46
Virada animal, virada humana: outro pacto Stelio Marras resumo Este artigo foi composto a partir da comunicação apresentada no Ciclo de conferências “Humanos e animais: os limites da humanidade”, promovido pelo IEA/USP. Já bastante modificado desde então, o texto incorpora ainda comentários de interlocutores de diferentes áreas ou perspectivas de conhecimento, de modo a explicitar tanto as dificuldades quanto o caráter promissor de tais esforços interdisciplinares. No mesmo passo, as reflexões do artigo emergem do exame de uma bibliografia heterogênea, mas que, conforme o tratamento aqui despendido, converge para a urgência contemporânea de se conceber e praticar um outro pacto entre os humanos modernos e os animais, sem o qual o próprio humanismo ver- se-á ameaçado. Para outro humanismo, outra natureza insiste em pedir passagem. Palavras-chave Humanismo. Naturalismo. Emergência. Virada animal. Pacto. Redes. Hesitação. Correspondências. É à força de estudar os homens que nos tornamos incapazes de conhecê-lo (Rousseau, 1999b [1755], p. 150). Introdução: nada de humanos sem animais Embora o tema “animais e humanos” não tenha até aqui figurado como central em minhas investigações, ele tem cada vez mais tomado meu horizonte. Por isso mesmo já adianto desculpas pelas faltas que, na mesma medida em que adentro nesses estudos, só fazem mostrar-se e acumular-se. Mas entre recuar ou, com certo abuso, enfrentar o tema, resolvi pela segunda opção, a qual não seria viável, se eu não contasse com o apoio, as indicações, os comentários e mesmo as críticas dos professores e pesquisadores que aqui agradeço. Dentre estes, quero logo destacar os comentários e as críticas do biólo- go Charbel El-Hani, bem como da antropóloga Joana Cabral de Oliveira. Seus precio- sos aportes são devidamente indicados ao longo deste texto. Estou convencido de que a scientiæ zudia, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014 215 artigos http://dx.doi.org/10.1590/S1678-31662014000200002

Virada animal, virada humana: outro pacto

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Stelio Marras

Citation preview

Virada animal, virada humana:outro pactoStelioMarrasresumoEsteartigofoicompostoapartirdacomunicaoapresentadanoCiclodeconfernciasHumanoseanimais: os limites da humanidade, promovido pelo IEA/USP. J bastante modificado desde ento, otexto incorpora ainda comentrios de interlocutores de diferentes reas ou perspectivas de conhecimento,de modo a explicitar tanto as dificuldades quanto o carter promissor de tais esforos interdisciplinares.No mesmo passo, as reflexes do artigo emergem do exame de uma bibliografia heterognea, mas que,conformeotratamentoaquidespendido,convergeparaaurgnciacontemporneadeseconceberepraticar um outro pacto entre os humanos modernos e os animais, sem o qual o prprio humanismo ver-se- ameaado. Para outro humanismo, outra natureza insiste em pedir passagem.Palavras-chave Humanismo. Naturalismo. Emergncia. Virada animal. Pacto. Redes. Hesitao.Correspondncias. fora de estudar os homens que nos tornamosincapazes de conhec-lo (Rousseau, 1999b [1755],p. 150).Introduo: nada de humanos sem animaisEmboraotemaanimaisehumanosnotenhaataquifiguradocomocentralemminhas investigaes, ele tem cada vez mais tomado meu horizonte. Por isso mesmo jadianto desculpas pelas faltas que, na mesma medida em que adentro nesses estudos,s fazem mostrar-se e acumular-se. Mas entre recuar ou, com certo abuso, enfrentar otema, resolvi pela segunda opo, a qual no seria vivel, se eu no contasse com o apoio,as indicaes, os comentrios e mesmo as crticas dos professores e pesquisadores queaqui agradeo. Dentre estes, quero logo destacar os comentrios e as crticas do bilo-go Charbel El-Hani, bem como da antroploga Joana Cabral de Oliveira. Seus precio-sos aportes so devidamente indicados ao longo deste texto. Estou convencido de que ascienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014215artigoshttp://dx.doi.org/10.1590/S1678-31662014000200002216Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014urgentetarefaintelectualcontempornearumoarenovaesdoconhecimento,essaque responde por rubricas como a da interdisciplinaridade, multidisciplinaridade outransdisciplinaridade (eu mesmo j prefiro ps-disciplinar), pode realizar-se mui-to melhor quando aqueles que a se aventuram puderem explicitar com a maior clarezapossvel os limites e as dificuldades desse empreendimento voltado a atravessar obje-tos, reas, campos ou domnios. Entendo que os problemas contemporneos exigemessa subverso. Mas no ser escondendo essas dificuldades, como por detrs de ape-los a alguma erudio, que poderemos realmente avanar, mas antes expondo nossasfraquezas quando nos lanamos a outras searas disciplinares. Eis porque quis incluir acada vez neste texto os referidos argumentos dos colegas, os de adeso e os de contrarie-dade, assim tentando abrir a uma exposio algo polifnica ou, em todo caso, voltadaao esforo de colaborao entre colegas de diferentes reas do conhecimento.Pensoqueaatualretomadadotemaquecomparaanimaisehumanosintegrabem os problemas dos estudos contemporneos em relao aos quais tenho maior inti-midade. Refiro-me aos Science Studies e, em especial, ao esforo de desantropocentrali-zao, o humano moderno a ser retirado do centro do cosmo. Essa a razo pela qualme apropriei da meditao de Rousseau, indicada em epgrafe, embora a traga para oproblema aqui em pauta, o qual enuncio da seguinte maneira: se hoje quisermos real-mentecompreendermelhorohumano,emsuaversomoderna,issonoserfeitoafundando-seemseuespecismo,massimconsiderando-oemredesconstitudasdeuma multiplicidade de agenciamentos heterogneos. Voltarei a esse ponto ao longo dotexto e tambm no ps-escrito. Por ora, observo que esse urgente imperativo de con-trariar o antropocentrismo ocorre (decerto no por acaso) em plena era do Antropo-ceno, ambgua e contraditria, na qual os humanos (ou melhor, os modernos ociden-tais)pretendemmarcaracentralidadedesuaagncianocosmoe,porissomesmo,veem-sessnocentromesmodouniverso.Pretendemterfinalmentealcanadoodomnio absoluto da natureza e veem-se ameaados pela mesma natureza. A mesma?Bem, j no mais a mesma, se nos fiamos na hiptese de Bruno Latour (1994), segun-doaqualjamaisfomosmodernos.Hiptesedequehoje,maisdoquenunca,damo-nos conta de que a natureza jamais foi homognea, muda, impassvel, previsvel, sim-ples estoque de recursos, exterior ao mesmo humano este que tambm j no podemais ser o mesmo humano de quando se pensava moderno. Para outra natureza, outrohumano. Mas para outro humanismo, novos pactos com no humanos devem ser fei-tos. Seria este, alis, o ponto central deste texto, se eu devesse indicar, mas no o casode adiant-lo agora.Noto, antes, que nas humanidades essa retomada do tema ganha o nome, entrealgunsautores,deviradaanimaloumesmoestudosanimais(cf.,porexemplo,Maciel, 2011). Mas logo descubro que esse interesse renovado espraia-se igualmente217Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014na biologia, na psicologia, na filosofia.1 Ou seja, essa reviso das relaes entre huma-noseanimaisnoaconteceapenas,nememespecial,naantropologiacontempor-nea, como, por exemplo, nas reflexes do antroplogo Tim Ingold (2000) a partir dasnoes de engajamento, habilidade e emaranhamento entre percepo e ambiente, oupercepo do ambiente. Eis porque meio de sbito que passo a conhecer, e aqui re-verberar,umaregiodeconvergnciacontemporneaentrediferentescamposdis-ciplinares (biologia, antropologia, filosofia, psicologia, literatura) em torno da com-parao entre humanos e animais no mais feita a partir de domnios purificados doreal, cujo efeito, devemos saber, esse de tomar o real em termos de formas e foraspuras, autnomas ou exteriores entre si. E se assim, claro que ento vai ficando cadavezmaisdifcilservirmo-nosconfortavelmentedasacusaessociologistassobreonaturalismo.2 E a que se descortina para ns o vislumbre de um dilogo desarmado,como entre cincias sociais e cincias naturais, agora no mais pautado pelas acusa-es mtuas, mas por colaboraes. Consequentemente, parece claro que essa revisoauspiciosa da comparao entre humanos e animais implica tambm uma reviso, nomenos promissora, do objeto mesmo das cincias sociais e das cincias naturais, so-bretudo, visando minar as fronteiras entre elas. Quer dizer, vai ficando cada vez maisinverossmil, seno limitado ou mesmo fadado ao fracasso, toda perspectiva discipli-nar que no consiga ou no se disponha a transitar em outras disciplinas, e com o mes-mo rigor, controle e interesse que devotamos disciplina de nossa formao. verda-de que tais exigncias e desafios de hoje no surgem ex nihilo, mas tm onde se enraizar. justo reconhecer, portanto, que essas abordagens cruzadas, muitas delas recupera-das pelos referidos science studies (Latour, Callon, John Law etc.), ecoam experimentosnem to recentes e que respondem por nomes como, por exemplo, psicologia ecol-gica (James Gibson), cognio distribuda (Edwin Hutchins), ecologia da mente(Gregory Bateson) e mesmo biologia da cognio (Humberto Maturana e Francisco1 o bilogo Charbel El-Hani que imediatamente me d notcia sobre estudos mais recentes na biologia e que in-teratuam com a filosofia e a psicologia, voltados comparao entre animais e humanos, mas procurando libertar-se daqueles termos duros tais como os derivados do par primordial natureza versus cultura do Ocidente moderno que os cientistas sociais sempre acusam no pensamento da biologia ou do naturalismo de modo geral, assim como,vice-versa, os cientistas naturais acusam de reduo sociolgica a abordagem tradicional dos cientistas sociais (oque sempre restaura a famigerada guerra das cincias). El-Hani indica uma bibliografia, que aqui compartilho como leitor, mas que ainda no pude estudar (cf. West-Eberhard, 2003). Observe-se que, por razes de padronizaoeditorial,inclunabibliografiadesteartigotodasasrefernciasqueCharbelindicaaolongodesualeitura.Emcomunicao pessoal, El-Hani me diz que hoje, separar natureza e cultura no mais que biologia mal aprendida.2 Abandonar o conforto disciplinar como condio para descries mais realistas do real. a distino estanqueentre inato e adquirido que felizmente passa a conhecimento moribundo. E isso de um e do outro lado, nas cinciasnaturais e nas cincias sociais. Ou como me diz, em comunicao pessoal, El-Hani no tocante biologia: o papel doinstinto no comportamento animal est sob a mira crtica de muitos bilogos do comportamento, sendo hoje poucocomum apelar a ele, assim como ao inatismo.218Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014Varela).3 Eu mesmo venho me aproximando devagar dessas abordagens e com a ajuda ecolaborao de outros colegas.Entendo que os desafios contemporneos dirigem-se a rever as relaes de se-melhana e diferena, de continuidade e descontinuidade, de aproximaes e afasta-mentos entre animais e humanos. Isto , como pensar agora essas relaes entre ani-maisehumanossemvaler-sedofossoouabismointransponvel,previamenteconcebido, entre grandes domnios unificadores, tais como o da natureza e o da socie-dade, estando o natural para o eminentemente animal, e o social (ou cultural ou polti-co) para o eminentemente humano? Esse abismo repe-se, por exemplo, em uma su-posta incomensurabilidade cognitiva entre animais e humanos. Integra esses desafiosainda evitar pr o problema da comparao nos termos dos interacionismos, os quaisnos levam a pensar essas relaes entre animais e humanos a partir de formas e foraspuras, tais como as do natural e do social e, no mesmo passo, evitar os famosos englo-bamentos recprocos desses dois polos natureza e sociedade que so tornados in-transitivos pela epistemologia oficial modernista, tal como Bruno Latour (1994) dese-nhaparansessaarquiteturaintelectualeprticadosmodernos.Ouseja,seosmodernos haviam separado esses domnios como garantia para que se liberasse todotipo de experimentao de formas e foras (como as que praticamos em nossos laborat-rios cientficos), e a mesmo reafirmando seu humanismo, hoje essa arquitetura, mos-tra Latour, j no mais se sustenta com a mesma robustez de h poucas dcadas atrs. a ento que se abre para ns a oportunidade de rever como se processa todo tipo detrnsito e constituio das ontologias, dos seres e entes no mundo. Se assim com osobjetos tcnicos principal foco de Latour e dos autores dos science studies , como noo seria quanto relao entre animais e humanos?essa,ento,asendaqueeuquisexplorarnestetexto,aindaquemevalendoempiricamente de um material hbrido, no s apenas os dos science studies, inclusiveporque ainda, at onde eu saiba, so poucos os autores ligados a essa corrente que sedebruam especificamente sobre as relaes entre animais e humanos, tema esse que,como se pode supor, muitssimo explorado, e desde tempos imemoriais, a partir dosmais diversos modos de conhecimento. Eu quis aproximar-me um pouco dessa diver-sidadedeabordagensaquinestetextoparaassimexperimentarcomparaesentreanimais e humanos no mais a partir de diferenas diferenciadas, por assim dizer, di-ferenas tornadas incomensurveis por essa bipolaridade unificadora do real aqui onatural e ali, separado por um abismo, o cultural , mas sim como diferenas diferen-3 Ainda que essa biologia da cognio ou do conhecer venha sendo bastante criticada, sobretudo, por conta de suaaposta na noo muito fechada de autopoiese (cf. Haraway, 2010), penso que podemos usar, no mnimo como inspi-rao, os esforos de Maturana e Varela (1980).219Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014ciantes (cf. Tarde, 2007), de maneira a ento podermos tornar comensurvel a compa-rao entre humanos e animais.De modo breve, compreendo tratar-se de comparao incomensurvel (no caso,entre animais e humanos) quando a medida da natureza purificada aplica-se apenas aoexame do que seria caracterstico do animal, ao passo que apenas a outra medida, a dacultura,tambmelapurificada,queseprestariaaoexamedocaracteristicamentehumano. J o esforo de comensurabilidade ou, se quisermos, simetria, nos termos deLatour, Michel Callon e outros (cf. Latour, 1994), exige a suspenso desses unificadoresprvios do real entre natureza e cultura. Da que recusar essa partio da anlise exijaoutro expediente de pesquisa, outro vocabulrio mesmo, outros procedimentos. Mastambm verdade que no nada fcil escapar, sem mais, do edifcio intelectual quenosformou.Umasadaquemepareceboaentotornarosdualismosintransitivosdos modernos algo paradoxais, ambguos, conversveis um no outro; em suma, pr es-ses conceitos em perspectiva a cada nova pesquisa para assim tentar extrair novos ren-dimentos dessa desconfiana. Em outras palavras, parece-me que apostar na comensu-rabilidade apostar em medidas comuns que, no entendimento de Latour (cf. 2012),recebe o nome de composicionismo (podendo ele mesmo, Latour, ser reconhecidocomo um composicionista). Ou seja, tanto para o que entendamos como natural comopara o que entendamos como cultural ou social, ambos os domnios explicam-se porcomposio, por agenciamentos (cf. Deleuze & Guattari, 1995-1997) de actantes he-terogneos.4 E quando explicamos o real por composio, eis que subitamente desa-parecemonaturaleosocialcomodomniosontolgicoseepistemolgicos,porqueeles deixam de render heuristicamente.No devo finalizar esta introduo antes de repor a importncia (antropolgica,filosfica, poltica etc.) dessa comparao entre homens e animais. que repentina-mentedou-mecontadequeosanimais(paraficarapenasneles)foramsempreumoperador na definio dos humanos como vice-versa tambm, claro e assumiram eassumemessepapelnoapenasentreosbrancos-modernos-ocidentais.5Masentreestes, ocorre que os animais por incluso ou excluso figuram como decisivos nonosso humanismo. Reconheo mesmo que, na vasta tradio intelectual do Ocidente,qualquer grande pensador a inscrito, filsofo ou no, sempre precisou de alguma ma-4"Actante um termo de que Latour se vale em muitos momentos de sua obra para diferenciar de atores, termoeste muito comprometido com o antropo e sociocentrismo modernos. Actante traa ainda uma conexo virtuosacom a semitica desenvolvida pelo crculo lingustico de Praga, especialmente na apropriao posterior de Greimas.5 Pode-se perguntar: mas haver ou j houvealgum coletivo quesedefinasem esse contraste animais e huma-nos?Nessesentido,oqueoperspectivismoamerndio,oudoantroplogoamericanistaEduardoViveirosdeCastro, seno um novo e luminoso tratamento desse tema, uma nova comparao dessa comparao? Retomo bre-vemente o perspectivismo nas consideraes finais deste artigo.220Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014neira falar dos animais para poder falar dos humanos. E segue assim a imagem de ummostrando-se muito dependente da imagem do outro, um variando conforme varia ooutro.Ou,comoescreveIngold,(...)asideiassobrehumanidadeesereshumanosformaram as ideias sobre os animais e foram por estas formadas (Ingold, 1994, p. 14),ouainda,aidentidadedohomemeadoanimaliluminam-seapartirdesuamtuaconfrontao (Lestel, 2011, p. 24). Ento o animal nunca deixou de ser o outro antro-polgico,talvezatmesmoograndeoutro,oOutremcomomaisculo.6Eisarazopela qual passo a ler e reler alguns de nossos grandes pensadores histricos nessa chave.Para ficar apenas em dois grandes nomes do contratualismo, Rousseau e Hobbes, ob-servo que neles o pacto entre os homens que d origem organizao social, ao estado,aodireito,emesmoaohumanismoaoqualprezamosatar-nos,passaporumexamedas diferenas e semelhanas entre animais e humanos. Tendo os animais como esp-ciedepontodepassagemobrigatrio(Callon,1986),assoluesaimagina-das para a vida dos homens-entre-eles dependem, antes de mais nada, de uma defini-o ontolgica dos humanos-eles-mesmos. Ora, essa definio passa pela diferencia-o entre humanos e animais. A esse propsito, explorarei uma passagem decisiva doLeviat de Hobbes na seo 5 deste texto. Ser quando poderei dimensionar, ainda quebrevemente, o problema das relaes entre animais e humanos em termos de sacrif-cio, troca e ritual.Por enquanto, e sem maiores ambies de exegese, quero apenas indicar rapi-damente os modos como Rousseau vai aos animais para enfrentar tanto o problema dadesigualdade entre os homens quanto o do estabelecimento do contrato social. Comopodemosrecuperaremseusescritos,nadadecaracterizarohumanosemrepetidasremisses aos animais, sem consideraes sobre suas ontologias e relaes de afasta-mento e proximidade em relao aos humanos. So consideraes ambguas, porqueora Rousseau faz o elogio dos animais para assim elogiar o humano selvagem to afeitoao que ele chama de estado de natureza, ora os detrata, e com eles carrega os mesmoshumanosselvagens,ambasasclassesrefnsdeumabrutezaoriginal.Sim,Rousseauassinala que a fora, a robustez e as virtudes dos selvagens prendem-se intimamenteao seu convvio com os animais, a seus enfrentamentos de corpo-a-corpo, no media-dos por mquinas e pouco mediados por armas. Pouco mediados, sobretudo, pelos equi-6 Neste momento do texto, Joana Cabral de Oliveira faz a seguinte observao. Parece-me que esse destaque dosanimais como outrem deve-se muito mais s semelhanas compartilhadas. Em meio a um fundo de semelhanasdenso, as diferenas podem ganhar relevo e tornarem-se ainda mais significativas. Por que as plantas, as rochas, osastros etc. no ocupam um lugar de alteridade to evidente?. Penso que o desafio que Joana indica mesmo muitopertinente, isto , esse desafio voltado a comparaes simtricas entre ontologias altamente heterogneas entre si,como entre plantas e humanos. Mas tambm observo que a semelhana, digamos, animal entre animais e humanospe a particular dificuldade de pens-la sem reduzi-la a uma continuidade de natureza biolgica, que para onde opensamento purificador modernista atrai, ou onde trai.221Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014pamentos da civilizao, que, para ele, s fazem enfraquecer o homem. Quanto maissocivel,menosvirtudesditadaspeloestadonaturalohomempoderdesenvolver.Rousseau concebe mesmo que as diferenas entre animais e humanos so de intensi-dade, j que uns e outros compartilham traos e disposies tanto da ordem do fsicoquanto do metafsico, sendo que a grande diferena entre o homem e o animal re-pousa sobre uma qualidade muito especfica que os distingue, e sobre a qual no podehaver contestao: a faculdade de aperfeioar-se (Rousseau, 1999b, p. 173). Mas essetrao da perfectibilidade, distintivo do humano, tambm o que o degenera no esta-do de sociedade.7Para refletir sobre a desigualdade entre os homens, Rousseau antes concebe umadesigualdadeoriginalqueopehierarquicamenteanimaisehumanos.comoseasegunda desigualdade, esta entre os homens, replicasse aquela primeira hierarquiza-o, a que marca o orgulho inaugural do homem ao subjugar ou domesticar os outrosanimais. Uma vez ciente das luzes da razo, o homem pde afirmar a sua superiori-dade em relao aos animais, mas no mesmo passo, argumenta Rousseau, essas mes-mas luzes foram-no cegando na ateno s virtudes naturais. O preo desse orgulho edessa superioridade foi a prpria degenerao do humano civilizado nos vcios sociais.De um lado, ele afirma o homem como nico animal dotado de razo (1999b, p. 153).Dizqueasvirtudesanimaissopoucoconformesdignidadedonossoser(Rousseau, 1999a, p. 98). De outro lado, entretanto, homens e animais compartilhamuma dotao natural do sensvel, ambos miserando a existncia, e por isso o homem[ele de posse de sua razo] est sujeito a uma certa espcie de deveres para com eles [osanimais] (1999b, p. 155). O que rene os viventes em comiserao (incluindo as rela-es entre animais e humanos) a piedade. Para Rousseau, a repugnncia em ver ooutrosofrer,essaidentificaosentimentaltonaturalqueosprpriosbichossvezes do sinais perceptveis dela (1999b, p. 189). como arepugnncia que sentem os cavalos em calcar aos ps um corpo vivo: um animalnopassaseminquietaoaoladodeumanimalmortodesuaespcie;hatalgunsquelhesdoumaespciedesepultura,eostristesmugidosdogado,aoentrar em um matadouro, anunciam a impresso que recebe do horrvel espet-culo que o impressiona (Rousseau, 1999b, p. 189-90).7 Voltaire, em carta datada de 1755 e endereada a Rousseau, quando aquele recebe deste o manuscrito do Discursosobreadesigualdade,pareceecoaraambiguidadedeRousseauemrelaoaosanimais,aadicionandoumanotajocosa ou irnica. Diz Voltaire que impossvel pintar com cores mais fortes os horrores da sociedade humana, daqual nossa ignorncia e nossa fraqueza esperam tantos consolos. Jamais se empregou tanto esprito em querer tor-nar-nos animais; sente-se vontade de andar de quatro patas quando se l vossa obra (Rousseau, 1999b, p. 245).222Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014A razo que separa os homens dos animais e que enseja a glria da espcie, isto ,oexercciocaracteristicamentehumanodaliberdade,deveria,contudo,voltar-sepiedade,esseapoiodarazo(Rousseau,1999b,p.191),sobpenadedesvirtuar-senosddalosdasartesedascincias,oudafilosofia,eleodiz,queisolaohomem.certoquealiberdade,essadiferenafundamentalentreoshumanoseosanimaisque Rousseau marca como a mais nobre das faculdades do homem, o mais precioso detodos os seus dons (1999b, p. 229), ela mesma ambgua: redentora e perigosa, fun-dadoradaespcieealgozqueameaaarruinaressamesmaespcie.Abre-semodaliberdadenaturalparagozar,jsobumcontratosociallegitimamenteestabelecido,outra liberdade, a social, esta que se constitui por direitos e deveres estabelecidos porleis e convenes, encaminhando assim a fundao simultnea do estado e da socieda-de civil. O humanismo de Rousseau pretende que todo homem j nasa homem, e, comotal, possuidor de direitos naturais inalienveis, dons essenciais da natureza, tais comoa vida e a liberdade (1999b, p. 230). Sem dvida que os ataques de Rousseau miravamarbitrariedadesedespotismosrepugnantes(queparaelerepugnamsprpriasleisnaturais), como a escravido de homens por homens e a desigualdade, tambm entreos homens, garantida pela riqueza e a propriedade. Queria ele, ento, que um contratosocial legtimo e sensvel queles dons essenciais da natureza pudesse promover umamaior igualdade entre os homens.Emsuma,seRousseautinhacomoresolvidaaprimeiradesigualdadeaquelaentre animais e humanos , restava, para ele, a soluo da segunda desigualdade, a doshomens-entre-eles. Desde ento, sculos se passaram e essa desigualdade social nose viu resolvida. Estou persuadido de que hoje a soluo dessa segunda desigualdadeno se far seno retomando a primeira. uma exigncia de que se estabeleam outrasrelaes com os animais, outras relaes com o que chamamos de natureza; exigncia,enfim, de alargar-se o contrato social para nele fazer entrar os no humanos. Ao quebem parece, a tarefa implica a fundao de um outro humanismo, um que se faa en-quanto se faz, enquanto se experimenta varivel na fruio do cosmo, e no mais pron-to, no mais repousando, portanto, em dons essenciais, estes que acabaram por pro-duzirasolidodohomememrelaonaturezaqueeledescreve(Stengers&Prigogine,1984,p.15).Talvezsejaessaumanovaalianaque,seaindapossvelouexequvel, venha finalmente nos redimir.1 Nem natural, nem socialComohojeimaginarumaverdadeirarenovaodaimagemrelacionaldehumanoseanimais a no ser livrando-se das facilidades intelectuais que se apoiam em uma su-223Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014posta espontaneidade da natureza e em uma suposta conveno da cultura? Devo aquiargumentar rapidamente pela superao desse par que precocemente concebe o que dado e o que construdo nos seres e que, por isso mesmo, mostra-se cada vez maisenganoso. Superao ou simplesmente recusa em apostar nesse par. J o fao comen-tando a bibliografia a que selvagemente recorri para enfrentar o tema. De fato, trata-sede uma mobilizao bibliogrfica que apenas obedece a algumas orientaes tericass quais eu me alinho.8 Isto , as orientaes que de partida experimentam como obje-todeinvestigaoouespeculaoumaimagemdehomemquenotendaadefini-loporsimesmo,porseusupostocarterprivativoouexclusivo,supostocarterautor-referenciado, mas sim por seu carter, assim dizendo, alterreferenciado. Quer dizer, quetome o humano como agente que emerge das suas relaes com outros agentes do mun-do, sejam eles animais, plantas, coisas, espritos, toda e qualquer populao do cosmocom a qual o humano, em toda a sua diversidade no tempo e no espao, relaciona-se ea mesmo se constitui.9 Sim, emergncia do humano, mas no sua emergncia de umavez por todas, como aquela naturalista que aprendemos a conhecer desde sempre, a dacolocao filogentica do sapiens sapiens, aquela do homem anatomicamente pronto,nem mesmo aquela outra noo de emergncia, culturalista, que toma a cultura huma-nacomopropriedadeemergenteedistintivadaespcie(cf.Kroeber&Kluckhohn,1952).So,afinal,duasimagens,anaturalistaeaculturalista,correndoasmesmasguas e dando no mesmo porque ambas afirmam a emergncia definitivamente emer-gida, irreversvel, o fiat lux (no importa se do barro divino, natural ou social) que dorigem origem. Ao contrrio, eu aqui me refiro emergncia que deve ser constante-mente ritualizada, esse esforo (cotidiano esforo, eu diria) que o humano experimentanosseusagenciamentos,nassuasrelaesdemisturaeparticipao,comotambmnas de separao ou purificao com as mais diversas formas e foras que povoam, en-quanto povoam o cosmo.108 De todo modo, e sem que eu bem percebesse, foram na maior parte filsofos os autores que eu acabei mobilizan-do (e sendo por eles mobilizado, evidentemente). Mas tambm esses filsofos que eu acessei (no todos, mas boaparte deles) guardam uma relao muito ntima, muito interessada, com a antropologia, ou com certa antropologia,no exatamente ortodoxa ou que se atenha, sem mais, a uma diviso de domnios, tal como o da cultura, concebidapreviamente.9 Sublinho esta passagem (a mesmo se constitui) para chamar a ateno para a emergncia tambm dos agentes(humanos e no-humanos) nas relaes que travam. Ou seja, o partido aqui no tomar os agentes, nem eles, comoj previamente constitudos. Estou, portanto, apostando no sentido forte das relaes, isto , como moduladorasdos perfis e das performances dos agentes quando, e somente quando, estes se enredam nas experincias.10 Sublinho agora esta passagem com a mesma inteno indicada na nota anterior: a pragmtica dos acontecimentosdefinindoosatores,enoestesapartirdesuassupostasessncias.Ouseja,apovoaodocosmovaielamesmadando contornos (ainda que sempre provisrios) a esse cosmo. Vale essa ateno para que se mantenha a imagem docosmo, ela tambm, como ininterruptamente emergente. Cabe notar ainda que insistirei, ao longo do texto, nessa224Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014Como antroplogo, talvez fosse de esperar que eu logo levantasse uma primeira eimediata observao na abordagem do tema animais e humanos, a saber, a de que preciso pr sob prova etnogrfica as categorias com as quais nos lanamos pesquisa.Nesse sentido, a experincia radical de pensamento promessa antropolgica de des-locamento do pensamento e alargamento da razo, para falar com Marcel Mauss (2003) a de investigar junto a povos no ocidentais, e isso como procedimento-padro doetngrafo, o que seriam para eles animais e humanos. No curso dessa traduo caso acaso,coisaquedemandagrandetrabalho,poderamosentoseguircomperguntas,como, por exemplo, quais seres se incluem em cada uma dessas categorias traduzidaspara esse e aquele povo? Ou ainda, h trnsito entre essas categorias? Quais? Como?E tambm ainda, essas categorias so vlidas para eles? Todo bom etngrafo de outrosmundos deve deparar-se com (deve mesmo provocar) esse estranhamento e tentar ex-trair da o mximo de rendimento possvel. Ou seja, preciso estar atento ao que ou-tros povos pensam a respeito dessas categorias, reconhecendo diferenas (e diferen-as no raramente radicais, como em relao s prprias categorias a em causa, e queevidentemente no so evidentes), ao mesmo tempo que tentando tambm traar co-nexes entre eles e ns, mas conexes que atendam ao princpio de irreduo de quefalam Bruno Latour (1994) e a filsofa belga Isabelle Stengers (2002), princpio desti-nado a no reduzir eles a ns e ns a eles, como tambm no reduzir a natureza cultu-raevice-versa,jquealiondeessasreduesincidem,alimesmoeimediatamenterestaura-se a to improdutiva guerra das cincias (cf. Stengers, 2001). Princpio, en-fim, a servio da produo e do reconhecimento de diferenas, sim, mas procurandonuncatornarexticoouencarceraressasdiferenasnosdanososrelativismos,masantesfazercomqueessasdiferenasirriguemdepossveis(cf.Tarde,2007)anossaimaginao, os quais fertilizem o nosso pensamento, tornando mais compreensveisde um s golpe, ns e os outros.Claro que j h um vasto mapeamento antropolgico (embora nunca finito, nuncaterminado e sempre sob prova e atualizao etnogrficas) dessas diferenas conformeelas se mostram nas mais diversas paisagens etnogrficas, como nos tantos trabalhossobre os melansios, sobre os africanos, sobre os amerndios, sobre os orientais etc.,sendo a paisagem euro-americana, branca, ocidental ou moderna apenas uma dentreelas. De modo que j posso aqui fazer um recuo para poder perguntar: quem mesmo osujeito que pergunta sobre essa diferena entre humanos e animais? Ora, somos ns,ocidentais modernos que estamos aqui fazendo essa pergunta. Por isso, quero deter-noo de emergncia. Alis, no foi seno por emergncia que essa minha tentativa de tratar o tema humanos eanimais pde vir luz. Quer dizer, foi a partir desse meu trabalho de reviso bibliogrfica para preparar a confernciapara o IEA, reviso que, portanto, permitiu fazer contato com uma diversidade de autores, que fez com que a minhareflexo emergisse. E se emergiu, ento a reflexo no pode ser s minha, mas ela mesma fruto de composies.225Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014me a alguns aspectos das relaes dos animais conosco. Digo isso porque meu treina-mento intelectual leva-me a recusar pensar essas categorias no abstrato, como se fos-sem categorias universais e vlidas para todo e qualquer coletivo. Mas meu dever in-sistir que, claramente, essa recusa da abordagem universalista no pode levar adesoda abordagem relativista, que se acomoda na descrio desses outros arranjos coleti-vos ou cosmolgicos, outros sistemas classificatrios (outras culturas, como normal-mente dizemos), e com isso mantm intacto (eis a a face perniciosa do relativismo) omononaturalismo ocidental como base de comparao. Ou seja, no se enfrenta a essabase de controle comparativo, que a perspectiva ocidental ou moderna, perspectivanaturalista em sua face oficial (cf. Latour, 1994), esta que supe acesso privilegiado natureza pelos modernos ocidentais. Se levamos a srio a cultura dos outros, tal comono registro do simbolismo e das representaes sociais, no levamos, contudo, a srioa natureza desses outros (continuamos aqui a operar ainda com essas noes moder-nas de natureza e cultura, ainda sem problematiz-las devidamente). Mas s, por en-quanto, para dizer que no levamos a srio, ou estamos agora forosamente aprenden-do a levar mais a srio, outros modos possveis de composio do real que no sejamirrefletidamente filtrados pelo nosso mononaturalismo/multiculturalismo. Do contr-rio, seguiremos tornando exticos os outros, com menos ou mais tolerncia tolern-cia, essa maldio (Stengers, 2001). Porque tornar extico e tolerar so subprodutos dasimples aplicao de nosso mononaturalismo no conhecimento de outras cosmologias. claro que isso costuma ser mais danoso para o conhecimento, e para a relao polti-ca que da deriva, do que para qualquer outra coisa.Eis j o suficiente para reafirmar o meu partido de tratar aqui o tema humanose animais, tentando escapar da simples aplicao desse dualismo estanque entre na-tureza e cultura que caracteriza a modernidade em sua face oficial e que funda a guerradas cincias, essa guerra entre os fundamentos ou universalistas ou relativistas do real,fundamentosounaturalistasousociologistasdoreal.Tentarescapar,portanto,docorolriodeoposiesduraseintransitivasquedamesmoderiva,comoaquesituaaqui o inato e ali o adquirido, aqui o dado e ali o construdo, aqui o objeto e ali o sujeito,e por a vai. Podemos escapar desse real modernista cindido entre o domnio da natu-rezaeodomniodasociedade(oudacultura,conformeatradiointelectualquesesustente) a partir de um exame renovado dos prprios modernos, ns mesmos. Reexa-me que, to ao gosto da antropologia, implica, por assim dizer, devolver as categoriasaomundo,rebat-lasnosprocessospragmticosdecomposiodoreal,coloc-lassob prova etnogrfica. Eu entendo que os autores com os quais trabalho (e muitos de-les no so propriamente antroplogos) permitem essa operao. Meu propsito aquipassa por reconhecer algumas ressonncias entre esses autores, nossos contempor-neosouno,noquetocaproblematizaodorealmodernopurificadoentredados226Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014naturais e construes sociais, j que essa problematizao, de sua vez, afeta sensivel-mente a imagem e as relaes da animalidade e da humanidade.Deveentoestarclaroqueoproblemadaoposioentrehomenseanimaissubsidirio do problema da oposio entre natureza e cultura. Como j insinuado eafinal todos ns de alguma maneira partilhamos esse entendimento , a animalidadeestaria para a natureza assim como a humanidade para a cultura ou a sociedade, relaci-onada a animalidade a traos diacrticos como disposies dadas, intrassomticas, ge-nticas; e humanidade a traos diacrticos como disposies que os prprios humanosconstroem, e que seriam extrassomticas. Como j foi dito, essa oposio dura e cadavez menos explicativa de seres e fenmenos. Mas dela que derivam tantas outras comasquaisnsmodernospensamosepraticamosarealidade,porexemplo,instintoeinteligncia, com que to comumente caracterizamos a diferena instransponvel en-tre animais e humanos, mais um desses corolrios exemplares que reverberam o en-tendimento bifocal (aqui a natureza, ali a cultura) dos modernos. Como ento pensar-mos a alteridade animal sem fazer uso desses dispositivos? Temos por onde?2 Outros animais, outros humanos, outra alteridadeSem que seja preciso sacar coelhos da cartola para projetarmos outras alteridades comos animais, podemos, para isso, recorrer de preferncia s mais diversas tradies dopensamento que o prprio Ocidente gerou e herdou, como, por exemplo, recuando aosfilsofos da Igreja ou, antes ainda, aos gregos, indo at a poca moderna. o que faz ofilsofoGilbertSimondonemtrabalhopstumorecentementepublicado.Trabalhopanormico,certo,masnoporissomenosrigoroso.Eparaacompanharrapida-mente as diferentes concepes das relaes entre humanos e animais na longa tradi-o do Ocidente, examino suas Duas aulas sobre o animal e o homem (Simondon, 2004). a que ele recupera de modo breve a histria conceitual das imagens do homem e doanimal desde a antiguidade grega at a modernidade.E como que tentando livrar-se dos referidos dualismos erigidos em termos in-transitivos, Simondon logo parece sugerir que homens e animais mostram-se insepa-rveis tanto porque esto em continuidade (e penso que o devir evolutivo das espcies,tal como Darwin e Wallace propuseram, versa sobre essa continuidade, o parentescoorgnico de todas as espcies, como dizia Darwin ao longo de sua obra), quanto por-que se descontinuam (e a faz menos sentido a imagem histrica, como a da biologiaevolutiva, do que a lgica e classificatria,11 uma vez que a o humano aparece definitiva-11 Neste momento, Joana Cabral de Oliveira faz o seguinte comentrio: Mas qual lgica classificatria? Por certovocnosereferetaxonomiafilogenticaqueregeasclassificaescientficasatuais.Oqueseressaltaquea227Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014mente classificado como um animal superior, dotado de faculdades exclusivas sim-bolizao, linguagem, sociabilidade, moralidade, razo, inteligncia etc. , tudo issoque faltaria aos animais ou , no mximo, embrionrio em algumas classes de animais,como em determinadas espcies de abelhas, castores, golfinhos, baleias, at grandesprimatas no humanos, como os babunos). Ao que bem parece, o ponto de Simondonque vou destacando aqui que animais e humanos so inseparveis tanto por semelhan-as quanto por diferenas. Trata-se ento de uma dependncia (no mnimo, conceitual)entre homens e animais. O tema dos humanos e animais, para Simondon, sempre inte-ressoutantoaopensamentocotidianoemundanoquantoaopensamentofilosfico,acadmico ou erudito. Um tema que, portanto, sempre problematizou traos e valoresdiacrticos caros e estratgicos aos ocidentais, como, por exemplo, saber se os ndiosso ou no humanos, possuem ou no alma, dispem ou no das mesmas capacidadescognitivas dos ocidentais tudo isso que pode ser retomado, entre tantos exemplos,na famosa controvrsia de Valladolid, no sculo xvi, entre Las Casas e Sepulveda, a fimde determinar a humanidade ou animalidade dos nativos da Amrica e determinar dessemodo,porexemplo,alegitimidadeounodaguerrajusta.Notemoslogoasconse-quncias polticas entre os humanos que essa ou aquela imagem dos animais traz.Como os filsofos conhecem to bem, j Scrates aparece na histria do pensa-mento como espcie de inventor do homem e do humanismo. Inventor, vamos dizer,dasbasesqueconstituiroaoposioduraentreanaturezaeacultura,sendoqueohumanismoestariafundadosobreessadiferenaantropolgica,sobreumadife-rena essencial entre o homem e o animal (cf. Chateau, 2004, p. 9-10). Encontram-se tambm a as razes bem plantadas de uma filosofia essencialista e, nesse caso, umafilosofia a servio da diferena dada de uma vez por todas entre o animal e o humano,uma diferena a servio da constituio de uma tica (que humana).12 Dir Simondonclassificao biolgica lida com contnuos que so cindidos com base em critrios anatmicos, morfolgicos e gen-ticos. Por exemplo, a passagem de uma espcie a outra, se vista em mincia, um contnuo de pequenas mudanase transformaes evolutivas que geraram uma populao com caractersticas particulares, suficientes para permitiruma ciso em txons (categorias). importante pontuar a relevncia da descontinuidade. Afinal, cindir, separar,ordenar so processos necessrios para conhecer e pensar (o que foi evidenciado por Lvi-Strauss em O pensamentoselvagem). Contudo, as classificaes, como um exemplo mximo dos processos de descontinuidade, no so estticas.Em biologia, os estudos de reviso taxonmica esto a todo vapor e produzem diferenas e modificaes na cate-gorizao de grupos de maneira constante. Vale notar, tambm, que a evoluo biolgica procede de um ponto inicial(LUCA, Last Universal Common Ancestor) e segue rotas diversas, as quais se ramificam novamente, em uma imagemarbrea. As discusses acerca desse passo inicial da vida, o LUCA, so reconhecidas pela prpria biologia como umahiptese ainda controversa e um tanto conjectural. Nesse terreno movedio, no se descarta totalmente a possibili-dade de que a vida possa ter surgido em mais de um momento; o que gera uma imagem rizomtica de evoluo.12 Neste ponto, Charbel El-Hani chama a ateno para uma variedade de sentidos do essencialismo. Por isso, elecontinua, convm explicitar o sentido especfico em que o termo aqui usado. E talvez a diversidade de significa-es do termo na histria da cincia ajude a refinar o argumento ao longo do texto. Para este fim, ele indica Wilkins(2013).Comoaindanopudeconheceravariedadesemnticaqueotermoalcana(nafilosofia,nabiologia,nas228Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014(2004) que essa diferena essencial tambm ser partilhada pelos sofistas (para os quaiso homem a medida de todas as coisas, assim como para Plato), pelos esticos, de-pois pelos filsofos da Igreja, e alcana renovada expresso em Descartes. Ainda quenessas mesmas filosofias, diz Simondon, se possa surpreender meditaes no sobre adescontinuidade entre animais e homens, mas sobre a continuidade entre eles, o que,no entanto, culminou como oficialmente hegemnico entre os ocidentais modernos, ea despeito das muitas diferenas dentre as concepes filosficas, foi mesmo a ima-gem da hierarquizao dessas duas classes, reservando aos humanos a posio superior.De todo modo, trata-se de problema nunca resolvido, no havendo um progresso ine-lutvel ou reto do pensamento quanto a essa distino entre humanos e animais, e simumahistria(epensoqueessahistriainfinita),feitadeidasevindas,avanoserecuos, entre diferentes modos de identificao entre humanos e no humanos (sen-do os animais um caso de no humanos). O antroplogo francs Phillipe Descola (2005)fez uma espcie de levantamento dos diferentes modos de identificao entre a natu-rezaeasociedadequesedistribuementreospovosjdocumentados:animismo,totemismo, analogismo, naturalismo. Ora, esses modos de identificao so modos dealteridade,eosanimaissempreaaparecemcomooutrem,comotermoqueajudaadefinir, das formas mais variadas, o humano.Parece claro que esse espelhamento entre humanos e animais problema que serecolocadevezemvez.Epergunto-mesenoprecisamenteassim,reconhecendoalternncia,combinaoevariaesdessesmodosdeidentificao,queSimondonrecupera, desde a antiguidade dos pr-socrticos at as fbulas de La Fontaine no s-culoxvii,essesdiferentesmodosdeparticipaoeseparaoentrehumanoseani-mais e mesmo vegetais, como na metempsicose, na transmigrao de almas de quefalam Pitgoras e Empdocles, por exemplo, e que Simondon vai compreender como aindividuao das almas que se realiza em diferentes corpos animados. Se bem enten-do, trata-se de concepo atenta continuidade da vida em seus nveis fsicos e ps-quicos, embora seja uma continuidade que respeita as diferenas ontolgicas, sem queessas diferenas sejam a tomadas como fechadas em si, intransponveis, e sim comocasosdeumaontognesegeneralizada(cf.Chateau,2004,p.22)quesedesdobrapor diferenciao. Se assim, essa diferenciao exige uma imagem dos seres no comosubstncia ou diferena dada de uma vez por todas, mas como relao. Para Simondon,ento, todo ser relao e, por isso, o ser definido pelo aberto (cf. Agamben, 2002).Nesse sentido, o ser no se define pelo que ele , mas por suas passagens; o que nega acincias naturais), restrinjo-me a apenas iluminar a acepo que vinha sendo indicada aqui por Rousseau (donsessenciaisdanatureza)oupeloprprioSimondon.Maisespecificamente,essaaceporefere-seimagemdasdotaes inatas dos seres, como as faculdades da linguagem e da simbolizao nos humanos.229Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014realidade da espcie ou do indivduo dado, prematuramente formado, autorreferen-ciado ou de uma vez por todas fixado em seus contornos (cf. Latour, 1996). Antes dadefinio,portanto,adiferenciao,oudefinies,enfim,sempreprovisriasenopor isso menos reais, seno bem ao contrrio.Vale notar que essa realidade das passagens, alis, foi sempre objeto de acusa-o dos modernos contra os pr-modernos, cuja mentalidade pr-lgica, participativa para lembrar aqui a to divulgada concepo do filsofo e socilogo francs LucienLvy-Bruhl (2008 [1922]) levava a uma confuso primitiva e impedia a ascendnciada razo. Por isso, essa mentalidade participativa coisa que ns encaramos com certanaturalidadequandofazemosocostumeirocorteentrenseosoutros,incluindoosoutros de nossa prpria tradio, como aqueles outros da antiguidade grega de que falaSimondon, ou ainda, se quisermos, aqueles autores gregos, os pr-socrticos em es-pecial, que afirmaram a identidade de natureza das almas, sejam almas humanas, ani-mais ou vegetais. Mais difcil porm muito mais interessante e decerto um dos gran-des desafios de nossa poca, desafio que passa pela simetrizao do conhecimento (cf.Latour, 1994; Stengers, 2007) reconhecermos essas passagens, essa realidade par-ticipativanoseiomesmodatradioaqueoOcidentegostadeestarligado,tradioessa (socrtica talvez?) que funda o chamado humanismo a partir de dualismos, cujostermosnosecontaminamporquesedefinemporexcluso(umnosendojamaisooutro), tal a distino de Scrates entre inteligncia e instinto, ou depois a afirmaode Plato sobre a preeminncia do homem em relao a todos os outros seres o homemcomo modelo atravs do qual visamos os outros seres, como os animais, que doravantesero tomados como espcies sub-humanas, espcies de humanidade degradada.Ao que bem parece, assim que vai sendo fundado o humanismo, isto , a tradi-o que seleciona e pe em ordem linear linhagens semelhantes de pensamento, nosem sacrificar, contudo, todo pensamento que vacile em relao ao caminho reto dessemesmohumanismo.Essesacrifcioatingemesmoautorestornadossagrados,comoAristteles, que a despeito de ter proposto a primeira doutrina naturalista, objetiva ede observao (Simondon, 2004, p. 41), considerava a existncia de alma, por exem-plo, nos vegetais como princpio vegetativo. E alma tambm entre os animais, j queelesseriamdotados,pelomenososditosmaisdesenvolvidos,dememriaespont-nea,sensao,imaginaosensorialedesejo.Euentendoqueessacontinuidadearistotlica ou paralelismo de funes, equivalncia funcional entre as mais diferen-tes espcies animadas da natureza plantas, animais, humanos , vai sendo reduzidapela tradio humanista antropocntrica a uma continuidade que no define o huma-no,demodoqueohumanovaiseraqueleserexclusivamenteportadordecultura:ohumano genuinamente humano a despeito ou apesar de sua animalidade.230Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014MasaindaseguindoarecuperaohistricaeconceitualdeSimondon,oqueparece fazer a grande diferena entre as doutrinas antigas e aquelas do cristianismo edo cartesianismo que as primeiras, apesar de fixarem a oposio entre animais e ho-mens, nunca deixaram de ver uma continuidade, uma gradao entre essas duas reali-dades, ao passo que as segundas vo alar aquela oposio a uma dicotomia, uma opo-sioqueafirmaaexistnciadeduasnaturezasdistintas(Simondon,2004,p.59).De um lado,a realidade animal desprovida de razo, talvez mesmo de conscincia, emtodo caso de interioridade e, de outro, a realidade humana, capaz da conscincia desi,dosentimentomoral,daconscinciadeseusatosedaconscinciadeseuvalor(2004, p. 59). Razo e instinto, portanto, vo a, e cada vez mais, assumindo uma opo-sio dicotmica, intransitiva, incomensurvel, abismal.Claro que, como j indicado, essa histria da criao de tais termos em total opo-sio,desuacrescentedicotomizao,noumahistrialinear.Essalinearidadeapenas um dos modos de apreenso, ainda que evidentemente produza muitos efeitos.Em todo caso, imprimir tal progresso linear que v demonstrando o abismo cada vezmaior entre pares como razo e instinto implica negligenciar muitas diferenas, mui-tas variaes e sutilezas entre os mais diversos autores distribudos no tempo (e tam-bm no interior do pensamento de um nico autor) com relao aos conceitos do quesejainatoeadquiridonacomparaodesemelhanasediferenasentrehumanoseanimais. Implica, por exemplo, para retomar a compreenso histrico-conceitual deSimondon, desconsiderar as noes de alma, de imaginao e de memria em SantoAgostinho, que so noes capazes nesse autor de abranger o ser e a ao de animais(cf. Simondon, 2004, p. 65). Ou ainda, o mesmo no que se refere s noes de inten-o e representao em So Toms de Aquino (cf. p. 66-7). Implica tambm descon-siderar ou esquecer o cosmo animado dos mais distintos afetos, sentimentos e mesmoconscincia (como os de uma pedra), conforme o renascentista Giordano Bruno pro-ps (cf. p. 67-9). Ou ainda, a santidade animal defendida por So Francisco de Assis,que falava aos animais que vinham reunir-se em torno dele, o que a expresso de umatotalidade complementar entre animais, humanos e plantas que se explica pela criaodivina, harmoniosa e pantesta do mundo (cf. p. 69-71).Vamos,ento,vendoqueprecisodesconsiderartodopensamentoquefaaacrticarazoouaoorgulhohumano,algonoraramentedestrutivo,comodefendeMontaigne, para quem os animais julgam, comparam, raciocinam e agem como os ho-mens,eseriammesmosuperioresaohumano,porqueosanimaisnoseenganam,eles sabem, por exemplo, de qual medicamento servir-se (cf. Simondon, 2004, p. 71-4). Esse modo de compreenso afirma ser to mais sbia a natureza que no se arriscaa perder-se nas mediaes da suposta e exclusiva inteligncia humana. Como seja, euobservaria que esse tipo de pensamento opera com o dualismo de base, a oposio en-231Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014treanaturezaeacultura,aindaqueinvertendosuahierarquiaentrehomenseani-mais. Mas, como sabemos, esse dualismo vai alcanar em Descartes uma oposio in-comensurvel entre homens e animais. Para Descartes, animais so como mquinas;comoautmatos,notmalma,notminterioridadeouconscincia,enemexata-mente instinto, porque sua conduta no seno mecnica: o automatismo corporalda res extensa, desprovido de qualquer plasticidade, de qualquer cogito (cf. p. 74-8).Eu diria ento que no modo de identificao do regime naturalista moderno, emsua face oficial, a continuidade entre animais e homens, tal como nas apreenses nomenos naturalistas da teoria darwinista da evoluo, dada no plano do instinto, e nono plano da inteligncia ou do esprito.13 Mesmo naquele livro que Darwin publica em1872, A expresso das emoes no homem e nos animais, cujo tema poderia versar sobre acontinuidadedaatividadedoespritooudaintelignciaentreohumanoeoanimal,mesmo a essa continuidade pensada segundo um dos termos da dicotomia instinto erazo, inato e adquirido: pensada no plano do instinto, no plano biolgico do inatismo,do que tornado, por adaptao e seleo, inato.14 A semelhana entre homens e ani-mais, portanto, dar-se-ia apenas nesse plano da forma permanente dos traos (con-forme expresso de que Darwin se vale ao longo de toda a sua obra). Quer dizer, aquiloque animais e homens aprendem s significativo no que se refere a delinear a essn-cia de humanos e animais. E, no que se refere ainda s semelhanas entre humanos eanimais, s significativo aquilo que se torna, por seleo e adaptao, hereditrio,1513 Neste ponto do texto, Charbel El-Hani adverte: este argumento no leva em conta que, nas ltimas duas dcadas,aindaquecausandocontrovrsia,temsidocadavezmaisconsideradanosestudosdecomportamento,sobbasesdarwinistas, a existncia de inteligncia (muito menos controverso) e mesmo de moralidade e conscincia em ani-mais. Para que o argumento no se mostre datado, ento, fundamental considerar isso. Seguem algumas refern-ciasrelevantes:DeWaal,2005;Shettleworth,2009;Avital&Jablonka,2000;Whiten,1999;Hohmann&Fruth,2003; Von Schaik et al., 2003; Leca et al., 2007; King, 2004; Lycett et al., 2007 ; Ribeiro et al 2007; Lyn, 2007; Beckoff,Allen & Burghardt, 2002.14 Tambm aqui Charbel comenta Isso, em Darwin, h quase sculo e meio. Nos estudos de comportamento, base-ados na teoria darwinista em sua verso atual, j no se encontra tal confiana no inatismo. Ou, ao menos em certascomunidades de estudos do comportamento, o inatismo encontra-se sob forte ataque crtico. importante consi-derar isso, j que o argumento construdo no texto no de natureza histrica apenas, no remete somente ao pas-sado, mas recobre o presente.15AquiCharbelatentaparaahereditariedadedetraosnogenticos,conformepesquisasrecentes.Quantoherana, trata-se hoje, cotidianamente, de sistemas de herana no genticos, incluindo sistemas comportamentaiseculturaisdeherana(cf.Jablonka&Lamb,2014).Observo,emtempo,queesteeosdoisoutroscomentriosanteriores de Charbel foram redigidos enquanto ele lia o texto. Logo em seguida, quando volto a Darwin e leitura desua obra em meu doutorado, eu procuro mostrar que o naturalismo ou biologismo de Darwin foi muito mais obra dosdarwinistas do que do prprio autor. Charbel ir reconhecer, em novo comentrio abaixo (nota 18), essa inflexo.Contudo, achei por bem respeitar, e aqui reproduzir ao leitor, a ordem linear da leitura e dos comentrios de meucolega bilogo seja porque ele repe a questo a partir de dentro da biologia, seja porque novamente indica umabibliografia atual no tratamento dessa mesma questo.232Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014isto , quando se fixa, portanto, na res extensa do corpo, e independentemente da von-tade deliberada dos seres. A ao animal tomada como majoritariamente instintivaao passo que a ao humana seria apenas em parte instintiva.De todo modo, seria de partes, inclusive no prprio homem, que ns, os moder-nos, estaramos falando. Ou seja, falando de um mundo propriamente bipartido, esseque tanto nos familiar. Aqui a natureza estpida e automtica, mas espontnea, ali acultura criativa e distintiva do humano, mas da ordem da conveno; aqui o biolgico,nico plano que torna humanos e animais comparveis ou comensurveis, ali o social,que tem no humano a sua indefectvel expresso de grandeza nica no reino dos seresanimados;aqui,enfim,odomniodascinciasnaturais,aliodomniodascinciashumanas. Esto dadas as bases, ento, de dois mundos separados e que s se comuni-cam pobremente, a saber, o mundo da exterioridade da res extensa, o corpo como obje-toematria,eomundodainterioridade,darescogitans,quedefineaexistnciaex-clusivamentehumanadosujeitopensante,sendoqueaquiloqueverdadeironosanimais, o instinto, tambm o , em parte, nos homens, mas no o contrrio, porque so homem possui razo. E essa identidade crist do homem (posteriormente consoli-dada pelo cartesianismo) vai, evidentemente, informar a alteridade. Ento, quanto maisoutremencontrar-seafastadodomundomaisdesenvolvidodacultura(emespecial,domundodacivilizaoeuro-americana),maisprximosdanaturezaestaroessesoutros (animais, certamente, mas no menos certo os acusados como brbaros, selva-gens,primitivosemesmoossubdesenvolvidos).Bem,ajreferidacontrovrsiadeValladolidsobreaexistnciaounodealmahumananosndiosnoparecetersidomontadasoboutrasbases.Assim,estamosaquitratandodagenealogiaoficialdohumanismo moderno. Trgico e triste humanismo, eu diria, que postula que arrazoar mais digno que viver, que opera a disjuno entre homem e natureza (ou que opera a amais pobre das junes, o que d no mesmo, portanto), pondo o destino do homem parte do cosmo. Humanismo que, em uma palavra, faria avanar a purificao de umavez por todas do humano (tomado como o mais complexo dos animais, e to complexoquesuagrandezaserdefinidapeloquenolheanimal).Ohumanoestcadavezmaisapartadodocosmoporessasuadiferenadadaeirreversvel,ohumano,comoser excepcional cada vez mais sozinho no mundo com sua razo, seu cogito, suas cin-cias e tcnicas, apenas a servio da explorao de um mundo objeto, um mundo mudo,impassvel, previsvel, embora cada vez mais esse mundo se tenha mostrando sujeito,falante, respondente e imprevisvel (fonte de muitas de nossas angstias contempo-rneas, mas fonte tambm de nossas esperanas em renovar o humanismo e, com ele,o naturalismo).Eu dizia que mais interessante e penso que nosso grande desafio, a saber, o deuma virada ou reviravolta metafsica (cf. Maniglier, 2012) que faa frente aos nossos233Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014grandesproblemasaumstempoprticoseintelectuaiscontemporneosreco-nhecer trocas participativas entre agentes os mais heterogneos entre si, ora figuradoscomo sujeitos, ora como objetos nas relaes, reconhecer mesmo, arrisco afirmar, es-pciesdeanimismocadavezmaisvisveisnoseiodenossamodernidadecientficacontempornea.Fazeressereconhecimentojcaminharrumosuperaodessegrandeabismoqueseparaosmodernosdetodososoutrospovos,desdeentoinco-mensurveis em relao a ns. Eu diria ento que os autores contemporneos, que sededicam a novos estudos sobre as cincias, tal como os science studies, mostram preci-samentecomonuncadeixamosdeoperarporparticipaoe,assim,seguenocentromesmo, no corao da modernidade, que a nossa produo cientfica. por isso quejamais fomos modernos (Latour, 1994).Captar a vida tal como ela vivida (vida dos humanos, dos animais, dos vegetais,e mesmo vida das coisas e dos objetos de modo geral, eu acrescentaria) parece-me bemmais efetivo, no que se refere ao trabalho dos bilogos e de outros cientistas naturais,quando prestamos mais ateno s descries comportamentais, como as da etologiapara os animais,16 e menos ateno, eu ousaria dizer, a uma zoologia e mesmo a umabotnica de acento classificatrios. Ou pelo menos no se deveria comear uma inves-tigao dos seres (inclusive dos seres tcnicos, dos objetos da tecnologia) a partir deseu enquadramento classificatrio, j que as nossas classificaes, se bem entendo, jnascem esposadas, muito comprometidas com o pensamento essencialista,17 pensa-mento das ecceidades, dos contornos e dos limites fixados, seja uma fixao dada peladita ordem natural, seja dada pela dita ordem da cultura ou sociedade. Entendo mesmoque a etologia pode prestar um papel decisivo zoologia e botnica do mesmo modocomoaetnografiaalimentaeconstantementerenovaaantropologia.Nessemesmosentido,confessoquedefinitivamentemerendiaDarwin,apontodenome-loumetngrafo das formas orgnicas, quando no meu doutorado me lancei a ler a maiorparte de sua obra (Marras, 2009). No era ali propriamente um taxonomista tout courtque eu flagrava, mas sobretudo um homem cuja vida foi apaixonadamente devotada aobservarcomtantapacinciaeatenoastransformaes,asadaptaesdoqueelechamava as formas orgnicas, ou seja, ali as formas no subsumiam as foras (as for-16 Aqui Charbel concorda com os ganhos da etologia, mas aduz que no preciso limitar-se a ela: este comentrioaponta na direo de considerar os desenvolvimentos recentes nos estudos do comportamento a que me referi, masno h por que limitar-se etologia. H que se considerar a ecologia comportamental, assim como os estudos sobrea emoo e a cognio animal desde o campo da psicologia. Em outro momento do texto, que adianto aqui, Charbelindicaoobjetodeumaecologiavoltadaaocomportamento:aecologia,sobretudo,cinciadebruadasobreosprocessos, as dinmicas, no sobre classificaes, como, por exemplo, a taxonomia.17 A leitura deste trecho suscitou a Charbel novamente comentar o problema do essencialismo em biologia, agora apartir do problema da classificao: a questo da classificao, ao menos como posta desde a emergncia do Darwinis-mo, levanta vrias dificuldades relativas ao significado do essencialismo. Sugiro exame do texto de Wilkins (2013).234Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014asdaevoluo,nocaso).Querdizer,bastaquenosdediquemosleituraatentadaobra de Darwin para notarmos que as formas, tais como as formas orgnicas a que elesempre faz referncia, explicam-se pelas foras de variao e conservao que emer-gem das relaes adaptativas entre os organismos e seus ambientes.18Eu ainda volto um pouco mais a Darwin adiante. Por ora, queria deixar bem afir-mada a necessidade que me parece cada vez mais premente de reeducarmos a nossaateno, de modo a podermos captar menos as formas do que as foras que animam osseres-em-relao, os organismos-no-ambiente (Ingold, 2010). Expresso que vemgrafada com hfens para bem indicar que no h organismo sem ambiente e nem vice-versa. E penso que o mesmo se passa em relao ideia simondoniana da individuao,da ontognese dos seres a partir dos nveis psquico, vital e fsico (cf. Simondon, 1964),tambm a uma recusa de pensar sob o modo das substncias e essncias. a ateno aque eu me referia h pouco: ateno no em categorias aplicveis, no no estabeleci-mento de classes, gneros e supostos domnios em si mesmos encerrados (natureza,cultura, animal, humano), mas nos comportamentos, nas circunstncias, nas contin-gncias, tais como surgem das relaes ou individuaes experimentadas. Vale insis-tir, para Simondon, o ser j relao, inclusive o ser do objeto tcnico (cf. Simondon,2008). Ora, a ateno sobre a relao ateno sobre a ao.3Babunos-em-aoTrata-se agora de apostarmos na afirmao do humano e do animal como foras, e nocomo formas, pondo a ateno nos devires (imagens da ao), e no nos seres ou enteseles mesmos, no em suas supostas essncias (imagens da substncia). A esse prop-sito, lembremos o filsofo e socilogo Gabriel Tarde,19 para quem a identidade sem-pre um estado provisrio, um caso, e muito raro, da diferenciao que nunca cessa de18 Neste momento, ocorre a Charbel o seguinte comentrio e a seguinte indicao bibliogrfica, embora sob ressal-va:PensoqueoautormuitoseinteressariapelotrabalhodeDepewsobrearetricanaobradeDarwin,naqualmostracomoumaredeinterativademetforaspermitiramcomporumequilbriodelicadoentreteleologia,determinismoecontingncia.Issoestparticularmenteclaronocaptulo3deAorigemdasespcies:Alutapelaexistncia. A esse respeito, pode-se ver, entre outros trabalhos, Depew (2013). E ento a ressalva a Depew: Deve-se tomar cuidado nesse texto com as discusses sobre a teoria dos jogos e o gene egosta, que so caricaturais. A parteboa mesmo aquela sobre Darwin e sua interpretao pelos contemporneos.19 Tarde pensador que hoje vem sendo bastante retomado, mas que conheceu um grande ostracismo ao longo dosculo xx por razes tanto de ordem poltica como cientfica, uma vez que ele foi sendo enquadrado como vertentedo pensamento conservador, reacionrio ou de direita, e ainda como uma espcie de diletante e at mesmo anti-cientista. Sobre uma recuperao da histria institucional das cincias sociais em paralelo histria das ideias deTarde (cf. Vargas, 2000).235Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014diferir.20 O agente, tal a imagem da mnada renovada por Tarde, est inteiramentel onde age (Tarde, 2007 [1895], p. 80). A pergunta, portanto, no o que so as m-nadas, mas o que elas fazem, como elas se possuem umas s outras. Ou seja, elas soaquilo que elas fazem; e o que elas fazem sempre muito varivel, porque a ao emer-ge da situao, de relaes que se atualizam nas circunstncias. E deve ficar claro que aao no simples desdobramento de disposies dadas dos seres. tambm ela, in-sisto, emergncia. Ou lembremos aqui Lvi-Strauss (cujo pensamento foi to afetadopelas sociedades e cosmologias amerndias), para quem as relaes precedem os ter-mos e no o contrrio, como sempre pontuou. Ora, esse deslocamento das essnciasparaosacontecimentosumdosprincipaismotescomqueBrunoLatour(2012)irrecuperarGabrielTarde,pondoastrocasparticipativasentreaproduodecoisas(como as tcnicas) e a produo do humano no centro do Ocidente moderno.Para deixar bem claro esse ponto, acho que no custa insistir que nosso desafiohoje na produo mais fiel e efetiva do conhecimento , ento, o de no partir de es-snciasouestadosjprontos(comoahumanidadeeaanimalidade),maspartirdomundo sob constante experimentao, mundo das incertezas e variaes ontolgicas.No aplicar categorias para conhecer o mundo, mas sempre experiment-las. E a ex-perimentao alguma coisa que sempre ocorre entre. A esse propsito, eu aqui tenhomuitogostoemcitarumadastantaspassagensluminosasdeGuimaresRosa(2001,p. 80), verdadeira epifania, no Grande serto: veredas, que diz o real no est na sadanem na chegada. Ele se dispe para a gente no meio da travessia. Ento, o que acon-tece entre mim e meu cozinho no deve ser imediatamente reduzido ao que as cin-ciasclassificatrias,cujaobjetividadeacabaporesconderoroldefilosofiasessen-cialistas que instrui, que fundamenta essas classificaes, esperam da forma animal edaformahumana.Ora,essetrnsitodeforasedesejosentreentidadesabertas(cf.Agamben, 2002), trnsito entre entidades que emergem elas mesmas provisoriamen-tedasrelaesqueexperimentam,objetotantodaetologiadosbilogosquantodaetnografia dos antroplogos mas desde que a prpria biologia e a prpria antropolo-gia explodam com o seu objeto que at ento constituiu ou constitua essas disciplinas.Quer dizer, assim como o no humano animado da biologia, tambm o humano da an-tropologia, um e outro, a bem da verdade, no formam o objeto das respectivas disci-plinas. O objeto de uma e outra a relao, so os seres-em-relao. Ento, quanto antropologia que me interessa, eu diria que, por definio, ela, como cincia do ho-mem, cincia que tome o homem como unidade-objeto, essa antropologia, eu espero,20 Aqui, Charbel indica ressonncias entre o pensamento de Tarde sobre as identidades e os novos estudos sobre acognio:Semdvida,umatesemuitointeressantequesecomunicademodofrtilcomperspectivassituadassobre a cognio, a exemplo daquela de Lave e Wenger (1991).236Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014ela deve morrer para que nasa uma antropologia do homem-no-mundo, uma antro-pologia,portanto,noantropocntrica,aqual,contudo,semprefoifeitapelosbonsespcimes da histria da disciplina. Se, como j escreveu, com um tanto de provoca-o,Ingold,aantropologiafilosofiacomgentedentro(2012,p.62),achoquepreciso a incluir tambm os animais, as plantas, os objetos, os espritos, as tcnicas,tudo que entra em relao com o humano e faz que o humano emerja como humano,mas um humano em variao, um devir humano antes que um ser humano. Minha es-perana que aquela antropologia da espcie humana morra antes deste seu j incon-cebvel objeto e esperana de que a extino daquela possa contribuir para a continui-dade renovada entre o homem e o mundo.Decertoqueessaminhadesconfianasobreoobjetodasdisciplinasvaimuitobem com os propsitos voltados a desestabilizar as perspectivas disciplinares. Ou seja,como podemos aprender uns com os outros, como entre bilogos e antroplogos, semque esse contato se degenere em reivindicaes de objetos, domnios e campos pr-prios? Ou sem que restaure o afrontamento das duas culturas: a humanstica e a ci-entfica (Stengers & Prigogine, 1984). Sem, enfim, marcar as fronteiras entre as cin-cias sociais e as cincias naturais, a filosofia e a cincia, j que essas oposies paralisamo conhecimento ao invs de fazer prolifer-lo. E fiando-me na produo de conheci-mento por emergncia, como assinalo aqui, ento os novos entendimentos podem vir luz por meio desse fenmeno de contato produtivo, fenmeno em que a soma dessesnovos entendimentos seja superior simples soma das perspectivas, produzindo no-vidades, que impactam a prpria produo do conhecimento quando as disciplinas re-almentedeixam-seafetarnocontatointeressadoquetravam.ocaso,eparavoltaraos animais e humanos, do trabalho conjunto da primatloga Shirley Strum e do so-cilogo Bruno Latour. Em um simpsio interdisciplinar em 1984, eles juntos apresen-taram um texto, depois publicado em artigo em 1987, em que propem redefinir o queseja o vnculo social a partir da comparao entre babunos e humanos (Strum & Latour,1987).Elespropementosubstituiranooostensivadevnculosocialtalcomodifundida por mile Durkheim, para quem o social uma coisa e de carter externo emesmo transcendental pela noo performativa do social, muito mais imagem deGabriel Tarde, do social como associao, e para quem toda coisa j social, emboraLatour,aessaaltura,aindanohouvesseredescobertoTarde.Comoquerqueseja,osocial que Strum e Latour vo propor o social tal como fenmeno que emerge na pr-tica e a partir da imanncia. Essa definio performativa do social torna ento impos-sveldefinirdeantemooquesoaspropriedadepeculiaresdavidaemsociedade.Entretanto, possvel faz-lo mas sempre situadamente, sempre em situao quan-do consideramos a prtica, a definio dos atores tanto para si mesmos quanto paraos seus outros. E isso implica um sujeito observador no neutro, mas participante da237Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014construodessesvnculos.Implica,portanto,participaooutrnsito,bemcomoalternncia e combinao, entre sujeito e objeto, sendo o social aquilo que da mesmoemerge. Se, portanto, o social no dado, ento toda pesquisa deve debruar-se sobrecomo o social emerge. E emerge por fora das diferenas entre os entes, e no por umasupostahomogeneidadedeconjunto,como,porexemplo,umavizinhanasimiescaentre humanos e babunos.Pois seguindo os estudos sobre babunos nos anos 1960 e 1970, Strum e Latourmostram que o ambiente cuja noo tem o grave risco de unificar previamente umamultiplicidade de agncias e agenciamentos, alm de conceber que o mundo rodeia osseres, ao invs de conceber que ele os atravessa ou se compe com os seres 21 modifi-cava sensivelmente o comportamento dos babunos. E ento surgiram, eu cito, cien-tistasqueacirraramaideiadequetantoocomportamentoquantoasociedadeeramflexveis(Strum&Latour,1987,p.787).Adespeitodasabordagenssociobiolgicasque se insinuaram para propor o entendimento sobre a variabilidade comportamentaldos babunos, tomando como acidental a estabilidade dos vnculos sociais, e trazendopara o foco da anlise uma suposta unidade individual genotpica, a seleo da variabi-lidade inscrita no gentipo); a esse despeito, ento, as pesquisas da primeira metadedosanos1980concediamaosbabunosmuitomaiorhabilidadeeconscinciasocialdo que argumentavam os sociobilogos, habilidades que envolviam negociao, tes-tes, avaliaes e manipulaes (Strum & Latour, 1987, p. 788).Ou seja, podia-se desde ento trabalhar com a hiptese de que a dominao deum macho babuno no era algo dado ou inscrito nesse ou naquele gentipo individual.No bastava uma tal tendncia natural para que a dominao se estabelecesse, mas osgenes precisavam contar com outras mediaes para que, digamos, a sua tendncia serealizasse.Questoquepodemosresumirassim:nadaimediato,tudomediado.Ensejoentoparaoutrasperguntas,taiscomodequemaneiraosbabunossabem21 O seguinte comentrio de Charbel a esse trecho convida, agora a partir da noo de ambiente, a reconhecermosclaras convergncias entre certa biologia e certa antropologia. Ressalto que precisamente esse o caminho que TimIngold vem pavimentando ao longo de sua obra. Diz ento Charbel: sem dvida, a noo de ambiente traz esse risco.Aqui (mas esta seria certamente uma outra discusso) vale pensar sobre as contribuies que podem trazer a noode nicho, na qual as diferentes variveis que envolvem ambiente e agncia dos organismos podem ser distingui-das,aindaquetragaoriscooposto,defragmentaodenossacompreensodomundoondeesto,evivem,esetornam os animais (incluindo a ns mesmos). Desdobra-se ento uma questo interessante, relativa s vantagens edesvantagens que so postas por diferentes leituras deste que o lugar onde estamos, frequentemente tomado comooutro, e assim dito ambiente. O ponto muito relevante porque o que est fora do ser vivo constitutivo do ser vivo,porque s na interao este outro dada a segunda lei da termodinmica pode tornar-se o que . Por isso, descon-fio sobremaneira de noes muito encerradas dos sistemas vivos, como aquela da autopoiese de Maturana e Varela(1980), em que a interao ser vivo-ambiente reduz-se a um acoplamento, e dou preferncia a leituras como a deJohn Collier, na qual a coeso do ser vivo depende de um fechamento interativo de processos que inclui decisiva-mente o que est fora. Eis a muito o que discutir.238Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014quem ou no dominante? A dominao um fato ou um artefato? (Strum & Latour,1987, p. 788). Ora, a soluo passa pelo seguinte: nem como fato social, nem como fatonatural,adominaoalgoqueprecisaserperformado.Eessaperformanceincluinecessariamente o observador que registra, codifica, seleciona critrios e indivduosde uma vasta gama atual e possvel de interaes. Inclui ainda genes, o ambiente dosgenes, o cativeiro cientfico, aparelhos e tcnicas, conceitos, enfim, toda sorte de agen-tes ali postos em relao experimental.22Entendoquereconhecerperformancenaconstruodevnculossociaistantoemrelaoahumanosquantoemrelaoanohumanos,talcomoosanimais,nosignifica, contudo, afirmar que humanos e animais reduzem-se um ao outro. Esta se-ria, talvez, uma face idealista romntica da qual no mais devemos servir-nos. Ou seja,no estamos aqui falando de tal reintegrao do homem em uma tal natureza contnua.Strum e Latour afirmam diferenas entre os babunos e os humanos na construo doslaos sociais, mas o fazem segundo os critrios da complicao e da complexifica-o. Uma situao complicada, tal como a da sociabilidade humana, uma organiza-o de uma situao complexa, tal como a da sociabilidade babuna. Para os humanos,tcnicas e objetos entram como recursos para assentar/performar/estabilizar as liga-es sociais, bem como os corpos a mesmo enredados. As tecnologias tornam a soci-edade humana durvel (cf. Latour, 1991), a qual uma importante razo da existnciade uma antropologia da cincia e das tcnicas. A sociedade dos modernos especial-mente mediada por coisas (cf. Latour, 1994).Mas quanto aos babunos, eles no se servem, ou no centralmente, de objetosou recursos tcnicos, que seriam recursos extrassociais e, por isso, eles so social-mentecomplexos.Commenoscoisasparticipandodamanutenodosvnculos,osbabunos devem ento negociar esses vnculos a cada passo, a cada vez.23 Nessa escala,22 Este trecho evoca em Joana Cabral de Oliveira os emaranhamentos indissociveis entre mente e natureza a partirdos estudos de Gregory Bateson (antroplogo heterodoxo, diga-se de passagem e a seu favor). Joana tem toda razoem trazer Bateson a essa discusso, como alis ela o voltar a fazer um pouco mais abaixo. mais uma das aludidasgrandes faltas deste meu texto. Assim comenta Joana que essa cadeia de agentes poderia, tambm, ser compreen-didanachavedanoodementedeGregoryBateson(1986).Oconceitodementecunhadopeloautorparaexprimir os elos de diversas ordens que interligam os seres vivos entre si e com o mundo. Nesse emaranhado derelaes, uma infinidade de informaes (de diferenas) circula e permite a constante alterao e desenvolvimentoda vida, passando pelo crescimento de uma anmona, pela execuo de um ritual, pela dominao de um babunoalfa, pelas interaes entre gentipo e ambiente etc. Aqui a noo de comunicao, que diz respeito a muitos nveisde interao por onde passam informaes, retirada do limite antropocntrico da linguagem articulada e colocadano mundo e em seus diversos habitantes.23 Tambm aqui Charbel surpreende conexes convergentes. Mais uma vez desdobram-se interessantes conexescom a literatura sobre cognio situada. Ao que parece, os objetos tecnolgicos ao permitirem maior off-loading,descarregamento cognitivo sobre o mundo, uso de memrias e processadores externos fazem com que no nosseja mais necessrio negociar passo a passo cada vnculo.239Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014ento, as sociedades industriais tendem a mostrar-se menos complexas (ao contrrioda imagem de Durkheim, ou mesmo, de Tnnies, pais fundadores da sociologia orto-doxa)porqueasindustriaissosociedadesquecriaramumaestruturamaisestvel,simplificando as tarefas por via da mediao de coisas e smbolos, e assim se expan-dindo em escala. Claro que no h garantias de que essa estabilidade se mantenha, ensbemosabemosaoingressarmosemumasituaoquesetornainstvelquando,por exemplo, substitumos tcnicas, coisas, objetos, tecnologias. Do mesmo modo, ainstabilidade potencial de uma sociedade complexa babuna tambm objeto de esta-bilizaoporpartedessesanimaise,ento,passamafazersentidoaconstruodoparentescoentreeles,ahierarquizao,adominaodedeterminadosmachosetc.Mas a partir desse modo de comparar humanos e babunos, v-se bem que se invertemas imagens. Agora so os humanos que se mostram muito menos livres, mais cativos,por assim dizer, do que os animais, j que os humanos encontram-se presos pelas coi-sas,incluindoossmbolos,porquerecursosmateriaiserecursosrepresentacionaissoldam vnculos estveis.24Se confiamos ento nesse modo comparativo de compreender, perguntaremosmeio estupefatos: onde mesmo o biolgico, onde mesmo o social, onde mesmo a forapura dos genes, onde a fora pura do ambiente? Em uma palavra, onde mesmo a natu-reza, onde mesmo a cultura? Para resumir esse ponto, a noo performativa de socialfaz simetrizar animais e humanos,25 isto , fornece um mesmo tratamento intelectuala uma e outra categoria, tornando-as comensurveis, mas sem com isso, insisto, redu-zir uma a outra, sem, portanto, reduzir, como no caso aqui em tela, as diferenas entrehumanos e animais; ao contrrio, ela faz multiplicar essas diferenas, porque a com-parao que permite reconhecer, na prtica, as mais diferentes maneiras de realizaoda sociedade, e sem ainda, enfim, comparar por saltos epistemolgicos, como os quemarcariam a passagem da natureza para a cultura, do biolgico para o simblico, da resextensa res cogitans. Para Strum e Latour,24Nestemomento,Charbelfazumaobservao(qualpassoamealinhar)sobreasdiferenasdaaoquandodimensionadas em escala. Mas h a um paradoxo a considerar, que tende a comparecer nas relaes parte-todo.Namedidaemqueohumanotorna-semenosflexvel,dadasasmuitasmediaespodemospensaremcomoalinguagem leva-nos a um domnio de significados mais estveis e, por isso, menos ricos do que os domnios dosmltiplossentidose,nessesentido,somosmenosricosdoqueascrianas,paraquemaspalavrasfluemdeumsentido a outro, e mesmo de uma coisa a outra o conjunto dos humanos torna-se mais flexvel, porque a coopera-o baseada nas mediaes aumenta nossas possibilidades de agir sobre o mundo e, assim, ns adultos, menos ricosde sentidos do que as crianas, podemos ganhar graus de liberdade que a comunicao e ao coordenada nos do.25 Noo de social que muito mais tem a ver com a etimologia da palavra, que vai dar na noo tardiana/latourianade associao, isso que pe a tarefa para o pesquisador de seguir os vnculos na imanncia dos acontecimentos,sem postular de antemo o que so e o que se tornaro esses vnculos (cf. Latour, 2012).240Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014(...) O que diferente, entre diferentes espcies e entre diferentes grupos huma-nos, a escala sobre a qual os outros podem ser organizados, mobilizados e in-fluenciados. Em nosso modelo, recursos materiais e smbolos exercem um papelsignificativonacriaodadiferenaentreumasociedadesoftcomestabilidadelimitada,emqueindivduostmumpodermnimoparainfluenciaroutros,euma sociedade estvel e hard, em que os outros podem ser influenciados sem queestejam mesmo presentes (Strum & Latour, 1987, p. 797).Acho que vale sublinhar esse ponto. Simetrizar no postular que algo do mes-mo repete-se entre as mais diferentes realidades, como entre as mais diferentes esp-cies. Por mais prximos que estejam na escala zoolgica, humanos e babunos, claro,soanimaismuitodiferentes.Masnosoincomensurveis.Socomparveis,masno a partir de uma visada naturalista no humana, ou ainda, a partir de seu polo puri-ficado oposto, a visada sociologista antropocntrica. Simetrizar no exclui as diferen-as, ao contrrio, faz com que elas se manifestem em sua multiplicidade. E, por isso, preciso honrar as diferenas(Haraway, 2003, p. 39).4 Ces-em-aoPenso que honrar as diferenas, sem para isso servirmos-nos dos confortveis e emtodo caso j improdutivos dispositivos previamente purificados tanto do naturalis-moquantodosociologismo,algoquepoderenovarabaseticadasrelaesentreanimais e humanos. E aqui envio de pronto averso de Deleuze (1994-1995) em rela-o aos animais domsticos,26 assim como a sua correspondente fascinao com seresque nos parecem to distantes, como o carrapato no exemplo dele. Se tento dizer-me,vagamente, o que me toca em um animal, a primeira coisa que todo animal tem ummundo. E ele ento vai ao carrapato.O carrapato responde ou reage a trs coisas, trs excitantes (...) em uma naturezaimensa(...).Eletendeparaaextremidadedeumgalhodervore,atradopelaluz, ele pode passar anos no alto desse galho, sem comer, sem nada, completa-mente amorfo. Ele espera que um ruminante, um herbvoro, um bicho passe sob26 O Abecedrio de Deleuze corresponde srie de entrevistas de Deleuze realizada por Claire Parnet e filmada nosanos 1988-1989. As entrevistas foram exibidas no canal franco-alemo de TV Arte entre novembro de 1994 e maiode 1995. Em comunicao pessoal, o professor Lorenzo Baravalle (Filosofia/ Universidade Federal do ABC) observaque von Uexkll cita essa experincia com o carrapato em vrias obras, sendo a mais famosa a referida em Uexkll(2010 [1934]), obra que Baravalle resenha neste nmero.241Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014o galho, e ento ele se deixa cair. A uma espcie de excitante olfativo. O carra-pato sente o cheiro do bicho que passa sob o galho, este o segundo excitante, oodor. E ento, quando ele cai nas costas do pobre bicho, ele procura a regio commenos pelos, um excitante ttil, e se mete sob a pele. Ao resto, se se pode dizer,ele no d a mnima. Em uma natureza formigante, ele extrai, seleciona trs coi-sas (Deleuze, 1994-1995).EntoDeleuzedirqueissoterumarelaoanimal.Oquenosuportoarelao humana com o animal. E segue: Mas geralmente as pessoas que gostam dosanimais no tm uma relao humana com eles, mas uma relao animal, que aconte-ce no limite que separa o homem do animal. Da ento sua concluso de que deve-seestarsemprenolimitequesepara[ahumanidade]daanimalidade,masdemodoquenosefiqueseparadodela(Deleuze,1994-1995).Querdizer,sefaocorreta-mente a leitura de Deleuze, uma relao animal com o animal uma relao que honraas diferenas, mas no porque as concebe como apartadas ou exticas ao nosso mundo,mas porque no limite da animalidade e da humanidade que o humano pode experi-mentar o devir animal, como as excitaes sensoriais que o carrapato comunica-nos equeproduzememnsumdeslocamento,osuficienteenecessrio,acrescento,paraajudar a salvar-nos do antropocentrismo e da solido do moderno no cosmo.Essas observaes de Deleuze situam-se, portanto, nas antpodas das prticas econcepes, to frequentes entre ns ocidentais modernos, de infantilizao dos ani-mais.pontoquemedensejoparareconhecerquemesmoentrensmodernos,mesmoemnossasprticasdedomesticaoanimal,ocorremverdadeirasexperin-cias de participao entre os animais e os humanos, experincias de devir e desloca-mento. Essa a perspectiva da filsofa Donna Haraway, que defende a ideia de natu-rezasculturasemergentes(naturezaeculturaagrafadasjuntas,semnemmesmohfen). E para defender essa ideia, preciso no supor sujeitos ou objetos pr-cons-titudos (Haraway, 2003, p. 6). Sua argumentao parece bem aderida ao processua-lismo,aopragmatismodofilsofoAlfredWhitehead(comoalistambmLatoureStengers o fazem), e ainda posio da filsofa e feminista estadunidense Judith Butler,queapostanasfundaes(oufundamentos)contingentes(ButlerapudHaraway,2003, p. 6).Harawaydevotaatenohistoricidadedosprocessospragmticosjustamentepara poder evocar as especificidades e as diferenas, no para afirmar descontinuidadesintransponveis, mas, ao contrrio: para que no caso das relaes com os animais (eemparticularosdomesticados)jamaissepossatomarespciealgumasenoemcoevoluo, em coconstituio, em contingncia. Significa dizer que as ontologias sosempre emergentes. Entendo tambm que, para afirmar esse manifesto das espcies242Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014companheiras,noprecisamosignorar,negaroupassaraolargododarwinismo.Haraway, ela mesma, declara-se herdeira do darwinismo. Ora, grandes autores, comoDarwin, oferecem diversas possibilidades de leitura, e no precisamente isso o quetorna um autor clssico? A leitura do determinismo ou reducionismo biolgico ou dareificao do dualismo natureza versus cultura apenas uma das leituras possveis deDarwin. Como j indiquei, eu mesmo encantei-me com Darwin medida que conheciaem sua obra a descrio das relaes ntimas que ele estabelecia com animais e plan-tas. Minha aposta de que foi precisamente em funo de seu incansvel trabalho decampo(enomeditaessolitriasdeumgnioeruditoemseugabinete)queele,Darwin, no se tornou mais um taxonomista de espcies, j que, acompanhando umaespcie em campo, ele necessariamente acompanhava outras espcies ligadas quela,incluindo a espcie humana, como os criadores e cultivadores os mais variados mundoafora, com os quais Darwin sempre se comunicava. Eu alis duvido que Darwin tivessealcanado os resultados que conhecemos, se ele no contasse com a ajuda dessa gentecriadora, domesticadora de bichos e plantas. E diria ainda que essa mesma gente queconsegue criar com sucesso raas e linhagens a mesmo criada. claro que ns no convivemos com micos-lees-dourados, mas sabemos per-feitamente o quanto eles nos fazem-fazer, segundo a expresso latouriana. Sim, o mico-leomodificaonossomundo,masemumaescalaaindamaismundana,comoadosces domesticados de que fala Haraway, essas modificaes atingem graus ainda maissensveis. Acho que no preciso estender-me sobre isso. Quem tem um animal de es-timaosabebemdoquedigo.Bastaimaginarperderesseanimal,noimportaporqualmotivo,paraadiantarnoespritoosterrveisdanosqueessaperdaircausar.J do lado dos ces, bem se sabe tambm que essas variedades com as quais convive-mos assumiram o perfil atual (perfil somtico, gentico, psquico etc.) porque so es-pcies que muito diretamente emergiram e emergem das relaes que travaram e tra-vam conosco. E eu no diria tratar-se de espcies, essas caninas, que assim o so porquesehumanizaram.No,elassoespciesanimais,masespciesque,porassimdizer,aceitaram, por adaptao, estabelecer conosco uma srie de conexes. Aceitaram viverconosco muito de perto, aceitaram coevoluir conosco, uma vez que pesquisas feitas em1997 mostram que espcies de ces divergiram de espcies de lobos h 150.000 anos,ou seja, na origem mesma do Homo sapiens sapiens (cf. Haraway, 2003). Os ces teriamprimeiramente emergido no leste da sia e seguiram para todo lugar para onde foramos humanos. Eles adaptaram comportamento e gentica para reduzir distncias into-lerveis em relao aos humanos. Sim, eles foram domesticados, mas ns nos esque-cemos de reconhecer (eis a iluso antropocntrica) que na mesma laada tambm nsfomos domesticados por eles. Eles aceitaram inventar uma co-historicidade conosco,aceitaram estabelecer conexes parciais (para valer-me agora dessa expresso, re-243Virada animal, virada humana: outro pactoscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014cuperadaporDonnaHaraway,daantroplogaMarylinStrathern).Conexesquein-cluem (no sejamos inocentes ou tolamente ingnuos) histrias de crueldade, indife-rena ou at mesmo guerra, como os ces treinados como armas letais, instrumentosde terror na conquista da Amrica pelos europeus (cf. Haraway, 2003). Em todo caso, aperguntaqueaquicaberetomar:ondemesmoanaturezaeaculturaa?Smesmocoevoluo em naturezacultura (Haraway, 2003, p. 12). Flexibilidade e oportunis-mo so o nome do jogo para ambas as espcies (p. 29).Notemos ento que da plasticidade da vida que estamos aqui tratando. Harawayinclusive nomeia como dog people os humanos que de fato encontram-se engajados,comprometidosnarelaocomosces.Epensoquesetodoessecompartilhamentoparece mais evidente em relao aos animais domesticados, eu, contudo, defenderiaque no menos verdadeiro em relao aos animais selvagens. Sim, o mico-leo-dou-rado no vive em nossas casas, nem nos nossos parques urbanos, mas o destinoditonaturaldesuaespcie,paraaextinoousobrevivncia,prende-seintimamenteaomundo social humano. E assim porque o mundo humano, sua cultura e sua socieda-de, por si s no se sustenta, nunca se sustentou. Ou simplesmente pensar, se elimi-namos as minhocas da superfcie terrestre, de imediato a segurana alimentar huma-na, a segurana agrcola, ir encontrar-se seriamente comprometida. No estou falandonada mais, nada menos do que da cadeia ecolgica que une os seres de modo vital. Querdizer, so outras as imagens de animais e humanos, se suspendemos o edifcio episte-molgicomodernooficialquedeantemopurificaasexistnciasentreaquelasqueseriamdaordemdanaturezanohumanaeaquelasqueseriamdaordemdaculturahumana.Sooutrasasimagensdeambos,seelegemosnooentendimentoclassi-ficatrio,taxonmico,masoentendimentoeto-ecolgico(cf.Sonigo&Stengers,2003). Ento, tudo muda, se desviarmos o foco das formas para as foras; se prestar-mos ateno aos processos pragmticos de emergncia de ontologias, se o foco, enfim,recai nas conexes parciais, no caso, as conexes parciais entre humanos e animaisem suas mais diferentes expresses.Como j era de esperar, Haraway posiciona-se contra o pernicioso amor incon-dicional (2003, p. 33) entre humanos ocidentais e seus animais domsticos, pois, paraela, isso sintoma de neurose, sintoma de um narcisismo humanista na relao com asespciescaninas.Pernicioso,aoquebemparece,porquebastaquenarcisosinta-seferido, que se frustre com as expectativas no cumpridas pelo co, para que ento elerejeite ou abandone esse seu animal. Amor no um bom termo para definir essas re-laes porque essa uma palavra j muito corrompida pela cultura da infantilizaodosces(Haraway,2003,p.39).Entendoqueelasereferecargadevalortrans-cendental que mal esconde o nosso antropocentrismo (ocidental, moderno, euro-ame-ricano, branco), e que essa mesma noo de amor repe. Respeito e confiana, e no244Stelio Marrasscienti zudia, So Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014amor so as exigncias de um bom desempenho do relacionamento entre ces e huma-nos(2003,p.39).Respeitoeconfiana,ento,aparecemacomoplanos,rentesexperincia que ces e humanos experimentam nas suas prticas relacionais situadas.E a tal ponto que j no seria estranho reconhecermos uma prtica de intersubjetivi-dade,quenadamaisseriaqueaatenoprestadaaessaalteridadesignificante,emaberto, e no a uma alteridade j significada.A esse mesmo respeito (e respeito pelos fenmenos emergentes), poderamosainda lembrar o incrvel e j secular fenmeno que segue em funcionamento, por exem-plo,nolitoraldeLaguna,SantaCatarina,entreospescadoreseosgolfinhos.Assim,acontece que, em determinada hora do dia, os pescadores aproximam-se da margemdabarra,osgolfinhosvmemsuadireotrazendoconsigodezenasoucentenasdepeixes, tainhas em especial, peixes que de um momento para o outro ver-se-o situa-dos como presas na regio entre os golfinhos e os pescadores. quando os pescadoreslanam as suas redes, que s vezes, at, acabam prendendo golfinhos junto com os pei-xesqueosacompanham.Masessesgolfinhosprovisoriamentecativossequeresbo-am qualquer aflio nas redes (tarrafas) porque sabem que dali a pouco sero liberta-dos pelos pescadores, que, aps a captura das tainhas, lanam alguns desses peixes aosgolfinhosqueosajudaram,repartindoassimapescacomessaespciecompanheirados golfinhos. Alm do mais, os golfinhos tambm se servem dos peixes que escapamdas tarrafas, porque assim tornam-se mais facilmente capturveis. Eis o suficiente paranotarmos que as diferenas entre as espcies (humanos e golfinhos) no impedem acomunicao e a ajuda mtua entre eles na captura de peixes (em especial na tempora-dadetainhas).27Antes,sosuasdiferenasquejustamentepermitemacooperaomtua entre as espcies.Nada muito diferente, ainda que menos imediatamente espetacular ou no fa-miliar, acontece em uma prtica esportiva que emaranha o desenvolvimento de habi-lidades tanto de ces como de seus treinadores. Esse acontecimento dos campeonatosde ces