Virgílio Afonso da Silva - Princípios

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    Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais1 (2003): 607-630.[se fizer referncia a este trabalho, utilize a paginao original, indicada ao longo do texto]

    Princpios e regras:mitos e equvocos acerca de uma distino

    Virglio Afonso da Silva*

    Pesquisador na Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getulio Vargas[atualmente Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo]

    607

    O conceito de norma jurdica e a discusso sobre suas espcies so temas de infindveis

    controvrsias e os juristas parecem ter uma grande dificuldade para chegar ao menos perto

    de algum denominador comum acerca do objeto de sua disciplina. Essa dificuldade o pano

    de fundo deste artigo, pois pretendo discutir uma distino entre duas espcies de normas: os

    princpios e as regras. De incio, saliento que no tenho qualquer pretenso de, ao fim deste

    trabalho, oferecer solues pretensamente definitivas sobre

    607|608

    o tema. Se h diferentes formas coerentes de se proceder a essa distino, no h por que

    querer lutar contra isso. O objetivo principal deste artigo bem menos pretensioso. Tendo

    como ponto de partida o fato de que essa distino vem sendo cada vez mais levada a cabo

    sobre uma base terica determinada, que aquela difundida por Robert Alexy em sua teoria

    dos direitos fundamentais, pretendo discutir alguns pontos polmicos, algumas impropriedades

    metodolgicas, enfim, alguns equvocos acerca dessa base terica e suas conseqncias.

    Uma outra delimitao do tema faz-se necessria: neste artigo, vou me concentrar

    precipuamente na recepo da distino entre princpios e regras no direito brasileiro. Isso no

    exclui, obviamente, referncias a obras estrangeiras, mas essas sero limitadas medida do

    necessrio para a discusso.1

    * Agradeo a Lus Renato Vedovato, Diogo Rosenthal Coutinho e Marco Aurlio Sampaio a leitura e oscomentrios crticos a verses preliminares deste trabalho.

    1

    anlise da literatura estrangeira, especialmente da alem, j me dediquei em outro trabalho. Cf. VirglioAfonso da Silva, Grundrechte und gesetzgeberische Spielrume, Baden-Baden, Nomos, 2003, pp. 37-66.

    Virglio Afonso da Silva

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    Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais1 (2003): 607-630.

    A estrutura do presente trabalho bastante simples. Ele dividido em duas grandes

    partes principais, uma expositiva (tpico 1), na qual a distino entre regras e princpios

    brevemente apresentada, e outra (tpicos 2 a 7) dedicada anlise da recepo dessa

    distino no Brasil e principalmente das crticas a alguns dos conceitos usados na parte

    expositiva. Nessa segunda parte, discuto, em cada tpico, problemas isolados. Cada tpico ,

    por assim dizer, independente, apesar de guardarem eles uma estreita relao entre si. Os

    tpicos a serem abordados so: (2) um problema terminolgico e tipolgico; (3) texto e

    norma; (4) deveres prima facie e deveres definitivos; (5) mandamentos de otimizao; (5.1)

    coliso total de princpios; (5.2) realizao "no todo" e realizao "na mxima medida"; (6)

    liberdade estrutural; (7) a teoria estruturante do direito e a distino entre princpios eregras.2

    608|609

    A discusso levada a cabo nessa segunda parte pretende desempenhar tambm um

    outro papel: estimular o dissenso e o debate. essa dade, cada vez mais rara no Brasil, que

    desempenha o papel motor no desenvolvimento da literatura jurdica no mundo todo.

    Espero que esse possa ser o incio de um debate interessante e frutfero.

    Antes, porm, de entrar na discusso crtica, um breve esboo da teoria que serve de

    pano de fundo, isto , da teoria sobre princpios e regras.

    2 Boa parte dessa segunda parte dedicada a rebater algumas crticas feitas por Humberto Bergmann vilaacerca da distino entre regras e princpios (cf. Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios eregras e a redefinio do dever de proporcionalidade",RDA 215 (1999): 151-179). Rebater os argumentos deHumberto vila, no significa, contudo, ignorar a importncia de seu trabalho. Ao contrrio do quefreqentemente acontece nos casos de recepo de teorias estrangeiras, Humberto vila no se limita ameramente reproduzir acriticamente algo recebido, mas expe, com argumentos, o que entende serproblemtico na distino entre regras e princpios. Se os argumentos so para todos convincentes, essa uma questo que no altera a importncia da discusso iniciada. O importante que se tenha sempre emmente que no a reproduo do maior nmero possvel de teorias que contribuir para o aperfeioamento

    da produo jurdica ptria. Essa nsia por reproduzir teorias pode, na verdade, ter o efeito contrrio. Veja,sobre esse problema, o ltimo tpico deste artigo.

    Virglio Afonso da Silva

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    1. Princpios e regras

    Ainda que a distino entre princpios e regras no seja recente,3 no h dvida de que

    a grande discusso sobre esse problema ganhou a fora atual com as obras de Ronald

    Dworkin e Robert Alexy.4 Vou me limitar, portanto, a uma brevssima exposio das teses

    desses dois autores.5

    Tanto Dworkin quanto Alexy so representantes da tese da separao qualitativa entre

    regras e princpios, que advoga que a distino entre ambas as espcies de normas de

    carter lgico.6 Uma alternativa a essa tese aquela que defende que a distino entre ambas

    de grau, seja de grau de generalidade, abstrao ou de fundamentalidade.7 Essa a tese

    mais difundida no Brasil. Por fim, h aqueles que, por diversas razes, rejeitam a

    possibilidade ou a utilidade da distino entre regras e princpios.8

    609|610

    1.1. Ronald Dworkin

    O ponto de partida da teoria de Dworkin uma crtica ao positivismo jurdico,

    principalmente ao positivismo na forma desenvolvida por seu antecessor em Oxford,Herbert Hart. Segundo Dworkin, o positivismo, ao entender o direito como um sistema

    composto exclusivamente de regras, no consegue fundamentar as decises de casos

    complexos, para as quais o juiz no consegue identificar nenhuma regra jurdica aplicvel, a

    3 Cf., por exemplo, Josef Esser, Grundsatz und Norm, 1956. Cf. tambm Walter Wilburg, Die Elemente desSchadensrechts, 1941.

    4 Cf. Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, 1977 e Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, 1984.5 Para um aprofundamento, recomenda-se a leitura das obras citadas na nota anterior. A obra de Dworkin

    tem traduo para o portugus: Ronald Dworkin,Levando os direitos a srio, So Paulo, Martins Fontes, 2002.O livro de Alexy tem traduo espanhola (Robert Alexy, Teora de los derechos fundamentales, Madrid, Centrode Estudios Constitucionales, 1993) e uma traduo brasileira (Teoria dos direitos fundamentais) est sendopreparada por mim e ser publicada pela Editora Malheiros, de So Paulo. Cf. tambm Virglio Afonso daSilva, Grundrechte und gesetzgeberische Spielrume, pp. 39-52.

    6 Cf., alm de Dworkin e Alexy, Jan-R. Sieckmann, Regelmodelle und Prinzipienmodelle des Rechtssystems, pp. 52 es., 74 e ss.; Martin Borowski, Grundrechte als Prinzipien, p. 98; Marius Raabe, Grundrechte und Erkenntnis, p.176 e ss.

    7 Cf., por exemplo, Joseph Raz, Practical Reason and Norms, p. 49; Humberto Bergmann vila, "A distino

    entre princpios e regras", p. 167.8 Cf., por exemplo, Aulis Aarnio, "Taking Rules Seriously",ARSPBeih. 42 (1989), p. 188.

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    no ser por meio do recurso discricionariedade judicial. O juiz, nesses casos, cria direito

    novo.9

    Dworkin argumenta que, ao lado das regras jurdicas, h tambm os princpios.10

    Estes,ao contrrio daquelas, que possuem apenas a dimenso da validade, possuem tambm uma

    outra dimenso: o peso. Assim, as regras ou valem, e so, por isso, aplicveis em sua inteireza,

    ou no valem, e portanto, no so aplicveis. No caso dos princpios, essa indagao acerca da

    validade no faz sentido. No caso de coliso entre princpios, no h que se indagar sobre

    problemas de validade, mas somente de peso. Tem prevalncia aquele princpio que for,

    para o caso concreto, mais importante, ou, em sentido figurado, aquele que tiver maior

    peso.11 Importante ter em mente que o princpio que no tiver prevalncia no deixa de

    valer ou de pertencer ao ordenamento jurdico. Ele apenas no ter tido peso suficiente para

    ser decisivo naquele caso concreto. Em outros casos, porm, a situao pode inverter-se.

    1.2. Robert Alexy

    Alexy parte de um pressuposto semelhante ao de Dworkin: o de que a distino entre

    princpios e regras uma distino qualitativa e no de grau. Sua principal contribuio foi

    precisar algumas premissas bsicas dessa idia e, principalmente, desenvolver a idia de

    princpios como mandamentos de otimizao.

    Segundo Alexy, princpios so normas que estabelecem que algo deve ser realizado na

    maior medida possvel, diante das possibilidades fticas e jurdicas presentes. Por isso so eles

    chamados de mandamentos de otimizao.12 Impor-

    610|611

    tante, nesse ponto, a idia de que a realizao completa de um determinado princpio pode

    9 Cf. Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, pp. 17 e 31.10 Dworkin fala tambm em polticas e outros tipos de standards. No h necessidade, aqui, de desenvolver

    esses elementos.11 Cf. Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, p. 43.12 Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, p. 75. A idia de mandamento de otimizao no significa que seja

    impossvel que um princpio seja cumprido em sua inteireza, conforme sustenta Fbio Konder Comparato,"As garantias institucionais dos direitos humanos", Boletim dos Procuradores da Repblica 40 (2001), pp. 5 e 8,nota 4. Princpios podem, sim, ser realizados na medida mxima, isto , em sua inteireza. Para que isso

    acontea, basta que as condies fticas e jurdicas, no caso concreto, sejam ideais. E a idia de mandamento deotimizao deve ser aplicada a cada caso concreto.

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    ser - e freqentemente - obstada pela realizao de outro princpio. Essa idia traduzida

    pela metfora da coliso entre princpios, que deve ser resolvida por meio de um

    sopesamento, para que se possa chegar a um resultado timo. Esse resultado timo vai

    sempre depender das variveis do caso concreto e por isso que no se pode falar que um

    princpio P1 sempre prevalecer sobre o princpio P2 - (P1 P P2) -, devendo-se sempre falar

    em prevalncia do princpio P1 sobre o princpio P2 diante das condies C - (P1 P P2) C.13

    Visto que para se chegar a um resultado timo necessrio, muitas vezes, limitar a

    realizao de um ou de ambos os princpios, fala-se que os princpios expressam deveres e

    direitos prima facie, que podero revelar-se menos amplos aps o sopesamento com

    princpios colidentes.14 Diante disso, a diferena entre princpios e regras fica ainda mais

    clara. As regras, ao contrrio dos princpios, expressam deveres e direitos definitivos, ou seja,

    se uma regra vlida, ento deve se realizar exatamente aquilo que ela prescreve, nem mais,

    nem menos.15 No caso dos princpios, o grau de realizao pode, como visto, variar.

    Como dito acima, o intuito deste primeiro tpico era uma explanao muito breve da

    base terica da discusso a ser levada a cabo. claro que, dada a limitao de espao, muitos

    detalhes tiveram que ser ignorados. Muitos deles, contudo, viro tona na discusso quesegue, sobre a recepo dessa base terica no Brasil, que o objeto deste artigo.

    611|612

    2. Um problema terminolgico e tipolgico16

    Como ficou claro na exposio acima, o conceito de princpio usado por Robert Alexy,

    como espcie de norma contraposta regra jurdica, bastante diferente do conceito de

    13 Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, pp. 82 e s.14 Exemplo: a liberdade de expresso consiste, prima facie, na liberdade de exprimir o que se deseja por meio

    da forma que se deseja. Esse direito s pode ser um direito prima facie, j que no difcil imaginar que oexerccio dessa liberdade poder colidir com outros direitos, principalmente com a honra e a privacidade.Em cada caso ou grupos de casos, aquele direitoprima faciepoder revelar-se, ento, menos amplo.

    15 Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, p. 76. Ana Paula de Barcellos, A eficcia jurdica dos princpiosconstitucionais, p. 51, denomina as regras de "comandos de definio", em oposio aos princpios, chamadospor ela de "comandos de otimizao". Parece-me que a expresso "comandos definitivos" ou, como usadoneste trabalho, "deveres definitivos", seja mais adequada para expressar a idia presente nessa contraposioentre regras e princpios. Sobre essa contraposio, ver tpico 4, mais adiante.

    16

    A esse problema terminolgico, no mbito do chamado "princpio" da proporcionalidade, j me referi emtrabalho recente. Cf. Virglio Afonso da Silva, "O proporcional e o razovel",RT798 (2002), p. 26.

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    princpio tradicionalmente usado na literatura jurdica brasileira. "Princpios" so,

    tradicionalmente, definidos como "mandamentos nucleares" ou "disposies fundamentais"

    de um sistema,17 ou ainda como "ncleos de condensaes".18 A nomenclatura pode variar

    um pouco de autor para autor - e so vrios os que se dedicaram ao problema dos princpios

    jurdicos no Brasil - mas a idia costuma ser a mesma: princpios seriam as normas mais

    fundamentais do sistema, enquanto que as regras costumam ser definidas como uma

    concretizao desses princpios e teriam, por isso, carter mais instrumental e menos

    fundamental. No mbito dessa distino, so inmeras as tentativas de classificao dos

    princpios constitucionais. Canotilho, por exemplo, fala de princpios jurdicos fundamentais,

    princpios polticos constitucionalmente conformadores, princpios constitucionaisimpositivos e princpios-garantia.19 Jos Afonso da Silva, por sua vez, fala em princpios

    constitucionais fundamentais e princpios constitucionais gerais.20Jorge Miranda fala, ainda,

    em princpios axiolgicos fundamentais, princpios poltico-constitucionais e princpios

    constitucionais instrumentais.21 Lus Roberto Barroso, por fim,22 fala em princpios

    fundamentais, princpios gerais e princpios setoriais.23

    No pretendo discutir qual dessas classificaes a mais adequada - se que h uma

    que seja mais adequada que as outras. Minha inteno, ao fazer essa breve exposio,

    simplesmente explicitar as diferenas entre essas con-

    612|613

    cepes de princpios e aquela exposta nos tpicos anteriores. meu objetivo, alm disso,

    analisar qual a relao possvel entre ambas.

    A principal diferena entre ambas as propostas facilmente identificvel. O conceito de

    princpio, na teoria de Alexy, um conceito que nada diz sobre a fundamentalidade da

    norma. Assim, um princpio pode ser um "mandamento nuclear do sistema", mas pode

    17 Cf., por todos, Celso Antnio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 408.18 Cf. J.J. Gomes Canotilho / Vital Moreira,Fundamentos da constituio, p. 49.19 Cf. J.J. Gomes Canotilho,Direito constitucional e teoria da constituio, pp. 1038 e ss.20 Cf. Jos Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, pp. 97 e ss.21 Cf. Jorge Miranda,Manual de direito constitucional, II, pp. 202 e s.22 Com "por fim" quero apenas apontar o fim dessa pequena exposio de carter exemplificativo. Outras

    muitas classificaes existem e poderiam ser citadas. Para a finalidade aqui visada, contudo, isso no

    necessrio.23 Cf. Lus Roberto Barroso,Interpretao e aplicao da constituio, pp. 147 e ss.

    Virglio Afonso da Silva

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    tambm no o ser, j que uma norma um princpio apenas em razo de sua estrutura normativa e

    no de sua fundamentalidade.

    Essa diferena entre os conceitos de princpio tem conseqncias importantes narelao entre ambas as concepes. Essas conseqncias, no entanto, passam muitas vezes

    despercebidas, visto que comum, em trabalhos sobre o tema, que se proceda,

    preliminarmente, distino entre princpios e regras com base nas teorias de Dworkin ou

    Alexy, ou em ambas, para que seja feita, logo em seguida, uma tipologia dos princpios

    constitucionais, nos moldes das concepes que acima chamei de mais tradicionais.24 H,

    contudo, uma contradio nesse proceder. Muito do que as classificaes tradicionais

    chamam de princpio, deveria ser, se seguirmos a forma de distino proposta por Alexy,

    chamado de regra. Assim, falar em princpio do nulla poena sine lege, em princpio da

    legalidade, em princpio da anterioridade, entre outros, s faz sentido para as teorias

    tradicionais. Se se adotam os critrios propostos por Alexy, essas normas so regras, no

    princpios.25 Todavia, mesmo quando se diz adotar a concepo de Alexy, ningum ousa

    deixar esses "mandamentos fundamentais" de fora das classificaes dos princpios para

    inclu-los na categoria das regras.26

    24 Seguindo esse modelo, cf., por exemplo, Walter Claudius Rothenburg, Princpios constitucionais, pp. 24, 32 ess. (distino entre regras e princpios segundo Alexy) e pp. 67 e ss. (classificao "tradicional" dos princpiossegundo vrios autores). Walter Rothenburg, aps citar as tipologias de Canotilho, Edilsom Farias e LusRoberto Barroso, conclui: "Todas essas propostas de classificao podem ser adotadas" (p. 71). Isso somente verdade caso no seja adotada a distino proposta por Alexy, visto que muito daquilo que Canotilho,Farias e Lus Roberto Barroso classificam como princpios so, segundo os critrios usados por Alexy,regras. Em sentido semelhante ao de Rothenburg, cf. Ruy Samuel Espndola, Conceito de princpiosconstitucionais, pp. 69 e ss. (distino entre regras e princpios segundo Dworkin e Alexy) e 221 e ss.(classificao dos princpios segundo o modelo de Canotilho); tambm Francisco M. Marques de Lima, Oresgate dos valores na interpretao constitucional, pp. 131 e ss. e 136 e ss.

    25 Cf., contudo, Edilsom Pereira de Farias, Coliso de direitos, pp. 26 e s. (distino entre regras e princpiossegundo Alexy) e pp. 33 e ss. (tipologia dos princpios constitucionais, incluindo o nulla poena sine legeentreos chamados princpios-garantia).

    26 Talvez o caso mais complexo, neste ponto, seja o da dignidade humana. Ningum discordar que suaproteo seja uma das normas mais fundamentais de qualquer ordenamento jurdico democrticocontemporneo. nesse sentido que se fala em princpio da dignidade da pessoa humana. Porm, caso seentenda que essa seja uma norma que no comporte sopesamento diante de uma coliso com outrosprincpios, sua classificao como "princpio" fica comprometida, pelo menos se seguirmos os critriospropostos por Alexy. Esse , contudo, um caso mais complexo e no h como discuti-lo de passagem emuma nota de rodap. Cf., sobre os problemas de classificao da dignidade como regra ou princpio, RobertAlexy, Theorie der Grundrechte, pp. 95 e ss. (Alexy "divide" a norma relativa dignidade humana em regra eprincpio). Para uma discusso ampla e atual sobre a dignidade humana, cf., por todos, a tima dissertao

    de Ana Paula de Barcellos, A eficcia jurdica dos princpios constitucionais: o princpio da dignidade da pessoahumana, Rio de Janeiro, Renovar, 2002.

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    O que precisa ficar claro, como j salientei acima, que no h que se falar em

    classificao mais ou menos adequada, ou, o que pior, em classificao mais ou menosmoderna.27 Classificaes ou so coerentes e metodologicamenteslidas, ou so contraditrias -

    quando, por exemplo, so misturados diversos critrios distintivos - e, por isso, pouco ou

    nada teis.28 Se se define "princpio" pela sua fundamentalidade, faz sentido falar-se em

    princpio da legalidade ou em princpio do nulla poena sine lege. Essas so, sem dvida, duas

    normas fundamentais em qualquer Estado de Direito. Caso, no entanto, se prefira usar os

    critrios estabelecidos por Alexy, expostos no tpico anterior, preciso cuidado ao se fazer

    uma "tipologia de princpios" - se que uma tal tipologia faz algum sentido quando se

    distinguem princpios e regras por aqueles critrios - e, mais importante, preciso deixar de

    fora dessa tipologia aquelas normas tradicionalmente chamadas de princpios - legalidade

    etc. -, visto que elas, a despeito de sua fundamentalidade, no poderiam mais ser

    consideradas como princpios, devendo ser includas na categoria das regras.29

    614|615

    27 Cf., em sentido oposto, Ruy Samuel Espndola, Conceito de princpios constitucionais, pp. 182, 252 epassim, quese dedica a demonstrar quais autores e teorias so atualizados e modernos e quais no o so. E o critriopara levar tal tarefa a cabo costuma ser pura e simplesmente uma anlise das obras que cada autor cita.Sobre esse critrio duvidoso, cf. nota de rodap 60, infra.

    28 Cf. Stefano Bartolini, "Metodologia della ricerca politica", p. 58; Virglio Afonso da Silva, Sistemas eleitorais,pp. 67 e ss.

    29 Cf., todavia, Rogrio Gesta Leal,Perspectivas hermenuticas dos direitos humanos fundamentais no Brasil, pp. 166 ess. O autor, ao mesmo tempo em que parece adotar os critrios propostos por Alexy (pp. 171 ss.), no deixade salientar vrias vezes a fundamentalidade e a superioridade formal dos princpios: "Esses princpiosapresentam-se como efetivos valores elegidos pela comunidade poltica local e, enquanto tais, afiguram-secomo a pedra de toque ou critrio com que se aferem contedos constitucionais em sua dimenso normativamais elevada" (p. 166). Tambm Fbio Konder Comparato, "O Ministrio Pblico na defesa dos direitoseconmicos, sociais e culturais", texto apresentado no XVIII Encontro Nacional dos Procuradores da Repblica,Manaus/2001, a despeito de adotar os critrios propostos por Alexy, tambm se refere "supremacianormativa" dos princpios. Diz o autor: "Que uma norma de princpio tenha mais importncia e, porconseguinte, mais fora jurdica que uma simples regra verdade imediatamente apreendida pelo bom senso"(grifei). No me parece ser assim. Se se adotam os critrios propostos por Alexy, no h como no se chegar

    concluso de que h regras to ou mais importante que muitos princpios, como o caso da legalidade ouda nulla poena sine lege, j citados acima.

    Virglio Afonso da Silva

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    Como se percebe, o conceito de princpio, na teoria de Alexy, um conceito

    axiologicamente neutro e seu uso no expressa nenhuma opo por esta ou aquela disposio

    fundamental, nem por este ou aquele tipo de constituio.30

    3. Texto e norma

    Como j mencionado acima,31 Humberto vila sustenta que a diferena entre regras e

    princpios uma mera diferena no grau de abstrao, sendo os princpios mais abstratos do

    que as regras.32 Como sustentao para sua tese, argumenta ele que as regras no so

    aplicadas seguindo o modelo "tudo ou nada", pois, tanto quanto os princpios, devem passar

    elas por um processo interpretativo.33

    Nas palavras de Bergmann vila:Isso [...] importa dizer que a caracterstica especfica das regras (implementao deconseqncia pr-determinada) s pode surgir aps a sua interpretao. [...] Vale dizer: adistino entre princpios e regras no pode ser baseada615|616no suposto mtodo "tudo ou nada" de aplicao das regras, pois tambm elas precisam,para que sejam implementadas as suas conseqncias, de um processo prvio - e porvezes longo e complexo como o dos princpios - de interpretao que demonstre quais asconseqncias que sero implementadas. E, ainda assim, s a aplicao diante do casoconcreto que ir corroborar as hipteses anteriormente havidas como automticas.

    Nesse sentido, aps a interpretao diante de circunstncias especficas (ato deaplicao), tanto as regras quanto os princpios, em vez de se extremarem, seaproximam. A nica diferena constatvel continua sendo o grau de abstrao anterior interpretao.34

    H, neste ponto, no somente uma impreciso no uso do termo "tudo ou nada" como

    sinnimo de "imediatidade", como tambm a desconsiderao de uma distino trivial na

    teoria geral do direito: a distino entre texto e norma.35 Segundo essa distino, de

    30 Posio contrria defendida por Gilberto Bercovici, "O princpio da unidade da constituio", RIL 145(2000), p. 96: "Os princpios assumem fora normativo constitucional, superando definitivamente a idia deConstituio como mero instrumento de governo (Constituio-garantia), prevalecendo a adoo daConstituio dirigente, isto , determinadora de fins e tarefas do Estado". No sentido aqui proposto, cf. J. J.Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituio, pp. 1037 s.: "A compreenso principial daConstituio serve de arrimo concretizao metdica quer se trate de um texto constitucional garantstico [...]quer se trate de um texto constitucional programtico" (grifei).

    31 Cf. nota 7, supra.32 Cf. Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras", p. 167.33 No mesmo sentido, cf. Inocncio Mrtires Coelho, "Constitucionalidade/inconstitucionalidade: uma questo

    poltica?",RDA 221 (2000), p. 59.34 Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras", p. 161.

    Virglio Afonso da Silva

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    largussima aceitao, independente de corrente doutrinria,36 texto e norma no se

    confundem, pois o primeiro apenas um enunciado lingstico, enquanto que a norma o

    produto da interpretao desse enunciado.37 Um breve exemplo suficiente para deixar clara essa

    distino. O inc. XL do art. 5 da Constituio tem a seguinte redao: "a lei penal no

    616|617

    retroagir, salvo para beneficiar o ru". Isso o que aqui se chama de texto ou enunciado. Esse

    texto exprime uma norma que probea retroao da lei penal, a no ser que essa retroao

    beneficie o ru. Nesse ltimo caso, existe um deverde retroao. A mesma norma poderia ser

    expressa por meio de outros enunciados, como, por exemplo, "a lei penal retroagir somente

    em benefcio do ru", ou ainda " proibida a retroao penal, a menos que seja parabeneficiar o ru" etc. Como se v, a despeito das variaes na redao dos enunciados

    apresentados, por meio da interpretao de todos eles chega-se mesma norma. Toda

    norma , pois, produto da interpretao de um sinal lingstico, quase sempre um texto.38

    Diante da diferena entre texto e norma, o argumento de vila perde fora. A distino

    entre regras e princpios uma distino entre dois tipos de normase no entre dois tipos de

    textos. por isso que tanto as regras, quanto os princpios pressupem uma interpretao

    prvia. Isso no significa, contudo, que ambos tenham a mesma estrutura. Aps a

    interpretao em sentido estrito, uma regra jurdica j subsumvel, enquanto que os

    princpios ainda podero entrar em coliso com outros princpios, exigindo-se, nesse caso,

    35 Quando digo que Humberto vila no leva em considerao a distino entre texto e norma, no querodizer que ele a ignore ou rejeite. Muito pelo contrrio, ele a utiliza em seu trabalho e afirmacategoricamente: "no h identificao entre norma e texto." (cf. Humberto Bergmann vila, "A distinoentre princpios e regras", p. 171). Mas ainda que ele use essa distino para outros propsitos - parademonstrar que a regra da proporcionalidade no resulta de um texto especfico - passa ele ao largo dela,quando de sua crtica distino entre regras e princpios.

    36 Mesmo que a terminologia utilizada varie, exemplos da distino entre texto e norma podem serencontrados em: Alf Ross, Directives and Norms, 9 e ss., p. 34 e ss.; Christiane Weinberger / OtaWeinberger,Logik, Semantik, Hermeneutik, pp. 20 e 108; Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, p. 42; FriedrichMller, Juristische Methodik, pp. 122 e ss.; do mesmo autor, Strukturierende Rechtslehre, pp. 147 e ss. Emportugus, cf. sobretudo o recente trabalho de Eros Roberto Grau, Ensaio e discurso sobre ainterpretao/aplicao do direito, pp. 71 e ss.

    37 Cf. J.J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Fundamentos da constituio, p. 47. No caso da metdica de FriedrichMller, a norma no apenas o produto da interpretao do texto, j que essa apenas a parte inicial de umprocesso mais complexo. Cf. Friedrich Mller,Juristische Methodik, pp. 272 e ss. epassim.

    38 Mas no exclusivamente. Uma mesma norma pode ser expressa, por exemplo, mediante o texto "d a

    preferncia", bem como por um tringulo invertido, de contornos vermelhos e fundo branco, preso a umposte. Em ambos os casos, contudo, a norma s surge depois da interpretao.

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    que se proceda a um sopesamento para harmoniz-los. Assim, "ser passvel ou carente de

    interpretao" uma caracterstica de textos que exprimem tanto regras quanto princpios.

    Mas "ser passvel ou carente de sopesamento" caracterstica exclusiva dos princpios.

    Para que esse pensamento fique ainda mais solidificado, pode-se usar o seguinte

    exemplo: partindo-se da premissa de que o texto " vedado Unio, aos Estados, ao Distrito

    Federal e aos Municpios instituir impostos sobre livros, jornais, peridicos e o papel

    destinado a sua impresso" (CF art. 150, VI, d) expressa uma regra, e que o texto "so

    inviolveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas" (CF art. 5, X,

    primeira parte), um princpio, percebe-se com clareza que ambos carecem de interpretao.

    Poder ser discutido, por exemplo, se os termos jornais e peridicosabarcariam tambm os

    encartes de propaganda comercial distribudos juntamente com os jornais,39 da mesma

    forma que se poder discutir o significado de intimidade, vida privada, honra e imagem. Mas,

    depois que se chega a uma deciso acerca do significado dos primei-

    617|618

    ros (jornais e peridicos), j possvel, para se usar a expresso positivista de uso corrente na

    tradio jurdica brasileira, subsumir o fato norma e aplic-la ao caso concreto. No segundo

    caso, mesmo que se chegue a uma deciso sobre o significado dos termos intimidade, vida

    privada, honra e imagem, ainda assim pode no ser possvel proceder subsuno. Pode ser

    que outros princpios - principalmente a liberdade de expresso e de imprensa - sejam

    aplicveis ao mesmo caso concreto que, dessa forma, s poder ser solucionado aps um

    sopesamento entre os princpios envolvidos. Esse segundo passo - o sopesamento -

    caracterstico dos princpios.

    4. Deveres prima facie e deveres definitivos

    Inocncio Mrtires Coelho, com respaldo em Bergmann vila, sugere que a idia de

    coliso entre princpios no tem fundamento e que tal coliso s poder ser uma coliso

    aparente.40 O fundamento da afirmao simples: os princpios no possuem uma hiptese e

    39 Cf. RTJ 171, 336.40

    Cf. Inocncio Mrtires Coelho, "Constitucionalidade/inconstitucionalidade: uma questo poltica?", p. 56 ess.; Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras", p. 162, nota 48.

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    uma conseqncia abstratamente determinada; se no h conseqncia determinada, no h

    como haver coliso. Mas esse pressuposto falso, pois os princpios tm, sim, conseqncias

    abstratamente determinadas. A liberdade de expresso, por exemplo, um princpio que

    deve ser realizado na maior medida possvel, segundo as condies fticas e jurdicas

    presentes. Ou seja, a liberdade de poder se exprimir deve ser otimizada. Diante disso, fcil

    perceber que essa otimizao pode colidir com a otimizao do direito privacidade, que

    tambm um princpio. H, portanto, poucos indcios de que a coliso aqui seja apenas

    aparente.

    Segundo Bergmann vila, a coliso aparente porque o problema que surge na

    aplicao dos princpios "reside muito mais em saber qual dos princpios ser aplicado e qual

    a relao que mantm entre si."41 Com tal afirmao quer-se dizer algo como "depois de

    resolvida, a coliso revelou-se apenas aparente". Ora, nesse sentido, todas as colises so

    aparentes, exceo feita s irresolveis. O problema em questo, antigo no mbito da

    filosofia moral,42 mais

    618|619

    complexo e merece ser discutido com um pouco mais de detalhe. Trata-se da distino entre

    deveresprima faciee deveres definitivos.

    O exemplo mais recorrente para ilustrar essa distino o seguinte: Joo promete ir

    festa de aniversrio de seu amigo Jos. Entrementes fica Joo sabendo que seu outro amigo,

    Jorge, est extremamente doente e precisa de sua ajuda. Para Joo, tanto quanto cumprir as

    promessas feitas, ajudar um amigo tambm um dever. Nesse caso concreto, contudo, no

    possvel cumprir ambos os deveres. Aps ponderao, decide Joo ajudar seu amigo doente e

    no ir festa de Jos. Isso no significa, porm, que "cumprir promessas" tenha deixado de

    ser um dever para Joo. A constelao aqui simples e clara: tanto o dever de cumprir

    promessas, como o dever de ajudar os amigos, so deveres prima facie. Isso significa que,

    diante das possibilidades do caso concreto, o dever pode no se revelar um dever definitivo,

    realizvel. No caso concreto, o dever definitivo aquele que produto de uma ponderao41 Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras", p. 163, nota 18 (continuao).42 Cf., por exemplo, ainda que com variaes tericas, W.D. Ross, The Right and the Good, pp. 19 e ss. e 30 e ss.;

    Richard M. Hare, Moral Thinking, pp. 27 e ss. e 38 e ss.; Kurt Baier, The Moral Point of View, pp. 102 e ss.;John Searle, "Prima Facie Obligations", pp. 84 e ss.; Bernard Williams, "Conflict of Values", pp. 73 e ss.

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    ou sopesamento e que expresso por uma regra com a seguinte redao: "Em situaes

    como a do tipo S1, o dever de ajudar os amigos tem prioridade em face do dever de manter

    promessas".43A coliso entre ambos os deveres, como se v, no apenas aparente, mas real.

    Nesse exemplo simplrio, pode-se dizer que a deciso fcil. Isso, contudo, no suaviza a

    coliso que existe entre dois deveresprima facie.

    No tambm difcil de se perceber que a situao descrita no exemplo a mesma que

    ocorre com a coliso de direitos fundamentais. A caracterstica que distingue princpios e

    regras no a existncia de uma "conseqncia determinada" ou de "vagueza". A diferena

    de outra natureza: regras expressam deveres definitivos, enquanto princpios expressam

    deveresprima facie.44

    5. Mandamentos de otimizao

    Humberto vila rejeita tambm a idia de princpios como mandamentos de

    otimizao, pois, segundo ele, nem sempre os princpios devem ser realizados

    619|620

    "na mxima medida".45 Para demonstrar sua tese, Bergmann vila sugere que as colises

    entre princpios sejam classificadas em quatro categorias distintas:

    (1) a realizao do fim institudo por um princpio leva realizao do fim determinado

    pelo outro: nesse caso, no haveria que se falar em mxima medida, mas somente em

    realizao na medida necessria.

    (2) a realizao do fim institudo por um exclui a realizao do fim determinado pelo

    outro: nesse caso, o problema s poderia ser solucionado com a rejeio de um dos

    princpios. Esse tipo de coliso seria, segundo ele, semelhante aos casos de conflito entre

    43 Cf. Klaus Gnther,Der Sinn fr Angemessenheit, p. 261.44 Isso no significa dizer que seja complicado ou quase impossvel "reconhecer um direito subjetivo por

    aplicao direta de um princpio", como sustenta Walter Claudius Rothenburg, Princpios constitucionais, p.25. O fato de os princpios expressarem deveres "apenas" prima facie faz somente com que os direitosassegurados sejam tambm prima facie. Independente do que Rothenburg queira dizer com aplicao direta,o fato que quase todos os direitos fundamentais tm estrutura de princpios e, mesmo assim, asseguramdiretamentedireitos subjetivos. Sobre a distino entre deveres prima facie e deveres definitivos no mbitojurdico, cf., por exemplo, Jan-Reinard Sieckmann, Regelmodelle und Prinzipienmodelle des Rechtssystems, p. 79;

    Martin Borowski, Grundrechte als Prinzipien, p. 73.45 Cf. Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras", p. 163

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    regras.46 Isso o leva a afirmar que "a diferena no est no fato de que as regras devem ser

    aplicadas 'no todo' e os princpios s na 'mxima medida'. Ambas as espcies de normas devem

    ser aplicadas de modo que o seu contedo de dever ser seja realizado totalmente."47

    (3) a realizao do fim institudo por um s leva realizao de partedo fim determinado

    pelo outro.

    (4) a realizao do fim institudo por um no interferena realizao do fim buscado pelo

    outro.

    Examinemos as quatro categorias propostas por Humberto vila com um pouco mais

    de ateno. Salta aos olhos, logo de incio, que apenas a segunda delas configura uma colisode princpios. Nas outras trs hipteses, simplesmente no h coliso. Ora, se no h coliso

    entre princpios, as condies jurdicaspara a sua otimizao so ideais e nada impede que

    eles sejam realizados na mxima medida. Como vila no desenvolve a idia presente nas

    duas ltimas categorias, apesar de as ter classificado como hipteses de coliso entre princpios,

    discutirei apenas as duas primeiras.

    620|621

    No caso da primeira das categorias, no se pode dizer que o simples fato de que a

    realizao de um princpio leve realizao de outro implicaria, como afirma vila, que o

    primeiro deva ser realizado apenas na medida necessria realizao do fim institudo pelo segundo.

    Essa afirmao pressupe no somente que o primeiro princpio exista exclusivamente em

    funo do segundo, mas, alm disso, que o primeiro seja apenas um instrumento para a

    realizao do segundo. Como Humberto vila no fornece exemplos, no fcil imaginar a

    que tipo de situao ele quis se referir. E fica difcil sustentar que o primeiro princpio sejarealmente um princpio.

    As duas idias subjacentes segunda categoria merecem uma anlise mais atenta, feita

    nos tpicos a seguir.

    46

    Cf., sobre esse argumento, o tpico 5.2, abaixo.47 Cf. Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras", p. 164.

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    5.1 Coliso total de princpios

    Como visto acima, Humberto vila - no que seguido por Mrtires Coelho - 48 afirma

    que, quando a realizao do fim institudo por um princpio exclui a realizao do fim

    determinado por outro, o problema s poderia ser solucionado com a rejeio de um dos

    princpios. Esse tipo de coliso seria, ainda segundo vila, semelhante aos casos de conflito

    entre regras.49 Com base no que foi visto na parte expositiva deste artigo, 50 no h como

    sustentar tal argumento. No caso de conflito total entre regras, uma delas, necessariamente,

    dever ser declarada invlida, j que ambas no podem conviver no mesmo sistema. No caso

    em que Humberto vila classifica como coliso total entre princpios, a hipottica no-

    realizao de um princpio em nada se aproxima soluo dada ao conflito entre regras, jque o princpio afastado no declarado invlido e, por isso, no deixa de pertencer ao

    ordenamento jurdico.51 O que ocorre uma simples impossibilidade de aplicao de um dos

    princpios para a soluo de um problema concreto, o que no significa que, em outros casos,

    o mesmo princpio afastado no

    621|622

    possa ser aplicado e, mais importante, que no possa at mesmo prevalecer quele princpio

    que, no primeiro caso, prevaleceu a ele.

    No faltam exemplos para demonstrar que a rejeio da aplicao de um princpio em

    um caso concreto no se assemelha a trat-lo como "no pertencente ao ordenamento

    jurdico", como afirma Mrtires Coelho. Assim, se um juiz probe a publicao de um

    determinado livro, por entend-lo incompatvel com a proteo constitucional honra de

    algum, isso no significa que a liberdade de expresso tenha sido tratada como "no

    pertencente ao ordenamento jurdico". Ao contrrio, o juiz s pode decidir pela prevalnciade um princpio sobre outro se pressupor que ambos fazem - e continuaro a fazer - parte do

    ordenamento jurdico.Prevalecerno se confunde, portanto, compertencer.

    48 Cf. Inocncio Mrtires Coelho, "Constitucionalidade/inconstitucionalidade: uma questo poltica?", p. 59.49 Cf. Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras", p. 163.50 Cf. tpico 1, acima.51 Mrtires Coelho afirma que, nesses casos, a aplicao de determinado princpio afastaria os outros,

    eventualmente colidentes, como no pertencentes ao mesmo ordenamento jurdico. Cf. Inocncio Mrtires Coelho,"Constitucionalidade/inconstitucionalidade: uma questo poltica?", p. 59.

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    5.2 Realizao "no todo" e realizao "na mxima medida"

    Como visto acima, Humberto vila afirma que "a diferena [entre regras e princpios]

    no est no fato de que as regras devem ser aplicadas 'no todo' e os princpios s na 'mxima

    medida'. Ambas as espcies de normas devem ser aplicadas de modo que o seu contedo de

    dever ser seja realizado totalmente."52Diante de tudo o que j foi visto acima, e diante da

    existncia, na prtica, das mais variadas colises entre princpios, fica difcil afirmar que o

    "contedo de dever-ser" dos princpios ter que ser sempre realizado totalmente. Como o

    prprio vila reconhece, e como j visto acima, os princpios expressam deveres prima facie.

    Na aplicao concreta deles, contudo, o dever definitivo poder diferir do dever prima facie

    expressado pelos princpios isoladamente considerados. Aquele dever definitivo ter, sim,que ser realizado "no todo", mas isso no significa que a distino entre regras e princpios

    seja afetada, pois no "o contedo de dever-ser" dos princpiosque estar sendo realizado "no

    todo", mas somente o "contedo de dever-ser" de uma regra que ter surgido como produto

    do sopesamento entre os princpios colidentes e que, frise-se, valer somente para aquele

    caso concreto ou para casos cujas possibilidades fticas e jurdicas sejam idnticas. O dever

    que os princpios expressam continuar sendo um dever apenasprima facie, a ser realizado na

    medida tima diante das possibilidades fticas e jurdicas de cada caso concreto.

    Se usarmos o mesmo exemplo da proibio de um livro, acima mencionado, teramos a

    seguinte constelao: de um lado, temos a liberdade de expresso,

    622|623

    que deve ser realizada na mxima medida dentro das condies fticas e jurdicas existentes

    ( esse o seu "contedo de dever-ser", o seu dever prima facie); do outro lado, temos o direito

    honra, que tambm deve ser realizado na mxima medida dentro das condies fticas ejurdicas existentes (esse o seu "contedo de dever-ser"). No caso concreto, aps

    sopesamento entre ambos, diante das condies fticas e jurdicas, chegou-se concluso de

    que, dadas as condies x, y e z, presentes no caso concreto, o direito honra deveria

    prevalecer sobre a liberdade de expresso. Desse procedimento de ponderao ou

    sopesamento resulta uma regra, aplicvel ao caso concreto, cujo enunciado seria: "dadas as

    52 Cf. Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras", p. 164.

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    condies x,y e z, o direito honra prevalece sobre a liberdade de expresso".53 essa regra

    que dever ser realizada "no todo". Mas ela no se confunde com o "contedo de dever-ser"

    dos princpios, j que aplicvel somente no caso concreto. O "contedo de dever-ser" dos

    princpios continua sendoprima faciee, por isso, realizvel em medidas diversas.

    6. A liberdade estrutural

    Ana Paula de Barcellos indica dois critrios suplementares para a distino entre regras

    e princpios: o primeiro relaciona-se indeterminao de seus efeitos e o segundo refere-se

    multiplicidade de meios para atingi-los.54 Com relao ao primeiro critrio, valem as

    consideraes feitas acima, visto que ele em muito se assemelha quilo que Humberto viladefende. Neste tpico discutirei, por isso, apenas o segundo. A autora diz:

    "Alm dessa indeterminao dos efeitos naquilo que transborda o ncleo essencial doprincpio, h ainda uma segunda distino entre princpios e regras. Ela consiste em que,muitas vezes, ainda que o efeito pretendido por uma norma seja determinado [...], osmeios para atingir tal efeito so mltiplos."55

    623|624

    Para exemplificar essa caracterstica, a autora usa a norma constitucional sobre o pleno

    emprego. Ainda que essa norma seja bastante clara quanto aos efeitos pretendidos - que

    todos tenham emprego -, fato que isso pode ser alcanado de diversas maneiras, como, por

    exemplo, por meio da abertura de frentes de trabalho ou do incentivo a pequenas e mdias

    empresas, dentre tantas outras.56 Essa existncia de vrios meios para atingir o fim

    pretendido pela norma seria, segundo Ana Paula de Barcellos, uma caracterstica dos

    princpios.

    Esse fato no , todavia, uma caracterstica dos princpios, mas de qualquer norma que

    no imponha uma omisso, mas uma ao, uma prestao ou o alcance de uma finalidade.

    53 Se se substitui direito honra por P1, liberdade de expresso por P2 e as condies x, y e zpor C, tem-se afrmula proposta por Alexy, vista acima: (P1 P P2) C, que significa que o primeiro princpio (P1) prevalecesobre o segundo (P2), se presentes o conjunto de condies C. Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, p.83.

    54 Cf. Ana Paula de Barcellos,A eficcia jurdica dos princpios constitucionais, pp. 52 e ss.55

    Ana Paula de Barcellos,A eficcia jurdica dos princpios constitucionais, p. 54.56 Cf. Ana Paula de Barcellos,A eficcia jurdica dos princpios constitucionais, p. 55.

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    Um exemplo bastante difundido para ilustrar essa diferena estruturalentre esses dois tipos de

    imposies utiliza-se da contraposio entre matar e salvar.57 De um lado, a proibio de

    matar impe uma omisso: no matar. Isso implica a vedao de todosos atos que tenham

    como conseqncia a morte de algum. Do outro lado, a imposio de salvamento no

    implica a realizao de todos os atos possveis para salvar algum. A estrutura da imposio,

    nesse caso, disjuntiva. Assim, se uma pessoa est se afogando e possvel salv-la (1)

    lanando a ela uma bia de salvamento, (2) nadando at a ela e trazendo-a borda ou ainda

    (3) chamando o salva-vidas, apenas uma dessas condutas devida, no todas.58 Aquele que

    deve salvar tem, por isso, uma liberdade de ao que decorre da prpria estrutura do comando.59

    Se examinarmos as normas de direitos fundamentais, veremos que quase todas elas

    impem tanto uma omisso quanto uma ao. A liberdade de imprensa, por exemplo, impe

    tanto omisses - a no-existncia de censura, por exemplo - quanto aes - a garantia de uma

    imprensa plural, com o combate a

    624|625

    monoplios, poderia ser uma delas. O mesmo vale para o direito vida, j que o Estado deve

    abster-se de matar - vedao da pena de morte, por exemplo - e, ao mesmo tempo, garantir

    que a vida dos cidados no seja ameaada, criando e mantendo, para isso, aparatos policial e

    judicial eficientes, ou elaborando leis penais eficazes, dentre outros.

    A "multiplicidade de meios para atingir efeitos pretendidos", citada por Ana Paula de

    Barcellos, , portanto, uma caracterstica apenas parcial dos princpios, ou seja, ela somente

    aplicvel ao mbito positivo deles, no estando presente no seu aspecto meramente negativo,

    conhecido como "direito de defesa". Isso fica ainda mais claro nos casos de direitos

    fundamentais que so precipuamente direitos de defesa, como o caso da liberdade de

    manifestao do pensamento. Nesse caso, ainda que se trate de um princpio, no h que se falar

    57 Cf. Robert Alexy, "Grundrechte als subjektive Rechte und als objektive Normen", pp. 278 e s.58 Essa estrutura fica bastante clara nas formalizaes lgicas. Frmulas conjuntivas, como p q, so

    somente verdadeiras se tantop quanto qforem falsos. J as frmulas disjuntivas, comopq, so verdadeirasse (1) p for verdadeiro, (2) q for verdadeiro ou (3) p e q forem verdadeiros. Cf., a esse respeito, RudolfCarnap, Einfhrung in die symbolische Logik, mit besonderer Bercksichtigung ihrer Anwendung, p. 17.

    59 Essa liberdade estrutural um dos argumentos usados contra uma tendncia crtica teoria dos princpios,segundo a qual a definio dos princpios como mandamentos de otimizao eliminaria qualquer liberdade

    do legislador para definir meios para atingir os fins almejados. Cf., sobre essa tendncia crtica e sobre outrosargumentos contra ela, Virglio Afonso da Silva, Grundrechte und gesetzgeberische Spielrume, pp. 123-135.

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    em "multiplicidade de meios para atingir os efeitos pretendidos". E se essa caracterstica no

    uma caracterstica imprescindvel dos princpios, no pode ela ser usada como critrio para

    distingui-los das regras.

    7. A teoria estruturante do direito e a distino entre princpios e regras

    A inteno deste artigo foi esclarecer alguns pontos polmicos na recepo da discusso

    sobre regras e princpios no Brasil. Espero ter atingido o objetivo proposto e ter colaborado

    para que a discusso continue. Para isso, nada mais fundamental do que dissenso. Como

    concluso, ficam algumas poucas palavras sobre um fenmeno que, no Brasil, vem ganhando

    propores cada vez maiores, fenmeno que eu chamaria de "sincretismo metodolgico".Esse sincretismo metodolgico, em termos simples, consiste na adoo de teorias incompatveis,

    como se compatveis fossem.60 Como exemplo desse fenmeno, pode ser

    625|626

    mencionada, para manter-me dentro do tema deste artigo, a recepo da distino entre

    regras e princpios e a recepo da chamada teoria estruturante do direito, difundida no

    Brasil por meio da obra de Friedrich Mller. Um dos traos fundamentais da teoria de

    Mller a separao entre programa da norma e mbito da norma, separao que visa, nas

    palavras do prprio Mller, a superar a concepo positivista segundo a qual a aplicao do

    direito seria um mero processo de subsuno do fato a uma norma preexistente a esse

    mesmo fato. Segundo o autor, isso no passa de uma iluso, j que a norma no existe antes

    do confronto com os fatos.61 Mais do que descer a detalhes da teoria estruturante do direito,

    o que aqui interessa salientar uma de suas principais conseqncias: a rejeio expressa do

    sopesamento como mtodo de aplicao do direito. Segundo o prprio Mller, o sopesamento ummtodo irracional, uma mistura de "sugestionamento lingstico", "pr-compreenses mal

    60 Um exemplo bastante acentuado de sincretismo metodolgico no campo da distino entre regras eprincpios pode ser encontrado na obra de Ruy Samuel Espndola, Conceito de princpios constitucionais, p. 252e passim. O autor critica a doutrina brasileira sobre princpios por no se utilizar dos "clssicosprincipialistas" (sic), como Boulanger, Dworkin, Alexy, Canaris, Esser, Luhmann, Larenz, Mller, Krawietz,Zagrebelsky, Crisafulli, Enterra, Scheuner, Engisch e Ross. O prprio Espndola, entretanto, no s no seutiliza de obras de quase nenhum deles, como tambm no explica como compatibilizar autores todspares, muitos dos quais, a despeito de serem por ele chamados de "clssicos principialistas", nunca sededicaram a construir uma teoria sobre princpios constitucionais. Como se ver no seguimento do texto, as

    teorias de alguns desses autores - principalmente Alexy e Mller - no so compatveis entre si.61 Cf. Friedrich Mller,Juristische Methodik, p. 268.

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    esclarecidas" e "envolvimento afetivo em problemas jurdicos concretos", cujo resultado no

    passa de mera suposio.62

    A distino entre regras e princpios, como foi visto, tem como uma de suas principaiscaractersticas exatamente a exigibilidade de sopesamento de princpios como forma de aplic-los.

    Como explicar, porm, que ambas as teorias, a despeito de serem incompatveis, sejam

    defendidas, no Brasil, como se complementares fossem?63Responder a essa pergunta tarefa

    difcil, j que no se costuma deixar clara a forma de harmonizar ambas as teorias, sendo elas

    apenas apresentadas, ficando apenas implcito o carter complementrio delas.64 Mas no

    poss-

    626|627

    vel discutir esse problema de forma rpida e superficial neste fim de artigo, pois, como se v,

    no so poucos que se alinham pela complementaridade entre as teorias citadas. Uma

    resposta a essas questes exige a anlise de outras manifestaes do chamado "sincretismo

    metodolgico". Voltarei a esse tema em trabalho futuro.65

    62 Cf. Friedrich Mller, Strukturierende Rechtslehre, S. 209. Para uma anlise um pouco mais detalhada da crticade Friedrich Mller - e tambm das de Habermas, Bckenfrde e Schlink - racionalidade do sopesamento,cf. Virglio Afonso da Silva, Grundrechte und gesetzgeberische Spielrume, 89-102.

    63 No so poucos os autores, no Brasil, que defendem ambas as teorias simultaneamente. Cf., por exemplo,Fbio Konder Comparato, "O Ministrio Pblico na defesa dos direitos econmicos, sociais e culturais",texto apresentado noXVIII Encontro Nacional dos Procuradores da Repblica; Paulo Bonavides, Curso de direitoconstitucional, pp. 247 e ss.; Eros Roberto Grau, Ensaio e discurso sobre a interpretao/aplicao do direito, pp. 64e ss. e 172 e ss.; Luiz Vergilio Dalla-Rosa, Uma teoria do discurso constitucional, pp. 222 e ss. e 230. No mbitoforense, cf. a petio inicial da ADC 9-6 (racionamento de energia), elaborada pelo ento Advogado Geral daUnio, Gilmar Ferreira Mendes (cf. pp. 106 e ss. para uma defesa da separao entre mbito da norma eprograma da norma - tese de Mller -, e pp. 111 e ss. para uma argumentao com base naproporcionalidade e na ponderao como forma de solucionar colises entre princpios - tese de Alexy).

    64 Uma exceo parece ser Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituio, p. 1038, que se dedica,expressamente, construo do direito constitucional "com base numa perspectiva 'principialista' (baseado emprincpios), perspectiva esta inspirada em Dworkin e Alexy, mas com aberturas para as concepessistmicas e estruturantes (sentido de Luhmann e de Mller)". Difcil saber se essa tarefa realizvel. Pelomenos no que diz respeito a uma teoria sobre as normas de direitos fundamentais e de sua aplicao,entendo que no, como tentei, em breves palavras, deixar claro acima. A mesma incompatibilidade entreteorias sobre as normas de direitos fundamentais existe entre as concepes de Alexy, de um lado, eHabermas e Gnther, de outro. Cf., sobre essa incompatibilidade, Jrgen Habermas, Faktizitt und Geltung,pp. 310 e ss. e Robert Alexy, "Jrgen Habermas's Theory of Legal Discourse", Cardozo Law Review 17 (1996),especialmente p. 1030. Idia contrria, isto , pela compatibilidade dessas teorias, fica implcita empassagem de Eros Roberto Grau,Ensaio e discurso sobre a interpretao/aplicao do direito, pp. 172 e ss.

    65 Cf. Virglio Afonso da Silva, "Interpretao constitucional e sincretismo metodolgico", in Virglio Afonso da

    Silva (org.), Interpretao constitucional, no prelo, a ser publicado ainda no primeiro semestre de 2003, pelaEditora Malheiros, de So Paulo.

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