou-se da

aldeia em direcção ao rio. Sentou-se e ouviu ruídos nos capins altos.

O homem que agora não lhe parecia tão pequeno apareceu com o mesmo sorriso nos

lábios. Ela virou-se e cumprimentou:

— Bom dia, homem pequenino. Estou contente por te ver.

— Bom dia, menina das cinco tranças… Também o meu coração se alegrou quando te

vi.

— Sabes, esta noite tive um sonho...

— Queres contar-me? — o homem pequeno sentou-se.

— Sonhei que eu e tu estávamos aqui sentados, em frente ao rio. E depois íamos para

muito longe, acho que era a tua aldeia...

— E depois?

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— Depois falávamos com muitos homens... E havia muitas palavras, e crianças... Vi

muitas imagens, não me lembro de tudo.

— Se calhar devemos aqui usar a palavra «confusão»... É isso? — sorriu o homem

menos pequenino...

— É mesmo — desatou a rir Ynari, a menina das cinco tranças.

— É uma grande confusão, sim...

Estavam assim os dois conversando sobre as palavras, a importância que as palavras

tinham na vida de cada um, como as usavam, quando as usavam, com quem as usavam, e que

significados tinham para o coração de cada um deles.

Ynari tentou explicar-lhe que havia palavras que para ela tinham mais do que um

significado ou que lhe provocavam mais do que uma só alegria ou uma só tristeza. A menina

disse que era difícil explicar às crianças da sua idade como gostava de palavras, e o que as

palavras podiam fazer entre duas pessoas.

— Sempre gostei muito das palavras, mesmo daquelas que ainda não conheço, sabes?

Existem palavras que estão no nosso coração e que nunca estiveram na nossa boca... Nunca

sentiste isso? — perguntou finalmente Ynari, depois de tantas e tantas palavras ditas.

O homem mais ou menos pequeno escutou, atento a tudo. E ia começar a falar quando,

do outro lado do rio, lá em cima de uma montanha, um grupo de homens com armas na mão

começou a disparar contra outro grupo de homens com armas na mão.

Dali, daquele lado do rio, Ynari e o homem mais ou menos pequeno podiam ver tudo:

aqueles homens não gostavam uns dos outros, e usavam as armas e as balas e as vidas uns dos

outros para mostrar a sua raiva. Ynari estava assustada mas não se mexeu. O homem mais ou

menos pequeno fechou um bocadinho os olhos, como fazem as pessoas que querem ver

melhor coisas que estão a acontecer muito longe. Depois os tiros pararam e alguns homens

correram em direcção a esta margem do rio. Ynari e o homem mais ou menos pequeno

esconderam-se atrás dos capins altos e agacharam-se sem fazer barulho. Ynari tremia de medo

e os seus olhos mostravam que estava assustada. Apertou com muita força a mão daquele

homem pequeno, e ele disse-lhe baixinho:

— Não tenhas medo, Ynari...

Os homens com armas na mão vieram e puseram-se a dormir. O homem pequeno saiu

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dos capins altos, foi até muito perto deles. Mexia-se de um modo estranho e dizia, baixinho,

umas tantas palavras. De repente, as armas dos homens que estavam a dormir transformaram-

-se em armas de barro.

Ynari espreitava nos capins altos e ficou com a boca toda aberta de espanto: era um

homem pequeno e mágico!

O homem pequeno e mágico voltou devagarinho, pegou na mão de Ynari e caminharam

para norte, sempre junto ao rio. Parecia que não tinham caminhado muito, mas a vegetação

era toda diferente: as flores eram mais amareladas e as árvores mais altas.

Depois afastaram-se do rio e finalmente pararam junto de duas enormes árvores que, lá

bem em cima, se tocavam.

— Para isto... podemos usar as palavras «portão de árvore»? — disse Ynari, enquanto

olhava muito espantada, porque o «portão de árvore» era muito alto e bonito.

— Sim — respondeu o homem pequeno e mágico. — Podes usar essas palavras... Este

é o portão de árvore onde começa a minha aldeia!

— Ah! — exclamou Ynari, cheia de curiosidade.

Entraram na aldeia. O que pisavam era um capim muito curto, muito verde, muito bom

de se pisar porque era suave e estava sempre molhado. Quando olhou com mais cuidado,

Ynari viu muitas árvores pequenas e percebeu que eram as casas dos homens pequenos. Eram,

como ela mesma pensou, «as casas pequenas dos homens pequenos».

Muitos homens e mulheres (todos pequenos) espreitavam das suas árvores pequenas

para olhar a menina que passava de mãos dadas com o homem pequeno e mágico.

— És tu o soba da aldeia? — Ynari perguntou.

— Não — sorriu o homem pequeno e mágico. — Nesta aldeia não temos soba.

Pararam diante de uma árvore muito antiga. O homem pequeno e mágico roçou o

cotovelo no casco da árvore, e ouviram-se passinhos vindos de dentro. Ynari encolheu-se atrás

do homem pequeno e mágico.

— Não tenhas medo, Ynari, quero-te apresentar duas pessoas muito especiais.

Era um velho muito velho com umas barbas muito grandes que quase chegavam ao

chão. Caminhava com a ajuda de um pau torto, muito torto, que era como se fosse a sua

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bengala pequenina.

— Ynari: este é o velho muito velho que inventa as palavras — disse o homem pequeno

e mágico.

O velho olhou para cima, para o rosto belo de Ynari, e sorriu. Bateu três vezes com a

sua bengala pequenina no chão, que era a sua maneira de dizer que estava contente. Atrás dele

apareceu outra velha muito velhinha, só que não tinha barbas, tinha uma trança branca muito

comprida.

— Ynari: esta é a velha muito velha que destrói as palavras — disse o homem pequeno

e mágico.

Logo depois, Ynari foi sendo apresentada a outros homens pequenos e mulheres

pequenas. Enquanto se preparava uma festa pequenina por causa da chegada de Ynari, ela

afastou-se com o homem pequeno e mágico e sentaram-se numa pedra alta, de onde se via

toda a aldeia dos homens pequenos.

— Tu és um mágico, homem pequeno! — disse Ynari, espantada.

— Todos somos mágicos, Ynari. Aqui vais aprender que todos somos mágicos...

— Tu encantas as armas! As armas ficaram de barro — disse, espantada, Ynari. —

Imagino quando eles agora forem disparar! — desatou a rir a menina das cinco tranças.

— Aquelas armas já não disparam. Agora podemos utilizar a palavra «inútil».

— O que é «inútil»? — quis saber Ynari.

— É aquilo que já não é útil, ou seja, que já não serve para nada.

— Ah... Diz-me uma coisa — Ynari olhou para o homem pequeno e mágico. — Todos

somos mesmo mágicos?

— Sim, todos. Mas cada um tem que descobrir a sua magia.

— Eu queria descobrir a minha...

— Já não falta muito — disse o homem pequeno e mágico enquanto se levantava. — Já

não falta muito, Ynari.

Entretanto a festa estava pronta.

Alguns homens pequenos com batuques pequenininhos começaram a tocar, outros

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dançavam, e muitos riam alegremente. Comeram, e Ynari teve que comer muitas vezes porque

a comida era pequenina e ela estava com muita fome.

Depois a música parou.

Todos se sentaram e então Ynari, a menina das cinco tranças, viu que as pessoas

pequenas se afastavam para deixar passar o velho muito velho que inventa as palavras e a velha

muito velha que destrói as palavras.

Ynari sentou-se também e ficou a olhar.

No meio das pessoas havia uma enorme cabaça mas, mesmo assim, claro, era uma cabaça

pequena, onde o velho muito velho e a velha muito velha deitavam ervas e diziam algumas

palavras que ela nunca tinha ouvido nem conseguia sequer entendê-las para as repetir dentro

de si.

Alguns homens pequenos aproximaram-se da velha muito velha que destrói as palavras,

e cada um deles disse, no ouvido dela, uma palavra. A velha muito velha que destrói as

palavras ouviu todas as palavras que os homens pequenos tinham trazido de fora da aldeia e

decidiu que ia destruir algumas delas.

— São palavras que já não servem para nada, e têm que desaparecer... — disse a velha

muito velha que destrói as palavras.

— São palavras «inúteis», é isso? — perguntou baixinho Ynari.

— Sim — confirmou o homem pequeno e mágico.

Depois, outro grupo de homens pequenos aproximou-se da roda de pessoas. O velho

muito velho que inventa palavras pôs novas ervas na cabaça enorme mas pequena, disse

também algumas palavras que Ynari não conseguia lembrar, mesmo assim, estando ainda as

palavras tão frescas. Os homens pequenos punham a mão na cabaça enorme mas pequena,

bebiam um pouco do líquido e aproximavam-se do velho muito velho que inventa palavras.

Ele dizia uma palavra no ouvido de cada um e eles abandonavam a aldeia dos homens

pequeninos para voltarem só no próximo cacimbo.

O homem pequeno e mágico foi chamado ao centro, e apresentou Ynari, a menina das

cinco tranças.

Também Ynari foi chamada ao centro pela velha muito velha e pelo velho muito velho.

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Ela foi devagarinho, caminhando envergonhada por estar tanta gente pequenina a olhar

para ela.

— Agora és tu, Ynari — disse o homem pequeno e mágico

— Vou saber a minha magia? — perguntou Ynari.

O homem pequeno e mágico foi-se sentar, e Ynari, a menina das cinco tranças, ficou

perto da cabaça enorme mas pequena, ouvindo a velha e o velho.

A velha muito velha que destrói as palavras falou assim:

— Cada pessoa sua magia; cada árvore sua raiz. O peixe só sabe nadar na água. O

humbi-humbi preso, nas gaiolas, morre. Coisa de metal que sai metal e fumo, destruímos.

Coisa de metal que vira semente e mata, destruímos. De noite, olhar e respeitar as estrelas.

De dia, olhar e imitar os animais. Primeiro somos crianças, depois somos caçadores, depois

temos crianças, depois ficamos a olhar as crianças. O cágado, sempre lento, é quem chega

primeiro. Mais sabedoria tem a palanca negra gigante que só olha os homens de longe. Falei.

Ynari estava quietinha porque sabia que tinha de ouvir os mais-velhos sem nada dizer,

mas olhava para o homem pequeno e mágico, porque pouco entendia aquelas palavras. Então,

o velho muito velho que inventa as palavras falou assim:

— Cada rio suas águas; cada céu suas nuvens. Peixe dentro da água brinca, fora da água

sofre. O humbi-humbi não conhece gaiola, só respeita nuvem. Coisa de metal que sai fumo,

vira barro. Coisa de metal como semente, vira embondeiro. De noite, as estrelas olhar e uma

só escolher. De dia, os animais caçar, seja, o alimento. Primeiro somos crianças e coração

bate. Depois somos caçados por nosso coração. Depois descobrimos criança no coração.

Depois a criança nos ensina outros caminhos do coração. O cágado também sabe perder. A

palanca negra gigante também sabe fugir. Falei.

Então, juntos, os velhos deitaram ervas na cabaça enorme mas pequena. Olharam

durante algum tempo para Ynari, e finalmente sorriram. Parecia que os dois velhos muito

velhos falavam numa só voz:

— Não temos uma magia para te dar, tens que ser tu a descobrir a tua magia...Todas as

cacimbas nos reunimos aqui, para destruir palavras que já não servem, e inventar algumas que

vão servir para alguma coisa. Nós conhecemos a sombra da tua magia, mas só tu podes saber

onde está a própria magia. Hoje queremos oferecer-te uma palavra e dar-te uma fórmula.

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Ynari sorriu, estava contente, sentiu que todas aquelas palavras lhe eram muito «úteis».

— Leva contigo a palavra «permuta» — disseram-lhe.

— E a fórmula? — perguntou Ynari.

— A fórmula está dentro do teu coração.

Ynari estava muito contente ao sair da aldeia dos homens pequeninos, e não ficou triste

com a despedida. O homem pequeno e mágico acompanhava-a, e voltaram muito depressa

para junto do rio.

— Tenho que ir. Amanhã posso ver-te?

— Sim, claro que podes ver-me. Amanhã cá estarei.

— Bons sonhos para ti.

— Bons sonhos para ti também, menina das cinco tranças.

— Sabes uma coisa? — disse Ynari.

— O que é?

— Os sonhos ajudam-me a viver. Acho que eles também me vão ajudar a descobrir a

minha magia…

Ynari foi a correr em direcção à sua aldeia.

Era o segundo dia a seguir à caçada e ninguém se zangou por ela ter chegado um pouco

mais tarde.

Ynari foi-se deitar e teve um sonho com muitas palavras novas. Durante o sonho, um

velho muito velho que explica o significado das palavras explicou-

-lhe o que queria dizer a palavra «permuta». Ela fez muitas perguntas a esse velho muito

velho, e finalmente pensou que uma permuta era uma troca justa, em que alguém dá alguma

coisa e também recebe algo, pode não ser do mesmo tamanho, ou da mesma cor, ou até do

mesmo sabor... Mas Ynari entendeu que numa permuta é bom que duas pessoas, ou dois

povos, fiquem contentes com o resultado dessa troca.

A menina das cinco tranças acordou muito cedo nesse dia.

Caminhou em direcção ao rio. As suas águas estavam calmas e Ynari pensou que se

calhar os peixes ainda estavam a dormir, e talvez estivessem mesmo a sonhar.

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Dos capins altos saiu, mais uma vez, o homem pequeno e mágico.

— Bom dia, homem pequeno e mágico — sorriu Ynari. — Estou contente por te ver!

— Bom dia, menina das cinco tranças. Eu também estou contente por te ver.

— Sabes, esta noite tive mais um sonho.

— E queres contar-me? — sentou-se o homem pequeno e mágico.

— Sonhei primeiro com um velho muito velho que explica o significado das palavras.

— Sim, sei quem é.

— E ele explicou-me o significado da palavra «permuta»... Mas eu também queria

perguntar coisas sobre a palavra «guerra». Eu até sei como usam essa palavra, mas... para que

serve a palavra «guerra»?

— Sabes, Ynari, embora eu não seja o velho muito velho que explica o significado das

palavras, também eu tenho guardado no meu coração o significado de algumas palavras. E eu

acho que a palavra «guerra» não serve para nada!

— E a palavra «explosão»?

— Eu acho que a palavra «explosão» só devia ser usada noutras situações, não em

situações de guerra.

— Em que situações? — perguntou Ynari, enquanto olhava para o rio, porque os

peixes já saltavam, já tinham acordado.

— Queres pensar comigo? — disse o homem pequeno e mágico.

— Começa tu — pediu Ynari.

— Então, eu acho que a palavra «explosão» podia ser mais utilizada entre as estrelas.

Quando elas chocam, nós aqui no planeta Terra vemos uma coisa linda acontecer no céu...

— Ah!, que bonito — exclamou Ynari. — E uma «explosão de alegria», pode ser?

— Claro! — riu bem alto o homem pequeno e mágico. — E uma «explosão de cores»?

— Também... Também pode ser.

Estiveram um bom tempo em silêncio observando os peixes que nadavam e os pássaros

que voavam. Realmente, quando se sabe ver as coisas simples da vida, descobre-se que o

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mundo é muito, muito bonito.

Ynari, a menina das cinco tranças, deu a mão ao homem pequeno e mágico, e foram

caminhando junto ao rio, sempre para sul.

— Eu acho que já descobri a minha magia — disse a menina. — Podes vir comigo a

cinco aldeias?

— Posso, se quiseres que eu vá contigo...

— Quero. Quero que vejas o que eu vou fazer e que depois vás à tua aldeia dar um

recado meu à velha muito velha que destrói as palavras.

— Está bem — concordou o homem pequeno e mágico.

Ynari tinha aprendido com o homem pequeno que um sítio fica muito perto se

quisermos que esse sítio esteja perto de nós.

Caminharam muito, mas não estavam cansados, e assim chegaram à primeira aldeia.

Ynari bateu as palmas e o soba da aldeia veio falar com eles.

— Bom dia, mais-velho — Ynari cumprimentou. Mas o mais-velho não escutou porque

era surdo. Então Ynari falou com ele por gestos e ele entendeu.

— Bom dia, menina — disse, por gestos, o mais-velho.

— Diz-me uma coisa: esta aldeia está em guerra?

— Sim, estamos em guerra com outra aldeia.

— E porquê?

— Porque nós não ouvimos os passarinhos, e eles ouvem! E nós também queremos

ouvir os passarinhos, as quedas-d'água, a voz das pessoas — gesticulou o mais-velho.

— Já entendi, mas diz-me uma coisa...

— O que é? — perguntou o mais-velho.

— Se eu vos ensinar a ouvir os passarinhos, vocês deixam de estar em guerra?

— Sim. Nós só queremos saber usar a palavra «ouvir».

— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma

fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a palavra «ouvir».

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Assim foi.

Preparou-se a festa, uma cabaça enorme foi posta ao lume, e toda a aldeia foi chamada

para estar presente. Afinal, estava na aldeia uma menina com cinco tranças que ia ensinar a

palavra «ouvir».

Ynari pediu que todos os habitantes da aldeia fizessem uma fila, trouxessem do rio um

bocadinho de água na mão, e pusessem essa água na cabaça. A fogueira já estava acesa, já todos

tinham posto o seu bocadinho de água na cabaça, quando Ynari disse algumas palavras, e

depois ouviu-se a palavra «permuta». Com a catana do mais-velho ela cortou uma trança e

deitou-a na enorme cabaça.

— Agora vão todos dormir... — pediu Ynari.

No dia seguinte, quando acordaram, ainda saía fumo da cabaça enorme, e em cima dela

estavam muitos passarinhos de muitas cores a cantar. O mais-velho da aldeia desatou a dançar

alegremente porque podia ouvir os passarinhos.

Ele quis saber onde estava a menina das cinco tranças, mas ela já não estava na aldeia, e

já não tinha cinco tranças...

A menina das quatro tranças caminhava com o homem pequeno em direcção à segunda

aldeia, que era a aldeia dos que não podiam dizer palavras. Também nesta aldeia se

comunicava com gestos, e assim Ynari percebeu que estas pessoas não conseguiam falar. Mas

Ynari tinha aprendido muitos gestos na aldeia anterior e não teve dificuldade em entender as

pessoas.

Assim, mais uma vez por gestos, começou a falar:

— Chamo-me Ynari e venho ensinar o significado da palavra «falar»...

— Pois... — lamentou-se, por gestos, o mais-velho daquela aldeia. — Nós não

conseguimos «falar», e por isso andamos em guerra com outra aldeia.

— Já entendi. Mas diz-me uma coisa...

— O que é? — perguntou o mais-velho.

— Se eu vos ensinar a «falar», vocês deixam de estar em guerra?

— Sim. Nós só queremos conseguir «falar».

16

— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma

fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a «falar».

— Entendi, mas diz-me uma coisa — gesticulou o mais-velho.

— O que é? — perguntou Ynari.

— Porque usas quatro tranças?

— Porque já só preciso de quatro tranças para usar a palavra «paz» — sorriu a menina

das quatro tranças.

— Ah sim? Então mostra-nos como é.

— Hoje à noite mostro... — disse Ynari, enquanto piscava o olho ao homem pequeno

que estava de mãos dadas com ela.

Assim foi.

Como já tinha acontecido na outra aldeia, todos trouxeram na mão um pouco de água

do rio, todos estiveram junto à fogueira vendo Ynari murmurar as palavras estranhas, a

palavra «permuta», e vendo também a sua quarta trança ser cortada. Depois Ynari pôs a trança

dentro da enorme cabaça e todos foram dormir.

Pela manhã, o mais-velho daquela aldeia desatou aos gritos, imitando os passarinhos e

os galos, muito contente porque já conseguia «falar».

Entretanto, a menina das três tranças e o homem pequeno já estavam a caminho de

outra aldeia: a aldeia daqueles que não viam o rio. Estes podiam «falar» e até «ouvir» mas

andavam na guerra porque queriam «ver». O mais-velho explicou a Ynari que era muito difícil

estar na guerra sem ver nada, que morria muita gente por causa disso, e Ynari explicou-lhe

que a guerra era isso mesmo, uma cegueira que só trazia mortes.

— Mas diz-me uma coisa...

— O que é? — perguntou o mais-velho.

— Se eu vos ensinar a «ver», vocês deixam de estar em guerra?

— Sim. Nós só queremos saber «ver».

— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma

fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a «ver».

17

— Entendi, mas diz-me uma coisa — gesticulou o mais-velho.

— O que é? — perguntou Ynari.

— Por que usas três tranças?

— Porque já só preciso de três tranças para usar a palavra «paz» — sorriu a menina.

— Ah sim? Então mostra-nos como é.

E mais uma vez se reuniu o povo, se acendeu a fogueira com muito cuidado, e Ynari

murmurou as suas palavras estranhas, a palavra «permuta», e cortou a terceira trança. Depois

todos se foram deitar.

No dia seguinte, o mais-velho da aldeia desatou aos gritos logo muito cedo, pois tinha

sido acordado pelos primeiros raios de Sol. Todos alegres, foram olhar as coisas: o rio, os

animais, a cor das flores e do céu, e já não tinham nenhuma razão para usar a palavra «guerra».

Ainda mais para sul a menina e o homem pequeno chegaram à aldeia dos que não

sentiam o cheiro das flores. O mais-velho da aldeia explicou a Ynari que eles nunca tinham

sentido o cheiro das coisas, da fruta, do peixe-seco, da fuba. E que estavam em guerra com

outra aldeia para que pudessem saber o significado da palavra «cheirar».

— Mas diz-me uma coisa...

— O que é? — perguntou o mais-velho.

— Se eu vos ensinar a «cheirar», vocês deixam de estar em guerra?

— Sim. Nós só queremos saber «cheirar».

— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma

fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a «cheirar».

— Entendi, mas diz-me uma coisa — quis saber o mais-velho.

— O que é? — perguntou Ynari.

— Porque usas duas tranças?

— Porque já só preciso de duas tranças para usar a palavra «paz» — sorriu a menina.

— Ah sim? Então mostra-nos como é.

E foi o mesmo de sempre: cabaça enorme, fogueira, todos de água na mão, e Ynari

18

murmurando as palavras estranhas, a palavra «permuta», e cortando mais uma trança.

No dia seguinte, todos naquela aldeia sentiram o cheiro das flores, muitos espirraram

por causa do pó das asas das borboletas, outros brincaram deitados no chão cheirando a relva

ou pequenas flores.

Ynari caminhava de mãos dadas com o homem pequeno e chegaram à quinta aldeia.

Nesta aldeia não sentiam o sabor dos alimentos. Comiam de tudo, mas não conheciam a

diferença entre o doce e o salgado, entre a manga e o maboque, entre a cana-de-açúcar e o

peixe-seco. E só por isso andavam em guerra.

— Bom dia, mais-velho... — Ynari cumprimentou.

— Bom dia, menina de uma trança só — disse o mais-velho.

— Diz-me uma coisa: esta aldeia está em guerra?

— Sim, estamos em guerra com outra aldeia.

— E porquê?

— Porque nós não sabemos o significado da palavra «sabor»! E nós também queremos

experimentar o «sabor» dos alimentos — explicou o mais-velho.

— Já entendi... Mas diz-me uma coisa...

— O que é? — perguntou o mais-velho.

— Se eu vos ensinar a sentir o «sabor», vocês deixam de estar em guerra?

— Sim. Nós só queremos saber usar a palavra «sabor».

— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma

fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a palavra «sabor».

— Mas diz-me uma coisa — quis saber o mais-velho.

— O que é? — perguntou Ynari.

— Porque usas uma trança só?

— Porque já só preciso de uma trança para usar a palavra «paz» — sorriu a menina.

— Ah sim? Então mostra-nos como é.

Era uma aldeia muito grande, e também foi grande a fila que fizeram desde o rio até à

19

cabaça enorme que estava em cima do fogo.

Ynari, a menina que já só tinha uma trança, murmurou as palavras estranhas, disse a

palavra «permuta», e cortou a última trança que tinha. Depois falou para todos:

— Hoje usei a minha última trança. Amanhã de manhã, já podem comer as frutas e

todos os alimentos sabendo o significado da palavra «sabor». Queria pedir-vos uma coisa:

deixem de usar a palavra «guerra». Estive numa aldeia onde ninguém conhecia o significado da

palavra «ver», e andavam em guerra com outra aldeia pensando que isso lhes ia ensinar a «ver».

Mas não, a palavra «guerra» é parecida com a palavra «desaparecer», que é parecida com as

palavras «deixar de viver». A partir de amanhã não procurem mais a palavra «guerra» porque

ela vai deixar de existir... — piscou o olho ao homem pequeno.

Na manhã seguinte, muito cedo, as pessoas da aldeia foram comer, comeram muito, até

de mais, porque queriam conhecer os vários significados da palavra «sabor», que era diferente

se comessem peixe ou carne, banana ou mandioca.

Caminhavam de novo junto ao rio. Ynari, a menina sem tranças, e o homem pequeno

voltaram a sentar-se no mesmo sítio de sempre, onde pela primeira vez se tinham encontrado.

— Sabes, homem pequeno — começou a falar Ynari. — Estou muito contente por ter

descoberto a minha magia.

— Eu também estou contente por ti, Ynari.

— Agora quero pedir-te um favor.

— E qual é?

— Quando chegares à tua aldeia, vai falar com a velha muito velha que destrói as

palavras e diz-lhe que eu mandei por ti uma palavra para ela destruir...

— Queres que ela destrua a palavra «guerra»?

— Sim. Explica-lhe o que vimos e o que ouvimos. Acho que é uma palavra que ela vai

querer destruir.

— Está bem, vou dar o teu recado.

— Olha, tenho que ir. Na minha aldeia já devem estar preocupados. Desta vez

demorámos mesmo muito tempo — sorriu a menina sem tranças.

20

— Está bem — concordou o homem pequeno.

— Acho que está na hora de usarmos a palavra «despedida»...

— Também acho.

— Sabes uma coisa, homem pequeno?

— O que é, Ynari?

— Para mim, a palavra «despedida» tem muito da palavra «encontro» e um bocadinho

também da palavra «saudade».

— Explica-me — disse o homem pequeno enquanto se levantava.

— Não sei explicar muito bem... Mas, desde a primeira vez que te vi, eu senti uma

coisa no meu coração...

— No teu coração?

— Sim, cá dentro, neste coração que é pequenino e que é tão grande... Eu vou contar-

-te um segredo.

— Conta.

— Mas não digas nada ao velho muito velho que inventa as palavras.

— Está bem — sorriu o homem pequeno.

— Eu acho que o meu coração também inventa palavras... No dia em que te vi, logo,

logo, o meu coração inventou para nós a palavra «amizade».

— Eu sei, Ynari, eu também senti o mesmo.

— A sério?

— Sim — disse o homem pequeno. — Agora já sabes...

— Já sei o quê? — perguntou Ynari, a menina sem tranças.

— Assim como há um velho muito velho que inventa as palavras, também o nosso

coração, quando precisa, sabe inventar palavras.

Ynari levantou-se. Já tinham usado a palavra «despedida», agora estavam a usar as

palavras «olhar para o outro». Estiveram assim algum tempo.

— Quando é que nos voltamos a ver? — perguntou Ynari.

21

— Sempre que quisermos.

— Mas tu vives tão longe...

— Há muitas maneiras de se ir muito longe — disse o homem pequeno.

— Diz-me uma.

— Tu sabes...

— Achas que posso apanhar boleia do humbi-humbi?

— É uma ideia, ele é rápido.

— Mas eu sou tão pesada para ele...

— Mas não és pesada para o coração dele — sorriu o homem pequeno.

— Experimenta viajar no coração do humbi-humbi...

— Está bem, está bem — começou a correr Ynari. — Adeus, até qualquer dia!

— Adeus. Estamos juntos. Eu também sei viajar no coração do humbi-humbi.

— Eu sei — disse Ynari. — Agora já sei!

E, como dizem os mais-velhos, foi assim que aconteceu.

Ondjaki Ynari. A menina das cinco tranças

Lisboa, Ed. Caminho, 2004

23

A estrela de Erika

Nota da autora

Em 1995, cinquenta anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, encontrei a

mulher de que fala esta história. O meu marido e eu estávamos sentados na borda

de um passeio em Rothenburg, na Alemanha. Observávamos uns trabalhadores a

limparem as ruínas do telhado da Câmara. Na noite anterior, um tornado tinha-se

abatido sobre esta bonita aldeia medieval. Havia entulho um pouco por todo o

lado. Um velho comerciante disse-nos que os estragos causados por este tornado

se assemelhavam aos da última ofensiva dos Aliados durante a guerra. O

comerciante entrou na sua loja e uma senhora, sentada perto de nós, apresentou-

-se como sendo Erika.

Perguntou-nos se tínhamos vindo fazer turismo naquela região. Quando lhe disse

que vínhamos de Jerusalém, onde passáramos duas semanas a fazer pesquisas,

confessou-nos, com um suspiro, que desejava muito lá ir mas que não tinha

dinheiro para a viagem. Ao ver uma estrela de David pendurada ao seu pescoço,

disse-lhe que, no regresso de Israel, tínhamos passado pelo campo de

concentração de Mauthausen, na Áustria. Erika confessou-nos que, um dia, tinha

tentado visitar o campo de Dachau, mas que não conseguira franquear a porta.

Depois, contou-nos a sua história…

24

Entre 1933 e 1945, seis milhões de homens e mulheres do meu povo foram mortos.

Muitos foram fuzilados. Muitos morreram de fome. Muitos foram incinerados nos fornos ou

asfixiados nas câmaras de gás. Eu escapei.

Nasci em 1944.

Não sei o dia.

Não sei como me chamava ao nascer.

Não sei em que cidade nem em que país nasci.

Não sei se tive irmãos ou irmãs.

O que sei é que, apenas com alguns meses, escapei ao Holocausto.

Imagino muitas vezes como seria a vida dos membros da minha família durante as

últimas semanas que passámos juntos. Imagino o meu pai e a minha mãe, despojados de todos

os seus bens, forçados a abandonar a sua casa, enviados para o gueto.

Talvez depois tenhamos sido expulsos do gueto. De certeza que os meus pais tinham

pressa de deixar o bairro rodeado de arame farpado para onde tinham sido relegados, de

escapar ao tifo, ao excesso de pessoas, à imundície e à fome. Mas teriam alguma ideia do local

para onde estavam a ser enviados? Ter-lhes-iam dito que iam para um local mais acolhedor,

onde teriam comida e trabalho? Terão chegado até eles os rumores sobre os campos da morte?

Pergunto-me o que terão sentido quando os conduziram à estação, juntamente com

centenas de outros judeus. Amontoados num vagão de transporte de animais. De pé, uns

contra os outros, por falta de espaço. Terão entrado em pânico quando ouviram correr os

ferrolhos?

De aldeia em aldeia, o comboio deve ter atravessado paisagens campestres

estranhamente poupadas ao terror. Durante quantos dias ficámos naquele comboio? Quantas

horas os meus pais passaram apertados um contra o outro?

Imagino que a minha mãe devia ter-me bem encostada a ela para me proteger dos maus

cheiros, dos gritos, do medo, que reinavam neste vagão lotado. Tinha de certeza

compreendido que não íamos para um lugar seguro.

Pergunto-me onde estaria exactamente. No meio do vagão? O meu pai estaria junto

dela? Ter-lhe-á dito que fosse corajosa? Terão falado do que iam fazer?

25

Quando teriam tomado aquela decisão? Será que a minha mãe disse “Desculpa.

Desculpa. Desculpa.”? Terá aberto a custo um caminho por entre aquela mole humana até à

janela do vagão? Terá murmurado o meu nome ao embrulhar-me num cobertor bem quente?

Terá coberto a minha cara de beijos e dito que me amava? Terá chorado? Rezado?

Logo que o comboio abrandou, ao atravessar uma aldeia, a minha mãe deve ter

espreitado pela fresta do vagão. Ajudada pelo meu pai, deve ter afastado o arame farpado que

ocultava a abertura. Deve ter esticado os braços para a luz pálida do dia. A única coisa que sei

com certeza foi o que aconteceu a seguir.

A minha mãe atirou-me pela janela do comboio.

Atirou-me para cima de um pequeno quadrado de relva, junto de uma passagem de

nível. Havia pessoas à espera de que o comboio passasse; viram-me cair do vagão de carga. No

caminho que conduzia à morte, a minha mãe lançou-me à vida.

Alguém pegou em mim e levou-me para casa de uma mulher que se ocupou de mim.

Que arriscou a vida por mim. Calculou a minha idade e atribuiu-me uma data de nascimento.

Decidiu que me chamaria Erika. Deu-me um lar. Alimentou-me, vestiu-me, mandou-me à

escola. Fez tudo por mim.

Casei aos vinte e um anos com um homem maravilhoso. Aliviou muita da tristeza que

me assaltava com frequência, percebeu o meu desejo de pertencer a uma família. Tivemos três

filhos, que hoje têm os seus filhos também. No rosto deles, reconheço o meu.

Dizia-se outrora que o meu povo seria um dia tão numeroso como as estrelas do céu.

Entre 1933 e 1945 caíram seis milhões de estrelas do céu. Cada uma delas corresponde a um

membro do meu povo, cuja vida foi rasgada, cuja árvore genealógica foi arrancada.

A minha árvore lançou raízes.

A minha estrela ainda brilha.

Ruth Vander Zee; Roberto Innocenti L’étoile d’Erika

Toulouse, Milan Jeunesse, 2003

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Os conquistadores

Era uma vez um vasto país governado por um General.

Os habitantes acreditavam que o seu modo de vida era o melhor.

Tinham um exército muito forte e dispunham de canhões.

De tempos a tempos, o General reunia o exército e atacava um país vizinho.

“É para o bem deles,”dizia. “Para que possam ser como nós.”

Os outros países resistiam, mas acabavam sempre por ser conquistados.

Com o tempo, o General acabou por dominar todos os países. Todos, excepto um…

Tratava-se de um país tão pequeno que o General nunca se tinha dado ao incómodo de

o invadir. Só que agora era o único que restava. Assim, o General e o seu exército puseram-se

a caminho.

O pequeno país surpreendeu o General.

Não tinha exército nem ofereceu resistência.

As pessoas saudaram os soldados invasores como se fossem convidados bem-vindos.

O General instalou-se na casa mais confortável do país e os soldados ficaram em casa

dos habitantes.

Todas as manhãs, o General levava os soldados para a parada e, depois, escrevia cartas à

mulher e ao filho.

Os soldados falavam com as pessoas, jogavam com elas, escutavam as suas histórias,

cantavam as suas canções e riam-se das suas piadas.

A comida era diferente da deles.

Viam-na a ser preparada e depois comiam-na. Era deliciosa.

Como não tinham mais nada que fazer, ajudavam as pessoas no seu trabalho.

28

Quando o General se apercebeu do que se estava a passar, ficou furioso.

Mandou os soldados para casa e substituiu-os por outros.

Mas os novos soldados comportaram-se como os outros o tinham feito.

O General percebeu que não precisava de um grande exército.

Decidiu regressar a casa e deixar apenas alguns soldados a ocupar o país.

Logo que o General partiu, os soldados penduraram os uniformes e juntaram-se à

população nas tarefas do quotidiano.

O General regressou triunfante a casa, com os soldados a cantarem, como era hábito:

Somos os conquistadores.

Somos os conquistadores.

O General estava contente por ter regressado, embora sentisse que algo mudara.

Os cozinhados cheiravam aos cozinhados do pequeno país.

As pessoas jogavam os jogos do pequeno país.

Até algumas roupas eram iguais às roupas do pequeno país.

Sorriu e pensou: “Ah! Os despojos da guerra.”

Nessa noite, quando foi deitar o filho, o menino pediu-lhe que cantasse para ele.

O General cantou-lhe as únicas canções de que se lembrava.

Eram as canções do pequeno país.

O pequeno país que ele conquistara.

David McKee The Conquerors

London, Anderson Press, 2004

29

Wolfgang Salewski; Peter Lanz A Nova Violência – e como enfrentá-la Lisboa, Ed.Livros do Brasil, 1978

Excertos adaptados

Violência «com sentido» e violência «gratuita»

«O direito do mais forte é a mais forte injustiça»

Marie von Ebner-Eschenbach

Ainda não foi há muito tempo que lemos, na obra mestra da criminologia alemã (Ernst

Seeljg, Lehrbuch der Kriminologie, 2ª Ed. Nürenberg, Düsseldorf, 1951), o seguinte:

Nas cidades europeias, pelo contrário, quase não se dão assaltos à mão armada a

casas de comércio e bancos, enquanto que, na América, essa maneira de agir se

tornou no modo mais generalizado de acção dos bandos dos gangsters (o

Hold-up). Um outro método dos gangsters, disseminado na América, é o rapto de

pessoas com vista ao resgate (o Kidnapping), que veio a transformar-se quase

num novo desporto, principalmente depois do rapto e assassínio do bebé do

grande aviador Lindbergh, o primeiro a atravessar sozinho o Atlântico Norte

(1932).

Aquilo que então era quase inimaginável na Europa, é hoje em dia, na Alemanha, uma

actividade diária, como o demonstram os assaltos a bancos e a tomada de reféns. Os autores

desta nova violência são muitas vezes levados por motivos diferentes dos dos kidnappers; mas

servem-se dos mesmos métodos. A nova violência apanhou-nos de surpresa e temos dificuldade

de a compreender. Chegou aliada a uma brutalidade mais forte do que os delitos até agora

usuais. Basta-nos contemplar a crónica dos últimos anos para verificarmos como as inibições de

ferir outras pessoas ou até de matá-las decresceram constantemente. Observemos alguns

números provenientes da República Federal da Alemanha. Desde 1967 que o crime de roubo

cresceu mais de duzentos por cento, nos casos de assaltos a bancos e estações de correio e ainda

a lojas. A Polícia teve de registar, entre 1972 e 1976, um recrudescimento de mais de sessenta

por cento. Em 1976, na República Federal da Alemanha, foi cometido “um assalto de meia em

meia hora”, num total de 19 466 roubos. Proporcionalmente, a maré de criminosos aumentava

para o dobro do crescimento normal da população. Acções de terror fizeram cem mortos e

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feridos. Em média, anualmente, eram destruídas vinte e uma mil cabinas telefónicas. Só no ano

de 1976 a Polícia registou, nos seus processos, dois mil casos em que pessoas foram feridas com

armas de fogo. Num período de doze meses, lamentaram-se setenta e duas vítimas da fúria de

disparos com armas de fogo.

Estupefactas, as pessoas reagem contra a violência crescente: seiscentos milhões de

marcos são todos os anos empregues na instalação de sistemas de alarme. O número daqueles

que possuem armas de fogo, sem licença para isso, só muito dificilmente pode ser avaliado:

situa-se no campo sombrio dos vinte e cinco a trinta milhões. Porém, o certo é que essas pessoas

que adquiriram esses milhões de pistolas, revólveres ou espingardas, as compraram nalgum

sítio. Há duas possibilidades de chegar a essas armas: pode comprar-se a arma no estrangeiro

(como, segundo alguns cálculos, o fazem, por ano, cinco mil turistas e viajantes em negócios),

ou adquirem-se no mercado negro. No caso da compra no mercado negro, fecha-se o círculo,

porque é grande a possibilidade de que nele se tenha comprado uma arma roubada. Seja como

for, o que se sabe é que em 1876 trocaram de donos 3145 armas de fogo roubadas.

Ao mesmo tempo entra em acção um novo círculo diabólico: a arma, concebida para

assustar, tem de ser experimentada. Vejamos um caso dos últimos tempos. Certa manhã, em

Wetzlar, cidade com cerca de 37 000 habitantes junto do rio Lahn, o dirigente da companhia de

electricidade local conduziu o seu carro para o parque de estacionamento, em frente do seu local

de trabalho. Infelizmente, porém, não levou o carro para o local que lhe estava destinado, mas

para um outro, reservado a um serralheiro da mesma companhia. O presumível atrevimento do

director da companhia enraiveceu de tal modo o serralheiro que, no decorrer da discussão, este

pegou na pistola que sempre trazia consigo, e feriu imediatamente o seu opositor, com quatro

tiros mortais.

A cerca de quinhentos quilómetros de Wetzlar, em Munique, deu-se um caso semelhante

no dia 5 de Fevereiro de 1977. Por volta das dezanove horas e quinze, um empregado do

comércio de 53 anos, Josef B., atravessou a estrada para Pelkoven (esquina da Rua Jakob), em

Hagenbuch, no bairro de Moosach. Atravessou, segundo as regras, pela passadeira, e foi quase

atingido pelo automóvel do mecânico de 29 anos, Rüdiger H.. Furioso, o peão desferiu um

golpe, com um saco de plástico que levava na mão, no guarda-lamas do carro, fazendo-lhe uma

pequena mossa. E continuou o seu caminho, sem se voltar para trás. O outro ouvira a pancada,

parou, desceu e deu a volta ao automóvel. Quando viu que Josef B. se afastava, correu atrás dele

e segurou-o pela manga do casaco, para o obrigar a explicar-se. Josef B. soltou-se-lhe das mãos,

deu alguns passos atrás, tirou uma pistola da algibeira e disparou alguns tiros sobre o condutor

do automóvel. Rüdiger H. ficou gravemente ferido e, alguns dias mais tarde, Josef B. foi preso

pela Polícia. De um momento para o outro, nos dois casos descritos, vê-se que a arma que se

destinava à defesa se transforma numa arma de ataque.

31

Acontecimentos como estes provocam uma outra reacção altamente inquietante: mesmo

até entre os que não estão envolvidos nasce, involuntariamente, o desejo de possuírem uma

arma de fogo, quando chegam à conclusão de que outras pessoas transportam armas. Segue-se a

ideia de que «também tenho de possuir uma arma, para poder defender-me de eventuais

agressores». É por isso que se encontram constantemente passageiros de avião que procuram

levar armas consigo para sua própria defesa. Só no aeroporto de Düsseldorf a Polícia

surpreendeu, de Janeiro a Setembro de 1977, noventa e três homens e mulheres que

transportavam, nas suas bagagens, armas letais. Em Hamburgo, no mesmo espaço de tempo,

foram contados vinte e seis passageiros; em Colónia, dez; em Berlim, quatro e em Hannover,

três. Ao todo, os passageiros procuraram levar consigo, num ano, cerca de vinte mil armas e

objectos contundentes, como facas, machados, bengalas de ferro, e até explosivos; isto apenas

em aeroportos da Alemanha Federal, antes do início da viagem.

A necessidade de desmontar a violência, enquanto se encosta os outros à parede, provoca

uma reacção contrária e faz com que a violência entre numa escalada. O voluntário ou

involuntário desrespeito das leis demonstrado pelos assaltantes parece justificar a própria

indiferença que os restantes cidadãos manifestam. Desconfia-se da protecção do Estado, e todos

querem agir por conta própria. Isto é, para uma pessoa se defender do perigo, torna-se perigosa

e coloca-se, assim, ainda mais em perigo.

De como as crianças e os jovens se vêem a si próprios

Na República Federal da Alemanha a revista juvenil Bravo inquiriu os seus leitores

acerca do tema da violência. 120 000 jovens, rapazes e raparigas, responderam, no Outono de

1977, a um questionário cujas trinta perguntas foram examinadas por um computador. E aí se

demonstrou quão forte é o impulso da juventude para a violência. À pergunta «Podeis imaginar

ter de empregar a violência física contra outras pessoas?», só responderam com «não» 13,5 por

cento de raparigas e 8 por cento de rapazes. Todos os outros confessaram exercer a violência de

vez em quando, fosse por necessidade de defesa, fosse porque tivessem sido provocados por

outros, por terem bebido, por não aceitarem a opinião política de outrem ou, simplesmente

«porque sou agressivo» (foi assim que se confessaram 4 por cento de raparigas e quase 5 por

cento de rapazes). Os jovens, assim o demonstra o inquérito, não dirigem a sua violência apenas

contra os outros, mas até contra si próprios. Uma em cada duas raparigas já pensara uma ou

mais vezes no suicídio: 4,3 por cento das raparigas já tinha tentado matar-se; 0,9 por cento das

raparigas e 0,9 por cento dos rapazes já tinham cometido várias tentativas de suicídio. E de novo

nos aparece o grupo etário, entre os 18 e os 20 anos, como especialmente ameaçado. 17,7 por

cento das raparigas nessa idade confessaram já terem atentado contra a vida.

32

Nesse questionário também se demonstra que os rapazes são mais predispostos a

resolverem os seus problemas por intermédio da agressividade (55,3 por cento dos rapazes

responderam nunca na vida terem pensado em suicídio; e é por isso que mais de metade dos

rapazes reage com violência contra os outros que os provocam), enquanto as raparigas preferem

fugir de casa. Isto também pode ser confirmado pelas estatísticas dos departamentos juvenis da

República Federal. Todos os anos desaparecem, na Alemanha, vinte mil raparigas e dez mil

rapazes. A maior parte deles são de novo apanhados, mas tentam também novamente fugir de

casa. A maior parte das raparigas que foge de casa tem uma idade compreendida entre os 12 e

os 18 anos.

Os erros da nossa sociedade

Evidentemente que é uma reacção completamente falsa responder a essa tendência

unilateral com um cego fatalismo ou com medidas draconianas. Não só porque não se domina o

seu desenvolvimento, mas também porque ultrapassa as origens do crescimento da

criminalidade juvenil e os fenómenos da nova violência.

Já não falamos uns com os outros

Tem de se enfrentar a nova violência com novos métodos e novas soluções. O que

significa que devemos desistir dos princípios de vingança e de ameaça sobre os que atentam

contra a lei, pensando, sim, em novos métodos para solucionar o problema. Para encontrá-los,

teremos de descobrir qual a evolução errada que se processa na nossa sociedade e como esta

está na base da nova violência.

A Münchner Abendzeitung informou, em Dezembro de 1977, num artigo de duas colunas,

com o título «O silêncio das vítimas enfurece os malfeitores», o seguinte:

Um caso horrendo de brutalidade e perversidade teve lugar no domingo à noite no centro

de Munique. Quatro jovens arruaceiros assaltaram três rapazitos de quinze e dezasseis anos,

atiraram-nos ao chão e esfaquearam-nos. As vítimas eram surdos-mudos. Os três rapazes

voltavam de um passeio de domingo e dirigiam-se para o seu Lar nas proximidades da Praça

Goethe. Pouco depois das vinte e duas horas, atravessaram o velho Jardim Botânico na Rua

Elisa, quando, de súbito, surgiram “dos arbustos, quatro jovens vestidos à maneira dos rockers,

que lhes cortaram o caminho e lhes dirigiram insultos.” Dado que os surdos-mudos não podiam

obviamente compreendê-los, tentaram a fuga, mas foram depressa agarrados pelos díscolos.

Presumivelmente os malfeitores interpretaram como cobardia o silêncio dos atacados, dado que

os seus insultos começaram a ser cada vez mais contundentes, descambando finalmente em

pancada. Quando os assaltados tentaram defender-se, brilharam as facas. E de facas em riste, os

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malfeitores atiraram-se às suas vítimas, ferindo um na mão, enquanto ao outro lhe cortaram a

pele das costas, de alto a baixo. Foi devido a ter-se aproximado gente que os assaltantes

interromperam a sua agressão. Desapareceram na escuridão.

Embora a Polícia tenha iniciado imediatamente buscas, os malfeitores conseguiram fugir

sem deixar rasto. O autor que escreveu este artigo enganou-se num ponto decisivo. Os

malandros que atacaram os surdos-mudos não consideraram o seu mutismo como cobardia mas

como agressividade. A essa presumível agressividade reagiram como lhes tinha sido inculcado:

com violência! O caso dos surdos-mudos mostra-nos, com toda a clareza, quais as formas que a

agressividade pode tomar. Porque quem não comunica também procede, aos olhos dos outros,

em certas circunstâncias, com agressividade. Uma discussão que não podia ser resolvida pelos

surdos-mudos de outra maneira que não fosse através do mutismo e de fuga, é muitas vezes

resolvida pelos pais, todos os dias, perante os filhos, da mesmíssima maneira. Aqueles calam-se

e afastam-se. As crianças sentem isso como um acto de agressividade, o que é compreensível

porque também nós nos sentimos provocados quando, numa discussão factual, deparamos, de

súbito, com o mutismo do nosso interlocutor. Quem tiver a intenção de discutir com alguém,

espera compreensão e resposta. Se estas são negadas, cresce a agressividade.

Os pais têm aparentemente bons motivos para provocar os filhos através da desatenção e

da falta de diálogo. Têm de ir para o trabalho, têm de ganhar dinheiro, estão cansados. À

pergunta: “Por que motivo têm de ir trabalhar”, aparece prontamente uma resposta muito lógica

e natural: “O nosso filho deverá ter um dia uma vida muito melhor do que nós.” Mas,

analisando com maior acuidade, isto é uma grande asneira: na medida em que os pais não

dedicam aos filhos tempo para lhes prestar atenção, negam-lhes o caminho para um futuro feliz.

E não importa que queiram suprir essa falta com meios materiais. O fenómeno de já não

falarmos uns com os outros não se limita a pais e filhos. É um mal do nosso tempo e um pesado

erro da nossa sociedade.

Já não nos ouvimos uns aos outros

De Mark Twain, conta-se a seguinte história verídica: o escritor e satírico americano

chegou, certa vez, demasiado tarde a um jantar para o qual tinha sido convidado. Quando a dona

da casa, distraída pela organização do banquete e pelo grupo de ilustres convidados, lhe deu as

boas-vindas, Twain pediu desculpa pelo seu atraso com as seguintes palavras: “Tem de

desculpar-me por ter chegado só agora, minha querida senhora, mas tive necessidade de matar a

minha velha tia antes de vir.” E a dona da casa respondeu-lhe: “Claro que lhe perdoo, caro

mestre, isso por vezes acontece.” Assim, superficialmente, a história pode provocar o riso. Mas,

se pensarmos um pouco, podemos ser invadidos pelo medo. O que há cem anos Mark Twain

quis tratar como uma graça tornou-se hoje numa triste verdade. Trocam-se argumentos sem, de

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facto, se entrar em contacto uns com os outros. Falamos, sem dúvida, mais do que outrora. Os

meios técnicos de comunicação tornam possível as pessoas falarem umas com as outras, em

quase todos os pontos do mundo. Com o auxílio de cabos submarinos e satélites transpõem-se

os oceanos. No entanto, compreendemo-nos cada vez menos.

Falar traz a cura do homem

Os nossos próximos conseguem ser muito mais do que um mero espelho de nós mesmos,

da nossa alma. Permitem também a cura espiritual. Para explicar melhor, basta-nos apontar um

exemplo muito simples. Um terapeuta que procure tratar um comportamento humano errado,

não o faz que não seja através da fala. Fala em privado com o seu paciente e procura desenterrar

as raízes dos seus problemas. Ou, então, vários pacientes tentam, entre si, auxiliar-se nas

terapias de grupo, sob a orientação de um terapeuta. Possivelmente, embora cada homem saiba,

enquanto adulto, o significado de uma conversa, a verdade é que não se deixa convencer por ela.

Porque não falamos “directamente” do coração.

Pelo contrário, há cada vez mais pessoas que sentem o desejo de se isolar, de viverem

numa ilha deserta, para se sentirem felizes, sem os seus entes mais próximos. Estes sonhos de

muitos milhares, se não milhões de pessoas, uma vez realizados, transformam-se numa pura

desilusão. O isolamento, a solidão egoísta, não são uma finalidade digna de ser procurada pelo

homem, mas sim um castigo. Os tribunais aplicam ainda hoje uma forma especial de castigo: o

isolamento prisional. Ao delinquente, não só é negado o acesso ao trabalho, mas também o de

conviver com outras pessoas. Aquilo que, por lei, é reconhecido em diversos países como um

castigo draconiano, é o que, hoje em dia, já costumamos fazer em liberdade. Retiramo-nos para

dentro de nós próprios, e privamo-nos, assim, da possibilidade de, em conversa com outras

pessoas, nos libertarmos de um enorme peso sentimental. À pessoa madura é possível, mas só

até um certo grau, substituir a falta de comunicação com as outras pessoas. Pode fazê-lo por

meios especiais, dentro de uma profissão, ou através de um extraordinário envolvimento social.

Nas crianças e nos jovens, tudo é diferente. Sentem a contradição entre o sentimento e a

possibilidade de lhe dar expressão, e sentem-no com muito mais força. Evidentemente que,

devido à sua experiência e ao convívio com outras pessoas, se conseguem adaptar uns aos

outros. No entanto, o mal-estar perdura. As consequências estão à vista: desvios de

comportamento, quer sejam o roer das unhas e “descuidos” na cama, gaguez, emagrecimento

inexplicável, más digestões e enfermidades do estômago. Uma criança, entre cinco, na

República Federal, pode ser incluída neste caso. Este panorama foi reconhecido por diversos

psicólogos e atesta já graves desvios de comportamento. Uma criança, entre dez que frequentam

a escola, tem dificuldade de contactos, é surpreendida em mentiras, ou em pequenos roubos.

Completamente isentos de defeitos psíquicos, assim o calcularam os especialistas, só se

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encontram cinquenta por cento dos alunos da República Federal. Da impossibilidade de

comunicar sentimentos podem, porém, nascer: a fúria súbita, a raiva, a agressividade – marcas

infantis que apontam veementemente para um futuro desvio para a violência.

Os pais não ajudam as crianças a encontrar a sua identidade

No melhor dos casos, a busca da identidade não se opera sem sofrimento. Por exemplo,

um rapaz de 15 anos quer “medir-se” com o pai. Mas, nessa idade, o rapaz é ainda muito fraco

para entrar em disputas com o pai. O que, na verdade, sente, compele-o a um processo de

construção de uma imagem inimiga, cujas piores características exagera. Para o rapaz, o pai já

não é a autoridade, aquele sobre o qual não teve dúvidas durante os primeiros anos; agora é o

inimigo. O super-homem do passado manifesta falhas que são alvo de crítica. Na realidade,

pode suster-se essa evolução, na medida em que se fale abertamente, sobretudo com a criança

em crescimento. Porém, como os pais não dedicam tempo suficiente à família, os erros

inevitáveis crescem desmesuradamente, aumentando as possibilidades de a criança só ver erros

no seu educador. Erros que já não conseguem ser corrigidos na imagem padrão. A isto junta-se

ainda o facto de, para os crescidos, muito do que é reconhecido negativamente pelas crianças

não ser considerado acção incorrecta. Quando os pais não têm tempo para a família, há

motivações que são consideradas pertinentes pela sociedade que pode, inclusivamente, louvá-

-los.

Analisemos dois casos extremos. Num deles, o pai de uma menina tem o tempo

continuamente ocupado. Trabalha como guarda-livros de uma grande firma. Faz horas

extraordinárias, só volta para casa quando a filha já dorme e, nos fins-de-semana, assiste a aulas

de reciclagem, ou toma parte em conferências de negócios. Quando a criança vê o pai, o que

acontece raramente e por acaso, fica logo de mau humor e ensonada. Mas o pai ganha muito

dinheiro e, todos os anos, a família pode adquirir um automóvel novo. No outro caso, o pai de

uma outra menina, também se demora no emprego. É pastor da Igreja Evangélica e encontra-se

dia e noite ao dispor dos seus paroquianos. Nos fins-de-semana, lecciona cursos de Bíblia.

Quando a criança consegue ver o pai fica de mau humor e ensonada. Mas o pastor sacrifica-se

pelos outros. A nossa sociedade dá diferentes valores aos dois «sacrifícios». No primeiro dos

casos, houve um certo desprezo pela família unicamente devido ao dinheiro. No outro caso,

porém, o auto-sacrifício tem alto valor moral. É um sacrifício por outras pessoas à custa da

própria família. Esse sacrifício é totalmente reconhecido pela sociedade. É um bom sacrifício.

As crianças, porém, não vêem as coisas sob esse prisma. Nem sequer compreendem o

que se passa na sua verdadeira dimensão; não percebem que, graças ao trabalho do pai, todos os

anos podem viajar num automóvel novo, nem sequer apreciam o sacrifício do pastor, que deve

ser-lhes dedicado a elas, crianças. As crianças vivem ambos os casos de «ausência» com

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infelicidade, independentemente da noção de que essa «ausência» tenha sido dedicada aos

crentes, doentes, pobres, ou ao êxito na profissão. Assim se esclarece também a contradição

entre a família “intacta” para o exterior (cujo chefe se encontra ao serviço dos outros e age

perante o reconhecimento da sociedade) e a força destruidora que se cria nessa mesma família.

Em resumo: com o desenvolvimento do consciente, a criança inicia a busca de um papel

na vida. Essa procura da identificação é apoiada com conversas por parte da família; então os

pais dedicam certa compreensão à criança, conseguindo, assim, ultrapassar os anos difíceis, sem

muitas perturbações. Mas se as conversas forem substituídas por ameaças, dogmas e

refreamentos de contacto, dificulta-se à criança a sua identificação tornando-a impossível.

Entramos assim no caminho de uma melhor compreensão da nova violência, dando um passo

decisivo: um dos factores deflagradores da nova violência é a comprovação de que o portador

dessa violência não conseguiu encontrar a sua identidade.

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Claire Brisset Um mundo que devora as suas crianças Porto, CAMPO DAS LETRAS, 2005

Excertos adaptados

A guerra contra as crianças

É difícil estabelecer o quadro de honra da violência contra as crianças, visto esta poder

assumir um sem-número de formas. Difícil, mas não impossível. À cabeça desta lista encontra-

-se, sem qualquer margem para dúvidas, a guerra – a guerra contra as crianças.

Em 1989, o mundo inteiro foi tomado por um devaneio, uma ilusão generalizada. Um

sistema desabava no Leste da Europa e consigo toda uma ideologia centenária. Na altura

pensava-se que a competição político-belicista que acompanhou passo a passo esse

desmoronamento se iria desvanecer quase instantaneamente. Todas as guerras e conflitos

exportados para todo o mundo por esse confronto em que se digladiavam valores contraditórios

iriam finalmente apaziguar-se. Especialmente para aqueles que tinham vivido o período

imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial, esta ilusão evocava a célebre frase de

Chamberlain quando, ao regressar da Alemanha, bradava, à saída do avião, agitando uma folha

de papel com o texto dos acordos de Munique: “Trago-vos a paz para o nosso tempo.” As

consequências dessa miragem não se fizeram esperar.

Fim da ilusão. O desmantelamento do Império Soviético não só não deu início a nenhum

período de paz, como os conflitos não pararam de se intensificar desde então, tanto a sul como a

norte do planeta: Conflitos internacionais e sobretudo conflitos civis, sendo estes tão mortíferos

como os primeiros. O envolvimento de civis nestas guerras, e entre eles, de crianças, não pára

de crescer.

Os números falam por si. Desde 1945, cento e cinquenta conflitos mancharam de sangue

o planeta e, há actualmente oitenta países à mercê da violência e da guerra. Quer sejam guerras

de pequena dimensão, quer conflitos de enorme amplitude, pouca é a diferença para a população

civil, no seio da qual as vítimas se contam aos milhões. De facto, nos últimos dez anos, as

guerras mataram mais de dois milhões de crianças. Feriram ou incapacitaram, muitas vezes

definitivamente, mais de cinco milhões e traumatizaram psicologicamente perto de doze

milhões. O número de órfãos, de crianças separadas da família, arrancadas ao seu lar e à sua

terra, é ainda maior. Por último, e derradeira consequência desta violência, as forças armadas

recrutam hoje em dia crianças-soldados na ordem das centenas de milhar, as mais jovens das

quais terão apenas seis anos de idade.

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Mas, dir-se-á, o envolvimento de crianças em conflitos armados não é nenhuma novidade.

Nas guerras de outros tempos, perde-se a conta do número de cidades incendiadas ou de civis

exilados. Basta recordar que a Cruzada das Crianças, em 1212, lançou para as ruas de toda a

Europa cerca de 30 000 crianças mobilizadas para a libertação da Terra Santa. E que Condé ou

Turenne, com pouco mais de quinze anos, já comandavam regimentos inteiros de crianças.

Frederico o Grande e, posteriormente, Napoleão, tampouco hesitavam em recrutar soldados

muito jovens. Por fim, Hitler, a meio da Segunda Guerra Mundial, mandou recrutar para o

exército alemão batalhões inteiros de adolescentes.

Tudo isto é certo, está provado e constitui um facto histórico. Por outro lado, a palavra

“infantaria”, já nos diz tudo. In-fans, aquele que não fala, é a criança de tenra idade. A expressão

acabou por designar a tropa, a tropa terrestre, “a rainha das batalhas”, como dizia Napoleão.

Mas esses exércitos dos tempos passados também inventaram a farda militar, cuja única função

consistia em distinguir os civis dos militares. E ao longo dos séculos, fomos começando a

acreditar num progresso da consciência moral: pouco a pouco, as sociedades estavam a começar

a aprender a proteger os civis nos conflitos, em particular as crianças. Em pleno campo de

batalha da guerra da Crimeia, Henry Dunant concebeu o que viria a ser a Cruz Vermelha

Internacional, um conjunto de fundamentos segundo os quais os civis devem ser poupados e os

feridos tratados, independentemente da facção a que pertencem, algo que viria a contribuir para

“humanizar” as guerras. Henri Dunant chegou mesmo a receber o Prémio Nobel da Paz por este

feito.

“Humanizar” a guerra, poupar os civis... O que se verificou foi exactamente o contrário.

Os conflitos do século XX, qual deles o pior, foram um espelho disso. A Primeira Guerra

Mundial, a Guerra Civil de Espanha e sobretudo a Segunda Guerra Mundial fizeram com que as

crianças entrassem em massa nos conflitos como actores, mas principalmente como vítimas,

vítimas da violência cega dos campos de concentração1 e dos bombardeamentos que se abatem

indiscriminadamente sobre as populações civis. E quem paga hoje em dia o preço desta

evolução são as crianças, um preço cujo impacto é difícil de calcular.

Depois da Guerra Civil de Espanha e sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial,

foram-se aperfeiçoando as técnicas para atingir não só as forças de combate, mas também as

suas bases na retaguarda, a sua economia e as suas infra-estruturas, mas também os seus

suportes psicológicos e afectivos, ou seja, acima de tudo, as mulheres e crianças. Quando o

exército alemão bombardeou Guernica e, mais tarde, Coventry, quando os Aliados arrasaram

Dresden e os americanos largaram a primeira bomba atómica sobre Hiroshima, a ideia era

1 Foi publicado recentemente um livro incontornável sobre esta temática, um testemunho de um sobrevivente do campo de concentração de Maidanek. O autor tinha quatro anos quando foi levado para o campo. Frangments, Une enfance 1939-1948, Binjamin Wilkomirski, Calmann-Lévy, Paris, 1997.

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obviamente aplicar um golpe fatal não tanto às forças de combate, mas à população em geral.

Tanto pior, ou mesmo tanto melhor, se entre os alvos atingidos figurasse a mesma quantidade de

objectivos civis do que a de pontos estratégicos militares. Graças às armas modernas e aos

bombardeamentos aéreos, a guerra entrou numa nova era. Que se cruzou, na mesma altura, com

a concepção industrial da limpeza étnica – foi devido a técnicas avançadíssimas que se pôde

aspirar à extinção total de grupos humanos considerados indesejáveis, como os judeus ou os

ciganos, não fazendo qualquer distinção entre homens, mulheres e crianças. Todos nós

assistimos, pelo desenrolar dos acontecimentos, ao sucesso florescente desta concepção da

guerra.

A “criança-alvo”

Que significa esta evolução? Que as crianças não são protegidas em parte alguma como o

deveriam ser, enquanto membros mais frágeis de uma sociedade. A expressão “Mulheres e

crianças primeiro!”, utilizada na ocorrência de naufrágios, já não é levada a sério. No entanto,

ela fazia todo o sentido, um sentido muito preciso – em caso de fatalidade, não se trata apenas

de proteger os mais fracos, trata-se também de garantir o futuro.

Actualmente, muito pelo contrário, os conflitos fazem das mulheres e mais ainda das

crianças, os seus alvos privilegiados. Assassinar crianças, feri-las ou violentá-las é aplicar um

duro golpe no grupo humano que se pretende exterminar ou subjugar. Foi assim que se pôde

ouvir a Radio Mille Collines inundar o Ruanda com este slogan em 1994 – “Para eliminar os ratos

maiores, temos de matar os mais pequenos.” Ou seja, as crianças tutsis. E foi assim que

mulheres grávidas foram esventradas para eliminar futuros tutsis e adolescentes violadas aos

milhares para que ficassem marcadas com um ferro impossível de apagar. Uma atitude idêntica

esteve sempre bem presente durante todo o conflito jugoslavo. Quando os atiradores furtivos

visavam sem erro as crianças, nos passeios das ruas de Sarajevo, estavam a seguir obviamente a

mesma lógica. Quando as granadas, cuidadosamente dirigidas, se abatiam sobre uma padaria ou

sobre o mercado central da capital bósnia, também aqui, e mais uma vez, se seguia a mesma

linha desta nova “estratégia”.

As crianças são cada vez mais assassinadas, feridas e massacradas nestas guerras

“modernas” que se multiplicaram desde 1945 e cuja amplitude não pára de crescer perante os

nossos olhos. Da América Central ao Camboja, do Líbano à República Democrática do Congo,

surgem conflitos em todos os pontos do planeta que se abatem sobre as crianças, incluindo as

mais jovens, como se todo o cuidado em protegê-las não só fosse aniquilado, apesar de todos os

esforços dos partidários do Direito Humanitário Internacional, mas mesmo literalmente

subvertido.

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A evolução do armamento enquadra-se perfeitamente nesta óptica. Os aperfeiçoamentos

técnicos não tornaram só os bombardeamentos (nucleares, químicos ou convencionais) muito

mais eficazes. Tornaram igualmente a indústria das minas perfeitamente adaptada a esta nova

concepção da guerra. É indispensável transformar o território do inimigo num campo de minas.

Desta forma, será aplicado um rude golpe na moral dos civis e na sua capacidade de sobreviver

ao conflito, de uma forma extremamente eficaz.

E é assim que hoje em dia, um certo número de países, que aliás se encontram entre os

mais pobres do mundo, foram transformados efectivamente em imensos campos de minas – o

Afeganistão, o Camboja e Angola são os países mais minados do mundo; segundo os peritos, o

Afeganistão, por si só, tem enterradas no seu solo entre dez e quinze milhões de minas. O

Camboja conta com oito milhões, ou seja, uma mina por habitante, e é o país que actualmente

possui o maior número de mutilados do mundo. Mas o continente africano não lhe fica nada

atrás, com um sem-número de campos de batalha, de Angola a Moçambique e do Ruanda à

Somália. No total, em todo o mundo, encontram-se cerca de cento e dez milhões de minas

espalhadas no solo de sessenta e quatro países. Não só “no solo”, aliás, porque graças aos

progressos científicos, existem também minas aquáticas, adaptadas aos arrozais, por exemplo, e

minas para as árvores. Há também a mina “saltitante”, concebida para explodir a um metro do

solo, para melhor incapacitar ou assassinar, a mina “borboleta”, com o aspecto de um brinquedo

colorido, a mina camuflada dentro de bonecas... a imaginação dos fabricantes não tem limites.

Ora estas minas, que destroem literalmente a vida civil de comunidades inteiras, são

particularmente perigosas para as crianças. As crianças constituem, por si só, metade das

seiscentas mil vítimas de minas (assassinadas ou mutiladas) nos últimos vinte anos. Os riscos

que elas correm são ainda mais graves do que os que ameaçam um adulto. O corpo de uma

criança, mais pequeno, não protege tão bem os órgãos vitais como o de um adulto e a sua

resistência face à perda de sangue é menor. O ponto de impacto da explosão acontecerá a uma

distância menor dos órgãos vitais, da face, dos olhos, e em consequência, muitas ficarão cegas.

As crianças também são um alvo fácil porque têm tendência para explorar os: espaços

desconhecidos para procurar (levadas pela curiosidade natural infantil) novas brincadeiras e

construir brinquedos com os explosivos que encontram. As minas borboleta, tão tentadoras para

os petizes, já assassinaram milhares de crianças no Afeganistão.

Por fim, quem é que vai buscar a lenha, a água, guardar o rebanho, atravessar os campos

para chegar à escola, senão as próprias crianças? Depois da deflagração da mina e da descoberta

da criança inanimada (quando é descoberta) é necessário amputá-la ou, no melhor dos casos,

colocar-lhe uma prótese. Mas uma prótese – quando existe – é muito cara no Camboja, no

Afeganistão ou em Angola. Dá-se então prioridade aos adultos porque estes são mais rentáveis

para a sociedade. Por outro lado, uma criança está a crescer e irá precisar de duas, três, ou

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quatro próteses. É demasiado caro. Demasiado complicado. Muitas vezes, o que se seguirá será

a rejeição da criança amputada e inválida pelo grupo social, sobretudo se a mutilação for vista

como uma condenação divina, uma maldição sobrenatural, como acontece no Camboja.

Abatidas, refugiadas no silêncio

Mas a história não acaba aqui. A guerra não afecta só o bem-estar das crianças por

intermédio de bombas, granadas e minas. Ela mata muito mais eficazmente quando interrompe

todos os circuitos da produção agrícola, quando bloqueia todas as redes de comunicação e

quando impede o fornecimento de géneros alimentares ou de medicamentos. A guerra destrói os

sistemas de alimentares ou inunda-os de feridos, impede a medicina preventiva, as campanhas

de vacinação e favorece o aparecimento de surtos de epidemias, da fome e da pilhagem da ajuda

externa.

Na Somália, estima-se que a guerra tenha feito desaparecer entre metade e três quartos

das crianças com menos de cinco anos. Mas só um pequeno número terá sido vítima dos efeitos

directos dos combates, dos tiros da artilharia e dos bombardeamentos. Quase todas morreram de

fome e da completa e total desorganização da vida económica e social em que o país se

encontra.

O mesmo esquema repete-se um pouco por todo o lado. Na Etiópia, durante a grande

fome dos anos 1984-1985, a esmagadora maioria das vítimas sucumbiu mais rapidamente à

malnutrição e às epidemias do que à guerra propriamente dita. No Camboja, durante o regime

dos Khmers Vermelhos, não foram as execuções sumárias, a tortura ou os massacres que

provocaram o maior número de mortos (se bem que ainda não se saiba a que escala foram

praticados), mas a deportação maciça, os trabalhos forçados e a malnutrição.

A desorganização da vida económica nem sempre é um subproduto espontâneo da guerra.

De facto, raramente o é. Muito frequentemente, resulta de uma deliberada política de terra

queimada, levada a cabo pelas facções em conflito que destroem pontes, estradas e vias

ferroviárias e regam a napalm ou a produtos tóxicos o território inimigo. Ou então, como foi o

caso do Camboja, assiste-se a uma tentativa demente de “reorganização” do país, com base em

teorias perfeitamente disparatadas.

A guerra destrói, então, tudo o que as crianças necessitam para viver e para se

desenvolverem. Ela priva-as, em primeiro lugar, dos próprios pais, umas vezes fisicamente em

consequência dos combates e massacres, e outras por causa do caos geral que instaura. Foi

assim que no fim do Verão de 1994, mais de cento e dez mil crianças ruandesas foram

recolhidas pelas organizações humanitárias, não só porque um grande número de adultos tinha

desaparecido devido aos assassinatos ou à cólera, mas também porque, no pânico da fuga para a

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fronteira Este com a República Democrática do Congo, muitas crianças se perderam, afastando-

se inexoravelmente das familias.

O que acontecerá a estas crianças que, depois de terem assistido a massacres, se vêem

sós, paradoxalmente sós no meio de milhares de outras, nessas enormes instituições, nesses

orfanatos onde, apesar de uma imensa boa-vontade se torna praticamente impossível realizar

qualquer tratamento individual ou recriar laços reais, esses laços sem os quais uma criança é

incapaz de se projectar no futuro? As sequelas psicológicas das guerras “modernas” são muitas

vezes tão graves quanto as sequelas físicas com as quais as crianças têm de viver. Algumas

saltam imediatamente à vista – crianças abatidas, refugiadas no silêncio, por vezes até incapazes

de chorar, ou de contar o que sofreram; crianças violentas, agressivas, ou, pelo contrário,

apáticas, passivas. Crianças desapossadas de si próprias, desprovidas dos seus objectos de

afeição, de identificação. Crianças que se mutilam, que se culpam por estarem vivas quando

tantas outras estão mortas. Outras vezes, as feridas psicológicas não são aparentes e a criança

parece relativamente insensível face ao que lhe aconteceu. Mas essas feridas irão irromper mais

tarde, na adolescência ou na idade adulta, quando a “cicatrização” já se tiver tornado

irremediavelmente impossível.

Uma das melhores curas e uma das únicas formas de se conseguir ajudar estas crianças a

regressar à vida passa pela reactivação das escolas. Mas as escolas também sofreram as

consequências da guerra, e quase nunca por acaso. É desta forma que em Moçambique, quando

a guerra chegou ao fim em 1993, dois terços das crianças já não tinham qualquer acesso ao

ensino primário. No Camboja, os Khmers Vermelhos eliminaram, arrasaram, toda e qualquer

forma de sistema escolar, símbolo de uma cultura maldita. Na Etiópia e na Somália, com as

escolas destruídas e os professores enviados para a frente de batalha, já nada resta do antigo

sistema de educação, já de si deficitário, nas províncias do norte e do este. Quanto às crianças

ruandesas refugiadas na República Democrática do Congo, não tiveram qualquer

acompanhamento escolar durante três anos.

No entanto, sabemos que uma das primeiras medidas a ser levada a cabo no fim dos

conflitos não passa apenas por retirar as crianças das imensas instituições onde foram colocadas

de urgência para as devolver aos familiares, mesmo afastados, ou a famílias de acolhimento;

tampouco se limita a oferecer-lhes alimentação e cuidados adequados. Consiste também em

recriar condições para uma escolarização, mesmo que rudimentar, para que elas possam reaver

ao menos um vislumbre de uma vida de criança; para que lhes sejam restituídos os objectos de

investimento que a guerra lhes roubou por completo. Tem-se tentado pôr em prática diversas

estratégias, embora ainda não seja possível avaliar o seu impacto: psicoterapias de grupo,

terapias através do jogo e do teatro, cerimónias de luto colectivas, rituais tradicionais. Todas

estas estratégias, por mais necessárias que sejam, podem parecer insignificantes face aos dramas

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insondáveis que estas crianças viveram. Sem a reconstituição de autênticos laços interpessoais,

sem a libertação da palavra que exteriorize os dramas inscritos na memória, corre-se o enorme

risco de o trauma se instalar, talvez para sempre. E por vezes também, o risco do aparecimento

da violência como único meio possível de expressão. Violência que é dirigida aos outros, mas

também a si própria.

O efeito perverso dos embargos

Porém, podem surgir outros obstáculos no caminho deste penoso regresso à normalidade,

desta vez sob a forma de obstáculos políticos. Quando um país, já de si vítima de uma guerra ou

de conflitos civis violentos tem, como se não bastasse, “atitudes politicamente incorrectas”,

pode abater-se sobre ele, mais precisamente sobre a população civil e sobretudo sobre as

crianças, uma nova forma de calamidade – as sanções económicas. Assim, para “punir” Saddam

Hussein por ter tentado anexar o Kuwait, o Conselho de Segurança das Nações Unidas decidiu

proibi-lo de exportar o seu petróleo para o mercado mundial, ou, por outras palavras, decidiu

asfixiá-lo financeiramente. Para estrangular o sistema, foi proibido ao Iraque não só exportar a

sua única produção, mas também importar aquilo de que necessitava para alimentar, tratar e

educar a sua população. A interdição afectava produtos como a farinha, o azeite, os

medicamentos e as vacinas, assim como cadernos, borrachas e lápis.

Os resultados não foram imediatamente visíveis, porque o Iraque não era um país pobre e

dispunha de algumas reservas. O seu sistema de saúde, de distribuição de alimentos e de

educação figurava mesmo entre os mais desenvolvidos do Médio Oriente. Mas os efeitos do

embargo acabaram por aparecer com toda a clareza. Embora os benefícios políticos obtidos pela

comunidade internacional ainda não estejam completamente demonstrados, o impacto das

sanções sobre a população civil não podia ser mais claro. A taxa de mortalidade de crianças com

menos de cinco anos duplicou no país desde o fim da guerra do Golfo e é actualmente superior à

de países como o Brasil, o Peru ou o Egipto. Calcula-se que tenham já morrido quinhentas mil

crianças em consequência do embargo. A malnutrição generalizou-se e os sistemas de

abastecimento de medicamentos e de água potável desmoronaram-se. O sistema escolar teve

idêntica sorte - as crianças que continuam a ir à escola sentam-se no chão e trabalham com

materiais obsoletos que não podem ser substituídos. A taxa de abandono escolar subiu em

flecha, sobretudo no que se refere às meninas entre os dez e os doze anos, que são obrigadas a

procurar trabalho para completar os rendimentos da família no fim do mês. O abrandamento do

embargo, acordado desde o início de 1997, irá permitir ao Iraque regressar à sua situação

anterior? Dificilmente o fará, já que os efeitos de uma tal derrocada irão certamente persistir

durante muito tempo.

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Os efeitos do embargo foram semelhantes no Haiti, podendo, no entanto, ser mais graves

tendo em conta o nível de pobreza inicial do país. Aí, as sanções económicas foram aplicadas

durante três anos, depois do golpe de estado militar de 1991. Entre essa data e o final de 1993, a

taxa de malnutrição que se verificou entre crianças com menos de cinco anos examinadas nas

instituições de apoio da ilha subiu de 27% para mais de 50%. O impacto das sanções foi

desastroso para o conjunto dos já escassos sistemas de saúde e educação em todo o país.

O último exemplo é o do Burundi, um país à mercê de intensas tensões políticas, de um

genocídio encapotado e cujos vizinhos decidiram que precisava de ser “punido”. Punido

porquê? Pelo facto de possuir um chefe de Estado auto proclamado, como se toda a região

circundante não padecesse também de um défice democrático generalizado. As consequências

não se fizeram esperar – as tensões internas ficaram ao rubro, começaram a suceder-se

massacres atrás de massacres e as organizações humanitárias estão a deparar-se com imensos

obstáculos na sua tarefa de ajudar a população.

Todas estas sanções, cujo impacto na vida dos civis pudemos observar também na Sérvia,

parecem repetir-se falhando sistematicamente o alvo – impotentes para atingir o corpo político

visado, geralmente um chefe de Estado muito pouco preocupado com o bem-estar da população

civil, elas castigam, na realidade, sobretudo aqueles cujo poder político é praticamente

inexistente – as crianças. Sistema absurdo este, cujo impacto no futuro dos países “sancionados”

está ainda longe de se conseguir determinar, e em que o tirano, virtuosamente denunciado,

acaba por não ser atingido. Se por sancionar, se subentende na realidade eliminar o chefe de

Estado incriminado, então a solução não passará certamente por aí e deveriam ser levantadas

algumas restrições, deixando passar, por exemplo, bens de primeira necessidade indispensáveis

para as crianças. Nunca ninguém tentou iniciar uma acção capaz de penalizar realmente os

políticos responsáveis pelos infortúnios daqueles que são governados. O que podemos observar,

pelo contrário, são os antigos ditadores a gozar as suas reformas tranquilas e principescas,

graças ao dinheiro que conseguiram roubar ao seu povo, uns na Côte d'Azur, como Baby Doc do

Haiti, e outros em residências rurais no Zimbabué, como o sanguinário coronel Mengistu. Os

exemplos vão-se acumulando. Quanto àqueles que ainda estão no poder, é do conhecimento

geral que não estão propriamente nas ruas da amargura, seja em Bagdade, em Belgrado ou em

qualquer outra parte do mundo2.

Refugiados e “deslocados”

Outra consequência inevitável da guerra é a imensidão das deslocações de população e

dos agrupamentos de refugiados, nos quais as crianças acabam por ser as primeiras vítimas da 2 N.T. -O conteúdo global desta obra, e nomeadamente este excerto, deve ser lido atendendo ao facto de a sua edição original datar do ano de 1997.

45

escassez de provisões e dos êxodos precipitados impostos pelas peripécias político-militares,

como pudemos observar a partir de 1994 na região Oriental da República Democrática do

Congo.

Hoje em dia existem por todo o mundo vinte e oito milhões de “refugiados” – aqueles que

atravessaram uma fronteira – e de “deslocados”, que são aqueles que permaneceram no seu país.

Distinção teórica que pouca diferença faz na vida dos interessados. Do ponto de vista do

Direito, só os refugiados podem reivindicar uma protecção jurídica especial, porque se viram

forçados a abandonar o seu país, enquanto que os “deslocados” são, na realidade, refugiados no

seu próprio país. Na prática, esta distinção não faz muito sentido – os “deslocados” do Sudão,

que fugiram de uma guerra devastadora no sul do país, estão numa situação a todos os títulos

comparável à dos seus compatriotas refugiados nos países vizinhos. Quanto à protecção jurídica

de que os refugiados deveriam beneficiar, esta de nada valeu aos ruandeses massacrados desde o

início de 1997 na região noroeste da República Democrática do Congo. Massacrados pelas

armas e pela fome.

Quer se trate de “refugiados” quer de “deslocados”, mais de três quartos e, por vezes,

mesmo nove décimos de entre eles, são compostos por mulheres e crianças. Imensas

concentrações desumanas onde a vida gravita em torno da distribuição de víveres, e onde as

crianças deambulam sem objectivo, de um acampamento para outro; campos enormes onde

reinam a insegurança, a promiscuidade e a violência; onde circulam armas, onde os mais jovens

se deixam levar pelos agentes recrutadores, onde os adolescentes são agredidos. Centenas de

milhares de crianças nascem e sobrevivem nesses campos sem escolarização – em todo o

mundo, apenas têm acesso à escola menos de 15% das crianças destes campos. Por outro lado,

muitas destas crianças são privadas da sua nacionalidade, logo, de um sentimento de identidade

nacional que provavelmente permanecerá ausente durante toda a vida. A idade permanecerá em

muitos casos uma incógnita nas suas vidas e, para aqueles que se perderam dos pais, o próprio

nome também. Podemos citar como exemplo o caso dos trezentos e cinquenta mil refugiados

cambojanos imobilizados na fronteira khmero-tailandesa, com a Tailândia e o Camboja a

“atirarem a batata quente” de um lado para o outro, a primeira negando-lhes a nacionalidade

tailandesa e o segundo recusando-lhes a nacionalidade khmer, porque eles tinham fugido do país

na altura sob a mão de ferro dos Khmers Vermelhos. Como sobreviver no mundo actual sem

identidade, sem nacionalidade e sem saber a idade nem o próprio nome?

Para além disso, as condições de vida nos campos são cada vez mais precárias. Nos

últimos quinze anos, o número de refugiados e deslocados tem vindo a dilatar-se

desmesuradamente em consequência dos conflitos mais recentes – as guerras na América

Central, no Afeganistão, em Moçambique, no Ruanda, etc., mas os recursos que a comunidade

internacional põe à sua disposição não sofreram praticamente qualquer alteração. Muito pelo

46

contrário, as rações alimentares foram diminuindo ao longo dos anos e a malnutrição existente

nos campos tem aumentado. Aumenta ainda mais quando estes campos servem de base a

soldados perdidos que não mostram qualquer escrúpulo em se servirem primeiro dos produtos

alimentares, para eventualmente os revenderem e comprarem armas. Verifica-se, assim, que a

malnutrição nunca foi tão grave nem tão frequente nesses campos como o é agora. Segundo a

Unicef, a incidência da emaciação, ou emagrecimento muito acentuado, atinge nas crianças a

tremenda percentagem de 40% em Angola, na Libéria e no Sudão.

Ninguém duvida que viver nesses campos deve ser semelhante a viver um autêntico

pesadelo, mas este é um pesadelo que pode vir a durar quinze ou mais anos, como vimos no

caso dos três milhões de refugiados afegãos fixados no Irão e no Paquistão, dos eritreus

instalados no Sudão, dos moçambicanos no Malávi, dos cambojanos na Tailândia, etc. Em casos

como estes, em que se tornarão as crianças? Adolescentes para quem o regresso ao país natal

aparece como uma ideia abstracta, um país que eles nem sequer conhecem, ao mesmo tempo

que vêem impedida a sua integração no país de “acolhimento”. Presas fáceis dos agentes de

recrutamento e dos proxenetas que infestam os campos de refugiados.

A criança treinada para matar

O auge deste circo de horrores é precisamente atingido pelo recrutamento de crianças-

-soldado. Quantos “soldados” de seis, oito e doze anos existirão por esse mundo fora? A última

estimativa credível remonta ao ano de 1988. Nessa altura, atingia já o número pungente de

duzentos milhares de crianças. Mas isto foi antes dos conflitos do Ruanda, do Burundi, da

Libéria, da Serra Leoa, antes da explosão do conflito na Jugoslávia, antes ou mesmo durante a

guerra entre o Irão e o Iraque, mas em todo o caso, antes de serem tornadas públicas as

atrocidades que tiveram lugar neste último conflito.

Esta estimativa encontra-se assim claramente desactualizada, e neste momento é

impossível proceder a um novo estudo. Mas todos os que se deslocaram recentemente aos

campos de batalha, principalmente em África, são testemunhas da notória juventude de alguns

“combatentes”. Tivemos oportunidade de ver com os nossos próprios olhos grupos de

“soldados”, no Ruanda, em que os mais velhos nem sequer doze anos tinham. No Camboja, as

facções que ainda hoje continuam a assassinar-se pelo poder mantiveram certos hábitos do

tempo de Pol Pot e continuam a recrutar soldados pré-adolescentes.

A história recente põe à nossa disposição um leque enorme de exemplos desta tendência,

sendo que o mais abjecto de todos será o de obrigar crianças com apenas dez anos a matar e a

torturar, às vezes os próprios pais, fazendo-lhes literalmente uma lavagem ao cérebro. Foi o que

aconteceu ou ainda acontece em Moçambique, no Uganda, na Libéria e na Serra Leoa. No

47

Afeganistão, na Nicarágua e em El Salvador, foram raptadas dezenas de milhares de crianças

para irem engrossar as fileiras dos guerrilheiros e para as obrigar a cometer atrocidades a que os

próprios soldados adultos às vezes se recusavam.

Por vezes, para chegar a este ponto, a violência ou a coacção não são suficientes. É

necessário um doutrinamento, uma fanatização cuidadosamente organizados. Esta foi a política

adoptada pelo Irão durante a guerra com o Iraque. Por deliberação dos dirigentes, não se podiam

perder muitos homens válidos nos campos de minas. Para desminar, as crianças serviam muito

bem. Então, explicava-se-lhes no meio de reuniões “religiosas” que elas iriam servir o seu país,

e mais tarde, alcançar directamente o paraíso. Para tal, foram instruídos actores encarregados de

lhes mostrarem o caminho e que, a dado momento, davam o sinal de partida. E foi assim que

vimos milhares de crianças precipitando-se sobre campos de minas, levando ao pescoço chaves

de plástico, as chaves do paraíso, e gritando antes da mina explodir a seus pés: “Allah Akbar!”

Pensa-se que cerca de cinquenta mil crianças iranianas terão morrido assim em nome de Deus.

Menos sorte tiveram as sobreviventes, enclausuradas durante anos nas prisões iraquianas,

mortificadas por terem sobrevivido, aterrorizadas com a ideia de voltar ao seu país,

envergonhadas por ainda estarem vivas.

Mas em certas ocasiões, o recurso à religião não basta. É nesse caso que intervém uma

técnica que consiste em fazer com que a criança cometa repetidamente atrocidades, de

preferência sobre a sua própria família. Este método foi abundantemente utilizado em

Moçambique pela Renamo, guerrilha nessa altura financiada pela África do Sul, e mais

recentemente pelas facções em conflito na Libéria e na Serra Leoa. Os “meninos-lobos”, como

eram apelidados em Moçambique, eram obrigados a matar, a matar os parentes, de maneira a

destruírem quaisquer laços afectivos que os ligassem à sua família, ficando assim

completamente dependentes da guerrilha que os tinha raptado. Obrigadas a assassinar os pais, os

camponeses e as pessoas mais próximas, as crianças tornar-se-iam dóceis; qualquer tentativa de

voltar atrás seria impedida. A dado momento, a Renamo dispunha de pelo menos dez mil dessas

crianças-soldado, as mais jovens das quais mal tinham completado os seis anos de idade. Em

Angola, de acordo com um inquérito levado a cabo em 19953, 36% do total de crianças do país

tinham “acompanhado” ou ajudado os soldados.

Mas há situações que requerem algo mais, além da religião, do doutrinamento e da

coacção. E é aqui que surge a droga. “Davam-nos marijuana e comprimidos” – conta-nos uma

criança liberiana “desmobilizada” – “Quando se toma essas coisas, não se sente mais nada, não

se pensa em mais nada que não seja matar.”

3 A Situação Mundial da Infância, Unicef, Brasília, I997.

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Porque razão alguns exércitos e algumas guerrilhas se interessam tanto pelas crianças-

-soldado que, a priori, se poderiam considerar inexperientes e pouco eficazes? Antes de mais há

que ter em conta a escassez de soldados adultos – há alturas em que os exércitos precisam de

mais mãos para trabalhar e, por isso vão-se buscar crianças para integrarem contingentes

suplementares, como no caso da decisão tomada pelo exército nazi em 1944, de incorporar

soldados de dezasseis anos.

Mas isto não é tudo. Segundo o raciocínio dos recrutadores, uma criança é infinitamente

mais maleável, mais facilmente manipulável e condicionável do que um adulto; é menos

propensa à revolta e mais sensível aos métodos de terror infligidos.

Não exige soldo nem qualquer gratificação especial, a não ser a sensação de pertencer a

um grupo de recrutas, a um grupo onde seja reconhecida. Neste raciocínio entra também a ideia

de que uma criança pode não se aperceber do que lhe estão realmente a pedir; de que a fronteira

entre o bem e o mal ainda é indistinta para ela. Tendo em conta tudo isto, porque não aproveitar

um recurso tão valioso, que abunda em excesso nos campos de refugiados, nos orfanatos, nas

cidades e nas escolas?

Raptam-se então os rapazes, tal como pudemos assistir muito recentemente em vários

cenários de conflitos armados, mas também se raptam meninas, situação que está a decorrer

neste preciso momento a Norte do Uganda. O destino dessas meninas é o “casamento” com um

soldado, a sujeição a relações sexuais, e a fazer tudo o que é necessário a um exército em

movimento: cozinhar, limpar, etc. Várias centenas destas meninas ugandesas, raptadas pelo

“Exército de Resistência do Senhor”, foram libertadas recentemente e estão actualmente em fase

de tratamento. Mas existirá alguma forma de as resgatar verdadeiramente da guerra? Qual será a

ajuda que lhes poderemos oferecer quando aquilo por que elas passaram está muito além da

nossa imaginação? Também elas foram obrigadas a cometer atrocidades, a beber sangue

humano, a sujeitarem-se a todos os delírios dos soldados. Quando isto acontece a uma criança

de oito, nove anos de idade, o que fazer para que ela se reconcilie de novo com a vida?

Para algumas destas crianças, o condicionamento e a solidão são de tal maneira extremos

que o exército se torna, paradoxalmente, no seu único refúgio, no único lugar com que se

conseguem identificar, uma espécie de substituto da família que perderam. Em Maio de 1993, o

governo da Serra Leoa ordenou a desmobilização de todos os soldados com menos de quinze

anos. A “desmobilização” foi, no entanto, mais problemática do que se previa inicialmente. É

absolutamente indispensável um trabalho de equipa que as consiga dissociar da nova “família”

que pensavam ter encontrado, sem que se sintam órfãs uma segunda vez.

O progresso tecnológico do armamento militar também faz com que o recrutamento de

crianças-soldado se vá tornando cada vez mais fácil, dada a proliferação de armas leves ou de

49

pequeno calibre. Antigamente, as armas eram demasiadamente grandes ou pesadas para elas.

Hoje em dia a história é outra. Uma espingarda de assalto de origem soviética AK 47 ou uma M

16 norte-americana são ao mesmo tempo leves, fáceis de montar e desmontar e bastante

acessíveis. O “preço corrente” de uma AK 47, por exemplo, é neste momento inferior a dez

dólares em África e existem M 16 disponíveis em todo o lado.

Com efeito, os responsáveis por este alistamento maciço de crianças na guerra andam de

mãos dadas com aqueles que compram as armas e as colocam à disposição de todos, e aqueles

que as vendem. Todos lucram com isso. Lucros militares por um lado, lucros comerciais por

outro. O negócio das minas continua de vento em popa, não obstante os esforços meritórios de

todos aqueles que lutam para que elas sejam completamente banidas. No entanto, o mercado dos

armamentos tradicionais vai proliferando a uma escala bem maior. De resto, os números falam

por si, ao revelar que os orçamentos militares de todo o mundo, em francos ou em dólares

constantes, se multiplicaram por quinze a partir de 1945, tendo atingido em 1993 os valores

alucinantes de 790 biliões de dólares (destes, 121 biliões foram gastos pelo Terceiro Mundo). É

verdade que esta quantia revela uma ligeira diminuição em relação ao pico histórico atingido em

1987, o que significa que pelo menos neste aspecto, o desmoronamento do Império Soviético

teve a sua utilidade. Mas os números continuam a ser impressionantes, sobretudo se os

compararmos com os orçamentos destinados em todo o mundo às áreas da educação e da saúde

e os que se referem à totalidade dos serviços destinados às crianças, em que as quantias

envolvidas são cerca de cem vezes inferiores.

No entanto, não apontemos o dedo acusador aos progressos tecnológicos nem aos

interesses económicos. O culpado é ainda, e sempre, o mais profundo desprezo em relação à

criança. Recrutar crianças, manipulá-las, obrigá-las a matar ou a torturar, são ideias que à

partida não decorrem de estratégias financeiras, embora os traficantes de armas acabem por

beneficiar largamente desta situação. Elas são uma opção deliberada de estrategas em ponto

pequeno que arrancam as crianças das escolas e forçam a guerra a entrar nas suas vidas e para

sempre. Essa escolha é uma escolha racional, deliberada, calculada. O mundo saturado de

imagens e de horrores em que vivemos ainda não conseguiu avaliar bem a amplitude dessa

abjecção. De que é que estará à espera?

51

Além-Mar Dezembro 2001

Excertos

As armas engordam as economias

D. Manuel Martins

Estava há muito pouco tempo em Setúbal, quando fui convidado para visitar uma fábrica

e aí celebrar a Eucaristia.

Imagine quem for capaz a alegria que senti, até pelas circunstâncias especialíssimas de

tempo e lugar.

Só que, chegado à fábrica, logo me sinto arrepiado. Sabem porquê? Porque se tratava de

uma fábrica de material de guerra, isto é, de armas que não tinham outro destino que não fosse o

de matar. E fiquei inclusivamente a saber que aquelas que se fabricavam com o meu testemunho

se deveriam enviar, logo que possível, para um desgraçado país do Oriente que ainda hoje não

conhece a paz.

Isto quer dizer que Portugal também enfileira na lista dos países que entram na corrida da

morte. Somos, é verdade, peregrinos da paz, mas, às vezes, fico-me a pensar que, bem cá no

fundo, queremos a guerra. E que a guerra, como a droga, dá dinheiro, engorda economias, faz

riqueza. E acontece – penso que acontece – que muitos desses «altos senhores» que correm o

mundo a promover e a participar em cimeiras de paz já levam consigo, nas suas pastas,

contratos para serem assinados, para fornecimento de material de guerra.

Sei, com alegria, que se desenvolve no País, com grande sucesso, um abaixo-assinado,

com o sentido de se acabar urgentemente com tal actividade – fabrico/fornecimento de armas –,

actividade que, para além de todas as suas vergonhas, nos retira toda a legitimidade de falarmos

em paz, fazermos manifestações pela paz, promovermos encontros ecuménicos pela paz. E que

«a paz é obra da justiça» e a primeira componente da justiça é verdade. A mentira abre portas à

guerra, a mentira alimenta a guerra.

Sabemos ainda – quem o havia de imaginar? – que muitas dessas armas que matam,

mutilam, afogam sonhos e esperança, vão parar às mãos de crianças, que, assim, nunca chegarão

a ser gente.

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Hubert Reeves A hora do deslumbramento. Terá o universo um sentido? Lisboa, Ed. Gradiva, 1991

Excertos adaptados

A bomba está entre nós

Da minha janela vejo o pôr-do-sol sobre a cidade. As vidraças reflectem-lhe a luz dourada

sobre as ruas já ensombradas. Entre as bancadas do mercado, onde se alinham frutos e legumes,

as pessoas discutem, compram e abalam com os cestos bem cheios.

Ao observar esta vida calma e pacífica, como pensar na ameaça que pesa sobre ela?

Armazenadas nos silos nucleares, 30 000 bombas atómicas estão prontas a saltar em poucos

minutos. Uma única bastaria para aniquilar uma cidade inteira, deixando de ponta a ponta uma

imensa cratera vítrea como as que se vêem na Lua.

Mil milhões de mortos, mil milhões de feridos graves, tal é o cálculo das vítimas

imediatas de um conflito nuclear generalizado, mas os efeitos a longo prazo seriam ainda mais

aterradores, porque os sobreviventes lamentariam não terem sucumbido prontamente. Segundo

as melhores estimativas, milhões de toneladas de poeiras e fuligem, dispersas na atmosfera,

mergulhariam grande parte da superfície terrestre numa noite de vários meses e o calor solar

deixaria de atingir o solo. A temperatura desceria por toda a parte e manter-se-ia algumas

dezenas de graus abaixo de zero, provocando, assim, o inverno nuclear...

Depois disto, tempestades de grande violência disseminariam nos dois hemisférios

substâncias tóxicas cujo teor radioactivo neutralizaria as defesas imunológicas de pessoas e

animais. A agricultura, os cuidados médicos, os transportes públicos, seriam reduzidos a nada.

A fome, o frio, as epidemias, poderiam, segundo alguns, provocar a extinção do género

humano. (Estes cálculos e previsões têm sido contestados. O grau de incerteza é grande, mas

não exclui o extermínio da nossa espécie).

Como chegámos a isto? Por que aceitámos este cavalo de Tróia dentro das nossas

muralhas? Por que espécie de perversidade fomos levados a construir, nós próprios, os

instrumentos da nossa destruição? Porquê, em vez de nos livrarmos delas, damos em cada ano, a

essas armas, uma potência maior, uma precisão mais mortífera?

Este primeiro capítulo é uma reflexão sobre um tema entristecedor: a Humanidade faz

tudo o que pode (e ainda mais) para chegar o mais depressa possível à sua autodestruição.

54

E a bomba nasceu...

O advento da bomba é melhor contado no estilo das grandes epopeias mitológicas do que

no tom frio e impessoal da história contemporânea; a linguagem épica revela de modo mais

eficaz a verdadeira dimensão dos trunfos em jogo.

Longe de não ser mais do que uma crendice, cuja falsidade se demonstrou, o mito,

tradicionalmente, é uma maneira de transmitir sabedoria e arte de viver. Não se trata de saber se

é verdadeiro ou falso, mas sim de medir a sua eficácia como técnica de ensino.

O mito de um ser do além que incarna e irrompe no nosso mundo surge com frequência

nos escritos tradicionais. Precursores, profetas, grandes sacerdotes e sacerdotisas anunciam e

preparam a sua vinda.

De todas as divindades, a bomba é, sem dúvida, a mais despótica, a mais cruelmente

exigente. Como vestais romanas, os seus discípulos consagram-se inteiramente ao seu serviço.

Sentido do dever, competência, eficácia, honestidade científica, todas as qualidades que se

exigem aos melhores são indispensáveis para levar a bom termo os trabalhos que o seu

nascimento implica.

A bomba não tolerará nenhuma lentidão, nenhuma fraqueza, nenhuma infidelidade, e os

que quiserem deixá-la arrepender-se-ão. Sem demora serão substituídos por outros adoradores

mais zelosos ainda, os quais, em grande número, esperam com impaciência a ocasião de a

servir.

Em menos de dez anos a bomba atómica passa do estado de especulação pura ao de

realidade aterradora, gerada por uma das mais prodigiosas concentrações de matéria cinzenta da

história humana. Em 1942, em Los Alamos, vila perdida no deserto do Novo México, reúnem-

-se os melhores cientistas do planeta: físicos, matemáticos, químicos.

O exército americano instala lá um super-laboratório, onde todos os meios são postos à

disposição dos investigadores. O ambiente é de alta tensão, trabalha-se noite e dia, sem

quaisquer férias. O parto é longo e difícil. A bomba manifesta-se pela primeira vez em Julho de

1945, em Alamogordo, também no Novo México. Pouco depois revela a sua verdadeira face,

com o aniquilamento de duas cidades japonesas: Hiroxima e Nagasáqui. Em alguns segundos

dezenas de milhares de pessoas passam, literalmente, ao estado gasoso. No total, mais de 150

000 vítimas.

A bomba ganha em potência. No atol de Bikini, nas neves siberianas de Nova Zembla,

atingirá o equivalente a dezenas de milhões de toneladas de dinamite. E ela prolifera: mais de

30 000, segundo as últimas notícias, encontram-se disseminadas nos arsenais do planeta.

55

Instaladas sobre engenhos balísticas de assustadora precisão, várias de entre elas são-nos

destinadas e têm o doce nome de Paris, outras chamam-se Nova Iorque, Moscovo, Pequim. Para

os técnicos que todos os dias as mantêm e acariciam, Paris é, antes do mais, o nome de um dos

seus belos engenhos.

«Um conto de dormir em pé»

Mas voltemos à génese do armamento nuclear. Os primeiros rumores sobre a

possibilidade de fabricar uma super-bomba, dita atómica, começam a circular no mundo

científico alguns anos antes da Segunda Guerra Mundial.

É o despontar da era nuclear. Pressentem-se então as propriedades explosivas do urânio,

cujo átomo, radioactivo, se quebra facilmente, com emissão de energia. Um bloco de mineral de

urânio liberta continuamente calor. Para o sentir basta tocar-lhe com a mão. Em cada instante,

no interior do bloco, dá-se a fissão de milhões de núcleos.

Pode-se acelerar artificialmente esta fissão submetendo os átomos a um fluxo de neutrões.

Ao absorver um neutrão, o átomo de urânio torna-se muito mais vulnerável à fissão e cinde-se

rapidamente, emitindo numerosos neutrões. Daí a possibilidade de uma reacção em cadeia.

Um núcleo de urânio absorve um neutrão, cinde-se, emite neutrões, imediatamente

absorvidos pelos átomos vizinhos, que se cindem por sua vez, etc.

As energias libertadas por cada uma destas fissões somam-se e podem atingir proporções

gigantescas. Donde a ideia de uma bomba. Um quilo de urânio liberta, assim, mais calor do que

mil toneladas de dinamite. Quanto basta para devastar uma pequena cidade. Uma tonelada de

urânio fará desaparecer do mapa a maior das cidades do planeta.

Mas naquela época ninguém sabe se o projecto é realizável. As dificuldades técnicas

parecem inultrapassáveis; a maior parte dos cientistas mantém-se céptica. Um projecto utópico,

a remeter para as prateleiras do esquecimento, juntamente com o «movimento perpétuo» e a

«máquina de viajar no tempo».

«Um conto de dormir em pé», dizia Ernest Rutherford, um dos maiores físicos do nosso

século.

Numa banheira de um quarto de hotel

No seu livro Os Grandes Momentos da Humanidade, Stefan Zweig descreve certos

acontecimentos históricos (os gansos do Capitólio, a escrita do Messias de Händel, etc.) que,

56

mau-grado a sua curta duração e, por vezes, a sua aparência anódina, influenciaram

profundamente os destinos da Humanidade.

Gostaria de acrescentar um acontecimento à colecção de Zweig. Estamos em Londres em

1935. Um cientista judeu húngaro, recém-chegado de Budapeste, aluga um quarto num hotel e

transforma imediatamente a casa de banho em laboratório. Na água da banheira mergulha

pequenas fontes radioactivas, subtraídas à universidade onde ensinava e transportadas em

segredo na bagagem. Chama-se Leo Szilard e encontra-se submetido a uma viva agitação.

Acredita firmemente na possibilidade de libertar a energia dos átomos e espera executar

rapidamente as manipulações requeridas para o conseguir.

Não o impulsiona somente o entusiasmo por um projecto fantástico; sobre as implicações

do eventual êxito da sua tarefa há um olhar lúcido. Szilard sabe da ameaça que pesaria sobre o

destino da Humanidade caso conseguisse fabricar uma bomba atómica. «A Humanidade corre

para a sua perda», repetiria ele mais tarde, à medida que as dificuldades se aplanavam.

Mas ao mesmo tempo sente-se aterrorizado pela amplitude que o movimento nazi vem

assumindo desde há alguns anos. Por causa da subida do anti-semitismo abandonara a sua

cadeira na Universidade de Budapeste e fugira do continente. São-lhe evidentes as intenções

guerreiras de Hitler, a barbárie que ameaça a Europa.

Ei-lo, refugiado político sem laboratório, inclinado sobre a sua banheira de hotel,

obcecado pela ideia de que é preciso, por qualquer preço, desenvolver a bomba e ganhar a

corrida contra os físicos alemães ao serviço do nazismo.

Em 1935 Leo Szilard suporta sozinho a carga de angústia que emana da bomba ainda nos

limbos. A maior parte dos seus colegas não acredita nela.

Mas a bomba não tardará a impor-se. A pouco e pouco, acabará por fascinar toda uma

geração de físicos e engenheiros, a quem, como a Szilard, inspirará alguns sentimentos

contraditórios: a excitação ante as forças a libertar, a consciência do risco mortal que ela

importa, mas também a necessidade imperiosa, em face da conjuntura política, de acelerar, por

todos os meios, o seu nascimento.

Discípulos exemplares...

Em 1935, um rumor; em 1986, uma realidade terrível. Os historiadores que, após um

eventual cataclismo nuclear, desejarem narrar as suas etapas preliminares, citarão Los Alamos

como um dos lugares altos dessa preparação. Na logística do grande golpe contra a

Humanidade, este laboratório terá assumido um papel-chave.

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Na película The Day after Trinity são entrevistados vários participantes, tanto sobre o seu

papel como sobre os seus estados de alma ao longo de todos estes anos. Ao mesmo tempo

emocionante e instrutivo, o filme propõe abundante matéria à nossa reflexão.

O Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick, divulgou a imagem do cientista atómico,

paranóico genial, obcecado por engenhos cada vez mais destruidores. Se esta representação não

é sempre destituída de fundamento (alguns quiseram ver nela o retrato de Edward Teller, outro

refugiado húngaro, grandemente responsável pela bomba H), decerto não se aplica à maioria

dos artesãos do «projecto Manhattan» (nome secreto da operação atómica de Los Alamos).

Estudante na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, no fim dos anos cinquenta,

conheci, pessoalmente, vários dos responsáveis deste projecto. Todos eram ardentes pacifistas,

activos oponentes ao maccartismo, esse anticomunismo primário que, na época, se comprazia

em exercer sevícias a torto e a direito.

Hans Bethe dirigiu a secção teórica do projecto Manhattan de 1943 a 1946. De origem

judia alemã, fugira da Europa alguns anos antes. «É uma das mais belas ofertas da Alemanha

nazi aos Estados Unidos», dizia-se dele. Já antes da guerra o classificavam entre os melhores

físicos nucleares.

Muito jovem, tinha resolvido um problema secular: o da fonte de energia do Sol. Em

1938, com alguns colaboradores, demonstrou que o coração das estrelas era palco de reacções

nucleares, cuja energia era mais do que suficiente para explicar a luminosidade das estrelas. Este

trabalho valeu-lhe o prémio Nobel em 1967.

Estou ainda a vê-lo, alto, digno e sereno, percorrendo a largas passadas os corredores do

Rockfeller Hall, edifício do departamento de física da universidade, rodeado por um cenáculo

de jovens investigadores.

Nas conferências semanais daquele departamento sentava-se no fundo da sala e

prosseguia os seus trabalhos, aparentando não dar nenhuma atenção às discussões que se

desencadeavam entre os assistentes. Todavia, quando a situação se obscurecia, ouvíamo-lo

tossir gravemente. Seguia-se um longo silêncio; depois, em algumas frases, dissipavam-se as

brumas, tudo se tornava luminoso. Creio que tínhamos por ele uma verdadeira veneração.

A cada um dos estudantes do laboratório dava uma atenção amigável e exigente. Com

regularidade, vinha até nós e, fingindo querer saber apenas as novidades, acabava por nos

submeter a um interrogatório cerrado sobre o andamento dos nossos trabalhos. A sua passagem

criava muita apreensão: «Fulano está com o mestre, vi-os pela janela. Cheira-me que as coisas

não vão lá muito bem». Mas apreciávamos muito os seus conselhos, o seu olhar sobre os nossos

trabalhos. Deixávamo-nos levar pelo seu vigor e rigor e aceitávamos, de boa mente, as suas

normas de excelência.

58

Consciente da responsabilidade do cientista, consagrou, depois de Los Alamos, uma parte

importante da sua actividade a opor-se à escalada nuclear, argumentando que só o diálogo entre

as partes adversas, só a união ao nível político e humano, podiam afastar a ameaça de guerra.

Membro do conselho científico do presidente dos Estados Unidos, a ele ficámos a dever a

interdição dos ensaios nucleares na atmosfera, decidida em 1963.

Nunca cheguei a saber exactamente qual o papel que Robert Wilson desempenhou em

Los Alamos, mas sem dúvida que se ocupou das experiências. Durante os meus estudos em

Cornell, partilhava ele com Hans Bethe a direcção do Newman Nuclear Laboratory. Tanto

quanto Bethe se nos impunha pela gravidade da sua atitude, assim Wilson era directo e jovial.

Durante as suas aulas não perdia ocasião de implicar com os físicos teóricos, afogados em

equações. Com ele tudo era simples, claro e eficaz.

Wilson é o homem dos aceleradores de partículas. Depois de ter construído o betatrão de

Cornell, dirigiu no Fermi Laboratory, de Chicago, um dos maiores aceleradores actuais,

comparável ao CERN, de Genebra.

Apaixonado pela arquitectura, tinha particular afeição pelas construções do período

gótico, de que falava muitas vezes, com competência e calor. Para ele os aceleradores gigantes

são, de certo modo, as catedrais dos nossos dias. Wilson tem pelo seu trabalho o fervor de um

artesão medieval.

Quero apresentar-vos agora Philip Morrison, sem dúvida o meu preferido. Impossível

perder um curso, uma conferência pública de Morrison. Era o grande espectáculo. Ouço ainda o

seu passo claudicante para o estrado, revejo os seus gestos um pouco patéticos para se instalar e

o seu belo sorriso inteligente, um nadinha malicioso.

A exposição arrancava a todo o vapor, as ideias encadeavam-se numa torrente inspirada,

pontuada de truculência e de entusiasmo irresistíveis. A mistura, sabiamente doseada, de rigor

lógico, de arrebatamentos líricos e de piadas insolentes contra as «instituições», mergulhava-nos

num estado de êxtase, de que se emergia a custo. Queríamos sempre mais... Um dos seus

números favoritos começava por uma iniciação às maravilhas das técnicas de telecomunicações,

para terminar por uma sátira contundente à inépcia das mensagens veiculadas pelas ondas.

Posto na lista negra das autoridades americanas por causa das suas simpatias de esquerda,

foi-lhe cortado, durante os anos cinquenta, todo o acesso aos documentos secretos da defesa

nacional. Nessa época, o seu telefone estava ligado a um posto de escuta e o seu correio era

sistematicamente aberto.

Facecioso, criou um método de detecção das explosões nucleares (pelo seu reflexo sobre

a face escura da Lua), de que enviou uma memória a Washington. Aterrorizados, os

59

funcionários lembram-lhe as interdições de que é objecto. «Se não o querem, a quem me

sugerem que o envie?».

Havia ainda Richard Feynman, preocupado com a filosofia e os problemas religiosos.

Almoçava muitas vezes com os estudantes. Sentíamo-nos fascinados por esta personagem

genial, que fazia física, como jogava bongo.

O caminho da bomba está pavimentado de boas intenções

Não conheci Robert Oppenheimer. Segundo a opinião geral, era um ser de excepção.

Além do seu perfeito domínio da física, possuía uma vasta cultura literária e filosófica. Sentia-se

tão à vontade no domínio das mitologias hindus como no da literatura francesa medieval. Antes

da guerra não dava muita importância aos acontecimentos da política internacional.

Mas ninguém, sobretudo um judeu, pode desinteressar-se da política no início dos anos

quarenta. Em todas as frentes Hitler triunfa. A sua ambição é sem limites, os exércitos alemães

invadem a Europa, subjugando populações inteiras. Os campos de extermínio multiplicam-se. A

nova ordem que se vai impondo ameaça a própria civilização, é o retorno à barbárie e, para os

judeus, a morte a curto prazo.

Por acréscimo, certos rumores deixam entender que os nazis se interessam pela bomba

atómica... Sabemos agora que os Alemães tentaram, efectivamente, desenvolver o armamento

nuclear. Mas não foram muito longe. Para Hitler, o cientista era mais útil na frente de batalha do

que no laboratório. Felizmente! Uma bomba atómica alemã teria mudado o curso da história.

Nessa época opera-se uma aliança simultaneamente espantosa e significativa. O exército

americano confia o projecto nuclear ao general Groves, um militar de carreira, cabeçudo, da

extrema-direita, alérgico aos intelectuais e liberais.

Para seu colaborador científico principal chama Oppenheimer. Estas duas personagens,

na aparência, o mais incompatíveis possível, vão trabalhar em estreita colaboração durante anos.

As vitórias alemãs, os campos de extermínio de judeus, estimulam e dinamizam a equipa

de Los Alamos. No plano moral, a situação é límpida: não é hora para hesitações e escrúpulos. É

preciso fabricar a bomba. E depressa. Creio que, se então tivesse a idade necessária e me

tivessem convidado, ter-me-ia lançado com entusiasmo nesta aventura, com o sentimento

exaltante de participar na salvação da civilização.

Em 8 de Maio de 1945 os exércitos alemães capitulam. É a vitória das forças aliadas na

Europa. No Pacífico, os Japoneses resistem ainda, mas, com toda a evidência, a guerra está

perdida também para eles. A bomba atómica não está ainda pronta.

60

Outras intenções menos boas...

Como se reage em Los Alamos? Mais tarde Bob Wilson dirá: «Nesse dia devia ter

devolvido o meu distintivo, fechado o laboratório para nunca mais lá pôr os pés. Por que não o

fiz? Nunca consegui compreendê-lo. É, em toda a minha vida, o que mais lastimo».

A hipótese de uma interrupção dos trabalhos é timidamente evocada por numerosos

cientistas, mas sobretudo por descargo de consciência. Ninguém, em verdade, acredita nisso. O

clima psicológico não é propício.

Sem dúvida, os argumentos a favor da bomba existem ainda, mas de uma forma

singularmente enfraquecida. Já não se trata de salvar a civilização, mas apenas de poupar as

despesas da invasão do território japonês, poupando, assim, alguns milhões de soldados e civis.

Mais vale sacrificar uma centena de milhar de japoneses...

É bom em termos contabilísticos, mas de uma contabilidade a curto prazo, porque, a

longo prazo, seria necessário ter em conta as centenas de milhões de mortes que uma futura

guerra nuclear poderia ocasionar. «Cá estou, cá fico», diz a bomba.

Isto conduz-nos ao ponto crucial da nossa discussão: será a bomba inevitável?

Suponhamos que, se se tivesse nesse momento decidido fechar a loja, queimar os documentos,

destruir as instalações, porque os Russos já se interessavam pela bomba, cedo ou tarde os

Americanos seriam forçados a retomar os trabalhos.

Como um paquete navegando a toda a velocidade, o projecto, dirá mais tarde

Oppenheimer, era irresistivelmente empurrado pelo seu próprio impulso. «Quando se nos

depara a possibilidade de cometer a proeza técnica, baixamos a cabeça, e atiramo-nos para a

frente, sem perguntar o que nos convirá fazer, uma vez concluída a tarefa. Assim aconteceu com

a bomba atómica». Senhora de todos os argumentos, a bomba atómica não sofreu nunca

qualquer atraso.

Os trabalhos prosseguiram sem interrupção e a bomba de ensaio explodiu no Novo

México no Verão de 1945.

Desde esse momento pôs-se a questão do futuro da bomba. Será preciso usá-la? Em que

condições? Uns propõem que se convidem os generais inimigos para um novo ensaio no mesmo

local, com o fito de os impressionar. Outros pensam que é necessário fazer explodir a bomba

sobre território japonês, mas numa região desabitada.

«Ora bolas para os escrúpulos», dizem os falcões de então, «devastemos com firmeza

cidades não bombardeadas até aqui, para melhor podermos avaliar a extensão das destruições».

É este ponto de vista que triunfa. Depois de Hiroxima e Nagasáqui, os Japoneses pedem a paz.

61

Como terá Hans Bethe vivido estes acontecimentos? «À partida estávamos muito

inquietos. O engenho funcionaria? Quando recebemos as notícias do êxito, ficámos, primeiro,

descansados, para depois mergulharmos no horror. Que foi que fizemos? Que foi que fizemos?»

Desde esse instante data a sua decisão, nunca posta em dúvida, de se opor ao prosseguimento

dos ensaios nucleares.

«Em Los Alamos não reflectíamos», dirá ele mais tarde, «o trabalho absorvia-nos

inteiramente. Era preciso terminá-lo. Penso que, uma vez iniciado, o movimento continuou à

custa do seu próprio embalo».

Philip Morrison procedeu à última inspecção da bomba na ilha de Tinian, justamente

antes da partida para Hiroxima. Na universidade falava livremente, retomando o argumento

oficial dos milhões de vítimas que teria custado o desembarque no Japão. Mas sentíamo-lo

preocupado, muito mais do que desejava mostrar.

Quanto a Bob Wilson, a sua mulher conta que no dia de Hiroxima regressou a casa aos

vómitos. «E ainda vomito todas as vezes que penso nisso», acrescenta ele.

E ilusões: as duas faces de Prometeu

Sobre o estado de alma dos cientistas de Los Alamos, Oppenheimer dirá mais tarde, com

grande lucidez – e aborrecimento de muitos –, que os físicos conheceram o pecado.

Libertar a energia das estrelas é, como fez Prometeu, arrancar o fogo do céu. É a Natureza

controlada, domesticada, dominada, como nunca antes na história dos homens. O físico torna-se

demiurgo.

É fácil imaginar a exaltação no momento da primeira explosão. Oppenheimer conta

como, nesse mesmo instante, lhe vêm à memória as palavras de Krishna no Mahabharata (um

dos livros sagrados da tradição hindu). São versos de ressonância profética:

Os raios de um milhão de sóis

Resplandecendo num só golpe no céu,

Assim será o esplendor do Todo-Poderoso.

Tornei-me a morte,

O destruidor do universo.

62

No seu livro Disturbing the Universe, o físico Freeman Dyson fala, com justeza, do

«pacto faustiano». Tal como Fausto aceita o pacto de Mefistófeles, os físicos aliam-se ao

exército para ascenderem a um nível superior da ciência e do poderio. Mas, enquanto Fausto

suporta sozinho as consequências do seu gesto, o peso das experiências de Los Alamos cai

sobre a Humanidade inteira.

O mito de Prometeu tem duas faces. A primeira remete-nos para Fausto: a embriaguez do

saber e do poder. A segunda é messiânica: Prometeu, benfeitor da Humanidade.

O mito da «força benevolente» é uma imagem intemporal, um desses arquétipos

profundamente gravados na psique humana e que vem regularmente ao de cima na literatura

mundial. É Gilgamesh entre os Assírios, Sansão para os Judeus, Hércules na Grécia antiga e,

mais próximo de nós, o Super-Homem, Tarzan ou Zorro. O poder que vem em socorro das boas

causas, da viúva e do órfão.

No mesmo espírito, Oppenheimer evocará outra passagem do Mahabharata, um

acontecimento da vida de Xiva, o criador dos mundos, mas também o destruidor universal,

quando os tempos chegam ao fim. Xiva tenta trazer à razão um reizinho despótico e quezilento.

Como os seus conselhos de nada servem para lhe instilar um receio salutar, Xiva

metamorfoseia-se e enverga os terríveis trajes de destruidor dos mundos. «Cada um de nós em

Los Alamos foi influenciado, nesse momento ou noutro qualquer, por uma imagem análoga»,

acrescenta Oppenheimer.

«Esperamos que o poder quase ilimitado que vai nascer nos nossos laboratórios sirva para

paralisar as más intenções e para impor aos humanos uma conduta razoável. Oferecemos à

Humanidade uma arma que, nas mãos das Nações Unidas, se tornará uma garantia de paz».

Estas palavras, segundo Oppenheimer, sustentavam os investigadores nas horas de dúvidas e

escrúpulos. «Quem ama castiga», diz o provérbio, mas é preciso um chicote.

Ainda na mesma via, o financeiro americano Bernard Baruch apresentará, alguns anos

mais tarde, um projecto de acordo soviético-americano no qual se pede que as Nações Unidas

criem um arsenal atómico para castigar toda a nação que, tendo reconhecido a nova agência,

ousasse infringir as suas regras. O projecto foi rejeitado por unanimidade...

A bomba provincializa-se

Quem quer que duvide do poder dos mitos, tem de considerar o espectáculo

extraordinário ao qual assistimos aqui: uma imagética mítica que durante anos alimentou o

fervor e apaziguou a consciência desta elite da inteligência mundial.

63

Ilusão... A sucessão de ocorrências ilustrou abundantemente a vaidade desta esperança. A

«força» nunca foi «benevolente». A bomba é uma arma como as outras, se bem que

infinitamente mais poderosa.

Mais tarde, a linguagem mítica retorna, mas o mito provincializa-se. Truman espera que a

América guarde, para sempre, o exclusivismo deste «depósito sagrado» que lhe foi confiado

quase por direito divino. Em 1948 pergunta a Oppenheimer: «Quando serão os Russos capazes

de fabricar uma bomba atómica?». «Não faço a menor ideia». «Pois eu sei!» «Quando?».

«Nunca!», responde Truman, seguro dos seus apoios celestes. Três anos mais tarde um engenho

nuclear explodia na União Soviética...

Por igual religiosamente inspirado, o senador Brian McMahon afirma, depois da

capitulação, que o bombardeamento do Japão é o maior acontecimento da história do mundo

desde o nascimento de Jesus Cristo. E acrescenta: «Os Estados Unidos devem manter-se à

cabeça na corrida aos armamentos, porque, se por infelicidade a URSS os apanha, este poderio

ilimitado nas mãos das forças do mal só poderá conduzir à destruição total».

Depois da guerra santa contra o nazismo, a guerra santa contra o comunismo. A bomba,

decididamente, tem muita sorte, todos os trunfos no seu jogo. Num ritmo infernal, desenvolve-

-se, aperfeiçoa-se, arranja descendência. Os arsenais enchem-se. E quem faz ouvir a voz da

razão?

Os murmúrios inaudíveis da razão

A actividade de Niels Bohr, o pai da física quântica, para travar o processo infernal é, sem

dúvida, uma das passagens mais emocionantes desta história sombria. «É da máxima urgência»,

dizia ele antes mesmo de a bomba estar pronta, «pôr Estaline ao corrente. Na ausência deste

gesto de confiança e boa vontade, será impossível mais tarde estabelecer um controle

internacional da energia nuclear. E teremos direito», predizia ele correctamente, «à escalada do

terror».

Durante vários meses Bohr tentou, em vão, avistar-se com os dirigentes da época.

Finalmente, Churchill concedeu-lhe uma rápida entrevista... na presença de outro convidado.

Escutou distraidamente a petição de Bohr, depois voltou-se para o outro visitante para falar de

um assunto completamente diferente. «Posso escrever-lhe?», perguntou Bohr, desesperado.

«Sim, na condição de não me falar mais de política». Mais tarde Churchill dirá: «Nunca gostei

desse sujeito cabeludo, que queria revelar os nossos segredos aos Russos. Era melhor tê-lo

debaixo de olho».

64

Com Roosevelt, apesar de mais afável, o resultado será o mesmo. A bomba atómica para

os Aliados é uma arma de poder, e não uma força benevolente. E isto desde 1943, muito tempo

antes da sua concretização.

A pedido de Leo Szilard, Albert Einstein contactou duas vezes com o governo americano.

Quando em 1939 quis interessar Roosevelt pelo projecto atómico, foi recebido favoravelmente.

Quando, a seguir à vitória sobre a Alemanha, os dois físicos quiseram opor-se ao

prosseguimento do projecto Manhattan, a Casa Branca fez ouvidos moucos.

Um outro físico inglês, o Dr. Blackett, vencedor do prémio Nobel, apresentou ao

primeiro-ministro Attlee, sucessor de Churchill, uma memória contra a continuação do

armamento nuclear da Inglaterra. Foi acolhido com rudeza e brutalidade. «O autor, um cientista

distinto, fala de problemas políticos e militares de que nada sabe». Para assinalar o facto,

Blackett foi excluído da comissão de defesa nacional.

Contrariamente ao mundo científico, o mundo político parece ter ficado impermeável ao

mito da «força benevolente».

Os filtros

Inclinado sobre a banheira do hotel em Londres, em 1935, Leo Szilard é, de certa

maneira, o anunciador da deusa bomba. O general Graves e Robert Oppenheimer, enfeitiçados

por filtros bem diferentes, mas igualmente eficazes, são os seus grandes sacerdotes.

Quando Groves escuta «o apelo da bomba», todo ele se desunha a construir depósitos de

artilharia. Como verdadeiro soldado, só sonha com a glória militar. «O ministro da guerra

designou-vos para uma missão da mais alta importância. Se a desempenhardes correctamente, a

guerra está ganha».

Nomeado general-de-brigada, Groves passa imediatamente à acção. Organiza o transporte

das suas «tropas» – os melhores cientistas da época, entre os quais alguns prémios Nobel – para

um canto perdido do Novo México. Quer que eles vistam o uniforme do exército americano,

façam a saudação militar e fiquem sujeitos ao segredo mais completo. Para sua grande

decepção, as três exigências são-lhe recusadas.

Groves espumará de raiva ao saber que alguns cientistas manifestaram oposição ao

lançamento da bomba sobre cidades japonesas. Numa memória intitulada «Tratamento

reservado aos investigadores científicos indesejáveis», escreveu que «o projecto Manhattan foi

prejudicado logo à partida pela presença de certos homens de ciência de uma discrição

aproximativa e de uma lealdade duvidosa».

65

Ao aproximar-se a vitória na Europa, fará circular uma nota de acordo com a sua devoção

à causa: «Aconselha-se a que se encarem desde já programas educativos para o pessoal, os quais

sublinharão a importância de manter os trabalhos e a necessidade de acelerar o seu ritmo a

seguir ao dia da vitória, tomando o Japão como objectivo final. O pessoal receberá instruções no

sentido de evitar perdas de tempo a celebrar a vitória sobre a Alemanha com festejos

inconsiderados».

Mas a bomba não tem pátria, está acima das nações, só deve fidelidade a si mesma. O

erro de Groves foi pensar e propagar a ideia de que os Russos seriam incapazes de fabricar

bombas atómicas. Embriagado pelo triunfo, convencido da superioridade absoluta da América,

Groves redigirá um relatório técnico sobre o projecto Manhattan, uma espécie de «fanfarronada

US», distribuído em numerosos exemplares e que os engenheiros soviéticos muito apreciaram e

exploraram em seu proveito.

Não se lhe perdoou a proeza. O seu zelo intempestivo tornou-o indesejável e foi

substituído por homens mais modestos, discretos e competentes. A sua carreira terminou, a

bomba vai continuar sem ele.

Oppenheimer é uma personagem de tragédia, o seu fim será muito mais dramático.

Consagrando a maior parte da sua carreira ao desenvolvimento do armamento nuclear, será

«queimado» logo que manifesta algumas reservas. A propósito, rememoro as palavras de uma

canção de Edith Piaf: «A vida dá-vos todas as hipóteses, para as anular em seguida».

Desde a infância que Robert Oppenheimer é um «pequeno génio». Aos 12 anos apresenta

uma comunicação à Academia de Ciências de Nova Iorque sobre os seus trabalhos em geologia.

«Nunca encontrei ninguém tão rápido a captar um raciocínio», dirá mais tarde Hans

Bethe, que conhecia muito bem a matéria. «Em alguns segundos ele refaz interiormente o

trajecto que nós levámos horas a percorrer».

Este espírito subtil, familiarizado com as altas esferas da abstracção, logrou levar a bom

termo o projecto eminentemente concreto de dirigir um laboratório com várias centenas de

pessoas e de fabricar, num tempo recorde, um engenho atómico. Isto ilustra bem os dons

extraordinários com que a Natureza o dotara. Acrescentemos, para maior exactidão, a sua

grande cultura literária e artística, bem como os talentos culinários, fortemente apreciados pelos

colegas.

Oppenheimer é a pessoa designada para enfrentar o desafio faustiano da conjuntura

política: dar à luz a bomba atómica. Ganhará a parada e será elevado ao vértice da glória.

Depois da guerra residirá em Washington, onde as potências mundiais dão às suas palavras a

maior consideração. Enquanto milita a favor da bomba, a sua vida roça pelo sonho e as honras

chovem sobre ele.

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O seu destino inflecte-se quando começa a manifestar reticências, objecções de

consciência, dúvidas morais. Militares e cientistas não lhe perdoarão o ter penetrado nas suas

motivações profundas. Se, para os soldados, a bomba utiliza o filtro da glória militar, é o filtro

do poder que é servido aos cientistas, juntamente com o das boas intenções.

Quando Oppenheimer insiste em obter isótopos para aplicação médica, é considerado

suspeito de pretender leiloar segredos atómicos. Mas sobretudo será censurada a sua oposição à

prioridade concedida à estratégia dos bombardeamentos nucleares maciços. Contra ele será

montado um processo odioso; o seu passado será vasculhado. A queda será brutal, com a

exclusão da comissão de defesa e a proibição de acesso a todo o material científico

correspondente. Nunca mais recuperará. As últimas imagens do filme The Day after Trinity

mostram-no abatido, precocemente envelhecido, uma sombra de si mesmo.

Apesar da sua oposição ao prosseguimento da escalada nuclear, Hans Bethe não sofrerá

uma sorte tão cruel. Contudo, passa a ser objecto das críticas acerbas por parte dos jovens lobos

da corrida aos armamentos. «O senhor estava cheio de entusiasmo no momento em que se

fabricava a bomba atómica, apesar da oposição dos seus antecessores, que a julgavam

irrealizável. Portanto, agora acabe com esses sermões e deixe-nos aproveitar as nossas

possibilidades». Este discurso dá-nos a medida exacta do nível de reflexão ética e de

responsabilidade moral dos novos trabalhadores do armamento nuclear. Quem falará mais

eloquentemente da potência dos filtros da bomba?

A bomba prolifera

A bomba americana nasceu num transporte eufórico de zelo e entusiasmo. A bomba

soviética apareceu no terror, sob a vigilância das metralhadoras.

Não foi sem razão que Truman duvidou da possibilidade deste engenho nuclear russo. Os

Alemães tinham devastado o país, que se transformara num imenso campo de ruínas. Para

levarem até ao fim o seu projecto, os Estados Unidos tiveram de usar a fundo a sua formidável

infra-estrutura industrial e técnica. Comparando a situação económica dos dois países nessa

época, é caso para efectivamente perguntar como conseguiu Estaline que o seu projecto

triunfasse.

Sabemo-lo hoje. Apesar do estado exangue do território, a bomba, fiel a si própria, ganha

aos pontos à reestruturação social. Utiliza-se a mão-de-obra gratuita dos goulags. Em condições

por vezes medonhas, centenas de milhares de operários trabalham dia e noite sob a ameaça das

espingardas.

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As instalações são montadas a toda a pressa, sem respeito pelas condições de segurança.

Um engenheiro alemão falará mais tarde de «condições criminosas». Aos riscos de incêndio e

de inundações junta-se a certeza das irradiações.

Em 1947, a explosão de um depósito de dinamite provoca 70 mortos e 170 feridos. Nada

afrouxa a cadência de trabalho. Mesmo os físicos são submetidos ao terror. «Que teria

acontecido se não tivéssemos conseguido?», escreverá um deles à família. «Teríamos sido

simplesmente fuzilados». O destino do físico soviético Sakharov tem analogias com o de

Oppenheimer. Pioneiro da bomba de hidrogénio, menino bonito das autoridades militares

durante vários anos, as perseguições de que é hoje objecto relacionam-se com a sua oposição às

explosões nucleares atmosféricas. Kruchtchev nunca lhe perdoou.

E em França? Aproveitando as fraquezas da IV República e as mudanças frequentes de

governo, a bomba francesa será obra de um pequeno número de tecnocratas, sem licença oficial

do parlamento e, sobretudo, na ausência completa de discussões democráticas. Quando explode,

em 1960, contentar-se-ão em a... homologar. Sem vergonha, o seu «desenvolvimento» pesa

sobre a nação, deixando recordações pungentes. A última, em data, chama-se... Greenpeace.

Em Inglaterra, Churchill, conhecido pelo seu temperamento autoritário, chega ao poder

em 1951 e nunca conseguirá compreender como, sob o governo socialista precedente, puderam

os engenheiros ingleses gastar um milhão de libras para a bomba, sem que alguma vez o

parlamento tivesse ouvido falar dela.

A maldição é que a bomba tem todos os trunfos no seu jogo: Bob Wilson mencionava «o

impulso irresistível do poderio tecnológico associado à máquina burocrática» quando procurava

compreender por que é que a capitulação da Alemanha nazi não provocara a interrupção dos

trabalhos.

Acrescentemos o pavor paranóico e a histeria causados pela bomba russa, que, na opinião

dos especialistas, «nunca devia ter causado um tal pânico». Os falcões passam por cima de tudo

e aproveitam todas as circunstâncias sem se preocuparem com as responsabilidades políticas.

«Ao longo da história atómica as decisões são sempre apresentadas ao público como

inelutáveis. Contudo, nunca as iniciativas pessoais, os temores histéricos e os entusiasmos

passageiros terão, neste ponto, ditado o curso da história mundial.», escreveram Pringle e

Spiegelman... em Les barons de l’atome, um livro cuja leitura nunca me cansarei de

recomendar.

Num autor chamado Peter Sloterdisk encontrei este belo texto, completamente em

harmonia com as páginas precedentes: «Perfeita, soberana, indiferente, a bomba atómica é o

verdadeiro buda do Ocidente. Imóvel, repousa no seu silo: actualidade pura e pura

potencialidade. É a encarnação das energias cósmicas e a participação dos homens nessas

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energias; é a obra-prima da espécie humana e a exterminadora desta espécie; é o triunfo da

racionalidade técnica e a dissolução na paranóia...

Não é mais viciosa do que a realidade, nem mais destruidora do que nós. Ela é, muito

justamente, o reflexo do que nós somos e a expressão materializada dos nossos modos de agir.

Mais do que considerações estratégicas, é um profundo exame que temos de fazer em

relação à bomba. Ela não requer nem luta nem resignação, mas a experiência de nós próprios.

Nós somos ela».

A proliferação em 1986

Depois dos Estados Unidos, a União Soviética, a França e a Inglaterra, a China e a Índia

fabricaram e fizeram explodir engenhos termonucleares. Cinco outros países encontram-se em

excelente posição nesta corrida: a Argentina, o Brasil, Israel, o Paquistão e a União Sul-

-Africana. Embora não possuam ainda um arsenal atómico completo, estas nações deram já

grandes passos nesse sentido.

Há alguns anos foi assinado por vários governos um tratado de não proliferação, o qual,

por razões diversas, tem sido largamente contestado. Duas nações do clube nuclear, a França e a

China, recusaram-se a assiná-lo, no que foram compreensivelmente imitadas pela maior parte

dos países desejosos de obter a bomba.

Os antepassados da bomba

Corremos o risco de esquecer, ao mitificar a bomba, ao ver nela a encarnação de um ser

diabólico, que ela tem antepassados notórios. É a última de uma série de armas mortíferas

criadas pela imaginação fértil dos homens durante toda a sua história.

Desde a mais alta antiguidade, todas as invenções, todas as energias novas, são

sistematicamente usadas para fins guerreiros. Dardos, flechas, fogos, cavalos, juntam-se ao

arsenal dos exércitos em conflito. Lucrécio, o nosso «correspondente romano», dá-nos disso um

testemunho eloquente: «Aprendeu-se a domar os cavalos, a dirigi-los com um freio e a montá-

-los. Em seguida, tentou-se combater num carro puxado por dois cavalos, mais tarde, por quatro.

Depois vieram os carros armados de foices cortantes, em seguida os Cartagineses domesticaram

elefantes e treinaram-nos para a guerra.

Assim, a cruel discórdia inventou armas cada vez mais mortíferas e aumentou em cada

dia os horrores da guerra».

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Escrito há mais de dois mil anos, este texto é para nós rico de ensinamentos. A última

frase podia ter sido escrita ontem mesmo. Apesar do acréscimo prodigioso de conhecimentos,

apesar dos progressos tecnológicos, a alma humana mantém-se resolutamente fiel às suas

tradições. E esse é que é o problema.

Os elefantes de Aníbal ameaçavam somente as legiões romanas. A pólvora de canhão, a

dinamite, aumentam consideravelmente os destroços. Com a energia nuclear, a «cruel

discórdia» pode pensar a sério na eliminação da espécie humana.

Um erro da natureza?

Mal adaptado, porque com excessivas garantias, nefasto ao equilíbrio do planeta, será o

ser humano, em definitivo, um erro da Natureza?

Avaliam-se em mais de um milhão as espécies vegetais e animais que vivem actualmente

na Terra. O total de espécies aparecidas no decurso da evolução biológica atingirá os dez

milhões. No entanto, nove em cada dez desapareceram.

Nenhuma espécie é sagrada. Cada uma surge do jogo da Natureza, do acaso das

mutações biológicas. Para durar precisa de arranjar um nicho, estabelecer um comportamento de

trocas, receber e dar, inserir-se num ecossistema. Caso contrário, a eliminação é inexorável.

Há sessenta e cinco milhões de anos, os dinossauros, os fetos gigantes, os amonites,

desaparecem bruscamente da superfície terrestre. Sobre a causa desta catástrofe não dispomos

de certezas. Pode ter sido a chegada súbita e importante de materiais extraterrestres (meteorito

gigante ou nuvem interestelar). Segundo toda a probabilidade, estes seres não foram

responsáveis pelo seu desaparecimento. A Natureza não lhes pediu a opinião. Mas o ser

humano, se chegar a sua vez de desaparecer, não poderá senão culpar-se a si próprio. Nada nos

ameaça além do que nós provocamos.

A destruição nuclear da Humanidade poderia arrastar a eliminação de uma fracção

importante – mesmo a totalidade – das espécies animais e vegetais. Se o arsenal não é ainda

suficiente para causar esta hecatombe, não demorará muito a sê-lo. De novo temos de saudar a

eficácia da inteligência humana. Importa aqui reconhecer o papel pouco invejável

desempenhado pela nossa cultura ocidental. Se o grau de civilização de um grupo humano se

mede pela harmonia das suas relações com o meio ambiente, a nossa quota é a mais baixa.

Tomo por testemunho estas palavras desgostosas de um velho índio do meu país: «Os brancos

riem-se da terra, do gamo ou do urso. Quando nós, índios, os caçamos, comemos toda a carne;

quando procuramos raízes, fazemos pequenos buracos; quando queimamos a erva, por causa dos

70

gafanhotos, não arruinamos tudo. Sacudimos as glandes e as pinhas das árvores. Só utilizamos a

madeira morta.

Mas o homem branco revira o solo, abate as árvores, destrói tudo. A árvore diz: «Pára,

estou ferida, não me faças mal». Mas ele abate-a e corta-a em pranchas. O espírito da terra

odeia-o. Ele arranca as árvores e abala-as até às raízes... Ele estoira os rochedos e deixa-os em

detritos sobre o solo. A rocha diz: «Pára; tu fazes-me mal». Mas o homem branco não lhe dá

atenção. Como poderia o espírito da terra amar o homem branco? Por toda a parte onde toca

deixa uma chaga».

No nosso planeta habita um grande número de culturas diferentes, cada uma das quais

desenvolveu as suas próprias estratégias de subsistência, o seu modo de vida adaptado ao

enquadramento natural. A pesca dos Esquimós difere da de Benin. A agricultura maciça das

pradarias canadianas não se assemelha à jardinagem familiar dos camponeses da Índia. Tal

como as técnicas de vida, as relações do homem com a Natureza variam largamente de um lugar

para outro. Como os índios da América, como muitos hindus, numerosas sociedades tradicionais

têm pela Natureza um respeito profundo, com vislumbres de animismo.

A ciência e a tecnologia do poder nasceram no nosso mundo ocidental, precisamente

onde a relação mística com a Natureza foi desde há mais tempo posta em causa. E, sem dúvida,

isso não aconteceu por acaso. Reencontramos aqui a imagem de Prometeu arrancando o fogo do

céu: o «pecado» que, segundo Oppenheimer, os físicos conheceram em Los Alamos.

Se há uma relação entre a rejeição da piedade ancestral e a eclosão da ciência, em que

sentido se desenvolve ela? Da impiedade à ciência ou da ciência à impiedade? Com toda a

verosimilhança, alternada ou simultaneamente, nos dois sentidos.

O importante para nós é o facto histórico do surgimento da cultura tecnológica ocidental,

cuja influência hegemónica se propaga e impõe a todo o planeta.

Os imperativos industriais e comerciais, os meios de comunicação e transporte, interditam

o isolamento do passado. No século XIX os Japoneses foram forçados a abrir as portas ao

Ocidente. As últimas tribos da Amazónia extinguem-se em Tristes Trópicos, de Lévi-Strauss.

Será inevitável a inteligência e a curiosidade conduzirem à eclosão de uma sociedade

tecnológica, apoiada no domínio das energias? Esta interrogação, muitas vezes formulada,

parece-me inadequada.

Imaginemos um planeta «lambda» onde, como na nossa Terra, uma multidão de culturas

diferentes desenvolve em separado as suas relações com a Natureza. Mesmo que a quase

totalidade destes grupos mostre apenas um interesse moderado pela ciência e pela tecnologia,

71

basta que esta paixão apareça algures para se impor a todos. A tecnologia é invasora, arrasta a

sua própria expansão territorial.

A natureza do escorpião

Na margem arenosa de um grande rio africano um leão dorme. É de tarde, faz calor. Não

corre a menor aragem.

Um escorpião aproxima-se: «Levanta-te. Tenho necessidade da tua ajuda», diz ele, dando

uma cotovelada ao leão, «preciso de passar para o outro lado do rio. Aqui não há mais ninguém.

Põe-me sobre as tuas costas e leva-me a nado».

Surpresa do leão: «Eu, nadar com um escorpião no dorso? Tu vais-me picar e eu

morro...». O escorpião defende habilmente a sua causa: «Não sejas estúpido. Se eu te pico,

afogamo-nos os dois. Nada te acontecerá». Obstinado, o leão procura argumentos. Mas a

agilidade intelectual do escorpião, aliada à lógica insuperável da sua deprecada, acaba por

vencer. «Sobe», diz o leão.

A passo lento, o leão, desconfiado, avança na água tépida. Começa a nadar. A meio do

rio, uma dor viva paralisa-o. O duo é levado pela corrente.

«Olha bem o que fizeste», diz o leão, «vamos perecer os dois». «Eu sei», responde o

escorpião, «lamento muito, mas ninguém escapa à sua natureza».

Os acontecimentos dos últimos decénios dão a esta fábula toda a pertinência. Estará na

natureza do homem fabricar, o mais depressa e o mais eficazmente possível, as armas da sua

autodestruição? Se tal é o caso, poderemos nós escapar à nossa natureza?

A aposta cósmica

Neste primeiro capítulo esbocei o balanço de uma situação particularmente alarmante: a

do futuro do género humano. A acumulação delirante de engenhos termonucleares, a

proliferação do armamento atómico, fazem-nos prever o pior.

As armas – a História no-lo ensina – acabam sempre por funcionar. Os pretextos de

legítima defesa tornam-se alibis de agressão. Se o passado é a garantia do futuro, quem

apostaria no futuro da paz mundial? E, se o tiroteio começa, quem apostará na sobrevivência da

espécie humana?

Mas qual o efeito produzido no espaço interestelar por um fogo-de-artifício de bombas

atómicas no nosso planeta? Praticamente nenhum... Os habitantes dos sistemas planetários,

72

mesmo os mais vizinhos, serão incapazes de o detectar! Uma peripécia perfeitamente

desprezível à escala galáctica e do cosmos. Para que diabo tantas histórias?

E, contudo... Se a vida existe em outros sistemas planetários, à volta de outras estrelas, se

neles apareceram civilizações tecnológicas, não correrão elas também o risco, impulsionadas

pela «cruel discórdia», de serem confrontadas com o mesmo problema? Quantas populações

planetárias chegaram antes de nós à encruzilhada crucial em que nos encontramos neste

momento sobre a Terra? Quantas mergulharam no nada por não terem sabido executar a

manobra correcta? E quantas souberam passar no exame da coexistência pacífica com o seu

próprio poderio?

Um silêncio assustador

Pascal assustava-se com o silêncio dos espaços infinitos. Mas o céu, sabemo-lo hoje, não

é para nós um estranho. Lá se elaboram, no centro das estrelas, como nas nebulosas, os núcleos,

os átomos e as moléculas, que formarão mais tarde a infra-estrutura da consciência.

Existirá vida fora da Terra, noutros planetas, ao redor de outras estrelas, entre os milhares

de milhões de galáxias do nosso universo? Temos excelentes razões para pensar que os escalões

da complexidade são vencidos quando as condições físicas o permitem. E que estas condições

férteis existem em milhões e milhões de exemplares no cosmos.

Porquê então nunca recebemos mensagens, radiofónicas ou de outro género, provenientes

do céu? Há várias respostas. Examinemos, sucessivamente, quatro delas:

1 – Contrariamente à opinião apresentada acima, estamos sós. A vida não se

desenvolveu em qualquer outro lugar. É possível, mas, considerando os

conhecimentos actuais, esta explicação é difícil de aceitar;

2 – As civilizações extraterrestres comunicam por métodos de transmissão que

escapam ainda à nossa tecnologia. Não se pode refutar esta hipótese;

3 – Os nossos mais próximos vizinhos estão demasiado longe para os nossos

receptores actuais, por exemplo, se habitam na galáxia de Andrómeda. As

próximas gerações de radiotelescópios poderão então reservar-nos algumas

surpresas;

4 – Incapazes de gerir a sua agressividade, as civilizações tecnológicas exterminam-se

logo que disso se tornam capazes.

Se a boa resposta é a última, o «silêncio dos espaços infinitos» tem um significado

assustador muito diferente do que tinha para Pascal.

73

Além-Mar Novembro 2005

Excertos

Um mundo perigoso

Durante décadas, a política nuclear tanto da ex-União Soviética como dos Estados Unidos

baseava-se no conceito de dissuasão de destruição mútua assegurada (MAD). Apesar do fim da

Guerra Fria, o espectro do terror ainda assombra a humanidade. Os arsenais nucleares foram

reduzidos drasticamente, mas ainda existem milhares de ogivas nucleares. Em 1994, Norte-

-Americanos e Russos concordaram em redireccionar os seus mísseis. Já em 2001, George W.

Bush afirmou ser necessário voltar a testar armas nucleares. A pesquisa e o desenvolvimento de

armas nucleares continuam, a par das mudanças no quadro político mundial. Tradicionalmente,

cinco países integravam o clube atómico: Estados Unidos, Rússia, China, França e Grã-

-Bretanha. Contudo, parece consensual que outros países também possuem armas nucleares. A

Índia e o Paquistão já realizaram testes nucleares, que acenderam temores de uma escalada

armamentista no Sudeste Asiático. Entre outras nações suspeitas de terem programas nucleares

contam-se Israel, a Argélia e o Irão. Para além da Coreia do Norte, onde impera um regime

desumano e desacreditado que, apesar de sucessivos acordos e ameaças de sanções, recorre

sempre ao nuclear para pressionar a comunidade internacional. Mais de 180 países assinaram o

Tratado de Não-Proliferação Nuclear, em vigor desde 1970. Até hoje, porém, várias nações sob

forte suspeita de ocultarem as suas ambições nucleares ainda não o fizeram.

Presentemente, com a globalização do terrorismo, uma das maiores ameaças que pesam

sobre o mundo é que algum grupo radical se apodere do material atómico que, no caso da

ex-URSS, foi deixado praticamente ao abandono, espalhado por vastas regiões do ex-império

soviético. Há provas de que há contrabando de material nuclear e conhece-se até os nomes de

alguns grandes traficantes. Mas a revista Scientific American lembrou recentemente que

«qualquer tráfico detectado é apenas a ponta do iceberg» e que, naturalmente, «o mercado negro

de material nuclear não é excepção». O artigo alerta: «É ingénuo acreditar que as autoridades

interceptem mais de 80 por cento do que é traficado. Mas, neste caso, mesmo uma pequena taxa

de não apreensões pode ter resultados funestos.» Mikhail Kulik, um especialista em armamento

russo, afirma que, «hoje em dia, até mesmo os “stocks” de batatas são provavelmente mais bem

guardados do que os materiais radioactivos». Outro perigo: após o desmembramento da URSS,

uma boa parte do pessoal que trabalhava no programa militar soviético ou ficou desempregado

ou perdeu subitamente o prestígio e o poder de compra. Daí ser grande a tentação de desviar e

74

vender parte dos «stocks» ou de ser aliciado por países ou grupos que paguem melhor pelo seu

saber.

75

Sam Keen O homem na sua plenitude S. Paulo, Cultrix, 1998

Excertos adaptados

O rito da guerra e a psique do guerreiro

«O direito do mais forte é a mais forte injustiça»

Eu tinha catorze anos quando lutei de verdade pela última vez, com punhos e pés e o que

quer que tivesse à mão. Já não me lembro do motivo da briga, talvez fosse uma rapariga, talvez

um insulto casual no autocarro da escola, talvez porque “o inimigo” morasse do outro lado da

linha imaginária, na rua Bellefonte, e frequentasse outra escola. Do meu ponto de vista, Charley

era meio efeminado. Peito cavado, ombros caídos, caminhava com um passo longo de macaco.

De qualquer maneira, a guerra fora declarada, e nós concordámos em encontrar-nos no terreno

baldio ao lado da casa de Nancy Ritter. Na hora aprazada, aparecemos no campo de batalha,

cada qual acompanhado por membros escolhidos das respectivas tribos. Durante algum tempo,

limitámo-nos a circular um em volta do outro, esperando que o outro desfechasse o primeiro

murro. “Queres alguma coisa?” “Se me puseres a mão em cima, dou cabo de ti.” Aproximámo-

-nos um pouco mais. Começámos a empurrar-nos, voaram punhos para todos os lados, e o

primeiro atingiu-me no nariz. “Raios!”, gritei. Eu era melhor na luta do que no boxe, por isso

pensei numa estratégia. Atirei-me ao chão, agarrei-lhe as pernas e derrubei-o. Depois de muito

rolar, com o braço encolhido, esperneando, acabei debaixo dele, incapaz de me mover.

“Desiste”, ordenou ele, “ou parto-te o braço.” Torceu-me o braço e esfregou-me a cara no

cascalho. “Rendes-te?” Doía-me o rosto, porém menos do que o orgulho. Ambos sabíamos que

eu estava derrotado, mesmo que não quisesse render-me. Por isso, ele soltou-me o braço e,

depois de algumas descomposturas e humilhações obrigatórias, fomos para casa.

Naquela noite, seguindo à risca o enredo das histórias de quadradinhos, jurei que nunca

mais seria esmurrado por um maldito “maricas”. Mandei vir um curso de Charles Atlas e

comecei a transformar um fracote de quarenta e seis quilos numa máquina magra e pequena de

combate. No segredo do meu quarto, praticava “tensão dinâmica”, levantava pesos, fazia

exercícios abdominais e de levantamento de pernas. Mais tarde, fiz um curso de luta livre.

Durante anos, mesmo depois de entrar na casa dos trinta, exercitei-me na Associação Cristã de

Rapazes. Aperfeiçoei as minhas técnicas de agarrar e derrubar o adversário e, uma vez por

76

outra, entrei em competições na classe dos pesos médios. Nunca fui campeão, mas aprendi a

gostar de lutar. E nunca mais ninguém me esfregou o rosto no chão.

Entretanto, estudava filosofia e afiava as armas da dialéctica, do debate e da

argumentação. Já com um doutoramento, tinha a mente ainda mais qualificada do que o corpo

na arte da defesa pessoal. Como professor, participava de combates diários com colegas e

alunos. Era bom no jogo académico, gostava dele e jogava para vencer. Mal notei que, com o

passar dos anos, fui adoptando aos poucos uma atitude combativa em relação aos demais – a

mente e a postura do guerreiro. Eu era muito melhor a lutar do que a reflectir ou a amar.

Agentes da violência

Por que é que o género que nos deu a Capela Sistina nos levou à beira do cosmocídio?

Por que é que os melhores e os mais brilhantes exercitaram a inteligência, a imaginação e a

energia, e só conseguiram criar um mundo em que a fome e a guerra são mais comuns do que

nos tempos neolíticos? Por que é que a história do que nos atrevemos a chamar “progresso” foi

marcada pelo aumento do sofrimento humano?

Não será porque os homens estão decididos a ser vorazes, agressivos e brutais? Estará

algum gene egoísta, algum imperativo territorial, a impelir-nos cegamente para a acção hostil?

Estará a história de Caim e Abel gravada no nosso ADN? Estará o excesso de testosterona a

condenar-nos à violência e a enfartes prematuros?

Como os homens têm sido, historicamente, os principais agentes da violência, é tentador

atribuir a culpa à nossa biologia e concluir que o problema reside mais no projecto equivocado

da natureza do que na nossa obstinação. Mas todas as explicações deterministas passam por

cima do óbvio: os homens são sistematicamente condicionados para suportar a dor, para matar e

a morrer ao serviço da tribo, da nação ou do Estado. A psique masculina, antes de mais nada, é a

psique do guerreiro. Nada nos plasma, molda e modela tanto como a exigência da sociedade de

que nos tornemos especialistas no uso do poder e da violência, ou, como dizemos

eufemisticamente, na “defesa”. Historicamente, a principal diferença entre homens e mulheres é

que sempre se esperou que os homens fossem capazes de recorrer à violência quando

necessário. A capacidade e a disposição para a violência têm sido centrais na nossa

autodefinição. A psique masculina não foi construída sobre o racional: “Penso, logo existo”,

mas sobre o irracional: “Conquisto, logo existo”.

Quanto ao que veio a tornar-se o estado de emergência banal da vida moderna,

concedemos ao Estado o poder de interromper a vida dos rapazes, de os convocar para servir o

exército e iniciar no ritual da violência. Clichés que passam por sabedoria dizem-nos: “O

exército fará de si um homem”, e “Todos os homens precisam de ter a sua guerra”.

77

O ingresso no exército ou – se se é um dos “poucos felizardos” – na marinha, envolve o

mesmo processo de destruição sistemática da individualidade que acompanhava a iniciação nas

tribos primitivas. A cabeça rapada, o uniforme, os abusivos instrutores de exercícios, as provas

de iniciação física e emocional da instrução dos recrutas da marinha, visam destruir a vontade

do indivíduo e ensinar ao recruta que a virtude fundamental do homem é não a de pensar por si

mesmo, mas antes a de obedecer aos superiores, não seguir o que lhe ordena a consciência, mas

cumprir ordens. Como os ritos de todas as sociedades guerreiras, isto ensina os homens a dar

valor ao que é duro e a desprezar o que é “feminino” e terno. Em parte alguma, como nas forças

armadas, aprendemos com tanta clareza a máxima primitiva de que o indivíduo precisa de se

sacrificar à vontade do grupo, vontade essa representada pelas autoridades.

Na iniciação mítica, o neófito identifica-se com os heróis tribais, cuja história

proporciona o modelo que será sobreposto à sua biografia. Que esse modo mítico-místico de

iniciação ainda se encontra vigente na chamada “mente moderna” pode ver-se nas contínuas

referências ao grande herói americano John Wayne, e na literatura que está a emergir sobre a

experiência vietnamita. “A guerra era vista como uma prova de virilidade em que John Wayne

matava todos os inimigos... Ocorriam-me imagens de filmes de John Wayne em que eu era o

herói... As pessoas vêem os maus e os bons na televisão e no cinema... Eu queria matar o mau.”

Os primeiros cristãos aprendiam que a vida autêntica era uma “imitação de Cristo”; os iniciados

nos cultos de mistério transformavam-se no deus Dionísio; os bons rapazes americanos que iam

para a batalha transformavam-se em John Wayne, o homem mítico divinizado e imortalizado

pelos media.

Nos últimos quatro mil anos, o baptismo de fogo tem sido um grande rito masculino de

iniciação. A meta do homem era conquistar a medalha de bravura. Numa reportagem sobre o

Vietname, Phillip Caputo expõe a tradição de uma forma clássica: “Antes do combate, aqueles

fuzileiros navais ajustam-se a ambas as definições da palavra infantaria que, ou significa “corpo

de soldados equipados para o serviço a pé”, ou “infantes, meninos, jovens, em colectividade”. A

diferença era que a segunda definição já não podia ser-lhes aplicada. Tendo recebido o

sacramento fundamental da guerra, o baptismo de fogo, a sua meninice tinha ficado para trás.

Na ocasião, nem eles nem eu pensávamos nisso nesses termos. Não nos dizíamos a nós mesmos:

“Estivemos debaixo de fogo, derramámos sangue, agora somos homens.” Simplesmente

tínhamos consciência, de um modo que não podíamos expressar, de que alguma coisa

significativa nos acontecera.

Embora apenas uns poucos homens sirvam realmente nas forças militares e menos ainda

tenham sido iniciados na fraternidade dos que mataram, todos os homens estão marcados pelo

sistema da guerra e pelas virtudes militares. Todos se perguntam: “Sou um homem? Poderia eu

78

matar? Posto à prova, revelar-me-ia um bravo? Tem alguma importância o facto de eu ter

realmente matado ou de me ter arriscado a ser morto?

Dar-me-iam mais ou menos valor se eu tivesse sido submetido ao baptismo de fogo? Eu

dar-me-ia mais ou menos valor? Que mistério especial envolve o iniciado, o veterano? Que

certificado de virilidade se equipara ao Purple Heart ou à Medalha de Honra do Congresso?”

Os homens foram todos programados culturalmente para conquistar, matar ou morrer. Já

no começo da vida, o rapaz aprende que precisa de estar preparado para lutar ou será apelidado

de “maricas”, de “mulher”. Muitos homens criativos que conheço eram sensíveis, compassivos

demais para lutar. E quase todos cresceram sentindo-se, de certo modo, inferiores e com a

certeza de que não tinham passado a prova da masculinidade. Desconfio que muitos escritores

ainda estão a mostrar aos valentões do bairro que a pena é mais forte do que a espada. A prova

modelou-nos, quer tenhamos lançado bombas ou sido apanhados por elas.

Somos todos feridos de guerra.

79

M.Scott Peck Gente da Mentira Cascais, Sinais de Fogo, 2001

Excertos adaptados

MyLai: uma análise da maldade em grupo

Prefácio à maldade em grupo

Os gatilhos são premidos por indivíduos. As ordens são dadas e cumpridas por

indivíduos. Em última análise, cada acto humano é resultado de uma escolha individual.

Nenhum dos indivíduos que participou nas atrocidades de MyLai ou no seu encobrimento está

isento de culpa. Até o piloto de helicóptero – o único suficientemente bom e corajoso para tentar

impedir o massacre – pode ser culpado por não reportar o que vira para além do primeiro

escalão de autoridade acima de si.

Há muitos anos que a tendência de comportamento dos grupos humanos me parece

semelhante à dos indivíduos – excepto a um nível mais primitivo e imaturo do que se possa

pensar. Porque é que isto é assim – porque é o comportamento dos grupos surpreendentemente

imaturo – por que motivo, de uma perspectiva psicológica, são estes menos do que a soma das

suas partes – já não sei responder.1 Mas de uma coisa tenho a certeza, no entanto: existe mais do

que uma resposta certa. O fenómeno da imaturidade de grupo é – usando o termo psiquiátrico –

“multi-determinado”. Quer isto dizer que é o resultado de múltiplas causas. Uma dessas causas é

a especialização excessiva.

A especialização é uma das grandes vantagens dos grupos. Existem processos para um

grupo funcionar muito mais eficientemente do que os indivíduos. Em virtude de os seus

funcionários se terem especializado em directores executivos, gráficos, moldadores, e técnicos

da linha de montagem (que, por sua vez, são também especializados), a General Motors

consegue produzir um número gigantesco de veículos. O nosso padrão de vida

extraordinariamente elevado baseia-se inteiramente na especialização da nossa sociedade. O

facto de eu possuir os conhecimentos e o tempo para escrever este livro é consequência directa

do facto de ser um especialista dentro da nossa comunidade, totalmente dependente de

agricultores, mecânicos, editores e vendedores de livros para o meu bem-estar. Dificilmente

posso considerar a especialização como uma coisa má. Por outro lado, estou totalmente

1 É uma questão verdadeiramente importante e merecedora de grande pesquisa e aprofundamento. É um tema não só específico da maldade em grupo em geral – como se não fosse suficiente – mas também crucial para a compreensão de todos os fenómenos de grupos humanos, desde as relações internacionais à natureza da família.

80

convencido de que muito do mal dos nossos tempos se relaciona com a especialização, e de que

precisamos desesperadamente de desenvolver uma atitude de precaução desconfiada. Penso que

deveríamos tratar a especialização com o mesmo grau de desconfiança e medidas de segurança

com que tratamos os reactores nucleares.

A especialização contribui para a imaturidade dos grupos e para o seu potencial para a

maldade através de vários mecanismos diferentes. Por agora, limitar-me-ei a tecer considerações

sobre apenas um desses mecanismos: a fragmentação da consciência. Se, na época de MyLai, ao

percorrer os corredores do Pentágono, parasse para falar com homens responsáveis pela

direcção de produção e transporte de bombas de napalm para o Vietname, e os questionasse

sobre a moralidade da guerra e consequentemente sobre a moralidade do que estavam a fazer,

esta era a resposta que invariavelmente recebia:

— Oh, agradecemos a sua preocupação, agradecemos mesmo, mas acho que veio ter com

as pessoas erradas. Não somos nós o departamento que deseja. Isto é apenas o departamento do

arsenal. Só fornecemos as armas – não somos nós que determinamos onde e como são usadas.

Isso é política. Devia era falar com o pessoal da política, ao fundo do corredor.

E se seguisse esta recomendação e exprimisse as mesmas apreensões no departamento de

política, a resposta seria:

— Oh, compreendemos que estão envolvidos assuntos mais complexos, mas acho que

estão fora do nosso âmbito. Apenas determinamos como deve ser conduzida a guerra – e não se

deve ser conduzida. Compreende, as Forças Armadas são apenas uma secção da divisão

executiva. Só fazem o que lhes mandam fazer. Esses assuntos mais complexos são decididos ao

nível da Casa Branca, e não aqui. É aí que deve expor as suas apreensões.

E assim por diante.

Sempre que os papéis desempenhados por indivíduos num grupo se tornam

especializados, torna-se possível e fácil para o indivíduo descartar a responsabilidade moral para

qualquer outra parte do grupo. Desta forma, não só o indivíduo põe de lado a sua consciência,

como a consciência do grupo como um todo se torna tão fragmentada e diluída que deixa de

existir. Veremos esta fragmentação vez após vez, de uma forma ou de outra, na discussão que se

segue. O facto é que é inevitável que qualquer grupo permaneça potencialmente sem

consciência e mau até que cada um dos indivíduos se sinta pessoal e directamente responsável

pelo comportamento do grupo inteiro – do organismo – do qual faz parte. Ainda estamos longe

de chegar a esse ponto.

Tendo presente a imaturidade psicológica dos grupos, vamos examinar alguns aspectos de

ambos os crimes de MyLai: as atrocidades em si e o seu encobrimento. Os dois crimes estão

deveras interligados. Embora o encobrimento pareça menos atroz do que o massacre, são ambos

81

farinha do mesmo saco. Como foi possível que tantos indivíduos tenham participado numa

maldade tão monstruosa sem que nenhum deles tenha sido compelido pela sua consciência a

confessar?

O encobrimento foi uma mentira de grupo gigantesca.

Como com qualquer mentira, o motivo principal do encobrimento foi o medo. Os

indivíduos que cometeram os crimes – que puxaram o gatilho ou que deram as ordens – tinham

razões óbvias para recear relatar o que tinham feito. Seriam julgados em tribunal marcial. Mas,

então, o que dizer sobre o número muito maior de indivíduos que apenas presenciaram as

atrocidades, mas que nada disseram sobre “aquela coisa tão negra e sangrenta”2? O que tinham

eles a recear?

Qualquer pessoa que dedique algum tempo a pensar sobre a natureza da pressão num

grupo percebe que, para um elemento da Força de Intervenção Barker, denunciar um crime fora

desse grupo exige uma grande coragem. Quem quer que o fizesse seria chamado “delator” ou

“bufo”. Não existe pior nome que se possa chamar a alguém do que esse. Os bufos são muitas

vezes assassinados. No mínimo, são condenados ao ostracismo. Para um vulgar civil americano,

o ostracismo pode não parecer um destino assim tão terrível. “Então, se se for corrido de um

grupo, pode-se sempre entrar noutro”, pode ser uma reacção. Mas lembremo-nos de que um

membro das Forças Armadas não é livre para simplesmente aderir a outro grupo. Não pode

sequer deixar as Forças Armadas até terminar o seu recrutamento. A própria deserção é um

crime enorme. E por isso ele está preso às Forças Armadas, e até mesmo ao seu grupo militar

em particular, excepto mediante intervenção das autoridades. Para além disto, as Forças

Armadas fazem deliberadamente muitas outras coisas para intensificar o poder da pressão de

grupo nas suas fileiras. Do ponto de vista da dinâmica de grupo, e em especial da dinâmica de

grupos militares, não será estranho que os elementos da Força de Intervenção Barker não

tenham denunciado os crimes do grupo. Nem sequer é surpreendente que o homem que

finalmente delatou os crimes não pertencesse nem ao grupo da Força de Intervenção nem às

Forças Armadas, na altura em que os denunciou.

Suspeito que existe uma outra razão extremamente importante para que os crimes de

MyLai tenham ficado por denunciar durante tanto tempo. Não tendo falado com os indivíduos

envolvidos, apresento uma mera conjectura. Mas, de facto, falei com muitos, muitos outros

soldados que estiveram no Vietname nesses anos, e conheço profundamente as atitudes

predominantes nas Forças Armadas naquela época. A minha sincera suspeita, portanto, é que os

membros da Força de Intervenção Barker não confessaram os seus crimes por não estarem

conscientes de os terem cometido. Claro que sabiam o que tinham feito, mas se tinham ou não a

2 Frase da carta de Ron Ridenhour.

82

noção do significado e da natureza dos seus actos é outra coisa completamente diferente.

Desconfio que muitos deles nem consideram que tenham cometido um crime. Não confessaram

porque acharam que não tinham nada para confessar. Indubitavelmente, alguns esconderam a

sua culpa. Mas outros, creio eu, não tinham culpas para esconder.

Como pode isto ser assim? Como pode um homem equilibrado assassinar e não saber que

o fez?

A progressão da responsabilidade colectiva

O Indivíduo sob Pressão

Quando tinha dezasseis anos tirei os quatro dentes do siso nas férias da Primavera.

Durante os cinco dias seguintes o maxilar não só me doía, como inchou e fechou. Não

conseguia mastigar sólidos – só líquidos ou comida de bebé insípida. O sabor fétido a sangue

estava constantemente na minha boca. No final daqueles cinco dias, o nível do meu

funcionamento psíquico tinha sido reduzido ao dos três anos de idade. Tornara-me

completamente egocêntrico. Era rabugento e piegas com os outros. Esperava que tivessem

constante atenção para comigo. Quando qualquer pequenina coisa não corria precisamente como

e quando eu queria, vinham-me as lágrimas aos olhos e o meu desagrado era enorme.

Acredito que quem já sofreu uma dor ou mal-estar crónicos significativos – por exemplo,

durante uma semana – reconhece a experiência que acabo de descrever. Numa situação de mal-

-estar prolongado, nós, humanos, tendemos natural e quase inevitavelmente a regredir. O nosso

crescimento psicológico inverte-se; a nossa maturidade é posta de lado.

Muito rapidamente nos tornamos mais infantis, mais primitivos. O mal-estar é pressão. O

que estou a descrever é uma tendência do organismo humano para regredir em resposta à

pressão crónica.

A vida de um soldado em zona de combate é repleta de pressão crónica. Embora o

Exército tivesse feito o que podia para minimizar a pressão nas tropas no Vietname (facultando

sempre que possível entretenimento, períodos recreativos e de descanso e outras formas de

relaxamento), o facto é que as tropas da Força de Intervenção Barker estavam sujeitas a uma

situação crónica de pressão. Estavam no lado do mundo oposto a casa. A comida era má, o calor

enervante, o alojamento desconfortável. Depois havia o perigo, geralmente menos grave no

Vietname do que noutras guerras, mas talvez exercendo mais pressão por ser tão imprevisível.

Chegava durante a noite, sob a forma de rajadas de morteiros quando os soldados achavam que

estavam em segurança, armadilhas que os soldados faziam disparar quando iam a caminho das

latrinas, minas que explodiam as pernas de um homem quando percorria uma bonita ladeira. O

83

facto de a Força de Intervenção Barker não se ter deparado com o inimigo que esperava naquele

dia memorável era típico da natureza do combate no Vietname. O inimigo aparecia quando

menos se esperava.

Além da regressão, há outro mecanismo com o qual os seres humanos respondem à

pressão. Trata-se de um mecanismo de defesa. Robert J. Lifton, que estudou os sobreviventes de

Hiroshima e de outros desastres, chamou-lhe “dormência psíquica”. Numa situação em que os

nossos sentimentos emocionais são esmagadoramente dolorosos ou desagradáveis, temos a

capacidade de nos anestesiarmos. É uma coisa relativamente simples. A visão de um só corpo

desmantelado e sangrento horroriza-nos. Mas se virmos corpos desses à nossa volta todos os

dias, dia após dia, o horrível torna-se normal e perdemos a sensação de horror. Pura e

simplesmente, desligamos. A nossa capacidade para o horror atrofia. Não conseguimos mais ver

o sangue, ou cheirar o fedor ou sentir a agonia.

Inconscientemente ficamos anestesiados. Esta capacidade de auto-anestesia emocional

tem obviamente as suas vantagens. Sem dúvida, a evolução foi-nos munindo desta característica

que aumenta a nossa capacidade de sobrevivência. Permite-nos continuar a funcionar em

situações tão drásticas que sucumbiríamos se preservássemos a nossa sensibilidade normal. O

problema, no entanto, é que este mecanismo de auto-anestesia não parece ser muito específico.

Se por vivermos no meio do lixo a nossa sensibilidade ao que é feio diminui, é provável que nós

próprios comecemos a espalhar detritos e lixo à nossa volta. Insensíveis ao nosso próprio

sofrimento, tornamo-nos insensíveis ao sofrimento dos outros. Tratados indignadamente,

perdemos não só o sentido da nossa própria dignidade como também o sentido da dignidade dos

outros. Quando já não nos incomoda ver corpos mutilados, deixa de nos incomodar mutilá-los

nós. É de facto difícil fechar selectivamente os olhos a um certo tipo de brutalidade sem os

fechar a toda a brutalidade. Como podemos tornar-nos insensíveis à brutalidade senão tornando-

-nos nós brutos?

Creio que então podemos assumir que, depois de um mês no campo com a Força de

Intervenção Barker – um mês de má comida, de pouco sono, de ver camaradas mortos ou

aleijados – o soldado comum estaria psicologicamente mais imaturo, primitivo e bruto do que

poderia estar numa época e lugar de menos pressão.

E se normalmente regredimos em face da pressão, não poderemos dizer que os seres

humanos têm mais tendência a ser maus em tempos de pressão do que em tempos de bem-estar?

Eu creio que sim. Perguntamos como é que um grupo de cinquenta ou quinhentos indivíduos –

dos quais poderíamos supor que apenas uma pequena minoria fosse má – pode ter cometido

uma tamanha maldade como MyLai. Uma das respostas é que, devido à contínua pressão a que

estavam sujeitos, os indivíduos da Força de Intervenção Barker eram mais imaturos e portanto

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piores do que seria de esperar numa situação normal. Em consequência da pressão, a

distribuição normal do Bem e do Mal pendeu na direcção do Mal. No entanto, como veremos,

este é apenas um dos factores que contribuiu para a maldade em MyLai.

Tendo considerado a relação entre a maldade e a pressão, será adequado referir a relação

entre a bondade e a pressão. Aquele que se comporta com dignidade em tempos fáceis – por

assim dizer, um amigo nos tempos bons – pode não ser assim tão digno quando as coisas correm

mal. A pressão é um teste à bondade. Os verdadeiramente bons são aqueles que em tempos de

pressão não abandonam a sua integridade, nem a sua maturidade e sensibilidade. A dignidade

pode ser definida como a capacidade de não regredir em face da degradação, de não se tornar

cego perante a dor, de tolerar a agonia e permanecer intacto. Tal como disse atrás, “uma medida

– e talvez a melhor medida – da grandeza de uma pessoa, é a sua capacidade para o

sofrimento”.3

Dinâmica de grupo: dependência e narcisismo

Os indivíduos não regridem apenas em alturas de pressão, também o fazem em situações

de grupo. Um dos aspectos desta regressão é o fenómeno de dependência do líder. É, de facto,

admirável. Reúna qualquer pequeno grupo de estranhos – cerca de uma dúzia –, e quase sempre

a primeira coisa que acontece é que um ou dois deles rapidamente assumem o papel de líder do

grupo. Não acontece devido a um processo racional de eleição consciente. Acontece

naturalmente – espontânea e inconscientemente. Porque é que acontece tão fácil e rapidamente?

Uma razão, claro, é que existem indivíduos mais capazes de liderar os outros ou que desejam

liderar mais do que os outros. Mas a razão mais básica é outra: é que a maioria das pessoas

preferem ser seguidores. Mais do que qualquer outra coisa, é provavelmente uma questão de

preguiça. É simplesmente mais fácil seguir e ser um seguidor em vez de um líder. Não se torna

necessário agonizar sobre decisões complexas, planear em relação ao futuro, tomar iniciativas,

arriscar a impopularidade ou ter muita coragem.

O problema é que o papel de um seguidor é um papel de criança. O indivíduo adulto é

mestre do seu próprio navio, director do seu destino. Mas quando assume o papel de seguidor,

delega no líder este poder: a sua autoridade sobre si mesmo e a sua maturidade como tomador

de decisões. Torna-se psicologicamente dependente do líder, tal como uma criança é dependente

dos pais. Desta forma, há uma forte tendência para o indivíduo comum regredir emocionalmente

assim que se torna membro de um grupo.

O objectivo do Primeiro Pelotão da Companhia Charlie da Força de Intervenção Barker

não era o de criar líderes, mas o de matar vietcongues. Na realidade, para atingirem os seus 3 The Road Less Traveled (Simon & Schuster, 1978), pág.76 [O Caminho Menos Percorrido (Sinais de Fogo, 1999), pág. 80].

85

objectivos, as Forças Armadas desenvolveram e fomentaram um estilo de liderança de grupo

que é essencialmente oposto ao de uma terapia de grupo. É uma velha máxima que os soldados

não são feitos para pensar. Os líderes não são eleitos a partir de dentro do grupo mas nomeados

a partir de cima e transformados em símbolos de autoridade. A disciplina militar por excelência

é a obediência. A dependência do soldado em relação ao seu líder não é só encorajada, é

obrigatória.4 Dada a natureza da sua missão, as Forças Armadas fomentam de forma intencional

e provavelmente realista a dependência regressiva que ocorre naturalmente nos indivíduos

dentro dos seus grupos.

Em situações como a de MyLai, o soldado individual é uma situação praticamente

impossível. Por um lado, lembra-se vagamente de ter ouvido numa aula que não precisa de

renunciar à sua consciência e deve ter uma independência de julgamento adulta – até um dever –

de recusar obedecer a uma ordem ilegal. Por outro lado, a organização militar e a sua dinâmica

de grupo fazem todos os possíveis para tornar tão doloroso, difícil e anti-natural quanto possível

que o soldado exerça independência de julgamento ou desobedeça. Não é claro que as ordens da

Companhia Charlie tenham sido “matar tudo o que se mexa”, ou “dizimar a aldeia”. Mas se

foram, será de admirar que as tropas tenham seguido essas ordens dos seus líderes?

Esperaríamos, pelo contrário, que se tivessem amotinado em massa?

Se o motim em massa parece um tanto forçado, não poderíamos pelo menos prever um

número reduzido de indivíduos que tivesse suficiente coragem para se revoltar contra o seu

líder? Não necessariamente. Já fiz referência ao facto de que os padrões de comportamento de

grupo são notoriamente semelhantes aos do indivíduo. Isto porque o grupo é um organismo.

Tende a funcionar como uma entidade única. Um grupo de indivíduos comporta-se como uma

unidade devido ao que é conhecido como coesão de grupo. Existem forças poderosas em jogo

dentro de um grupo por forma a manter os seus membros individuais juntos e em linha. Quando

estas forças de coesão falham, o grupo começa a desintegrar-se e deixa de ser um grupo.

Provavelmente, a mais poderosa destas forças de coesão é o narcisismo. Na sua forma

mais simples e benigna, manifesta-se em orgulho do grupo. Quanto mais orgulhosos os

membros do grupo se sentem do grupo, mais este se sente orgulhoso de si mesmo. Mais uma

vez, as Forças Armadas fazem deliberadamente mais do que a maioria das outras organizações

para fomentar o orgulho dentro dos seus grupos. Fazem-no através de uma série de meios

diferentes, tais como desenvolver insígnias de grupo – bandeiras por unidades, divisas nos

4 Até os civis cometem actos maus com uma facilidade espantosa, quando sujeitos à obediência. Como David Myers descreveu no seu excelente artigo “A Psychology of Evil” (The Other Side [Abril 1982], pág. 29): “O melhor exemplo são as experiências de obediência de Stanley Milgram. Confrontados com um comandante imponente e próximo, 75 por cento dos seus sujeitos adultos obedeceram cegamente às instruções. Sob ordens, davam choques eléctricos aparentemente traumatizantes a uma vítima inocente que gritava na sala ao lado. Tratavam-se de pessoas normais – uma mistura de colarinhos brancos, colarinhos azuis e profissionais. Desprezavam esta tarefa. Mas a obediência sobrepunha-se ao próprio sentido moral.”

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ombros e até destaques especiais de uniformes, como é o caso dos Boinas Verdes5 – e incentivar

a competição entre grupos, desde os desportos de intramuros à comparação de pontos por

unidades.

Uma forma de narcisismo de grupo menos benigna mas praticamente universal é o que se

pode chamar “criação do inimigo”, ou ódio pelos “fora-do-grupo”. Podemos observar isto

naturalmente nas crianças, à medida que aprendem a formar grupos.6 Os grupos tornam-se

exclusivos. Aqueles que não pertencem ao grupo (ao clube ou ao grupo exclusivo) são

desprezados como sendo inferiores, ou maus, ou ambos. Se um grupo não possuir já um

inimigo, muito provavelmente há-de criar um muito rapidamente. A Força de Intervenção

Barker, é evidente, tinha um inimigo predeterminado: os vietcongues. Mas estes eram na sua

maioria naturais do país do povo sul-vietnamita, do qual eram frequentemente impossíveis de

distinguir. Inevitavelmente, o inimigo específico generalizou-se a toda a população vietnamita,

pelo que o soldado americano comum não odiava apenas os vietcongues, mas sim os Gooks7 em

geral.

É praticamente do conhecimento geral que a melhor forma de cimentar a coesão de grupo

é fomentar o ódio do grupo em relação a um inimigo exterior. As deficiências dentro do grupo

podem ser facilmente ignoradas em virtude de se centrar a atenção nas deficiências ou ofensas

dos fora-do-grupo. Assim, os alemães de Hitler puderam ignorar os problemas domésticos

tomando os judeus como bodes expiatórios. E quando as tropas americanas não conseguiam

combater eficazmente na Nova Guiné durante a Segunda Guerra Mundial, o Comando

incentivava o seu espírito de classe ao mostrar filmes de japoneses a cometerem atrocidades.

Mas esta utilização do narcisismo – quer seja deliberada, quer inconsciente – é potencialmente

má. Examinámos extensivamente os modos em que os indivíduos maus fogem à auto-análise e à

culpa, responsabilizando e tentando destruir o que quer ou quem quer que aponte as suas

próprias deficiências. Agora vemos que o mesmo comportamento narcisista maligno ocorre

naturalmente nos grupos.

Por tudo isto deve ser óbvio que o grupo que fracassa é o que provavelmente terá um

comportamento mais maldoso. O fracasso fere o nosso orgulho e é o animal ferido que se torna

perverso. Num organismo saudável, o fracasso é um estímulo para a auto-análise e a crítica.

Mas como o indivíduo mau não tolera a autocrítica, é em momentos de fracasso que ele ou ela

invariavelmente atacam de uma maneira ou de outra. E o mesmo se passa com os grupos. O

fracasso do grupo e o estímulo à sua autocrítica ferem o orgulho e a coesão do grupo. Por isso,

5 “The Green Berets“, Força Especial do Exército dos Estados Unidos. (N. da E.) 6 Os psicólogos verificam que, quando grupos semelhantes de rapazes de doze anos, em acampamentos e sem liderança adulta, são encorajados a competir uns com os outros, a competição benigna transforma-se rapidamente numa violenta “guerra à escala dos doze anos” (Myers, “A Psychology of Evil”, pág. 29). 7 Termo na gíria americana que designa os vietnamitas em geral. (N. da T.)

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em todas as épocas e lugares, os líderes reforçam habitualmente a coesão dos grupos nas alturas

de fracasso atiçando o ódio do grupo pelos estrangeiros ou pelo “inimigo”.

Voltando ao assunto específico da nossa análise, recordemos que na época de MyLai a

operação da Força de Intervenção Barker tinha sido um fracasso. Depois de mais de um mês no

terreno, o inimigo ainda não tinha sido confrontado. Ainda assim, os americanos tinham sofrido

baixas de uma forma lenta e regular. A contagem de corpos do inimigo, no entanto, era zero. Ao

fracassar a sua missão – que antes do mais consistia em matar – a liderança do grupo estava

ainda mais sedenta por sangue. Dadas as circunstâncias, a sede tornara-se indiscriminada e as

tropas satisfá-la-iam sem pensar.

O grupo especializado: a força de intervenção Barker

Já mencionei o potencial para a maldade que vem da especialização. Falei de como o

indivíduo especializado está numa posição de passar a responsabilidade moral a outra roda

dentada especializada da máquina, ou à própria máquina. Mesmo quando falei da regressão que

ocorre nos indivíduos quando se tornam seguidores num grupo, estava a falar de especialização.

O seguidor não é uma pessoa completa. Quem aceita o papel de não pensar nem liderar falseia a

sua capacidade de liderar e de pensar. E como pensar e liderar já não é a sua especialidade ou

dever, normalmente perde em consciência durante a troca.

Passando da especialização do indivíduo à especialização de grupo, observamos o mesmo

tipo de forças perigosas em acção. A Força de Intervenção Barker era um grupo especializado.

Não tinha outros objectivos – como jogar futebol ou construir barragens ou mesmo alimentar-se

a si próprio. Existia apenas com um objectivo altamente especializado: procurar e destruir os

vietcongues na província de Quang Ngai em 1968.

Quang Ngai. No entanto, o que o leitor pode não perceber é a grande componente de

selecção e auto-selecção envolvidas na criação desse grupo. Embora nessa altura os cidadãos

fossem recrutados para o serviço militar, a Força de Intervenção Barker não era propriamente

uma amostra aleatória da população americana. Os membros mais pacifistas da sociedade

excluíram-se a si próprios indo para o Canadá ou declarando-se objectores de consciência. Os

membros menos pacifistas que desejavam evitar o combate preferiam normalmente alistar-se

nas Forças Armadas em vez de serem recrutados. Ao alistarem-se, podiam optar pela Força

Aérea ou pela Marinha, ou por outras especialidades não-combatentes do Exército, que

provavelmente não os enviariam para o Vietname. A Força de Intervenção Barker era

constituída quer por pessoal militar de carreira que optara deliberadamente pelas armas de

combate, quer por “rufias” que haviam feito o mesmo (ou que, por qualquer outra razão, não

conseguiram escapar ao facilmente evitável posto de soldado de infantaria).

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Até ao final de 1968, bastante depois de MyLai, a guerra do Vietname foi travada, do

lado americano, quase inteiramente por voluntários. Para muitos soldados de carreira, uma

comissão de serviço no Vietname era muito desejada e procurada. Significava medalhas,

excitação, mais dinheiro e promoção garantida. Existia um sistema único de voluntariado para

jovens alistados. Quem se apresentasse como voluntário para o Vietname podia ter a certeza de

três coisas: uma mudança de lugar, uma licença imediata e um bónus. Estes incentivos eram

suficientes para garantir um fornecimento adequado de “carne para canhão” voluntária até ao

posterior aumento do envolvimento das tropas militares americanas na guerra a seguir a MyLai.

O caso de um indivíduo prototípico pode ilustrar alguns aspectos do relacionamento entre

a sociedade americana em 1968, as suas Forças Armadas e o subgrupo militar que combatia no

Vietname. Chamemos a este indivíduo prototípico “Larry” e fixemos o seu local de origem em

Iowa. Sendo o mais velho de seis irmãos, filhos de um pai agricultor por conta de outrem,

alcoólico, e da sua extenuada mulher, Larry era sem dúvida um tormento desde que atingira a

puberdade. Desistindo do liceu aos dezasseis anos, em 1965, sustentou-se parcamente com

empregos esporádicos que não chegavam para pagar o seguro do seu automóvel, a gasolina e

um estilo de vida que incluía muita bebida. Em Novembro de 1966, foi apanhado a tentar roubar

uma estação de gasolina local. A comunidade adorou ver-se livre de Larry, mas ao mesmo

tempo não queria aumentar a população prisional nem os impostos. Afinal de contas, o dinheiro

tinha sido recuperado e não tinha ocorrido nenhum mal maior. E assim o juiz do condado disse

a Larry que tinha duas opções: ou se alistava no Exército ou ia para a prisão.

A partir daí foi tudo muito simples. O pequeno gabinete do serviço de recrutamento do

Exército funcionava no mesmo prédio que o do juiz. Escusado será dizer que existiam vagas na

infantaria. Larry alistou-se para prestar serviço na Alemanha, pois ouvira dizer que as raparigas

eram fáceis, e no espaço de uma semana estava a caminho de Fort Leonard Wood, no Missouri,

para o treino básico. O treino de infantaria básica e mais tarde avançada (AIT) mantiveram-no

tão ocupado que nem teve tempo para arranjar sarilhos. Mas tudo mudou quando chegou à

Alemanha. As raparigas eram tão boas como deviam ser e a cerveja era mesmo óptima. Mas os

preços eram altos. Pediu dinheiro emprestado e teve dificuldades em pagá-lo. Vendeu algum

haxixe para um dealer mais importante, o que ajudou, mas depois o seu fornecedor resolveu

mudar-se. As dívidas aumentaram. Larry, agora quase com dezanove anos, podia ver como iam

acabar as coisas. Ou os seus credores lhe davam uma sova ou denunciavam-no no negócio do

haxixe. Mas tinha uma saída. Alistou-se secretamente no Vietname e em três dias estava num

avião de regresso aos Estados Unidos, deixando para trás os seus problemas. Sentiu-se bem.

Tinha recebido o seu bónus para estoirar numa licença de dez dias de regresso ao Iowa, revendo

os velhos amigos e impressionando as raparigas. Quanto ao futuro depois disso, não estava

minimamente preocupado. Ouvira dizer que as mulheres no Nam eram ainda melhores do que

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as da Alemanha e, além do mais, seria excitante ver a verdadeira acção, para variar. Dar uns

tiros nalguns Gooks até podia ser divertido.

Infelizmente, apesar da óbvia contribuição que seria para a nossa compreensão, nunca foi

feita uma análise sociológica à Força de Intervenção Barker. Consequentemente, não posso

dizer nada de científico. Não quero sugerir que o grupo inteiro fosse constituído de pequenos

criminosos como “Larry”. Mas estou convencido de que a Companhia Charlie e a Força de

Intervenção Barker não eram representativas do perfil transversal médio do povo americano.

Todos os seus elementos chegaram a MyLai em Março de 1968, por razões de história pessoal e

auto-selecção, através de um sistema de selecção também estabelecido pelas Forças Armadas

americanas e pela sociedade americana como um todo. Não era um grupo de homens formado

ao acaso. Era altamente especializado, não só na sua missão mas também na sua composição

única.

A composição humana especializada da Força de Intervenção Barker (e de inúmeros

outros grupos humanos) levanta três tópicos significativos. Primeiro, há a questão da

flexibilidade que se pode esperar de seres humanos especializados. A Companhia Charlie era

um grupo especializado de assassinos. Os indivíduos que a compunham tinham, por uma razão

ou por outra, assumido o papel de assassinos, e tinham também sido deliberadamente seduzidos

pelo sistema para esse papel. Além disso, treinámo-los para esse papel e entregámos-lhes armas

para o desempenharem. Será assim tão surpreendente que, dada uma série de outras

circunstâncias favoráveis, tenham assassinado indiscriminadamente? Ou que aparentemente não

tenham sentido uma enorme culpa em relação àquilo que os levámos a fazer? Será realista

encorajar e manipular seres humanos para formarem grupos especializados e simultaneamente

esperar que eles, sem qualquer treino significativo, mantenham uma amplitude de visão muito

para além da sua especialidade?

Um segundo tópico é o recurso subtil mas peremptório ao bode expiatório. O prototípico

Larry era um ladrão e aldrabão insignificante, um tipo desagradável pelo qual não é fácil sentir

simpatia. Mas também era um bode expiatório. E quando os membros da sua comunidade o

empurraram para o Exército, não estavam a tentar lidar com o problema social e humano que ele

personificava, mas simplesmente a livrar-se do problema. Purificaram a sua própria

comunidade, despejando o lixo nas Forças Armadas e sacrificando Larry ao Deus da Guerra. E

também se serviram das Forças Armadas como bode expiatório. Porque uma das funções

subliminares das Forças Armadas é, sem dúvida, servir como depósito de alguns dos mais

indesejáveis jovens americanos – uma espécie de reformatório nacional. Mas o facto de este

sistema funcionar sem percalços, e nem sempre com maus resultados, não nos devia cegar para

a natureza expiatória do seu processo.

90

O Exército fez de Larry um bode expiatório ainda maior, ao seduzi-lo para o Vietname.

Por um lado, isto tem toda a lógica, do ponto de vista social. Porque é que não hão-de ser os

indivíduos como Larry, desordeiros e desajustados, os candidatos mais apropriados para servir

de carne para canhão? Se alguém tem de ser morto, porque não aqueles de valor social

aparentemente baixo? Mas a decisão de matar não foi de Larry. Nem do Tenente Calley. Nem

do seu oficial superior, o Capitão Medina. Nem do Tenente-Coronel Barker. Foi uma decisão

dos Estados Unidos da América. Por alguma razão, os Estados Unidos decidiram que haveria

matança e, ao matarem, estes homens estavam a obedecer à vontade dos Estados Unidos. Podem

ter parecido mais sujos e menos dignos do que o americano comum, mas o facto é que nós,

americanos, enquanto sociedade, os escolhemos e empregámos deliberadamente para levarem a

cabo a nossa matança – o nosso trabalho sujo – por nós. Nesse sentido, foram todos nossos

bodes expiatórios.

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Quem luta perde sempre (conto indiano)

Um chacal recém-casado vivia perto da margem de um rio. Um dia, a esposa pediu-lhe

uma refeição de peixe. O chacal prometeu trazer-lha, embora não soubesse nadar. Aproximou-

-se do rio com todas as cautelas e viu duas lontras a lutarem com um peixe enorme que

tinham apanhado. Depois de matarem o peixe, começaram a lutar para dividir o peixe entre

ambas.

— Eu vi-o primeiro, por isso a parte maior pertence-me! — disse uma delas.

— Mas ias-te afogando a pescá-lo e eu salvei-te — contrapôs a outra.

Continuaram a lutar até que o chacal se aproximou delas e se ofereceu para ajudar a

regular a disputa. As lontras concordaram em acatar a decisão que ele tomasse. O animal

cortou o peixe em três pedaços. A uma das lontras deu a cabeça e à outra deu a cauda.

— A parte do meio é para o juiz — declarou.

Afastou-se dali todo contente e disse para consigo:

— Quem luta perde sempre.

Margaret Read MacDonald Peace Tales

Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005

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Duas cabras numa ponte (conto russo)

Uma ponte estreita ligava duas montanhas. Em cada uma das montanhas vivia uma

cabra. Dias havia em que a cabra da montanha ocidental atravessava a ponte para ir pastar na

montanha oriental. Dias havia em que a cabra da montanha oriental atravessava a ponte para ir

pastar na montanha ocidental. Mas, um dia, as cabras começaram a atravessar a ponte ao

mesmo tempo.

Encontraram-se no meio da ponte. Nenhuma queria ceder passagem à outra.

— Sai da frente! — gritou a Cabra Ocidental. — Estou a atravessar a ponte.

— Sai tu da frente! — berrou a Cabra Oriental. — Quem está a atravessar sou eu!

Como nenhuma delas queria recuar e nenhuma delas podia avançar, ali ficaram,

enfurecidas, durante algum tempo. Finalmente, entrelaçaram os chifres e começaram a

empurrar. Eram tão semelhantes em força que apenas conseguiram empurrar-se uma à outra da

ponte abaixo. Molhadas e furiosas, saíram do rio e subiram a encosta, a caminho de casa, cada

uma murmurando para si: “Vejam só o que a teimosia dela provocou.”

Margaret Read MacDonald

Peace Tales Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005

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Tentando alcançar a lua (conto tibetano)

Uma noite, o Rei dos Macacos reparou numa gloriosa lua dourada que repousava no

fundo de uma lagoa. Não se apercebendo de que se tratava apenas de um reflexo, o Rei

chamou os seus súbditos para que lhe fossem buscar aquele tesouro não reclamado.

— O nosso macaco mais forte agarra-se a esta árvore — ordenou o Rei. — E o nosso

segundo macaco mais forte agarra-se à mão dele, tenta alcançar a água e pega na lua dourada.

Assim fizeram. Mas o segundo macaco não conseguia alcançar a lua.

— Quem é o nosso terceiro macaco mais forte? Agarra-te à mão do teu irmão e vai

buscar a lua.

Mas a lua continuava fora do alcance deles.

— Tragam o quarto macaco mais forte. Que desça até junto da lagoa e tente a sua

sorte.

Os macacos formavam agora uma cadeia, cada um pendurado no braço do outro. O

quarto macaco usou os braços deles como escada e ficou pendurado na mão do terceiro

macaco… mas a lua continuava fora do seu alcance. E assim continuaram… cinco… seis…

sete… oito… macaco após macaco, até que o último conseguia tocar já na superfície da água.

— Estamos quase a conseguir! — gritaram os macacos.

— Deixem-me ser o primeiro a agarrá-la! — gritou o Rei, que se lançou cadeia abaixo.

Mas o peso de toda esta loucura tinha-se tornado demasiado para as forças do macaco

mais forte, que continuava agarrado ao topo da árvore. Quando o Rei ia a tocar a água para

pegar na lua, o macaco mais forte largou o tronco. Um a um, caíram todos na lagoa e

afogaram-se, juntamente com o Rei.

Aquele que segue um líder insensato é ele próprio um tolo.

Margaret Read MacDonald Peace Tales

Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005

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Um homem sem cabeça (conto argelino)

Esta é a aventura do famoso Jouha. Na Argélia chamam-lhe Jha, ou então, Ben Sakrane.

Mais a leste, conhecem-no como Nasredin Hodja. Na realidade, trata-se de Tyl Eulenspiegel

ou de Jean le Sot; o louco que vende a sua sabedoria, aquele que zurra como um burro para

ser ouvido, e que às vezes é dono de uma esperteza imbatível.

Um dia, Jha encontrou alguns amigos prontos para combater. Tinham escudos, lanças,

arcos e aljavas cheias de setas.

— Onde vão nesses preparos? — perguntou-lhes.

— Não sabes que somos soldados profissionais? Vamos tomar parte numa batalha, que

promete ser dura!

— Óptimo, eis uma oportunidade para ver o que acontece nessas coisas de que ouvi

falar mas que nunca vi com os meus próprios olhos. Deixem-me ir convosco, só desta vez!

— Está bem! És bem-vindo!

E lá foi ele com o pelotão que se ia juntar ao exército no campo de batalha.

A primeira seta acertou-lhe em cheio na testa!

Depressa! Um cirurgião! O médico chegou, examinou o ferido, meneou a cabeça e

declarou:

— A ferida é profunda. Vai ser fácil remover a seta. Mas, se tiver a mais ínfima parte

de cérebro agarrada, está perdido!

O ferido agarrou na mão do médico e beijou-a, exprimindo a sua “profunda gratidão

para com o Mestre”, e declarou:

— Doutor, pode remover a seta sem medo; não vai encontrar a mais ínfima parte de

cérebro nela.

— Esteja calado! — disse o médico. — Deixe os especialistas tratarem de si! Como

sabe que a seta não atingiu o seu cérebro?

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— Sei-o bem demais — disse Jha. — Se eu tivesse a mais pequena partícula de cérebro,

nunca teria vindo com os meus amigos.

Margaret Read MacDonald

Peace Tales Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005

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Força (conto da África Ocidental)

Os animais decidiram fazer um concurso para ver qual deles era o mais forte. A ideia do

concurso foi do Elefante.

— Encontramo-nos todos na quarta-feira. Veremos quem tem FORÇA.

O primeiro a chegar foi o Chimpanzé, que chegou aos saltos.

— Força! Eu tenho força. Vejam só estes BRAÇOS! Esperem só até verem a minha

força!

O Chimpanzé sentou-se. Chegou o Veado.

— Força! Olhem para estas PERNAS! Tenho tanta força!

O Veado sentou-se. A seguir veio o Leopardo. Mostrava as garras e rugia.

— Força! Olhem para estas GARRAS! Eu tenho força!

O Leopardo sentou-se. Depois veio o Bode, que baixou os seus chifres fortes.

— Força! Vejam estes CHIFRES! Isto é força.

O Bode sentou-se. Chegou o Elefante. Caminhava muito devagar.

— El…e…fante…significa força.

O Elefante sentou-se. Esperaram e voltaram a esperar. Faltava mais um animal.

Finalmente o Homem chegou, a correr.

— Força! Força!

O Homem exibia os seus músculos.

— Eis-me aqui! Podemos começar!

O Homem tinha trazido a sua espingarda para a floresta e tinha-a escondido nos

arbustos. Era por isso que estava atrasado. O Elefante encarregou-se de dar início ao

concurso.

100

— Agora que o Homem chegou, podemos começar. Chimpanzé, mostra-nos a tua força!

O Chimpanzé deu um pulo. Correu para uma pequena árvore e trepou-a. Dobrou-a e

deu-lhe um nó. Desceu da árvore e disse:

— Então? Isto não é força?

Os animais exultaram.

— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!

Depois acalmaram.

— Bem…Chimpanzé. Senta-te. O próximo!

O Veado pôs-se de pé com um salto. Correu três quilómetros em direcção à floresta.

Correu outros três quilómetros de volta. Nem sequer estava ofegante. Vangloriou-se:

— Vejam só! Se isto não é força…

Os animais concordaram.

— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!

— Bem…Veado. Senta-te. O próximo!

O Leopardo pôs-se de pé e esticou as garras enormes. Começou a esgravatar a terra.

Scrung…scrung…scrung…scrung… Como o pó voava! Os animais saltaram para trás. Estavam

assustados. O Leopardo perguntou:

— Aaaah! Isto é força ou não é?

— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!

— Bem… Leopardo. Senta-te. O próximo!

O Bode era o seguinte. Baixou os chifres enormes. Havia por ali um campo de canas e o

Bode começou a escavar o campo. Shuuu…shuuu…shuuu…shuuu… Os chifres fizeram uma

estrada através do campo. O Bode voltou-se. E escavou outra estrada até ao lugar onde

estavam os animais. Depois perguntou:

— Não é força, isto?

Os animais ficaram impressionados.

— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!

101

— Bem… Bode. Senta-te. A seguir?

A seguir vinha o Elefante. Havia muitas árvores em redor que cresciam bem juntas. O

Elefante encostou o seu ombro enorme de encontro às árvores. Eeennhh…eeennhh…

eeennhh…kangplong! As árvores caíram todas. O Elefante exclamou:

— Que tal? Isto não é força?

Os animais ficaram impressionados.

— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!

— Bem… Elefante. Senta-te. O próximo!

Era a vez do Homem. O Homem correu para o meio do círculo. Começou a rodopiar.

Deu saltos mortais. Fez a roda. Fez o pino. Volteou em redor deles sem cessar. Depois parou

e perguntou:

— Força! Força! Isto não é força?

Os animais entreolharam-se.

— Bem…foi excitante.

— Mas era força, aquilo?

— Nem por isso…

— Só sabes fazer isso?

O Homem sentiu-se insultado.

— Muito bem, então vejam isto!

O Homem subiu a uma palmeira. Tão depressa! Tão depressa! Atirou cocos da palmeira.

Desceu da árvore. Perguntou de novo:

— Força! Força! Isto não é força?

Os animais olharam para ele.

— Chamarias àquilo força?

— Só subiu a uma árvore.

— Isso não é bem força.

— Há mais alguma coisa…?

102

O Homem estava zangado.

— Força? Eu mostro-vos o que é FORÇA!

O Homem correu para o arbusto. Agarrou na arma. Correu de novo para junto deles. O

Homem apontou a arma ao Elefante. Ting… Puxou o gatilho. Kangalang! O Elefante tombou.

Estava morto. Morto. O Homem dava pulos e gabava-se:

— Força! Força! Isto não é FORÇA?

O Homem olhou em redor. Os animais tinham ido embora. Tinham fugido para a

floresta.

— Força!...

Não havia ninguém para o ouvir gabar-se. O Homem estava sozinho. Na floresta, os

animais juntaram-se a um canto para trocar impressões.

— Viste aquilo?

— Era força aquilo?

— Chamarias àquilo força?

— Não. Aquilo era MORTE.

— Aquilo era MORTE.

A partir desse dia, os animais não voltaram a caminhar com o Homem. Quando o

Homem entra na floresta, tem de caminhar sozinho. Os animais ainda falam do Homem…

Da criatura Homem… O Homem é aquele que não conhece a diferença entre força e morte.

Margaret Read MacDonald

Peace Tales Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005

103

A guerra entre as galinholas e as baleias (conto das Ilhas Marshall)

Todas as manhãs, a pequena galinhola ia à praia tomar o pequeno-almoço. Corria para a

água com as suas perninhas altas e slup… slup… engolia um pequeno vairão. Depois corria de

novo para a praia e esperava. Voltava de novo à água e slup… slup… engolia um outro pitéu.

A baleia, que vivia nas águas profundas da baía, viu a galinhola a correr para dentro e

para fora de água. Ergueu bem a cabeça enorme e chamou-a:

— Ei, passarinho! Não te quero na minha água! O mar pertence às baleias!

A galinhola decidiu ignorá-la.

— O mar também pertence às galinholas. E há muito mais galinholas do que baleias.

Vê lá se me deixas em paz!

A baleia encolerizou-se e começou a esguichar. A galinhola tinha-a enfurecido.

— Mais galinholas? Há muito mais baleias no oceano do que galinholas em terra!

— Não há, não! — replicou a pequena galinhola. Há mais galinholas!

A baleia estava furiosa.

— Vou chamar as minhas irmãs. Vais ver!

A baleia veio à superfície e esguichou buuturu… buuturu. Depois voltou a mergulhar

bem fundo na baía. Virou-se para leste e chamou:

— Baleias do leste. Baleias do leste. Venham…venham para esta ilha!

Veio de novo à superfície.

Esguichou buuturu… buuturu… e mergulhou em direcção ao oeste.

— Baleias do oeste. Baleias do oeste. Venham…venham para esta ilha!

De novo veio à superfície.

Esguichou buuturu… buuturu… e mergulhou em direcção ao norte.

104

— Baleias do norte. Baleias do norte. Venham…venham para esta ilha!

Voltou de novo a emergir.

Esguichou buuturu… buuturu… e mergulhou em direcção ao sul.

— Baleias do sul. Baleias do sul. Venham…venham para esta ilha!

A leste, a oeste, a norte e a sul, as suas irmãs baleias ouviram-na. Começaram a nadar

em direcção à ilha. Quando já tinham chegado todas, a baía ficou tão cheia de baleias que

podíamos caminhar nos seus dorsos! Estavam todas apinhadas naquela baía.

A galinhola ficou alarmada.

— Tens mesmo muitas irmãs! Mas espera, que eu vou chamar as minhas irmãs

galinholas!

A pequena galinhola começou a saltar para cima e para baixo e a emitir o seu grito de

galinhola:

— Kirriri… kirriri… kirriri… kirriri… Galinholas! Galinholas! Leste! Leste! Leste!

Leste! Venham depressa! Venham depressa! Para esta ilha!

— Galinholas! Galinholas! Oeste! Oeste! Oeste! Oeste! Venham depressa! Venham

depressa! Para esta ilha!

— Galinholas! Galinholas! Norte! Norte! Norte! Norte! Venham depressa! Venham

depressa! Para esta ilha!

— Galinholas! Galinholas! Sul! Sul! Sul! Sul! Venham depressa! Venham depressa!

Para esta ilha!

E as galinholas vieram a voar! Do leste, do oeste, do norte, do sul. Quando pousaram,

cobriram a praia inteira! Cobriram as árvores! Havia tantos pássaros! Havia mais pássaros ou

mais baleias? Havia mais baleias ou mais pássaros? Era impossível dizer.

As baleias falavam entre elas.

— Temos de chamar os nossos primos. Nessa altura, haverá mais baleias do que

pássaros.

Então, as baleias vieram todas à tona da água e chamaram:

— Buuturu… buuturu…

105

Mergulharam fundo, bem fundo.

Chamaram a leste.

— Primos do leste! Primos do leste! Venham…venham para esta ilha!

Voltaram à superfície e esguicharam.

— Buuturu… buuturu…

Mergulharam.

— Primos do oeste! Primos do oeste! Venham…venham para esta ilha!

Voltaram à superfície e esguicharam.

— Buuturu… buuturu…

Mergulharam.

— Primos do norte! Primos do norte! Venham…venham para esta ilha!

Voltaram à superfície e esguicharam. Mergulharam uma vez mais.

— Primos do sul! Primos do sul! Venham…venham para esta ilha!

Do leste e do oeste, do norte e do sul, os primos das baleias começaram a nadar em

direcção à ilha. Os golfinhos ouviram o chamamento e vieram. As orcas ouviram o

chamamento e vieram. Os lobos-marinhos ouviram o chamamento e vieram também. Até os

tubarões vieram.

Quando já tinham chegado todas os primos da baleia, os peixes eram tantos que

rodeavam completamente a ilha. Até onde a vista alcançava, havia criaturas marinhas a

esguichar e a mergulhar.

As galinholas ficaram assustadas.

— Há tantas criaturas do mar. Depressa! Temos de chamar todos os nossos primos!

As galinholas começaram aos pulos e a emitir o seu chamamento:

— Kirriri… kirriri… kirriri… kirriri…

— Primos das galinholas! Leste! Leste! Leste! Venham depressa! Venham depressa

para esta ilha!

— Primos das galinholas! Oeste! Oeste! Oeste! Venham depressa! Venham depressa

106

para esta ilha!

— Primos das galinholas! Norte! Norte! Norte! Venham depressa! Venham depressa

para esta ilha!

— Primos das galinholas! Sul! Sul! Sul! Venham depressa! Venham depressa para esta

ilha!

Do leste e do oeste, do norte e do sul, os primos das galinholas começaram a chegar. As

gaivotas ouviram o chamamento e vieram. As gaivinas ouviram o chamamento e vieram. Os

corvos-marinhos ouviram o chamamento e vieram também. Até as garças-reais vieram.

Depois de todas estas aves marinhas terem chegado, cobriram as praias e estenderam-se

até às montanhas. Não havia um pedaço de terra naquela ilha que não estivesse coberto por

pássaros!

Havia mais pássaros ou mais animais marinhos? Mais primos das baleias ou mais

primos das galinholas? Ninguém saberia dizer.

Então as baleias tiveram uma ideia.

— Se as baleias comessem a terra toda… os pássaros afogar-se-iam. Haveria então mais

baleias do que galinholas. Vamos a isso!

As baleias começaram a mastigar a terra. Scrunch… scrunch… scrunch… A praia

desaparecia gradualmente por entre as suas mandíbulas enormes. Então a galinhola teve uma

ideia.

— Se os pássaros bebessem toda a água do mar… as baleias morreriam! Então haveria

mais galinholas do que baleias. Vamos a isso!

Os pássaros voaram em direcção ao oceano. Cada um deles enfiou o bico na água e

começou a beber. Beberam… beberam… até ficarem com a boca cheia de água… Beberam…

beberam… até ficarem com as barrigas cheias de água. Como era mais fácil beber do que

mastigar, os pássaros acabaram a sua tarefa primeiro!

Olharam em volta. As baleias estavam a morrer por falta de água. Os peixes também

estavam a morrer por falta de água. Os caranguejos minúsculos… as estrelas-do-mar… todas

as criaturas marinhas estavam a morrer sob o sol escaldante.

De repente, os pássaros pensaram numa coisa.

107

— Os caranguejos minúsculos… todas estas criaturas do mar… tudo isto é o nosso

alimento. É o que nós comemos. Se elas morrerem, nós morremos também. Isto é uma má

ideia! Rápido! Cuspam a água! Cuspam fora o oceano!

Ptooooie… ptoooie… ptoooie… Os pássaros cuspiram fora o oceano todo.

As baleias começaram de novo a mover-se. Os peixes recomeçaram a nadar. Os

pequenos caranguejos e as estrelas-do-mar esticaram as suas perninhas e começaram a viver de

novo.

— Isto foi uma péssima ideia! — disseram as baleias. — O oceano é a nossa casa. A

praia faz parte do oceano. Estamos todos a destruir o nosso próprio lar. Depressa! Cuspam

fora a areia toda.

Glurk… glurk… glurk… As baleias cuspiram fora a areia toda.

— Esta guerra foi uma péssima ideia — disse a baleia. — Há mar que chegue para

todos partilharmos.

— Tens razão — concordou a galinhola. — Foi uma má ideia. Quase destruímos o

nosso lar!

Então, as baleias e os seus primos nadaram em direcção ao mar alto. Em direcção ao

leste, ao oeste, ao norte e ao sul. E as galinholas e os seus primos também voaram para longe.

Em direcção ao leste, ao oeste, ao norte e ao sul. E até hoje nunca ninguém descobriu se há

mais baleias ou mais galinholas. Se há mais galinholas ou mais baleias. Não que isso interesse,

realmente. No fundo, é uma razão demasiado insignificante para começar uma guerra…

Margaret Read MacDonald

Peace Tales Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005

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O cão preto (conto indiano)

Shakra, rei dos deuses, ergueu-se do seu trono dourado e observou a Terra com

atenção. Havia oceanos reluzentes e nuvens como pérolas, montanhas com cumes de neve e

continentes de muitas cores. Embora tudo fosse belo, Shakra sentiu uma certa apreensão.

Os seus sentidos luminosos expandiram-se pelos céus. Sentiu o calor da guerra. Ouviu

o balir dos vitelos, o ladrar dos cães, o grasnar dos corvos. Ouviu crianças a chorarem e vozes

a gritarem de raiva. Ouviu o choro dos esfomeados, dos sós, dos pobres. As lágrimas rolaram-

-lhe pela cara abaixo e caíram sobre a terra como aguaceiros de meteoros.

— É preciso fazer alguma coisa! — disse Shakra.

Metamorfoseou-se num guarda-florestal e levou consigo um grande arco em osso. A

seu lado caminhava um grande cão preto. O pelo do cão era emaranhado, os olhos brilhavam

como fogo incandescente, os dentes mais pareciam presas, e a boca e língua pendente eram da

cor do sangue.

Shakra e o cão deram um salto e mergulharam em direcção à Terra por entre as estrelas

brilhantes. Por fim, aterraram mesmo ao lado de uma cidade esplêndida.

— Quem és tu, forasteiro? — perguntou, admirado, um soldado, do alto das muralhas

da cidade.

— Sou estrangeiro nestas paragens e este — disse, apontando o animal com um gesto

— é o meu cão.

O cão preto abriu as mandíbulas. O soldado que estava de guarda às muralhas ficou

aterrado. Foi como se estivesse a olhar para um enorme caldeirão de fogo e de sangue. A

garganta do cão emanava fumo. As mandíbulas do cão abriram-se ainda mais e mais…

— Fechem os portões! — ordenou o soldado. — Fechem-nos imediatamente!

Mas Shakra e o cão conseguiram saltar os portões cerrados. Os habitantes da cidade

fugiram em todas as direcções, como se fossem marés a subir ao longo de uma praia. O cão

110

foi no seu encalço, juntando as pessoas como se fossem um rebanho de ovelhas. Homens,

mulheres e crianças gritavam, aterrorizados.

— Parem! — gritou Shakra. — Não se mexam!

As pessoas imobilizaram-se.

— O meu cão tem fome. O meu cão tem de ser alimentado.

O rei da cidade, a tremer de medo, ordenou:

— Rápido! Tragam comida para o cão! Imediatamente!

Em breve, carroças chegavam ao mercado carregadas de carne, pão, milho, frutos e

cereais. O cão engoliu tudo de uma só vez.

— O meu cão precisa de mais comida! — exclamou Shakra.

As carroças voltaram de novo, carregadas. E o cão voltou a devorar tudo de uma

assentada. Depois soltou um grito de angústia, um grito que parecia emanar das profundezas

do Inferno.

As pessoas caíram por terra e taparam os ouvidos, aterradas. Shakra, o forasteiro, fez

soar a corda do seu arco, que fez um ruído semelhante ao ribombar do trovão numa noite de

tempestade.

— O meu cão ainda tem fome! — Dêem-lhe de comer!

O rei contorceu as mãos e pôs-se a chorar.

— Já lhe demos tudo o que tínhamos. Não temos mais!

— Sendo assim, o meu cão alimentar-se-á de pastos e montanhas, de pássaros e animais

ferozes. Devorará as rochas e mastigará o sol e a lua. O meu cão alimentar-se-á de vós!

— Não! — gritaram as pessoas. — Tem misericórdia de nós! Rogamos-te que nos

poupes! Poupa o nosso mundo!

— Então acabem com a guerra — disse Shakra. Alimentem os pobres. Cuidem dos

doentes, dos sem-abrigo, dos órfãos, dos velhos. Ensinem a bondade e a coragem às vossas

crianças. Respeitem a terra e todas as suas criaturas. Só assim açaimarei o meu cão.

Shakra transformou-se num gigante, resplandecente de luz. Ele e o cão deram um salto

e, numa espiral de fumo, subiram cada vez mais alto.

111

Lá em baixo, nas ruas da cidade, homens e mulheres olhavam o céu consternados.

Estenderam as mãos uns para os outros e prometeram mudar as suas vidas, fazer o que o

forasteiro lhes tinha ordenado que fizessem.

Bem lá de cima, Shakra sorriu no seu trono dourado, ao olhar para a terra. Limpou a

testa com um braço resplandecente. As inúmeras estrelas cintilavam, fulgentes, e a escuridão

dormitava entre elas, tal como um cão junto de uma fogueira.

Margaret Read MacDonald

Peace Tales Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005

113

Além-Mar Maio 2004

Diálogo e respeito mútuo

José Dias da Silva

Primeiro foi o 11 de Setembro em Nova Iorque. Depois, após umas incursões por países

longínquos, cujas ondas de choque pouco nos impressionaram, foi o 11 de Março, em Madrid.

E, de repente, depois de tantos anos de auto-suficiência e de requintados serviços de

vigilância, percebemos que afinal ninguém está seguro em lado nenhum. O pânico e o medo

aumentaram um sentimento difuso de ansiedade e angústia, já agudizado por novos riscos,

novas doenças, novas catástrofes ambientais, novos perigos de alimentos contaminados.

O pânico não é o mais propício para uma avaliação objectiva da realidade. E o medo

nunca foi bom conselheiro. De qualquer modo, em vez das reacções imediatistas, impostas pela

agressividade e defesa irracional da nossa territorialidade geográfica, mas sobretudo cultural,

esta é uma oportunidade para olhar à nossa volta e não só perceber que não somos os únicos

habitantes do planeta nem as únicas sociedades com valores mas também procurar apreender as

causas profundas de tais brutalidades e das possíveis culpas nossas no seu aparecimento.

Talvez estes massacres nos ajudem a tomar consciência dos muitos que fomos cometendo

ou deixámos que acontecessem ao longo da história: o comércio de escravos africanos pelos

portugueses e outros, o genocídio de incas e astecas pelos espanhóis, o massacre dos aborígenes

da Tasmânia pelos ingleses, a eliminação dos índios pelos americanos, a destruição do povo

herero, da Namíbia, pelos alemães, os milhões de mortos nos Gulags estalinistas e nos campos

de morte nazis, os dois milhões de mortos pelos kmers vermelhos, o milhão do genocídio

ruandês ou os 300 mil timorenses. Isto para não falar das tentativas «caseiras» de limpeza étnica

ou política: dos arménios, dos curdos, dos chechenos, na ex-Jugoslávia, ou dos milhares que por

esse mundo fora todos os dias deixamos morrer à fome. Afinal não somos muito mais

civilizados do que esses terroristas que matam, a sangue-frio, milhares de inocentes. Quantos

não matámos nós por razões económicas, por interesses políticos ou por simples indiferença?

Talvez os recentes crimes nos façam perceber que a vítima americana não é mais pessoa

que o ruandês que deixámos massacrar, que sempre que morre uma pessoa, em qualquer canto

do mundo e independente da sua cor ou religião, é sempre uma perda irreparável para a

114

humanidade. Talvez consigamos perceber que todas as pessoas contam igualmente. E que,

havendo atrás de cada pessoa uma cultura, a humanidade será mais rica se partilhar todos esses

bens culturais, respeitando-os e promovendo-os na diversidade das diferenças, até porque todas

as culturas são incompletas e têm debilidades próprias. E sem o reconhecimento dessas

limitações nunca será possível o diálogo intercultural honesto e fecundo.

Então o caminho não pode ser o da imposição dos nossos valores para substituir os dos

outros, o que só pode conduzir a uma «canibalização cultural». Tem de ser o do diálogo entre

todas as culturas. Só assim, no respeito mútuo, será possível eliminar ou pelo menos limitar as

condições geradoras de terroristas dispostos a dar a vida para espalhar a morte e, talvez assim,

contestar um Ocidente que nunca os levou a sério, que passou a história a impor soluções que

não incluíam os legítimos ideais desses povos, ignorando-os ou até humilhando-os.

Bastará olhar para a partilha de África feita a régua e esquadro numa longínqua cidade da

Europa central, ou a (não) solução para o Médio Oriente, ou a divisão entre a Índia e o

Paquistão. Para não citar exemplos bem recentes onde a mentira teve um papel determinante. É,

pois, tempo de os políticos darem lugar aos sábios. E tempo de os militaristas darem lugar aos

amantes da paz e da dignidade das pessoas e dos povos. É tempo de o diálogo substituir o ruído

ensurdecedor das armas. É tempo de afirmar e respeitar a igual dignidade de todos, pessoas e

povos, o seu direito ao desenvolvimento próprio, à sua cultura, à sua existência reconhecida

internacionalmente, à sua parte dos bens deste mundo, criados para uso de todos.

Talvez também possamos perceber que a nossa cultura de absolutização do dinheiro é

(pode ser) um grande aliado dos terroristas ao permitir-lhes dispor de financiamento com

esquemas de branqueamento de dinheiros, com os paraísos fiscais, onde todos os dias passam

milhões de dólares que ninguém quer controlar. Só nas ilhas Caimão, o maior centro de

off-shore do mundo, circulam 15 milhões de milhões de dólares por ano.

Com as injustiças históricas que cometemos e as facilidades organizativas que a nossa

idolatria pelo dinheiro proporciona, não estarão criadas condições objectivas para o terrorismo?

115

Infobib - Boletim da Biblioteca da Escola Secundária/3 de Baltar 2005

Sementes de violência

Eugénio de Castro, no seu poema A sombra do quadrante, lança a seguinte interrogação:

“Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida / Tão doidas ambições, tanto ódio, tanta ameaça?”

A Biblioteca decidiu abordar o tema da violência, não só porque é uma questão actual,

mas também porque é um problema sem soluções definitivas e incontestáveis. E sobretudo

porque a todos diz respeito, quer como seus autores, quer como suas vítimas.

A sombra do quadrante

Murmúrio de água na clepsidra gotejante,

Lentas gotas de som no relógio da torre,

Fio de areia na ampulheta vigilante,

Leve sombra azulando a pedra do quadrante,

Assim se escoa a hora, assim se vive e morre.

Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida

Tão doidas ambições, tanto ódio, tanta ameaça?

Procuremos somente a Beleza, que a vida

É um Punhado infantil de areia ressequida,

Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa.

Eugénio de Castro

116

É, não obstante, um dado incontroverso que a violência impregnou as artes e a cultura e

muito particularmente o cinema, a música, a televisão e os videogames.

Como refere Carlo Climati (in Os jovens e o esoterismo, Lisboa, Paulinas, 2001):

... Depois do rock, da banda desenhada e do cinema, também os jogos de vídeo

foram «contaminados» por esta tendência.

Certos jogos de vídeo parecem contribuir para um processo de habituação ao mal

por parte dos jovens. As novas gerações cada vez se acostumam mais à violência,

até ao ponto de esta as deixar indiferentes. Ou antes, em certos casos, as

encenações de “terror” e as imagens monstruosas chegam mesmo a tornar-se

instrumentos “fascinantes”, utilizados para vender mais jogos de vídeo e para

chamar a atenção dos jovens.

Por outro lado, uma nota predominante dos conteúdos destes jogos de vídeo é a luta pela

sobrevivência. O referido autor (ob. cit.) acrescenta que, nestes jogos,

... o jogador tem de se confrontar com contínuos desafios de morte para conseguir

manter-se vivo, aumentando, ao mesmo tempo, o seu poder. O problema é que esta

luta se transforma, por vezes, numa verdadeira educação para a violência e para o

espezinhamento dos outros.

A mensagem transmitida aos jovens é clara: para sobreviver e conquistar o poder

é lícito fazer seja o que for: destruir, espancar, ultrapassar, matar ou esmagar os

próprios adversários. Não importa aquilo que se faz. O que conta é alcançar os

próprios objectivos. Bem-vinda seja a “morte” dos outros, se ela representa a

nossa vida. Tudo isto é certamente horrível, mesmo quando se trata de um jogo...

Não se julgue, porém que os referidos jogos são meros entertainments, pois inculcam nos

seus jovens utilizadores determinados padrões de conduta e regras de comportamento nocivas e

anti-sociais. Como descortina Carlo Climati (ob. cit.), dos jogos

... ressaltam dois conceitos verdadeiramente negativos: a “corrida sem regras” e a

ideia que “só os mais fortes e experientes conseguem chegar à meta”. Os jovens

aprendem assim a acreditar que, para ter êxito, tudo é permitido, até as formas de

comportamento incorrecto. No fim, os mais fortes triunfam sobre os mais débeis.

Eis um tema recorrente na filosofia subjacente a muitos jogos de vídeo. Quem bate

com mais força é quem vence...

117

Se o alvo da nossa análise for o cinema chegaremos a análoga conclusão. Com efeito,

sucedem-se novas versões da mesma série ou a sua continuação, mas a última é

incomparavelmente mais grotesca do que a anterior e a violência é avassaladoramente maior. O

público é atraído pela espiral de violência e de grosseria. O autor supra referido (ob. cit.)

esclarece que:

... O público quase parece afeiçoar-se, de forma mórbida, a estes implacáveis

assassinos cinematográficos, que voltam sempre a ressuscitar e a atacar outras

pessoas. Os jovens não se contentam em vê-los num único filme. Desejam que eles

voltem a matar, de forma original e diferente, e os produtores, interessados em

ganhar dinheiro, satisfazem o seu desejo, fazendo centenas de películas de teor

macabro e violento.

É certo que as histórias tradicionais também são caracterizadas por uma certa

agressividade e até por alguma violência. Em todo o caso, apenas com o fito de demonstrar que

a realidade também contempla essa faceta. Contudo, o bem acaba sempre por vencer. A

mensagem que prevalece é a do bem, a da punição do mal e a do regresso à ordem.

Já as novas criações, como bem realça João César das Neves (in Acordar do Sonho,

Lisboa, Ed. Verbo, 2003)

… têm como herói o mau, que se alegra com os gemidos das vítimas e os gritos de

horror dos inocentes. Nelas, o propósito do jogo é comer mais escravos, atropelar

peões, espancar adversários ou arrasar cidades. O realismo do sangue a espirrar

e dos estertores da morte só se compara com o maquiavelismo dos planos de

zombies, bruxas e dráculas. O diabo, que os pais consideram que não existe, está

presente em nome, pessoa e efeitos nas histórias preferidas dos seus filhos.

Seria ingenuidade pensar que o único ou o principal motivo que justifica a proliferação

dos filmes e vídeos em apreço é o lucro dos produtores. É indubitável que o factor financeiro

não é de menosprezar. Como conclui o já aludido Carlo Climati (ob. cit.), ainda a propósito

desta inesgotável produção,

... mais uma vez, quem decide é o “deus dinheiro”...

Outras serão as razões pelas quais a violência se enraizou na produção cinematográfica e

afins. Não se pretende, neste artigo, esgotar a análise das mesmas. Será oportuno ponderar duas

perspectivas de análise.

118

A primeira aponta para razões de ordem convencional, ou seja, o homem afirma-se pela

força física. Sam Keen (in O homem na sua plenitude, S. Paulo, Cultrix, 1998) alerta que

... A psique masculina, antes de mais nada, é a psique do guerreiro. Nada nos

plasma, molda e modela tanto como a exigência da sociedade de que nos tornemos

especialistas no uso do poder e da violência, ou, como dizemos eufemisticamente,

na “defesa”. Historicamente, a principal diferença entre homens e mulheres é que

sempre se esperou que os homens fossem capazes de recorrer à violência quando

necessário. A capacidade e a disposição para a violência têm sido centrais na

nossa autodefinição. A psique masculina não foi construída sobre o racional:

“Penso, logo existo”, mas sobre o irracional: “Conquisto, logo existo”.

Quanto ao que veio a tornar-se o estado de emergência banal da vida moderna,

concedemos ao Estado o poder de interromper a vida dos rapazes, de os convocar

para servir o exército e iniciar no ritual da violência. Clichés que passam por

sabedoria dizem-nos: “O exército fará de si um homem”, e “Todos os homens

precisam de ter a sua guerra”.

O autor denuncia mesmo que este preconceito atinge o extremo de poder prejudicar ou

aniquilar determinadas vocações ou percursos.

... Muitos homens criativos que conheço eram sensíveis, compassivos demais para

lutar. E quase todos cresceram sentindo-se, de certo modo, inferiores e com a

certeza de que não tinham passado a prova da masculinidade. Desconfio que

muitos escritores ainda estão a mostrar aos valentões do bairro que a pena é mais

forte do que a espada. A prova modelou-nos, quer tenhamos lançado bombas ou

sido apanhados por elas...

No que se refere à segunda perspectiva, é seguro que, na sociedade actual, o homem não

dialoga sobre a sua natureza íntima, não partilha sentimentos, não encontra um interlocutor

atento e disponível. Esta lacuna − nas relações pai/filho, professor/aluno, marido/mulher –

provoca frustração, revolta e raiva. Eis as sementes da violência. O ser humano revolta-se

porque não encontra condições para realizar a sua principal vocação.

Wolfgang Salewski e Peter Lanz (in A Nova Violência – e como enfrentá-la, Lisboa, Ed.

Livros do Brasil, 1978) relatam a seguinte história verídica de Mark Twain, escritor e satírico

americano:

... certa vez, chegou demasiado tarde a um jantar para o qual tinha sido

convidado. Quando a dona da casa, distraída pela organização do banquete e pelo

119

grupo de ilustres convidados, lhe deu as boas-vindas, Twain pediu desculpa pelo

seu atraso com as seguintes palavras: “Tem de desculpar-me por ter chegado só

agora, minha querida senhora, mas tive necessidade de matar a minha velha tia

antes de vir.” E a dona da casa respondeu-lhe: “Claro que lhe perdoo, caro

mestre, isso por vezes acontece.”

Atente-se, todavia, ao comentário que os autores acrescentam à história:

Assim, superficialmente, a história pode provocar o riso. Mas, se pensarmos um

pouco, podemos ser invadidos pelo medo. O que há cem anos Mark Twain quis

tratar como uma graça tornou-se hoje numa triste verdade. Trocam-se argumentos

sem, de facto, se entrar em contacto uns com os outros. Falamos, sem dúvida, mais

do que outrora. Os meios técnicos de comunicação tornam possível as pessoas

falarem umas com as outras, em quase todos os pontos do mundo. Com o auxílio

de cabos submarinos e satélites transpõem-se os oceanos. No entanto,

compreendemo-nos cada vez menos.

A violência é, na verdade, um drama actual, mas não podemos soçobrar, pois se são

inolvidáveis os seus efeitos, são também irreversíveis as consequências da boa formação do

carácter por via da educação. Como ensina João César das Neves (ob. cit.),

Os filmes e jogos devem ser usados também para contrastar com a vida real. O

normal é que os jovens que contemplam de forma tão viva horrores tão profundos

ganhem uma insensibilidade emocional. Mas também é possível que, por reacção,

sejam levados a compreender melhor a beleza, a bondade, a alegria e a felicidade.

Cabe aos educadores conduzir e potenciar essa reacção. Estes horrores podem

permitir adquirir critérios de julgamento e edificar o carácter, o essencial da

educação.

121

Alfredo Fonseca; J. Wemans; J.M.Azevedo; P. Melo “Para uma cultura da não-violência” Público, 1 de Março de 2003

Excertos adaptados

Para uma cultura da não-violência

No início do terceiro milénio, a violência continua a ser uma constante na história da

humanidade. O fim do bipolarismo e a apregoada nova ordem internacional, ao contrário do que

alguns previam, não contribuíram para a resolução pacífica dos conflitos que continuam a

provocar milhões de mortos e de mutilados um pouco por todo o mundo e a impedir que muitas

pessoas vivam em condições mínimas de dignidade. Ruanda, Sudão, Kosovo, Tchetchénia,

Argélia, Colômbia, Angola, Médio Oriente, Afeganistão ou Iraque são algumas regiões do

mundo onde o absurdo da guerra se manifestou recentemente e, em alguns casos, continua a

manifestar.

Mesmo em situações aparentemente pacíficas, a violência é, sob muitas formas, uma

realidade quotidiana que destrói vidas e condena à sobrevivência em condições iníquas uma

multidão de seres humanos. Não serão o desemprego, o analfabetismo, a insegurança, as

desigualdades crescentes, a exploração e os futuros roubados manifestações de violência com as

quais constantemente nos confrontamos?

Reconhecemos que as diferentes confissões cristãs têm, ao longo da história, invocado

Deus para legitimar a guerra, enquanto detentoras de uma verdade revelada que deve ser

concretizada. Noutras situações, têm contemporizado com a violência que aniquila o outro,

desenvolvendo as teorias da guerra justa. Não adianta, pois, ignorar ou tentar justificar o uso, a

contemporização ou legitimação da violência por parte das várias igrejas espalhadas pelo

mundo.

Tem o cristianismo, enquanto religião messiânica, inscrito em si uma lógica de violência

e dominação? Mesmo quando a história parece dizer que sim, a contemplação do Crucificado,

daquele que, numa doação amorosa de si, aceitou perder, foi ressuscitado e está vivo, a

contemplação desse “homem de dores”, que se humilhou voluntariamente e não abriu a boca,

diz-nos que só por grave cegueira pode decorrer do cristianismo uma lógica messiânica

legitimadora da dominação. Portanto, à luz da radicalidade evangélica, não faz sentido teorizar

sobre a guerra justa.

Foi também no âmbito das religiões, inclusive do cristianismo e da inspiração evangélica,

que a dominação e a guerra foram mais seriamente questionadas e que a não-violência se

constituiu como um quadro consequente de vida e intervenção social. A verdade deixa, então,

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de ser entendida como algo que se tem e deve ser anunciado e, no limite, imposto aos outros

para o “seu bem”, para passar a ser resultado de uma busca que passa necessariamente por

“procurar conhecer-se em profundidade a si próprio, aos outros e às envolventes circunstâncias

históricas, sociais, políticas, económicas e religiosas”.

Daqui resultará a atitude de profunda humildade daquele que sabe e aceita que a verdade

não é pertença absoluta e exclusiva de ninguém em particular. A verdade não se tem. Buscar a

verdade, por isso, é recusar diabolizar o inimigo e, ao invés, desejar integrá-lo também neste

processo de procura de verdade – da verdade que liberta –, porque até no inimigo mais

empedernido há sempre algo de aproveitável, há sempre uma bondade potencial, ainda que

embotada.

Esta atitude, em vez de gerar um ódio de morte ao outro, leva a encará-lo como alguém

capaz de mudar. Tanto quanto eu. Não confundamos não-violência com passividade, cobardia

ou desistência de lutar pela justiça. Afirmação de si, agressividade e conflito são inerentes à

condição humana. Não têm, forçosamente, que assumir a forma de violência, de desejo

concretizado de destruição do outro, do diferente, do que nos mete medo. E não é pelo facto de

a guerra ter sido uma constante na história da humanidade que assim tem de continuar a ser.

A humanidade dispõe hoje de recursos materiais e espirituais que lhe permitem prescindir

da violência como forma de garantir a sobrevivência e é possível, a partir de um processo lento

e difícil, porque cultural, inaugurar uma nova era civilizacional de humanização, de

enriquecimento pessoal e comunitário, através do confronto e da compreensão do outro, do

diferente. Hoje, é possível pensar a evolução da humanidade fora dos quadros da violência.

Não é, no entanto, o senso comum, o caminho mais evidente. “Se queres a paz prepara a

guerra”: eis um provérbio que resume o adversarialismo que ainda hoje domina a acção política

e as práticas sociais. O caminho não é fácil, tanto do ponto de vista colectivo como pessoal.

Requer persistência, paciência e vigilância.

Por isso: “Se alguém pensar que já alcançou um estádio de recusa absoluta da violência,

esse ignora-se a si mesmo. O adepto da não-violência trava todos os dias consigo próprio um

combate. Já não será então somente a recusa da força bruta como meio de solução dos

problemas, mas de todas as formas de violência, sobretudo as mais requintadas e subtis. É este o

princípio da autêntica convivência, do viver conjuntamente, do estar-com” (José Manuel Pureza,

Pedaços de uma fé crítica).

“Assim como é preciso aprender a matar para praticar a violência, assim se deve estar

preparado para morrer para praticar a não-violência”, dizia Gandhi. Ora, ter este princípio como

horizonte de vida pressupõe um profundo e persistente trabalho interior porque “a não-violência

não recusa o conflito mas procura transformá-lo em fonte de crescimento e de amadurecimento

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da consciência e da solidariedade humanas, consciente dos limites e precariedade desse mesmo

processo”.

Este é um desafio que cada um há-de colocar, em primeiro lugar, a si mesmo, ainda que a

partilha e a reflexão societária constituam um incentivo e encorajamento que previnem a

desistência de tão exigente processo de construção espiritual. Convictos de que, na fidelidade à

Vida, vale a pena dar passos no sentido de uma cultura de não-violência, devemos

comprometer-nos a:

― Desenvolver um pensamento e uma acção que recusem o adversarialismo simplista

que tende a dominar o senso comum e permitam uma consciência dos problemas na sua

complexidade, evitando o desalento e permitindo valorizar o presente como futuro em

construção.

― Dar a conhecer iniciativas individuais e colectivas que se pautem por critérios de não-

-violência, de defesa dos direitos humanos, de promoção da cooperação e do desenvolvimento,

de reinserção social, centrados na valorização das pessoas e das comunidades.

― Potenciar a independência da consciência, para que, através dos comportamentos e das

atitudes individuais e sociais, se realize a mobilização para as mudanças capazes de reduzir a

violência e instaurar novas formas de relacionamento.

― Reforçar os laços com todos aqueles que se ocupam da solidariedade e

desenvolvimento a nível internacional, de modo a desenvolver uma compreensão da

interdependência dos problemas e das suas soluções.

― Estudar, desmontar, denunciar as lógicas económicas que alimentam as guerras ligadas

aos interesses da indústria de armamento e reflectir activamente sobre essas questões, no plano

nacional e internacional.

― Promover espaços de formação para jovens e adultos em que se pense a resolução não-

-violenta de conflitos, porque uma cultura das mediações e da não-violência pressupõe uma

pedagogia das mediações e da não-violência.