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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras VISÕES CALEIDOSCÓPICAS DA MEMÓRIA EM LYGIA FAGUNDES TELLES E NÉLIDA PIÑON Maria Inês de Moraes Marreco Belo Horizonte 2011

VISÕES CALEIDOSCÓPICAS DA MEMÓRIA EM LYGIA … · Às minhas filhas, genros e netas, por estarem ao meu lado todo o tempo, apoiando, ... somamos o desejo de buscar o que já se

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Letras

VISÕES CALEIDOSCÓPICAS DA MEMÓRIA

EM LYGIA FAGUNDES TELLES E NÉLIDA PIÑON

Maria Inês de Moraes Marreco

Belo Horizonte

2011

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MARIA INÊS DE MORAES MARRECO

VISÕES CALEIDOSCÓPICAS DA MEMÓRIA

EM LYGIA FAGUNDES TELLES E NÉLIDA PIÑON

Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em

Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, como requisito parcial para obtenção do

título de Doutor em Literaturas de Língua

Portuguesa.

Orientador: Profª Drª Suely Maria de Paula e Silva

Lobo.

BELO HORIZONTE

2011

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Marreco, Maria Inês de Moraes M358v Visões caleidoscópicas da memória em Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon

/ Maria Inês de Moraes Marreco. Belo Horizonte, 2011. 211f. Orientadora: Suely Maria de Paula e Silva Lobo Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. 1. Memória na literatura. 2. Telles, Lygia Fagundes, 1923- 3. Piñon, Nélida,

1938-. I. Lobo, Suely Maria de Paula e Silva. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81)-94

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Maria Inês de Moraes Marreco

Visões caleidoscópicas da memória em Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon

Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em

Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, como requisito parcial para obtenção do

título de Doutor em Literaturas de Língua

Portuguesa.

..............................................................................................................................

Profª Drª Suely Maria de Paula e Silva Lobo (Orientadora) – PUC Minas

..............................................................................................................................

Profª Drª Constância Lima Duarte - UFMG

............................................................................................................................

Prof. Dr. Elcio Loureiro Cornelsen - UFMG

............................................................................................................................

Profª Drª Maria Miquelina Barra Rocha - UFMG

...........................................................................................................................

Profª Drª Melânia Silva de Aguiar – PUC Minas

Belo Horizonte, 30 de novembro de 2011.

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HOMENAGEM

Ao meu marido, José Carlos,

... minha vida

todos os dias

até o último

instante.

In memoriam.

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DEDICATÓRIA

À minha “rara” família: Giovana e Justino, Juliana e Mauro, Rosana e

Marco Aurélio, pelo apoio e carinho, e às minhas netas, Laura e Bruna, que ao

me tornarem avó fizeram-me entrar na aurora.

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AGRADECIMENTOS

“If I have seen farther than the others it is because I was standing on the shoulders of giants”.

Isaac Newton

A todos que, de certa forma, contribuíram para a elaboração deste trabalho, os meus

sinceros agradecimentos. Que neste registro, não pareça, pois, que eles obedecem a uma

ordem de importância. Entretanto, não seria possível deixar de me dirigir em primeiro lugar à

Professora Dra. Suely Maria de Paula e Silva Lobo, orientadora e amiga, pelo constante

estímulo, pela paciência, pela compreensão, por suas imprescindíveis e preciosas observações

e pelas colocações sempre esclarecedoras.

Aos membros da banca de qualificação: Professora Dra. Constância Lima Duarte e

Professor Dr. Johnny José Mafra, pelas observações, críticas e sugestões, pela clareza e

sabedoria de suas exposições. Podem estar certos de que todas elas foram de valor

inestimável.

Às minhas filhas, genros e netas, por estarem ao meu lado todo o tempo, apoiando,

incondicionalmente, todas as minhas decisões e à minha irmã, Mariza, amiga de todas as

horas, em quaisquer circunstâncias.

Às amigas com quem compartilhei ideias durante o período do desenvolvimento desta

pesquisa, em especial, Ana Caroline Barreto Neves, Iara Christina Silva Barroca, Maria do

Rosário Alves Pereira e Maria Lúcia Barbosa.

Às secretárias do Programa de Pós-Graduação em Letras, Vera Lúcia Mageste Salles

Alves, Berenice Viana de Faria e Rosária Helena de Andrade, de cuja cordialidade e atenção

sempre me senti alvo.

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RESUMO

Este trabalho, ao analisar os romances As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles e A doce

canção de Caetana, de Nélida Piñon, procura explicitar, numa visão caleidoscópica, o reflexo

das diversas ramificações que este percurso pode gerar: a da memória, a do esquecimento, a

do tempo, a da ilusão, a da imaginação, a do teatro e a da representação. Focaliza a linguagem

como responsável pela articulação formal e duradoura da memória na vida social. Objetiva o

registro da convivência da arte literária com a esperança e a ilusão de uma realidade que se

imagina e se interpreta, investigando as múltiplas faces da objetividade/subjetividade, num

jogo de percepções que se efetuam no campo da linguagem. Focaliza o mundo do teatro do

ponto de vista da realidade e das transformações, quando lidam com a imaginação e o mundo

performático do espaço teatral. Demonstra ainda, a contribuição de Lygia Fagundes Telles e

Nélida Piñon à literatura, fazendo de cada um dos seus textos, presença marcante no mundo

de seus leitores.

Palavras-chave: Lygia Fagundes Telles. Nélida Piñon. Memória. Ilusão. Teatro.

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ABSTRACT

By analyzing the novel As horas nuas by Lygia Fagundes Telles and A doce canção de

Caetana by Nélida Piñon in a kaleidoscopic vision, this work intends to register the multiple

reflections of the various branches that the study of memory can generate, such as those

concerning forgetfulness, time, illusion, imagination, theatre and performance. It focuses on

language as the element which is responsible for the formal and lasting articulation of

memory in social life. It also registers the coexistence of literary arts, hope and illusion as a

kind of reality that is imagined and interpreted by researching into the multiple facets of

objectivity/subjectivity in a significant game taking place between perception and language. It

also focuses the theatre’s world from the point of view of reality and transformations on

leading with imagination and performance. It shows yet the contribute of Lygia Fagundes

Telles and Nélida Piñon to literature and readers.

Key-words: Lygia Fagundes Telles. Nélida Piñon. Memory. Illusion. Theatre.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................10 2 LYGIA FAGUNDES TELLES E NÉLIDA PIÑON: PERCURSOS.. ............................16 2.1 Lygia Fagundes Telles ......................................................................................................17 2.1.1 As horas nuas..................................................................................................................30 2.1.2 As personagens ...............................................................................................................31 2.1.3 Entrevistas de Lygia Fagundes Telles ...........................................................................33 2.1.4 Antologias .......................................................................................................................33 2.1.5 Materiais especiais (Documentários/Programas de TV)...............................................34 2.2 Nélida Piñon ......................................................................................................................35 2.2.1 A doce canção de Caeatana............................................................................................48 2.2.2 As personagens ...............................................................................................................51 2.2.3 Entrevistas de Nélida Piñon ...........................................................................................53 2.2.4 Antologias .......................................................................................................................53 2.2.5 Materiais especiais (Documentários/Programas de TV)...............................................54 3 A MEMÓRIA E O TEMPO ...............................................................................................56 3.1 Memória: um diálogo entre o discurso mnemônico e os registros da linguagem.......60 3.2 Estruturas do tempo na literatura ..................................................................................71 3.2.1 Mensuração ....................................................................................................................72 3.2.2 Ordem e direção..............................................................................................................74 3.2.3 Associações significativas...............................................................................................76 3.2.4 O tempo e o eu com relação ao passado ........................................................................80 3.3 A memória coletiva...........................................................................................................96 3.3.1 Memória e esquecimento..............................................................................................103 3.3.2 A importância da memória coletiva .............................................................................108 3.3.3 Imaginação ...................................................................................................................110 3.3.4 Esquecimento................................................................................................................112 4 O ESPETÁCULO DA ILUSÃO.......................................................................................126 4.1 Do real ao imaginário.....................................................................................................134 4.3 A imperiosa necessidade de rejeitar o real...................................................................137 4.4 O mundo e seu duplo......................................................................................................139 4.5 No bosque da ilusão........................................................................................................140 4.5.1 Ilusão: elemento fundamental da vida ........................................................................143 4.5.2 A arte cênica e a ilusão.................................................................................................147 4.5.3 A ilusão e o ufanismo ...................................................................................................149 5 MUNDOS POSSÍVEIS .....................................................................................................154 5.1 O que é o teatro?.............................................................................................................156 5.2 Da representação para a atuação..................................................................................158 5.3 A relação ternária...........................................................................................................160 5.4 O teatro livre: do happening à performance.................................................................163 5.5 A improvisação como recurso teatral ...........................................................................165 5.5.1 Elementos da improvisação no teatro ..........................................................................165 5.5.2 O eu-com-outro.............................................................................................................169 5.5.2.1 – O texto teatral ........................................................................................................169 5.5.2.2 O ator .........................................................................................................................172

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5.5.2.3 O público ...................................................................................................................175 5.6 A literatura da cena........................................................................................................177 5.6.1 Principais sistemas de signos teatrais ..........................................................................178 5.7 Entre a verdade e a mentira ..........................................................................................185 6 CONCLUSÃO....................................................................................................................189 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................191 ANEXOS ...............................................................................................................................201

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1 INTRODUÇÃO

A escolha do título deste trabalho: “Visões caleidoscópicas da memória em Lygia

Fagundes Telles e Nélida Piñon”, se justifica pelo fato de termos visto na amplitude do tema

escolhido, uma extensa gama de reflexos e caminhos que poderiam nos nortear no

desenvolvimento de nossa pesquisa.

O caleidoscópio pode ser descrito como um tubo maravilhoso que as crianças de hoje

quase desconhecem, com seus pedacinhos de vidro colorido e o seu jogo de espelhos,

produzindo a cada movimento combinações de cores e formas, variáveis até o infinito. Para

José Saramago, “... a nossa memória também pode ser assim... manipula as recordações,

organiza-as, compõe-nas, recompõe-nas, e é, dessa maneira, em dois instantes seguidos, a

mesma memória e a memória que passou a ser”.

De acordo com Antonio Houaiss, o caleidoscópio é um:

Artefato óptico que consiste num pequeno tubo cilíndrico no fundo do qual há pequenos pedaços coloridos de vidro ou de outro material, cuja imagem é refletida por espelhos dispostos ao longo do tubo, de modo que quando se movimenta o tubo ou esses pedaços, formam-se imagens coloridas múltiplas, em arranjos simétricos. [...] artefato semelhante e que emprega o mesmo princípio óptico de reflexão, no qual o jogo ou a combinação de imagens se produz por reflexos de objetos exteriores ao tubo. [...] sucessão vertiginosa, cambiante, de ações, sensações, etc. (HOUAISS, 2004. p.575)

Cada vez que se movimenta o pequeno tubo que contém um caleidoscópio, tem-se a

fascinante experiência de vislumbrar um jogo coreográfico de diferentes formas,

cuidadosamente ordenadas. A cada novo movimento mais se percebe que a formação

daqueles arranjos simétricos, refletidos no pequeno espelho no fundo do tubo, depende do

gesto preciso e delicado das mãos que o manuseiam. A partir dessa observação conclui-se

que, um caleidoscópio pouco significa longe de um agente que o movimente. Parado, esse

tubo de formas mágicas nada mais é do que um amontoado de vidros coloridos.

A imagem do caleidoscópio pode, pois, servir como metáfora do texto escrito e o

espetáculo das formas, como metáfora da leitura. O texto escrito constitui-se, neste caso, dos

romances As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles e A doce canção de Caetana, de Nélida

Piñon. O espetáculo das formas reflete as diversas ramificações que o estudo desses textos

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pode gerar: a memória, o esquecimento, o tempo, a ilusão, a imaginação, o teatro, a

representação, etc. O que seria do caleidoscópio sem suas formas magistrais? Logo, o que

seria de um texto sem suas leituras variadas?

Leyla Perrone-Moisés, no posfácio de Aula, de Roland Barthes, afirma que A aula

inaugural, de Barthes pode ser vista “como um prisma ou um caleidoscópio”: “... se algumas

cores e certas formas recorrentes sustentam a unidade do conjunto, as astutas oscilações da

enunciação tornam essas formas e cores imperceptivelmente movediças, fazendo variar as

figuras, como no caleidoscópio.” (MOISÉS, 1978, p.55)

Observa-se que a obtenção das formas simétricas é produto da ação do autor, assim

como, a interpretação do texto é produto da ação do leitor, transformando, dessa forma, esse

leitor em partícipe dos movimentos de um jogo em que as “peças” da memória se juntam e se

afastam, bastando um “ligeiro movimento” no caleidoscópio para que sua lente focalize

aquilo que se deseja focalizar.

A percepção aguçada e a habilidade do jogo narrativo das escritas de Lygia Fagundes

Telles e Nélida Piñon é como a multifacetada lente de um caleidoscópio, constrói e destrói

num mesmo movimento a conturbada corrente da consciência, desvela o comportamento

humano, mergulhando nos labirintos da alma, vivência e sofrimento das opressões, aceita

fragilidades e a complexidade das relações familiares, amorosas e os processos de adaptação à

sociedade, à velhice e à discriminação. A essa percepção, somamos o desejo de buscar o que

já se perdeu pela lembrança, e de, através da linguagem, voltar ao passado e trazê-lo ao

presente, direcionando-o ao futuro.

“Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não

existimos, sem responsabilidades talvez não mereçamos existir.” (SARAMAGO, 1995, p.13)

Daí, a necessidade de, paralelamente, apontar para o estudo do tempo, já que a

memória precisa de datas. Alfredo Bosi fala: “... da relação inextricável entre o

acontecimento, que elas fixam com sua simplicidade aritmética, e a polifonia do tempo social,

do tempo cultural, do tempo corporal, que pulsa sob a linha de superfície dos eventos.”

(BOSI, 1992, p.19)

Embora não tenhamos o intuito de esgotar as questões referentes a especificidades do

estudo da memória e do tempo, não deixaremos de levá-las em conta. Essas especificidades

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serão consideradas, então, ao tomarmos como suporte teórico conceitos relevantes para o

assunto, tais como são discutidos por Alfredo Bosi, Frances Yates, Hans Meyerhoff, Lucília

de Almeida Neves Delgado, Franklin Leopoldo Silva, Walter Benjamin, Henri Bergson, Lúcia

Castello Branco, Maurice Halbwachs, Andreas Huyssen, Jacques Le Goff, Paul Ricoeur, Ivan

Domingues, dentre outros.

Para Nélida Piñon, o tempo do ser humano poderia ser visto como uma constante

procura da satisfação dos desejos e da construção das representações, subtraindo-se, o quanto

puder, às sensações dolorosas e às verdades duras e amargas. Já Lygia Fagundes Telles se

vale de um truque inusitado que resulta admirável, instaurando em sua narrativa um viés

surrealista: a intromissão de um gato-narrador ou um narrador-gato.

Numa segunda concepção abordada, registramos o tempo dos mitos e o tempo em que

se cultuam os mortos, abraçando retornos internos que voltam e se transmitem de geração em

geração, e também, o sentimento de simultaneidade produzido pela memória. Focalizamos a

linguagem como responsável pela articulação formal e duradoura da memória na vida social.

É a memória que permitirá a conservação e o reviver de cada geração: “Memória e palavra, no

fundo inseparáveis, são a condição de possibilidade do tempo reversível.” (BOSI, 1992, p.28)

Assim, organizamos nosso trabalho, dividindo-o em quatro capítulos.

No primeiro capítulo, “Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon: percursos”, além de

estabelecermos as características de suas escritas, almejamos também, acrescentar ao

conhecimento dos nossos prováveis leitores, informações concernentes às vidas e obras dessas

escritoras, contribuindo com suas biografias e biobibliografias, possibilitando, assim, maior

divulgação de seus trabalhos.

No segundo capítulo, denominado “A memória e o tempo”, temos os seguintes

registros: Memória - um diálogo entre o discurso mnemônico e os registros da linguagem, no

qual tratamos da origem da arte da memória através da mnemotécnica. Nessa primeira

divisão, por tratar-se de uma abordagem mais ampla e para maior clareza do texto, optamos

pelo desdobramento do item em quatro subtítulos: 2.1 – Estruturas do tempo na literatura –

referência aos elementos tratados nas obras literárias como qualidade na experiência e na vida

dos seres humanos. Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon mostram o tempo, além de outros

aspectos, como elemento de destruição e como marca da presença do envelhecimento. Dentro

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da estrutura do tempo na literatura levamos em consideração: a) Mensuração - ou métrica do

tempo vista como base: critérios objetivos; b) Ordem e direção - sinalizando para o passado e

o futuro, isto é, noções de antes e depois, anterior e posterior, passado e futuro; c)

Associações significativas - que, somadas a dados objetivos, podem ser consideradas chave

essencial para a estrutura da personalidade ou identidade do “eu” na consciência e na

memória. Inserimos nesse campo: a ilusão, os acontecimentos históricos e sociais, a velhice e

a morte; d) O tempo e o eu com relação ao passado – no qual concluímos que a literatura

procura pelo senso de continuidade, identidade e unidade inserido no contexto do passado de

cada indivíduo, e não necessariamente, nos documentos biográficos e autobiográficos,

valendo-se, pois, da memória como ferramenta. Logo: tempo, memória, espaço e história

caminham juntos.

Em segundo lugar temos: 2.2 – A memória coletiva – existente no núcleo de uma

classe, que além do poder de difusão, se alimenta de imagens, sentimentos, ideias e valores,

que dão identidade a essa classe. Recorremos a Maurice Halbwachs em seu conceito de que é

impossível falar de recordação e da localização das lembranças e recordações sem o auxílio

dos contextos sociais que banalizam a recordação do que chamamos memória. Isto é, ao

adicionarmos outros testemunhos às nossas lembranças, aumentamos a confiança em nossas

recordações. Nossas lembranças, auxiliadas por outros, seriam então coletivas, apesar de o

evento revivido ter sido íntimo ou particular. Jamais estamos sozinhos, sempre haverá nos

interstícios de nossas lembranças muitas pessoas envolvidas.

Ao tratarmos da memória coletiva, também se fez necessária uma abordagem mais

detalhada. Logo, nessa divisão, novo desdobramento foi incluído neste estudo: a) Memória e

esquecimento – que engloba, ainda que sumariamente, o tema da memória no campo

científico, como propriedade de armazenar algumas informações. A emergência da memória

como uma das preocupações culturais e políticas da atualidade, levando-nos nas questões da

memória e do esquecimento a diversos campos de estudo, dentre eles, o que é recorrido,

paradoxalmente, para mascarar políticas do esquecimento e o medo que o ser humano tem

deste fato; b) A importância da memória coletiva – como instrumento e objeto de poder, além

de uma conquista; c) Imaginação – para a qual as fronteiras entre real e fictício, possível e

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impossível, são por demais tênues; d) Esquecimento – sentido como dano, lacuna e fraqueza,

no que diz respeito à confiabilidade da memória.

O terceiro capítulo desta tese é intitulado “O espetáculo da ilusão”.

Em As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles e A doce canção de Caetana, de Nélida

Piñon, a palavra ilusão aparece como elemento matriz, a criação dos enredos gira em torno do

seu espectro, sua esfera semântica impregna todo o texto, ao mesmo tempo em que se associa

ao declínio, à decadência e ao desfalecimento dos sonhos. Esse capítulo objetiva o registro da

convivência da arte literária com a esperança e a ilusão, no caso, a ilusão de uma realidade

que se imagina e se interpreta.

Para dar respaldo teórico às nossas argumentações, recorremos a Ligia Chiappini

Moraes Leite, Maurice Blanchot, Umberto Eco, Affonso Ávila, Jean Baudrillard, Clément

Rosset, Ernst Hans Gombrich, dentre outros.

Isto, por termos como objetivo investigar as múltiplas faces da

objetividade/subjetividade, as diferentes mudanças de direção e a transformação das

inquietações em momentos felizes e vice-versa, num jogo contínuo de percepções e

linguagem, no qual, frequentemente se usa a ilusão como carta essencial do baralho da vida.

Adotamos para esse capítulo o mesmo procedimento de organização do primeiro. Ao

enfocarmos o tema – Do real ao imaginário – destacamos nas escritas de Lygia Fagundes

Telles e Nélida Piñon a intencional mistura da narrativa ilusória, à onírica, às possibilidades e

contradições, reconhecendo o movimento das transformações desejadas por suas personagens

na luta para escapar à realidade do tempo.

Dessa forma, dividimos o tópico em: a) O conflito entre a realidade e a ilusão –

conflito inevitável, já que a realidade implica começo e fim, passado e futuro, causa e efeito e

as ilusões, tão necessárias ao nosso cotidiano, aparecem como verdadeiros sustentáculos da

existência e dos povos, as únicas fontes com que se pode sempre contar; b) A imperiosa

necessidade de rejeitar a realidade – o uso de estratégias, artifícios ou técnicas dos quais nos

valemos para fugirmos da realidade; c) O mundo e seu duplo – o tema do duplo em suas

ligações com reflexos, espelhos, sombras, espíritos guardiões, crença na alma, medo da morte,

etc; d) No bosque da ilusão – no qual assinamos um acordo com o autor e nos dispomos a

aceitar o que ele nos apresenta através da sua narrativa.

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Ao recortarmos tema tão amplo – a ilusão – optamos por abordar três aspectos que

julgamos relevantes nas obras estudadas: a) A ilusão como elemento fundamental da vida –

aqui, abordamos a ilusão da juventude e da vida eterna, que enfoca a luta das personagens

contra a inevitável velhice do corpo e a decadência profissional; b) A arte cênica e a ilusão –

no qual tratamos da recorrência de truques da arte ilusionista para explorar a ilusão da criação

no reino crepuscular da incredulidade; c) A ilusão e o ufanismo - numa abordagem da história

e da política, apontando para dois tipos de ilusão: o nocivo para a sociedade e a ilusão

benéfica.

No quarto capítulo, “Mundos possíveis”, nos detivemos no mundo performático do

espaço teatral, considerando os romances As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles e A doce

canção de Caetana, de Nélida Piñon, como palcos, pensando ainda na diversidade de

elementos neles inseridos e nas interrelações entre a literatura e o teatro. Também nesse

capítulo tomamos como base as teorias de: Maria Helena Kühner, J. Guinsburg, Richard

Boleslavsky, Renato Cohen e Sandra Chacra, dentre outros. Continuamos com o mesmo

critério adotado nos primeiros capítulos, dividindo este nos seguintes subtítulos: a) O que faz

o teatro? – ressaltando a possibilidade do olhar de novo, do trazer a presença física do ator,

transformando a representação abstrata do conceito em re-apresentação; b) Da representação

para a atuação – focando a arte da improvisação, realçando a performance como expressão de

esteticidade; c) A relação ternária – dando visibilidade à tríade básica: atuante-texto-público;

d) O teatro livre: do happening à performance – classificando o happening como uma forma

de teatro associada ao teatro livre, apoiado no experimental, no anárquico; e) A improvisação

como recurso teatral – incluindo nesse item os elementos da Improvisação no teatro e o Eu-

com-outro. Nesse último, optamos pela sub-divisão da abordagem do eu com o outro,

apontando para o texto teatral, o ator e o público. A literatura em cena, ocupando o espaço da

abordagem seguinte, aponta para a importância da semiologia na literatura como aspecto da

linguística que marca as artes do espetáculo como fatos linguísticos. Os principais sistemas de

signos teatrais - abordando: a palavra, o tom, a mímica facial, o gesto, o movimento cênico do

ator, a maquilagem e o penteado, o vestuário, o acessório, o cenário, a iluminação, a música e

o ruído, no romance.

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Para finalizar, pedindo emprestadas as palavras do título do trabalho de Nietzsche,

“Sobre a verdade e a mentira em um sentido “extra moral” (2000), realçamos os elementos

componentes de verdade e de mentira nesse percurso de/em mundos possíveis.

2 LYGIA FAGUNDES TELLES E NÉLIDA PIÑON: PERCURSOS

Existem escritores cuja perfeição não é sinal de uma obra finalmente concluída, mas

sim, de uma escrita sempre recomeçada. Esses escritores legam-nos universos recriáveis e

extensíveis, que se constituem como regiões narrativas completas, no entanto,

paradoxalmente, intermináveis. São assim os textos de Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon,

textos que nos convidam ao jogo da leitura, tendo o leitor como colaborador na realização da

obra. As escritoras revelam na sua escrita, a liberdade criadora e inovadora do artista, mas

sabem que para os inovadores está, muitas vezes, reservada a incompreensão do público. “As

palavras, ferramentas do ofício e da alma, são de medida variada e de significado vasto.”

(FARIA, 2003, p.197)

Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon têm consciência de que, além de usarem a

palavra como ferramenta do ofício, também a empregam como ferramenta da alma. Usam-na

não só para trabalhar no nível do cotidiano, retratando a miséria e a degradação moral, mas

também para expressar valores existenciais e poéticos, o que não significa que façam uma

literatura alienada, mas sim, preocupada com valores ocultos e não só com valores da práxis.

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2.1 Lygia Fagundes Telles

Lygia Fagundes Telles, filha de Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário

Silva Jardim de Moura, nasceu no dia 19 de abril de 1923, a Rua Barão de Tatuí, no bairro de

Santa Cecília, centro da capital paulista. Passou os primeiros anos da infância em cidades do

interior de São Paulo: Sertãozinho, Apiaí, Descalvado, Areias e Itatinga, cidades nas quais seu

pai exerceu funções de delegado e promotor público.

Em 1931, com apenas oito anos de idade e já alfabetizada, Lygia escrevia, nas últimas

páginas de seus cadernos de escola, as histórias que ouvia das pajens:

Gravar a invenção para garantir a sua permanência [...]. A palavra precisava ser guardada como os vaga-lumes ou as borboletas que eu caçava e fechava nas caixas de sabonete. Teria nascido nesse tempo o antigo instinto de permanecer através da palavra, que é a negação da morte. (TELLES, 1998, p.10)

Em 1938, um ano antes de terminar o curso fundamental, Lygia publicou seu primeiro

livro – Porão e sobrado, que reunia doze contos. Essa edição foi paga pelo pai e a escritora

assinou Lygia Fagundes. A obra, entretanto, foi esquecida. A escritora a considera morta por

duas razões; primeiro, acha que os doze contos nela reunidos, são “ginasianos”. Segundo

porque acredita que num país onde se lê tão pouco e tão mal, não se deve incentivar a leitura

de uma obra que não representa o melhor daquilo que um autor possa produzir.

Apesar dessas restrições apontadas pela autora, necessário se faz salientar que o livro

já era um norteador da sua futura produção. Dentre as personagens da escritora, das mais

urbanas às mais burguesas, nenhuma escapa da plataforma literária esboçada no primeiro

livro. O que se percebe, pois, é a consistência do primeiro projeto da jovem escritora,

inegavelmente dotado de desconcertante coerência.

Em 1939, Lygia concluiu o curso fundamental no Instituto de Educação Caetano de

Campos, em São Paulo, em 1940 ingressou na Escola Superior de Educação Física e em 1941

no curso de Direito, integrando-se à Academia de Letras da Faculdade onde colaborou com os

jornais “Arcádia” e “A Balança”, veículos acadêmicos. Ela trabalhou também como assistente

do Departamento Agrícola do Estado de São Paulo.

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Dentro do surpreendente corpus ficcional que constitui a literatura de Lygia Fagundes

Telles pode-se inferir que o conto é o gênero de excelência máxima da sua obra, não só pela

cuidadosa elaboração, como também pela vitalidade e passionalidade. A escritora aborda as

experiências humanas, principalmente as interiores e é através da solidão – drama particular

da maioria de suas personagens, que a autora analisa sentimentos e percepções, conflitos entre

mundos objetivos e subjetivos, o real e o irreal, utilizando, inúmeras vezes, monólogos

interiores – recurso estilístico paraliterário também denominado fluxo de consciência. Telles

se empenha em narrar a condição humana e a relação do homem com o seu destino, numa

instigante mistura de intimismo e realismo. Ela é autora que sabe o quanto a palavra da ficção

é poderosa e reconhece a virtualidade da linguagem e da invenção.

Se de um lado pode-se encaixar a escrita de Lygia Fagundes Telles no grupo de

escritores da Geração 45, especialmente entre os que surgiram na literatura brasileira na

década de 1940 e cuja atitude estética era de reagir contra o clima da primeira fase

modernista, do outro, é válido registrar que o caráter ficcional da escritora dá-se em perfeita

sintonia com o existencialismo – vertente cultural da época, além de correntes literárias como

o expressionismo e o surrealismo. Deve-se ressaltar, porém, que Telles sempre acompanhou

as mudanças existenciais, políticas e sociais que ocorreram ao longo de sua carreira.

Seus contos especulam a superfície do real na busca do mais interior dos sentimentos:

são verdadeiros ensaios sobre as qualidades humanas, motivam profunda reflexão, incitam a

compreensão, o entendimento e exigem correspondência por parte do leitor. Em entrevista aos

Cadernos de Literatura Brasileira, quando questionada a respeito da criação do seu conto,

Lygia respondeu:

Eu percebo que está começando a nascer um conto quando, ao analisar as personagens, vejo que elas são, de certo modo, limitadas. Elas têm que viver aquele instante com toda a força e a vitalidade que eu puder dar, porque nenhuma delas vai durar. Isso quer dizer que, com elas, eu preciso seduzir o leitor num tempo mínimo. Eu não vou ter a noite inteira para isso, com uísque, caviar, entende? Preciso ser rápida, infalível. O conto é, portanto, uma forma arrebatadora de sedução. É como um condenado à morte, que precisa aproveitar a última refeição, a última música, o último desejo, o último tudo. (TELLES, 1998, p.29)

Em 1944 foi publicada pela Editora Martins, de São Paulo, a segunda coletânea de

contos de Telles – Praia viva, à qual a autora atribui a classificação de seu “primeiro livro”, já

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que faz questão de desconhecer Porão e sobrado. Mas também quanto a Praia viva, Lygia

manifesta certa indisposição e explica:

[...] vivemos no Brasil, um país de Terceiro Mundo. Temos problemas demais. Fico aflita só de pensar nas novas gerações lendo esses meus livros que não têm importância. Eu não quero que os jovens percam tempo com eles. Quero que conheçam o melhor de mim mesma, o melhor que eu pude fazer, dentro das minhas possibilidades. (TELLES, 1998, p.29)

Em 1946, Lygia Fagundes Telles formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais. Três anos

após o término do curso de Direito, a escritora publicou pela Editora Mérito de São Paulo o

terceiro livro de contos, O cacto vermelho, que recebeu o Prêmio Afonso Arinos, da

Academia Brasileira de Letras. Dessa obra valem ser destacados: o conto “As pérolas”,

história de um homem que, de repente, imagina a mulher sozinha num jantar a que ele não vai

e esconde as pérolas dessa mulher, porque sabia que ela seria cortejada por outros homens; e

“As chaves”, sobre um velho viúvo que, mesmo casado pela segunda vez com uma mulher

deslumbrante, que usava meias fantásticas, sentia uma saudade enorme da primeira mulher,

Francisquinha.

Em 1950, Lygia casou-se com o jurista Goffredo da Silva Telles Jr. com quem teve

um filho, Goffredo da Silva Telles Neto, em 1954. Nesse mesmo ano foi lançado pelas

Edições Cruzeiro, do Rio de Janeiro, seu primeiro romance, Ciranda de pedra. Podemos

observar que parece que é a partir dessa obra que Lygia passa a se considerar,

verdadeiramente, como uma escritora. Ciranda de pedra, com mais de trinta reedições foi

considerado pelo crítico Antonio Candido a primeira obra “madura” de Lygia Fagundes

Telles. Estão entretecidos nesse romance o adultério, a loucura, o homossexualismo feminino,

a impotência masculina, a falta de perspectivas profissionais, o trauma da ausência do pai, a

decadência da estrutura familiar, o processo de formação da personalidade e a rejeição,

elementos em excesso, ainda segundo o crítico Antonio Candido. A autora concorda com o

crítico quanto à abordagem de tanta coisa numa única obra, mas justifica que esse turbilhão de

emoções teria sido fruto do momento em que vivia. Assim como os primeiros contos

nortearam os que viriam a seguir, os temas de Ciranda de pedra também consolidariam

alguns dos temas de sua futura obra. Em Ciranda de pedra, a rejeição é, talvez, o tema mais

pungente. A personagem central é uma rejeitada. Na mansão onde vai viver após a morte da

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mãe adúltera e o suicídio de seu verdadeiro pai, tratada com descaso, Virgínia sente-se

excluída da roda de amigos das irmãs, roda essa metaforizada pela ciranda dos cinco anões.

Em 1958, a José Olympio publicou novo volume de contos da escritora, Histórias dos

desencontros, premiado pelo Instituto Nacional do Livro. O tema dos desencontros nos contos

e romances de Telles abrange áreas fundamentais da experiência humana. Dever e prazer,

sonho e realidade, possível e impossível se sucedem em desencontros, apontam para a

desrazão e o absurdo do mundo.

Em 1963, Lygia casou-se com Paulo Emílio Salles Gomes – professor, escritor e

fundador da Cinemateca Brasileira. Também nesse ano, a escritora lançou, pela Editora

Martins, seu segundo romance, Verão no aquário. Nessa obra a onisciência da terceira pessoa

narrativa aponta para os sentimentos de Raíza, mas resguarda sua interioridade. À semelhança

do seu primeiro romance, Ciranda de pedra, a autora se vale de metáforas também marcantes

em Verão no aquário. Em Ciranda de pedra, os dedos de pedra dos anões não permitiam à

protagonista ingressar no mundo das irmãs, em Verão no aquário, os desencontros

existenciais da protagonista estão condensados nos itens do título. É num verão de calor

opressivo que se passa a narrativa da crise amorosa e familiar de Raíza, cujo fim coincide com

o fim da estação. Também, o pequeno aquário com dois peixes assume funções figurativas a

partir das palavras da mãe de Raíza, que o vê como lugar tanto de estagnação quanto de

proteção. Além de inserida no verão e no aquário, a metáfora se faz presente no espelho

guardado no sótão da antiga casa da família, que seria vendida por causa de dificuldades

financeiras. Raíza, ressentida contra a mãe, vive apegada à memória do pai e se vê

acompanhada dele e de um tio louco a brincar no sótão da casa e refletidos os três na

superfície amarelada, cheia de nódoas do espelho. Nesse seu mundo não há espaço para a

mãe. O desencontro sentimental entre mãe e filha se manifesta com frequência ao longo da

narrativa. Para se livrar desse desencontro Raíza se submete à regressão simbólica ao útero,

quando deseja voltar a ser criança. Aí, a quebra do velho espelho ao ser transportado do sótão

para o novo apartamento, vai, metaforicamente, assinalar o rompimento do aquário edipiano.

Em 1964 é lançada mais uma coletânea de contos, Histórias escolhidas, premiada no

Concurso Literário promovido pelas Edições Melhoramentos e pelo Círculo da Boa Leitura;

em 1965 Lygia publicou O jardim selvagem.

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Em 1970, a Editora Bloch, do Rio de Janeiro, lançou Antes do baile verde, seleção de

contos publicados de 1949 a 1969, que conferiu à Lygia Fagundes Telles o Grande Prêmio

Internacional Feminino para Estrangeiros, na França. Esse livro é um dos mais importantes da

escritora, não só pela diversidade de temáticas apresentadas, como também pela profundidade

da abordagem de dramas existenciais. Seus contos trazem à tona situações conflituosas e

reflexões sobre a solidão. No conto “Antes do baile verde”, do livro homônimo, Tatisa deixa

o pai, agonizante, sozinho em casa para ir a um baile de carnaval.

Para Maria do Rosário Alves Pereira, que em sua dissertação trabalhou alguns contos

de Lygia:

Tatisa é o protótipo da personagem lygiana, se assim se pode dizer, pois se vê dividida entre cuidar do pai doente no quarto ao lado – obrigação moral – e sair para brincar carnaval – prazer. As “personalidades de papel” construídas pela escritora enfrentam conflitos íntimos severos para se posicionar e tomar uma decisão frente aos acontecimentos que as fazem sentir-se divididas entre escolhas diferentes. (ALVES, 2008, p.41)

Lygia é extremamente cuidadosa com sua escrita, observa-se isso nos mínimos

detalhes que são repletos de significação. Ainda em Antes do baile verde, a escritora, mestra

do uso da metáfora, exibe mais uma vez sua arte no conto “Um chá bem forte e três xícaras”,

valendo-se da borboleta que suga o pólen de uma rosa no jardim, abrindo possibilidades para

que a protagonista aceite o curso da vida. Outro destaque da arte literária de Lygia Fagundes

Telles é a maneira como o fantástico se entretece ao realismo. Isso pode ser observado no

conto “A caçada”, que descreve a impressão do protagonista de já ter assistido à cena de caça

representada numa antiga tapeçaria. Nessa, o homem que contemplava a tapeçaria se sente

transportado para dentro da cena, onde será mortalmente atingido pela seta do caçador. A

escritora expõe o desejo de plenitude do signo poético, oferecendo-o de modo provocativo,

como a encarnação da realidade. Nesse conto ela desenvolve a metáfora da criação baseada no

questionamento da traumática realidade humana: a dependência da representação.

Em 1973, a escritora publicou seu terceiro romance As meninas, dez anos após o início

da obra inspirada no momento político brasileiro e nos amigos do filho que frequentavam sua

casa. O romance arrebatou os grandes prêmios literários do país: o Coelho Neto, da Academia

Brasileira de Letras, o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro e o de Ficção, da Associação

Paulista de Críticos de Arte. Nas personagens de As meninas, romance de formação, está

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registrado o testemunho de uma época. Através dos monólogos interiores das três

protagonistas e a narração onisciente de terceira pessoa, a autora sugere não uma, mas três

personagens-foco, também jovens como as dos dois romances anteriores. Entretanto, os

desencontros que vivem ultrapassam os limites da família e abrem-se para o mundo. As

meninas vivem num pensionato, já não moram com os pais ou com parentes. Lorena, Lia e

Ana Clara, que tão bem metaforizam o difícil momento histórico nacional, são modelos da

juventude universitária dos anos 60-70, quando o regime militar atingiu o auge da violência e

da repressão. Em meio às vivências, objetivas e subjetivas das personagens, a autora apresenta

relatos de tortura física e de violenta repressão, retratos fiéis da época. Através dos caminhos

e descaminhos da leitura de As meninas, o leitor, pelo fluxo de consciência das três

protagonistas, tem uma visão do que se passava no país. Pela visão interior de Lorena,

personagem-focal, acedemos à avaliação crítica de suas companheiras, Lia e Ana Clara.

Lorena se mortifica com uma virgindade em época de liberação sexual; Lia, militante de

esquerda, viaja para a Argélia para juntar-se a Miguel, seu amante e companheiro de

militância; Ana Clara morre de overdose de cocaína. No desenlace da narrativa é Lorena

quem ganha relevo: garante a Lia os meios de ir ao encontro do amado na Argélia e cuida do

enterro de Ana Clara, evitando um escândalo que arruinaria as freiras que lhe davam abrigo.

As meninas, o mais conhecido romance de Lygia Fagundes Telles ao completar trinta anos de

publicação tornou-se em 2003, tema de artigos e celebrações. Passou a ser o nome do prêmio

literário criado pelo governo do Estado de São Paulo, que homenageou a autora pelo conjunto

de sua obra, com uma grande festa em 29 de setembro de 2003.

Depois do sucesso de As meninas, a Editora José Olympio, em 1977, tornou a publicar

outro grande sucesso de Telles em um volume de contos, Seminário dos ratos, que recebeu o

Prêmio da categoria do Pen Club do Brasil. Seminário dos ratos nasceu em um seminário

contra roedores em São Paulo. A certa altura um personagem diz: “A situação está sob

controle”. Nessa hora, um rato atravessa a sala. É a metáfora do que acontecia no governo

militar.

Nessa obra, Lygia lida, principalmente, com os temas: paixão, compaixão e denúncia.

De acordo com a autora, na contracapa de Seminário dos ratos:

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Em Seminário dos ratos, o leitor é convidado para a mais fascinante das travessias: distinções rígidas entre realidade e fantasia, ação intencional e impulso inconsciente, cultura e natureza – tudo, enfim, é dissolvido num horizonte onde formigas podem reconstruir a ossada de um anão; um amor malogrado é preservado pela memória para um futuro incerto; a miséria de uma família de favelados parece esquecida diante de um programa de televisão; ratos não tomam conta apenas de um seminário, mas se concentram para deliberar, talvez, sobre o país... (TELLES, 1998, Contracapa).

Esse livro de contos começa com o conto “As formigas”, e termina com o conto que

dá nome ao livro, “Seminário dos ratos”, ambos envoltos em clima de mistério e simbologias.

Em “As formigas”, o fantástico se instala pela pavorosa precisão com que as formigas vão

remontando osso por osso o esqueleto de um anão. Em “Herbarium”, outro ícone da

coletânea, a mocinha que ajuda o primo botânico é uma narradora típica de Lygia Fagundes

Telles; uma espécie de cientista e mentirosa ao mesmo tempo. O jogo entre o contar direito e

o contar mentiroso é criado: a menina coleta folhas vegetais para o primo botânico e narra-lhe

histórias falsas a fim de prender sua atenção. Ele, incomodado com as mentiras da prima,

pede-lhe que só conte a verdade. Mas a narradora permanece no entre-lugar do “contar

direito” e do “contar mentiroso”. Em “O X do problema”, Lygia desenha, fato raro em sua

obra, uma personagem por descrição, não por introspecção: a miséria material e moral de uma

família de favelados, exposta através da linguagem chula e sórdida nos diálogos dos que não

têm onde viver decentemente. Em “Senhor diretor”, a narração se dá pelo registro do fluxo de

consciência de Maria Emília, uma professora aposentada e solteirona escandalizada pela

liberalidade dos tempos atuais. Em “A sauna”, um pintor de sucesso revê em impiedoso

retrospecto todas as iniquidades que não hesitou em cometer para ascender socialmente; é a

prática do mea culpa, tão constante na obra de Lygia Fagundes Telles.

Foi também no ano de 1977 que a escritora participou junto com Nélida Piñon e outros

grandes nomes da literatura brasileira da coletânea Missa do Galo: variações sobre o mesmo

tema, organizada por Osman Lins, a partir do conto clássico de Machado de Assis. O contexto

dessa obra foi um desafio para a época, já que implicava a reescrita de uma obra literária

reconhecida pela melhor crítica. O enredo do texto-origem, marcado pela simplicidade, é

matéria de memória. Na retomada do conto de Machado, a proximidade, o tangenciamento e a

diversificação dos pontos de vista: Nélida Piñon centraliza-se em Menezes, destacando-lhe os

aspectos libidinosos, suas auto-justificativas e a transferência da culpa para a esposa. Lygia

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Fagundes Telles opta pela tentativa de desestruturação da matriz, concluindo pela

impossibilidade de modificá-la. Entretanto, atualiza de certa forma, a linguagem. A escritora

manipula um estranho “eu” consciente, invade o mundo do conto, luta por modificá-lo e vê

que tal tentativa é vã.

Em 1978, Lygia Fagundes Telles publicou, pela Editora Cultura de São Paulo, mais

uma coletânea de contos intitulada Filhos Pródigos, que foi republicada em 1991 com o título

de A estrutura da bolha de sabão. Fato digno de destaque no conto “A confissão de

Leontina”, inserido nessa coletânea, é a diferença que Lygia deixa transparecer em relação à

grande maioria de sua ficção. Se suas personagens são sempre vistas através da interioridade,

nesse conto percebe-se o objetivismo na medida em que limita o registro da confissão de

Leontina com relação a uma inominada “senhora”. A personagem, assim como outras da obra

de Lygia Fagundes Telles, vive imersa na temporalidade, não se livra do passado, da infância

e da adolescência que passou junto à mãe, à irmã doente e ao primo. A memória da vida

familiar do passado, plena de trabalho e sacrifícios da mãe para proporcionar ao sobrinho

Pedro, a oportunidade de estudar e se tornar um grande médico, não a abandona. Daí a

decepção diante da completa indiferença do primo, quando anos mais tarde a reencontra num

hospital. Leontina se envolve numa morte e ficará presa até o final da vida por não ter

ninguém com quem contar. Dessa coletânea merece destaque o conto “O jardim selvagem”,

no qual a Rede Globo de Televisão se baseou para levar ao ar um dos seus Casos Especiais.

Em 1980, Telles lançou A disciplina do amor, reunião de textos que ela classifica

como “fragmentos” e que marca o início de um relacionamento de dezessete anos com a

Editora Nova Fronteira. A obra pode ser confundida com um diário, mas, segundo a autora, é

tudo invenção. O título traz uma intenção irônica, onde no caos há ordem e numa aparente

indisciplina a ordem é verdadeira. No primeiro fragmento do livro, a autora mostra o

paradoxal da força do amor: o homem vai ao bordel e se apaixona por uma moça. Combina de

ir vê-la todo sábado, entretanto, não gosta de vê-la com outro, mesmo quando se atrasa.

Resolvem se casar. O casamento não dá certo, separam-se. O tempo passa, ele volta ao bordel

e vê a mulher com outro. Fica furioso, bate no homem e diz à mulher: “Olha, você é minha,

vamos continuar o nosso amor”. E retomam a vida no bordel. Em 1981, além da Disciplina do

amor, a Nova Fronteira lançou Mistérios, uma coleção de contos fantásticos. Nessa obra

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destaca-se o conto “O muro”, no qual o protagonista está moribundo e tem como única

companhia um enfermeiro que, na visão do enfermo, está ansioso para se ver livre dele. A

metáfora do muro é clara: é a divisória entre a vida e a morte, entre o presente e o passado. No

texto lygiano o muro pode ser visto também como uma prisão para quem deseja voar.

Os três primeiros romances de Lygia Fagundes Telles ocuparam-se em focalizar a fase

juvenil da construção da ipseidade feminina. As horas nuas, lançado em 1989, volta-se para a

fase outonal da mulher quando o “eu” tem que enfrentar os traumas do envelhecimento e da

solidão.

(Desse romance falaremos posteriormente, por tratar-se de um dos objetos de estudo

deste trabalho).

Em 1995, Lygia Fagundes Telles publicou um novo livro de contos, A noite escura e

mais eu, que ganhou os prêmios de Melhor Livro de Contos, concedido pela Biblioteca

Nacional, Prêmio Jabuti, pela Câmara Brasileira do Livro e Prêmio APLUB de Literatura.

Esse livro foi um extraordinário sucesso. A autora volta ao gênero da sua paixão – o conto -

mas numa original mistura de memória (fragmentos) com ficção, numa atmosfera de mistério,

serenidade e equilíbrio. Lygia entretece memórias e invenção como se fossem vasos

comunicantes. Vale destacar nessa coletânea, o conto “Anão de jardim” – para a ficcionista,

um anão de jardim representa a impossibilidade de justiça, de liberdade e de impunidade. No

caso, o anão do conto é aprisionado no material de que é feito – a pedra – e como ele sabe que

vai ser destruído pelas picaretas, pede um corpo de verdade para Deus (primeira versão), ou

ser transformado numa serpente (última versão), para poder picar Pilatos. Nessa segunda

versão, o anão não se conforma com o fato de Cristo ter sido condenado injustamente, daí,

como serpente poder se vingar de Pilatos.

Em 2000, a Editora Rocco estreitou sua fase de relacionamento com Lygia e lançou

Invenções e memórias, contos, que recebeu o Prêmio Jabuti na categoria ficção em 2001. Nos

quinze contos desse livro Lygia trata dos tormentos naturais dos quais a condição humana é

herdeira. A autora mantém um caráter fictício em alguns contos e em outros mistura relatos

pessoais com invenção.

Em 2002, os leitores de Lygia Fagundes Telles são agraciados com o livro Durante

aquele estranho chá – perdidos e achados. Os textos organizados pelo jornalista Suênio

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Campos de Lucena, basicamente uma seleção do “baú” de Lygia, trazem à tona a paixão da

escritora pela literatura, através das lembranças de encontros, acontecimentos e emoções que

viveu. Encontram-se nessa obra relatos de experiências com outros intelectuais, como Hilda

Hilst, Jorge Luis Borges, Barbara Freitag, Paulo Sérgio Rouanet, Jorge Amado, Carlos

Drummond de Andrade e Clarice Lispector. Também, aqui, o leitor de Lygia é presenteado

com o seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Esse livro talvez tenha o

propósito de auxiliar o leitor na busca labiríntica da escrita, suprindo lacunas, de acordo com

as sugestões e indicações da autora.

Em 2004, além de Histórias de mistérios, surge também a antologia Meus contos

preferidos, reunindo trinta e um textos que mesclam épocas, estilos e temas. Histórias de

mistérios engloba seis histórias, nas quais, a escolha do tema, a sequência dos fatos, as

palavras e ideias atraem o leitor para o desconhecido, suscitando sensação de deslumbramento

e medo: é um mexer e remexer no seu íntimo. Os textos dessa obra são: “A caçada”, “As

formigas”, “Natal na barca”, “O jardim selvagem”, “Lua crescente em Amsterdã” e ”Onde

estiveste esta noite”. Há nesses contos: morte, escuridão, solidão e loucura. Mas também,

bastante romantismo e crítica social. Organizado por Rosa Amanda Strausz, Histórias de

mistérios é a fusão de dois elementos: temas nada aterrorizantes e o mergulho no

desconhecido. Em Meus contos preferidos, as personagens que contracenam com homens e

mulheres são anões, ratos, formigas, etc. Lygia organiza essa coletânea reunindo seus contos

mais queridos; contos esses, marcados pelo mistério. Há um tom de sobrenatural em boa parte

das histórias. Mas o sobrenatural é um dos caminhos pelos quais a escritora trilha para

alcançar a realidade. Assim, Meus contos preferidos, pode ser chamado de “Antologia

pessoal” da escritora.

Em 2005, é lançado o livro, Meus contos esquecidos, motivado pelas queixas dos

leitores sobre a ausência de importantes textos da extensa obra da autora, na antologia

publicada no ano anterior. Nessa obra, Lygia Fagundes Telles tira das sombras vinte e três

histórias magníficas, numa tarefa de difícil seleção. Difícil porque, assim como a própria

criadora, cada leitor acaba elegendo intimamente o seu conto preferido. Uns reconhecem-se

na menina que procura folhas raras para o herbarium do primo. Outros se veem oprimidos

pelas próprias escolhas, como o velho que troca de esposa pela moça trinta e um anos mais

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jovem, e outros, sofrem com a solidão, como a professora que não se conforma com a

imoralidade das capas de revistas de hoje. Há ainda os que se identificam com os contos de

mistério.

No ano de 2007, Telles fecha o ciclo de memórias e invenções que começou nos livros

anteriores, com o lançamento de Conspiração nas nuvens. Aqui a autora aponta a fragilidade

das fronteiras entre ficção e realidade com mestria. Com linguagem fluida, original e

despojada, ela não abre mão do compromisso com a verdade, às vezes, desprezando a

cronologia do tempo na busca da essência.

Mas a trajetória profissional de Lygia Fagundes Telles vai além dos seus livros. Em

1961 ela foi nomeada procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo. Em

1967, a convite do cineasta César Saraceni e em parceria com Paulo Emílio Salles Gomes, seu

companheiro, fez a adaptação para o cinema, do romance Dom Casmurro, de Machado de

Assis. Esse roteiro ficou muitos anos esquecido entre os papéis da escritora, e só foi publicado

em 1993, pela Editora Siciliano, de São Paulo, com o título de Capitú. Em 1977, Lygia

integrou o corpo de jurados do Concurso Unibanco de Literatura, ao lado de Otto Lara

Resende, Antonio Houaiss e outros ícones da cultura brasileira. Nesse mesmo ano, com o

falecimento de Paulo Emílio, ela assumiu a presidência da Cinemateca Brasileira, onde

permaneceu ligada até meados dos anos 80. Em 2000, Lygia recebeu a Condecoração do

Chile – Brasil+500 – Mostra do Redescobrimento

Além de um Caso Especial, baseado na obra de Lygia Fagundes Telles, a Rede Globo

de Televisão transmitiu entre maio e novembro de 1981 a telenovela “Ciranda de pedra”,

tendo Lucélia Santos no papel de Virgínia e apresentou dentro da série “Retratos de Mulher”,

protagonizada por Regina Duarte, uma adaptação da própria Lygia do seu conto “O moço do

saxofone”, extraído do livro Antes do baile verde – num episódio denominado “Era uma vez

Valdete”, em 1993. Em 1982, a escritora foi eleita para a cadeira Nº 28 da Academia Paulista

de Letras e em 1985, no dia 24 de outubro, para a cadeira Nº 16 da Academia Brasileira de

Letras, substituindo Pedro Calmon. Mas só foi empossada no dia 12 de maio de 1987.

Também em 1985, Lygia foi agraciada com a medalha da Ordem do Rio Branco. No ano de

1989, recebeu a comenda Portuguesa Dom Infante Santo. Em 1990, Paloma Rocha e o filho

de Lygia, Goffredo Neto realizaram um documentário, “Narrarte”, sobre a vida e a obra da

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escritora, premiado no Festival de Cinema de Gramado. O documentário mostra a escritora

em momentos do seu cotidiano e alterna imagens dela na Academia Brasileira de Letras com

cenas de escolas de samba. Em 1991, Lygia Fagundes Telles aposentou-se como funcionária

pública. Em 1994, Telles participou da Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha e em 1996

teve sua estréia no cinema com o filme “As meninas”, de Emiliano Ribeiro, baseado no

romance homônimo, que contou com as atrizes Adriana Esteves, Claudia Liz e Drica Moraes

no elenco. Filmar “As meninas” era um sonho de David Neves, mas o cineasta faleceu antes

de realizá-lo. Foi então, que Emiliano Ribeiro, seu diretor de fotografia, assumiu e levou o

projeto às telas, inserindo algumas cenas para enriquecer a história. Do ponto de vista do

cineasta, mais fatos e menos reflexões facilitam o entendimento do público cinematográfico,

já que uma narração em primeira pessoa, como é no livro, é muito difícil em cinema. Em

maio de 1997, Fagundes Telles participou da série “O escritor por ele mesmo”, do Instituto

Moreira Salles, para o qual redigiu um depoimento sobre a razão da sua escrita e gravou a

leitura dos contos: “A estrutura da bolha de sabão” e “As formigas”. Gravação essa que foi

distribuída aos presentes ao encontro, em São Paulo.

A Editora Rocco, do Rio de Janeiro, adquiriu os direitos de publicação de toda a obra

de Lygia Fagundes Telles, que chega em nova edição às livrarias. Lygia foi tema do quinto

número dos Cadernos de Literatura Brasileira em 1998, publicações do Instituto Moreira

Salles. Ainda nesse ano, a escritora integrou a delegação brasileira que foi ao Salão do Livro

de Paris. Em 2001, ela foi agraciada com os prêmios: Golfinho de Ouro e o Grande Prêmio da

Associação Paulista dos Críticos de Arte. Em 1999, foi realizado um longa metragem sob a

direção de Del Rangel, com Gianfrancesco Guarnieri e Natália Thimberg no elenco, que

recebeu o nome de “Contos de Lygia”. O filme procurou retratar o clima da obra de Lygia

Fagundes Telles, não numa adaptação linear dos contos da escritora, mas numa mistura das

personagens extraídas de suas várias histórias. Em 2001, Telles recebeu o título de Doutora

Honoris Causa pela Universidade de Brasília – UnB. Em 2004 a escritora foi eleita pela

Revista Forbes do Brasil a mulher mais influente do país na área literária. Também em

outubro de 2004 sua coleção particular, formada por mais de mil itens, entre livros,

periódicos, artigos e vídeos, além de prêmios, medalhas, placas comemorativas e a máquina

de escrever da escritora, foi incorporada ao Instituto Moreira Salles. Acrescenta-se a esses

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prêmios: o Prêmio Guimarães Rosa, (1972) e o Prêmio Pedro Nava, de melhor livro do ano

(1989).

Foi no ano de 2005 que Lygia Fagundes Telles teve sua carreira literária consagrada

internacionalmente. Recebeu o Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua

portuguesa, no valor de cem mil euros. Dentre os brasileiros destacados com essa láurea

estão: João Cabral de Melo Neto, Raquel de Queiroz, Jorge Amado, Antonio Candido, Autran

Dourado e Rubem Fonseca. Segundo Ivan Junqueira, presidente da Academia Brasileira de

Letras e presidente do júri que outorgou o prêmio Camões à Telles, a escolha de Lygia

Fagundes Telles foi realizada por unanimidade em “menos de trinta minutos” e “não foi

preciso explicar, nem argumentar”. Lygia Fagundes Telles foi a terceira mulher a ingressar na

Academia Brasileira de Letras e a segunda escritora brasileira vencedora do Prêmio Camões,

após Raquel de Queiroz. O Prêmio Camões foi instituído pelos governos de Portugal e do

Brasil, visando distinguir, anualmente, um autor cuja obra tenha contribuído para o

enriquecimento dos patrimônios cultural e literário em Galego-Português. As mulheres que

compartilharam dessa honraria com Telles foram: Raquel de Queiroz (1993), Sophia de Mello

Breyner Andresen (1999), Maria Velho da Costa (2002) e Agustina Bessa-Luís (2004).

Lygia Fagundes Telles teve suas obras traduzidas para o alemão, espanhol, francês,

inglês, italiano, polonês, sueco, tcheco, e adaptadas no Brasil para o cinema, teatro e televisão.

Teve também publicações em Portugal, onde é correspondente desde 1987 da Academia de

Ciências de Lisboa.

O interesse sobre a obra de Lygia Fagundes Telles, assim como sobre a obra de Nélida

Piñon, também me levou a inúmeros estudos realizados sobre as escritoras. É magnífico o

número de artigos e ensaios escritos sobre elas. Material que tem inspirado inúmeras

pesquisas no meio acadêmico, dentre os quais podemos destacar: dissertações e teses,

antologias, documentários, etc.

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2.1.1 As horas nuas

Romance moderno, fragmentado, com multiplicidade de narradores, onde não há

linearidade na história, e sim, centralização de questões pessoais. A autora dá ênfase ao

comportamento das personagens em interação com a sociedade, valores sociais materialistas e

massificantes. O enredo é voltado para a problemática da realidade moderna; para os

desencontros existenciais de Rosa Ambrósio, uma atriz de meia idade cujas esperanças de

voltar ao palco, reconciliar-se com o amante e atenuar os estragos do tempo, dão em nada. Na

tentativa de encher o vazio dos seus dias e aliviar as dores do abandono, ela se dispõe a

escrever suas memórias. No entanto, não conclui esse projeto, apenas dita parte delas num

gravador. Gravações que, somadas a monólogos interiores e conversas com a psicanalista,

permitirão ao leitor o acesso à sua interioridade.

O título As horas nuas metaforiza o desnudamento emocional de Rosa Ambrósio

numa espécie de exame de consciência ou balanço da vida. O mea culpa como caminho da

redenção. Para dar maior ênfase ao título, o desnudamento de Rosa Ambrósio é literal no

capítulo II. Neste, ela se despe diante do espelho do banheiro para admirar o corpo e esconder

com tintura os fios grisalhos nas têmporas e no púbis. Operação acompanhada pelo leitor

voyeur e os olhos de Rahul, o gato de estimação de Rosa. Um gato pensante, que vislumbra

suas vidas anteriores, ilustrando parodisticamente a crença popular nas sete vidas dos gatos:

Não sei por que esses bandidos tinham que nascer brancos, resmungou ela. Já estava de luvas quando mergulhou mais uma vez a escova na tintura do copo. Inclinou-se para a frente. Abriu as pernas e bem devagar foi passando a tinta nos pêlos do púbis. Com a mão livre, abriu a caixa rosada no tampo do mármore e dela tirou um lenço de papel para limpar o fio de tinta negra que lhe escorria pela coxa. Ô! Meu Pai!... (TELLES, 1999, p.33)

Em As horas nuas, o foco do spotlight narrativo ilumina a história da vida de Rosa

Ambrósio na maior parte do romance. Apenas no final do livro a narrativa se volta para o

mistério do desaparecimento de Ananta Medrado, a psicanalista da atriz. Nessa parte final, a

autora deixa a solução do problema que se apresenta, por conta da imaginação do leitor. Ela

apenas assinala a questão do desaparecimento com pistas desconexas sobre Ananta como:

uma vida reclusa sem relacionamentos amorosos, o trabalho voluntário na Delegacia da

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Mulher, o estranho vizinho do andar de cima, que ela nunca tinha visto, mas cujos ruídos à

noite, escutava e que despertavam-lhe irresistível atração, por lhe pareceram tratar de um

processo de transformação de sua figura humana na de um cavalo. Pela inserção desse

centauro hipotético na tessitura realista de As horas nuas é que se conclui sobre a presença do

fantástico - já iniciado pela intelecção de Rahul, o gato de Rosa Ambrósio. A associação do

suposto homem-cavalo ao desaparecimento da analista traz em si, ingredientes do fantástico

literário. Isto é, a narração faz o leitor imergir no mundo real, mas, em dados momentos,

coloca-o em dúvida entre o natural e o sobrenatural. Nada, no entanto, é verbalizado pela

autora. A narrativa situa-se no plano de insinuações, de sugestões poéticas. De qualquer

forma, homem e animal, o centauro registra a associação das forças obscuras às forças

racionais do consciente. Para Lygia o híbrido é fascinante, sedutor. De um lado, lâmina que

fere, do outro, imã que atrai, não conduz à verdade do mundo, tão pouco à mentira dos seres

fictícios. A escrita de Telles mostra que a intriga ficcional derrapa engenhosamente nas trocas

entre texto e leitor. Ao incitá-lo a esquivar-se da verdade e da mentira, sua narrativa híbrida o

faz perder o sentido da direção única, levando-o à análise das personagens, ao mais íntimo e

ao mais secreto de seus sentimentos.

2.1.2 As personagens

Rosa Ambrósio – protagonista da narrativa é uma atriz que retorna ao passado pelas

lembranças da infância e da adolescência infeliz. Rememora o auge da, então, decadente

carreira de atriz na ânsia de fugir da realidade e afoga-se no álcool. Oscila entre momentos de

lucidez e de delírios. Ferida pelo abandono do pai e a perda do primeiro amor, o primo

Miguel, Rosa vai buscar consolo no ombro amigo do, até então desconhecido, Gregório, com

quem se casaria e teria uma filha. Mãe relapsa mantém um relacionamento conflituoso com

esta, de quem sente ciúmes, não só pelo entendimento entre pai e filha, como também, pelo

frescor da juventude da menina. Logo, procura consolo nos braços do secretário e amante,

Diogo. Passa a suportar as extravagâncias e loucuras do rapaz, assumindo postura masoquista.

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Temendo a velhice, que prefere chamar de “idade madura”, Rosa Ambrósio procura refúgio

nas sessões de análise e na amizade e solidariedade da empregada, Dionísia.

Rahul – (o gato), também protagonista, pensa, age e comporta-se como humano. Vive

de reminiscências e faz reflexões sobre o comportamento de Rosa Ambrósio, a quem chama

de Rosona. Demonstra grande admiração e afeto por Gregório, falecido marido de Rosa e

desprezo por Diogo, o amante. Alimenta a esperança de que o falecido volte. Rahul vive de

lembranças fugazes, nas quais acredita ter vivido outras vidas.

Ananta Medrado – Personagem misteriosa de comportamento estranho, obcecada por

um “homem” que mora no andar superior ao seu. Além de analista, dedica-se ao trabalho

social numa Delegacia de Proteção à Mulher. Solitária, a analista mantém um ciclo restrito de

amizades: a governanta, alguns moradores do prédio em que mora e a amiga Flávia.

Desaparece misteriosamente, sem deixar pistas.

Diogo – Secretário e amante de Rosa. Jovem e bonito age como “gigolô”: aproveita-se

das fraquezas de Rosa, chantageia e trai a atriz acintosamente, até que a abandona.

Cordélia – Filha de Rosa e Gregório, moça de personalidade forte e independente.

Mantém relacionamentos amorosos com homens mais velhos, o que choca e contraria a mãe.

Gregório – Marido de Rosa, professor, culto e educado, conhece a mulher no dia em

que esta havia perdido seu primeiro amor. Ama-a com sinceridade, à sua maneira, e mesmo

sabendo que era traído por ela, ignora o fato. Foi exilado e torturado pelo regime militar na

época da ditadura, o que lhe deixa sequelas, como o mal de Parkinson, introspecção e

depressão, fazendo-o antecipar a morte.

Dionísia – Mais do que simples empregada é também confidente e amiga de Rosa.

Miguel – Primo e primeiro amor da atriz, a quem ela jamais conseguiu esquecer.

Rapaz rico e mimado pelos pais envolve-se com drogas e morre de overdose.

Renato Medrado – Aparece quase no final da trama como primo de Ananta e mostra-

se muito interessado em encontrar a analista que desaparecera.

Flávia - Amiga de Ananta, também não sabe do seu paradeiro.

Outras personagens: o delegado, que investiga o desaparecimento de Ananta; tio

André e tia Lucinha, pais de Miguel; Tia Ana, que deixa uma herança para Rosa; e Lili,

pretensa amiga de Rosa e suposta amante de Gregório.

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2.1.3 Entrevistas de Lygia Fagundes Telles

TELLES, Lygia Fagundes. Lygia Fagundes Telles: artesã. Entrevista concedida a Zilah Côrrea de Araújo. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 5, n. 210, p. 4, set. 1970. TELLES, Lygia Fagundes. Ontem, hoje e sempre: a imortal. Entrevista concedida a Ewerton de Paula. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 20, n. 1002, p. 4, dez. 1985. TELLES, Lygia Fagundes. Lygia Fagundes Telles. Entrevista concedida a Ewerton de Paula. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 23, n. 1133, p. 8-9, nov. 1989. TELLES, Lygia Fagundes. A disciplina do amor. Entrevista concedida a Fábio Lucas, Moacyr Scliar, Edla van Steen, Adélia Prado e Carlos Augusto Calil. Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, Instituto Moreira Salles, n. 5, mar. 1998. p. 28-43 TELLES, Lygia Fagundes. Entrevista concedida a Fábio Lucas e Manuel da Costa Pinto. Cult: Revista Brasileira de Literatura, São Paulo, Ano 2, n. 23, p. 4-11, jun. 1999. TELLES, Lygia Fagundes. Invenções da memória. Entrevista concedida a Suênio Campos de Lucena. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 73, p. 4-10, jul. 2001. TELLES, Lygia Fagundes. Na dor, a busca da beleza. Entrevista concedida a Julián Fuks. Revista EntreLivros, Ano 3, n. 29, p. 27-31, set. 2007. TELLES, Lygia Fagundes. Inventar é alegria do escritor. Entrevista concedida a Almir de Freitas. Disponível em: <http://bravonline.abril.com.br/indices/livros/livrosmateria>. Acesso em: 3 set. 2007. TELLES, Lygia Fagundes.Lygia. Entrevista concedida a Cecília Giannetti.Disponível em: <http://portalliteral.terra.com.br>. Acesso em: 31 ago. 2007. TELLES, Lygia Fagundes. Lygia Fagundes Telles aprova adaptação de Ciranda de pedra. Entrevista concedida a Miguel Arcanjo Prado. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada>. Acesso em: 29 abr. 2008.

2.1.4 Antologias

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COELHO, Nelly Novaes. Seleta, 1971 (Organização, estudos e notas de Nelly Novaes Coelho). MONTEIRO, Leonardo. Lygia Fagundes Telles, 1980 (Organização de Leonardo Monteiro). TELLES, Lygia Fagundes. Os melhores contos de Lygia F. Telles, 1984 (Seleção de Eduardo Portella). TELLES, Lygia Fagundes.Venha ver o pôr-do-sol, 1988 (Seleção dos editores – Ática). SARDINHA, Maura. A confissão de Leontina e fragmentos, 1996 (Seleção de Maura Sardinha). MADUREIRA, Pedro Paulo de Sena. Oito contos de amor, 1997 (Seleção de Pedro Paulo de Sena Madureira). MASINA, Léa. Pomba enamorada, 1999 (Seleção de Léa Masima). COELHO, Luísa. Intimidades, 2005 (Organização Luísa Coelho).

2.1.5 Materiais especiais (Documentários/Programas de TV)

TELLES, Lygia Fagundes. Depoimento Lygia Fagundes Telles. Academia Brasileira de Letras/Sala dos Fundadores Petit Trianon. Projeto Memória dos Acadêmicos. 21 nov. 2000. 1 fita VHS (116 min.). Entrevista concedida a Maria Cláudia de Mesquita e Bonfim. TELLES, Lygia Fagundes. Diálogos impertinentes/A morte. TV PUC de São Paulo. 1 fita VHS (94 min.). Entrevista concedida a Mário Sérgio Cortella e Caio Túlio Costa. TELLES, Lygia Fagundes. Lygia Fagundes Telles: a inventora de memórias. Documentário TV Tal. 8 jan. 2005 (28 min.). Série Mestres da Literatura e Grandes Educadores Brasileiros.

TELLES, Lygia Fagundes. Narrarte com Lygia Fagundes Telles. Direção: Goffredo da

Silva Telles. Documentário, 1993. 1 fita VHS (20 min.).

TELLES, Lygia Fagundes. Programa Aquela Mulher. 23 set. 1997. (47 min.). Entrevista

concedida a Marília Gabriela.

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TELLES, Lygia Fagundes. Programa Encontro Marcado. 1 fita VHS (37 min.). Realização:

Museu Nacional de Belas Artes, Fundação Nacional Pró-Memória, Ministério da Cultura.

Entrevista concedida a Araken Távora.

TELLES, Lygia Fagundes. Programa Espaço Aberto. 19 fev. 1997 (29 min.). Entrevista

concedida a Pedro Bial.

2.2 Nélida Piñon

Nélida Piñon, referência da literatura brasileira, escritora carismática e comprometida

com a voz ibero-americana, conta-nos:

Eu vim ao mundo numa quinta-feira, na rua Dona Maria, em Vila Isabel, em uma casinha branca, de vila, pertencente ao avô Daniel, de simetria quase ilusória, vizinha à casa grande de meus avós maternos. E por expressa determinação da mãe, Carmem, que até o final do parto, evitou a ida ao hospital, por temer que me trocassem no berçário, regressando ela a casa com a filha que não havia parido. (PIÑON, 2009, p.9)

Nélida Cuiñas Piñon nasceu no Rio de Janeiro em 3 de maio de 1937. Filha de Olivia

Carmem Cuiñas Piñon e Lino Piñon Muiños, de família originária de Cotobade, Galícia,

radicada no Brasil desde a década de 1920. Aos dez anos de idade foi para a Galícia, onde

viveu por dois anos.

Naomi Hoki Moniz assim descreve esta fase:

Os anos passados em Galícia, na importante época formativa da adolescência, deixaram marca indelével na obra de Piñon: as raízes celtas do imaginário de seu povo, o atávico telurismo da terra, a aspereza da paisagem, a luta pela sobrevivência, as paixões primitivas, a frugalidade e a sabedoria dos seres que vivem próximos à natureza, temas constantes em seus textos, são parte essencial de sua persona poética, como ela mesma confirma: “a minha vida, como a de todo escritor, está possivelmente embutida no texto, ali cravado como uma lança”. (MONIZ, 1993, p.16)

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Graduou-se em Jornalismo pela Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro e em 1970 inaugurou a cadeira de criação literária na Faculdade de

Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua vida foi sempre pautada pela dedicação

à literatura e à vida acadêmica.

Em 27 de julho de 1989 foi eleita para a Cadeira Nº30 da Academia Brasileira de

Letras, na sucessão de Aurélio Buarque de Holanda e foi recebida em 3 de maio de 1990, pelo

acadêmico Lêdo Ivo. Na Academia foi diretora do Arquivo (desde 1990); eleita primeira-

secretária (26-06-1995), secretária-geral (7-12-1995), presidente em exercício (ago./dez.

1996) e eleita presidente em 5-12-1996. É a primeira mulher, em 100 anos de existência da

Academia Brasileira de Letras a integrar a diretoria e ocupar a presidência da Casa de

Machado de Assis no ano de seu primeiro centenário.

Já na fase da pré-adolescência, entre os treze e catorze anos de idade, a pequena

escritora enfrenta seu primeiro momento dramático dentro da carreira escolhida: descobre que

a linguagem contém códigos controlados por normas que têm que ser cumpridas. Isso gerou

em seu espírito criador a sensação de aprisionamento, como se fosse obrigada a se submeter

ao “círculo demoníaco” de frases feitas, das quais não podia escapar. Daí, o surgimento da

rebeldia e o desejo de “subverter a sintaxe oficial”, que se tornou marca constante de seu

trabalho.

Sua extensa obra se caracteriza no panorama da literatura brasileira atual pela

originalidade, força de expressão e fôlego. Mesmo na época em que o conto destacava-se

como gênero preferido dos escritores nacionais, Piñon destacou-se pela produção de romances

complexos e volumosos. A escritora, sempre guiada pela coerência, preservou sua

independência e originalidade desde a estreia na literatura com o romance Guia-mapa de

Gabriel Arcanjo, publicado em 1961. Seus livros foram traduzidos em países como:

Argentina, Polônia, França, Cuba, Espanha, Estados Unidos, Suécia, Rússia, Inglaterra,

Alemanha, Itália e Colômbia, com obras também publicadas em Portugal e outros países de

língua portuguesa.

Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, escrito em 1956 e publicado cinco anos após: “... é

romance experimental, de literatura difícil, espinhosa, porque propunha uma nova ótica para

sua decodificação, a qual ainda precisava ser descoberta.” (COELHO, 2002, p.508)

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Nélida Piñon traz pelos caminhos espinhosos da profissão de escritora, um ambicioso

projeto literário, pleno de preocupação com a linguagem e do desejo de fundar um discurso

literário no plano do mito. De forma arrojada, reivindica e assume a responsabilidade quando

subverte os gêneros tradicionais. Não abre mão do que considera sua obrigação de artífice da

palavra, inaugurando nova etapa na cultura latino-americana. Guia-mapa de Gabriel Arcanjo

já apresenta, embrionariamente, o empenho de Piñon em valorizar o erotismo como força de

liberação e afirmação. Nesse livro, Nélida faz o caminho da busca de Deus através do pecado

ou da consciência do pecado. Esse primeiro romance sinaliza para o que se seguirá na obra de

Nélida Piñon na abordagem dos múltiplos temas: o amor, inserido no questionamento do

cristianismo, métodos especiais de narrativa, com recriações técnicas no que diz respeito ao

enredo e à menção a contingências históricas. Acresça-se aí a criatividade no minimalismo da

descrição física de cenários e da construção de tipos diversos de personagens, tanto aqueles

claramente delineados quanto aqueles que, no seu anonimato, se apresentam como registros

de papéis/construtos sociais de uma cultura.

Uma das temáticas do Surrealismo é a própria linguagem e a busca pela libertação da

imaginação. Na obra de Nélida Piñon a criação é a busca da ideia original através da

linguagem. Esta, em Piñon, é movida pela técnica da invenção poética. Desde muito cedo a

escritora registra valores inventados pelo projeto surrealista, embora não tenha se preocupado

em evocar filiação com este ou aquele movimento literário. Cabe-nos, porém, registrar que

Nélida Piñon abandonou a escrita automática e a rejeitou, mas, preservou o fundo teórico

implícito que a sustenta.

Em Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, percebe-se a temática católica com raízes no

catolicismo inicial das catacumbas. Piñon trabalha sobre essa ideologia cristã tanto em nível

de sua manifestação à época de Cristo, quanto em nível de seu enraizamento na

espiritualidade do mundo Medieval. Revela, assim, o dilaceramento da divisão entre o corpo e

o espírito, e a desarmonia entre consciência e natureza através do conflito entre amor e

pecado.

Outro aspecto de sua escrita é o modo como Nélida se vale das metáforas de

atividades femininas para descrever seu trabalho: “o corte-e-costura”, “o bordado”, “o

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chuleio”; a autora também usa a metáfora da viagem, figura do reexame – repetição temporal

e espiritual.

Pode-se, dessa forma, verificar na narrativa desse romance, dois planos: o primeiro

seria a viagem (ou queda?) do arcanjo Gabriel na Terra; o segundo, a viagem exploratória da

personagem Mariela em busca de sua identidade através do amor e do pecado. Mariela, a

personagem concebida por Piñon é a antítese da versão idealizada pelo homem como símbolo

perfeito do ideal feminino. É a anti-heroína que não aceita as imposições da tradição. Para ela

“deixar de infringir as leis do pecado, um estado humanamente circunscrito à própria

existência, não seria em si antinatural?” (PIÑON, 1961, p.61) Guia-mapa de Gabriel Arcanjo

foi considerado pela crítica ilógico e desconexo, mas paradoxalmente, essas eram as suas

qualidades. Se algumas críticas foram rigorosas com a autora, outras não poderiam deixar de

reconhecer que seu texto era ousado e corajoso para uma adolescente e ainda mais, mulher,

delineando com força e clareza seu pensamento, sua imaginação criativa, até as últimas

consequências. Instrumentalmente, o romance é tecido pelo surreal e o metafórico,

polissêmico e singular, contraditório e ambíguo quanto ao propósito, sem solução satisfatória.

Assim, esse livro representa na obra de Piñon, uma fase de aprendizado e amadurecimento,

classificada pela própria autora como “expressão defeituosa era a expressão correta do meu

interior”. Entretanto, pontua passagens memoráveis, sugestões riquíssimas e ideias e formas

que irão desabrochar em seu futuro trabalho. Nélida já disse que deseja republicar esse livro,

mas com um texto que pudesse ser uma visão quase memorialística dos seus primórdios de

autora.

Madeira feita cruz foi escrito em 1961 e publicado em 1963. Em linguagem

metafórica e hermética, esse livro é ousado, heterodoxo e polêmico, no qual a autora

reescreve a história de Jesus, numa ótica que altera os fatos bíblicos e tenta reinventar o

Cristianismo, fundando-o numa Igreja mais humana erguida sobre a “madeira e não sobre a

pedra”. Veio com sabor de sacrilégio em vista dos cânones da Igreja. A história de Jesus

Cristo é contada através de um novo messias – Pedro – não um pescador, mas um taberneiro

que foi crucificado e ressuscitou. O livro tem quarenta e duas partes divididas em dois planos:

o do real, com dezenove partes que trata da história de Ana em busca de uma taberna, seu

caminho pela floresta e seu retorno (as duas partes finais); o segundo plano o do irreal,

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onírico, com vinte e três partes destacadas em itálico, que fala do drama de Ana em confronto

com elementos míticos cristãos. Nesse plano aparecem personagens da aldeia e a família de

Ana e Pedro; esta com a missão de fundar um novo tipo de cristianismo. A história se passa

num cenário geográfico e temporal indeterminado; uma aldeia? uma floresta? Não se sabe. As

personagens são reduzidas quase ao anonimato e transitam num tempo mítico, bíblico:

Quaresma, Quarta-feira de Cinzas, Páscoa, Ressurreição de Cristo, etc. Em Madeira feita

cruz, a mulher é considerada mais próxima às paixões corpóreas que o homem, criada para ser

sua parceira, ela o seduz e o leva ao pecado. Maria não é a virginal mãe do Messias, mas a

mulher dele, carnal, sedenta de amor. A sexualidade se manifesta constantemente. Esse livro é

para a autora uma espécie de “prestação de contas” à religião, à herança de sua formação

católica, cultural e religiosa. É, na verdade, um passo corajoso para seu desenvolvimento

como escritora.

Nesses dois primeiros romances, Nélida Piñon já deixa claros os símbolos que irão

marcar seu percurso e evolução como escritora. Sua narrativa é plena de símbolos

contraditórios e ambíguos – a floresta, a madeira, o verde e a pedra (imagem importante em

sua obra), marcas que permanecem e evoluem até os dias de hoje.

Lançado em 1966, Tempo das frutas foi também um desafio para os leitores, pois,

trouxe à tona personagens anormais, imorais e pervertidos, que serviram de matéria para a

tentativa da escritora de alcançar a verdade oculta nos cérebros, nas mentes. Primeiro livro de

contos da obra de Nélida Piñon, Tempo das frutas mostra que a escritora é tão talentosa nas

narrativas curtas quanto nos romances. Seus contos exploram sentimentos profundos de

personagens oprimidas pelo caos da sociedade; são criaturas que vivem no limite do real, num

mundo complexo e marcado pela anormalidade, no qual a escritora circula com desenvoltura,

monitorada pela escrita densa, mas bem humorada e inteligente. A partir desse livro de contos

pode-se inferir que Nélida Piñon passa da “fome do eu”, fase do romance de aprendizado,

para a “fome do mundo”, numa linguagem mais épica, isto é, para uma literatura que remete

ao mundo exterior.

Em Nélida Piñon, as prodigiosas aventuras do desejo não ocorrem separadas de outra

temperatura além da corpórea, e este é o clima moral de sua obra. Para ela, um romance se dá

graças à linguagem e a linguagem é um fenômeno ético por ser um fenômeno social,

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partilhado, ao qual o romancista pode outorgar todas as pregas e todas as nuanças, todos os

ritmos e todas as cores da sua invenção individual, mas do qual finalmente regressará,

enriquecido à fonte da qual jorrou: a vida coletiva da cultura partilhada.

O objetivo de Nélida Piñon consiste em outorgar uma linguagem errante, insepulta, a

uma raça que emerge cega das cavernas e clama por explicar a si mesma, por dar sentido à

voz, à atração sensual, à fundação civilizada, à compaixão social, à liberdade estética. Com

razão o nome do romance Fundador, publicado em 1969, no qual um cartógrafo brasileiro,

verdadeiro Zelig1 tropical, assume todas as formas, nomes, vestimentas e temperaturas que

encontra ao alcance da mão para dar forma, virtude e voz a um mundo, o seu Brasil. Nesse

texto, Piñon abandona a base realista que comanda a criação literária analógica do mundo e

põe em cena personagens históricas e ficcionais, criando um mundo eminentemente estético.

As questões religiosas, do pecado e da emancipação individual ganham outra dimensão,

passam para o coletivo, numa realização de revolução espiritual com atuação políticossocial.

Talvez, nesse romance, Piñon tenha começado a trilhar o seu grande caminho, o da

reinvenção das origens pela escritura, o caminho da redescoberta. Fundador foi traduzido

para o espanhol, na Argentina e para o polonês, na Cracóvia. Rendeu à Nélida Piñon uma

série de prêmios literários, dentre eles, Prêmio Especial Walmap – 1969.

Três anos mais tarde, Piñon publica A casa da paixão, 1971, no qual a ideia chave é:

ao mudar o estado do corpo, altera-se o pensamento e redescobrem-se, em tempos de

mutação, as raízes da condição humana. Ao falar sobre A casa da paixão, a autora ressalta a

negação do corpo na nossa sociedade mosaico-cristã e, através dessa obra, salienta seu desejo

de despertar a “consciência do corpo”, onde o relacionamento primitivo exclui qualquer outra

ocupação. Assim, desconstruindo a radicalidade do “feminino” consagrado pelo falocentrismo

e pela psicanálise. Para Octavio Paz: “... só a mulher tem consciência de sua singularidade

corpórea e poderá criar arquétipos eróticos do masculino e do feminino. [...] Ao libertar-se da

imagem deformada de si mesma que lhe foi imposta, ela haverá de liberar os homens

também.” (PAZ, 1985, p.42) E é desse ponto de vista que Piñon faz irromper o tema do

1 Zelig – nome do personagem principal, Leonard Zelig, do filme de Woody Allen, apresentado como

verdadeiro camaleão-humano, capaz de alternar sua personalidade, de acordo com o ambiente em que

se encontra inserido.

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desejo e da iniciação sexual, estabelecendo, entre as quatro personagens, um relacionamento

primitivo, permeado de infinitas intenções, referências figuradas, símbolos e ressonâncias,

objetivando elementos da psicologia, da filosofia e do imaginário mítico. A autora reivindica

e afirma o direito da mulher ao gozo sexual, dando expressão à sexualidade feminina. A

narrativa mostra uma personagem como protagonista da história, que tem consciência da

necessidade de a mulher reconhecer sua qualidade masculina interior para poder reconciliar-se

com seu parceiro masculino exterior. Em síntese, a personagem feminina busca a sua

identidade através da comunhão com o Outro pelo resgate do corpo. Isto é, pela

complementaridade dos sexos. O romance está estruturado em torno de personagens humanas

e da natureza, que também é personagem (ar, fogo, terra e água). A casa da paixão, diz

Nélida: “... é uma espécie de poema em que faço uma homenagem aos pré-socráticos, à

grande metáfora da essência humana”. A história desse romance, ao gravitar em torno dos

quatro elementos da natureza, traz em seu bojo, todo um saber na retaguarda de seu texto. É

um romance alegórico, que revela um mundo entregue às forças primordiais, abalando as

bases da tradição cristã construída pelo falocentrismo e pelo interdito ao sexo. Instaura-se

nessa obra uma corajosa meditação ética/cristã e escava a profundeza do corpo da mulher que

a Razão civilizadora amordaçou. Por A casa da paixão Nélida Piñon recebeu o Prêmio Mário

de Andrade, em 1973.

Foi também em 1973 que Nélida Piñon publicou Sala de armas. Nos dezesseis contos

reunidos, mais uma vez, a fé inabalável que a escritora tem no poder da palavra encaminha o

leitor pelos meandros da vida humana. A narrativa de realismo fantástico faz um amálgama

do onírico e do real. Piñon despersonaliza tipos e lugares e, com imaginação e talento desafia

seu leitor a decifrar símbolos, revelar máscaras, trazendo uma linguagem poética e um viez

neossurrealista aos textos desta coletânea.

Tebas do meu coração, 1974, foi o primeiro romance de grande fôlego, que, segundo a

crítica, parece ter sido um divisor na obra de Nélida Piñon. Foram sete manuscritos até a

versão final, três mil e seiscentas páginas, que, datilografadas, resultaram nas trezentas e

oitenta do romance. Neste, a escritora cria uma realidade para desmentir a realidade, contando

num misto de humor trágico ou frio humor, transcendentalmente, a saga de Eucarístico e todo

o elenco de personagens incríveis, ricos e fantásticos, na fabulosa península de Santíssimo.

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Percebe-se nesse texto um profundo sentimento pessimista e uma visão quase apocalíptica.

Em Tebas do meu coração, Nélida Piñon, “encurralada” por uma crise intelectual, segundo

depoimento intitulado “De Tebas ao meu coração”, no III Encontro Nacional de Professores

de Literatura (Rio de Janeiro, 28-31 de junho de 1976), apresenta sua guerrilha de resistência

a qualquer imposição autoritária, política ou intelectual, ao pensamento, através da linguagem.

Em Tebas do meu coração, os fios da meada podem ou não se cruzar. No texto

contemporâneo há a aspiração da totalidade, mas Nélida desmistifica essa aspiração numa

instigante leitura que proporciona prazer.

A força do destino, 1977, período mais opressivo da ditadura militar (1964-1984), é o

oitavo livro de Piñon. Essa obra faz ecoar, através da ótica parodística, os ruídos

desencantados dos anos 70, na vigência do AI-5 (pós-desilusão da euforia criadora de 1960 e

que o golpe de 1964 veio castrar). Nasceu de sua paixão pela ópera, uma metanarrativa que

traduz, ao mesmo tempo, uma exaltação à realidade original entre o real e o irreal de uma

história de amor. A escritora optou pelo humor. Valeu-se da estratégia da paródia burlesca da

grande ópera do mesmo nome de Giuseppe Verdi, desconstruiu o drama original e

desenvolveu uma bem-humorada e irônica reflexão sobre o gênero ópera e sobre as fronteiras

entre realidade e ficção, expondo-se ao leitor com extraordinária inteligência. Esse romance

foi a primeira adaptação de um livro de Nélida a ganhar vida nos palcos, no Centro Cultural

TELEMAR, 2006. Foi também considerado um divisor marcante nos rumos da carreira de

Piñon. A primeira fase classificada de modernista, vanguardista e experimental e a segunda,

caracterizada pelo retorno da disciplina “tradicional”, chamada de pós-moderna. Uma espécie

de “obra aberta”, favorecendo cada vez mais as relações humanas. Em síntese, a escritora

parece substituir o espírito subversivo e anárquico da primeira fase pelo espírito humorístico.

Nélida Piñon escolheu a ópera como objeto de sua paródia numa decisão lógica e coerente

com uma visão ética e estética ao longo de sua carreira. Desenvolveu nesse romance vários

assuntos recorrentes em seu trabalho como, por exemplo, a crítica à sociedade patriarcal

cristã. Enfim, A força do destino é um exercício literário que mistura valores e realidades

diferentes na busca de um discurso pessoal.

Entre os trabalhos da década de 70 e o novo aparecimento das obras de grande fôlego,

A república dos sonhos e A doce canção de Caetana, surgiu a coleção de contos, O calor das

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coisas, publicada no alvorecer da redemocratização do Brasil. O calor das coisas, publicado

em 1980, é o terceiro e último livro de contos de Nélida Piñon. São treze narrativas curtas, nas

quais a escritora ressalta, mais uma vez, sua preocupação com a importância manipuladora da

palavra. Entretecidos com fina ironia, esses contos são elaborados dentro de uma complexa

construção para desvendar o mais íntimo de cada personagem. Enredos originais, permeados

de humor sutil, belas e delicadas imagens para tratar as paixões humanas. Piñon alterna

poesia, crítica, racionalidade e erotismo, transbordando qualidade, o que torna sua leitura

provocadora. Não se pode afirmar a cronologia dos treze contos, porém, pode-se supor que

tenham sido produto de vários anos, desde o fatídico 14 de dezembro de 1968, dia no qual o

Jornal do Brasil do Rio de Janeiro noticiou:

Tempo negro, Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O País está sendo varrido por fortes ventos; Máxima de 38º em Brasília. Mínima de 5º nas Laranjeiras. O “tempo do calor” entrava em vigência sob as ordens do Marechal Costa e Silva que assinara a proclamação do Ato Institucional nº 5, suspendendo a todos os cidadãos o direito de “habeas-corpus”. Instalara-se o “estado de terror”; estava oficializada a censura, e o “gigante adormecido” mergulhava num coma político do qual não se despertaria por muitos anos e que deixaria uma marca indelével na consciência nacional. (TEIXEIRA, 1995, p.113)

A Nélida Piñon nada escapou, nem as emoções do momento ou tampouco as traições,

as paixões e as muitas maneiras de amar que ela deixa extravasar nos relatos de O calor das

coisas.

Após esse volume de contos publica, em 1984, o romance A república dos sonhos.

Nele, o leitor encontra os reflexos da origem familiar da escritora - peninsular, espanhola,

galega – e de seu destino individual: americano, português, brasileiro. Em A república dos

sonhos, Piñon tece uma ponte de hera e bruma, faz uma viagem de velame e orquídea entre as

costas da Galícia e do Brasil, inventando, ironicamente, os termos usuais da relação

Europa/América. Ao narrar a saga da família enraizada na Galícia, que emigra para o Brasil,

dá os mitos de presente aos europeus e destina aos americanos o direito de viver uma

realidade que, com ou sem Europa, já existe. Uma cultura do Novo Mundo, feita com braços e

cabeças europeus, indígenas, africanos e, sobretudo, mestiços e mulatos. A romancista radica-

nos na terra concreta e na vida tangível do Brasil para dizer-nos apenas que a realidade

também inclui os sonhos, mas os sonhos do Novo Mundo.

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Nélida optou pela forma de romance para fundar a república dos nossos sonhos, que,

mesmo quando não cumpridos, são irrenunciáveis, nascidos de ilusões perdidas e de amores

ganhos. Para ela esse é o livro do coração: “O que deflagrei na República foi um inventário,

não de vida, mas de criação. Contei com a memória para compô-lo e isso era tudo o que

precisava. Eu queria as falhas da memória porque aquilo era um livro de ficção, com meus

preconceitos derramados sobre os personagens.” (MARINHO, 1991, p.4) Talvez seja este o

ponto mais alto da produção romanesca de Nélida Piñon. Nele a história e a ficção, o real e o

imaginário estão em contínuo contraponto. Numa filosofia de vida ou atualíssima visão de

mundo, Piñon vê na criação/invenção literária ou artística em geral, a porta de entrada para o

novo homem e o novo mundo. Romance impregnado de brasilidade e de universalidade, no

qual se entretecem as forças do imaginário e da ação de uma construção da história brasileira.

Uma efabulação visceralmente dirigida pelo tempo – emoção e a memória ancestral, cuja

narrativa constrói a vida e a história que revelam a saga de uma família, e, ao mesmo tempo, a

historicidade de um Brasil-em-processo, dando-nos uma lição de paixão pela vida, pela terra

em que nascemos ou nos fixamos e pela criação literária. Por A república dos sonhos, Nélida

Piñon foi brindada com o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio

Ficção Pen Clube em 1985.

Em A doce canção de Caetana, 1987, Nélida Piñon destaca a questão da ilusão na arte,

busca desvendar o mistério do ser humano e eliminar suas máscaras, seus disfarces. Examina

a questão da criação, do papel do artista, do espectador através do tema do teatro-circo

itinerante. Parece homenagear a oralidade e a perpetuação da voz. Outra questão fundamental

desse livro é o mimetismo, personagens que copiam gestos de outros, transmitindo a um

terceiro seus sentimentos.

(Desse romance falaremos posteriormente, por tratar-se do objeto de estudo desta

tese).

Após sete anos de silêncio, Nélida Piñon publicou O pão de cada dia, em 1994, livro

de fragmentos no qual deixa de lado a moderna ficção que a consagrou e empreende uma

reflexão profunda sobre as inquietações do homem. São fragmentos que exprimem emoções,

ideias e pensamentos escritos ao longo de sua vida. Reflexões não só sobre os temas

constantes em sua obra, mas também, sob um olhar distinto, sobre sua vida pessoal. O

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mosaico resultante desses fragmentos registra as inquietações e preocupações do ser humano,

instiga a uma leitura que, além de entreter, comover e provocar revela, na sua riqueza de

estilo, um pouco da personalidade da escritora.

A roda do vento, publicado em 1998, marca a estréia de Nélida Piñon na literatura

juvenil. Esse livro traz o cotidiano recriado e enriquecido pela força poética da palavra. A

escritora, ao falar da escrita desse texto, confessa que no início ansiava por viver uma

aventura, voltar à juventude, aos tempos da inocência e sentir-se livre das amarras das regras

difíceis do ofício de escrever. Mais tarde pensou também, enlaçar mitos, lendas e histórias

soltas e desatadas. Transmitir aos seus leitores a ideia de que somos todos filhos da

imaginação. Para ela: “sem a arte de inventar, não fabricamos memórias, emoções, tortas de

chocolate.” (PIÑON, 1998, p.3)

O livro Até amanhã outra vez, publicado em 1999, uma reunião de crônicas, nas quais

Nélida Piñon se diz mostrar por inteiro, percorre os caminhos da memória em busca do que

está além da própria literatura. Nessa coletânea de cento e vinte e uma crônicas, a escritora

vale-se da concisão para, em solos rápidos, dialogar com seus leitores sobre o cotidiano e o

insólito. Fala também da imaginação, da ilusão, da fantasia, da esperança, das regras do jogo,

do amor, do feminino e do masculino, etc. E encerra com a crônica “Até amanhã outra vez”,

apontando para o eterno ciclo da vida: “Nas ruas e no desconsolado coração do homem.”

(p.284)

Foi no ano de 2002 que Nélida Piñon nos surpreendeu com uma série de ensaios que

fascinaram até mesmo o leitor familiarizado com o mundo das letras, um mundo sempre

renovado pela criação literária. Deparamo-nos, neste livro, O presumível coração da América,

com personagens surpreendentes, uns mais, outros menos familiares. A escritora rendeu-se à

sugestão de reunir alguns discursos pronunciados nos últimos anos.

Vozes do deserto, 2004, é a recriação das Mil e uma noites, uma compilação de

histórias entretecidas pelo fascínio do deserto e suas vozes. Nélida Piñon fez um romance no

qual a imaginação e a fabulação foram os grandes temas. Um romance que mostra ao leitor o

que é pensar de maneira imaginativa, o que é fabular a partir do quase nada, de poucos

ingredientes, a partir da precariedade do ser humano. A autora transforma-se numa

Scherezade (que escolheu para ser sua heroína), para mostrar como é que funcionam o

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coração e a cabeça de sua personagem. Tanto que, no livro de Nélida, não se escuta a história

que Scherezade conta, isso não interessa. Na narrativa, o que importa é que a protagonista vai

juntando os pedaços e vai armando as histórias para não morrer. Histórias tais, que são

produtos da oralidade humana. Piñon escolheu o Oriente porque atribui ao povo de lá, a

capacidade de ser senhor do poderoso ato da imaginação. Ao narrar a história de Scherezade,

sua nostalgia e sua paixão pelo povo, a escritora também presta uma homenagem aos

narradores de rua, aos que vivem contando histórias pelos bares da vida. Piñon afirma que sua

obra não está a serviço apenas de inventar um novo mundo: está a serviço da língua. A sintaxe

é um ato de imaginação do indivíduo. E como ela queria ir fundo nesta viagem pela

fabulação, escolheu um território: o deserto. Escolha criativa por ser este um espaço que, de

certo modo faz descortinar frente a nossa imaginação territórios desconhecidos e mutáveis do

nomadismo. E ninguém é mais extraordinário para contar histórias do que ser nômade. O

nômade arrecada as histórias de cada lugar que vem a conhecer e as reconta em cada novo

lugar que visita. Nélida nos revela, através de seu texto, a força mágica da voz narrativa de

uma mulher, aqui, Scherezade, que foi capaz de salvar sua própria vida e a de mil e uma

outras donzelas que o califa ameaçara ceifar para vingar-se da sultana que o traíra. A escritora

vê com simpatia a mulher forte e delicada, ao mesmo tempo, que nos revela a sua natureza

profunda, fazendo-nos ouvir as vozes do deserto, de onde vieram e para onde vão os sonhos

da narradora. Por Vozes do deserto, Nélida Piñon foi agraciada com o Prêmio Jabuti em

2005.

Ao lançar o livro de ensaios Aprendiz de Homero, em 2008, Nélida Piñon declarou:

“Sou apaixonada por Homero, tenho a sensação de que somos seus filhos, mas que ele só

existe se nós o legitimarmos” (Discurso ao receber o Prêmio Príncipe das Astúrias). O autor

de Dom Quixote e o poeta da Ilíada são alguns dos artistas que Piñon elege em seu Aprendiz

de Homero. Um cânone amplo o bastante para incluir escritores como Mario Vargas Llosa e

Carlos Fuentes, Machado de Assis e a narrativa Oriental de As mil e uma noites. Fala ainda de

seus escritores preferidos, de suas leituras, dos livros que têm o poder de transformar, “fazer

de nós seres humanos melhores”. Em Aprendiz de Homero ela reúne vinte e quatro ensaios

que versam sobre suas influências literárias, temas e personagens que lhe são caros: Dom

Quixote e a Espanha, Capitú e o Rio de Janeiro, Ulisses e sua épica odisséia. A autora

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esmiúça o trabalho dos grandes escritores e faz de seus ensinamentos a ponte para um

memorialismo lírico. Nesse livro, Nélida Piñon dá uma aula de literatura e brinda seus leitores

com a paixão e a devoção pela escrita. Com Aprendiz de Homero Nélida, ganhou o Prêmio

Casa de las Américas na categoria literatura.

A narrativa em Coração andarilho, livro de memórias publicado em 2009, se dá a

partir do nascimento de Nélida Piñon aos contínuos rituais de passagem de sua vida até certa

época. Uma grande travessia na qual a autora conta como vai se dando sua formação e sua

arqueologia privada, num passeio pela infância e pela família. Nessas memórias, além da mãe,

Carmem, Piñon referencia também a figura do pai, Lino, e do avô, Daniel, as grandes figuras

masculinas de sua família, co-protagonistas da obra. Fala ainda de Santa Fé, uma aldeia da

Catalunha, aonde vai muito para escrever e de Paris e outras cidades que influíram no seu

crescimento.

Nélida Piñon é uma colecionadora de prêmios, amealhou quase a mesma quantidade

de distinções no Brasil e no exterior. Além dos já citados temos ainda: Prêmio Golfinho de

Ouro, pelo Conjunto de Obras, conferido pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, 1990;

Prêmio Bienal Nestlê, pelo Conjunto de Obras, em 1991; em 1995 foi reverenciada com o

Prêmio Internacional de Literatura Latinoamericana e do Caribe Juan Rulfo, em Guadalajara,

escolhida por unanimidade pelo júri e, pela primeira vez concedido a uma mulher, a um

cidadão brasileiro e a um escritor de língua portuguesa; Prêmio Príncipe de Astúrias das

Letras em 2005, dentre outros. Recebeu também, condecorações como a Lazo de Dama de

Isabel La Católica, outorgada pelo rei Juan Carlos da Espanha.

Ao longo de mais de cinquenta anos de ininterrupta atividade criadora, Nélida Piñon é

um testemunho de que a palavra é a forma de expressão, através da qual o ser humano mais se

expõe, quer diante de seus problemas individuais, quer frente às suas mais dramáticas

contradições enquanto ser social, político, cultural, economicamente determinado. Daí, sua

consciência da função do escritor, aquele que não se limita somente à criação, mas também

empresta sua consciência aos seus leitores, fazendo-os refletir sobre a realidade e reivindicar

uma sociedade mais justa.

Desde os seus primeiros livros percebe-se a preocupação do arquétipo da viagem, da

errância e da fundação, do homem movido pelo ímpeto da criação na ilusão de ser sempre “o

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primeiro e o último”, numa busca insaciável de uma sociedade perfeita. Em sua obra, pois,

Nélida Piñon nos convida à viagem, cada livro seu é uma aventura - do imaginário, da

linguagem e das personagens -, e tanto nos convence a “vestir máscaras”, representações da

multiplicidade de faces do humano, como nos seduz com sua “doce canção”.

2.2.1 A doce canção de Caeatana

Aqui, a romancista volta a explorar o veio folhetinesco da paródia, filtrando por essa

ótica irreverente a vida do dia-a-dia do interior, Trindade, cuja rotina é alterada pela volta de

Caetana. Numa linguagem simples e linear, a narradora passa para o leitor sentimentos de

ironia, ternura, crítica, compaixão. Deliberadamente, enfoca o papel exercido pela ilusão, na

arte; o mistério das aspirações e devaneios que alimentam cada personagem, as máscaras e

disfarces usados no teatro da vida. A doce canção de Caetana é um romance de denúncia

política, uma incursão ao universo de uma cidade do interior, Trindade, à época da mentira do

milagre brasileiro, no começo dos anos setenta. Cabem aqui, as palavras de Nélida Piñon,

citadas por Naomi Hoki Moniz:

A Doce Canção de Caetana me é caro porque se preocupa com o caráter fundamental da criação: a ilusão. Que, para mim, é matéria-prima fundamental porque lida com a deformação, com o fake, o trompe-l’oeil na área da ilusão. Certa vez escrevi fixando-me num momento brasileiro que julguei fascinante para implantar a mentira, a ilusão e o desfalecimento das coisas risíveis: a semana prévia ao Tri-campeonato Mundial de Futebol, momento do Milagre Brasileiro, quando a ilusão era maior que a realidade. Nesse romance, Caetana – que é uma atriz de teatro mambembe – volta à sua cidadezinha e tem o seu dia de Callas num cineminha modesto com cenário falso e simulações. A velhice e a morte são também temas fundamentais nesse romance porque ambas deterioram e determinam a morte das ilusões. (MONIZ, 1993, p.170)

Humor e amor, ternura e ironia marcam cada momento desse romance, em que a

autora arquiteta, brilhantemente, uma história de muitas paixões: pela arte, pela vida, e em

que se tecem o peso da realidade, a fantasia sem limites e a força da emoção. A ilusão se

manifesta como busca de uma utopia da qual o ser humano não abdica como fundamental

para sua existência. Toda a ação do romance ocorre em Trindade, uma cidadezinha do interior

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fluminense, próxima de terras capixabas, mostrando o dia-a-dia banal da população

interiorana. A doce canção de Caetana introduz alusões a eventos sociais e políticos sem se

deixar levar pelo nacionalismo provinciano. A história, afirma Moniz, “... é uma espécie de

fábula sobre o amor.” (p.172) O enredo gira em torno da chegada de Caetana a Trindade após

viajar vinte anos pelo Brasil, à procura da realização do sonho de se tornar Maria Callas e se

apresentar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Depois de tentativas fracassadas, a atriz

retorna desiludida, mas decidida a cobrar de Polidoro, seu amante no passado, a promessa de

que realizaria todos os seus sonhos. A esses, a atriz inclui o de apresentar-se numa

performance operística no teatro Íris, pequeno cinema local. Nessa performance são

envolvidos, além da sua trupe, os moradores e as prostitutas da pequena cidade. “- Vim para

montar um espetáculo. Aceita ser minha atriz? Ser aplaudida em cena aberta aqui em

Trindade?” (PIÑON, 1997, p.224), pergunta Caetana à Gioconda. Com planos de montar um

grande espetáculo, a ópera La Traviata, ela exige de Polidoro que reconstrua o velho cinema

Íris, transformando-o num teatro digno de exibir sua produção. O plano de Caetana consiste

em estrear no palco do Íris na véspera da final da Copa do Mundo, Brasil e México. E, a

despeito da denúncia de Dodô, de que as instalações do teatro não tinham condições de

abrigar o público, Caetana, insiste no projeto de encenar sua ópera no dia marcado,

enfrentando a ira da rival. “No palco, como mudos, todos agitariam os lábios, simulando

cantar.” (PIÑON, 1997, p.372) Caetana, emocionada, emprestaria à Callas os lábios para fazer

emergir o som do disco tocado na vitrola de tio Vespasiano. Finalmente, apesar de Caetana

cumprir sua função, não se ouve mais nem a sua voz nem a orquestra. A vitrola cessa de

enviar música à cena. O público percebe a fraude e vaia. Balinho, provavelmente, havia sido

sequestrado, a vitrola roubada e os discos quebrados. Caetana, humilhada, sai de cena. A trupe

foge, e de novo deixa Trindade, prometendo voltar dai a vinte anos. “Com Deus eu me

entendo”, diz Nélida Piñon, “com os homens é mais difícil”. Mas sua magia consiste em aliar

imaginação à compaixão, a fim de dar às personagens, à escrita e aos leitores, “uma pele igual

à sua”. Na doce, mas também maravilhosa canção de Caetana, o protagonista masculino

comete todas as loucuras do mundo para chegar à mulher amada, à sua sonhada república

erótica. O seu sonho fracassa, ele nunca chega até Caetana, mas obtém algo melhor, que é a

companhia de outra mulher que o seguiu, o entendeu e, de tanto imitar o desejo do homem,

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acabou convertendo-se na mulher desejada. Concluindo, uma narrativa envolvente e cheia de

referências, que instiga e diverte o leitor.

Por A doce canção de Caetana, Nélida Piñon recebeu o Prêmio José Geraldo Vieira,

da União Brasileira dos Escritores de São Paulo, em 1987.

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2.2.2 As personagens

Caetana – A protagonista do romance assume vários papéis nessa obra: a amante

ausente e sempre presente na memória; adorada por Polidoro e Gioconda; a rival odiada por

Dodô; a grande atriz e a heroína do teatro ou da ópera, que nunca deixa de representar, nem

mesmo na vida privada. Mulher determinada e sonhadora, não deixa que os sentimentos se

interponham entre seus objetivos de ser famosa, mesmo que por alguns instantes.

Tio Vespasiano - Fundador do grupo de teatro, o tio Pantaleão de Caetana: “Desatento

ao físico, Vespasiano usava cinto de corda para as calças não caírem. A cintura dilatava-se

pela cerveja que tomava nos bares da estrada, sob o olhar de Caetana, sempre a seu lado desde

criança.” (PIÑON, 1997, p.110) Foi ele quem a criou e educou, desde a morte de seu irmão

vitimado pela tuberculose. E o fez sempre fora dos padrões de criação de uma menina da

época, pelo contrário, criou-a para que nunca renunciasse a um sonho. Por ele, a atriz sempre

devotou amor filial.

Balinho – O trapezista da trupe, amigo e confidente de Caetana. Cuida de suas roupas,

de sua alimentação e de sua segurança, com devoção.

Danilo – Artista da trupe de Caetana. “Com excesso de músculos em detrimento da

massa cinzenta.” (PIÑON, 1997, p.117) Também chamado de Príncipe, lutara na guerra do

Paraguai e tem verdadeiro pavor da velhice.

Joaquim – Pai de Polidoro, de vitalidade quase “abusiva”, luta desesperadamente

contra a morte. Vive em animosidade com o filho primogênito e é contra seu romance com

Caetana, a quem julga exploradeira.

Magnólia – Mãe de Polidoro, sempre atenta aos deveres domésticos, mulher carente de

atenção, e que se encanta pela gentileza de Bandeirante.

Polidoro - Filho de Joaquim e Magnólia, casado com Dodô, com quem tem cinco

filhas e amante de Caetana. Dono de muitas fazendas, gado e da cidade, inclusive do delegado

de polícia. Déspota, dominador e rude, nunca se contenta com o segundo plano da vida, a não

ser, diante de Caetana, por quem nutre uma paixão cega e desenfreada, submetendo-se a todos

os caprichos da mulher.

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Dodô – Mulher de Polidoro, pragmática e protetora da ordem social, usa de sua

influência para galvanizar a família, em defesa dos bons costumes e do patrimônio.

Reconhece a capacidade de sedução da rival e luta para afastá-la da cidade e da vida do

marido.

Ernesto – O farmacêutico de Trindade e amigo particular de Polidoro.

Vivina – Esposa de Ernesto, mulher arredia a intimidades, mas que não se descuida da

família, limitando a vida do marido e amedrontando-o com suas visões.

Virgílio – Eminente historiador e professor “poeta”, engajado na preparação do

espetáculo que levaria Caetana ao palco do cinema Íris.

Venieris – Comerciante grego que se realiza como pintor dos cenários. Mora sozinho

em Trindade, preenchendo suas horas vagas com a pintura de pequenos quadros. É convocado

por Polidoro a pintar os cenários da ópera e transformar o velho cinema Íris num teatro digno

de receber uma grande atriz – Caetana.

Mágico – Recepcionista do Hotel Palace, fala pouco e observa muito. Zeloso,

pomposo e cordial com os hóspedes, acha que, embora em ruínas, o estabelecimento ainda

atrai turistas e casais em lua-de-mel.

Francisco – Garçom do Hotel Palace, grande conhecedor de Trindade e de seus

habitantes. Afeito a “fofocas”, faz da vida alheia razão para dedicar-se às confidências dos

hóspedes.

Narciso – O delegado da cidade. Para oferecer melhor condição de vida à mulher e aos

filhos, que moram no Rio de Janeiro, é obrigado a aceitar migalhas de Polidoro em troco de

humilhações e desrespeito. Alia-se a Dodô para expulsar Caetana da cidade.

Pentecostes – Prefeito de Trindade, no afã de demonstrar seu poder aos moradores da

cidade e angariar prestígio junto à família Alves, sugere que se erija um busto em homenagem

à Joaquim, pai de Polidoro.

As prostitutas da cidade – Gioconda e As três Graças.

Gioconda – Dona do bordel. Seu nome lhe foi dado por Caetana. Alimenta paixão

secreta por Polidoro e admiração exacerbada pela atriz. Sempre abdicou dos seus sentimentos

para obedecer às leis de seu ofício.

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Diana – De reações intempestivas, é revoltada com sua condição e gasta a vida à

espera de um homem que lhe dê casa, um lugar onde pudesse terminar seus dias em paz.

Palmira – Mais resignada, apesar da pobreza que prevê para seu futuro, é, dentre as

três Graças, a mais sonhadora.

Sebastiana – Tem mania de datas. Evita o riso para esconder a falta dos dentes. É a

companhia favorita de Virgílio no bordel.

Outras personagens: Borelli, o escultor; Bandeirantes ou Antunes, que chega à

Trindade para construir o Hotel Palace e as filhas de Polidoro e Dodô.

2.2.3 Entrevistas de Nélida Piñon

PIÑON, Nélida. Nélida Piñon: A mulher continua sendo parte invisível da humanidade Entrevista concedida a Carlos Herculano Lopes. Jornal El pais, Madrid, nov. 2006. PIÑON, Nélida. Nélida Piñon: sentimentos literários. Entrevista concedida a Carlos Herculano Lopes. Jornal Estado de Minas. E*M Cultura, jul. 2008. PIÑON, Nélida. Nélida Piñon: a paixão feminina pela palavra. Entrevista concedida a Luiz Costa Pereira Jr. p.12-16. Revista Língua Portuguesa. Ano 1, n.7, 2006. PIÑON, Nélida. Nélida Piñon. Entrevista concedida a Bruno Garschagen. p.20-24. Revista Entrelivros . nov. 2005. PIÑON, Nélida. Nélida Piñon. Entrevista concedida a Maria Inês de Moraes Marreco. Academia Brasileira de Letras, 06 de maio de 2010.

2.2.4 Antologias

FRANCO, Sergio. Contos brasileiros. 1996. (Organização Sergio Faraco). GONÇALVES, Orestes Campos. Mulher . Belo Horizonte: Sografe, 2009. MORICONI, Ítalo. Os cem melhores contos brasileiros do século. 2000. (Organização Ítalo Moriconi).

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COELHO, Luísa. Intimidades. 2005. (Organização Luisa Coelho). ZAPATA, Celia Correa de e JOHNSON, Lygia. Antologia crítica de narradoras latinoamericanas Del siglo XX. (Organização de Celia Correas de Zapata e Lygia Johnson).

2.2.5 Materiais especiais (Documentários/Programas de TV)

PIÑON, Nélida. Nélida Piñon: Prêmio Casa de las Americas. (Depoimento). Jornal das Letras, n.140, abril, 2010. PIÑON, Nélida. BH Eventos. Nélida Piñon. Academia Mineira de Letras. Programa Bate-papo com o Autor. Belo Horizonte, 17 de agosto de 2010. PIÑON, Nélida. Nélida Piñon. Memória Roda Viva. Documentário. 03 de fevereiro de 1997. Nélida Piñon: senhora das palavras. (Depoimento). Jornal Estado de Minas. E*M Cultura, 17 de agosto de 2010. Concedido a Janaina Cunha Melo. PIÑON, Nélida. Nélida Piñon. Memória Roda Viva; http://rodaviva.fapesp.br, 03 de fev. de 1997. Concedido a Matias Suzuki, Bernardo Ajzenberg, Lygia Fagundes Telles, Luciana Villas-Boas, Fábio Lucas, Humberto Werneck e José Nêumanne Pinto. Realização: Fundação Padre Anchieta-Labjor/Unicamp – Nepp/Unicamp.

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3 A MEMÓRIA E O TEMPO

“Somos hoje a memória viva ou entorpecida, do ontem e do anteontem e o prelúdio

tateante do amanhã”.

Alfredo Bosi

É a lembrança que nos traz o que já se perdeu e a linguagem o veículo que nos leva ao

passado para trazê-lo ao presente e direcioná-lo ao futuro.

A linguagem pode, às vezes, ser vista como embarcação que singra a imensidão do

mar e agradece às pontas de icebergs por sinalizarem a presença das grandes massas de gelo

invisíveis a olho nu e a grandes distâncias. Sem elas essa nau poderia se espatifar de encontro

ao que, para ela pertenceria ao reino do não perceptível e, consequentemente, do

incontrolável.

Essas pontas metaforizam a memória das sociedades e a história das mentalidades as

pesquisa com zelo e paixão, buscando em sinais como datas e números, a confiança de que

precisa. Datas são luzes que abrem, como raios, espaços luminosos em meio ao negrume

acumulado pelos séculos, o qual impossibilita o vislumbre de muitos das personagens e dos

fatos acontecidos.

A memória precisa dessas datas: “... da relação inextricável entre o acontecimento, que

elas fixam com sua simplicidade aritmética, e a polifonia do tempo social, do tempo cultural,

do tempo corporal, que pulsa sob a linha de superfície dos eventos.” (BOSI, 1992, p.19)

Datas, combinações de algarismos e números, responsáveis pela marcação implacável

do tempo. Elemento constante na obra literária, assinalado por Nélida Piñon desde as

primeiras páginas de A doce canção de Caetana: “Polidoro parecia ganhar tempo. Olhou o

relógio de parede. Insatisfeito, consultou o relógio de pulso. [...]. Há uma diferença de três

minutos entre nossos relógios.” (PIÑON, 1997, p.14) Polidoro, ao conversar com o velho pai

de noventa anos de idade e ciente da proximidade da morte, tentava arrastá-lo “para o reino da

penumbra”, valia-se dos relógios e da insignificante diferença de três minutos para disfarçar o

desconforto que o medo do pai com relação à morte lhe causava.

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Para o narrador, fatos que se passaram uns depois dos outros e precisam, para serem

narrados, de uma enumeração. Contar ou narrar o que se passou é tarefa que exige pelo menos

alguns elementos como: o ano, o mês, o dia, a hora em que o fato se deu, pagando tributo ao

deus Chronos.2

Nas obras estudadas neste trabalho, as autoras Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon

registram essas marcas do tempo como ponto de partida de suas escritas. A primeira, no

próprio título da obra: As horas nuas, assinalando um tempo de vazio e solidão; a segunda,

como primeiro parágrafo do romance, A doce canção de Caetana:

Ao atravessar a praça, Polidoro olhou o relógio, presente do avô Eusébio. O ponteiro ultrapassava as cinco horas. O atraso irritou-o, como se sua vida dependesse de uma pontualidade arbitrária, imposta unicamente pela pressa de ficar sozinho consigo mesmo, em frente à garrafa de uísque no bar do hotel Palace. (PIÑON, 1997, p.5)

Piñon, além de enfatizar o tempo do relógio, materializado pelo ponteiro que

ultrapassa os minutos, aponta para um tempo que, se perdido interfere na vida do personagem,

irritando-o, talvez pela constatação de que sua paz não era objeto de domínio próprio.

Tudo que acontece na existência traz a marca de um número em série, assinalando que

o tempo passado, anterior, matematicamente, não volta mais. Nessa concepção está incluída a

concepção de tempo das ideias – aparentemente contrastantes – de passamento e de

prossecução. Isto é, cada momento dura até apagar-se para ser substituído por outro e assim

sucessivamente.

Nessa visão do tempo se apoiam duas filosofias opostas: a primeira, cumulativa e

finalista; a segunda, pontual e contingencial, nas quais encontramos o modelo do tempo como

serialidade, sucessão, o antes e o depois. Entretanto, é preciso atenção à questão do sentido

que determina as teorias da História. Na primeira concepção encontraríamos as forças causais,

determinantes que nos conduziriam à felicidade almejada. Na segunda, as potências dos

2 Chronos da teologia órfica [...], este, sim, um deus, que deu origem à noção de um tempo que não

envelhece, imortal, imperecível e eterno, simbolizado por uma espécie de serpente que, qual um anel,

se fecha em círculo ao se enroscar sobre si mesma, e, como tal, um tempo não franqueado aos homens,

que nascem, crescem e morrem, sem conseguirem juntar o começo e o fim do tempo. (DOMINGUES,

1996, p.30).

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acontecimentos, anulando-se umas às outras, evidenciando e distinguindo os fortes e os

fracos, direcionando-os à morte. Essa, uma sequência, mas destituída de plenitude.

Em outras palavras, o tempo do ser humano poderia ser visto como uma constante

procura da satisfação dos desejos e da construção das representações, na maioria das vezes

falsas, subtraindo-se, o quanto puder, às sensações dolorosas e às verdades duras e amargas.

Nesse sentido consideremos um fragmento de As horas nuas, de Lygia Fagundes

Telles, no qual a autora vale-se da protagonista, Rosa Ambrósio, em seus delírios de voltar

aos palcos, fugindo do peso da idade e da decadência:

Vamos trabalhar juntos naquela peça, hem, Rahul?, perguntou na maior excitação. A peça do gato do jardim tão apaixonado pela moça apaixonada pelo amante que não voltou. Vimos a peça juntos numa noite em Paris, delirei! Gregório, traduza essa peça, quero esse papel! E ele me olhando, mas eu não estava velha demais para a personagem? Não disse isso, é claro, vi nos seus olhos. O café tão alegre, a fumaça, o vinho. E o olhar me dizendo que o papel da moça romântica e do gato consolando a moça. Okey, papel ingênuo, coisa de mocinha, ridículo uma atriz da minha idade, entendi. Mas uma noite dessas, hem, Rahul?[...] A gente ainda monta essa peça escondido, só nós dois, eu de vestido rodado e você de jaquetão de quatro botões com aqueles sapatos de bicos redondos e luvas, luvas de camurça cinzenta! e o luar. Então a gente se abraça e sai dançando aquela valsa no meio do jardim, tantos rodopios, lembra? Fui abandonada pelo meu amante e quero me matar mas vem você tão lindo e diz, Oh! minha amada, não se mate, oh, não se mate não!... (TELLES, 1999, p.38-39)

É então que Lygia vai se valer de um truque inusitado que resulta admirável. O livro

comporta um segundo narrador: o gato da atriz.

Encontrado na rua, bem acolhido por Dionísia, castrado a mando da dona, o gato

percorre tapetes, almofadas, colos e narra, ora com perversidade felina, ora com sentimentos

humanos. Galga caminhos propostos por seu universo, o que pode ser visto como um pacto

com o desconhecido, já que se aventura nos possíveis atalhos que o fantástico propõe,

sentindo a intromissão do verossímil: “Pulo no colo de Rosona. Vou pisando pelos tapetes,

almofadas quando fui feito para árvores, telhados.” (TELLES, p.32)

Penso que a partir dessa intromissão de um narrador-gato ou um gato-narrador

instaura-se neste estudo o viés surrealista. Entretanto, não se pode definir ou ter desse

movimento, uma idéia clara. Para os estudiosos, Gérard Durozoi e Bernard Lecherbonnier, em

O surrealismo: teorias, temas, técnicas: “Definir é, com efeito, limitar, cercar o definido; e

isso implica que o que era para definir possa ser considerado como tendo atingido um estado

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de acabamento suficiente. Ora, o surrealismo não acabou...” (DUROZOI e

LECHERBONNIER, 1972, p.99). Não acabou e tem se superado a cada fase de sua história,

posicionando-se como atividade orientada para o futuro.

Rahul, o gato de Rosa Ambrósio já teve vidas de gente: já foi menino numa morada de

venezianas ou de persianas verdes e já viveu um singular episódio de amor numa casa com

átrio, peristilo e um jardim florido onde havia uma mesa com tampo de mármore e pés de

bronze imitando patas de leão. Outras eras. Já vestiu uma túnica e era jovem. Um gato que

reconhece ser atualmente uma bola de pêlo com patas almofadadas, língua rugosa, um sexo

inexistente e olhos da alma atravessando tempos. Em síntese, um gato memorialista.

Mas Lygia é corajosa. Tem a coragem de enfrentar no seu texto as turbulências

íntimas e as contradições das suas misteriosas personagens. Apesar de viver numa época de

falências ideológicas, éticas, culturais e comportamentais, a escritora não teme, em sua

escrita, atribuir culpas à razão. As normas impostas pela razão, para ela, podem ser destruídas.

Não sei se posso atribuir à escrita de Lygia Fagundes Telles o adjetivo “surrealista”;

pode ser que se assim o fizer estarei criando uma espécie de moldura para sua arte, como se

estivesse aprisionando-a em limites. O que acredito, entretanto, é que a autora sempre

privilegia momentos da existência, exalta o amor e o erotismo, não deixa sua imaginação ser

aprisionada pelo mundo “real”, propõe mergulhos no inconsciente, no universo reprimido da

mente, admitindo que esse inconsciente pode e deve reivindicar todo o poder da primazia do

desejo sobre o social.

Quanto a Nélida Piñon, a autora traz à baila sua personagem Caetana, do romance A

doce canção de Caetana, quando, a também decadente atriz de circo mambembe, manifesta o

desejo desvairado de se tornar Maria Callas e exige do ex-amante que realize seu sonho:

- Quero ser a Callas ao menos uma vez na vida! Aliviou-se, após assumir de público o sonho até então inviolável no coração. - Quem é essa mulher? - É uma maldita grega que há anos não me deixa dormir. Por ela me consumo de inveja. Enquanto ela representa no palco certas tragédias, sofro por dentro e esbravejo por motivos fúteis. (PIÑON, 1997, p.190)

Ambas, Rosa Ambrósio e Caetana confirmam a teoria de Bosi: “... bom é o que eu

quero, verdadeiro o que represento em meu espírito.” (BOSI, 1992, p.25)

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Na segunda concepção abordada, registraríamos o tempo dos mitos e o tempo em que

se cultuam os mortos, abraçando retornos internos, que voltam e se transmitem de geração em

geração. Numa lógica de impressão da produção de movimentos cíclicos do corpo e da

natureza, como se o que se foi pudesse voltar, levando-nos a perceber o sentimento de

simultaneidade produzido pela memória. (Recordo agora o que vi e ouvi outrora) ideia do

tempo reversível como construção da percepção e da memória, supondo o tempo como

sequência, no entanto, suprimindo-o enquanto o sujeito vive a simultaneidade.

Dessa maneira, é a linguagem a responsável pela articulação formal e duradoura da

memória na vida social.

Se, por um lado existe a possibilidade de os fatos ocorridos a gerações passadas e/ou

às pessoas que se ausentaram caírem no esquecimento ou no inconsciente linguístico, por

outro, a recorrência à memória se dará através do uso da palavra evocada e invocada. É a

linguagem que permitirá a conservação e o reviver de cada geração. “Memória e palavra, no

fundo inseparáveis, são a condição de possibilidade do tempo reversível.” (BOSI, 1992, p.28)

Enfim, para ser fiel à metáfora das pontas dos icebergs, já citada, concluiríamos que,

se as datas fossem cortadas e se as pontas dos icebergs fossem excluídas, seríamos como

blocos soltos, que vagariam na superfície das águas, chocando-nos uns contra os outros,

destruindo-nos no mar da contemporaneidade.

O que a filosofia ocidental tinha tratado como característica específica do ser humano

– capacidade de pensar e refletir, racionalidade e consciência -, foi desmistificado com uma

simples ponta de iceberg:

Sob a superfície do enganador e sereno mar de nossas ações e pensamentos conscientes, entretanto, esconde-se um colosso gigante, cuja forma e aspecto podíamos apenas intuir: o inconsciente. [...] Freud inverteu também as máximas da busca do conhecimento, já que o trabalho de investigação da psicanálise não focaliza a luz no final da escuridão (como a filosofia do Iluminismo), mas mergulha na escuridão da noite para resgatar tesouros afundados nas profundezas da psique – os sonhos e os pensamentos ali escondidos. (ZSCHIRNT, 2006, p.226)

3.1 Memória: um diálogo entre o discurso mnemônico e os registros da linguagem

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Nem todas as pessoas têm conhecimento de que a arte da memória foi inventada pelos

gregos, transmitida a Roma, e finalmente, chegou à tradição européia. Essa arte tinha como

meta, através de técnica, (mnemotécnica, ramo pouco considerado atualmente), imprimir

lugares e imagens à memória, pois, a memória treinada era vital numa época em que ainda

não existia a imprensa.

Para o estudo da arte clássica da memória poderíamos nos orientar por três fontes

latinas.

1ª) Foi a partir de uma experiência vivida, que Simônides de Ceos3 intuiu que na arte

da memória (da qual se diz o inventor), é essencial a disposição ordenada de lugares e

imagens. Ele inferiu que, para treinar essa faculdade de memória, as pessoas precisariam:

[...] selecionar lugares e formar imagens mentais das coisas que querem lembrar e guardar essas imagens nesses lugares, de modo que a ordem dos lugares preserve a ordem das coisas, e as imagens das coisas denotem as próprias coisas; e devemos empregar os lugares e as imagens como uma tábua de cera sobre a qual são inscritas letras. (YATES, 2007, p.18)

Associamos a este, o conceito de memória operacionalizado pela Psicanálise

interligado às noções de trabalho, elaboração e construção. A psicanálise, de certa forma,

poderia ser lida como teoria que constrói a partir da memória.

Em Uma nota sobre o bloco mágico4, observamos que a memória não só se preserva

nas inscrições feitas no bloco mágico, como também se realiza pelo esquecimento, pelo

apagamento ao se levantar a folha do celulóide.

3 Simônides de Ceos convidado a entoar um poema lírico em homenagem a Scopas (nobre da

Tessália) incluiu uma homenagem a Castor e Pólux. Scopas, sentindo-se preterido, pagou ao poeta

somente a metade do combinado e mandou que ele cobrasse a outra metade aos outros homenageados.

Mais tarde, Simônides foi chamado para atender a dois jovens que o esperavam. Retirou-se do

banquete, mas não encontrou ninguém. Nesse ínterim, o teto do salão desabou, matando todos os

convivas e para ajudar os parentes na identificação dos corpos, somente Simônides era capaz de fazê-

lo, devido à memória dos lugares onde os convidados haviam sentado.

4 Bloco mágico – espécie de prancha de resina ou cera, coberta por uma folha de papel transparente e

por uma folha de celulóide. Para ser utilizado, escreve-se sobre a parte de celulóide com um estilete,

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Voltando à história de Simônides, lembremo-nos da arte clássica da memória como

parte da retórica, nesse caso, discutida como uma de suas cinco partes (as outras quatro são:

invenção, disposição, elocução e pronunciação), capacitando o orador a proferir extensos

discursos de cor.

A invenção é o exame aprofundado de coisas verdadeiras (res) ou de coisas verossímeis para tornar uma causa plausível; a disposição é arranjar em ordem as coisas já descobertas; a elocução é adaptar as palavras (verba) convenientes às (coisas) inventadas; a memória é a percepção firme, pela alma, das coisas e das palavras; a pronunciação é o controle da voz e do corpo para se adequar à dignidade das coisas e das palavras. - De inventione, I, vii, p.9 (tradução baseada na de H.M.Hubell, da edição Loeb, mas tornada mais literal, reproduzindo os termos técnicos res e verba. (YATES, 2007, p.25)

Assim foi que essa arte se expandiu na Europa e os antigos traçaram regras para seu

aprimoramento.

Ora, a invenção é uma constante nas obras de Telles e Piñon. Em A doce canção de

Caetana, a invenção, através da mentira ou da própria ilusão, alimenta cada personagem.

Caetana inventa uma encenação da ópera La traviata, para ser Maria Callas: “- Serei a estrela

de um espetáculo que vamos montar.” (PIÑON, 1997, p.190); Danilo embebeda-se e inventa

para Francisco, o garçon do hotel, toda uma trajetória de sucesso e glória que, na verdade,

Caetana nunca viveu: “- Ai de nós sem a mentira, Francisco. Graças à mentira acreditamos

nas lembranças que já tínhamos condenado ao esquecimento. O que seria de nós sem o afeto

da mentira, o pão da mentira? É o único calor que combate a solidão.” (PIÑON, 1997, p.123);

Venieres, o comerciante grego, comandado por Polidoro criaria um teatro de mentira: “- A

partir de hoje você vai pintar um cenário com um teatro de tamanho natural. Vários painéis

gigantescos que criem a ilusão de que existe um teatro de verdade em Trindade.” (PIÑON,

1997, p.207)

Também, em As horas nuas, a invenção é ferramenta valiosa na construção do texto:

Ainda a invenção? Simples necessidade de compensar a forma atual através da fantasia – será isso? Nessa linha, inventei a corrida [...]. Inventei o jovem na casa romana como inventei o menininho de cachos na casa das venezianas verdes, a mais

que pressiona o papel sobre a prancha de cera. A inscrição efetuada será apagada ao se levantar a folha

de celulóide, mas a base conservará os traços da escrita que serão vistos sob luz apropriada.

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longa das invenções, tantas minúcias. [...] Procuro unir as pontas meio rotas através do Tempo real ou inventado... (TELLES, 1999, p.61)

Telles reafirma com essas “minúcias”, a necessidade dos detalhes para tornar a “causa

plausível”. Assim, dispondo os fatos, as escritoras ordenam e adaptam às invenções as

palavras convenientes.

Dessa forma, para entender os princípios gerais da mnemônica deveríamos,

primeiramente, imprimir na memória uma série de lugares, (tipo arquitetônico). A arte da

memória inventada por Simônides não focava apenas a importância da ordem sequencial, mas

também, a teoria da visão como o mais forte dos sentidos:

Simônides (ou quem quer que tenha descoberto a arte da memória) percebeu de modo sagaz que as imagens das coisas que melhor se fixam em nossa mente são aquelas que foram transmitidas pelos sentidos, e que, de todos os sentidos, o mais sutil é o da visão e, consequentemente, as percepções recebidas pelos ouvidos ou percebidas pelo pensamento podem ser mais bem retidas se forem também transmitidas as nossas mentes por meio dos olhos. (YATES, 2007, p.20)

Mnemotécnica talvez não transmita o conceito de memória artificial como Cícero

enfatizava na Roma Antiga, vendo lugares e imagens armazenadas em compartimentos e que

trazia aos lábios dos oradores, pensamentos e palavras aos seus discursos.

Chamemos a esse processo – arte da memória.

Da Roma de 86-82 a.C., desconhecido professor criou um manual prático, hoje,

infelizmente, apenas conhecido por Rhetorica ad Herennium, que tratava da memória como

parte essencial do conhecimento do orador. Esse mestre iniciou sua obra com as seguintes

palavras: “Agora, voltemo-nos para a sala do tesouro das invenções, a guardiã de todas as

partes da retórica, a memória.” (YATES, 2007, p.21) Para ele, o homem possuía dois tipos de

memória: a natural, inserida em nossas mentes e a artificial, consolidada pelo treinamento.

Quem já possuía boa memória natural podia aprimorá-la e os menos dotados a melhorariam

por tal arte. Na Rhetorica ad Herennium, a história teria papel importante sobre a memória,

remetendo-nos a tratados gregos de retórica já desaparecidos. Essa obra era muito conhecida e

usada na Idade Média e teve seu prestígio dilatado quando atribuída a Cícero.

A arte da memória assemelha-se à escrita interior. Se tivermos conhecimento do

alfabeto construiremos qualquer palavra: “Porque os lugares são como tábuas de cera ou

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como papiros, as imagens são como letras, o arranjo e a disposição das imagens são como a

escrita, e o fato de pronunciar é como a leitura.” (YATES, 2007, p.23)

Quanto mais coisas quisermos lembrar, maior número de lugares devemos armazenar.

Existem várias regras para a memorização dos lugares. Entretanto, a mais forte seria a

precisão visual. No caso de uma memória treinada nos moldes clássicos do espaço levaríamos

em consideração o espaço a ser medido e a iluminação.

Quanto à imagem, também nos inspiraremos em dois tipos de regras: um para coisas e

outro para palavras. A primeira regra criaria uma imagem que nos fizesse lembrar de

argumentos, noções e coisas. A segunda, na busca de uma imagem para que nos

recordássemos de cada palavra, é mais difícil de obter. As coisas seriam os temas dos

discursos e as palavras a linguagem que revestiria esse tema.

Tratados sobre a arte da memória existem, contudo, apesar de fornecerem regras,

raramente oferecem uma aplicação concreta delas. O próprio autor da Rhetorica ad

Herennium era da opinião que o professor ou instrutor dessa arte deveria ensinar o método de

criar imagens, dar exemplos e encorajar os alunos a formar suas próprias ideias.

Em qualquer das hipóteses de memorização, para coisas ou palavras, seria necessário

ter em mente que as teorias, sem o exercício constante e sem o trabalho são, praticamente,

sem nenhum valor. Além de maior número de lugares reservados nos espaços da memória, a

disposição das imagens deveria ser exercitada todos os dias.

Se aprendermos a fixar adequadamente nossos lugares de memória, seremos capazes

de percorrê-los em todos os sentidos.

2ª) Na segunda fonte descrita, Cícero definiu a memória artificial na Idade Média

como parte essencial da Virtude da Prudência. Para Cícero, virtude é: “... uma disposição do

espírito em harmonia com a razão e a ordem da natureza”, acrescentando ainda, que a virtude

possui quatro partes: Prudência, Justiça, Constância e Temperança.

Vejamos a Prudência e suas partes:

A Prudência é o conhecimento daquilo que é bom, daquilo que é mau e daquilo que não é nem bom nem mal. Suas partes são a memória, a inteligência, a providência (memória, intelligentia, providentia). A memória é a faculdade pela qual a mente relembra o que aconteceu. A inteligência é a faculdade pela qual a mente averigua aquilo que é. A providência é a faculdade pela qual se vê que algo acontecerá antes que ocorra. (YATES, 2007, p.39)

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Nas obras aqui estudadas, não nos parece ser a prudência uma vertente de realce.

Mesmo que as personagens tenham conhecimento do que é bom e do que é mau, não é através

dos seus atos que o demonstram. Embora tenhamos que reconhecer que memória e

inteligência sejam fundamentais para a realização de projetos mais arrojados, temos que

assinalar que a providência não faz parte dos meios usados para realizá-los.

Polidoro deveria conhecer o temperamento de Dodô, sua mulher, protetora da ordem

social e, principalmente, do patrimônio da família. É óbvio que ela se valesse da influência

que tinha na cidade para impedir que a rival realizasse seu intuito e, em agradecimento ao ex-

amante, resolvesse permanecer em Trindade.

Prudência também não era o forte de Rosa Ambrósio. A atriz apaixonou-se pelo jovem

secretário, sabendo que a diferença de idade entre eles seria sempre uma espada sobre sua

cabeça. Nunca soube administrá-la, até não suportar mais “as escapadas” do amante e

expulsá-lo da sua casa e da sua vida:

... Será que não tenho mais liberdade de convidar minhas amigas?, ele perguntou. Eu fazia aquela cara de superior, Claro que pode, querido, o apartamento é todo seu, respondi e por dentro me contorcia feito uma minhoca, não sei por que que o amor dos fracos tem que ser gosmento. [...] Sou jovem!, me avisava. Já sei disso, eu respondia, você é livre, da minha parte, nenhuma interferência. E da minha parte só interferi, [...] pobrezinho, tentou me poupar, esmerou-se nas encenações, às vezes batia a porta, Acabei de sair! E ficava fechado com a putinha, [...] Rua! Eu disse. [...] Fiquei sozinha para me executar, sou meu carrasco. (TELLES, 1999, p.47-48)

Muitos sábios na Idade Média e na Antiguidade, tais como, Alberto Magno, (séc. XII

d.C.), Tomás de Aquino e Marco Túlio Cícero, (séc. I a.C.), recomendaram a memória

artificial. Em A primeira e a segunda retórica, de Túlio, o mestre afirmou, na Primeira

retórica, que a memória é uma parte da Prudência, e na Segunda retórica, que existiria uma

memória artificial que poderia aprimorar a memória natural.

3ª) Finalmente, na terceira fonte vamos encontrar em Roma, no século I d.C. (35 - 96

d.C.), o grande educador e professor de retórica – Quintiliano. Apesar de valorizar a memória

artificial que Cícero recomendava, o mestre baseava-se no fato de que memória e ação nos

são dadas “pela natureza e não pela arte”.

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Quintiliano também usou a história de Simônides para introduzir sua exposição sobre

a memória artificial; em muitos casos, a arte nasce da experiência, a memória ao auxiliar outra

memória deveria ser fixada:

O que precisamos é de lugares, imaginários ou reais e de imagens ou símbolos a serem inventados. As imagens são como palavras com as quais marcamos as coisas que devemos aprender, como diz Cícero, “utilizamos os lugares como a cera e as imagens como as letras.” (YATES, 2007, p.41)

Se concordarmos com as “regras para lugares”, seremos gratos a Quintiliano. Ele

mostra razões racionais que nos levariam a ajudar a memória: é óbvio que um lugar, quase

sempre, nos trará recordações.

Entretanto, apesar de concordar com as regras de Cícero, Quintiliano contradiz a

versão deste no que tange ao seu julgamento sobre Metrodoro de Scepsis5. Ele julgava ser

esse homem uma espécie de charlatão. Sua decantada memória “divina” era simplesmente

pretensiosa.

Mas Nélida Piñon, provavelmente conhecedora das teorias de Cícero sobre Metrodoro

de Scepsis, assim como do que pensava Quintiliano a respeito das memórias prodigiosas ou

“pretensiosas” e, ainda, da opinião de Bacon sobre ostentações vazias, como veremos mais

adiante, vale-se desse recurso para referir-se à prodigiosa memória de Virgílio, personagem

de seu romance.

Polidoro tinha urgência em restaurar o quarto ocupado por Caetana no passado. No

entanto, não queria chamar a atenção para a tarefa desejada, escolhendo apenas um dos

amigos, Ernesto ou Virgílio para ajudá-lo. Estipulou como requisito para tal escolha o que

tivesse melhor memória. Os dois, na ânsia de ganhar, exibiam suas qualidades. Mas, diante da

pergunta do fazendeiro: “- Digam-me, sem titubear, o dia do mês e da semana em que

Caetana partiu de Trindade sem deixar um só bilhete.” (PIÑON, 1997, p.69), Ernesto vacilou

e Virgílio pediu a palavra:

5 Metodoro de Scepsis considerado possuidor de uma memória quase divina. Cícero acreditava que

Metodoro era capaz de encontrar trezentos e sessenta lugares nos doze signos pelos quais o sol se

move [...], se vangloriava de uma memória cuja força provinha mais da arte do que da natureza.

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- Foi na sexta-feira, dia 3 de maio de 1950. Naquela manhã, o trem saiu de Trindade com dez minutos de atraso por causa da chuva. Portanto, às nove e quarenta e cinco. A chuva começou na véspera, antes do almoço, na mesma hora em que Polidoro foi chamado às pressas e viajou à fazenda Suspiro, para ver de perto os estragos causados pela caixa-d’água que arrebentou na cozinha, levando na enxurrada a feijoada que Dodô mandara preparar para o batizado do afilhado Joãozinho, nascido de Doçura e de Maneco, gente dalí mesmo, no tempo em que o capataz era seu... - Chega, impacientou-se Polidoro. –Você ganhou. Decretada a vitória, Virgílio consolou Ernesto, sempre com maneiras fidalgas. - Se os historiadores não tivessem memória, como iríamos defender a história do Brasil frente aos estrangeiros que aqui atracam para roubar nossos documentos? (PIÑON, 1997, p.69-70)

Para substituir a arte da memória, Quintiliano recomendava dura e intensa

memorização, advertindo que poderíamos ser ajudados por algumas adaptações simples dos

usos da mnemônica, e mais, que o uso de certos signos tem valor de destaque. Como por

exemplo, aprender uma passagem de cor a partir das tábuas nas quais a escrevemos.

Assim, é perceptível a diferença que existe entre as opiniões de Quintiliano, Cícero e

as do autor desconhecido da Rhetorica ad Herennium, quanto à memória artificial.

Concluiríamos, pois, que das três fontes da arte clássica da memória, seriam os

preceitos estabelecidos pelo professor desconhecido, aqueles que norteariam a posterior

tradição da memória ocidental.

Detivemo-nos nessa exposição das fontes latinas da Arte Clássica da Memória, no

intuito de esclarecer, através da origem desses estudos, a trajetória e o desenvolvimento das

técnicas e métodos empregados no decorrer dos séculos até nossos dias, para acionarmos os

tão complexos mecanismos da memória.

Somos conscientes, no entanto, de que para melhor realização deste trabalho teríamos

longo caminho a percorrer, trilhando, cautelosamente, cada período da história: o estudo da

memória na Grécia, na Idade Média, a memória Medieval, no Renascimento, além das artes

da memória associadas ao teatro.

Não pensemos, pois, nas origens da arte da memória antes de Simônides; já que para

uns, elas são pitagóricas e, para outros, sofreram influências egípcias. Imaginemos, porém,

que alguma forma dessa arte, baseava-se em técnicas muito antigas, talvez, utilizadas por

aedos e narradores. Daí, Simônides ter-se apropriado delas em função da emergência de uma

sociedade mais complexa.

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Na Idade Média, o papel da arte da memória era central com a prática legada ao

repertório imagético medieval nas diversas artes, como a arquitetura e as grandes obras

literárias; por exemplo, a Divina comédia, de Dante. No Renascimento, sua importância

diminuiu na tradição humanista e cresceu na tradição hermética. No século XVII, duvidamos

a respeito da durabilidade da antiga arte de Simônides. Ainda nesse século, nos intrigou a arte

da memória ser discutida tanto por Fludd, escritor da tradição renascentista, como por

pensadores que se voltaram para novos horizontes: Francis Bacon, Descartes, Leibniz. A arte

da memória passou, então, por grandes transformações: da memorização à enciclopédia,

refletindo a ferramenta de investigação e o mundo, objetivando o descobrimento de novos

conhecimentos. Sobreviveu como fator do desenvolvimento do método científico.

Francis Bacon tinha profundo conhecimento sobre a arte da memória e o transmitiu

através de sua obra Advancement of learning, como uma das artes e ciências que deveriam ser

reformuladas metódica e objetivamente, visando a fins práticos e levadas em direção à

memória. Além de aprimorada, deveria ser empregada em objetivos úteis, não para

ostentações vazias; e que as regras tivessem um caráter de maior praticidade. Como eram

utilizadas, talvez fossem elevadas a ostentações prodigiosas, mas não serviriam para

propósitos ou negócios sérios.

Para Bacon, a arte da memória era baseada em “pré-noções” e “emblemas”:

Essa arte da memória está construída apenas sobre duas idéias: a primeira é a pré-noção, e a segunda, o emblema. A pré-noção nos desobriga da busca interminável daquilo que deveríamos lembrar e direciona a busca de um círculo restrito, isto é, a algo que corresponda a nosso lugar de memória. O emblema reduz os conceitos intelectuais a imagens sensíveis, que impressionam mais a memória. A partir dessas definições pode-se conseguir uma prática melhor do que aquela em uso. (YATES, 2007, p.460)

Poderíamos ampliar a ideia de emblema pensando que ela reduz as coisas intelectuais

a coisas sensíveis, já que o sensível pode impressionar e fixar-se mais rapidamente do que o

intelectual.

Inferiríamos que Bacon aceitava e praticava a utilização de lugares e imagens ao

recorrer à memória usual. Ele propunha que a memorização de vários assuntos deveria

obedecer a uma determinada ordem para serem fixados na mente e serem utilizados

posteriormente, auxiliando na pesquisa científica ao recuperar fragmentos da história e

ordená-los, como meta a ser alcançada na reconstrução do passado.

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Bacon também acreditava que a clássica imagem mnemônica tem força no estímulo da

imaginação quando associada a alguns truques. E, mesmo vendo o assunto sob o prisma

científico, essa linha de pensamento foi de grande valia para seus estudos.

Assim, nas reflexões ligadas à utilização de imagens ao recorrer à memória, Nélida

Piñon vale-se de sua personagem Caetana que, ao se lembrar do tio Vespasiano, faz uso de

detalhes para estimular sua imaginação: “... recordou o fraque do tio, de cor verde-garrafa, e

ainda o colete branco. Ele, a sorrir em tom de galhofa, quando o chamavam de barão.”

(PIÑON, 1997, p. 264)

Também, à luz da mesma teorização, Lygia Fagundes Telles, faz-se visível através de

Rosa Ambrósio: “Eu descia a escadaria coroada de florinhas e cantando enlouquecida, Ai

mísera de mim ter visto o que já vi, ver o que vejo agora...” (TELLES. 1999, p.46)

Outro estudioso da arte da memória, Descartes, pensou em regras para sua

reformulação. Dentre elas: redução das coisas e suas causas (“se as causas podem ser

reduzidas a uma só, não é preciso lembrar todas as ciências”); ordenamento que encadeia

imagens desconectadas, umas dependentes das outras, o que daria origem a novas imagens

comuns.

A redução das coisas às causas parece-nos próximas de princípios semelhantes aos das

ciências ocultas. Quando se compreende as causas, todas as imagens desvanecidas podem ser

encontradas no cérebro, facilmente, por meio da impressão da causa. A impressão da causa

através da qual as imagens desvanecidas poderiam ser encontradas, sugeririam palavras de um

artista da memória oculta.

Quanto às ideias da formação de imagens encadeadas, não nos parecem originais, já

que tivemos oportunidade de encontrar essas teorias em vários outros estudos, tais como os

de: Johannes Paepp, Giordano Bruno, Lambert Schenkel, etc.

Entretanto, Descartes planejou uma nova ciência que resolveria as questões referentes

à quantidade (termo operante) e o método matemático foi inventado, marcando a grande

mudança do uso qualitativo e simbólico do número.

Mas foi Leibniz, o autor da obra De arte combinatória, familiarizado com as traduções

da memória clássica, que inventou um cálculo universal, (combinações de signos e caracteres

significantes) usando símbolos matemáticos que dariam origem, de suas combinações, à

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invenção do cálculo infinitesimal. A mnemônica: “fornece a matéria de um argumento; a

methodologia lhe dá a forma e a logica é a aplicação da matéria à forma.” (YATES, 2007,

p.471)

Ao privilegiar esse conceito, o matemático definiu a mnemônica como a junção da

imagem de alguma coisa sensível à coisa a ser lembrada; imagem essa a qual ele denominou

“nota”. Logo: a nota sensível deve estar interligada a alguma coisa a ser lembrada, semelhante

ou diferente dela, ou, de alguma forma ligada a ela. Isto é, palavras e coisas poderiam ser

lembradas, mesmo que seja esta uma tarefa difícil.

Assim, o pensamento de Leibniz remete à Rhetorica ad Herennium, às imagens para

coisas e às imagens para palavras. Mas, ele acrescenta: “... as coisas vistas são mais bem

lembradas que as coisas ouvidas – daí, usarmos notae na memória [...] Ele indica “regras para

lugares”, observando que a distribuição das coisas em células ou lugares é útil para a

memória,...” (YATES, 2007, p.471)

O que se sabe é que, talvez, Leibniz tivesse estudado vários tratados sobre a memória:

das regras clássicas às dificuldades em torno delas. Além de interessado em quais desses

tratados se fundamentava a arte clássica da memória, ele parecia conhecer muito bem sua

tradição.

Buscamos, de certa forma, analisar, ainda que parcialmente, a história da arte da

memória nos períodos abordados até aqui. A impossibilidade de uma visão completa ou

definitiva deve-se, tanto ao fato de que os estudos dessa arte ainda continuam sendo

desenvolvidos e têm muito caminho a percorrer, quanto à questão de não ser essa visão

histórica o objeto de estudo desta tese.

Assim, observamos certo condicionamento no que se refere ao lugar da arte na

memória e da dicotomia sexismo e linguagem, nas obras estudadas. Além disso, observamos

também, a abordagem estereotipada da escrita feminina, atribuindo significados que se

acreditam determinados pelas diferenças biológicas adjacentes. Ao homem, o espelho da

objetividade, racionalidade e segurança. À mulher, a dispersão, a emoção e a insegurança.

Mas Nélida Piñon não negligencia nem uma coisa nem outra. Em primeiro lugar,

aponta na fala da protagonista a importância do lugar da arte: “- Não me force a receber

inimigos. Só aqueles que posso seduzir para a arte. Não quero abandonar o quintal da

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memória e o mundo do espetáculo, disse em irrestrita fidelidade a seus devaneios.” (PIÑON,

1997, p.255) Caetana é autêntica dentro da visão do mundo que o artista nos traz. E essa visão

não respeita fronteiras de sexo. É uma visão única, um olhar sensível e sensibilizado da

singularidade do artista, substantivo comum de dois gêneros. Foca, não só o ser humano

feminino-masculino, sem estabelecer fronteiras rígidas entre os dois sexos na sociedade

contemporânea, mas também, trabalha com esse elemento, numa visão de mundo que

ultrapassa as barreiras sexuais.

Em segundo lugar, a escritora ao pensar a linguagem, circunscreve-se ao universo no

qual está inserida, revelando dados específicos referentes a seu modo de compreender a

realidade.

Também Lygia Fagundes Telles enfoca a questão da identidade feminina no romance

aqui estudado, deixando transparecer nas várias personagens, certo conflito ideológico: Rosa

Ambrósio, Ananta, Cordélia, Dionísia, a mãe, a tia de Rosa, aparecem através das recordações

da protagonista. As horas nuas, para Peggy Sharpe: “... é um retrato composto de rostos

femininos heterogêneos, de identidades diversas, e, portanto, cabe lugar aqui a soluções

narrativas várias.” (SHARPE, 1997, p.74)

De alguma forma, não se tem dado a importância devida a tais objetos de estudo que,

no entanto, deveriam ser enfocados de modos cientificamente mais constantes. Isto porque, a

história da organização da memória aborda questões vitais no campo religioso, ético e moral,

filosófico e psicológico. Na arte e na ciência. Essa memória, chamada artificial pertence à

tradição da retórica, à memória como faculdade da alma e à teologia.

Assim, não nos surpreenderíamos se os estudos realizados já tivessem aberto novas

perspectivas a respeito de diferentes manifestações da cultura. O que nos alimentaria o desejo

de continuar trilhando esse caminho, talvez, o caminho do inusitado.

3.2 Estruturas do tempo na literatura

Os elementos tratados nas obras literárias referem-se à qualidade da experiência da

vida dos seres humanos. Desde épocas imemoriais, o estudo do tempo tem sido o trabalho de

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cientistas, filósofos da ciência e lógicos, envolvendo considerações as mais diversas. Ao

entrelaçarem a qualidade de vida e o tempo, as autoras Lygia e Nélida mostram o tempo, além

de outros aspectos, como elemento de destruição e como marca da presença do

envelhecimento.

Em A doce canção de Caetana, não só a protagonista sofre com o passar dos anos,

mas todas as personagens são atingidas pelo mesmo mal. “Ah, Polidoro, você não sabe o que

é a velhice. Ter vergonha do corpo, destas pelancas todas. Quando alguém me olha, tudo dói.”

(PIÑON, 1997, p.25)

Nesse fragmento, a romancista mostra a dor do velho pai ao filho. Mais adiante, a dor

do próprio filho:

Quando conheci Caetana, sentia-me um Deus. Meu corpo era uma navalha. Mutilava a quem quer que fosse. Ninguém podia me extorquir o gume desta espada. Mas agora, diante do espelho, o que vejo não corresponde a meu coração, que se ilude em ser jovem ainda. (PIÑON. 1997, p.81)

Também na visão de Telles, o tempo é implacável. Rosa Ambrósio sofre

desesperadamente com a velhice. Reconhece que esse inútil sofrimento a torna uma mulher de

convivência insuportável, mas não consegue se desvencilhar de tal obsessão. A escritora, na

voz de Gregório, faz a tentativa de pôr de pé uma criatura tão autodestruída:

- É simples, Rosa, escuta, você está em pânico porque sente que está envelhecendo. Foge do trabalho, das pessoas, vai acabar fugindo de mim. Rosa Ambrósio, como vou fazer entrar nessa cabeça que não existe outra saída, existe? Para escapar da velhice, querida, só morrendo jovem mas agora não dá mais. A solução é enfrentar sem fazer bico, de bom humor, se possível. Enfrentar o touro, vamos fazer uma viagem? Coisa rápida que a hora é de trabalho, Madri, Barcelona, você compra seus perfumes, eu vou às touradas. (TELLES, 1999, p.112)

Para este estudo tomaremos como base três conceitos: mensuração (ou métrica),

ordem e direção, os quais se mostram de maneira diferente dentro do contexto da experiência

e da literatura.

3.2.1 Mensuração

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Na mensuração ou medida do tempo consideraremos como base, critérios objetivos.

Pois, sabe-se que a subjetividade, ou melhor, nossas próprias experiências poderiam, neste

caso, afetar nossos julgamentos. Para o ser humano, ora o tempo escoa-se rapidamente, ora

lentamente. No primeiro momento estamos atentos a cada minuto que passa, no segundo, mal

nos apercebemos da passagem do tempo. Daí, a necessidade de critérios objetivos para a

mensuração do tempo.

Através dos séculos, objetivas eram as unidades coordenadas com objetos da natureza

cujo padrão uniforme, independentemente do homem, podia ser determinado. Como por

exemplo, o tempo lunar ou o tempo sideral, pelos quais eram ajustados nossos relógios e

calendários.

Meyerhoff reconhece essa máxima e considera que: “... semelhante medida do tempo é

absolutamente indispensável para os objetivos de ação e comunicação. Sem ela estaríamos

perdidos num mar de relatividade subjetiva.” (MEYERHOFF, 1976, p.12)

No nosso modo de ver, o cuidado com o estabelecimento de regras rígidas para

analisar as questões da mensuração do tempo se tornaria fundamental.

Na literatura, quando o tempo parece longo é longo, quando parece curto é curto. Mas

em que medida isso acontece? Ninguém sabe. Da mesma forma que, para ser medido, o

tempo deveria fluir uniformemente, o que também não acontece. A ansiedade pela chegada

de Caetana à estação de Trindade desordenava o tempo da espera e os ânimos exaltados.

Gioconda tentava acalmar as Três Graças: “Descansem, meninas, ainda faltam nove minutos.”

(PIÑON, 1997, p.94) Os homens atentos ao relógio, não tinham olhos para mais nada, a não

ser o aparecimento da locomotiva na curva. O tratamento do cotidiano, como estruturador da

vida de Polidoro, personagem relevante em A doce canção de Caetana, restringia-se ao tão

desejado momento do apito do trem:

Polidoro consultou o relógio. Estremeceu ante a exigüidade do tempo. Ameaçou dirigir-se à plataforma. - Faltam sete minutos e Ernesto ainda não veio, disse, sem se mexer. Como se adivinhasse o pedido, Ernesto chegou esbaforido, o rosto ensopado de suor. (PIÑON, 1997, p.95)

Registra-se, pois, na literatura, uma situação conflitante entre medida subjetiva e

medida objetiva. Ressalte-se que este, não é, no entanto, o aspecto mais significativo do

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tempo na experiência. E sim, o aspecto da “durée” (duração) tal como especificada por

Bergson.

3.2.2 Ordem e direção

O fluxo do tempo no presente contém elementos de ordem e direção, sinalizando para

o passado e para o futuro. Esses elementos sugerem, assim, noções de antes e depois, anterior

e posterior, passado e futuro. Essas divisões, em termos de memória, foram escolhidas por

Santo Agostinho como chave da teoria filosófica do tempo, baseada na experiência.

A memória e a experiência constituem, pois, a base para se distinguir os eventos

anteriores (passado) dos posteriores (futuro). Mas essas distinções não satisfazem as

experiências para uma teoria científica. Memória e expectativa são elementos vagos,

ambíguos e falíveis.

De acordo com Meyerhoff:

Por passado queremos dizer, então, a coleção inteira da história registrada – seja do universo ou do homem; por futuro, aquilo que não tem história. Traços e registros do passado podem ser naturais ou feitos pelo homem. Assim, deixamos registros ou inscrevemos marcas para nos orientar em relação a uma ordem objetiva de tempo contra a vaga e falível ordem dos eventos na memória. (MEYERHOFF, 1976, p.19)

Memória é, então, um reservatório de registros e marcas dos fatos anteriores. Não

existe memória do futuro. A memória é a base para o passado experimentado. Embora Santo

Agostinho tenha escolhido como chave de uma teoria filosófica do tempo, divisões baseadas

na experiência. O filósofo entende a memória como capaz de resgatar o vivido em sua

integridade. E isso não é difícil de entender se partirmos do ponto de vista religioso, de um eu

confessional em direção a Deus como detentor do passado puro:

Ultrapassei então essas minhas energias naturais, subindo passo a passo até aquele que me criou. Chegarei assim ao campo e aos vastos palácios da memória, onde se encontram os inúmeros tesouros de imagens de todos os gêneros, trazidas pela percepção. (AGOSTINHO, 1984, p.274)

Parece oportuno aqui, acrescentar a fala de Meyerhoff:

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A memória é um instrumento de registro muito mais complicado e confuso do que a natureza, os instrumentos feitos pelo homem ou os registros históricos. Sua complexidade e confusão surgem do fato de que, ao invés de uma ordem serial uniforme, as relações da memória exibem uma “ordem” de eventos “dinâmica, não uniforme”. As coisas lembradas são fundidas e confundidas com as coisas temidas e com aquelas que se tem esperança de que aconteçam. Desejos e fantasias podem não só ser lembrados como fatos, como também os fatos lembrados são constantemente modificados, reinterpretados, revividos à luz das exigências presentes, temores passados e esperanças futuras. (MEYERHOFF, 1976, p.20)

Em A doce canção de Caetana, as lembranças são fundidas e confundidas. Fundidas,

no sentido da determinação da protagonista voltar à pequena cidade de Trindade para realizar

seu sonho de ser Maria Callas. Confundidas, no sentido de ser uma mulher a apropriar-se do

arquétipo romântico da liberdade, do inconformismo, normalmente restritos ao homem. Ela é

quem se aventura pelo mundo, é quem age com racionalidade em busca da realização dos seus

sonhos. Enquanto Polidoro ocupa o papel inverso: sentimental, irracional, angustiado numa

espera longa e desgastante do amante suplicante, sugerindo uma Penélope às avessas; vinte

anos de espera, administrando a fortuna da família, acalentando o sonho da volta da mulher

amada.

Ao receber a carta de Caetana, o pobre homem se desestrutura completamente:

Deixei Trindade de trem numa sexta-feira muito antiga. Lembro-me bem que chovia. Logo que o apito do trem deu o sinal de partida, esforcei-me em enxergar através dos vidros sujos da janela. Não vi senão o aguaceiro que confundiu a paisagem com os que ficaram estatelados na estação e que, diferentes de mim, jamais sairiam de Trindade. Agora, porém, chegou a hora de voltar. Retorno, pois, neste mês de junho, e pelo mesmo trem que me levou. Escolhi sexta-feira para ter a ilusão de que não se passaram vinte anos. Quanto ao resto, é aguardar. A vida é quem nos dá o recado no canto do ouvido. Assinado, Caetana. (PIÑON, 1997, p.55)

Embora indispensável, a objetividade sequencial do tempo não constitui a totalidade

da estrutura da nossa memória, já que essa não exibe ordem uniforme, serial. Os eventos

passados, presentes e futuros são fundidos e associados uns aos outros.

Ordem e desordem caracterizariam o tempo nas vidas humanas, e isso se tornaria, por

si só, ponto fulcral na análise literária do tempo.

A literatura se dirigiria para a lógica de imagens que ampara o método de livre

associação e do monólogo interior. O termo lógica, mecanismo comum na literatura, poderia

parecer inadequado, partindo do princípio de que lógica e ilógica se fundem e se confundem

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no trabalho literário. Isto é, a lógica do senso comum ou das inferências indutivas e as

conexões objetivas no mundo exterior. Mas, a lógica das imagens ou associação representaria

apenas uma tentativa de mostrar que a ordem dos eventos do mundo interior e da memória

precisaria de elementos de desordem para violar sua rigidez.

Como se pode ver, então, a lógica que a personagem Rosa Ambrósio, de As horas

nuas, poderia desenvolver e preservar na busca do poder de decisão sobre a própria vida, tanto

para a realização profissional quanto para a satisfação pessoal e amorosa, é violada pelo vício

da bebida, neutralizando sua vontade, fugindo ao seu controle, implementando elementos de

desordem em sua vida:

Entro no quarto escuro, não acendo a luz, quero o escuro. Tropeço no macio, desabo em cima dessa coisa, ah! Meu Pai. A mania da Dionísia largar as trouxas de roupa suja no meio do caminho. Está bem, querida, roupa que eu sujei e que você vai lavar, reconheço, você trabalha muito, não existe devoção igual mas agora dá licença? eu queria ficar assim quietinha com a minha garrafa, ô! Delícia beber sem testemunhas, algodoada no chão feito o astronauta no espaço, a nave desligada, tudo desligado. Invisível. (TELLES, 1999, p.9)

A literatura precisa desse mecanismo como chave para se estruturar do ponto de vista

da ordem e do significado. Ao falarmos do vício de que é acometida a personagem de As

horas nuas detivemo-nos na questão da lógica e da ilógica, uma vez que nos deparamos com

o papel duplo de razão e fantasia. A personagem foge da realidade, entrando no escuro para

dar vazão aos sentimentos de solidão e nostalgia que a perseguem.

Parece-nos que a significação é fundamental para a associação dos eventos na

experiência: “Licença, Diú, não leve a mal mas vou ficar um pouco por aqui mesmo, bestando

no espaço. Seguindo leve nessa órbita espiralada até pousar de novo no planeta azul.”

(TELLES, 1999, p.9)

Significação não como sentido lógico do termo “significado”, e sim, como senso de

“significado” carregado de valor; com o qual a Literatura e as Artes têm lidado no sentido de

“significação”.

3.2.3 Associações significativas

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Se quisermos nos lembrar de alguma coisa, ou de muitas coisas, precisamos

nos prover de alguns dados, de preferência aqueles que nos levem a avançar ou retroceder a

partir deles. Assim:

Não há maneira de construir-se a vida de um homem, seja ela real ou ficcional, exceto através da reconstrução de seu passado em termos de associações significativas sobrepondo-se aos dados históricos, objetivos, ou então mostrando a mistura inseparável das duas dimensões. (MEYERHOFF, 1976, p.24)

As associações significativas, somadas a dados objetivos poderiam ser consideradas

chave essencial para a estrutura da personalidade ou identidade do “eu” na consciência e na

memória.

Nesse sentido, a ilusão, tal como é apresentada nos textos em estudo, pertence ao

campo mais recorrente. Não só em A doce canção de Caetana, Nélida Piñon destaca a questão

da ilusão na arte da criação, no papel do artista. Segundo a escritora, a ilusão é “matéria prima

fundamental”. Também Lygia Fagundes Telles, em As horas nuas, ao fundamentar sua

narrativa nos estados mentais, não se descuida do aspecto da ilusão na vida de suas

personagens.

Ainda no campo das associações, os acontecimentos históricos e sociais recebem, de

certa forma, tratamento especial. Piñon, de modo irônico, aborda em sua obra a semana prévia

ao Tri-campeonato Mundial de Futebol, momento do Milagre Brasileiro, quando a ilusão era

tal que se ignorava solenemente a tortura, a falta de liberdade: “- Neste instante em que o

Brasil põe em prática um modelo econômico progressista e generoso, sob a inspiração do

general Médici, que tanta sorte, por sinal, nos tem trazido...” (PIÑON, 1997, p.22). Telles, ao

abordar o tema histórico do momento, não podia deixar de associá-lo à tragédia que se abateu

sobre o marido:

O pobrezinho. Nunca mais foi o mesmo. Saiu da prisão diferente, mais fechado, mais calado, ô! Meu Pai, mas o que fizeram com ele!? Atingido no que tinha de mais precioso, a cabeça, sentia dores. A mão tremendo tanto, disfarçava quando acendia o cachimbo, o que fizeram?! (TELLES, 1999, p.37)

Outro destaque desses estudos associativos nas obras são a velhice e a morte, porque

ambas deterioram e determinam a morte das ilusões. As escritoras voltam-se para a fase

outonal da vida, quando os traumas do envelhecimento e da solidão provocam desencontros

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existenciais nas suas personagens, ambas, irmãs na arte e no destino. Para Rosa Ambrósio, a

constatação da decadência: “Só se fala em decadência dos usos, decadência dos costumes,

está na moda a decadência. Sou uma atriz decadente, logo, estou no auge. Não me mato

porque sou covarde mas se calhar ainda me matam”. (TELLES, 1999, p.20) Assim como, para

Caetana:

- Sabia que fracassei?... - Se era para fracassar, por que tio Vespasiano não me cancelou o sonho desde o início, quando meu pai me entregou a ele para cuidar de mim? Por que não me advertia, pelas manhãs, que havia no Brasil uma legião de artistas desdentados, condenados a jamais pisarem no palco do Teatro Municipal lá do Rio de Janeiro, e que ele era um deles, e que eu o seguiria nesse fado? (PIÑON, 1997, p.179-181)

Constatamos, então, que para uma “reconstrução literária”, os escritores se valem dos

dados históricos e objetivos, como associações significativas, como chave para a estruturação

da personalidade ou identidade do eu. Assim, o problema do tempo implica uma conjunção

com o problema do homem. “O tempo é o veículo da narração como é também o veículo da

vida.” (MEYERHOFF, 1976, p.25)

Logo, para analisar a existência do homem, teríamos que recorrer a sua história. E o

tempo, de acordo com Heidegger, “é categoria básica da existência”. O tempo carregado de

“significação”, como é ou foi experimentado pelo indivíduo. E como seria experimentado por

Caetana minutos antes de realizar seu sonho de ser Maria Callas:

O tio nutria estranhas crenças. Nos minutos anteriores à entrada em cena, ele admitia existir no palco, alheio ao texto que se ia dizer, um universo móvel e sem obediência às noções conhecidas de tempo e de espaço, capaz, porém, de propiciar às palavras, quando unidas aos gestos, a ocasião única de disparar o gatilho de um fervor sem nome e incompatível com o cotidiano incolor e repressivo da maioria das pessoas. (PIÑON, 1997, p.374)

Vivemos à sombra do tempo, e ele só é significativo inserido no mesmo contexto de

nossa experiência pessoal. Também Lygia Fagundes Telles utiliza o contexto da experiência

pessoal para apresentar a problemática do tempo. Revela sua personagem, Rosa Ambrósio

numa busca de significação: “Okey, falei no tempo e vejo agora que com ele eu tinha o tempo

diante de mim. O tempo diante de mim.” (TELLES, 1999, p.11)

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Parece-nos que a Literatura tem lidado frequentemente com os aspectos do tempo

considerados na vida dos seres humanos, apelando para o universo da experiência interior,

estudos subjetivos, mais do que para critérios objetivos de evidência:

O que somos, nós o somos apenas no tempo e através dele; mas somos também constantemente modificados no tempo e pelo tempo. O tempo nos faz e nos desfaz, tanto no sentido físico da mudança da estrutura celular do corpo – completamente renovada, afirma-se, a cada período de anos – e no sentido psicológico de um fluxo de consciência constantemente mutável. (MEYERHOFF, 1976, p.27)

Naturalmente, não se poderia deixar de mencionar as considerações de Rosa Ambrósio

ao descrever as sensações de perda que o tempo lhe havia imposto:

A gente vai perdendo. Perdendo uma coisa atrás da outra, primeiro a inocência, tanto fervor. A confiança e a esperança. Os dentes e a paciência, cabelos e casas, dedos e anéis, gentes e pentes – todo um mundo de coisas sumindo no sorvedouro, ô! meu Pai, tantas perdas. (TELLES, 1999, p.41)

A literatura ocupa-se muitas vezes com esses aspectos da natureza humana. O homem

como centro de forças ativas, capazes ou incapazes de controlar sua identidade.

Lygia Fagundes Telles aponta esse aspecto da vida através da personagem que se

revolta contra o envelhecimento do corpo, atribuindo a isso, o abandono da filha e do amante

ou culpando a vida pelas “injustiças” que o passar do tempo acarretam.

A multiplicidade de relações temporais na experiência de Rosa Ambrósio e Caetana

está explícita nas duas obras que estudamos neste trabalho. Lygia injeta sutilmente em As

horas nuas, as questões da ilusão, da decadência e das memórias da dor, remexendo nas

lembranças do passado. Nélida consegue, da mesma maneira, notável efeito em A doce

canção de Caetana, ao registrar as correntes do pensamento da protagonista do romance:

- Sofri nesses anos o flagelo do fracasso. Minha única paixão agora é o sucesso, ainda que dure cinco minutos. [...] Ante o universo a que nunca tivera acesso, Caetana esquecia-se da áspera vida que o destino e tio Vespasiano lhe haviam imposto. Obrigada a arrastar-se pelo Brasil, sem o prêmio de pisar num palco semelhante ao do Teatro Municipal lá do Rio de Janeiro, onde, por sinal, nunca entrara. [...] De repente, abstraída de Polidoro, teve a ilusão de que a vida ainda poderia ser emendada. [...] Logo estrearia em Trindade e outra vez teria vinte anos. (PIÑON, 1997, p.286-287)

Essas obras deixam vislumbrar a interessante similaridade ocorrida na construção das

personagens de Rosa Ambrósio e Caetana. A identidade de Rosa tem a mesma face que

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Caetana exibe. Os fragmentos das histórias de cada uma se entrelaçam num quadro de

referências simbólicas que constituem a unidade da narrativa em si. Ações, personagens,

ilusões, sonhos e decepções estão subordinados igualmente a um tema: o tema do tempo, que

envolve consequentemente, o da decadência, da velhice, do teatro, da ilusão e da fantasia.

3.2.4 O tempo e o eu com relação ao passado

A literatura procura pelo senso de continuidade, identidade e unidade inserido no

contexto do passado de cada indivíduo, e não necessariamente, nos seus documentos

biográficos e/ou autobiográficos.

A ferramenta para essa busca é a memória. O homem sabe quem é através dos

registros que constituem a memória que chama de sua e que é diferente da memória dos

outros.

É difícil saber como os diversos padrões da memória se relacionam uns com os outros

em tempos diferentes; igualmente difícil é explicar o senso de continuidade que se dá nesse

caso. Pois, somos conscientes da dificuldade que encontraríamos para explicar a intensidade

da relação que o ser humano tem ou acredita ter com a totalidade de sua vida passada.

Precisaríamos pensar no tempo como elemento fundamental para sanar ou diminuir

nossas dificuldades de entendimento desse campo de estudo:

O tempo é um movimento de múltiplas faces, características e ritmos, que, inseridos à vida humana, implica durações, rupturas, convenções, representações coletivas, simultaneidades, continuidades, descontinuidades e sensações (a demora, a lentidão, a rapidez). É um processo em eterno curso e em permanente devir. Orienta perspectivas e visões sobre o passado, avaliações sobre o presente e projeções sobre o futuro. (DELGADO, 2006, p.33)

Assim sendo, poderíamos inferir que o homem constrói, através dos tempos, os

acontecimentos que marcaram sua vida, sua história.

Logo: tempo, memória, espaço e história caminham juntos. Daí, mesmo não tendo

poder para alterar o que se passou, o tempo poderia modificar ou reafirmar o significado do

vivido e a representação individual ou coletiva do passado.

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Por exemplo, na História, a dimensão da temporalidade é tão relevante, que o tempo

poderia ser considerado definidor de pesquisas, já que os objetos da pesquisa são alterados no

decorrer do tempo.

Tomemos como base a situação do Brasil entre as décadas de 60 e 70. A repressão

política e cultural da ditadura militar, iniciada em 1964, quando os principais aspectos da

liberdade humana - palavra, pensamento e ação - foram censurados. Uma censura, que, não só

coibia a liberdade de expressão, como também, alterava a natureza e a razão de ser da

literatura.

Entretanto, Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon conseguem transmitir com sutileza,

eventos tais como a tortura dos prisioneiros políticos e a opressão da ditadura militar. Valem-

se da ferramenta da ironia para desnudar detalhes de certa mediocridade da alma e do espírito

das pessoas que não têm a capacidade de sonhar, incapazes de fantasiar como Caetana e Rosa

Ambrósio. Estas que renovam, apesar dos reveses da vida, uma consciência mais aguda da fé

em sua arte.

A tentativa de, pelo menos, mostrar a qualidade da continuidade dentre as diferentes

estruturas da memória nos diferentes momentos, isto é, mostrar como a mente consegue

fundir diferentes percepções e memórias numa só, é também o que este trabalho se propõe.

Tomemos, pois, como referência para argumentar sobre essa fusão, a célebre obra de

Marcel Proust, Em busca do tempo perdido. Em primeiro lugar porque essa obra revela que a

recaptura do tempo na experiência é essencial para a reconstrução do “eu”; em segundo,

porque ela (a obra aqui mencionada) torna-se, assim, um símbolo para as funções ativas,

criadoras e reguladoras desse “eu”.

Christiane Zschirnt considera: “Em busca do tempo perdido é um romance sobre o

tempo. Sobre o esquecimento e a lembrança e sobre a pergunta de como é possível escapar da

inexorável passagem do tempo – e, dessa forma, da transitoriedade e do costume. A resposta

é: pela lembrança.” (ZSCHIRNT, 2006, p.229)

E a inexorável passagem do tempo não passa em branco para Lygia Fagundes Telles.

Sua Rosa Ambrósio, para escapar do abismo profundo que julga ser a velhice, desabafa diante

da analista, transitando pelos difíceis caminhos da realidade:

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Rosa estendeu-se no divã e começou por dizer que as coisas na lembrança ficam tão mais belas. Viver infeliz na realidade e depois viver felicíssima na memória não seria a solução? perguntou. Para responder em seguida que isso podia acontecer com os outros mas na sua memória tudo era terrível. Um horror, acrescentou e virou a cara para a parede. Não quero mais falar, querida, quero ir embora. (TELLES, 1999, p.83)

Mas, o conceito de lembrança de Proust é diferente dos exercícios de memória atuais,

para os quais necessitamos de post-its como ajudas suplementares.

Proust acreditava que a lembrança não é um evento propositadamente anunciado pelo

conhecimento. Ela acontece inesperadamente sem sinal prévio. Pode ser provocada por um

estímulo sensorial: o sabor de um alimento ou o cheiro de uma flor. Dessas sensações,

desencadeiam-se associações, abrindo horizontes impensados, que às vezes nos extasiam.

Poderiam ser classificadas como qualidade da psique, raras e significando felicidade, beleza e

inspiração artística

Tal conceito de lembrança poderia ter sido inspirado numa teoria já formulada pelo

filósofo Henri Bergson – da percepção subjetiva do tempo. De acordo com Bergson, essa

percepção, não linear, era diferente da cronologia do tempo linear, mensurável. O tempo

particular da consciência não era divisível, e sim, de duração pura, onde o passado não some

nem se perde, mas se derrama no presente, enriquecendo-o.

Também para Proust o passado alcança o presente. Mas, enquanto para Bergson, ele

é como um rio que passa lentamente, para Proust é como uma catarata que aparece de repente.

A lembrança involuntária em Proust surge dramática e “espontaneamente” na consciência,

como uma totalidade das lembranças subitamente liberadas.

A uma dessas lembranças, a do famoso episódio do confeito, a madalena (madeleine),

a literatura européia rende suas homenagens, não só pelo fato de o narrador registrar para

sempre o tempo redescoberto por meio da lembrança, mas também por ter a vantagem de

aparecer nas primeiras cem páginas do romance.6 A obra inicia-se como uma longa

caminhada do sentido da vida.

6 Quando, no jardim-de-inverno, a mãe serve ao (já crescido) narrador em primeira pessoa uma xícara

de chá de tília e uma madalena, a sensação do sabor do confeito molhado no chá liberta toda a

vivência da infância que parecia estar perdida. Enquanto o sabor do chá e do confeito se derrama na

língua, para Marcel Proust levanta-se como do nada um mundo naufragado: lembranças há muito

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O crítico Walter Benjamin, um dos maiores leitores de Proust, se perguntou: “Seria

lícito que todas as vidas, obras e ações importantes nada mais são que o desdobramento

imperturbável da hora mais banal, mais sentimental e mais frágil, da vida de um autor?”

(BENJAMIN, 1994, p.38)

Benjamin parece ter sugerido ser a passagem do “bolinho” um dos episódios mais

importantes, narrado logo no começo do primeiro livro de Proust, como um desdobramento da

vida do autor.

Parece-nos também que Lygia Fagundes Telles, valeu-se desse famoso fragmento

como inspiração para falar do gato de Rosa Ambrósio, Rahul:

Era domingo. A noite seria de lua cheia, segundo Dionísia que servia pão feito em casa no café da manhã. Partiu ao meio o pão que tirou do forno e deixou a metade na minha vasilha. O cheiro de pão quente me levou a um tempo que eu sabia ser anterior ao período da minha casa romana, fiquei elétrico. Com ganas de me atirar no pão, antiqüíssimo o apetite. E comecei a mastigar lentamente, sem a menor pressa, a saliva abundante trabalhando cada migalha como se nela restasse algum resíduo desse tempo. (TELLES, 1999, p.30)

Outro aspecto da notabilidade da obra de Proust é a aceitação da premissa de que as

impressões individuais, momentâneas, são separadas, distintas e descontínuas.

Ao citarmos como exemplo a obra de Proust, poderíamos estabelecer uma relação

entre esse escritor e Henri Bergson no que concerne a alguns aspectos da apreensão do tempo.

Porém, convém deixar claro que não pretendemos sugerir qualquer tipo de identificação entre

a obra romanesca e a teoria filosófica, apesar de terem sido eles, autor e filósofo,

contemporâneos.

Nem o romance precisa da filosofia para expressar suas ideias, nem a filosofia precisa

se transformar em poesia para estudar a alma. Literatura e filosofia preenchem espaços e

distâncias diferentes. No entanto, ao convivermos com as duas percebemos que a distância

que as separa é a mesma que as aproxima:

Se a distância que separa nos impede de ceder aos paralelismos, por vezes tão aparentes, de reencontrar na construção romanesca as idéias filosóficas que às vezes

esquecidas do vilarejo Combray, onde a família passava suas férias, transformam-se no caleidoscópio

do passado. (ZSCHIRNT, 2006, p.230).

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ela parece ilustrar, de reenviar a ficção diretamente às teses que por vezes até sabemos terem sido defendidas pelo próprio escritor, por outro lado, o percurso da distância que aproxima a literatura da filosofia nos permite encontrar, na elaboração mais específica da trama romanesca, o impulso de desvendamento da realidade, fruto da inquietude, do espanto e da perplexidade, sentimentos que definem, ao menos em parte, a situação daqueles que buscam a verdade, procurando compreender o real um pouco para além do conjunto de significações que a vida cotidiana nos tornou familiares. (SILVA, 1992, p.141)

Assim vemos que, de acordo com Silva, ao lermos um texto filosófico não precisamos

de justificativas para entendê-lo, entretanto, se lemos uma obra literária formulamos,

imediatamente, uma série de questões para justificá-la e isso não é tarefa das mais fáceis.

Percebemos que o que a obra literária mostra está nela ou aponta para além dela; algo que está

ou muito próximo de nós ou em nós mesmos.

Henri Bergson concorda com a máxima de que a percepção não nos apresenta ao

verdadeiro real. E Franklin Leopoldo e Silva, em seu estudo, BERGSON, PROUST: Tensões

do tempo: acrescenta: “... a percepção está estruturada para nos mostrar do real aquilo que

interessa à prática.” (SILVA, 1992, p.143)

Valendo-nos do pensamento de Bergson, mais uma vez, podemos estabelecer uma

comunhão de ideias entre a Caetana, de Nélida Piñon e a Rosa Ambrósio, de Lygia Fagundes

Telles. Para Caetana, o que interessa é viver seu dia de Maria Callas; não importa que a glória

seja efêmera, que dure apenas alguns minutos. A realidade já tinha sido bastante dura para ela.

Sabia, por experiência própria, que artistas da sua categoria estavam em vias de extinção: “Já

não havia no Brasil, [...] lugar para eles, simples atores com coragem de exercer um ofício de

memória fugaz e que lhes deixava escassas moedas no bolso.” (PIÑON, 1997, p.143)

Também, Rosa Ambrósio, que se refugiava na bebida para esquecer a realidade:

... não leio mais jornais, desliguei a TV com suas desgraças em primeiríssima mão, crimes humanos e desumanos, catástrofes e calamidades naturais e provocadas, ah! um cansaço. Por que ficar sabendo tudo se não posso fazer nada? Posso dar água aos flagelados ressequidos? dar uma toalha de rosto aos inundados? Hem?!... As tragédias se enredando sem trégua. Não tenho culpa se tomei horror pelo horror conformado. (TELLES, 1997, p.10)

Dessa forma, não percebemos o tempo e o movimento, mas seu esquema de

mobilidade e sucessão, isto é, instantes que se sucedem objetos que se movem.

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Baseando-nos na hipótese: “... a filosofia partiu do princípio de que o que há de

substancial na realidade é o que ela tem de imóvel e imutável, e esses deviam ser então os

pontos de partida do conhecimento”, (SILVA, 1992, p.144) poderíamos inferir: tudo se

modificaria se pensássemos na hipótese de que o substancial da realidade é sua mobilidade e

temporalidade. Imóvel e imutável seria, por exemplo, o instantâneo fotográfico, no caso, o

artificial. O ser, o que existe, somente acidental ou artificialmente pode ser visto como ponto

imóvel, pois, na verdade, vive em fluxo contínuo.

É interessante observar que na voz narrativa da consciência de Rosa Ambrósio é

evidente a percepção da mobilidade do tempo. O tempo da personagem vive em fluxo

contínuo:

Recomeçar do nada, adiantaria? Não. Logo eu chegaria ao ponto em que estou, o ressentimento. A preguiça. E o mundo igual, igual a crueldade ou mais aprimorada ainda, a técnica aprimora os instrumentos. Atiça a imaginação. A violência da miséria se aperfeiçoando contra as crianças, contra os bichos. Empolgantes as infiltrações sentimentalóides nos discursos. Mas hoje eu sei o que quer dizer esperança, podem perguntar que eu sei. Só não posso responder. (TELLES, 1999, p.98)

Rosa reafirma que a realidade não lhe interessa, que a realidade com sua crueza só

aumenta o seu sofrimento. Assim, percebendo que é a bebida o veículo que a conduz ao

mundo da fantasia: “Bebo em homenagem a la busca”, (TELLES, 1997, p.12) embrenha-se

pelos sinuosos caminhos da ilusão.

Ora, sabemos que o prestígio da estabilidade, da permanência e da mobilidade

filosófica deriva da cumplicidade de três pontos de vista: senso comum, percepção e

intelectualização. Ao senso comum e à percepção atribuem-se as prerrogativas da prática, e ao

intelecto, a busca da verdadeira realidade da ação. É importante que se diga; percepção e

inteligência são necessárias para o domínio do real7, transformando-o de acordo com as

7 Referimo-nos ao real como núcleo íntimo da trama romanesca, no sentido de desvendamento da

realidade como fruto da inquietude, espanto ou perplexidade. Sentimentos que definem, pelo menos

um pouco, a situação daqueles que buscam a verdade, tentando, como apontou Silva, 1992,

compreender o real além dos significados da vida cotidiana. Percebendo, assim, que o que move o

autor a escrever é, também, aquilo que nos move, por ser real e verdadeiro, a incorporarmos o que de

mais profundo sabemos sobre as coisas e sobre nós.

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necessidades humanas. E, se não percebemos os aspectos do real é porque não prestamos

atenção nele.

É curioso que dessa perspectiva do domínio do real, as narradoras dos romances em

estudo discordam. Embora se encontrem muitas semelhanças em seus textos, somos

direcionados pelas vozes narradoras a observar que, de um lado, Rosa Ambrósio foge da

realidade sem charme do cotidiano, enquanto, do outro, Caetana a enfrenta. Evidentemente, a

atriz vale-se do bom senso, da percepção e da inteligência da sua personagem para conseguir

seu intento. Ela é prática. Seu sonho é ser Maria Callas nem que seja por cinco minutos. Se

para isso precisar passar por cima dos sentimentos alheios, de Polidoro ou das Três Graças,

suas antigas amigas, não hesitará em fazê-lo. Percebe que essa é a sua hora, não pode deixar

escapar o resto de sedução que seu corpo ainda reflete e fazer disso arma poderosa para sua

realização pessoal. Por outro lado, a argúcia e a inteligência feminina a direcionam nesse

caminho, cujas estratégias que usará para convencer Polidoro de cumprir com a antiga

promessa, satisfazendo todas as suas vontades, são as luzes necessárias para o domínio do

real: “- Não se assuste, Polidoro. Não vim dilapidar o ouro da família Alves. Só tenho um

pedido a fazer.” (PIÑON, 1997, p.190) E continua o jogo de sedução; faz do momento real,

no qual Polidoro está em êxtase pela esperança do sonhado reencontro amoroso, o

instrumento para atingir seu fim. Agrada-o, fazendo-o sentir-se importante para ela:

- Antes de partir, coma alguma coisa. Polidoro não reagiu à gentileza. [...] - Traga-nos um pudim que tenha sido feito ao menos com duas dúzias de gemas de ovos, disse Caetana a Balinho. Consolando Polidoro, sorriu. – Um só pedaço desse pudim faz ressurgir um morto. - O que faremos de nossas vidas depois do pudim? Disse ele, desolado, sabendo de antemão que nenhuma resposta o ajudaria a manter vivo o sonho que alimentara com vinte anos de espera. - Nada, simplesmente nada. Ao menos eu terei sido a Callas por vinte e quatro horas. Caetana aproximou-se do sofá, onde Polidoro se mantinha estendido, sem forças. Levou a mão até a cabeça do homem. Devagar, foi desorganizando-lhe os cabelos, como se assim afetasse também seus pensamentos. O único gesto de carinho que lhe concedeu em todo o fim de tarde. (PIÑON, 1997, p.191-192)

Paradoxalmente, tanto Caetana quanto Rosa, revelam através dos sentimentos, uma

negação explicita da realidade, desviando a atenção para aquilo que realmente satisfaz suas

buscas de felicidade.

Bergson afirma com simplicidade desconcertante:

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A atenção é o mecanismo seletor da percepção e é ela que faz com que vejamos no real apenas aquilo que preenche nossas expectativas de ação. E nos relacionamos com o real da mesma forma na medida em que para nós ele é instrumento e não um fim”. (SILVA, 1992, p.145-146)

Nélida Piñon vale-se de estratégias convincentes para mostrar o quanto suas

personagens se esforçam para transformarem em real aquilo que faz parte apenas de suas

férteis imaginações. Vejamos o caso de Danilo, membro da troupe de Caetana.

- Sabe lá o que significa conquistar o teatro da Ópera de Viena? Nunca vi lustres que ofuscassem tanto a vista. Senti-me cego, igual a Saulo lá na estrada de Damasco. Mas deixe-me contar desde o inicio. Estávamos no terraço daquele hotel Zaher, quando um homem de fraque se aproximou perguntando se havia entre nós algum artista sem contrato, a vagabundear por Viena. Embora ele não falasse em língua cristã, Caetana, de tanto ouvir ópera, indagou em italiano dos motivos de seu sofrimento. Ao saber que haviam adoecido dois de seus artistas naquela tarde, apresentou-nos como profissionais capazes de livrá-lo do fracasso. (PIÑON, 1997, p.126)

A atenção nos mantém ligados ao real; e o homem faz uso da tensão que subsidia essa

relação (atenção-real), para se manter senhor das coisas e da natureza. Porém, nos textos

estudados, verifica-se que as personagens, Rosa e Caetana, não se sentem senhoras de nada.

Ambas inspiram-se na ilusão para dar sentido às suas existências.

Entretanto, para que esse “senhor” possa dar conta da arte e da criação literária, ele

precisaria relaxar tal tensão. O que poderia parecer criação seria fruto dessa descontração, ao

se descontrair ou se distrair, o espírito relaxa e o artista se revela apto a atingir o foco de sua

criação. Então, surge diante de nós uma obra de arte:

O artista percebe o que de direito é perceptível, isto é, tudo. E desse modo, pelo qual passeia o foco indeterminado de sua atenção descontraída, retira os aspectos em que a verdade mais nítida e mais interiormente se apresenta: são os aspectos que, para a percepção comum aparecem como inesperados e insuspeitados, mas que ela mesma, percepção comum, reconhece como portadores de verdade, porque reconhece neles aquilo que de direito poderia perceber, não fossem os critérios pragmáticos da visão simplesmente humana do mundo. (SILVA, 1992, p.146)

Parece-nos, no contexto dessa perspectiva bergsonniana, que o que o artista nos

apresenta seria, de certa forma, fruto da imaginação. A obra seria a expressão perceptível da

visão. Ao reconhecê-la, a aceitamos como real no que ela tem de mais íntimo.

E o que o real tem de mais íntimo? O Tempo. É a luta pela expressão, fixando o

movimento do tempo e a imaginação como órgãos do conhecimento. No desejo da

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transposição do conhecimento para a obra o trabalho do artista torna-se tenso, agônico, a

linguagem identifica-se como produto da inteligência, às vezes, apta apenas a transmitir

aquilo que nos parece habitual.

No entanto, com o compromisso da narração como história verdadeira da consciência

e das coisas:

Compreender o modo como se estabelece este compromisso é entender a singularidade de cada mundo romanesco, é elucidar a visão original que cada artista tem da temporalidade, sempre a partir dela mesma, é aproximar-se da descrição originária que se dá por meio da palavra criadora, do logos que se faz mundo ao recriar o mundo. (SILVA, 1992, p.148)

Instaura-se o encontro entre narrador e narrativa.

A mão firme de Lygia Fagundes Telles, em As horas nuas, faz com que seu narrador

guie o leitor pelos diversos caminhos por onde suas personagens circulam. Trata-se de um

narrador atento que, como germe da narrativa, estabelece-se como modelo de observador da

experiência humana. Primeiro ele se embebe com os pequenos acontecimentos da realidade

cotidiana, para depois, representá-la de uma perspectiva pessoal.

Há nesse romance a extraordinária presença de Rahul, o gato de Rosa Ambrósio, um

narrador sensível e onisciente que atravessa a narrativa e as consciências. Um gato que às

vezes fala demais, segundo Dionísia, a criada. Um gato que participa de todos os problemas

da casa e das intimidades dos seus moradores. E mais, é a mais lógica das personagens da

narrativa; encontra soluções para tudo: “Se pudesse, passava um telegrama para Diogo

Torquato Nave Onde Ele Estiver: Rosa Ambrósio depende de você e eu dependo dela para

viver. Ponto. Quer ter a bondade de aparecer? Assinado, Rahul.” (TELLES, 1999, p.67) Essa

voz narrativa ganha peso ao passear pelo mundo dos vivos e dos mortos, da sanidade e da

loucura, do humano e do animal.

Também é traço marcante na obra de Nélida Piñon, A doce canção de Caetana, a forte

estrutura narrativa, em linguagem simples, entretanto, motivando as personagens,

especialmente a protagonista, no envolvimento constante do seu leitor nas malhas do texto,

usando a ilusão como fio dessa tessitura.

Se de um lado pensarmos em Walter Benjamin, quando afirma: “É a experiência de

que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem

narrar devidamente”, (BENJAMIN, 1994, p.197) por outro, acreditamos que se depender de

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Nélida Piñon, a arte de narrar terá vida longa, pois, a escritora transita pelos meandros da

ilusão, da mentira e da manipulação da realidade com maestria. Ela é capaz de argumentar

que fantasia, mentira, ou seja, ilusão beneficia o homem quando se consegue usá-la para criar

sentimentos mais verdadeiros. A voz da narradora ecoa pelo texto como agente da constatação

de que realidade em excesso prejudica o cotidiano. Precisa-se da mentira para se suportar os

reveses da vida. Assim, Caetana afirma:

- A verdade é sempre um perigo, declarou, ansiosa por expulsar Diana da sombra da árvore. O instinto dizia-lhe haver escolhido dessa vez a sentença certa. O próprio Virgílio assegurara que na ordem teológica, de difícil explicação para ela, a verdade, em seu cetro de glória, só podia atingir os indivíduos através de mil espelhos que refletissem sucessivas imagens distorcidas. Eram essas visões que forneciam aos homens pretextos para se defrontarem em pleitos mortais. Quanto aos sábios, vítimas de uma busca sem resultado prático, eram os primeiros a esvaziar o conteúdo da verdade. (PIÑON, 1997, p.219) De fato, a mentira é a única verdade que nos interessa. O resto é grosseiro e desumano. Mesmo porque a realidade está sempre a serviço da ilusão dos miseráveis e da argúcia dos ricos. (PIÑON, 1997, p.266)

Em ambas as autoras encontram-se aliados no combate contra o real. Tanto Lygia

quanto Nélida, em suas narrativas, apelam para a inexorabilidade do tempo, onde as marcas

que este imprime no corpo têm papel de soberano torturador. Para elas, as personagens

envelhecidas não conseguem mais impressionar. Para Lygia: “... envelhecer é ficar fora de

foco”, para Nélida, a velhice é uma miséria: “Não revele a ninguém a minha idade. Não quero

que descubram que menti a vida inteira. Se for preciso esconder os papéis, enterre-me como

indigente. Não tenho satisfações a dar aos céus de minha miséria”, (PIÑON, 1997, p.118),

afirmou Danilo, outro artista da troupe de Caetana.

Voltemos a Benjamin para quem: “... o senso prático é uma das características de

muitos narradores natos.” (BENJAMIN, 1994, p.200) Aí vamos encontrar os atributos das

autoras aqui estudadas. Ambas sabem da inevitabilidade da velhice e procuram transmitir aos

seus leitores como sugestão prática, uma espécie de norma de vida, isto é, fazer da ilusão um

caminho mais fácil para transpor a realidade cruel.

Dessa forma, ao esclarecerem a natureza da verdadeira narrativa, dão conselhos, como

narradoras experientes e elevam suas narrativas a uma dimensão utilitária. Benjamin

acreditava que: “... se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na

argila do vaso.” (BENJAMIN, 1994, p.205)

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Poderíamos considerar que as narrativas de Telles e Piñon instauram-se como um

ofício manual que provêm do mundo dos artífices. E acrescentar a elas, às suas escritas,

atributos que Paul Valéry destinou a essa espécie de artesão: “Iluminuras, marfins

profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e claramente gravadas; lacas e

pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúcidas...”

(BENJAMIN, 1994, p.206)

Tomemos como outro exemplo, a narrativa proustiana que privilegia a experiência

temporal, o narrador e sua experiência ordenadora. Por mais adjetivos que deem à obra de

Proust, sabemos que se trata de ficção, na qual a experiência do tempo também é ficcional.

Na narrativa de Em busca do tempo perdido, o tempo não é somente uma

representação literária do tempo vivido, mas também, uma revelação da essência do tempo na

realidade. Posto que narrá-lo não significa encará-lo nos limites da obra, isso seria muita

pretensão; o melhor seria assumi-lo como elemento envolvente onde transitaríamos pelos

meandros do começo e do fim, como paisagem originária e nostalgia de completude.

Na literatura é comum dizer, a obra não tem começo nem fim. Isso poderia ser

atribuído ao caráter circular da obra.

Alguns estudiosos dedicados à questão do tempo e da memória conceberam-na como

um processo de volta ao passado, extraindo dele a matéria bruta e a trazendo ao presente.

Porém essa teoria fundamenta-se na concepção linear do tempo (continuum) e desconsidera o

sujeito como é visto hoje – fragmentado, descontínuo, nesta estranha dimensão do real.

Nesse caso, a chave para essa busca é a memória. Foi Santo Agostinho o precursor do

reconhecimento da natureza da memória como chave para a estrutura do tempo e do eu. O

filósofo desenvolveu a teoria do tempo depois que as primeiras partes das Confissões

mostraram, de forma literária, o papel da memória na reconstrução da vida do ser humano:

Grande é o poder da memória, uma coisa temível, ó meu Deus, uma multiplicidade profunda e sem limite, e essa coisa é a mente e isso sou eu. O que sou então meu Deus? De que natureza sou eu? Uma vida variada e múltipla, e extraordinariamente imensa. (AGOSTINHO, 1980, p.138)

Se considerássemos, pois, As confissões de Santo Agostinho como obra fundadora da

escrita do “eu” no Ocidente baseada na concepção do tempo contínuo, observaríamos o

sentido de memória como um “receptáculo”, um “santuário” ou um “castelo”, em que o

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passado se mantém puro e será apresentado a quem por ele se interessar sem rasuras ou

falsificações, de forma integral.

Na opinião de Lúcia Castello Branco, porém, ir ao “santuário” do passado e de lá

trazê-lo ao presente, só será possível através da linguagem. Através dela podemos resgatar as

imagens do passado e caminhar na direção do que já não é, isto é, retroagir ao passado,

trazendo-o ao presente.

Admitiríamos, o passado se constrói a partir de faltas, de lacunas, ele não se conserva

inteiro, e buscar o que já foi significa reconhecê-lo como aquilo que ainda não é ou aquilo que

ainda será. Donde se conclui: a memória não é somente a volta ao passado, é também o que se

tem na construção do presente e do futuro.

Compreenderíamos melhor se considerássemos o movimento do tempo do passado ao

presente e ao futuro, isto é, a memória não só como construção, mas também, como um

processo movido pelo futuro. Caso contrário, estaríamos, ingenuamente, sendo envolvidos

pela ilusão da captura do real em sua integridade.

Em síntese, deveríamos focar o tempo como descontínuo, no qual é impossível

resgatar integralmente o vivido.

O tempo visto como contínuo vinculado à ideia de causalidade foi defendido por Henri

Bergson, ao elaborar o conceito de duração. Neste, o autor argumentou a favor da

indivisibilidade temporal, isto é, o movimento contínuo como ponto fulcral da estrutura da

dimensão temporal:

O que é, para mim, o momento presente? O próprio do tempo é escapar: o tempo que já escapou é passado, e nós chamamos presente ao instante em que ele escapa. Mas aqui não se pode tratar de um instante matemático. Sem dúvida, há um presente ideal, puramente concebido, limite indivisível que separaria o passado do futuro. Mas o presente real, concreto, vivido, aquele do qual eu falo de minha percepção presente, ocupa necessariamente uma duração. Onde, então, se situa essa duração? Antes ou depois do ponto matemático que eu determino igualmente quando penso no instante presente? É bastante evidente que é antes e depois ao mesmo tempo e que aquilo que eu denomino “meu presente” estende-se ao mesmo tempo sobre meu passado e o meu futuro. (BERGSON, 1963, p.153)

Percebe-se que Bergson ao defender a hipótese da organização do tempo a partir da

duração, afasta a possibilidade do instante matemático.

É com base nesse conceito de Bergson que Bachelard construirá seu raciocínio. Para

Lúcia Castello Branco:

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O autor desenvolve a idéia de que o tecido do tempo é fundamentalmente lacunar e a continuidade temporal não deve ser entendida como um dado, mas como uma obra, um trabalho, uma construção do sujeito, diante sobretudo da angústia que significa para ele a experiência da memória, o ato de reviver o desaparecido (e, portanto, o descontínuo), de enfrentar a morte. (CASTELLO BRANCO, 1994, p.28)

Na tentativa de organizar o caos da vida, Bachelard conceberia a continuidade,

abolindo as noções de causalidade e de linearidade temporais. A autora acrescenta: “... assim

como o tempo se constitui de lacunas e de rupturas, a causalidade dá-se através de saltos, já

que ela sempre “se exprime no descontínuo dos estados”, não sendo, portanto, possível para o

sujeito verificar o desenrolar de uma causalidade.” (CASTELLO BRANCO, 1994, p.28)

Bachelard, diferentemente de Bergson, se posicionou sob a perspectiva do pensamento

moderno – o sujeito como ser da linguagem – na construção da temporalidade. Nem sempre o

sujeito age de acordo com o tempo do mundo, já que seu comportamento oscila; ora se sente

feliz, ora entediado.

Parece simplória essa articulação. Mas ela introduz o sujeito na problemática temporal

que se direciona para o tempo como construção através da representação.

Aí se instala a complexidade – não poderíamos fazer coincidir o tempo vivido com o

tempo do revivido (construído pela memória, pela linguagem). A rememoração se dá a partir

de um fosso intransponível. A linguagem almeja criar a continuidade, e, paradoxalmente, é

nessa linguagem que a continuidade se rompe – o signo se apresenta a partir do que já não é.

Seria, pois, ingenuidade acreditar na possibilidade de se buscar algo simplesmente

perdido no passado e trazê-lo integralmente ao presente; essa façanha estaria incluída no

campo da ilusão.

Na própria edificação do texto, através do processo da escrita, já nos posicionaríamos

num tempo futuro ao do passado, pois, o tempo presente estaria sendo gasto no momento da

capturação da imagem, tempo da escrita, enfim, tempo perdido na construção do texto que nos

propusemos realizar:

Ora, o processo da memória sempre coloca em jogo esse atrito de dois tempos e esse segundo tempo, o do discurso, se localiza num agora, num presente do narrador. Ao se debruçar sobre a escrita, na tentativa de capturar o que já não é, o movimento do narrador é menos em direção ao passado remoto do vivido (a infância, a genealogia, os grandes acontecimentos) que em direção ao passado recente, recentíssimo, de algo que lhe escapa no ato mesmo de significar, a coisa significada. (CASTELLO BRANCO, 1994, p.32)

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Reafirmaríamos - o tempo perdido da memória não seria apenas o passado, mas

também o que se perde durante a elaboração da narrativa.

Em síntese, os tempos passado, presente e futuro, muitas vezes são insuficientes para

direcionar-nos numa análise mais aprofundada de qualquer texto literário. O ideal seria então,

como o disse Clarice Lispector em Água viva: “Eu te digo: estou tentando captar a quarta

dimensão do instante – já que de tão fugidio não é mais porque tornou-se um novo instante –

já que também não é mais. Cada coisa tem o instante em que ela é. Quero apossar-me do é da

coisa.” (LISPECTOR, 1998, p.9)

Realiza-se nesse fragmento o paradoxo do tempo presente; o futuro já se encontra ali,

evocando a lembrança.

O paradoxal, argumenta Castello Branco, é também reiterado por Deleuze, para quem:

... o presente não só existe como também é o único tempo que efetivamente existe e tem no passado e no futuro suas dimensões. Entretanto é a própria “eternidade” do presente que, para o autor constitui-se num paradoxo, já que, como elemento constitutivo do tempo, o presente é, no entanto, aquilo que passa, aquilo que se esvai no tempo constituído. (CASTELLO BRANCO, 1994, p.33)

Ao analisarmos esse fragmento concluiríamos que se optarmos pela existência do

presente como único tempo real entre passado e futuro, estaríamos aceitando a hipótese de

que a memória se efetua a partir do presente, como um movimento no qual o tempo, em sua

descontinuidade estruturante delimita essas duas dimensões temporais: o passado e o futuro.

Walter Benjamin defende a teoria da memória como construção realizada no futuro,

no “só depois” do vivido.

Aliás, esse é o conceito operacionalizado pela Psicanálise, lido como teoria que se

constrói com base em questões relativas à memória.

Não nos aprofundaremos aqui no estudo da psicologia profunda, mas não poderíamos

deixar de reconhecer nos trabalhos de Freud, por exemplo, em “Uma nota sobre o “bloco

mágico”, a importância da construção da memória com base na reconstituição de fatos

fundamentais para sua compreensão: “... recuperar a história do sujeito significa construir no

lugar da falta, do vazio, edificar sobre os traços restantes.” (CASTELLO BRANCO, 1994,

p.38)

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Na literatura, para se construir uma obra de arte é necessário que se reconstrua o

mundo da experiência e do “eu”. A criação artística se dá através do ato de recordação,

dando-nos a impressão de que as memórias possam parecer mais “verdadeiras” do que as

experiências das quais se originam. Nas palavras de Eliot: “Somente através do tempo o

tempo é conquistado”.

Em A doce canção de Caetana, Piñon demonstra sua experiência de mundo na

construção de um romance que examina o caráter nacional, sem partidarismo jornalístico ou

documental, evitando cair no regionalismo ou no nacionalismo, com o cuidado de dissolver

“nódoas políticas”, protegendo sua obra do sofrimento de um julgamento contaminado pela

maldade humana, e, sutilmente, deixando tais julgamentos a critério do que lhe convém. Além

de estruturar, através do ato da recordação, sugerindo o fato de que as memórias são mais

verdadeiras do que as experiências das quais se originam:

Os braços de Caetana eram tenazes que roubavam a Gioconda a emoção do encontro. Em compensação, o enlace prolongado permitia que ambas recuperassem no longo minuto, enquanto o calor dos corpos lhes aquecia os sonhos, um passado quase sem rastros e datas precisas. O mundo pretérito, aparentemente desfeito na memória, movia-se no pântano confuso e fedido das duas mulheres a quem os anos foram cingindo sem piedade. Contudo, só vencendo essa zona de sombra e de olores duvidosos, conseguiriam fazer ressurgir como num cristal turvo cenas de uma magnitude que lhes redimisse a vida. (PIÑON, 1997, p.221)

Vê-se aqui a estratégia usada pelo narrador para infundir em seu leitor um caráter de

realidade que, na verdade, era apenas fruto do desejo de Gioconda de abandonar a vida que

levava e mergulhar na fantasia de se tornar uma verdadeira artista, oportunidade que Caetana

talvez lhe desse. Gioconda foi ao encontro de Caetana para lhe cobrar essa promessa. O

abraço da amiga desviava-lhe a atenção, sugerindo que a amizade antiga estava acima de

qualquer coisa.

Também, não poderíamos desconsiderar o paradoxal da famosa obra de Proust,

quando o autor anunciou que:

... escreverá agora os livros que acabou de completar; pois a história que acabou de contar é a vida que viveu, e ao contá-la, ele não somente produziu uma obra de arte apresentando continuidade, unidade e identidade como também reproduziu seu próprio “eu” exibindo as mesmas características. (MEYRHOFF, 1976, p.46)

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Nesse sentido, a reprodução do próprio “eu”, inserida como complementação do que

acabara de escrever, denota a descontinuidade inserida na tão decantada continuidade da obra,

reafirmando que se algo foi completado seria por causa das lacunas aí existentes.

No mundo moderno, porém, a continuidade e a identidade do “eu” são severamente

prejudicadas. Tais reconstruções literárias contribuem para restaurar certos aspectos,

geralmente ameaçados pelo impacto do tempo sobre a vida do homem moderno. Desse modo,

rupturas ou lacunas na reconstrução imaginativa, evocativa do passado, continuidade e

identidade desse “eu” são também danificadas.

Em As horas nuas, Rosa Ambrósio, assim como a personagem de Nélida Piñon,

Caetana, estão engajadas na busca – talvez fútil – da recuperação da juventude, da realização

dos seus sonhos através da arte de representar, ambas à procura de um sucesso ou que nunca

tiveram na vida, ou que, se já o experimentaram, o fizeram num passado remoto.

Rosa, no auge de sua decadência como artista e como mulher, simula um diálogo com

o falecido marido:

É tarde no planeta. Escondo a cara nas cobertas, agora não queria o fantasma verde-úmido, perdão meu amor, mas queria o Diogo. Vinha tão bonito e tão alegre. Mesmo quando me chamava de velha me fazia sentir jovem outra vez, não é uma loucura? Isso tudo, a contradição, até nas agressões a gente se entendia, éramos parecidos. Sem vulgaridade, aquilo não era vulgaridade, ah! Gregório, diga que não sou vulgar ainda que me veja neste estado miserável, fazendo papel miserável. Mas se você me ordenasse, Rosa recomeça! Por caminhos secretos que só os mortos conhecem você me induziria, essa é a palavra, me induziria. Fui convidada, aceito, a peça é de Sartre, Reaparecimento de Rosa Ambrósio! Sucesso absoluto, coisa deslumbrante, a salvação pelo trabalho. Em seguida, as minhas memórias, tudo quanto é perna-de-pau já escreveu as suas, por que não eu? Hem?! ... As horas nuas, você aprovou o título, também eu nua sem tremor e sem temor. (TELLES, 1999, p.42-43)

Pede-lhe que a induza à reabilitação moral, psicológica e física, mesmo reconhecendo

que são secretos os caminhos que só os mortos conhecem. Tem consciência de que a

futilidade e a frivolidade não têm lugar no mundo da morte, porque sabe que a vida, com seu

caráter essencialmente transitório, é apagada pela obsessão do instante presente, assim como é

ilusória a plenitude do “eu” exterior que deseja imobilizar o futuro.

Igualmente, Caetana corre atrás de um tempo que não volta mais:

Ante o universo a que nunca tivera acesso, Caetana esquecia-se da áspera vida que o destino e tio Vespasiano lhe haviam imposto. [...] De repente, abstraída de Polidoro, teve a ilusão de que a vida ainda poderia ser emendada. Era-lhe possível apalpar a

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glória de perto, cuja casca, como de cintilante maçã, friccionaria contra o colete de veludo usado no papel de camponesa européia. Sob o primado de tal quimera, esfregou as mãos. Logo estrearia em Trindade e outra vez teria vinte anos. (PIÑON, 1997, p.287)

Ambas à procura do tempo perdido ou passado. Rosa Ambrósia pede auxílio ao

marido falecido para se recuperar da inércia e da angústia da decadência. Recorre ao mundo

dos mortos, valendo-se do imponderável, sente-se a mais miserável das mulheres, mas agarra-

se à ilusão da volta ao mundo das glórias do estrelato. Caetana esconde-se por detrás das

máscaras da juventude, esfrega as mãos, apontando para um sentimento provocado pela

excitação de estrear em Trindade e voltar aos vinte anos de idade.

Não é propósito examinar aqui as ligações ou paralelos entre as obras contemporâneas

de Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon e a do filósofo Marcel Proust. Não obstante, não

poderíamos deixar de perceber que, apesar da distância que as separa, a sutileza das vozes

narrativas se manifesta no mesmo sonho da recuperação do passado, da juventude e do amor

eterno e puro – o que seria o protótipo da própria ilusão.

3.3 A memória coletiva

A técnica cria redes de globalização, mas o mundo é também feito de outros

territórios. Não poderíamos esquecer que existe uma memória coletiva no núcleo de uma

classe, que além do poder de difusão, se alimenta de imagens, sentimentos, ideias e valores

que dão identidade a essa classe.

Não devemos nos deixar levar pelo tecnicismo reinante que acaba por nos convencer

de que a nostalgia é sentimento inútil. A interação não esgota a comunicação. Se não, nos

comunicaríamos apenas com os nossos contemporâneos, o que seria desastroso. Uma

conversa alegre entre amigos não seria reproduzida pela técnica.

Não é fácil, no entanto, enveredar pelos meandros dos diversos aspectos da memória

sem o cruzamento das fronteiras da Psicologia, da Sociologia e da História.

Ressaltaríamos, para efetuar essa viagem, a admirável contribuição de Maurice

Halbwachs, sociólogo clássico, sacrificado pelo nazismo.

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O autor mostra que é impossível falar da recordação e da localização das lembranças e

recordações sem o auxílio dos contextos sociais que banalizam a recordação do que

chamamos memória. Ao evocar o depoimento de uma testemunha, afirma que essa só tem

sentido se pertencer ao grupo do qual faz parte o acontecimento, já que o evento foi vivido em

comum. Duvignaud, no prefácio de A memória coletiva, afirma:

... o “eu” e sua duração se localizam no ponto de encontro de duas séries diferentes e às vezes divergentes: a que se liga aos aspectos vivos e materiais da lembrança, a que reconstrói o que é apenas passado. O que seria desse “eu”, se não fizesse parte de uma “comunidade afetiva” de um “meio efervescente” – do qual tenta se livrar no momento em que se lembra? (DUVIGNAUD, 2006. p.12)

De que comunidades afetivas fizeram parte Rosa Ambrósio e Caetana?

A menina Rosa pertencera a uma família dividida entre o lado pobre, o dela, e o lado

rico, tia Lucinda, irmã da mãe e tio André, médico bem sucedido. Tinham um filho, Miguel,

por quem Rosa nutria sentimentos dos mais românticos. Mas sua família, embora morasse

perto dessa tia, pertencia a outro nível social: “... a diferença é que não tínhamos jardim nem

carro nem quatro empregados e nem aquela lareira vermelha, acesa todo o inverno. A

diferença é que éramos pobres.” (TELLES, 1999, p.202) O pai, modesto empregado da

Prefeitura, e a mãe, lutando para manter as aparências: “O dinheiro curto, vejo-a tantas vezes

com aquele lápis, fazendo contas. Contas. Ou mexendo o doce no tacho de cobre...”

(TELLES, 1999, p.202-203) A pobreza sempre molestou a vida da menina que sonhava muito

além das suas possibilidades: “Se a mamãe alugar um dia o porão e essa casa virar um cortiço,

eu me mato!” (TELLES, 1999, p.203) Isso aconteceu e ela não se matou. Anos mais tarde,

através de uma herança deixada por tia Ana, que também morava num palacete, foi que a

situação financeira da família de Rosa melhorou. Ela tornou-se famosa e conheceu a glória.

Mas para Caetana, a vida reservou outro destino. De origem pobre, a menina foi

entregue a tio Vespasiano para que dela cuidasse e orientasse pela vida. Assim:

Ela vem de família de artistas. Vespasiano, que a educou, orgulhava-se de jamais ter tido casa montada. Era um nômade. Levava os pertences nas costas como os caramujos. Igual a nós, que nem sabemos às vezes em que buraco do Brasil nos metemos. (PIÑON, 1997, p.123)

Tio Vespasiano fundou um grupo de teatro, que logo se desfez, restando apenas cinco

ou seis atores. No entanto, foi a esse tio que Caetana conheceu como única família e a quem

amou verdadeiramente: “- Ah, tio, o que será de mim se me faltar de repente? De que valerá o

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triunfo se não estiver presente para me olhar?” (PIÑON, 1997, p.166) Foi também quando tio

Vespasiano falou a Polidoro da dedicação da sobrinha, que esse homem teve a perfeita noção

do: “... drama da família que expunha, a meio de gestos desmedidos, risos, choros e suspiros,

sua vida descarnada para um público pagante como ele.” (PIÑON, 1997, p.166) Assim viveu

Caetana, pelos picadeiros do mundo, acompanhando o tio até que ele morreu. Então, quando

sentiu que o teatro mambembe nada mais tinha a lhe oferecer, voltou à Trindade para cobrar

de Polidoro a antiga promessa de cumprir todos os seus desejos.

Entretanto, é oportuno observar que, enquanto o tio vivia e o grupo existia, logo, sua

família, a atriz lutou pelo sonho da glória. Só quando sua “comunidade afetiva” se desfez ou

estava em vias de se desfazer, foi que ela voltou à sua terra natal.

Não poderíamos, assim, deixar de reconhecer que a consciência nunca estaria

encerrada em si mesma, não seria vazia nem solitária.

Halbwachs situa diferenças entre “memória histórica” e “memória coletiva”,

esclarecendo que a própria criação do termo “memória histórica”, explicaria a associação de

dois termos excludentes. A “memória histórica”, introjetando o sentido de reconstrução de

dados fornecidos pelo presente da vida social projetada sobre o passado reinventado; a

“memória coletiva”, recompondo o passado. O pesquisador, embora não tivesse tido tempo de

vida para continuar seus estudos, escreveu ainda: “É preciso distinguir certo número de

tempos coletivos, tantos quantos os grupos separados que existem”. Mas, sempre ter em

mente, que o testemunho mais importante seria o nosso.

Quando dizemos: “... não acredito no que vejo”, apontamos para o sentimento de

coexistência de dois seres – um, o ser sensível, uma espécie de testemunha do que viu, e o

outro, o “eu” que realmente não viu ou que mesmo diante da hipótese de ter visto, formou

uma opinião com base no testemunho alheio.

Acreditamos, pois, que ao adicionarmos outros testemunhos às nossas lembranças,

aumentamos a confiança nas nossas recordações. Nesse caso, nossas lembranças, embora

auxiliadas por outros, seriam coletivas, apesar do evento revivido ter sido íntimo ou

particular. Porque jamais estamos sozinhos, sempre haverá nos interstícios de nossas

lembranças muitas pessoas envolvidas.

Isso leva-nos a considerar as recordações de Rosa Ambrósio:

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A praça. Tantas vezes vim aqui com aquele pai fujão, era um lugar tranquilo, alguns casais de namorados. Algumas pajens fazendo tricô e vendo as crianças correndo nas alamedas de pedregulhos e areia branca. Então papai chamou o fotógrafo de máquina de tripé, nós dois posando de mãos dadas na pequena ponte em arco. Grandes chorões choravam o pranto verde-claro sobre o lago verde, um ou outro ramo mais longo boiando na água. O nome não é chorão, é salgueiro, ensinou meu pai arrancando uma folhinha que me entregou como se fosse uma esmeralda, guardei a folha, guardei o retrato. Sumiu tudo, ele na frente. (TELLES, 1999, p.171)

Rosa, ao valer-se das lembranças associadas ao pai, de certa forma, garante a

veracidade do fato vivido há tantos anos. Além do fotógrafo e da foto que são provas

contundentes do acontecido, o momento ficou registrado, o detalhe da folhinha do salgueiro,

dá um toque de presença de memória privilegiada. Mesmo quando afirma que “sumiu tudo”,

inclusive o pai, a voz narrativa não afasta a possibilidade de ser acreditada, pois, ainda que a

foto e a folhinha fossem produtos de sua imaginação, a existência do pai não poderia ser

negada.

Entretanto, sejamos cautelosos com a afirmação de “jamais estamos sozinhos, sempre

haverá nos interstícios de nossas lembranças muitas pessoas envolvidas”. Precisaríamos sim

do testemunho de outros indivíduos para a rememoração de nossas lembranças, no sentido

literal da palavra, mas, não nos esqueçamos de que esses depoimentos seriam insuficientes.

Os testemunhos exteriores a nós precisariam da semente da rememoração para se tornarem

massa consistente das lembranças. Se nos sentirmos incapazes de reconstruir sozinhos

determinado evento e precisarmos do auxílio de outras testemunhas, essas poderão até nos

apresentar algo muito nítido, entretanto, não poderíamos considerar esse fato como uma

lembrança.

Talvez possamos admitir que muitas lembranças nos venham à mente com o auxílio

dos outros ou que seria memória coletiva o fato de evocarmos um evento ocorrido na vida de

um grupo. Entretanto, muitas vezes, teríamos a ilusão de que as lembranças coletivas seriam

menos importantes do que as outras sob o poder da nossa vontade.

Logo, quando temos a sensação da possibilidade de retomar algumas lembranças por

outras vias, seria porque admitimos a existência dessas vias. Uma delas poderia ser a do

reconhecimento através das imagens.

“Reconhecer por imagens [...], é ligar a imagem (vista ou evocada) de um objeto a

outras imagens que formam com elas um conjunto e uma espécie de quadro, é reencontrar as

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ligações desse objeto com outros que podem ser também pensamentos ou sentimentos.”

(HALBWACHS, 2006, p.55)

A riqueza dessa citação não se esgota aí, já que ela ecoa as vozes das Três Graças,

excitadas pela chegada de Caetana e o ardente desejo de homenageá-la:

Ainda não havia amanhecido e as Três Graças batiam o bolo com renovada esperança. Ao tirá-lo do forno armaram os três andares com toda cautela, apuradas em revesti-lo com a clara endurecida à custa de açúcar e limão batidos. E porque o bolo lhes sugeria dia de festa, iam o tempo todo entoando hinos litúrgicos, que também lembrava as noivas. - Se não fosse Sebastiana, com sua mania de datas, teríamos esquecido o aniversário de Caetana. Ela é do signo de Gêmeos, mas parece de Leão. Uma fera africana sem juba. (PIÑON, 1997, p.89)

A ligação da imagem do bolo ao dia de festa sugestionava as mulheres ao canto

litúrgico e, consequentemente, às noivas. A lembrança do dia do aniversário de Caetana

levava à constatação do signo, que apesar de ser Gêmeos, as direcionava ao signo de Leão,

numa exibição de conhecimento e intimidade com a ilustre visita. Conviveram o suficiente

com ela para lhe atribuírem o adjetivo de “fera africana sem juba”.

O que lembramos corresponde a algum acontecimento ocorrido no passado. É o que

Bergson chamou sensação do déjà vu. Exemplo: algumas vezes na vida tivemos oportunidade

de estar num lugar em que estivemos há muito tempo atrás, que não sofreu nenhuma

modificação com o passar dos anos, mas que também não fez parte dos nossos pensamentos.

Quando o reconhecemos poderíamos dizer que duas imagens se sobrepõem: uma, a que se

apresenta diante dos nossos olhos e a outra, a que vimos outrora. Diríamos: uma percepção e

uma lembrança? Não, há apenas uma, a que temos diante dos nossos olhos. Uma imagem

evoca a outra ou uma lembrança atrai outra? Isso é ilusão.

Em As horas nuas, a sensação do déjà vu parece se dar de forma invertida:

Mas é aquela antiga praça? Há dezenas de barraquinhas e tabuleiros com vendedores miseráveis vendendo suas miseráveis quinquilharias, mendigos em cachos e os passantes. Se houvesse ao menos um banco vazio, mas a espessa vaga da miséria transbordou e ocupou os espaços, a praça ocupada. A cidade ocupada. Mas de onde veio toda essa gente? onde essa miséria se escondia antes? (TELLES, 1999, p.171)

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O lugar em que Rosa estivera no passado sofreu grandes modificações, a imagem que

se apresenta diante dos seus olhos não evoca a lembrança do passeio que fizera com o pai. A

ilusão é substituída pela dura realidade da miséria e da pobreza.

Nossas percepções do mundo exterior se dão na mesma ordem de sucessão dos fatos e

fenômenos naturais. A natureza regulando o rumo das coisas. E não poderia ser diferente, já

que nossas representações são reflexos das coisas. Um reflexo se explica pela coisa que ele

produz naquele instante. A ligação que existe entre as imagens se explica pelo encadeamento

causal dos fenômenos naturais:

Divisões e ligações correspondem a uma espécie de lógica espacial ou material, e é nesta lógica que se apóia a memória das percepções. A coesão dessa memória explica-se pelo fato de que as lembranças que ela evoca são coerentes, como devem ser os fenômenos (objetivos) fora de nós. Mas é a mesma causalidade natural que liga as coisas e os pensamentos do espírito com relação a essas coisas. (HALBWACHS, 2006, p.61)

Chamamos aqui causalidade natural à nossa representação na sociedade em que

vivemos. Em outras palavras, cada grupo precisa de uma lógica para perceber e combinar as

noções que lhe chegam do mundo exterior, seja ela geográfica, topográfica ou física – uma

lógica social e as relações que ela determina.

Cada influência positiva ou negativa corresponde à outra oposta, entretanto agimos

independentemente dessas influências ao constatarmos que nossos atos são dominados pela lei

da causalidade.

As lembranças, mesmo as mais pessoais, se sucedem e se explicam pelas mudanças

em nossas relações com os ambientes coletivos, elas resultam da fusão de vários elementos

diversificados e isolados. Da mesma forma, a lembrança reaparece em função de pensamentos

coletivos emaranhados e como não podemos atribuí-la a nenhum deles, imaginamos sua

independência e contrapomos sua unidade à sua multiplicidade.

E se as lembranças pudessem se organizar de duas formas? Uma em torno de uma

determinada pessoa e outra dentro de uma sociedade? Memórias individuais e memórias

coletivas. O individuo participaria de dois tipos de memória. Todavia, nessa hipótese,

participando de um ou de outro tipo, ele adotaria duas atitudes opostas: ou suas lembranças se

situariam no contexto de sua personalidade, de sua vida pessoal (vista sob o prisma de seus

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interesses pessoais), ou simplesmente como membro de um grupo (sob o prisma dos

interesses desse grupo).

Sabemos que a memória coletiva é constituída de memórias individuais. Entretanto,

uma não se confunde com a outra. As memórias individuais invadem a memória coletiva,

mudando sua aparência no momento em que a substituem no conjunto, o que não seria mais

consciência pessoal.

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3.3.1 Memória e esquecimento

“O esquecimento também é uma forma de memória. - O seu vago porão,

- A outra face, oculta - da moeda”.

Jorge Luís Borges.

Embora direcionados para o estudo da memória e do esquecimento, não poderíamos

deixar de falar, ainda que sumariamente, sobre a memória no campo científico, como

propriedade de armazenar informações.

A emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas da

atualidade tornou-se fenômeno de destaque. Caracterizada pela volta ao passado, contrastando

com o futuro, o estudo sistemático da memória marcou as primeiras décadas do século XX.

Desde a ruptura radical com os mitos apocalípticos e o aparecimento do “homem novo”, na

Europa, através da purificação racial ou de classe, no socialismo e no stalinismo, até a

modernização norte-americana, a cultura modernista ganhou brilho com o que poderia ser

chamado de “futuros presentes”.

Segundo Andreas Huyssen, em Seduzidos pela memória: “... a partir da década de

1980 o foco parece ter-se deslocado dos futuros presentes para os passados presentes; este

deslocamento na experiência e na sensibilidade do tempo precisa ser explicado histórica e

fenomenologicamente.” (HUYSSEN, 2000, p.9)

Também o foco contemporâneo na memória e na temporalidade contrasta com outros

estudos sobre as categorias de espaço e deslocamento, no contexto dos estudos culturais.

Estaria o mundo sendo musealizado? Talvez sim, com o objetivo de conseguir recordação

total. Seria esta hipótese fantasia de arquivista louco? Ou simplesmente o desejo de puxar

inúmeros passados ao presente? Talvez alguma coisa ligada à estruturação da memória e da

temporalidade de hoje e que não foi experimentada no passado.

Os discursos de memória desenvolveram-se na Europa e nos Estados Unidos, não só

pela abordagem de temas como o Holocausto, como também, histórias relacionadas ao

Terceiro Reich (fortemente politizadas), a ascensão de Hitler ao poder, a infame queima de

livros, o fim da Segunda Guerra Mundial, etc, para citar apenas alguns exemplos.

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Eventos como esses receberam grande cobertura da mídia internacional, remexendo

nos baús da História.

Desde 1989, as questões da memória e do esquecimento têm dominado campos de

estudos diversos. Poderíamos citar: os países pós-comunistas do leste europeu e da antiga

União Soviética, o discurso público na África do Sul, debates raciais na Austrália, as relações

entre Japão, China e Coréia, a violação dos direitos humanos e a justiça. É interessante notar

que, no caso de massacres organizados, como em Ruanda e na Bósnia, na década de 1990,

quando comparados com o Holocausto, foram fortemente rejeitados pelos políticos, pela

mídia e até pela própria população. Determinados tipos de atrocidades, quando lembrados,

confirmam o poder da cultura da memória, servindo como prova da incapacidade das políticas

governamentais. Embora se reconheça o vasto campo do uso político da memória, tais

“memórias traumáticas” não são convenientes ao poder.

Se de um lado, a cultura da memória recorre ao passado mítico para apoiar variados

setores da política, paradoxalmente, do outro, encontramos tentativas de mascarar as políticas

do esquecimento, como as promovidas pelos regimes pós-ditatoriais, através de reconciliações

nacionais, anistias oficiais, repressão etc.

No contexto da política, tanto Lygia Fagundes Telles quanto Nélida Piñon nos remete

ao momento da ditadura dos anos sessenta/setenta, para mascarar o esquecimento. Em Telles,

referenciando-se a Gregório:

- Tão inteligente, tão sensível. E difícil, um homem-nó. E só. Por acaso Ananta sabia o que era conviver com um homem atado por dentro num nó-cego? Cassado e torturado pela ditadura, Ah, voltou mas irreconhecível. Gaguejava de repente, ele que falava tão bem nas suas aulas, conferências. Trôpego, eu ouvia às vezes seus passos e tinha vontade de chorar, mas o que aconteceu, meu Pai! Conta pelo amor de Deus, o que fizeram com você?... Então ele disfarçava, nós disfarçávamos [...] - A prisão foi na década de setenta, você disse. Lembra o ano? - Não, tenho ódio de datas. (TELLES, 1999, p.142-143)

O fato de disfarçar e ter ódio das datas nada mais é do que desejar esquecer. Nesse

caso, o esquecer não só é necessário para quem sofreu as atrocidades impostas pelo regime

ditatorial, como também, conveniente para salvaguardar a imagem do governo. Em Piñon, sob

o disfarce da imagem oficial de um país ufanista e intoxicado pela Copa do Mundo, a

população alienada esquecia-se do presente político brasileiro sob a ditadura de Médici,

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subjugada pela perseguição e o exílio político, os desaparecimentos, a tortura e a miséria do

povo:

Murmurava-se até que em certas capitais aplicavam-se torturas cruéis contra estudantes e comunistas. Ninguém, porém, dava fé a uma calúnia assacada contra o presidente Médici, o mais simpático general da revolução, às vésperas de ter seu nome para sempre associado à próxima conquista do tricampeonato no México. (PIÑON, 1997, p.51)

Em síntese, a memória tem ocupado lugar de destaque em vários pontos do planeta:

O enfoque sobre a memória e o passado traz um grande paradoxo. Com freqüência crescente, os críticos acusam a própria cultura da memória contemporânea de amnésia, apatia ou embotamento. Eles destacam sua incapacidade e falta de vontade de lembrar, lamentando a perda da consciência histórica. A acusação de amnésia é feita individualmente através de uma crítica à mídia, a despeito do fato de que é precisamente esta – desde a imprensa e a televisão até os CD-Roms e Internet – que faz a memória ficar cada vez mais disponível para nós a cada dia. (HUYSSEN, 2000, p.18)

Questionaríamos: as duas hipóteses são plausíveis? O aumento da memória se deu na

mesma medida do aumento do esquecimento? Memória e esquecimento sofreram pressões da

mídia?

Poderíamos responder: basicamente as memórias comercializadas em massa são

imaginadas, logo, muito mais fáceis de serem esquecidas do que as memórias vividas.

Entretanto, aprendemos com Freud, que memória e esquecimento estão indissolúvel e

mutuamente ligados, e que, a memória é apenas uma outra forma de esquecimento, e o

esquecimento, uma forma de memória escondida.

Mas o ser humano entra em pânico diante da hipótese da perda da memória, isto é, do

esquecimento. Talvez esse medo o induza a lembrar.

Concluiríamos então, que as abordagens sociológicas da memória coletiva – como a

de Maurice Halbwachs, por exemplo, quando propõe formações de memórias sociais estáveis,

- seriam insuficientes para vencer a dinâmica da mídia e da temporalidade, da memória do

tempo vivido e do esquecimento.

Para os críticos da amnésia do capitalismo tardio, a cultura ocidental da mídia não

concorre para o desenvolvimento da memória real ou com sentido histórico.

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Huyssen, com base no argumento padrão de Adorno, segundo o qual a mercadorização

é igual a esquecimento, argumenta que, para esses críticos a comercialização da memória gera

apenas amnésia.

Não seríamos tão radicais. Por um lado poderíamos pensar que a tecnologia estaria

favorecendo nosso desejo de privilegiar o passado. Por outro, entretanto, estaríamos nos

apegando a ela (a tecnologia), para evitarmos, no futuro, o esquecimento que tanto nos

aterroriza.

Poderíamos pensar agora nas funções psíquicas: “... graças às quais o homem pode

atualizar impressões passadas, ou que ele representa como passadas.” (LE GOFF, 2003,

p.419)

No entanto, nesse campo, o estudo da memória seria de tal forma abrangente,

englobando não só a psicologia, como também, a psicofisiologia, a neurofisiologia, a biologia,

incluindo perturbações da memória, como a amnésia, que nos levaria também à psiquiatria. E

isso desviaria o foco do nosso estudo, tornando impossível abordar campos de tal

complexidade num trabalho como este.

Consideremos, pois, três tipos de memória: específica, étnica e artificial.

Leroi-Gourhan considera que a memória:

Não é uma propriedade da inteligência, mas a base, seja ela qual for, sobre a qual se inscrevem as concatenações de atos. Podemos a este título falar de uma “memória específica” para definir a fixação dos comportamentos de espécies animais, de uma memória “étnica” que assegura a reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas e, no mesmo sentido, de uma memória “artificial”, eletrônica em sua forma mais recente, que assegura, sem recurso ao instinto ou à reflexão, a reprodução de atos mecânicos encadeados. (LEROI-GOURHAN, 1965, p.269)

Hoje, fala-se, com frequência, de memória central de computadores e código genético,

como memória da hereditariedade.

Mas os psicólogos e psicanalistas afirmariam, tanto do ponto de vista da memória,

quanto do esquecimento, nas manipulações conscientes ou inconscientes, que a afetividade, o

desejo, o interesse, a inibição e a censura, exerceriam papel importante sobre a memória

individual; assim como, na memória coletiva, o mesmo se pode ver na luta das forças sociais

sobre o poder.

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Logo, o domínio da memória e da memória do esquecimento tornar-se-ia fator

preponderante para as classes e grupos de indivíduos que dominam ou dominaram as

sociedades históricas, como ressaltamos anteriormente. No que tange aos governos arbitrários,

por exemplo, os esquecimentos são armas a favor dos mecanismos de manipulação da

memória coletiva.

No século XX a memória social se expandiu no campo da filosofia e da literatura.

Em 1896, em Matière et mémoire, Bergson, citado por Le Goff, já considerava a

noção de imagem no cruzamento da memória e da percepção:

No termo de uma longa análise das deficiências da memória (amnésia da linguagem ou afasia) descobre, sob uma memória superficial, anônima, assimilável ao hábito, uma memória profunda, pessoal, “pura”, que não é analisável em termos de “coisas”, mas de “progresso”. (LE GOFF, 2003, p.465)

Com base nessa teoria os laços entre memória, espírito ou alma influenciariam a

literatura, marcando o ciclo narrativo de Proust em sua obra, Em busca do tempo perdido

(1913-1937). Nasceria, assim, uma nova memória romanesca, unindo mito-história-romance.

Com o surgimento do surrealismo, modelado pelo sonho, André Breton, em A escrita

e o pensamento surrealista, de Gérard Durozoi e Bernard Lecherbonnier, questiona: “E se a

memória mais não fosse que um produto da imaginação?” Mais uma vez, a literatura, através

do Manifesto do Surrealismo (1924), mostraria a importância da teoria de uma “memória

educável”.

Invoquemos, aqui, Freud, como inspirador, quando na Interpretação dos sonhos,

afirma: “... o comportamento da memória durante o sonho é certamente significativo para toda

a teoria da memória. Mas critica “a idéia de reduzir o fenômeno do sonho ao da

rememoração”, acreditando na existência de uma memória específica do sonho, um tipo de

escolha.

É como se pode ver no sonho de Rosa Ambrósio:

Noite escuríssima. Viu-se nua em meio das trevas, mergulhada até o pescoço na água tão gelada que era como se estivesse num cubo de gelo. Começou então a chorar, chorar – e fez o gesto, roçando as pontas dos dedos nas faces, imitando as lágrimas que desciam sem parar. Lágrimas tão ardentes que aos poucos foram derretendo o gelo, varando a superfície dura até que a crosta se fez em pedaços e ela pôde se libertar aquecida, mas não fora mesmo uma coisa deslumbrante? Hem?!... Se salvar no próprio pranto. (TELLES, 1999, p.31)

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A personagem talvez tenha escolhido a metáfora do derretimento do gelo em função

do calor de suas lágrimas, como se esse calor pudesse também derreter as barras de ferro que

a prendiam na tristeza e no abandono causado pela decadência e a velhice.

De acordo com Freud, que no começo do século clinicava como neurologista em

Viena, o fenômeno dos sonhos chamou sua atenção por causa de uma paciente neurótica que

os mencionava com frequência. A partir daí, numa espécie de auto-análise descobriu,

também, serem seus sonhos não apenas histórias esquisitas, mas a chave para a alma do ser

humano. E, através desses estudos, superou uma crise pessoal. Mais tarde, o estudioso

explicaria que: “... os sonhos são a realização de desejos oprimidos ou reprimidos, dos quais o

sonhador teve de abrir mão”. (ZSCHIRNT, 2006, p.227)

Freud, porém, não trata a memória como coisa, e, unindo-se à teoria de Bergson, da

memória profunda, pessoal, “pura”, que não é analisável em termos de “coisas”, mas de

“progresso”, liga o sonho à memória latente e não à consciente, aprofundando seu domínio

para esclarecer sua importância individual nas manifestações coletivas. Dessa maneira, a

memória desempenha papel importante na interdisciplinaridade, instalando-se entre as

ciências sociais, tais como a sociologia, para o conceito de tempo; a psicologia social em suas

ligações com o comportamento, as mentalidades e a antropologia e a realidade das sociedades

“selvagens”, ou antropologia histórica, que estuda a história.

3.3.2 A importância da memória coletiva

Na luta pelo poder, pela vida, pelo sucesso, pelo dinheiro, as classes dominantes e

dominadas, desenvolvidas ou em desenvolvimento, se valem da memória coletiva através de

arquivos, monumentos, documentos, etc.

Reafirmamos as palavras de Leroi-Gourhan:

A tradição é biologicamente tão indispensável à espécie humana como o condicionamento genético o é às sociedades de insetos: a sobrevivência étnica funda-se na rotina, o diálogo que se estabelece suscita o equilíbrio entre rotina e progresso, simbolizando a rotina, o capital necessário à sobrevivência do grupo, o

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progresso, a intervenção das inovações individuais para uma sobrevivência melhorada. (LEROI-GOURHAN, 1965. p.24)

A memória coletiva é, então, além de uma conquista, instrumento e objeto de poder.

Os etruscos poderiam ilustrar essa afirmação. Não os conhecemos no plano literário, a

não ser através dos gregos e dos romanos. Suas tradições históricas talvez tenham

desaparecido com a aristocracia, que, ao deixar de existir enquanto nação autônoma suprimiu

a consciência do passado desse povo, isto é, sua própria consciência.

Conforme diz Le Goff: “Cabe, com efeito, aos profissionais científicos da memória,

antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos, fazer da luta pela democratização da

memória social um dos imperativos prioritários da sua objetividade científica.” (LE GOFF,

2003, p.471) A memória, pois, alimenta e promove o crescimento da história na procura da

salvação do passado para servir ao presente e ao futuro e a memória coletiva precisa ser

trabalhada para a libertação e não para a servidão dos seres humanos.

Lowenthal comenta que: “Toda consciência do passado está fundada na memória.

Através das lembranças recuperamos consciência dos acontecimentos anteriores, distinguimos

ontem de hoje, e confirmamos que já vivemos um passado.” (LOWENTHAL, 1998, p.75)

Imbuída de inúmeras possibilidades, a memória é infinitamente rica em suas

manifestações voluntárias, involuntárias ou induzidas. No entanto, ela deve ser exercitada,

pois, além de incomensurável, é mutante e plena de significados que se confirmam e se

renovam.

Tempo e memória, portanto, constituem-se pontes de ligação, elos de corrente, que na

busca do passado nos fixam no presente e nos permitem sonhar com o futuro.

Para Margarida Neves o conceito de memória é abrangente e polifônico em todas as

suas potencialidades:

O conceito de memória é crucial porque na memória se cruzam passado, presente e futuro; temporalidades e espacialidades; monumentalização e documentação; dimensões materiais e simbólicas; identidade e projetos. É crucial porque na memória se entrecruzam a lembrança e o esquecimento, o pessoal e o coletivo; o indivíduo e a sociedade; o público e o privado; o sagrado e o profano. Crucial porque na memória se entrelaçam registro e invenção; fidelidade e mobilidade; dado e construção; história e ficção; revelação e ocultação. (NEVES, 1998, p.218)

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Acreditamos estar inserido nesse fragmento da obra de Margarida de Souza Neves, um

dos conceitos mais abrangentes sobre a memória. E mais, que essa extensa potencialidade por

ela descrita poderia até ultrapassar o tempo da vida individual.

Assim, concordando com a teoria de Lúcia Castello Branco, na qual a autora afirma

ser a linguagem o veículo de transmissão da memória, poderíamos também pensar na

narrativa como uma linha que anda para a frente, aceitando reviravoltas e interrupções,

desdobramentos que ao se relacionarem entre si, formariam uma espécie de teia para enredar

seu leitor.

Podemos, assim, ver a narrativa, tal qual lugares da memória, preservando e

transmitindo heranças e tradições, como forma de registros orais ou escritos, traduzindo em

palavras os registros da memória no tempo.

A narrativa é por si só, dotada de grande força expressiva, já que é também

instrumento de retenção do passado, constituindo-se num processo compartilhado que

contém: estímulo ao narrar, ato de contar e relembrar e disponibilidade para escutar. A

narrativa é, portanto, a humanidade em movimento, são as memórias falando.

3.3.3 Imaginação

Acreditamos que a memória é o mais importante dos recursos que temos para as

referências ao passado. E também que deveríamos ser fiéis ao passado, sem tratar o

esquecimento somente como patologia, mas também como sombra da região iluminada pela

memória; isso nos serviria de ponte entre o passado e o presente e nos daria oportunidade de

transformar esse passado em memória. Mesmo que esta, às vezes, nos transmita a impressão

de ser inconfiável, deveríamos atribuir essa inconfiabilidade ao fato de ser ela o único recurso

significativo para a recorrência às nossas lembranças.

O mesmo não faríamos com relação à imaginação, pois, para esta, as fronteiras entre

real e fictício, possível e impossível, são por demais tênues.

No sentido de memória como lembrança de alguma coisa distinguiríamos, na

linguagem, a memória como a visada e a lembrança como a coisa visada.

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Na tentativa de caracterizar a memória e as lembranças, poderíamos tomar como

marcas a multiplicidade e os graus variáveis de distinção das lembranças. Primeiramente,

lembremo-nos que a memória, no sentido de totalidade, é um termo usado no singular,

enquanto “lembranças” é usado no plural. Paul Ricoeur salienta a descrição que Santo

Agostinho faz das lembranças que se “precipitam” no limiar da memória. Segundo ele: “...

elas se apresentam isoladamente, ou em cachos, de acordo com relações complexas atinentes

aos temas ou às circunstâncias, ou em seqüências mais ou menos favoráveis à composição de

uma narrativa.” (RICOEUR, 2007, p.41)

Sob esse prisma, lembranças seriam formas discretas que obedeceriam a limites

diferenciados de um fundo memoial.

Em segundo lugar, vale registrar, talvez o traço mais importante, o privilégio

concedido espontaneamente aos acontecimentos lembrados. A coisa lembrada é identificada a

um acontecimento singular, que não se repete, como, por exemplo, um texto memorizado: “O

acontecimento é aquilo que simplesmente ocorre. Ele tem lugar. Passa e se passa. Advém,

sobrevém.” (RICOUER, 2007, p.42)

Poderíamos pensar também, na existência das singularidades e generalidades dos

acontecimentos, que chamaríamos “estado das coisas”, as aparições discretas como

determinado pôr-do-sol numa tarde especial de verão, fisionomias de amigos ou parentes,

encontros significativos, cheiros, músicas, etc.

Enquadraríamos, assim, nesse “estado das coisas” um trecho de Nélida Piñon em A

doce canção de Caetana. Na procura dos objetos e móveis que haviam pertencido a Caetana,

Polidoro e Virgílio se detinham especialmente na busca do colchão que pertencera à atriz há

vinte anos:

Há vinte anos exatamente, no afã de recolher as cartas do tapete, atendendo ao pedido de Polidoro, vira de perto, entre os lençóis desfeitos, o referido colchão. Não lhe ocorrera indagar os motivos de as cartas espalharem-se pelo chão, lançadas pessoalmente da cama. O fato é que, ao pinçar cada uma delas, esbarrara sempre no colchão à mostra, havendo, portanto, registrado exaustivamente, nessas curtas viagens pelo quarto, sua tecelagem, a cor salmão, e algumas emendas feitas a mão no canto esquerdo. (PIÑON 1997, p.78)

Para evocar o passado através da imagem do colchão, Virgílio abstraiu-se do presente

e atribuiu valor ao que poderia parecer inútil, partiu para o campo do imaginar, da

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reconstituição daquele momento ocorrido há vinte anos, num esforço que só ao homem é

concedido na perseguição do ideal da lembrança do vivido.

3.3.4 Esquecimento

O esquecimento depende da problemática existente entre memória e fidelidade ao

passado. É sentido como dano, lacuna e fraqueza, no que diz respeito à confiabilidade da

memória. Entretanto, e paradoxalmente, não poderíamos pensar a memória como fenômeno

que nada esquece.

Referenciemo-nos, pois, no conto de Jorge Luís Borges – “Funes, el memorioso”, do

livro Ficciones, publicado pela primeira vez em 1944, que narra a história de um rapaz que

tinha memória prodigiosa, mas que, sem conseguir articulá-la com sua pouca inteligência, era

tido como curiosidade no vilarejo em que vivia. Funes lembrava-se de incontáveis textos,

apesar de não saber elaborar os conhecimentos neles contidos.

Relata o narrador uma fala de Funes: “Mais lembranças tenho eu do que todos os

homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: meus sonhos são como vossa

vigília. E também, até a aurora. Minha memória, senhor, é como depósito de lixo.”

(BORGES, 1979, p.482)

Tudo que ele enxergava era imediatamente guardado ao mesmo tempo em que era

projetado, formando em sua mente um caleidoscópio de imagens memoriais. O que para

qualquer um de nós poderia passar despercebido e logo esqueceríamos, para Funes era

registrado. Para ele, viver era lembrar e criar novas lembranças, numa memorização sem um

real raciocínio, apenas num total e completo registro de tudo que acontecia, sem distinções ou

afastamentos.

Apesar dessa sua condição de ser incapaz de esquecer parecer ideal, o jovem não

estava apto a produzir nenhuma história, já que, toda história é contemporânea e ele estava

irremediavelmente preso ao passado. Vivia-o sem distâncias, assim, era incapaz de refletir ou

abstrair sobre o mesmo. Tornara-se, pois, incapacitado como ser pensante. É impossível

refletir sem esquecer.

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Ressalta Borges: “Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o

latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é

generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase

imediatos.” (BORGES, 1979, p.484)

Conclui-se, dessa forma, que a capacidade de tudo lembrar ou, em outras palavras, a

incapacidade de esquecer, tornou-se, para Funes, uma doença.

Sob esse prisma, memória e esquecimento não seriam inimigos, mas, ao contrário,

garantia do equilíbrio do indivíduo. Ou melhor, esse conhecimento que esclarece sobre a

complementaridade, entre memória e esquecimento, em determinados casos, pode ser visto

como fator de geração de equilíbrio. Também, já observamos, anteriormente, neste trabalho,

que o esquecimento foi utilizado como escudo de proteção para Rosa Ambrósio e Gregório.

Rosa Ambrósio, a protagonista de As horas nuas, diz: “Lembrar. Esquecer e de

repente voltam os esquecidos com tamanha força, ululando nos sonhos e fora, uma

conspiração.” (TELLES, 1999, p.47) A complementaridade está explícita na fala da

personagem. A autora vale-se tanto do lembrar quanto do esquecer para equilibrar as emoções

da atordoada atriz.

Quando estudamos os malefícios e os benefícios do esquecimento, deparamo-nos com

uma polissemia opressiva da palavra “esquecimento”. Pensemos, pois, para afastar essa idéia

de opressão, que a linguagem transmite na nostalgia do tema uma abordagem reveladora dos

múltiplos efeitos que a palavra “esquecimento” pode causar.

Para tal, Paul Ricoeur propõe uma leitura baseada na ideia do grau de profundidade do

esquecimento. E, para esclarecer a distinção entre uma abordagem cognitiva e uma

abordagem pragmática, considera seu ângulo “objetal” (segundo o uso substantivo do termo

lembrança). Na primeira, a memória é apreendida de acordo com sua ambição ou pretensão de

representar fielmente o passado; na segunda, refere-se ao lado operatório da memória, ao seu

exercício e também aos usos e abusos que a ela imporíamos.

Então, o esquecimento nos incentivaria à releitura desses dois caminhos nos níveis de

profundidade e de manifestação, propondo novos sentidos a essas ideias:

De fato, o esquecimento propõe uma nova significação dada à idéia de profundidade que a fenomenologia da memória tende a identificar com a distância, com o afastamento, segundo uma fórmula horizontal da profundidade; o esquecimento

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propõe, no plano existencial, uma espécie de perspectivação que a metáfora da profundidade vertical tenta exprimir. (RICOEUR, 2007, p.424)

Ao se deter no plano da profundidade, Ricoeur faz a abordagem cognitiva da memória

espontânea. Nesse caso, o esquecimento é o desafio oposto à ambição da confiabilidade da

memória. Ora, confiar numa lembrança depende da confiança da memória, isto é, da presença

ou da ausência de determinado fato inserido no passado, considerando a distância da

lembrança, diferentemente da simples ausência da imagem.

Já o esquecimento, do ponto de vista da profundidade, intervém na problemática da

presença, da ausência e da distância, do lado oposto ao da memória feliz constituída pelo

reconhecimento da lembrança passada.

Existem, pois, duas direções a serem tomadas para um estudo satisfatório dessas

figuras do esquecimento profundo: esquecimento por apagamento dos rastros e esquecimento

de reserva.

No estudo do esquecimento por apagamento de rastros pode-se tomar como ponto de

partida o rastro escrito, o mesmo do plano da operação historiográfica - rastro documental. Na

voz de Rosa Ambrósio, por exemplo, detecta-se o rastro documental a partir do momento em

que a atriz se nega a tomar conhecimento da realidade:

... não leio mais jornais, [...] A miséria paciente. Minha mulher, doutor, mais o meu filho com barraco e tudo. Nem o cachorro salvou, sumiu no meio da água, do barro... [...] Lá do alto do palanque os políticos filhos-da-puta exigem providências, Meus irmãos, meus irmãozinhos! E os irmãozinhos continuam morrendo como moscas, ah! querido Gregório, perdão, mas não suporto tanta miséria, merda! Fui batizada, catequizada, conscientizada e tudo isso para ter a certeza de que não sou Deus e mesmo que fosse. Estou ciente, e daí? (TELLES, 1999, p.10)

São fatos, registros que não fazem parte das preocupações da personagem. Para ela a

realidade é inútil, só faz com que se sinta mais miserável. Assim, decide arquivar os

acontecimentos como meio de se defender da verdade e instalar-se na fantasia.

Já o rastro psíquico deixa em nós marcas expressivas de um acontecimento, de algo

que nos teria chocado. Desse modo, a fala de Rosa, ao relatar o momento no qual descobriu a

traição do marido com a prima Zelinda, adquire dupla importância: tanto para refletir sua

situação em um momento crítico, quanto para demonstrar que o choque daquela revelação

teria que ser esquecido:

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Quero fugir, a Zelinda, não! e ela me segura. Não fuja, prima, precisamos esclarecer alguns pontos, não tape os ouvidos, lembra? Meu presente de casamento foi o sininho de prata, uma mocinha de saia rodada e chapéu antigo, estavam na moda esses sininhos, blim-blim-blim! Você e Gregório no bangalô de tijolinhos vermelhos, esses bangalôs também estavam na moda, blim-blim! O biombo art-nouveau ficava na sua sala de jantar e tinha um espelho no centro imitando um sol. Foi nesse espelho que aparecemos enroscados, Gregório e eu. (TELLES, 1999, p.174)

O desejo de fuga é paralelo ao desejo de esquecimento. O gesto de tapar os ouvidos

tem a função de impedir que se ouça. E, se não queremos ouvir, é porque queremos esquecer,

olvidar, perder a memória do fato que nos incomoda. Zelinda, além de ter traído a prima, era

também testemunha de outros deslizes da vida de Rosa, mesmo morta, ainda a perturbava.

Nada mais natural que a atriz quisesse esquecê-la para sempre: “Adeus, Zelinda, eu digo. Ela

se afasta da minha lembrança num vôo de pássaro que quer apenas se juntar aos outros na

grande copa da árvore da praça. Adeus minha praça que ainda não morreu, mas é como se

tivesse morrido.” (TELLES, 1999, p.175) Diferencia-se, portanto, do rastro cerebral, cortical,

trabalhado pela neurociência.

O rastro documental, segundo Ricoeur, está no mesmo plano do rastro cortical e pode

ser alterado fisicamente, apagado, destruído, (daí a existência de arquivos). Mas este não será

motivo de aprofundamento dos nossos estudos. Neles, tomaremos como objeto do trabalho, a

investigação da justaposição das duas outras espécies de rastros: o psíquico e o cortical.

Justaposição essa que articula a problemática do esquecimento profundo. Trata-se de uma

abordagem difícil, já que os caminhos que nos levam a ela são radicalmente heterogêneos.

Conforme salienta Ricoeur:

Só conhecemos o rastro cerebral, cortical, externamente, pelo conhecimento científico, sem que a este corresponda uma prova sentida, vivida, como no caso dessa parte da sensibilidade orgânica que nos faz dizer que vemos “com” nossos olhos e seguramos “com” nossas mãos. Não dizemos, da mesma maneira, que pensamos “com” nosso cérebro. Aprendemos que esse cérebro-objeto é nosso cérebro, situado nessa caixa craniana que é nossa cabeça, com sua fachada de rosto, nossa cabeça, emblema da hegemonia que pretendemos exercer sobre nossos membros. (RICOEUR, 2007, p.425-426)

Respeitando, então, tal complexidade, caminharemos cuidadosamente, por sabermos

que vários obstáculos terão que ser ultrapassados nesse caminho. E dentro dessa

complexidade verificamos como Caetana se apropria da capacidade de sua sensibilidade

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orgânica em A doce canção de Caetana, para abordar Polidoro e exigir dele que se cumpra

uma promessa feita há vinte anos. A atriz não permite que o tempo apague os rastros das

promessas feitas. E se, paradoxalmente, não se deixa levar pelos caminhos dos rastros

psíquicos, não dissimulando seu desejo de ser Maria Callas, ao mesmo tempo, fala do passado

com base em experiências precisas como a carta do baralho que selava o compromisso de uma

promessa:

- A dama de espadas! Disse ele, afinal, examinando a carta de perto. [...] - O que significa esta carta? - Se não se lembra, é porque não quer pagar a dívida, disse ela, contundente e surpresa. Sempre o tivera na conta de homem de bem, capaz de pagar as dívidas contraídas na mesa de jogo, mesmo sem testemunha de seu desvario. (PIÑON, 1997, p.187-188)

A narrativa conduz o leitor às lembranças do passado, que embora tornadas

inacessíveis ou indisponíveis, não foram definitivamente apagadas. Logo, pode-se concluir

que esquecemos menos do que acreditamos ou que tememos.

Dessa forma, o estudo dos apagamentos dos rastros pode ser visto, em primeira

instância, através do rastro mnésico8; primeira forma do esquecimento profundo. A

dificuldade seria a procura dos significados desses rastros. Segundo Ricoeur: uma externa e

outra íntima.

A primeira, articulada em três momentos:

a) rastros mnésicos e não mnésicos;

b) o que são rastros mnésicos?

c) que lugar a questão do esquecimento ocupa no campo das disfunções da memória?

O esquecimento seria uma disfunção?

O primeiro momento traria as ideias de causa sine qua non, substrato e correlação

entre organização e função, abordando o discurso neuronal e o discurso psíquico. Deve-se,

nesse momento, deixar clara a ausência de elementos ligados à extrapolação espiritualista, ao

reducionismo materialista, ou à questão da união da alma e do corpo, uma vez que os mesmos

não se constituem como parte desse primeiro momento.

8 Mnésico - termo científico adotado no vocabulário das neurociências, relativo a ou próprio da

memória.

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O segundo nos daria uma noção diferente de rastro psíquico não relacionado ao

condicionamento neuronal baseado no reconhecimento, naquilo que é chamado de pequeno

milagre. Neste, (no segundo) vemos como elementos constitutivos o aspecto descritivo do

nascimento da lembrança, da revivescência das imagens, do postergar a existência do

inconsciente e do preservar do consciente como figura positiva do esquecimento. Trata-se do

que Ricoeur chama de “esquecimento de reserva”, tesouro a que se recorre para lembrar-se do

que se viu, ouviu, experimentou, aprendeu e adquiriu. Dessa forma, construindo um projeto

de “conhecimento adquirido para sempre”:

Certamente, persiste o problema de atribuir, conjuntamente, o estatuto neuronal dos rastros mnésicos e o estatuto do que se diz em termos de persistência, remanência, revivescência, duração. Talvez fosse preciso se ater, pelo menos na espécie de discurso que assumo, à profissão da polissemia da noção de rastro, uma vez que a idéia de rastro psíquico reivindica um direito igual à de rastro neuronal. (RICOEUR, 2007, p.427)

Assim, as duas leituras dos fenômenos mnemônicos competiriam entre si. Uma,

trazendo a ideia do esquecimento definitivo – apagamento de rastros; a outra, a do

esquecimento reversível – esquecimento de reserva. Nossos sentimentos ambivalentes em

relação ao esquecimento encontrariam duas abordagens heterogêneas do esquecimento

profundo: a da apropriação do saber objetivo, (interiorização) e a da retrospecção do

reconhecimento (exteriorização).

O esquecimento amedronta a todos nós, ninguém, em sã consciência, deseja esquecer-

se de tudo, mas, às vezes, a captura de algum fragmento do passado, considerado

completamente perdido, nos traz uma felicidade inexplicável.

O terceiro momento traria as ideias do esquecimento manifesto e do esquecimento

exercido, abordando o esquecimento por apagamento de rastros. (Este, talvez, um

questionamento de alto grau de problematicidade).

Não seria o caso, em nosso estudo, de abordar os rastros mnésicos ou o apagamento

dos rastros, sob o prisma das ciências neuronais. Neste, evocaríamos o esquecimento quase

como disfunção, entre o normal e o patológico.

As questões filosóficas são de outra ordem: “Uma vez situada a idéia do rastro

cortical, a questão é saber como se reconhece que um rastro é um rastro mnésico, a não ser, no

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plano da função e da expressão física, pela relação com o tempo e com o passado”.

(RICOEUR, 2007, p.428)

O filósofo poderia se valer da fórmula de Platão em Fédon. Quando interrogado por

que motivo não fugia da prisão, Sócrates respondeu que permaneceria sentado à espera da

morte, que lhe era infligida pela sociedade com duas respostas: permaneceria sentado porque

os membros de seu corpo o retinham, condição sine qua non; mas, também, pela obediência

às leis da cidade, coisa que realmente o detinha ali. Pensando com o cérebro.

Em outras palavras: “... o cérebro é essa organização que faz com que eu pense ou, em

resumo, me faz pensar.” (RICOEUR, 2007, p.431)

Nos romances As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles e A doce canção de Caetana,

de Nélida Piñon, a organização cerebral conduz os enredos das tramas a partir do momento

em que estabelecem paralelos realísticos entre a velhice, a decadência, a verdade e a mentira,

distanciando-os da ilusão e dos sonhos.

Registra-se aqui um repertório de falas que confirma essa afirmativa. Tanto em Lygia:

- Ora, Diogo, você ainda acredita em pesquisa? Desde que o primeiro homem começou a envelhecer esses pesquisadores pesquisam a cura da velhice, a pior das doenças. Até o Diabo foi invocado mil vezes. Descobriram? Hem?!... (TELLES, 1999, p.28) Mentira, querido, tudo mentira e você sabe, os mortos sabem tudo, se antes da despedida você já sabia que eu estava mentindo, imagina então agora. (TELLES, 1999, p.43) Os calores da menopausa, sofro tanto! Devia andar pelos cinquenta anos, lá sei, mente a idade agora e antes, ninguém mais sabe. (TELLES, 1999, p.58) Minha pele amoleceu mas a sua é tão rija. Murchei, hem?! Rosa Despetalada, sua criada, direi a Deus quando for me apresentar. (TELLES, 1999, p.117) Rosa Ambrósio viera mancando com suas belas sandálias e na despedida afastou-se pisando naturalmente, esqueceu o tornozelo afetado? Esqueceu. O que era grave para uma atriz que fingia uma torcedura. (TELLES, 1999, p.241)

Como em Nélida:

- Estamos todas envelhecendo, Polidoro. Já não nos chamam, como antes, as meninas da Estação. Somos as únicas que sobram do antigo bando. E não temos substitutas nesse ofício. As novinhas agora tomam a garupa de uma moto e somem daqui. Só nós ficamos. (PIÑON, 1997, p.61) - Eles não sabem o que é para um ator a passagem dos anos! É uma verdadeira tortura pisar no palco depois que se começou a tingir os cabelos de preto. (PIÑON, 1997, p.118) Só então deu-se conta de que as Três Graças envelheciam a cada manhã tendo ela como única observadora. (PIÑON, 1997, p.155)

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Envelhecera. As bolsas sob os olhos davam-lhe a fisionomia de um Buda transportado para a América com o intuito de divulgar novos métodos de vida. (PIÑON, 1997, p.181) Tudo é uma farsa. (PIÑON, 1997, p.304)

Voltemos à questão formulada anteriormente: o esquecimento é uma disfunção? Uma

distorção?

Visto sob certos ângulos, sim. Se vivido como esquecimento definitivo, como

apagamento de rastros, é uma ameaça, daí, a necessidade de se fazer trabalhar a memória para

evitar esse tipo de transtorno, retardando-o ou imobilizando-o. Ou ainda, se visto como forma

de envelhecimento ou de morte tornar-se-ia deplorável, já que, tratar-se-ia do inelutável, do

irremediável.

Mas o esquecimento está associado à memória. Não é possível classificá-lo

simplesmente por apagamento de rastros, como disfunção ao lado da amnésia, nem como

distorções da memória, afetando sua confiabilidade. Paradoxalmente: “... o esquecimento

pode estar tão estreitamente confundido com a memória, que pode ser considerado como uma

de suas condições.” (RICOEUR, 2007, p.435) Essa superposição de esquecimento e memória

poderia explicar o silêncio da neurociência, no que tange à experiência do esquecimento

comum, aquele que segue o destino da memória feliz, do mesmo lado silencioso que a

memória comum. E, portanto, do lado oposto do esquecimento amnésico, o da infelicidade,

do esquecimento definitivo.

Há ainda o aspecto das situações limites, nas quais o esquecimento se juntaria ao

envelhecimento e à mortalidade.

Nessa esteira, tanto Lygia Fagundes Telles quanto Nélida Piñon, em suas respectivas

obras, As horas nuas e A doce canção de Caetana, transitam com frequência:

Se enlouquecesse podia ser uma solução, não preciso morrer, apenas enlouqueço, não conheço mais ninguém, não me conheço, esqueci. Uma louca limpa, sem o ranho escorrendo, sem a baba. Como sou rica posso escolher a cidade que quiser, exijo uma cobertura onde possa ficar horas e horas olhando o horizonte. Olhando o mar, acho que o Rio é a cidade ideal para os loucos contemplativos, sou uma louca contemplativa. Minha acompanhante me veste, me penteia e me senta na cadeira de rodas. Hora do calçadão, não o que fica junto da praia onde os lúcidos fazem cooper e piruetas, mas nesse outro calçadão dos esclerosados, dos apáticos. Ali não chamo atenção de ninguém porque já tem velho à beça de chapeuzinho branco desabado, montes de velhinhas apoiadas na acompanhante que conversa com o acompanhante do velhinho de olhar perdido no mar. Sem lembrar que um dia entrou nesse mar,

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graças a Deus ele não lembra mais nada. De noite ela veste em mim um casaquinho e liga depressa a televisão, não entendo, não tem importância. (TELLES, 1999, p.43)

Ou:

Já no final da vida, o fraque sebento e desfiado a que faltavam alguns botões dourados, Vespasiano aprumava-se como um senhor de engenho ou dono de extensos cafezais. Começara a confundir as falas de um repertório dissolvido ao sabor dos anos. E embora Danilo o emendasse, não registrava os erros. Caetana, por sua vez, repreendia Danilo. Que jamais voltasse a pôr reparos num artista de tamanha magnitude, que merecia agora repouso e respeito. Quem levava na memória uma existência tão espessa como um mingau, conquistara de vez o direito de esquecer a vida e o mais que vinha em sua esteira. (PIÑON, 1997, p.264)

Nesses casos, não são apenas os órgãos dos sentidos que permanecem silenciosos.

Mas, também, os discursos científicos e filosóficos.

Contudo, a noção de rastro não é apenas direcionada ao documentário ou ao cortical,

já que ambos se caracterizam por marcas exteriores, mesmo com sentidos diferentes: o social

no sentido de ser arquivado e o biológico de ser registrado pelo cérebro.

Há ainda, outra inscrição, a que consiste na duração das primeiras impressões

enquanto passividade: um acontecimento marcante, que nos afetou, deixando sua marca

efetiva em nosso espírito. Talvez, seja esse último, o mais significativo.

Pode-se registrar, de um lado, que a pressuposição das afecções9 é sobreviver, durar,

persistir; do outro, essa significação seria mascarada por causa dos obstáculos à recordação:

existencial do lado de cá, objetiva do lado de lá.

A sobrevivência das imagens poderia ser considerada como um rastro profundo. A

memória, nessa hipótese, poderia ser vista como o órgão do tempo e do passado ou como a

faculdade do eterno e do presente. Aquela que conserva o passado no presente, confundindo-o

conosco.

E, quanto ao esquecimento? Poderíamos ver nele o outro lado da memória? O que

permite apagar, esvaziar, obscurecer o tempo?

9 A palavra afecção é importante nesse contexto, devido a suas conotações. Em termos médicos, o

termo refere-se a qualquer alteração patológica do corpo. No sentido psicológico, aponta para um

estado de morbidez e/ou anormalidade psíquica. Etimologicamente, fala de uma relação entre várias

coisas, modos de ser, afeições, vontade.

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Talvez pudéssemos encontrar uma situação de equilíbrio antes de nos colocarmos

radicalmente de um lado ou do outro. O melhor, talvez, seria procurarmos no esquecimento

não somente uma atividade negativa, uma espécie de apagador da memória, que desfaz as

marcas do tempo, mas também, uma atividade positiva que instala o eterno, que se esforça

para permanecer no inaugural dos seres, guardá-los na memória no intuito de evitar aquilo que

pode conter o selo de uma ação corrosiva. Assim, o novo, o imprevisto, o efêmero, poderia ser

esquecido.

No rastro de Alquiê10 Ivan Domingues aponta:

... a faculdade do eterno por excelência, com seu poder notável de se desprender da cadeia temporal e de se furtar à ação do tempo, sendo-lhe indiferente marchar de frente para traz ou de traz para frente, desafiando toda cronologia, pondo-se no passado, instalando-se no futuro, refugiando-se no presente. (DOMINGUES, 1996, p.21)

A faculdade do eterno pode ser vista como elemento de ligação nas obras de Lygia

Fagundes Telles e Nélida Piñon. Nos romances aqui estudados, as escritoras não se furtaram

ao uso dos registros que confirmam as opiniões das personagens: Rosa Ambrósio, Caetana,

Polidoro, Danilo, Joaquim, (para citar apenas algumas delas), no que tange à fuga do

envelhecimento, da tentativa de fugir da ação do tempo, na ânsia da preservação da juventude,

tão cara ao artista: “A única coisa que gasta a vida é o tempo, a maldita passagem dos dias”

(PIÑON, 1997, p.281), soava a voz melancólica de Danilo. Ou, nas palavras de Rosa: “A

Roda do Tempo rodando ao contrário,...” (TELLES, 1999, p.117)

Fragmentos como esses assinalam para o papel da linguagem, extensão da consciência

e da memória, como arma poderosa na instalação da continuidade e da vida, sem a qual a

humanidade ficaria desprotegida e se desintegraria no tempo. Assinalam também, para a

importância das instituições responsáveis pela formação de tradições das quais os gregos

valeram-se desde os primórdios para organizarem suas experiências de temporalidade em

aspectos qualitativos e quantitativos.

Animado pelo avanço da ciência e da tecnologia, cada vez mais senhor de si e

quebrando as correntes que o ligam ao passado, o homem moderno acredita que se não puder

10 Alquiê apud Domingues, 1996:21. (Ferdinand Alquîé, filósofo autor de O desejo da eternidade).

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barrar o tempo, ao menos poderá controlá-lo, como o fez com a natureza e com o próprio

espaço, eternizando as ações, as obras e seus próprios feitos. As personagens de Telles e

Piñon em As horas nuas e A doce canção de Caetana lutam para quebrar essas correntes que

as ligam ao passado, acreditando que, ao usar artifícios, serão capazes de barrar o tempo.

Caetana, no reencontro com Polidoro, deixa a luz apagada para que o antigo amante não

perceba o estrago causado pelo tempo em seu corpo; Rosa Ambrósio, ao tingir de preto os

pelos pubianos, acredita estar disfarçando o adiantado dos anos.

Do ponto de vista da evasão do tempo, poderíamos considerá-lo diante de nós, ante

nós, no presente, dobrando-se sobre si mesmo, alongando-se e abrindo-se de repente, e não

um tempo antes de nós, no passado ou depois de nós, no futuro. Eis o sentido de efêmero e de

eterno na modernidade.

Reflitamos sobre algumas marcas das atitudes dos homens a respeito da

temporalidade, nas diferentes épocas de sua existência:

1º) – O tempo não pode ser considerado algo estático, chapado, onde tudo acontece e

dura indiferente a ele, e sim, algo dotado de profundidade, uma espécie de potência que

envolve as coisas e as marca com o selo do seu ser.

O tempo não para. Caetana guiada pela urgência de viver seu dia de grande diva, tem

pressa em montar o espetáculo da Traviata no pequeno cinema de Trindade. Ela tem

consciência plena de que, quanto mais tempo durar a preparação da ópera, maiores serão as

chances de Dodô destruir todos os seus sonhos.

2º) – A capacidade que o tempo possui de afetar as coisas, ou torna-o uma potência ou

exige que ele seja habitado por potências que, com seus poderes e caprichos o permitam

intervir no mundo e mudar seu curso, isto é, interferir no destino, na providência, ou na força

natural da história.

Rosa Ambrósio sempre teve noção da capacidade que o tempo exerceu para afetar sua

vida. Diogo, pelo fato de ter alguns anos menos do que ela, a traía e tripudiava sobre essa

diferença de idade. Diferença tal que se transformara em potente arma e que interviria no

curso de sua história de amor. Que fazer então? Mudar o curso das coisas? Do destino? Da

força natural da história? Impossível. Daí, a atriz valer-se do subterfúgio da mentira:

“Diminuo sempre a minha idade e a dos outros, essa mania de idade, hem?! Tirante o médico,

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alguém ousou algum dia perguntar à mamãe, Quantos anos, minha senhora? A gente agora dá

um espirro e já vem a caneta, o microfone, o gravador, Sua idade?” (TELLES, 1997, p.93)

3º) – Se o tempo é uma potência ou um instrumento de potências, ele não teria

somente a capacidade de regular o mundo, mas também, de criar um mundo novo e instalá-lo

num novo plano do real como se fosse uma espécie de potência cujo poder, se ameaçado: “...

espalharia por toda a parte as guerras, a morte e o sofrimento, ou seja, a história.”

(DOMINGUES, 1996, p.46)

Valendo-nos, pois, da premissa do tempo como potência, podemos perceber que as

narrativas de Lygia Fagundes Telles e de Nélida Piñon levam seus leitores ao mundo novo e

criam a ilusão de instalar suas personagens num plano ideal. Tanto em As horas nuas como

em A doce canção de Caetana, a ilusão proporcionará a expectativa da realização dos sonhos

de cada personagem: Rosa Ambrósio, de voltar aos palcos numa posição de destaque, tendo

todos a seus pés; Caetana, de ser Maria Callas, nem que seja por um dia; Polidoro, de ter a

atriz em seus braços, mesmo que seja só para sentir seu perfume; as três Graças, os sonhos de

abandonarem a vida de prostitutas e se tornarem artistas, etc. Dessa forma, as narrativas

abririam portas para que a imaginação dos leitores acreditasse na soberania das palavras de

Domingues quando afirma que a história é governada pelo:

... (tempo do destino cego, senhor absoluto da vida e da morte; o tempo da roda da fortuna que, com seus caprichos, leva os homens à boa e à má sorte; o tempo escatológico da providência – tempo da danação depois da queda, tempo da esperança depois da encarnação de Cristo, tempo do resgate e da reconciliação com Deus no juízo final; o tempo do destino secularizado ou histórico, na modernidade). (DOMINGUES, 1996, p.46)

À luz dessas palavras examinemos a articulação do tempo e da história ao longo dos

séculos. Primeiro, o homem trata de dominar o tempo, criando o relógio e inventando

instrumentos de precisão para todos os fins e por todos os meios. Depois, tenta dominar a

história, com a ajuda da ciência e da técnica. Para o homem moderno, o que vem depois na

ordem do tempo, é mais forte do o que vem antes, ao contrário do que imaginavam os antigos.

Esses suportaram as desgraças e os sofrimentos infligidos pela história porque tudo isso tinha

um sentido meta-histórico (sinais da ira dos deuses, do declínio da idade, da vontade da

providência, etc). O homem moderno, destituído de planos meta-históricos a que se reportar,

não teria capacidade para suportar os males da história, que a cada dia que passa se distanciam

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mais e mais da sua capacidade de ação. Isso por causa do aumento da pressão dos

acontecimentos, do desamparo ante os massacres, os campos de concentração, etc.

Embora a superioridade do homem à da história seja uma ideia que soa irresistível,

não é bem assim que se dão os fatos. As potências da história, que o homem pensara poder

controlar, mostraram-lhe que suas forças (as da história) superam as do homem, e ela própria

tornou-se adorada como um novo deus da humanidade. Suas personagens foram divinizadas,

mesmo que para caírem em desgraça logo depois, (Stalin, Hitler, Mussolini, Mao-Tsé-Tung,

etc).

Sendo o tempo uma potência e a história um prolongamento dessa potência no mundo

dos homens, pode-se compreender a necessidade de tentar evadir-se dele, de fugir de sua ação

nefasta, como a decadência do corpo ou a morte dos sonhos, observadas nas personagens de

Telles e Piñon. Essa tentativa de evasão sempre existiu e existirá inclusive no plano da

história, onde estamos sujeitos à decadência das instituições, dos costumes, da guerra, da

fome, da miséria, etc. Daí, o desejo da eternidade e do efêmero se unirem também nesse

plano.

Entretanto, neste trabalho, cabe-nos ressaltar a necessidade dessa evasão nas obras

literárias aqui abordadas; em As horas nuas:

Rosa Ambrósio estava lá. Vestia uma longa bata branca e tinha a cabeça coberta por um pano listrado que caía reto até os ombros num arranjo egípcio. Egípcio, ele frisou e achou graça, lá estava a atriz com a imponência de uma figura de proa, o vento batendo em suas vestes. Assim que ela se adiantou mancando até o topo da escada ele foi ao seu encontro para oferecer-lhe o braço. Seria a exata imagem de uma rainha se uma rainha lhe aparecesse um dia, foi o sentimento que lhe ocorreu ao se aproximar e vê-la melhor debaixo do sol. Beijo-lhe as mãos e digo, Madame, que prazer e que honra! Mas quando ela tirou os óculos escuros, olhou-o nos olhos. Viu neles a artista que sabe quando o outro está representando. Inclinou-se discreto. - Muito prazer. (TELLES, 1997, 237-238)

E, também, em A doce canção de Caetana:

Sob a batuta de Balinho, atrás do palco, as vozes do coro, saídas da vitrola, cobriram os risos e a algazarra incipiente. Obediente ao andamento orquestral, Caetana fingia cantar cercada pelo elenco. Gioconda, no papel de Flora, desvelava-se junto à amiga, envolvendo-a com carinhos exagerados. Também ela queria atrair todos os olhares. Em breve chegariam à cena do brinde proposto pelo amante de Violeta. Ernesto, no papel de Alfredo, teria o gosto em exaltar publicamente o amor com que sonhara nas longas tardes consumidas na farmácia Bom Espírito. Polidoro suspirou de alívio. Além de vencer Dodô no território apropriado, atara-lhe as mãos para sempre. Agora

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poderia celebrar uma dupla vitória, a de Caetana e a do Brasil. Para ele, a vida estava em ordem. (PIÑON, 1997, p.376-377)

A literatura, como é possível perceber nas citações apresentadas, pode extrapolar em

muito os limites da razão e da lógica. Vivemos cercados de poderes materiais e imateriais. Os

materiais transitam nos campos dos valores e das forças sócio-políticas, não são difíceis de ser

avaliados por pesos e medidas. Os imateriais, não são avaliáveis a peso, mas também, não se

limitam apenas aos valores espirituais. Podemos considerar poder imaterial o das raízes

quadradas, cuja lei severa sobrevive aos séculos e aos decretos; ou ainda, os poderes que

tiveram na história, Stalin, Hitler, Mussolini e os papas. Entre esses poderes podemos arrolar

também aquele da tradição literária, da extensa gama de textos que a humanidade produziu e

produz, não só para fins práticos (registros, leis, fórmulas científicas, etc), mas também,

lembrando Umberto Eco: “gratia sui, por amor de si mesma – e que se lêem por deleite,

elevação espiritual, ampliação dos próprios conhecimentos, talvez por puro passatempo, sem

que ninguém nos obrigue a fazê-lo.” (ECO, 2003, p.9)

A leitura de um texto literário nos convida, pois, à liberdade de interpretação e ao

prazer de nos deixar arrastar aqui e ali, muitas vezes, ao sabor das ilusões e seduções como

num caleidoscópio de emoções. Muitas outras, como um manancial de possibilidades de

novos conhecimentos e de novas perspectivas sobre o eu e o outro.

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4 O ESPETÁCULO DA ILUSÃO

“Nada sou, nada posso, nada sigo Trago, por ilusão, meu ser comigo

Não compreendo, compreender nem sei Se hei de ser, sendo nada, o que serei?”

Fernando Pessoa

Em A doce canção de Caetana, de Nélida Piñon e As horas nuas, de Lygia Fagundes

Telles, a palavra ilusão aparece como elemento matriz, a criação dos enredos gira em torno do

seu espectro; sua esfera semântica impregna todo o texto, ao mesmo tempo em que se associa

ao declínio, à decadência e ao desfalecimento dos sonhos.

Este capítulo objetiva o registro da convivência da arte literária com a esperança e a

ilusão, no caso, a ilusão de uma realidade que se imagina e se interpreta.

Desde Platão e Aristóteles, as histórias são narradas para marcar épocas. Tanto do

ponto de vista da narração de fatos presenciados ou vividos por alguém que tinha autoridade

para narrar, como por aqueles que se ocultaram atrás dos outros ou dos fatos narrados, isto é,

atrás de uma voz que fala, vela e desvela, funde narrador e personagem, apresentando-os ao

leitor.

Dessa fusão nasce o narrador que viu, que viveu, que testemunhou, e também o que

imaginou, que sonhou, que desejou, o homem criado pela ficção, o homo fictus.

Para E.M. Foster, o homem criado pela ficção:

Geralmente nasce, é capaz de morrer, requer pouco alimento ou sono, está incansavelmente ocupado com relações humanas, e – o mais importante – podemos saber mais sobre ele do que sobre qualquer dos nossos semelhantes, porque seu criador e seu narrador é um só. Estivéssemos preparados para uma hipérbole, a esta

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altura, poderíamos exclamar: Se Deus pudesse contar a estória do Universo, o Universo se tornaria fictício. (FORSTER, 1974, p.43)

Essa afirmação do escritor pode parecer abstrata, mas temos que reconhecer que ele

não está apenas preocupado com o problema técnico do narrador, mas também, em situá-lo e

relacioná-lo com questões mais gerais da ficção. Examinando a lógica do narrar, seremos,

certamente, levados a refletir sobre a narração, em suas múltiplas possibilidades. Reflexão

essa que nos levaria a percepções múltiplas sobre questões relacionadas a, por exemplo,

modos de narrar, representações da realidade, efeitos exercidos sobre ouvintes e/ou leitores.

Em A república, Platão diz que o ideal, num discurso, seria alternar imitação e

narração; prossegue, observando que, para o homem de cultura mais elevada seria preferível

narrar a imitar:

(...) há uma maneira de falar e contar que acompanha o verdadeiro homem honesto, quando tem alguma coisa a dizer; e há uma outra, diferente, à qual se prende e se conforma sempre o homem de natureza e educação contrárias (...). O homem ponderado, segundo me parece, quando tiver de referir, numa narração, uma frase ou uma ação de um homem bom, procurará exprimir-se como se fosse esse homem e não se envergonhará de tal imitação, sobretudo se imitar qualquer aspecto de firmeza e de sabedoria. Imitará menos vezes e menos bem o seu modelo quando este tiver falhado, sob o efeito da doença, do amor, da embriaguez ou de qualquer outro acidente. E, quando tiver de falar de um homem indigno dele, não se permitirá imitá-lo a sério, a não ser de passagem, quando esse homem tiver feito qualquer coisa de bem (...) (PLATÃO, 1975, p.90-91)

Sob esse prisma, podemos inferir que a distinção entre narrar e imitar, em Platão, vem

carregada de valores e alicerçada na ideia de imitação como cópia infiel do Real e da

Verdade.

Para Aristóteles, embora também faça uma distinção entre imitação direta das ações e

a sua narração:

(...) é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações, numa simples narrativa, ou pela introdução de um terceiro, como faz Homero, ou insinuando-se a própria pessoa sem que intervenha outra personagem, ou ainda apresentando a imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem elas próprias... (ARISTÓTELES, 1964, p.264)

Em sua Poética, o filósofo afirma que imitar é forma de conhecer que diferencia o

homem dos outros seres vivos e lhe proporciona prazer. No caso da épica, por exemplo, ele

preferia a imitação direta à narração das ações: “O poeta deve falar o menos possível por

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conta própria, pois não é procedendo assim que ele é imitador” (ARISTÓTELES, 1964,

p.314)

E tanto Platão como Aristóteles foram incansavelmente imitados, retomados

interpretados e diluídos. Entretanto, convém salientar que hoje os lemos pelo filtro de uma

obra que os retomou e sistematizou: a Estética de Hegel.

“Procurando distinguir gêneros – épico, lírico e dramático –, Hegel caracteriza o

primeiro como eminentemente objetivo, o segundo como subjetivo e o terceiro, como uma

espécie de síntese dos outros dois, objetivo-subjetivo.” (LEITE, 1985, p.9) Assim, a poesia

épica seria uma realidade exterior ao poeta, a lírica, “a alma agigantada pelos sentimentos”, na

qual é o sujeito que se expressa pela palavra proferida e o dramático – o objetivo/subjetivo –

se constituiria do desenrolar objetivo dos acontecimentos e da expressão da interioridade.

Estudando a epopéia, Hegel percorre uma trajetória desde seus modos mais primitivos

até sua transformação em Romance, que, para ele é a “epopéia burguesa moderna”.

Inicialmente, o tema do romance seria o conflito entre “a poesia do coração” e a

“prosa das circunstâncias”. Mais tarde, o romance se beneficiaria de liberdade maior de

narrar. A narrativa altera a distância entre narrador e público, aproxima-se mais das

personagens e dos fatos narrados e, diferentemente do que se dava no passado, torna-se muito

mais íntima.

Citando Blanchot:

Quando a narrativa se torna romance, longe de parecer mais pobre, torna-se a riqueza e a amplitude de uma exploração, que ora abarca a imensidão navegante, ora se limita a um quadradinho de espaço no tombadilho, ora desce às profundezas do navio onde nunca se soube o que é a esperança do mar. A palavra de ordem que se impõe aos navegantes é esta: que seja excluída toda alusão a um objetivo e a um destino. (BLANCHOT, 2005, p.6-7)

Que neste trabalho, pois, também se consiga investigar as múltiplas faces da

objetividade/subjetividade, as diferentes mudanças de direção e a transformação das

inquietações em momentos felizes e vice-versa, num jogo contínuo de percepções e

linguagens, no qual, frequentemente se usa a ilusão como carta essencial do baralho da vida.

Nesse sentido, pode-se dizer que Polidoro agarrava-se a essa “palavra de ordem”

quando esperava ansiosamente por Caetana na estação de Trindade. Ao ser questionado se

ouvia o barulho do trem, responde:

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- Não estou ouvindo, mas meu coração sim. Este coração vê Caetana no último vagão, a cabeça fora da janela, ansiosa por identificar cada árvore, cada telhado de Trindade. E a mim também, que estarei atrás de todo este povo na plataforma, a agitar bandeirinhas, a acenar com as mãos. Não é verdade que quase não mudei nesses vinte anos? [...] Tudo nele dispensava a verdade. De fato, cobrava de Ernesto a piedosa mentira. (PIÑON, 1997, p.97)

Também a Rosa Ambrósio, de Lygia Fagundes Telles, ao desabafar com a fiel

empregada, apela para outro mundo, aquele para além da realidade presente: “Queria tanto

enlouquecer, Diú, não morrer, mas enlouquecer, vou me desintegrando sem pressa, um pé no

mar, outro no telhado. A cara na nuvem e o rabo só Deus sabe onde vai parar.” (TELLES,

1999, p.52)

Enlouquecer para ter a ilusão de que não precisaria mais sofrer com tantos problemas

que a afligiam. Refugiar na loucura para, de certa forma, ser feliz. A personagem prefere

descer às profundezas do mar e se excluir da vida real, evitando enfrentar o triste destino de

sua vida solitária.

A relação entre a mentira, a ilusão e a realidade é tênue e muito delicada, portanto,

potencialmente perigosa, mas muitas vezes, necessária no movimento da narrativa.

Paradoxalmente, esse movimento torna-se o espaço onde se dá o real, o poderoso e o atraente.

As narrativas que focamos neste trabalho, tanto a de Lygia Fagundes Telles, quanto a

de Nélida Piñon, ao revelarem o convívio da arte literária com a esperança e a ilusão, vão

mostrar que a arte é, também, a ilusão de uma realidade que se imagina e se interpreta.

Na obra literária, quando consideramos narrador e/ou leitor como seres ficcionais,

estamos aceitando a hipótese da narrativa como veículo da ilusão de estarmos diante da

pessoa à qual nos dirigimos. Embora isso não nos desobrigasse do respeito à liberdade de

interpretação.

Acredita-se, atualmente, que numa obra literária podemos fazer inferências da forma

que desejarmos, segundo nossos impulsos. Não é verdade. Há que se respeitar a intenção do

texto. Mesmo sabendo que esse convida à liberdade de interpretação, pela proposição de

muitos planos de leitura. Cada um de nós lê de modo diferente.

Assim, partindo do princípio de que o texto pode nos autorizar diversas interpretações,

acreditamos que o imaginário poderia ser-nos oferecido como verdade e ser por nós aceito, se

assim o desejarmos.

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Afirma Umberto Eco: “O mundo da literatura é um universo no qual é possível fazer

testes para estabelecer se um leitor tem o sentido da realidade ou é presa de suas próprias

alucinações.” (ECO, 2003, p.15) Nesse mundo podemos afirmar como verdades o que se

passa com os personagens literários, porque o que lhes acontece está registrado no texto. É

verdade que Caetana será Maria Callas no pequeno cinema de Trindade, assim como é

verdade que Rosa Ambrósio voltará a brilhar nos palcos. Talvez esse seja o campo das

“próprias alucinações”, o lugar onde se misturariam as ilusões, para onde migram as

personagens.

Entretanto, não se pode deixar de considerar o jogo entre o discurso e a pluralidade das

vozes que o constituem, revelando a dubiedade entre o plano da enunciação e o do enunciado.

Em sua tese de doutorado, Suely Silva Lobo diz:

Dubiedade essa que encoraja o leitor a valorizar o detalhe, o não-dito e os ajustes constantes de perspectiva que acabam por ocorrer. E, que, principalmente, o fazem acreditar no narrador, desacreditando dele, pois que à sua voz e às das personagens perceberá que se junta a da autora, numa polifonia em que se tecem organizações simultâneas de superfícies. (LOBO, 1996, p.90)

Considerando então essa polifonia de vozes, observemos a voz autoral em A doce

canção de Caetana: “... a ilusão é o melhor dos remédios. É uma tentação que tem preço e

estou pronto a pagar. Comunico-lhe, pois, que quanto mais enganos e mentiras eu construa

diante da praça de Trindade, será melhor para todos nós, incluindo o senhor.” (PIÑON, 1997,

p.32)

Ora, se em alguns momentos das narrativas acabamos tendo que optar por uma direção

mais apropriada ao entendimento do texto, em outros, o narrador nos deixa livres para

imaginarmos uma continuidade para sua história.

Seria a ilusão, no caso das obras estudadas, a melhor opção a nós oferecida para

darmos continuidade às histórias apresentadas? Ou existiriam ali interstícios que permitiriam

aos leitores darem asas à sua própria imaginação?

Nélida Piñon, em entrevista transcrita no final deste trabalho, afirma:

... a arte rouba da ilusão. Sem a ilusão você não consegue captar, atrair quem seja, porque a realidade não é o capítulo primeiro da arte. A arte transgride a realidade. [...] Não é só o peso da linguagem, uma visão poética, porque acha uma poética do texto, é porque a ilusão faz com que o leitor passe a acreditar. [...] eu escolho personagens peregrinos e artistas, não é? Gente de circo, que são transportadores de

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ilusões, gente da ilusão. A arte é ilusão. Cênica, tudo é ilusão. (MARRECO, 2010, p.222)

Piñon parece desejar para sua obra um leitor empírico, contrariando a opinião de

Umberto Eco sobre o leitor-modelo, desqualificando, de certa forma, o leitor empírico:

O leitor-modelo de uma história não é o leitor empírico. Os leitores empíricos podem ler de várias formas, e não existe lei que determine como devem ler, porque em geral utilizam o texto como um receptáculo de suas próprias paixões, as quais podem ser exteriores ao texto ou provocadas pelo próprio texto! (ECO, 1994, p.14)

Para o empirismo o conceito de realidade aponta o real como algo denso, que pode ser

tocado. O que fugir dessa característica receberá outras classificações, como a de virtual, por

exemplo.

O real e o ilusório sempre foram focos tanto do interesse dos filósofos e cientistas,

como das pessoas comuns, que os veem como verdade e mentira. Vera Felicidade de Almeida

Campos observa que a verdade e a mentira interessaram também a Nietzsche, que escreveu:

“... as verdades são ilusões, sobre as quais se esqueceu tratar-se de metáforas que se tornaram

usadas e sem força sensível, moedas que perderam sua impressão e agora são consideradas

apenas metal, não mais moedas.” (NIETZSCHE, 2000, p.143) Não aceitar se iludir pode, às

vezes, gerar medo, insegurança ou desconfiança.

Neste trabalho, Piñon e Telles, através da linguagem, contextualizam as dificuldades

de suas personagens para se aceitarem e a necessidade que sentem de que suas imagens sejam

apoiadas pelos outros: “Mentira, querido, tudo mentira e você sabe, os mortos sabem tudo, se

antes da despedida você já sabia que eu estava mentindo, imagina então agora. Fiquei

transparente, posso me esconder atrás do muro, da montanha e você sabe.” (TELLES, 1999,

p.43) Para Rosa Ambrósio, a percepção da realidade é impossível de ser vivenciada, e,

embora recorra aos artifícios da ilusão, se debate entre a fantasia e a realidade.

Nas palavras de Campos:

Lembranças, fantasias, imaginação caracterizam nosso dia-a-dia, são determinantes de nossas realidades, de nossas percepções. Nunca temos certeza, estamos sempre em dúvida, sempre decodificamos, interpretamos o que acontece, buscando seu significado em nossos arquivos e catálogos. O medo de ser enganado, a vontade de acertar, a desconfiança, a fé em algo além, seja o grande amor ou o deus salvador, são constantes. (CAMPOS. 2004, p.24)

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Pode-se dizer que a personagem Rosa percebe o real, percebe o abandono de Diogo, a

ausência da filha, a solidão, a perda do marido e percebe também que fantasia, que delira, que

sonha. Entretanto, ao não se aceitar, ela busca ser aceita pelos outros, como se quisesse

neutralizar o que julga vergonhoso e negativo. Dentro desse critério, ser aceita se torna para

ela, ser valorizada.

Assim como Caetana, que deseja o que mais teme. Deseja ser Maria Callas, nem que

seja por um dia, mas teme que o público não a receba e a aplauda como aplaudiria a famosa

diva. Destrói o que a atrapalha, não se importa com os sentimentos de Polidoro, sabe que, se

ceder aos desejos do ex-amante, será subjugada às suas regras de vida: “A intransigência de

Polidoro não cedera com os anos. Ainda hoje queria trancá-la no serralho, impedir-lhe com o

cinto de castidade as abluções matinais. Seu percurso era o de um déspota, preocupado com o

poder de suas fazendas e zebus.” (PIÑON, 1997, p.184) E isso atrapalharia a realização dos

seus sonhos. Luta, então, dentro da lógica de suas próprias referências. Vale o

autorreferenciamento. Seus objetivos e pontos a atingir são os determinantes do ideal de vida

em busca da felicidade almejada. Tudo o mais pode ser disfarçado, camuflado. O jogo é uma

constante. Vale-se, pois, de um jogo que era praticado pelo casal há vinte anos:

Entretinham-se os dois num jogo que consistia em lançar as cartas a um alvo previamente acertado. Quem chegasse mais perto do objetivo cobiçado seria proclamado vencedor, a quem cabia cobrar uma prenda, que variava de um beijo a uma mordida no dedo do pé, e cujas solicitudes faziam-se mais audaciosas à medida que os jogos avançassem. (PIÑON, 1997, p.189)

Foi por ocasião de um desses jogos que Caetana conquistou a dama de espadas, (a

famosa carta do baralho, já citada anteriormente neste trabalho), trunfo que ostentava para

cobrar uma antiga dívida de Polidoro:

- O que significa esta carta? - Se não se lembra, é porque não quer pagar a dívida, disse ela, contundente e surpresa. Sempre o tivera na conta de homem de bem, capaz de pagar as dívidas contraídas na mesa de jogo, mesmo sem testemunhas de seu desvario. [...] - Claro que me lembro. [...] - E a dama não lhe recorda nada em particular? insistiu severa. - Esta dama era um penhor de minha palavra. A promessa. O que quer que pedisse, eu lhe cederia mediante a apresentação desta carta. Até mesmo se me exigisse uma fazenda de dez alqueires e cem rezes. (PIÑON, 1997, p.188-189)

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Para o auto-referenciado nada é real a não ser seus desejos ou sua grande dor, suas

vitórias ou seus fracassos, pois real é o que é percebido e ele não percebe isso. E a ilusão? A

ilusão é o engano. Certeza, crença e fé são fontes de engano, o que não significa erro. O que

não é percebido é a ilusão, consequentemente, não é o real, já que o real é o percebido.

Ora, se necessitamos de memória para vivermos, necessitamos também de apoios.

Para abrirmos mão da ilusão precisaríamos largar os apoios. E os apoios são as vigas da

estrutura da busca dos objetivos. A busca da felicidade, no caso de Caetana, gera o medo e a

ansiedade. O medo da não aceitação por parte do público de Trindade e a ansiedade para a

chegada do momento da realização do seu grande sonho, subir ao palco e ser Maria Callas,

pelo menos por um dia.

Em contrapartida, essa mesma busca vai resultar na falta de perspectiva de Rosa

Ambrósio decorrente das suas vivências não aceitas. Ser rejeitada pelo ex-amante, Diogo,

gera carência. Carência essa que funciona como fagulha incandescente da necessidade do

relacionamento, meta do grande amor. Daí, as fantasias, devaneios e ilusões que passam a

preencher seu cotidiano. Torna-se a grande vítima, a incompreendida, até por Dionísia, a fiel

empregada que não entende o porquê do autoabandono da patroa quanto ao presente,

vivenciando apenas o passado, ou, movida pela ilusão, voltada para a futura volta do ex-

amante, que certamente não acontecerá.

Ambas, Caetana e Rosa Ambrósio estão condenadas a cair no abismo, no vazio da

não-aceitação. Esse processo esvaziador explica o medo e a insegurança, e é muitas vezes

gerador da depressão: “- sumiu tudo. Fiquei sozinha para me executar, sou meu carrasco. Pior

do que um estranho porque já me amei, pum! Dispara no coração do coração. Caio

redondamente morta.” (TELLES, 1999, p.48)

É a crise depressiva. Depois da crise permanece a necessidade de uma solução, já que

a realidade aspirada encontra-se no nível da inviabilidade, instala-se a ilusão. E através da

busca da completude forma-se o círculo vicioso. A necessidade de justificar a vida pela

realização de coisas grandiosas, reconhecidas e úteis, numa espécie de deslocamento da não-

aceitação: “Não vou me esconder nunca mais, quero voltar. O retorno numa peça

importantíssima, a corja toda de rastros com Diogo na frente, Rosa, Rosae!” (TELLES, 1999,

p.53)

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A personagem busca a glória sob a forma de onipotência como deslocamento de

impotência. O ser humano tem fome de ilusão e é isso que o alimenta.

Nas palavras de Affonso Ávila:

A ilusão, que tanto pode proceder de uma distorção implícita ou explícita do raciocínio, induzindo a um conceito ou postura desfocados da parte do sujeito seu agente, quanto de um ato voluntário do pensamento eivado de astúcia envolvedora em sua intenção, é uma inerência inseparável da natureza falível de seu ser e estar que o homem transfere à contextura mesma de seu mundo individual ou social. [...] a verdade é que a ilusão está não raro posta a serviço do interesse imediato nem sempre correto na perspectiva da aceita realidade do consórcio dos homens. (ÁVILA, 2004, p.77)

Observa-se então, que se no caso de Rosa Ambrósio pode-se vislumbrar a ilusão do

ponto de vista da distorção do raciocínio numa postura desfocada, no caso de Caetana, a

mesma ilusão é parte de um ato voluntário:

- Se esse lanche miserável deve-se a Mágico, diga-lhe que ele se equivocou com nossos andrajos. E que é a arte que nos obriga a nos vestirmos dessa maneira. Além do mais, quem pensa que somos, banqueiros? Pois saiba que somos mesmo é príncipes. Pois somos nós que damos nomes aos sentimentos e às caras esfomeadas desses brasileiros feios que teimam em sonhar. Vá depressa à cozinha. Vamos nos fartar com pratos suculentos. Preciso forrar o estômago com a gordura que meus sonhos consumirão. E mande as contas para Polidoro Alves. É ele que vai pagá-las. (PIÑON, 1997, p.114)

Ao ouvir tal discurso Balinho adquiria a certeza de que era o país que precisava deles.

Então, por que temer o futuro? A ilusão de Caetana, mesmo posta a serviço de seu interesse

imediato, o alimenta.

4.1 Do real ao imaginário

Como bem observou Proust, o imaginário que conduz o escritor à “realidade” da

dissimulação ou à ilusão que se sobrepõe ao real, leva-o até a dimensão do acontecimento,

tornando assim possível a narrativa.

Assim como Proust, Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon misturam intencionalmente

a narrativa ilusória, a onírica, as possibilidades e contradições, reconhecendo o movimento

das transformações desejadas por suas personagens, na luta para escapar à realidade do tempo.

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Tempo esse real, destruidor e assustador, que produz a morte dos sonhos, que conduz

irreversivelmente à constatação da realidade. O mesmo que, pela ação destruidora nos dá e

nos tira muito mais, já que nos dá numa presença do irreal a ponto de nos comover e nos tira,

concomitantemente, na presença do real:

Luta e castigo. Isso das mulheres bonitas e dos homossexuais sofrerem dobrado quando começa a decadência. Seres destinados à destruição como todos nós mas com a obsessão da beleza. [...] - Décadence!... Acho que saí na hora certa, antes da chifrada. Também quis segurar a beleza, é claro, quem não?...Mas ela escapou por entre os dedos, água... Ainda bem que Deus me deu a paz sexual. (TELLES, 1999, p.139-140)

Eis a morte que é obra do tempo, recriando na personagem uma mulher livre da ordem

desse tempo, mesmo que numa cena teatral. Rosa Ambrósio não era real nem mesmo no divã

da psicanalista. Sempre colocava o presente fora do presente e o passado fora da realidade, era

tentada a dar forma à vida através de delírios, de certa maneira, uma tendência natural dos

seres humanos quando se sentem fragilizados.

Assim, nosso leitor empírico ficará comovido com seu sofrimento. Observa Umberto

Eco:

... os textos ficcionais prestam auxílio a nossa tacanheza metafísica. Vivemos no grande labirinto do mundo real, que é maior e mais complexo que o mundo de Chapeuzinho Vermelho. É um mundo cujos caminhos ainda não mapeamos inteiramente e cuja estrutura total não conseguimos descrever. Na esperança de que existam regras do jogo, ao longo dos séculos a humanidade vem se perguntando se esse labirinto tem um autor ou talvez mais de um”. (ECO, 1994, p.121)

Alguns autores ou mesmo filósofos veem Deus como Autor-Modelo, Regra do Jogo,

Lei que nos faz compreender o labirinto do mundo no qual vivemos.

4.2 O conflito entre a realidade e a ilusão

Falando em termos mais gerais, o real e a ilusão não podem ocupar o mesmo espaço.

Um conflito entre eles é inevitável.

De acordo com Jean Baudrillard:

O Real enquanto tal implica uma origem, um fim, um passado e um futuro, uma cadeia de causas e efeitos, uma continuidade e uma racionalidade. Não há real sem esses elementos, sem uma configuração objetiva do discurso. E o seu desaparecimento é o deslocamento de toda essa constelação. (BAUDRILLARD, 2001, p.69)

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Já para Nélida Piñon, o real “está na invenção, no alvoroço da imaginação”, o que não

é o caso em relação a alguns pensadores. Esse real contradiz, por exemplo, a ordem de

Baudrillard, começo e fim, causa e efeito. A autora se nega a qualificar a ilusão no sentido

pejorativo, negativo e irracional, como falácia, fantasmagoria ou como destino a ser

retificado.

As protagonistas das obras em estudo, Rosa Ambrósio e Caetana são atrizes, viveram

dos sonhos da glória e dos aplausos, da necessidade de atrair e de seduzir, e, diante da

realidade, da velhice e da decadência do corpo, não têm alternativa, senão agarrarem-se à

ilusão para continuarem vivendo: “A voz da jovem atriz Rosa Ambrósio na cena da demência

é um doce sussurrar de águas puras, ninguém resiste ao seu canto,...” (TELLES, 1999, p.46), a

esse comentário de um crítico, que na verdade, nutria por ela outro tipo de sentimento, Rosa

percebia a falsidade das palavras, mas sabia que elas eram necessárias ao seu ego como o ar

que respirava.

Assim como Caetana: “Em rápida vertigem sonhou haver firmado um contrato com

letras impressas em ouro, cada cláusula comprometendo-se em garantir-lhe a glória e a ilusão

intimamente abraçadas.” (PIÑON, 1997, p.291) Para quem, como ela, viajara por todo o

miserável interior do Brasil, que com frequência, não tinha sequer com que se alimentar, nada

mais almejado que um contrato que lhe garantisse glória e segurança.

O conceito de ilusão tem análogos na cosmologia. A luz das estrelas demora longo

tempo para nos alcançar, às vezes a percebemos depois que a própria estrela já desapareceu.

Esta não-simultaneidade é uma parte inescapável da ilusão do mundo, uma ausência no cerne

do mundo que constitui uma ilusão. Caso contrário, se percebêssemos a luz de todas as

estrelas ao mesmo tempo teríamos um dia permanente, o que seria insuportável. A energia da

existência depende dessa alternância vital de dia e noite.

Muitas vezes a ilusão pode ser vista como uma constante no Universo e a realidade,

talvez, uma exceção. Se tudo fosse igual, nos defrontaríamos com a verdade absoluta e este

seria o nome que se daria à morte.

Metaforicamente, nossa tarefa seria, pois, reordenar nosso mundo num nível no qual

pudéssemos desafiar nossos princípios de realidade e relacionalidade e recuperarmos os

vestígios da ilusão contra a negatividade, na tentativa de construir um mundo positivo e para

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nós, mais verdadeiro, resgatando dessa maneira, os vestígios da opacidade e do mistério de

um mundo ilusório. É o que fazem as personagens Rosa Ambrósio e Caetana.

Em A doce canção de Caetana, a protagonista luta para reordenar seu mundo,

desafiando os princípios da realidade contra a negatividade. Ela sabe que para viver seu sonho

de ser Maria Callas terá que ultrapassar barreiras:

- Sempre vivi sob o impulso da catástrofe. Quando meu tio me indicou as estradas brasileiras, poeirentas e tristes, passei por elas sem medo de cobras e dos homens. O ouro e as armas nunca impediram o avanço da arte, mesmo nos corações mais miseráveis. Ainda que queiram nos exterminar, gente de nossa espécie prolifera até em condições impossíveis. Pois que venha toda a família Polidoro Alves para me crucificar. Estarei aguardando aqui, neste Íris feio, mas o único que temos. [...] A figura de Caetana ganhava a mesma imponência da Callas, ao enfrentar o papel da sacerdotisa Norma. (PIÑON, 1997, p.312-313)

Também Rosa Ambrósio, em As horas nuas, se vale da estratégia de desafiar a

realidade para construir um mundo positivo, nem que seja ilusório, no qual vê a volta de

Diogo:

Ele está voltando. Sem a menor pressa, no estilo que faz lembrar o Rahul quando finge que não quer comer e então disfarça. [...] É o jeito dos felinos, mas se ele telefonou é porque vai voltar e a volta começou no instante em que ligou e pediu notícias. Quando a Diú me falou sobre o telefonema não deu muita importância, foi como se informasse, Hoje é Lua Nova. Entrei na farsa e fiz aquela cara ausente, Ah, ele telefonou? A Ópera dos Farsantes. Mas assim que ela se afastou virei o último gole de vodka e corri para uma ducha violenta, Carpe Diem! ordenei aos espelhos, a colheita imediata, Ação direta! ordenam os terroristas. Voltei aos cremes e às saunas, tirei dos armários meus vestidos brancos, tenho que estar pronta porque hoje ou amanhã ou daqui a um mês. Ou um ano. Ele vai voltar. (TELLES, 1999, p.197)

4.3 A imperiosa necessidade de rejeitar o real

Parece razoável imaginar que cada um de nós pode suspender, a seu bel prazer,

qualquer situação indesejável que a realidade teima em nos mostrar. Para tal, usaremos de

artifícios ou técnicas sempre ao alcance das nossas mãos. Podemos destruir a realidade,

destruindo a nós mesmos pelo suicídio, caminho, aparentemente seguro, mas que ainda assim,

contém em si alguma probabilidade de erro. Podemos enlouquecer, forma também segura mas

não ao alcance de qualquer um, “não é louco quem quer”. Podemos usar do método de Édipo,

furando nossos próprios olhos sem sacrificarmos nossa lucidez, apenas evitando a visão de

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uma realidade que reconhecemos existente e em última instância, nos embebedarmos ou nos

drogarmos.

Mas tudo isto seria marginalizar a fuga do real. O melhor seria, então, nos

desembaraçarmos da realidade desagradável de forma mais flexível. Não querendo dizer com

isso que a solução para nossos problemas seria a simples recusa de ver o real que nos é

mostrado. E sim, ver, admitir, mas não aceitar, persistindo no comportamento de escamotear o

percebido.

Talvez esta não-percepção possa parecer inútil, entretanto, nos levaria a uma

característica marcante da ilusão. Muitas vezes ouvimos dizer que o iludido está cego, que é

inútil oferecer-lhe a conscientização da realidade, pois ele não conseguirá percebê-la. O que

poderá vir a ser uma análise bastante simplória, no caso da ilusão.

No afastamento do real, ou melhor, na ilusão, a recusa não é observada claramente, o

que desejamos não é visto como objeto negado é apenas deslocado e colocado em outro lugar.

Todavia, o iludido vê, do seu ponto de vista, tão claro quanto qualquer outro.

Caetana, por exemplo, se vê perfeitamente na figura de Maria Callas. Para ela, subir ao

palco no papel da famosa diva grega é percebido e admitido no campo do real, mesmo

reconhecendo tratar-se de uma ilusão. Como se em sua percepção de iludida, se veja dividida

em duas: aquela que vê o que deseja profundamente e aquela que faz com que o falso se torne

verdadeiro. Pode-se inferir que o iludido é mais doente do que o neurótico, já que o iludido é

deliberadamente incurável.

Rosa Ambrósio, em As horas nuas, percebia com exatidão a traição de Diogo, no

entanto, preferia a dor da traição à ausência daquele que preenchia sua vida, que alimentava

sua ilusão de ser amada:

Todo o ouro do mundo não vale o prazer que me dava a sua simples presença. Se pago ao museu quando quero ver uma obra de arte, por que não pagar a um ser vivo? Hem?!... E à minha disposição, me servindo, podia ficar perverso quando me arreliava, podia até me acertar e me acertava mas sem profundidade, coisa de superfície. Sem humilhação. (TELLES, 1999, p.48)

O que a tranquilizava era a ilusória afirmativa de que Diogo estava fechado no quarto

com uma amiguinha jovem, mas estavam apenas conversando, ele não a traia. Esta é a

estrutura fundamental da ilusão: uma arte de perceber com exatidão, mas, de ignorar as

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consequências. O iludido transforma o que vê, e o transfere para outro lugar, tornando-se

incapaz de perceber o essencial.

A técnica da ilusão assemelha-se à técnica do ilusionista, que conta com o mesmo

efeito de deslocamento e de duplicação da parte do espectador: enquanto se ocupa com a coisa

que está manuseando para causar o efeito da mágica, olha para o sentido contrário, onde nada

está acontecendo, com o intuito de desviar a atenção daquele que o assiste. Logo, a estrutura

fundamental da ilusão é a estrutura paradoxal do duplo: ser ao mesmo tempo ela própria e

outra.

4.4 O mundo e seu duplo

“Quero falar de sua mania de negar o que é, e de explicar o que não é”. E.A.Poe

O tema do duplo, em suas ligações com reflexos, espelhos, sombras, espíritos

guardiões, crença na alma, medo da morte, etc, é de tal forma complexo e extenso que, por si

só, daria uma tese.

Não se pode, porém, ignorar que esse mesmo tema, associado aos fenômenos de

desdobramento de personalidade (esquizofrênica ou paranóica) e à literatura (particularmente

a romântica), está presente num espaço infinitamente vasto, no qual se instala toda ilusão.

Enquanto a estrutura da ilusão é a arte de perceber com exatidão, mas ignorar as

consequências, a duplicação do real é a estrutura fundamental do discurso metafísico.

Para Clément Rosset:

... o real imediato só é admitido e compreendido na medida em que pode ser considerado a expressão de um outro real, o único que lhe confere o seu sentido e a sua realidade. Este mundo aqui, que em si mesmo não tem nenhum sentido, recebe a sua significação e o seu ser de outro mundo que o duplica, ou melhor, do qual este mundo aqui é apenas um sucedâneo enganador. (ROSSET, 2008, p.57)

As aparências insensatas são falsamente pressentidas como sensatas; o que se verifica

nas vidas das personagens Caetana e Rosa Ambrósio. Ambas sentem-se no direito de uma

nova chance de receber os aplausos do público e sentir o doce gosto da glória. Não importa

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que isso aconteça em cenários falsos ou entrelaçados com sonhos e ilusões. O que determina o

destino do que se chama um temperamento de ator é a “ferida narcísica”11. Esse tema é,

permanentemente, ilustrado pelos romances aqui abordados.

Rosa Ambrósio, pronta para dar uma entrevista em sua casa, opta pelo tipo despojado,

fazendo gênero de humilde. Essa representação deixou o jornalista tão à vontade que o pobre

rapaz confessou à atriz que não conhecia o seu trabalho no palco. A confissão foi o suficiente

para despertar a fúria narcísica da artista:

Quer dizer que você vem à minha casa me entrevistar e nunca me viu representar, [...]. Se você não me conhece, querido, não podemos ter diálogo, disse e deixou-o perplexo, com jeito de criança a quem se tira o doce. [...] É uma afronta!, exclamou para a própria imagem dura de indignação. (TELLES, 1999, p.103)

Revestida da personalidade teatral, com a qual entrara na sala, depois da decepção,

Rosa perde o controle da aparição estudada para dar vazão a sua personagem real. A artista

autossuficiente e senhora de si cede lugar à mulher frágil e insegura guiada pela constatação

do não reconhecimento público. A afronta referida nada mais é do que o reconhecimento do

fracasso do qual pensava estar protegida. Pensar estar protegida do fracasso, entretanto, é uma

função da ilusão.

Nas palavras de Rosset: “Certamente podemos tentar nos proteger de um

acontecimento futuro, se este é apenas possível; nunca nos protegeremos de um

acontecimento passado ou presente, ou ainda “inevitável no futuro;...” (ROSSET, 2008,

p.119)

Em síntese, Rosa ilustra, de forma caricatural, a cegueira cotidiana quanto a si própria.

Podemos nos arriscar a pensar que, provavelmente, é o que acontece em toda ilusão.

4.5 No bosque da ilusão

11 Ferida narcísica, no caso, é o que registra a dúvida do ator quanto a si mesmo, da qual ele só se

liberta a partir de uma garantia reiterada do outro, no caso, do público.

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Parafraseando Umberto Eco em seus Seis passeios pelos bosques da ficção, podemos

dizer que ao entrarmos no bosque da ilusão temos que assinar um acordo com o autor e nos

dispormos a aceitar, por exemplo, um gato que fala. Imaginamos um gato peludo, de unhas

aparadas para não estragar os tapetes de sua dona, e achamos muito natural que esse gato

pense, tenha memória, lembranças de passados diversos, que saiba falar, e, principalmente,

que tenha discernimento perfeito do que é equilíbrio e desequilíbrio, verdade e mentira,

realidade e ficção.

Aceitamos também que uma ópera como La Traviata, de Verdi, possa ser realizada

com artistas que nem sequer saibam do que trata tal espetáculo e que nunca pisaram num

palco. Acreditamos ser possível substituir um elenco operístico por artistas do circo

mambembe, acostumados aos picadeiros, ou até, por prostitutas e outras pessoas cujas

profissões nada têm a ver com a arte. Acreditamos que um solitário vendedor de tecidos,

apenas pelo fato de ser grego, poderia ser transformado em pintor e fosse capaz de pintar

painéis e cenários, a ponto de impressionar todos os habitantes de uma cidade.

Mas, para que isso aconteça, precisamos acreditar que este mundo que ora

encontramos, o da ficção, será daqui em diante, o mundo real.

O bosque. Entrei no rio menino e dele saio um jovem, mas esse prodígio não me abala, só me ocupa um pensamento, o que vem pela frente? [...]. Apertei meu peito inquieto com a palma da mão assim como faço agora. A diferença é que já não tenho mão à altura do gesto, mas uma pata. Veludosa. As unhas bem aparadas para não puxar o fio dos tapetes de Rosa Ambrósio. (TELLES, 1999, p.25-27)

Tudo isso nos parece fantástico, entretanto, acreditar fazermos o pacto com a autora e

acreditarmos que um narrador-gato é perfeitamente plausível, constitui condição sine qua non

para darmos credibilidade à narrativa. Caso contrário, seríamos obrigados a abandonar o

projeto de estudar as obras propostas neste trabalho.

Poderíamos, também, imaginar outro mundo não tão fantástico como o de Lygia

Fagundes Telles, mas que, não seria da mesma forma, baseado na realidade. O mundo ilusório

que Nélida Piñon criou em seu romance, A doce canção de Caetana.

Neste, a autora instaurou o mundo ilusório dos palcos ao permitir que Polidoro, por

amor a Caetana criasse, numa farsa ilimitada, um teatro e um cenário para que a amada

realizasse seu sonho de tornar-se a diva grega, Maria Callas. Mesmo consciente do erro e dos

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muitos perigos que correria com essa invenção, o pobre homem movido pela paixão, no afã de

conquistar Caetana, convence Venieris, o comerciante grego, a recorrer à memória dos seus

ancestrais e embelezar e transformar o pequeno cinema Iris em teatro: “- Uma porta deve ser

sempre imponente. Como se fosse a porta do paraíso. Tudo aqui é mentira, mas de boa

qualidade. Devemos favorecer os sonhos e expulsar os incrédulos, que se recusam a enxergar

para além do que vamos mostrar...” (PIÑON, 1997, p.294) De um fato aparentemente

impossível, a escritora cria, com habilidade, a possibilidade de tornar a ilusão uma realidade.

Admitamos, pois, que precisamos contar com conhecimentos do mundo real para nos

deixar impressionar com o irreal. Se voltarmos ao conceito de Eco, no qual, “os textos

ficcionais prestam auxílio à nossa tacanheza metafísica”, e ainda, que os mundos ficcionais

são parasitas do mundo real, concluiremos que a ficção delimita nossa competência.

Entretanto, se nos propusermos a aceitar um acordo com as autoras aqui estudadas, e

admitirmos com naturalidade a possibilidade de existência de algo para além do espaço finito

do real, estaremos então, preparados para explorar essa ficção de modo mais confortável e

produtivo.

É o caso de Polidoro que, na ânsia de realizar as vontades da amada, aceita a ficção

em substituição da realidade:

- Esses antecedentes confirmam que somos presas fáceis da ilusão. Qualquer mentira é convincente, desde que se nos mostre sob invólucro agradável. Olhou Polidoro, como se houvesse feito uso desses exemplos para fixar uma posição moral. [...] - A vida nos cobre de razão. A partir de agora vamos soldar as mãos de Venieris aos pincéis e às tintas. Ele nos fornecerá a ilusão que nos falta. (PIÑON, 1997, p.211)

Ao fazermos um recorte num conceito tão amplo – a ilusão – optamos por abordar três

aspectos que julgamos relevantes nas obras estudadas:

a) a ilusão como elemento fundamental da vida, abordando a ilusão da juventude e da

vida eterna;

b) a arte cênica e a ilusão;

c) a ilusão do ufanismo.

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4.5.1 Ilusão: elemento fundamental da vida

As protagonistas dos romances estudados, Rosa Ambrósio e Caetana, lutam contra o

inevitável que é a velhice do corpo e a decadência profissional. Culpam a velhice pela

dificuldade de suas coexistências com a sociedade. Rejeitam as implacáveis transformações

físicas ou mesmo metamorfoses que o tempo lhes impõe.

Se colocarmos numa balança, de um lado, a dificuldade de encarar a própria velhice,

com suas angústias, pavores, limitações, consciência da passagem do tempo, e do outro, a

relação da vida com o futuro, na grande maioria das vezes observaremos o desequilíbrio dos

pratos dessa balança.

No mundo artístico, o fato do envelhecer é ainda mais grave. O artista prefere morrer a

ficar velho, não consegue encarar este fantasma, não consegue assumir a totalidade de sua

condição:

... algoz esplêndido que esbanjava morte e rugas. – Era a frase favorita do tio Vespasiano em seu último ano de vida. Falava assim justo ao crepúsculo, tomado de estranha agonia. Defendia a tese de que nenhum outro ser humano sofre tanto com a velhice quanto os atores. Cada vez que pisam no palco, precisam desesperadamente de se iludirem com a certeza de ainda serem jovens. As rugas da cara têm a força de destruir um talento que ambiciona lidar com o perdurável e o eterno. (PIÑON, 1997, p.264)

Para cada um de nós a velhice acarreta um tipo de degradação que tememos. Ela

contradiz o ideal viril ou feminino adotado pelos jovens e pelos adultos. Espontaneamente a

recusamos, uma vez que se define pela impotência, pela feiúra e pela doença.

Porém, para que agíssemos com equilíbrio e tivéssemos aceitação lógica da nossa

existência, deveríamos agir como Buda, ainda quando vivia na casa de seu pai como o

príncipe Sidarta. Certa vez, escapulindo do magnífico palácio do pai e, pela primeira vez,

encontrando um homem enfermo, desdentado, enrugado, apoiado numa bengala e trêmulo,

perguntou ao cocheiro que o acompanhava o que era aquela estranha figura. Espantou-se ao

ouvir a resposta do homem, que aquele era um velho: “Que tristeza - exclamou o príncipe –

que os seres fracos e ignorantes, embriagados pelo orgulho próprio da juventude, não vejam a

velhice! [...] De que servem os jogos e as alegrias, se sou a morada da futura velhice?”

(BEAUVOIR, 1990, p.7)

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Não é fácil falar das condições da velhice. Sua imagem é incerta, confusa,

contraditória. Para Simone de Beauvoir, a velhice tem dois sentidos diferentes:

É uma certa categoria social, mais ou menos valorizada segundo as circunstâncias. É, para cada indivíduo, um destino singular – o seu próprio. O primeiro ponto de vista é o dos legisladores, dos moralistas; o segundo, o dos poetas, quase sempre, eles se opõem radicalmente um ao outro. Moralistas e poetas pertencem sempre às classes privilegiadas e esta é uma das razões que tira de suas palavras uma grande parte de seu valor: eles dizem sempre apenas uma verdade incompleta e, muito frequentemente, mentem. Entretanto, como os poetas são mais espontâneos, são mais sinceros. Os ideólogos forjam concepções da velhice de acordo com os interesses de sua classe. (BEAUVOIR, 1990, p.109)

Coloquemos, pois, nossas personagens no mesmo grupo dos poetas, não esperemos

delas ideais budistas, mas a espontaneidade das suas condições de vida diante da sociedade. A

velhice se opõe ao que consideram vital para suas carreiras. Enquanto para o ideólogo, a

longevidade corresponde à oportunidade de aprender cada vez mais, para o poeta, o artista,

quanto mais longe fica a juventude, mais infortúnios apoderam-se de sua alma.

Em A doce canção de Caetana, a pontuação da velhice é contundente: “O corpo,

porém, não correspondeu com a leveza de antes, o que lhe deu motivos para maldizer os

anos.” (PIÑON, 1997, p.5); “De perto, mediram o grau de envelhecimento um do outro. Para

que Polidoro visse, através do pai, que também murchava,...” (PIÑON, 1997, p.12)

Também em As horas nuas: “Tantos espelhos. Mas só agora me vejo, uma frágil

mulher cheia de carências e aparências, dobrando o Cabo da Boa Esperança,...” (TELLES,

1999, p.12); “Minha velha. Era brincadeira e não é brincadeira.” (TELLES, 1999, p.15); ou

ainda: “Na realidade eu tinha que neutralizar o medo recusando a dor que desfibra e

vampiriza, [...] Reagi atirando-me ao trabalho, aos esportes, fiz natação, pedalação, comecei a

estudar papéis dentro da minha faixa etária, outra expressão ignóbil.” (TELLES, 1999, p.20)

E inúmeros outros exemplos.

Nélida Piñon e Lygia Fagundes Telles, através de suas narrativas, recuperam de

maneira criativa, uma questão que desde tempos remotos tem ocupado lugar especial no

conjunto das queixas inspiradas pela vida na terra, qual seja, a velhice.

Mimnermo, por volta de 630 a.C., cantava, de um lado, os prazeres da juventude e o

amor, de outro, o ódio à velhice. Para ele, a velhice doada aos homens por Zeus era dolorosa,

tornava o homem feio e inútil, e os raios do sol não o confortavam mais, a pele fenecia e a

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velhice, nela, cavava sulcos. Anacreonte, no século VI, cantava que envelhecer era perder

tudo o que fazia a doçura de viver.

Deixemos claro, porém, que outros sábios foram partidários das vantagens da velhice,

com alegações de que são os conselhos, a autoridade e a sábia maturidade, inerentes dessa

fase da vida, os responsáveis pelas realizações das grandes coisas. Para Cícero, a idade longe

de desqualificar, aumentava a capacidade do indivíduo; Catão, o Velho, ainda era dono das

suas faculdades mentais aos oitenta anos de idade.

À semelhança da Antiguidade e da Idade Média, a atualidade também, acalenta o

sonho de uma vitória sobre a velhice. Fontes da juventude, ideias de rejuvenescimento, busca

das tecnologias modernas, cirurgias plásticas e outros recursos da medicina fazem parte do

nosso presente.

Oscar Wilde, no clássico O retrato de Dorian Gray, único romance que escreveu,

narra a intrigante história do jovem que faz um pacto com o destino em troca de não sofrer as

marcas do tempo:

E, chegado o inverno, ele ainda estaria onde a primavera se abeira do limiar do verão. Quando o sangue fugisse das faces da efígie, deixando atrás de si a pálida máscara de giz opaco e olhos baços, Dorian Gray continuaria a ostentar o viço da mocidade. Não murcharia jamais a flor da sua beleza, nem esmoreceria a sua pulsação vital. À semelhança dos deuses da Grécia, ele seria forte, ágil e alegre. Que importava o que acontecia à imagem pintada na tela? Ele estaria intacto. E isto era tudo. (WILDE, 2000, p.121)

Quase sempre se vê na literatura o sonho de encontrar a fonte da juventude. Se nos

enveredarmos pelos caminhos da ilusão, constataremos que o maior de todos os sonhos é o da

imortalidade. Uma fantasia na qual ciências e tecnologias modernas também estão envolvidas.

Haja vista a clonagem, os congelamentos, a célula tronco, etc, mesmo sabendo que o sonho de

sobrepujar a morte é o mais terrível dos destinos.

Para Baudrillard:

A humanidade não discrimina; ela se transforma com boa vontade em sua própria cobaia, sob as mesmas condições que o resto do mundo, animado ou inanimado. A humanidade joga alegremente com o seu próprio futuro sob o aspecto da espécie, da mesma maneira que joga com o futuro de todas as outras criaturas. Em sua busca cega para obter um conhecimento maior, a humanidade programa sua própria destruição com a mesma ferocidade e falta de cerimônia com que se dedica à destruição de todas as espécies restantes. (BAUDRILLARD, 2001, p.22-23)

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Se, por um lado, o ponto de vista de Baudrillard pode nos parecer radical, por outro,

podemos inferir que essa luta pela sobrevivência venha da necessidade da imortalidade que o

pensador identifica na espécie humana. O homem não quer apenas existir para sempre, quer

também, viver mais do qualquer outro, e saber isso; e ainda, quando não estiver mais vivo,

deseja a perpetuação do seu nome.

Concordando com isso, também estaremos de acordo com Nietzsche, quando disse

que: “... a raça humana, deixada entregue a seus próprios projetos, é capaz de redobrar seus

esforços, de re-dobrar a si mesma – ou de se destruir.” (BAUDRILLARD, 2001, p.27)

Logo, quando nos certificamos de que estamos nos dirigindo para um “mundo novo”,

imaginado para poder transformar e dominar, que se faz sentir por meio da tecnologia, num

processo no qual somos somente operadores, somos obrigados a visualizar a ilusão.

A ilusão como válvula de escape, não como algo errado. Paralelamente, não podemos

culpar a tecnologia, sabemos que ela é necessária, é consequência da modernidade, quer

sejamos otimistas ou pessimistas, a adaptação se faz necessária.

Do prisma do otimista, acredita-se que novas tecnologias darão grande impulso à

educação. Os otimistas têm argumentos de sobra para defender, por exemplo, o uso do video-

game como instrumento de educação e ajuda ao desenvolvimento intelectual e psicomotor dos

seus usuários.

Porém, os pessimistas têm razão de sobra para acreditar que os vídeo-games

representam uma ameaça sinistra ao pensamento e à capacidade de socialização humana. Para

eles, esses jogos multiplicam os efeitos nocivos, já alarmantes da televisão, estimulando o

individualismo, a prática do “matar ou morrer” e a sensação de impunidade, já que o jovem se

sente o próprio personagem envolvido na trama proposta pelo jogo.

Em síntese, o vídeo-game é uma operação de mão dupla. Ao “entrar” no universo do

computador, o jogador trata a fantasia como se fosse realidade, mas ao “sair” do cyberspace,

ele acaba tratando a realidade como se fosse fantasia. O ideal seria equalizar os dois lados.

Baudrillard acreditava que “a ilusão não é um erro ou uma decepção, mas um jogo, um grande

jogo cujas regras não conhecemos e talvez nunca venhamos a conhecer.” (BAUDRILLARD,

2001, p.61)

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Quando percebemos que estamos indo, irreversivelmente para o rumo do limite final,

só temos uma saída, agarrarmo-nos a hipóteses fantásticas, apegarmo-nos à ilusão como tábua

de salvação. Ou sobreviveremos, deixando-nos envolver por esses artifícios, ou nos

deixaremos arrastar pela correnteza da realidade.

Caetana lutou contra essa correnteza:

- No início, adorei todos os deuses. Mesmo os mais vagabundos. Eles, porém, me recusaram. Foram eles que me esqueceram nas cidades miseráveis deste país fodido. Por que agiram assim comigo? Só porque tio Vespasiano me trazia pelas manhãs, junto com a caneca de café, uma dose desenfreada de sonhos? (PIÑON, 1997, p.108) A ilusão, segundo ele, devia vir junto com a claridade do dia e o primeiro gole de café. (PIÑON, 1997, p.110)

O excesso de realidade a tentava querer enveredar-se pelo mundo da ilusão, onde tudo

que existe - sonhos, fantasias ou utopias - poderá ser imediatamente realizado,

operacionalizado. Acontecimentos reais sequer terão tempo para se realizar. Afastando do seu

mundo toda a possibilidade do real, a atriz parte para a criação de um mundo perfeito, no qual

a ilusão senta-se no trono dos reis, mundo destituído de negatividade, isento da possibilidade

da velhice, da decadência, do fracasso, e, porque não, da própria morte.

4.5.2 A arte cênica e a ilusão

Não é por acaso que os truques da arte ilusionista estavam ligados à composição de

cenários de teatro na Antiguidade Clássica. É no contexto das antigas histórias da mitologia

que a representação dos eventos, segundo a visão do poeta e sua sensibilidade, atinge o clímax

e é cada vez mais ajudada pelas ilusões da arte.

Não é também por acaso que Nélida Piñon vale-se de Venieris, personagem grego,

como peça importante na transformação do pequeno cinema de Trindade, num grande teatro,

onde Caetana dará margens às suas ilusões de tornar-se Maria Callas. Nem tão pouco é por

acaso que Piñon escolheu uma cantora grega como ponto de sustentação da concretização dos

sonhos de uma pobre artista de circo mambembe: transformar-se numa das maiores divas do

canto lírico que o mundo já conheceu:

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- A partir de hoje você vai pintar um cenário com um teatro de tamanho natural. Vários painéis gigantescos que criem a ilusão de que existe um teatro de verdade em Trindade. Um teatro com porta de entrada opulenta. É por essa porta que vamos passar, tão logo os painéis sejam fixados à frente do velho Íris, que está fechado. [...] Além do mais, a função de Venieris é nos dar a ilusão de que assistiremos a um espetáculo num teatro verdadeiro. (PIÑON, 1997, p.207-208)

Em toda a história da arte ocidental nos deparamos com a constante interação entre

intenção narrativa e realismo pictórico. Porém, só seremos capazes de entender uma pintura se

tivermos dela algum conhecimento prévio, como uma “projeção dirigida”: “A imaginação

humana é muito engraçada, só admite as maravilhas do mundo a partir do conhecimento que

tem de sua própria paróquia. Não passamos de caçadores de cabeças, obstinados em reduzir

os crânios de tamanho normal a miniaturas.” (PIÑON, 1997, p.124-125)

A imaginação humana tem ocupado a atenção dos que investigam a comunicação

eficaz, a leitura dos textos, a observação da audição, sinais da visão, etc. Para o estudioso da

imagem visual, algumas experiências são relevantes no contexto da ação criadora das

condições de ilusão. Por exemplo: as apresentações dos mágicos como produtores de

percepção-fantasmas ou a capacidade que tem uma pessoa de manejar com destreza uma

agulha, nos fazendo ver uma linha inexistente.

Os gregos foram os primeiros a explorar a ilusão da criação no reino crepuscular da

incredulidade. Daí em diante, a ilusão poderia transformar-se em trapaça apenas quando o

contexto da ação provocasse uma expectativa que reforçasse o trabalho normal do artista.

Uma famosa história de ilusão na Antiguidade Clássica é a anedota contada por Plínio,

sobre como Parrásio enganou Zêuxis. A princípio, com a história dos passarinhos que

bicavam as uvas por ele pintadas, tão perfeitas que eram. A seguir:

Parrásio convidou Zêuxis a visitar seu ateliê para mostrar-lhe um quadro. E quando Zêuxis tentou remover a cortina que escondia a tela descobriu que ela não era real, mas pintada, e teve de reconhecer a vitória do colega, que não só enganara aves irracionais mas um artista. (GOMBRICH, 2007, p.173)

Se isso fosse visto do ângulo da razão, certamente não seria tão admirável, pois, a

possibilidade de uma cortina ser pintada era quase nula. O artista valeu-se de leve jogo de luz

e sombra para iludir Parrásio.

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Técnicas semelhantes têm sido usadas pelos pintores do trompe l’oeil,12 no mútuo

reforço da ilusão e da expectativa.

No mundo do faz-de-conta a ilusão se afirma. Desde o dia em que nascemos até a

nossa morte somos envolvidos pela ilusão. Esse elemento, fundamental a nossa subsistência,

se multiplica, lançando suas malhas sobre nós. Iludimo-nos no amor, no ódio, na ambição, na

história e na política.

4.5.3 A ilusão e o ufanismo

Lado a lado, os romances A doce canção de Caetana, de Nélida Piñon e As horas

nuas, de Lygia Fagundes Telles, abordam a História e a política inserindo-as, efetivamente,

nos seus enredos.

Em A doce canção de Caetana, a ação do romance se passa na semana que antecede a

conquista da Copa do Mundo de 1970, no México. Os acontecimentos políticos, sociais e

econômicos que se desenrolam durante o período do governo do Presidente Médici, “Milagre

brasileiro”, formam o pano de fundo da narrativa.

Esse “milagre brasileiro” baseava-se numa política de desenvolvimento acelerado, que

levasse a um boom do progresso. Mas, por trás da fachada desenvolvimentista, os problemas

básicos da sociedade brasileira eram os mesmos ou até, pioravam. Havia insatisfação por

parte daqueles que não se deixavam iludir pela propaganda ilusionista do “Prá frente Brasil”

ou do “Ninguém segura este país”.

A vitória da seleção brasileira de futebol foi um acontecimento marcante da era

Médici. Os brasileiros eufóricos, embalados por canções nacionalistas, receberam os

jogadores como heróis da pátria. A seleção encantou o mundo com seu “futebol arte” e foi

condecorada pelo Presidente da República, que permitia ao mesmo tempo, que se matasse e

torturasse aquele que tentava mostrar o outro lado do Brasil “vitorioso”, o das perdas e da dor.

12 Trompe l’oeil é uma técnica artística que, com truques de perspectiva, cria uma ilusão de ótica que

mostra objetos ou formas que não existem realmente. Provém de uma expressão em língua francesa

que significa “engana o olho” e é usada principalmente em pinturas ou na arquitetura.

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Talvez, um tipo de ilusão nocivo para a sociedade, manipulação do poder, que sob a

máscara da ideologia, cerceava a liberdade, oprimia e massacrava o povo brasileiro.

Em A doce canção de Caetana, Piñon exemplifica a ilusão nociva com a famosa

fachada (trompe-l’oeil), de Potemkim, assim denominada por ter sido perpetrada pelo Conde

de Potemkim:

- Vai ser igual à história do conde de Potemkim, o favorito de Catarina II da Rússia. Seu desvario pelo jogo levou-o a pedir à soberana uma fortuna, sob pretexto de reconstruir perto da então Petrogrado algumas aldeias necessitadas de cuidados públicos. A imperatriz, perdida de paixão, cedeu o dinheiro, que foi logo dissipado no pano verde. E quando ela quis ver de perto como vivia o povo, o conde não hesitou. Confiante na força do amor da imperatriz, mandou pintar vários cenários com casas e ruas bem traçadas e colocou-os na frente dos barracos, tapando a miséria dos súditos. Assim, da carruagem puxada por cavalos espumantes e crinas ferozes, Catarina apreciou comprazida a paisagem tão bem simulada. (PIÑON, 1997, p.210)

Valendo-se da ilusão para camuflar os horrores praticados pelo nazismo, a escritora

contrapõe os rumores sobre o presente político do Brasil sob a ditadura Médici:

...a perseguição e o exílio político, os desaparecidos, a tortura, a miséria da população, tudo polido com a imagem oficial do país, ufanista e com a população intoxicada pela Copa do Mundo, numa ilusão “maior que a realidade” enquanto processo alienante e destrutivo. (MONIZ, 1993, p.171)

Parece óbvia a intenção da narrativa, através da qual, a ilusão que move Caetana e sua

trupe de artistas mambembes é equiparada à outra farsa que cobria a conquista do tri-

campeonato de futebol, a imagem de um Brasil progressista, vitorioso e otimista.

A escritora mostra, também, a personagem Caetana como uma espécie de figura

marginal aos olhos dos habitantes de Trindade. Essa cidadezinha dividida em dois grupos: o

dos marginais, Caetana, seus amigos, as Três Graças e o grego Venieris, que fala uma língua

estranha, um estrangeiro. Esse último, comparado a Caetana, também considerada estrangeira,

até pelo próprio Polidoro:

Mas seu mais fundado temor era o de ser Caetana uma estrangeira, embora de nacionalidade brasileira. Alguém que, vindo de muito longe, mostrava-se imune às influências das novas terras que visitasse. Nenhum outro torrão a forçaria a renunciar a qualquer de seus sonhos. (PIÑON, 1997, p.159)

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O segundo grupo representa a sociedade conservadora e institucional de Trindade: o

prefeito Pentecostes, o historiador Virgílio, Polidoro, o homem mais rico da cidade e sua

mulher Dodô, representante das forças reacionárias na arte, política e costumes: “- Trindade

está dividida em dois grupos, disse Balinho [...] – O primeiro defende Caetana e prepara as

roupas, as jóias e as emoções para a estréia. O outro é de formação recente. Torce por dona

Dodô e afia as unhas em pedra-pome.” (PIÑON, 1997, p.280)

Em sua dissertação de mestrado, Glória Elena Pereira Nunes, ao analisar as relações

entre os artistas e o Estado durante o período do “milagre brasileiro”, diz: “Segundo Hollanda,

uma vez que o país havia se transformado em “uma ilha de tranquilidade”, atraente para o

capital estrangeiro, instala-se um clima de ufanismo, decorrente das grandes obras construídas

pelo governo.” (NUNES, 1997, p.68) Ela cita ainda, Heloisa Buarque de Hollanda: “A classe

média maravilhada vai comprar seus automóveis, televisões coloridas e apartamentos

conjugados para veraneio.” (NUNES, 1997, p.68)

Paralelo a esses acontecimentos guiados pela euforia do momento, no campo das artes,

a censura tornava-se cada vez mais violenta, dificultando e até mesmo proibindo, a circulação

de manifestações de caráter crítico. Artistas e intelectuais passaram a viver em clima de

“vazio cultural”, o Estado se estabelece como único responsável pela definição da política

cultural e maior patrocinador de produções artísticas julgadas viáveis.

Em A doce canção de Caetana, Polidoro, homem influente e rico, representa a figura

do Estado, como patrocinador da arte da ex-amante. Da mesma forma que o Estado o fazia

para melhor ditar os padrões e controlar o povo, o fazendeiro pretendia, ao financiar o sonho

de Caetana, tê-la de volta e domesticá-la.

Entretanto, por sua vez, a mulher sempre resistiu: “Caetana, por exemplo, jamais se

abastardou. Preferiu a arte ao dinheiro. Não quis ir para o Rio de Janeiro correr o risco de se

tornar puta, vigiada por cafetões.” (PIÑON, 1997, p.243) Integrada ao seu grupo mambembe,

resistiu ao poder do dinheiro que pretendia acabar com sua liberdade individual e criativa.

Essa resistência de Caetana e do seu grupo metaforiza a subversão nas relações

estabelecidas para a produção cultural da época:

Que tio é este que em vez de aconselhar a sobrinha a aceitar uma casa posta em Trindade, onde teria um pomar com árvores frutíferas, um galinheiro, ovos frescos pela manhã, e dinheiro no banco para comprar o que lhe fizesse falta, corrompeu o

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espírito da sobrinha com o intuito de fazê-la andar por esse Brasil afora, junto com uns ciganos condenados pela miséria e pela ilusão esfarrapada? Aonde irão um dia morrer? Ou não quer para Caetana um fim tranquilo, ao lado do homem que lhe cerre os olhos e lhe providencie uma sepultura cristã e digna? Chega de sonhos, seu Vespasiano. O senhor não tem pejo de destruir uma vida? Disse Polidoro, dias antes da fuga do grupo. (PIÑON, 1997, p.131)

À Nélida Piñon não passa despercebido a morte dos sonhos no Brasil dos anos 60 e

70. Em Trindade é proibido sonhar, o tempo parou e o imaginário, consequentemente

estagnado, revela o desgaste das utopias. Caetana fica vinte anos fora da cidade e ao voltar

encontra tudo igual, indícios da decadência e estagnação da sociedade brasileira. Trindade

metaforiza um país impedido de sonhar, imposição da censura militar. Esta é a representação

da sociedade adormecida em todos os níveis – político, econômico, social e cultural – onde

seu povo delega às personagens das novelas o direito de sonhar e sentir emoções.

Segundo Naomi Moniz, Nélida mostra a miséria cultural, emocional e política em um

país onde o discurso foi esvaziado e onde os cidadãos “engolem” imagens e enlatados criados

pela ideologia desenvolvimentista da ditadura militar:

Não havia hoje uma só alma em Trindade disposta a praticar desatinos. Tal encargo fora simplesmente delegado aos atores. E a própria política, antes uma prática pública, perdera o lastro de paixão após a ocupação de Brasília pelos militares. [...] Em casa, Francisco combatia a solidão por meio de coleta de intrigas com força para alastrar pela cidade. Uma vocação de que não se arrependia, pois, julgava indispensável dar atenção aos atos humanos, de que grandeza fossem. De fato, preferia os atos mesquinhos, de difícil decifração. (PIÑON, 1997, p.50-51)

A figura do presidente Médici está presente ao longo do romance. Várias referências

são feitas a ele, como as conquistas e o progresso na época do seu mandato.

O prefeito Pentecostes, ardoroso admirador do presidente, encontra seu ponto de apoio

no estabelecimento da ilusão entre o “milagre brasileiro” e a estagnação de Trindade: “...

Médici é um presidente de sorte. Tudo que ele toca dá certo. – Até que merece. É muito

simpático. Estamos enriquecendo sob sua batuta.” (PIÑON, 1997, p.272-273)

O historiador Virgílio e os cidadãos de Trindade são levados a acreditar ser mentira a

notícia de que há torturas no país, não há provas, logo, a história oficial prevalece e sustenta o

poder dos políticos:

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As notícias alvissareiras naquela semana bafejavam o presidente Médici, cujo sobrenome, de príncipe renascentista, inundava o país com o esplendor do ouro e do sangue. - Dizem que há tortura no Brasil. Dão choques [...] A advertência de Ernesto foi imediatamente desconsiderada. Não tendo provas do que dizia, não lhe podiam dar crédito. Pura intriga dos comunistas à solta. O Brasil vive fase áurea no setor econômico e nos esportes. (PIÑON, 1997, p.279)

Verifica-se mais uma vez, a força da ilusão, o Brasil havia se transformado num “país

de mentira”, assim como, Trindade era uma “cidade de mentira”.

Mas, nem tudo é fantasia. De um lado, Caetana vai mostrar aos pacatos habitantes do

lugar, um Brasil do ponto de vista incapaz de ser visto pela maioria deles:

- Se ela, que cruzara o Brasil de norte a sul, havia fracassado, o que acontecera a eles, simples flores de cacto de Trindade! Quem sabe a desilusão generalizada dissipara-lhes o espírito e o brilho dos olhos! -Que sobrou depois de tantos anos? (PIÑON, 1997, p.256)

Do outro lado, o delegado Narciso, com sua vida insípida, vendo-se envelhecer e

engordar, obrigado a contar míseros agrados de Polidoro em troca de uma vida mais

confortável para a família, também mostra a farsa do processo tão louvado pelo prefeito e

seus seguidores: “O golpe seco desferido por Polidoro atingiu as entranhas do delegado.

Traído por todos, sentiu o ímpeto de sacar a arma e vingar-se. Surgiu-lhe, contudo, o rosto da

mulher, na casa do Méier, aprontando-se para visitá-lo na prisão. [...], o ódio esmoreceu.”

(PIÑON, 1997, p.253)

Na arte também, Nélida Piñon problematiza a questão da ilusão. Para Naomi Moniz,

“a ilusão benéfica”: mentira, deformação e manipulação da realidade, como formas de criação

do ficcional.

Desse ponto de vista, arte como ilusão, a autora associa a apresentação da Traviata no

teatro Íris à final da Copa do Mundo de 1970, mostrando dois tipos de ilusão. O primeiro

representa o lúdico, o positivo da ilusão e é ligado à criação artística, e o segundo, “a taça do

mundo é nossa”, prejudicial à sociedade, na medida em que serve como instrumento

ideológico para o governo escamotear a verdadeira situação do país da época.

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5 MUNDOS POSSÍVEIS

“... o que caracteriza e define a pintura é o pincel na tela, a música é o arco nas cordas, a literatura é a pena no papel, e o que define o teatro é o ser humano no espaço”.

Jean Louis Barrault

Poderíamos definir como caleidoscópico o espaço em que a narrativa oscila entre um

mundo objetivamente presente e um mundo subjetivamente transformado. No mundo

objetivamente presente lidaríamos com a realidade e no mundo transformado incluiríamos a

imaginação, os sonhos e a ilusão, enfim, o mundo performático do espaço teatral.

Por um viés poético, o fenômeno teatral se funde nos espelhos do caleidoscópio. Na

atuação dos atores percebe-se certo grau de imprevisibilidade gestual que, de certa forma,

mantém a atenção do espectador. Essa pode ser comparada à imprevisibilidade contida nas

pequenas peças de vidro que rolam dentro do caleidoscópio para formar uma imagem com o

propósito de surpreender o espectador e mantê-lo interessado na sua atuação. O ator faz o

possível para fugir ao óbvio, traçando nova geografia cênica, mais dinâmica, variada e

dirigida para o elemento surpresa: “Na função policial, Narciso criava às vezes a ilusão de

multiplicar os objetos à sua frente, mediante seguidas contrações de olhos. Parecia-lhe assim

reproduzir a realidade sob um ângulo disforme.” (PIÑON, 1997, p.240-241) Além da

imprevisibilidade, outros princípios deste “brinquedo filosófico” podem ser observados na

prática teatral, como: a ludicidade, a irreversibilidade e a expressividade, além da simbologia

da circularidade, já que as formas caleidoscópicas, as mais tradicionais, são produzidas num

campo de visão circular.

Pode-se pensar, ainda, que a natureza fragmentária, cromática, vibratória, expressiva e

até mesmo dramática das imagens caleidoscópicas, está presente no corpo do ator quando ele,

ao direcionar energias, delimita áreas corporais, criando uma trajetória gestual na busca de

significados, expressões, símbolos e conceitos que exprimam suas ideias e suas emoções.

A alternância das formas caleidoscópicas, proporcionadas pelo movimento giratório,

se compara às múltiplas possibilidades de construção de um corpo cênico. A sucessão de

movimentos e formas permite que ele, o ator, narre o enredo dramático do seu personagem.

Há ainda a possibilidade de entender a dramaturgia como um processo caleidoscópico quando

espelhada na sequência de acontecimentos inusitados. Tais associações abrem espaço a um

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modo particular e poético de entender os princípios que regem a arte e o processo criativo do

ator. Logo, as belas imagens do caleidoscópio podem ser vistas como estímulo à imaginação.

Considerando os romances, As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles e A doce canção

de Caetana, de Nélida Piñon como palcos, poderíamos pensar na diversidade de elementos

neles inseridos e no leque de contribuições que poderiam oferecer como pontos de apoio para

um estudo sobre as inter-relações entre a literatura e o teatro.

Não é por acaso que se atribui frequentemente, poder ao entretecimento de diferentes

áreas do conhecimento de mundos opostos ou espaços diversos. Não é também por acaso,

segundo Roland Barthes, que o teatro apresenta: “... sempre o homem como um segredo

violado, mantido prisioneiro entre três paredes e exposto à curiosidade do público por uma

espécie de desvelamento frontal, à maneira de um esconderijo arrombado.” (BARTHES,

2007, p.10)

No universo ficcional de Telles e Piñon as personagens também se manteem num

esconderijo arrombado, ora no palco, expostas ao público, ora resguardadas de uma análise

mais profunda por parte dos espectadores, numa espécie de proteção de sua imagem. Essas

articulações teóricas podem ser percebidas, por exemplo, em Lygia Fagundes Telles através

da sua protagonista em As horas nuas, Rosa Ambrósio, ao se desnudar quando é obrigada a

enfrentar os reveses da vida:

... mil vezes hei de descer aos infernos mas esteja enleada com demônios ou pairando nos ombros dos anjos quero ficar repetindo que acho a solidão repelente, [...] ... a solidão é insuportável nesta encrenca dos diabos que é a vida, o mundo. O homem precisa sim do outro porque mesmo atormentando e atormentado exige se olhar no espelho mais próximo que é a sua medida. (TELLES, 1999, p.198)

A solidão é inapelável e inerente ao ser humano. Rosa é atriz, profissão que exige o

estabelecimento de leis, códigos e normas, para, por meio da fala, expressar seu pensamento e

por meio da afirmação da sua linguagem constituir a representação: “Ah! Se a gente pudesse

se organizar com o equilíbrio das estrelas tão exatas nas suas constelações. Mas parece que a

graça está na meia-luz. Na ambiguidade. E até as estrelas, pobrezinhas, equilibradas mas

tremendo tanto na solidão.” (TELLES, 1999, p.13) Essa fala, carregada de forte apelo

emocional, reforça a ideia de obra aberta, na qual o texto funciona como matriz de várias

possibilidades.

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Porém, o que caracteriza a representação é o caráter ficcional, tempo e espaço são

ilusórios, se reportam a um instante, a uma “outra coisa”. Na ficção das escritoras aqui

estudadas, quase tudo nos remete ao imaginário. Vejamos o elemento imaginário em Caetana,

protagonista de A doce canção de Caetana, de Piñon: “- Não se precipitem. Só começarão a

atuar na hora de pisar no palco. A verdade é que não irão pronunciar uma única palavra.

Apenas mexer os lábios e contracenar comigo.” (PIÑON, 1997, p.359) A atriz dá as

coordenadas para o resto do elenco, colocando-se na posição da protagonista do espetáculo,

fazendo-os ver que ela será a responsável pelo bom andamento da cena. Quanto melhor for o

seu desempenho como Maria Callas, mais real a personagem será, reforçando a ficção,

consequentemente, a ilusão.

5.1 O que é o teatro?

“Representar é a vida da alma humana recebendo seu nascimento através da arte”. Richard Boleslavski

Para Maria Helena Kühner: “O teatro nasce com a tragédia. E mantém relação radical

e permanente com aquele olhar/ver da trajetória humana: espectador = aquele que olha;

espetáculo = algo para os olhos; te-atrium = lugar de ver; te = ver.” (KÜHNER, 1998, p.52)

O que faz o teatro? Traz a possibilidade do olhar de novo, traz a presença física do

ator, transformando a representação abstrata do conceito em uma re-apresentação. Conforme

salienta Kühner: “... coloca novamente o ser humano (personagens/público) diante de

imagens/situações concretas com as quais ele se confronta para se re-conhecer – re-

conhecimento que é a razão e momento último do fenômeno teatral.” (KÜHNER, 1998, p.52)

A expressão cênica, mais particularmente, o teatro, está ligada à institucionalização da

cultura, atribuída desde sua origem à Grécia, berço da cultura ocidental. O teatro grego,

identificado por Aristóteles dividiu o espaço teatral em duas partes: palco e plateia. Nesse

espaço se dá a representação baseada na convenção teatral. O objetivo do teatro é levar o

espectador, através da representação, à empatia com o que se está apresentando. Nas palavras

de Richard Boleslavski: “O teatro existe para mostrar coisas que não existem realmente.”

(BOLESLAVSKI, 2006, p.44)

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Os romances As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles e A doce canção de Caetana,

de Nélida Piñon, impregnados das características teatrais, nos guiam, pois, pelos caminhos do

faz-de-conta.

Caetana foi criada e educada pelo tio para o mundo da representação: “- Peguei você

praticamente nas águas do Nilo dentro de uma cestinha. Preferi eu mesmo educá-la que metê-

la nessas casas com telhado e paredes envenenadas. Não queria que aprendesse a bordar e

cozinhar. Acaso errei, menina?” (PIÑON, 1997, p.111) Com essa pergunta Vespasiano, além

da certeza da escolha no que diz respeito à sua opção de criação da sobrinha, obrigou-a,

segundo Piñon, a “imitar estátuas e treinar o riso”, introduzindo-a no mundo dos sonhos.

Introduzindo-a no mundo dos sonhos sim, mas não lhe permitindo brechas para fugir da

realidade. Para ele, só se é capaz de sonhar quando se é capaz de permanecer com os dois pés

firmemente no chão:

- Jamais seja indolente. Nem renuncie ao sonho, menina. É essa convicção que nos salva. Só com ela na cara pisa-se no palco. Às vezes, estamos no circo, que é a nossa miséria, às vezes, num palco de tábuas com ripas que furam as solas dos sapatos. Mas um dia você ainda vai parar no Teatro Municipal lá do Rio de Janeiro.” (PIÑON, 1997, p.111)

O tio nunca deixou que a menina desistisse do seu sonho como “re-conhecimento” de

toda uma vida de sacrifícios. Alimentou sua existência com sentimentos místicos e religiosos

que, por sua vez, alimentam o mundo do teatro.

Para o ator, o espectador o vê como seu “mito pessoal”, projetando nele suas fantasias

inconscientes e se sentindo re-ligado a ele por uma identificação projetiva. Essa era a meta de

Caetana, projetar-se em Trindade como um mito. Polidoro sabia qual o caminho para chegar

ao coração da mulher, teria que se valer das palavras certas para reconquistá-la e nada mais

apropriado do que enaltecer sua arte: “- Graças a vocês, Caetana, esses desgraçados

camponeses sabem o que é o teatro. Essa coisa mágica que já me fez chorar, quando eu queria

rir.” (PIÑON, 1997, p.182)

Mesmo conscientes das artimanhas do conquistador, podemos perceber através dessas

palavras, a imagem de um homem que, apesar de endurecido pelas contingências da vida,

vivendo a solidão da ausência de vinte anos da mulher amada, consciente da decadência física

e da certeza da morte, também um dia se emocionou diante do confronto com o que

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transcende ao sentido da existência, seja um sentido de natureza, de religião, de lei, de sonho

ou, simplesmente, de realidade, que é o sentido que emana do espetáculo teatral.

Portanto, nosso trabalho não poderia alcançar seu objetivo sem passar pelo estudo da

performance, mesmo tentando escapar de rótulos e definições.

5.2 Da representação para a atuação

A ideia postulada por Renato Cohen é de que:

É nessa estreita passagem da representação para a atuação, menos deliberada, com espaço para o improviso, para a espontaneidade, que caminha a live art 13, com as expressões happening14 e performance. É nesse limite tênue também que vida e arte se aproximam. À medida que se quebra com a representação, com a ficção, abre-se espaço para o imprevisto, e portanto para o vivo, pois a vida é sinônimo de imprevisto, de risco. (COHEN, 2007, p.97)

Como atriz do circo mambembe Caetana se sente apta a improvisar, para ela a vida e a

arte se fundem, não teme o imprevisto, não teme o risco de ser desmascarada pela farsa de

uma representação e nisso terá como testemunha Gioconda que: “Dentro em pouco, atuando

com Caetana, testemunharia a emoção da atriz em emprestar à Callas, cuja voz imergiria dos

discos tocados na vitrola do tio Vespasiano, os lábios de que a grega carecia para estar

suntuosamente presente no teatro Íris.” (PIÑON, 1997, p.372) Em sua performance, a atriz

vai acentuar o instante presente, o do momento da ação, vai representar Maria Callas na ópera

de Verdi como se fosse um ritual representativo do que estivesse acontecendo no tempo real.

Deseja que o público se torne mais do que apenas espectador, quer mais, quer que todos

comunguem com ela aquele momento sagrado, jamais partilharia da dúvida de Polidoro: “-

Você acha que convenceremos o público de que irá mesmo ver a ópera chamada La

Traviata?” (PIÑON, 1997, p.373)

13 Na live art: “Não se encara a atuação como profissão, mas como um palco de experiência ou de

tomada de consciência para utilização na vida. Nele não vai existir uma separação rígida entre arte e

vida”. (COHEN, 2007, p.104) É o que conceituamos como a arte do acontecimento, do espontâneo.

14 No sentido da expressão, como passagem para a performance, e não como rito puro, vivencial

(psicodrama).

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É importante realçar que a performance é uma expressão de grande esteticidade. Na

valorização do momento da atuação o performer tem que conviver com as ambivalências

tempo/espaço real x tempo/espaço ficcional. A performance tem características de show, de

espetáculo, e nisso é diferente do teatro. O performer precisa conduzir o ritual-espetáculo e

“segurar” o público. Cabem aqui as palavras de Boleslavski: “Não esmoreça. Lembre-se, este

é o trabalho fundamental do ator – ser capaz de “ser” aquilo que deseja ser, consciente e

exatamente.” (BOLESLAVSKI, 2006, p.45) Caetana, na ânsia de ser a grande diva da ópera,

imagina-se preparada para a tarefa de atriz, sente-se confiante de que saberá conduzir o

espetáculo e que dominará aquele público tão carente de arte como é o de Trindade. Embora

tenha consciência de que será necessário ter “jogo de cintura”, mesmo sabendo que aquela

atuação é semelhante aos espetáculos do circo a que estava habituada encenar.

Para Cohen: “O fato de o performer lidar muito com o “aqui-agora” e ter um contato

direto com o público faz com que o trabalho com energia ganhe grande significação.”

(COHEN, 2007, p.105) Energia é o que não faltava a Caetana, afinal ela estava jogando com

todas as suas cartas para a realização do seu grande sonho, o de ser Maria Callas, pelo menos

por um dia.

Entretanto, o resultado positivo dessa energia depende da capacidade de mobilização

do público para estabelecer um fluxo de contato com a artista - quanto mais energizado o

artista estiver pelo seu público, melhor ele transmitirá isso. Nesse caso, observa-se a

importância do feed back através das respostas e das possíveis alterações e das recepções da

plateia. Para Barthes: “O bom teatro só pode ser aquele em que é o próprio espectador que faz

o espetáculo.” (BARTHES, 2007, p.89) e “O grande ator não é aquele que salva os textos

ruins, mas aquele que os desmascara”. (BARTHES, 2007, p.91)

Logo, se numa representação o artista é recebido com vaias pelo seu público, embora

em muitos casos o artista possa se valer da improvisação para alterar o quadro, em outros, a

situação pode se tornar absolutamente caótica. Em A doce canção de Caetana, a voz autoral

prepara uma cilada para sua protagonista. Ao perceber que a música não estava sendo ouvida

pelo público, e que a plateia ria e vaiava a falsa encenação da estrela do espetáculo, a atriz se

desestrutura completamente, nem sequer aceita a mão amiga de Gioconda:

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Com um safanão Caetana desprendeu-se dela, como que ferida por uma verdade intolerável. E ouviu os assovios. O público afinal percebera a fraude. Caetana, em vez de cantar, tomara emprestada uma voz originada atrás do palco. A atriz contraiu-se. Era imperdoável o comportamento mesquinho dos amigos de Polidoro. Humilhada, saiu às pressas de cena, só não caindo do alto dos coturnos graças a Ernesto que, ...” (PIÑON, 1997, p.385-386)

E acrescenta: “- Não há de ser nada, Gioconda. Fui outra vez vencida. Só que agora

não tenho tio Vespasiano para me consolar, ...” (PIÑON, 1997, p.387) A essa constatação

soma-se outra, a de que tinha nascido sozinha e que sabia que morreria sozinha. Assim,

solitária e mortal se descobre como um ser trágico. Estava caracterizada a tragédia pessoal de

Caetana, todos os seus sonhos esvaiam-se catastroficamente. O seu público descobrira o jogo

de cena, sua imagem estava totalmente arruinada. Havia sido rompida a cadeia –

atriz/ópera/público.

5.3 A relação ternária

Performance é algo que precisa estar acontecendo num determinado tempo e num

determinado local. Para que isso aconteça se faz necessária uma tríade básica: atuante-texto-

público, sem a qual a performance não existe.

O atuante não precisa ser necessariamente um ser humano, o papel do atuante pode ser

desempenhado por um objeto, um boneco ou qualquer outra forma abstrata. O texto pode ser

entendido como um conjunto de signos que podem ser simbólicos (verbais), icônicos

(imagéticos) ou indiciais. E o público existe, fundamentalmente, para que a representação se

caracterize como arte.

Será, pois, a partir da relação ternária (atuante/texto/público) constitutiva da cena, que

examinaremos as características específicas da linguagem cênica. Tomemos primeiramente,

como uma das referências para essa análise, o espaço da cena - em A doce canção de Caetana

– o pequeno cinema de Trindade. Em seguida, pensando na definição de expressão cênica,

como algo que acontece nesse espaço, simultaneamente, chegamos à representação da ópera

La Traviata. E como falamos em espaço de cena, resta-nos associá-lo a um tempo, o tempo

real em que o fato está acontecendo. Logo, o tempo da encenação da ópera no pequeno

cinema Íris. Será nesse espaço que se dará a relação entre os dois pólos da expressão cênica –

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atuantes e público. Relações essas que se darão através do texto, pelo qual acontecerão as

transposições características da arte, isto é, passagens da vida para a representação, do real

para o imaginário e o simbólico, do consciente para o inconsciente. Nas relações atuantes e

público, no exemplo de que nos apropriamos, Nélida Piñon se vale dos atores do circo

mambembe e dos moradores de Trindade para, através da desconstrução do texto, transpor as

barreiras do imaginário:

- Faltam só dois dias, Caetana, e ainda não sabemos qual será o fundo musical de nossa história, reclamou, a vista atada ao peito escabroso da atriz. [...] – Não precisamos de partituras, retrucou com firmeza. – Porque não teremos orquestra, nem mesmo violão. Balinho será o responsável pela música. (PIÑON, 1997, p.359)

É nessa desconstrução que a representação galga posição de destaque, o imaginário e o

simbólico tomam proporções do real e o inconsciente desconhece os riscos da conscientização

da farsa. A encenação da ópera de Verdi, sem sequer um instrumento musical, nem mesmo

um violão, a representação do complexo texto de La Traviata apenas com mímica, nada mais

é do que um desatino. A probabilidade do fracasso é nítida. Mesmo numa cidade do interior

do Brasil, seria impossível enganar-se toda uma população. Ainda mais, sabendo-se que na

plateia encontravam-se os homens de D. Dodô, instruídos para usar dos recursos que fossem

necessários para destruir a rival da mulher mais rica da cidade, disposta a pagá-los muito bem

pelos serviços prestados.

A encenação teatral tem suas limitações. Segundo Renato Cohen, assim como o teatro

não pode competir com o cinema devido ao avanço da tecnologia, ou pelas limitações da

linguagem teatral em termos de possibilidades de “reproduzir” o real: “... na materialização da

cena, o teatro perde, em muitas ocasiões, para a literatura, que sempre ao caminhar sobre o

discurso da imaginação tem a possibilidade da obra aberta (na descrição do livro a fantasia é

do leitor; na cena uma das possibilidades já está delimitada).” (COHEN, 2007, p.119)

A relação simbólica com o objeto confere caráter de artificialidade aos signos teatrais.

Reconstruir a realidade é uma elaboração artificial. Isso também é o que podemos observar na

protagonista do romance As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles, Rosa Ambrósio:

Não tem importância, paro quando quiser, desintoxicação. Ginástica. Nem preciso de outra plástica, de novo no palco, aplausos. A glória. Amo a glória, sou um poço de vaidade mas digo que estou me lixando com essas futilidades, poso de artista

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solitária, me deixa em paz! Até que a vontade de luta me sacode e então saio desencadeada, de elmo aceso feito Joana D’Arc, tanta certeza de vitória, tanta coragem. (TELLES, 1999, p15)

Nesse fragmento, a teatralidade da cena funciona como manipulação do real. De um

lado temos uma realidade, a atriz bêbada, do outro, a manipulação do real, a cena da

personagem que aponta para uma certeza de autocontrole. Não precisa de ajuda exterior para

abandonar o vício da bebida, tem nas mãos as armas – ginástica/desintoxicação, e poderá usá-

las quando quiser. Registra-se também a artificialidade na reconstrução da realidade. Rosa

sabe que ama a glória, diz-se vaidosa, capaz de tudo para alimentar essa vaidade e se

contradiz, dizendo não dar importância a futilidades.

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5.4 O teatro livre: do happening à performance

Num espetáculo que acontece ao vivo, isto é, quando se dá a relação: atuante-público-

texto, podemos classificar o happening como uma forma de teatro, associada ao teatro livre,

apoiando-se no experimental, no anárquico.

Caetana, na ânsia de se transformar na grande diva da ópera, Maria Callas, interessa-se

mais pelo processo da apresentação de La Traviata, na farsa da encenação, apenas com o

ritual de mexer os lábios, enquanto o som seria propagado pela vitrola de tio Vespasiano, do

que pelo resultado estético final do espetáculo. Todo o elenco vai incursionar-se pelos

caminhos do risco, do experimento. Não haverá um processo de atuação estético-qualitativo, e

sim, um processo anárquico, cada um vai subir ao palco e fingir dar o seu recado; terão apenas

que mexer os lábios, não precisarão sequer entender o contexto do que estarão representando.

“Toda essa experimentação provoca ruptura na chamada convenção teatral, na medida

em que não existe uma preocupação com a encenação, nem com a representação.” (COHEN,

2007, p.133) O limite entre o real e o ficcional é muito tênue, de forma que a convenção que

sustenta a representação pode ser facilmente rompida.

Como abordamos neste estudo uma atuação performática que foge às características

normais das leis que regem o teatro, uma atuação que pretende ser uma ópera, mas

desconhece as exigências desse tipo de espetáculo (música, orquestra, canto), ou, que se passa

por peça teatral, mas ignora o texto falado, julgamos necessário situá-la, para maior

compreensão do gênero no qual se enquadra: modelo estético, ópera, happening, performance,

arte livre, show ou um espetáculo circense?

Estruturalmente falando happening e performance são originários da mesma raiz:

ambos são movimentos de contestação, se apóiam na live art, no acontecimento, em ambos, o

signo visual se sobrepõe à palavra.

Mas, apesar dessas duas expressões serem semelhantes em sua estrutura, elas

divergem numa série de características. Historicamente, a expressão happening é dos anos 60

e performance, dos anos 70, (até então, continuamos no mesmo impasse, a Traviata de

Caetana irá aos palcos exatamente nesta ocasião). E ainda, quando falamos desse tipo de

“teatro”, estaremos falando do teatro estético, comercial, convencional do século XX?

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Para compararmos as diferenças estruturais entre teatro, happening e performance

utilizaremos algumas generalizações, que não deverão, entretanto, serem confundidas com

regras.

No modelo estético de teatro o elemento principal é chamado ator, na arte livre:

happening e performance, denominado performer. No primeiro, o fio condutor do espetáculo

é a narrativa e no segundo, a colagem, o ritual. Na construção de uma peça teatral o modelo

estético é a personagem, enquanto que na arte livre cada indivíduo sente diversamente os

efeitos do que se passa no palco.

Quanto à técnica teatral, o modelo estético de teatro obedece à lógica de ação e

hierarquização, diferente, pois, de uma livre associação, de uma falta de determinação,

quando se usa livremente, objetos, espaço e tempo. A ênfase do teatro estético, na maioria das

vezes está direcionada para a dramaturgia ou a crítica social-política, enquanto que na arte

livre ela se dá pelo discurso poético. Também no que tange à forma de estruturação, no teatro

os artistas se juntam para a realização de uma determinada peça, mas cada um deles tem sua

carreira paralela. Já no caso da representação de um happening, esses artistas se juntam em

grupos, num trabalho de colaboração mútua. O local de apresentação de um espetáculo livre é

mais diversificado, vai além do espaço pré-determinado para esses fins, como os edifícios-

teatro, podem ser em museus, galerias, cinemas, etc. Também as temporadas caracterizam as

apresentações no teatro convencional, enquanto que no caso de um happening, a apresentação

é simplesmente um evento.

Partindo desses argumentos, podemos inferir que a Traviata de Caetana se enquadraria

no modelo da arte livre: as personagens são performers, representam livremente, cada qual a

sua função numa colagem de fragmentos pré-determinados pela atriz do circo mambembe,

numa livre associação de tempo e espaço, com ênfase no discurso poético da ópera de Verdi.

Os artistas são arrebanhados dos diversos lugares da cidade, nas mais diversas profissões,

(prostitutas, comerciantes, professores), sem ao menos terem noção dos papéis a

desempenhar, e, num gesto de colaboração, associam-se a Caetana com intuito de realizar

particularmente, o sonho da atriz, que embora decadente, povoa os pensamentos da maioria

dos homens da cidade. O local da apresentação, o velho cinema Íris, de Trindade, que nada

tinha de espaço adequado para a apresentação de uma ópera de grande porte - pelo contrário,

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era um espaço em ruínas. E finalmente, o tempo da apresentação - seria um único espetáculo,

apenas o suficiente para dar a Caetana a ilusão de que ela era Maria Callas, nem que fosse por

apenas um dia, numa utopia pessoal.

Levando em consideração o processo de atuação em que o performer trabalha suas

particularidades, a performance se aproxima da arte circense. Mais uma vez, aproximando os

conhecimentos artísticos de Caetana à realidade performática.

5.5 A improvisação como recurso teatral

Ao se falar em improvisação vem-nos à mente a ideia do informal, do arranjado sem

preparo prévio, do desorganizado, enfim, de um produto sem remate. Mas, em A doce canção

de Caetana, Nélida Piñon consegue transmitir ao seu leitor um duplo sentido para a

improvisação. Se de um lado, o que vai ser exibido no palco do cinema Íris, caracteriza uma

improvisação, com artistas despreparados e montagem arranjada às pressas, do outro, o

projeto da apresentação vem de longa data. Caetana arquitetou o plano de apresentar-se em

grande estilo quando retornasse à Trindade, ao longo de vinte anos.

Logo, podemos pensar que improvisação e teatro sejam duas coisas diferentes, e por

que não, às vezes, opostas. Entretanto, para não simplificar o conceito de teatro e estreitar o

da improvisação, já que ambos fazem parte de uma mesma realidade, deixemos que as

diferenças que existem entre eles determinem os limites da manifestação teatral, do mais ou

menos formal ao mais ou menos improvisado.

Partamos do princípio de que: “O espetáculo teatral se consubstancia em ato pela

conjugação em dado espaço, de três fatores principais – ator, texto e público.” (CHACRA,

2007, p13) Sem esses elementos a criação teatral não poderá existir.

5.5.1 Elementos da improvisação no teatro

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O teatro enquanto fenômeno artístico só será completo se houver alguém que faça

alguma coisa, alguém que assista e algo que os una. A esse algo se dará o nome de texto.

Consideremos, pois, o que vai suceder no palco e o efeito causado pela comunicação

da realização cênica, como produto final. Neste estudo teremos oportunidade de observar dois

caminhos diferentes: o primeiro vai tratar de uma encenação totalmente baseada na

improvisação. Ou seja, não passará pelos meandros do elaborado e do formalizado com

intenções de memorização, marcação de palco ou entonação vocal. É o tipo de teatro que

Nélida Piñon aborda em A doce canção de Caetana. O segundo, o das manifestações

decorrentes das criações artísticas que acontecem durante os ensaios para se chegar a uma

criação acabada. É o caso do teatro formalizado, do teatro tradicional, o teatro que Lygia

Fagundes Telles nos traz em As horas nuas:

- Há de ver que quem tinha razão era aquele diretor implicante, eu era muito jovem e inexperiente, foi meu segundo papel. Me lembro que fazia tantas caras encarnando a pobre Margarida que por mim o doutor Fausto não venderia ao Diabo nem um botão de colete, quanto mais a alma, Hem?!... (TELLES, 1999, p.30)

Nesse tipo de teatro, embora a personagem possa se sentir completa, acabada, do

ponto de vista da ficção literária, sua existência cênica só se realizará na hora da atuação,

depois dos ensaios. Só então ela deixará de ser mera escrita no papel para se transformar em

ato teatral. E isso vai implicar no confronto dinâmico entre o “eu real” e o “eu

representativo”, isto é, o ator de carne e osso, porém vestido da máscara teatral.

Rosa Ambrósio, agora experiente, constata que, naquela época, era uma atriz ainda

verde, faltava-lhe a certeza de que sua representação transmitiria como verdadeiro, aquilo que

era sabido falso. Mas, nem por isso queria que o seu “eu representativo” (ficcional) tomasse o

lugar do seu “eu real”, perdendo o controle de um sobre o outro. Julgava o diretor

“implicante”. Não poderia ter permitido que “o seu eu verdadeiro”, a sua personalidade fosse

dominada por outro: “- Eu sou magnífica. [...] – Rosa, Rosae. Essa sua vaidade é

inacreditável. Se você conseguisse pensar menos em si mesma, entende? Não pode ser bom

viver assim em estado de apoteose mental, fala tanto em Deus, já leu o Eclesiaste?”

(TELLES, 1999, p.29) Não se trata, no entanto, de “apoteose mental”, uma atriz sabe que

precisa ter controle sobre si mesma durante o ato de desempenhar determinado papel. Sabe,

também que, ao mesmo tempo em que, durante a cena, está revestida da máscara da

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personagem, precisa dominar o ato cênico, que é a mise-en-scène que sustenta qualquer prova

de fogo.

Cabem aqui as palavras de Sandra Chacra:

Configura-se aí a improvisação através de interpretações que tendem a variar (nuanças diferentes de entonação vocal, gesto, marcação, etc) de acordo com o dia-a-dia da vida pessoal do artista (suas reações emocionais, fisiológicas, situações particulares de vida, pressões externas, etc) (CHACRA, 2007, p.17)

A vida pessoal de Rosa Ambrósio é um emaranhado de emoções, a personagem vive

em eterno conflito entre os amores do marido e do amante, da filha e da arte. Em síntese, um

eterno conflito com a própria vida. Ora quer entregar-se ao vazio de sua existência, ora parece

querer reagir: “- Vou trabalhar, o palco, adoro o palco com os invejosos mordendo o rabo

feito escorpião, bem feito!” (TELLES, 1999, p.46) Suas reações são as mais inesperadas –

embora conheça as regras de sua profissão e saiba que o ensaio é fundamental para que uma

apresentação teatral se concretize como arte pré-elaborada, Rosa, na maioria das vezes, age

como se fosse o centro da humanidade.

Uma segunda característica que configura a improvisação é a comunicação do produto

final. Modificado o modelo no momento da apresentação, pelo ator, o impacto e a captação do

público também se darão de forma diversa. No teatro tradicional ficam claras as regras do

jogo: o ator faz e o espectador assiste. Isto é, o ator manipula as falas, os gestos, os espaços,

os objetos, as emoções, etc, numa preparação para acionar o jogo no palco: “A emoção é o

sopro de Deus insuflado num papel.” (BOLESLAVSKI, 2006, p.83) Manipuladora é a atitude

de Rosa Ambrósio. A atriz está sempre interpretando, mesmo em sua rotina doméstica

comporta-se como se estivesse no palco. Rahul é sua platéia preferida. O gato, na trama de

Telles é um narrador onisciente e como tal, pode ser considerado o coro do teatro, aquele que

atualiza a memória da personagem:

Subi no banco. Ela despiu-se e ficou nua diante do espelho. Já vi esse filme antes. [...] Fez caretas enquanto abria o armário espelhado. [...] Piscou para mim através do espelho. Está me namorando, Rahul? Não posso, querida, você mandou me castrar, respondi. Descansei o focinho no banco acetinado, ela poderia me poupar. Mas quem não poupa nem a si mesma não iria agora poupar um gato. [...] Aperto os olhos feridos. Quando volto a abri-los Rosona está posando de estátua diante do espelho coroado, os braços languidamente erguidos para prender os cabelos no alto da cabeça. Está sorrindo para a própria imagem que parece filtrar uma certa luz

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cálida, Sou o Outono, diria a imagem nua que se imortalizou no instante de perfeição. (TELLES, 1999, p.33-34)

Mesmo tendo-se em vista que, às vezes, a margem para a improvisação seja pequena,

sabe-se que o público interagirá com o espetáculo, o ator sabe que a energia da plateia é que

vai dar sentido a sua atuação. Rosa, nesses momentos, sabe que a presença de Rahul é o que

alimenta a sua arte e a sua vida. Dessa forma, configura-se a improvisação, mesmo no âmbito

familiar, o banheiro como palco e Rahul como plateia. Rosa responsável pela forma teatral,

Rahul co-participando da ocorrência cênica, tendo papel de relevo na edificação da obra.

A manutenção do modelo teatral só será viável se houver cumplicidade entre palco e

plateia. Cumplicidade esta gerada pela ilusão do teatro. Atriz (Rosa) e plateia (Rahul),

mantendo equilíbrio entre os limites do real e da ilusão, sustentados pelas convenções teatrais.

Rosa mantém o controle sobre a máscara que veste e Rahul acredita no que vê até certo ponto.

Assim, nesse jogo de dualidades – “eu representativo” e “eu real”, ações e reações propiciam

o produto final. Por mais passivo que possa parecer como espectador, Rahul realimenta a ação

teatral de Rosa.

O outro elemento da tríade básica do teatro é o texto. Pode-se analisá-lo de duas

formas: o dramático de base literária (a peça) e o teatral (conjunto de signos corporais)

gestuais plásticos ou musicais de um espetáculo. No primeiro podemos enquadrar as peças

que, provavelmente, Rosa Ambrósio tenha encenado ao longo de sua carreira, a peça fixada e

conservada através da escrita, aquela que pode ser congelada, enquanto escrita em um papel.

No segundo, a encenação de La Traviata que Caetana realizará em Trindade, o teatro

espetáculo, o teatro cujas características o enquadram no campo do efêmero.

Assim, quando uma peça se torna um ato teatral – palavra e gesto – ela adquire os

elementos do fenômeno artístico, apresentando configurações da improvisação. Isto, a partir

do momento que sofre a interferência dos atores. Por mais memorizado que esteja um texto,

cada vez que ele é repetido, é também factível de sofrer alterações. Nesse caso, o texto é

vulnerável a enriquecimento ou a empobrecimento, mesmo que seu significado permaneça o

mesmo.

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5.5.2 O eu-com-outro

O simples confronto de duas presenças físicas, por si só, já significa que, na medida

em que um faz uma leitura do outro, não só através das palavras como também dos gestos,

dos olhares ou do movimento, se constituiu uma relação entre eles. Assim, as relações

humanas do nosso dia-a-dia se assemelham às relações humanas no teatro. Porém no teatro

faz-se ainda necessária a presença de outro elemento preponderante para sua constituição – o

texto.

5.5.2.1 – O texto teatral

“Só as frases de lavra alheia tinham marca de verdade em seus lábios. Conciliavam-se

com a única realidade que conhecia. Jamais duvidar das emoções que os autores mortos

punham em sua boca. Era por essa fonte que a vida jorrava. Sob nenhum pretexto renunciaria

à arte.” (PIÑON, 1997, p.307-308) Contudo, mais do que não duvidar das emoções dos

autores ou simplesmente, confrontar duas presenças físicas para se acreditar na constituição

de um texto, deveríamos acrescentar: “O texto teatral pode ser entendido como um conjunto

de sinais, signos e símbolos – verbais e não-verbais – existentes durante um espetáculo.”

(CHACRA, 2007, p.56)

Poderíamos também entendê-lo como peça escrita para teatro. Mas, nos primórdios do

teatro ele não era uma representação literária do destino humano e sim, algo distinto da

literatura destinada ao palco, tratava-se de um jogo sagrado ou de um ritual lúdico. Embora a

base literária de um texto dramático e de outros tipos de textos como o romance e as novelas,

seja a mesma, num texto dramático teatral não encontramos literatura “pura”.15 Seu destino

não é o encontro com o leitor, mas sim, com o espectador. Sabe-se que aos meios de

15 Segundo Ingarden, a peça de teatro não é uma obra “puramente” literária, mas é, no entanto um

“caso limite” seu. Pode ser incluída nas obras literárias embora não nas “puramente” literárias (Roman

Ingardem, A obra de arte literária, p.353

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expressão cênica – palavras, música, mímica, etc, somam-se as reações do público. Mesmo

levando em consideração que uma obra dramática, se comparada aos outros gêneros literários,

não se limita a atingir leitor ou espectador, importa-nos o texto dramático de base literária ou

“peça de teatro”, como feita para ser encenada.

Ora, do ponto de vista da escritura, uma peça pode estar concluída assim que sai das

mãos do dramaturgo. Entretanto, ao ser lida, ela é reescrita na medida em que o texto é

interpretado por cada um que o lê. Numa peça teatral esse papel é exercido pelo público.

Logo, um mesmo texto pode ser recriado de vários modos diferentes. A diferença é que no

caso da peça teatral, ela só encontrará o sentido de sua existência, quando passar a funcionar

dentro da maquinaria complexa da vida teatral. Antes, os signos linguísticos, ou seja, as

palavras, estavam fechados nos domínios de um território individual. Só quando passam do

papel para a cena e diluem-se dentro da dinâmica do espetáculo é que vão constituir o que

chamamos “texto-teatral”.

Um texto teatral pode ser forjado dentro de um gabinete, na imaginação do autor,

assim servindo como ponto de partida para uma montagem, dada como referência para os

responsáveis pelo espetáculo, permitindo ou não maior abertura para a improvisação. Mas

sempre haverá algum texto, onde quer que haja uma representação.

Pode-se também pensar num teatro de circunstâncias provocado por truques e recursos

previamente arquitetados pelos atores. Eis o caso do espetáculo arquitetado por Caetana,

baseado no truque da vitrola de tio Vespasiano, que ao substituir orquestra e elenco de uma

grande ópera, proporcionará um campo de atuação para os diversos falsos atores de Trindade.

A improvisação, nesse caso, alarga seu campo de ação. Na medida em que o público

desconhece o roteiro a ser seguido, portanto, demonstra carência de uma vivência de palco,

sua co-participação poderá comprometer o bom andamento do espetáculo: “Nada é indiferente

no teatro, nem mesmo a própria indiferença.” (CHACRA, 2007, p.63)

Na esteira dessas palavras podemos inferir que o público quase sempre atuará como

coautor, não só se identificando ou comungando com os atores, como também se opondo com

indignação ao que lhe for apresentado. Daí, o final dramático e conflituoso da Traviata de

Caetana, com vaias e assovios numa manifestação de indignação. No Íris, a plateia não era

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indiferente, apesar de não ser considerada uma plateia culta, seus componentes exigiam um

espetáculo a altura de suas expectativas:

... o teatro popular é um teatro que confia no homem e entrega ao espectador o poder de ele próprio fazer o espetáculo; contrariamente ao que mentes muito facilmente embotadas podem pensar, o teatro popular é um teatro do homem adulto, ao passo que é o outro teatro, aquele em que o espectador é considerado ocioso, que permanece um teatro atrasado. (BARTHES, 2007, p.135)

Caetana e seus asseclas não contavam com tal reação. A linguagem verbal, reduzida à

linguagem gestual, adquiriu dimensões imensuráveis – gestos, expressões corporais e

mímicas, no lugar dos diálogos e do canto, praticamente, arruinaram a presença dos artistas

em cena. A estrutura literária da ópera La Traviata foi desformatizada não somente pela

ausência de um enredo escrito, mas também, foi reduzida a um jogo cujas regras, baseadas na

farsa, determinaram o fracasso do texto.

Caetana partira do princípio de que a vida poderia oferecer-lhe a chance de ser Maria

Callas por um dia. Porque não ser agente do seu próprio mundo? Representar a diva grega, ao

contrário de ser uma atriz qualquer, obrigada a representar um papel imposto por um

dramaturgo? Assim, seus delírios receberam corpo e se consubstanciaram no palco do

pequeno Íris. Através das técnicas e dos parcos recursos de que dispunha, ela deveria atuar

livremente. Na medida em que as coisas fossem ocorrendo, ela, espontaneamente, ajudaria a

fazer emergir de si o seu drama subjetivo, constituindo-se este, na medida em que fosse

representado pelo texto. E de onde vinha sua inspiração? Talvez de sua vivência pessoal,

talvez de suas fantasias, que poderiam ser consideradas roteiros, um texto a ser escrito durante

o ato da representação, cuja autoria ela própria assinaria.

Um jogo teatral pode também fazer nascer um texto através de uma linguagem

consciente, objetiva e comunicável no momento da representação.

Para Chacra: “Do mesmo modo que encontramos um caráter improvisional na obra

formalizada do teatro, encontramos um caráter formalizado no jogo improvisado.”

(CHACRA, 2007, p.66-67) Assim como, podemos dizer que o texto confere ao teatro, tanto

uma conotação de comunicação, como de autoexpressão. E é pela autoexpressão que Caetana

vislumbra sua chance de brilhar no palco. Na verdade, aquela apresentação poderia ser

considerada pela população de Trindade, sua volta triunfal, como grande atriz, coroada de

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glória e não a prostituta velha e decadente que nunca conseguira por os pés nos palcos do

Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Concluindo, o jogo dos gestos e mímica significaria um texto, que de certa forma se

entrelaçaria às emoções das personagens. Ao passo que a atuação fosse se tornando mais

intensa, o texto iria se enriquecendo, graças à própria excitação que o jogo estimularia nos

componentes do grupo, com objetivo de tirar do ostracismo, além de Caetana, as Três Graças,

que a partir daquele dia se considerariam atrizes, tendo o direito de pleitear posição e respeito

na sociedade local.

Assim, Caetana, como orientadora do grupo seria, de certa forma, uma coautora, não

só porque participaria da cena, mas também porque daria instruções, estimulando os

jogadores, assemelhando-se a uma psicodramatista no aquecimento de seus pacientes.

5.5.2.2 O ator

“- Não se esqueçam de que Caetana é a única artista nesta casa. Graças a ela pisamos

neste palco e posamos de atores. Gente como nós não povoa a cena sem o socorro dos

verdadeiros artistas. Sem eles não há espetáculo. E nada é mais desolador que um palco

vazio.” (PIÑON, 1997, p.307) Um ator vive em contínua representação e improvisação. Um

ator não se repete, mesmo que deseje, não possui uma marca indelével e fixa como a de uma

pintura ou literatura. Terá sempre algo de novo, de imprevisível. Vale-se da espontaneidade

como alimento básico de sua arte, a arte da flexibilidade, do imprevisto e das surpresas, mas

também a arte do controle e da adaptação.

Para um ator viver essa dualidade – ser ao mesmo tempo controlado e espontâneo é

fundamental que ele consiga se conduzir dentro dos padrões de comportamento mais ou

menos organizados.

Rosa Ambrósio, ao contrário desse tipo de ator, possui comportamento desordenado,

suas emoções são sempre resultantes de ações impulsivas, pertencem ao domínio do

patológico:

Acho que representei bem a dor de Ofélia mas quando saí do palco a dor continuou enterrada no meu peito até o cabo. As personagens insistindo, uma noite cheguei a

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me assustar, era Hamlet e não Diogo que me apareceu com aquele queixo duro, eu querendo o Arlequim de coração contente e me vem o Pierrô sinistro, as narinas abertas intuindo podridões. (TELLES, 1999, p.47)

Se considerarmos corpo, emoções e razão de um ator como instrumentos do seu

trabalho, não poderemos afastar a hipótese de que a espontaneidade criadora de Rosa

Ambrósio encontra-se em toda a dimensão de seu ser. E se somarmos espontaneidade com

função criadora veremos, ainda, que seu desempenho como atriz está mais vinculado à

emoção do que à razão. Essa característica, provavelmente, refletirá na improvisação como

elemento intrinsecamente ligado à criação do seu desempenho. Desse ponto de vista, seu

processo de criação advém, mais significativamente, do seu lado emocional do que do

racional.

Outro aspecto a ser observado dentro da dualidade que o ator precisa vivenciar dentro

de sua tarefa de representação é ser ele próprio, ao mesmo tempo em que é o outro (a

personagem); se comunicar com seus colegas de palco e, paralelamente, com o público:

A gente devia voltar a usar luvas, tão misteriosas as luvas. Luvas e máscaras. A máscara da serenidade, a máscara da alegria, a do desprezo e da indiferença, era só escolher, hoje vou usar esta. As luvas, a de renda preta ia até o cotovelo, tão transparente. A de cetim branco-pérola era longa e justa, do mesmo tecido do vestido. A de jérsei-turquesa eu usava com os brincos. (TELLES, 1999, p.54)

Luvas e máscaras, escudos que protegeriam a atriz da maldade alheia, preservando sua

integridade como ser humano. Como se a escondesse do mundo exterior ao mesmo tempo em

que permitisse que seu corpo se mostrasse inteiro diante do público. Em contra partida, o ator

é consciente de que, como personagem - figura concebida por um escritor - vai sofrer

influências dessa criação na medida em que se colocar como matriz de suas possíveis

condutas, tornando-se vulnerável ao fascínio daquele ser imaginário. É o caso de Caetana,

completamente fascinada por Violeta, personagem vivida por Maria Callas em La Traviata,

ídolo a quem a atriz sonha reviver:

- Vou ser prima-dona. Quero ser cantora de ópera, que é teatro cantado, caso não saiba. (PIÑON, 1997, p.163) - Serei a heroína. A própria Violeta! Há muito ambicionava o papel! Ninguém podia arrebatá-lo dela. Encarnava-o à perfeição, ainda que seu corpo contrariasse as medidas da mundana assaltada por um bacilo oriundo da orgia e do amor desenfreado. (PIÑON, 1997, p.359-360)

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Através desse fragmento do romance, Nélida Piñon parece justificar, de certa forma, a

escolha desta e não de outra ópera – La Traviata. Segundo Zito Baptista Filho esse título se

traduz como A transviada (assim representada em suas primeiras récitas brasileiras) o que

significa a mundana, a cortesã, aquela que transgrediu as normas da sociedade:

A personagem, retratada em folhetim em 1848 por Alexandre Dumas Filho, efetivamente existiu. Morrera no ano anterior, aos vinte e três anos de idade, tuberculosa, depois de uma biografia tumultuada de escandalosas aventuras cujo interesse público mais se acentuou pela proclamada beleza de Alphonsine Plessis, seu nome verdadeiro. (BAPTISTA FILHO, 1987, p.599)

Esclarece ainda o autor que essa mulher teria sido uma paixão de Dumas Filho, que

preferiu chamá-la Marguerite Gauthier, e apelidá-la “A dama das camélias”, por ter uma

beleza considerada como adorno dos salões de Paris. Na ópera, Marguerite passou a se

chamar Violetta Valery. Numa das cenas – Sempre libera – Violetta proclama que não se

deixará enredar pelas promessas do amor. Será sempre livre e não renunciará aos prazeres da

vida.

Também a Caetana, de Nélida Piñon não se deixa enredar pelas promessas de

Polidoro, também ela não renuncia aos prazeres do palco ou dos seus sonhos em troca de uma

vida estável e também era mulher de grande beleza, despertando paixões. Caetana era uma

cortesã, tinha transgredido as regras da sociedade, tornara-se amante do homem mais

importante da pequena Trindade, despertando a fúria de D. Dodô.

Assim, a personagem concebida por Piñon é definida por uma linguagem poética e

exerce grande atração sobre seu leitor. Ao apresentar-se como matriz das atitudes e condutas

de seu ídolo, vai também atrair o fascínio sobre si própria, pela identificação com o

imaginário. É então, a partir do momento em que se dá conta do texto pela primeira vez, que

está caracterizado o nascimento do ator. Inicia-se o processo da criação artística, trava-se a

luta entre a pessoa e a personagem. E, ao final da composição desejada, o ator, através de sua

interpretação, fará do seu papel um reflexo da sua personalidade. Ainda que a peça tenha sido

criada por outra pessoa (o dramaturgo), ainda que o modelo seja outro. Isto porque, seu

instrumento de trabalho – seu corpo, suas emoções e sua razão, refletem sua pessoa na da

personagem.

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Todavia, é importante que se ressalte que, mesmo vivendo intensamente um papel, a

ponto de fundir-se com ele, o ator não perde sua identidade. Ele terá sempre consciência de

que está representando, conservando a noção de realidade. Vejamos, pois, no universo

ficcional de Piñon, a descrição do momento dramático da representação de Caetana no palco

do cinema Íris:

Só sei que, de repente, apesar de Caetana mexer com os lábios, não se ouvia a voz da grega nem a orquestra. No início, Caetana não notou. Mas, quando se viu desacompanhada, pareceu não acreditar. Arregalou os olhos, esquecendo-se de fechar a boca. Os outros notando-lhe o estado, imobilizaram-se também. (PIÑON, 1997, p.385)

Isso significa que ao mesmo tempo em que se sabe o “outro”, o ator tem também

consciência de que é “ele mesmo”. É interessante observar que numa situação como a do

exemplo citado, há, de certa forma, a quebra da ilusão. O rompimento da “quarta” parede faz

com que a audiência passe a ver o ator numa dimensão maior do real, e não somente como

personagem. Ao mesmo tempo, o ator passa a ver o espectador de tal forma que se torna

impossível se esconder dele sob a máscara que veste.

Cabem aqui as palavras de Sandra Chacra: “... sendo o teatro uma “obra ao vivo”, ele

depende estritamente da figura humana, tanto daquela que se “transfigura”, como daquela que

assiste à transformação.” (CHACRA, 2007, p.76) Donde se conclui que toda metamorfose, ao

ser experimentada diante do público, exige flexibilidade do ator ao vestir e tirar a máscara.

5.5.2.3 O público

“A plateia, exclusivamente masculina, aplaudiu-a em cena aberta, forçando-a a inclinar-se”.

Nélida Piñon

Sua preocupação, antes de entregar a alma a Deus, era a filha. Queria que Caetana, que tinha esse nome ilustre por conta da casa dos duques de Alba, uma gente ligada ao sublime Goya, fosse atriz, como toda a família. Não se sabia de ninguém do sangue que fugira dessa fatalidade. Havia que prepará-la para a adversidade, sem por isso renunciar ao ofício. Ele falava do fracasso com a naturalidade com que se referia à glória. (PIÑON, 1997, p.164)

Com essas palavras tio Vespasiano explicava a Polidoro o que lhe coube fazer para

encaminhar a sobrinha no mundo do teatro. Cumprira sua missão. Caetana desde criança

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trouxera no mais íntimo do seu ser o desejo de se tornar uma grande atriz. Daí a necessidade

de partilhar com os outros seus momentos de glória. Uma necessidade de plateia, uma

dependência de quem viesse a assisti-la.

Se o prazer de representar pode ser considerado motivo de satisfação por parte do ator,

a presença de um público passa a ser um prerrequisito para a realização dessa satisfação, é o

público que dá sentido à existência do ator:

Ouvira sempre dizer que as máquinas valiam por sua utilidade imediata e pela capacidade de que muitas dispunham de encurtar o trajeto do raciocínio. Ela, porém, não pleiteava uma lógica elaborada, mas simplesmente a ilusão de que alguns cidadãos de Trindade lhe passassem um recibo de aprovação que equivaleria à própria glória. (PIÑON, 1997, p.282)

Somente unidos – ator e espectador – se constitui o que se chama teatro. Assim como

o ator vive da presença e da participação do público, também o público se alimenta do

imaginário que o ator cria através do seu desempenho. Um necessita do outro. Na esteira das

palavras de Sandra Chacra: “Um homem ao sair de sua casa para ir ao teatro, sai do seu

mundo habitual, ordinário, real, para entrar num mundo extraordinário e irreal. Há uma

necessidade nele de se evadir do seu cotidiano.” (CHACRA, 2007, p.85)

Entretanto, isso não significa que o mundo teatral é uma alucinação, trata-se de um

grupo de pessoas que, por livre e espontânea vontade, se deixam levar pela imaginação. É o

processo de comunicação que faz o teatro. Há também uma relação de troca entre ator e

espectador, num jogo em que o ator faz do seu desempenho um reflexo não somente de si

como também do público num duplo sentido: o do instante da comunicação estética e o do

reflexo de um momento histórico e social.

Cabe-nos registrar um fato interessante de ser observado na relação teatro e literatura.

No teatro, na grande maioria das vezes, o espectador assiste a uma peça somente uma vez, e

se, por ventura volta para revê-la, dificilmente a recaptura como da primeira vez que a

assistiu, isso dado à efemeridade do caráter da cena teatral. Já na literatura, um mesmo livro

pode ser relido nas mais diferentes fases da vida, que sempre haverá uma passagem

interessante para ser revivida. Há ainda o fato de que a reação de um leitor é individual,

enquanto que a da plateia é também coletiva.

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O teatro é, portanto, uma arte vibrátil e o público, co-partícipe da cena, realimenta-a,

de certa forma. Como já havíamos observado no romance de Piñon, quando a plateia não

contribui com entusiasmo com o espetáculo, ela pode descalcificá-lo. Quando a plateia do

cinema Íris começou a assoviar e a vaiar os atores, o espetáculo desmoronou imediatamente.

Nesse caso, os interpretes-criadores do evento são os mais sensíveis às reações do público. Eis

porque foi Caetana a maior vítima. A constatação da incapacidade de prever o curso dos

acontecimentos, de segurar seu destino pessoal com as próprias mãos, fez com que a atriz

fugisse do teatro, vendo como única alternativa, deixar Trindade, desta vez para sempre.

5.6 A literatura da cena

Ao tratarmos a literatura como a arte da palavra estamos, de certa forma, considerando

a semiologia como um aspecto da linguística que marca as artes do espetáculo como fatos

linguísticos16. Considerando, pois, a obra de arte como signo, Eric Buyssen, em seu livro Les

languages e le discours, publicado em 1943, diz que “a arte é pouco sêmica”, mas reserva-lhe

o papel de uma semia distinta, e assim, a literatura ganha um campo privilegiado na

semiologia.

Para o mestre genebrino, a combinação de fatos sêmicos, palavras, cantos, música,

mímica, cenário, iluminação, etc, somada às reações do público é um fenômeno sociológico:

“Em suma, é todo um mundo que se reúne e comunica durante algumas horas.” (BUYSSEN,

1943, p.56)

É na arte do espetáculo teatral que o signo mais se manifesta. Primeiramente, através

da palavra dita pelo ator, cuja significação linguística vai determinar os objetos, as pessoas e

os sentimentos que o autor quis evocar. Lembrando sempre que, conforme foi pronunciada

essa palavra, ela pode trazer diferentes significados. Ou então que, dependendo da mímica ou

16 Para Eric Buyssens é uma ciência de comunicação, o estudo dos “meios utilizados para influenciar outrem e, como tais, reconhecidos por aqueles que queremos influenciar” Para Buyssens, comunicação é um meio para “obter a colaboração dos outros” e o ponto de vista semiológico obriga-nos a voltar à função primordial das linguagens: agir sobre outrem. Assim, sua base da semiologia se revela funcionalista. (SANTAELLA, Lúcia e NÖTH, Winfried. Comunicação e semiótica. São Paulo: Hacker Editores, 2004. p.89).

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do gesto do ator, a palavra pode adquirir uma conotação especial. Pois se sabe que muita coisa

depende da atitude corporal do ator.

Há que se ressaltar ainda, que numa cena teatral, tudo pode ser considerado signo: “-

Como Caetana se recusa a descrever que ópera vamos montar, concebi vários ambientes. A

cama, a mesa, o salão, tudo misturado, servindo para qualquer situação artística.” (PIÑON,

1997, p.349) - Explicou Venieris querendo mostrar a Polidoro seus conhecimentos artísticos.

São, pois, cama, mesa e salão, signos visuais, de significação não linguística, que, junto dos

signos auditivos, a música que se ouvirá da vitrola de tio Vespasiano, enriquecerão o

espetáculo teatral.

Entretanto, os signos no teatro não aparecem em estado puro, eles são acompanhados

por outros significados. Por exemplo: a palavra vem seguida da entonação, a mímica dos

movimentos, as expressões cênicas dos cenários, dos vestuários, da iluminação, da

maquinaria, etc, completando-se, reforçando-se mutuamente ou se contradizendo.

Em A doce canção de Caetana, Nélida Piñon demonstra que a arte do espetáculo pode

ser abordada no campo da semiologia, quando, por exemplo, fala da iluminação:

O jogo de luz e sombra obtido nesta noite transtornou-lhe a imaginação. Pois ele, que sempre dependeu da transfusão alheia para vencer fronteiras, fruir de sons novos e de paisagens inesperadas, poderia agora realçar os olhos, a boca aflita, os seios opulentos de Caetana. Ou mesmo a pequena jarra de cristal, parte do cenário. Caetana proibiu que fizesse a luz incidir diretamente sobre o seu rosto. (PIÑON, 1997, p.365)

A autora parece nos propor, como medida conciliatória entre objetivos teóricos e

práticos, nos valermos da semiologia como um dos instrumentos para melhor analisarmos um

espetáculo teatral.

5.6.1 Principais sistemas de signos teatrais

A abordagem dos signos empregados no teatro nos leva à delimitação dos principais

sistemas de signos usados numa representação teatral:

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a) A palavra - Sob a acepção linguística trataremos da palavra pronunciada pelos

atores durante a representação, situando-a não só no nível semântico, como também,

fonológico, sintático e prosódico (ritmo ou métrica). Se tomarmos como exemplo a fonte

física da palavra e o sujeito falante, vamos verificar que nem sempre eles se fundem no teatro,

e que esta situação poderá trazer consequências semiológicas. Valendo-nos, como referência,

do teatro de marionetes, sabemos que quem fala é o artista invisível e não o boneco.

Entretanto, é pelos movimentos desta ou daquela marionete que se percebe qual delas está

representando naquele momento e esse movimento é possível por causa da ação do artista que

está invisível. Assim, o artista funciona como ponte entre a fonte da palavra e a personagem

falante. No romance A doce canção de Caetana, esse procedimento é imitado na

representação dramática da ópera por vários atores vivos. Enquanto as personagens se movem

dentro da cena, abrem e fecham a boca, as palavra e os sons são transmitidos mecanicamente,

através da vitrola de tio Vespasiano. Essa ruptura deliberada entre a voz e o sujeito falante é o

signo da personagem-marionete. A técnica usada por Caetana e sua troupe é expediente já

definido no teatro moderno, graças ao avanço da tecnologia, e nesse caso, desempenha o

papel semiológico de um narrador visível ou invisível.

b) O tom – o modo como a palavra é pronunciada também lhe dá valor

semiológico extra: “C’est le ton qui fait la chanson.” (KOWZAN, 2006, p.105) O tom,

instrumento de dicção do ator, compreende: entonação, ritmo, rapidez e intensidade, ou ainda,

os sotaques: “A voz, uma oitava acima, atraiu a atenção de Gioconda, ...” (PIÑON, 1997,

p.345)

c) A mímica facial – nesse item, expressão corporal ou signos corporais, se insere

toda a dinâmica da representação da ópera La Traviata, em A doce canção de Caetana.

Observemos a mímica facial:

No palco, como mudos, todos agitariam os lábios, simulando cantar. Balinho jurara que o efeito desse empréstimo seria perfeito e convincente. – Respondo pelo encaixe das vozes. Quando Caetana mexer os lábios, a voz de Callas sairá com a orquestra atrás, disse, sem medo de errar. (PIÑON, 1997, p.372)

Trata-se da mímica facial em função da emissão da voz e da articulação. Os signos

musculares do rosto podem substituir a palavra.

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d) O gesto – Depois da palavra, o gesto é talvez o meio mais expressivo na

transmissão dos pensamentos. Através dos diversos gestos do corpo: mão, braço, cabeça,

perna, etc, pode-se criar inúmeros signos: “Fazia uso do leque a guisa de um mundanismo que

trocara Paris pelo amor a Trindade.” (PIÑON, 1997, p.376) O leque, signo de distinção de

classe, a mundana dos grandes palcos de Paris que se apresenta em Trindade, pequena cidade

do interior, cuja população raramente tinha ocasião de assistir a um espetáculo teatral. Os

signos gestuais podem, também, acompanhar as palavras ou substituí-las quando, por

exemplo, suprimem um elemento do cenário: o movimento do braço para abrir uma porta

imaginária.

d) O movimento cênico do ator – os deslocamentos do ator e suas posições no

palco, do ponto de vista semiológico, podem prover-nos de diversos signos. Por exemplo:

signo das relações com a arte: “- Chegou minha hora! Caetana disse, enternecida, olhando o

homem.” (PIÑON, 1997, p.375), signo do desejo de se comunicar, não com ele, mas

diretamente com o público, sem dividir seu espaço com os outros atores: “Caetana, com

extrema naturalidade, deu um passo a frente para destacar-se do grupo”, “A platéia,

exclusivamente masculina, aplaudiu-a em cena aberta, forçando-a a inclinar-se.” (PIÑON,

1997, p.376); inclinar-se, signo de reverência e de agradecimento. Em síntese, tanto os atores

quanto a plateia podem criar signos especiais.

e) A maquilagem e o penteado – “Não havia outro jeito do artista inventar seu

próprio sonho senão por atos de bruxaria e malignidade.” (PIÑON, 1997, p.221) Ato de

bruxaria como uma maquilagem da qual o artista tem necessidade de se valer para enfrentar

seu público e sua vida. Assim como, a mímica pode também contribuir para construir a

fisionomia da personagem, criando signos móveis ou valorizando sua expressão: “- Fiz a

barba agora mesmo para ficar mais jovem. Antes de entrar em cena, espalho no rosto um

creme que vai me rejuvenescer alguns anos. Eu mesmo não me reconhecerei no espelho!”

(PIÑON, 1997, p.373), disse Ernesto, consciente da importância do papel de Alfredo, o

amante da heroína. O poder semiológico da barba bem feita encontra-se na função de

rejuvenescer a personagem, dando ao signo um caráter mais duradouro. A maquilagem, como

sistema de signos, tem uma inter-relação direta com a mímica do rosto, ligando-se, de certa

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forma, à máscara. Também o penteado faz parte do produto artesanal do teatro, da mesma

forma que a barba e o bigode, tanto como complementos fundamentais, quanto como

elementos autônomos. O penteado, assim como o acessório, pode demonstrar característica

marcante da personalidade de uma personagem:

Caetana ficou ao meu lado à cabeceira. Trazia o penteado enfeitado com tiara falsa, queria apresentar mais idade e riqueza. Talvez por isso, sob a coroa de sonhos e pedras reluzentes, pediu a palavra. - Em cima de mim ninguém vai montar para sempre. (PIÑON. 1997, p.165)

Desde menina, ela já se posicionava como mulher de forte personalidade, a quem

homem nenhum dominaria sob qualquer pretexto.

f) O vestuário –

De seu assento, Polidoro orgulhava-se de atrair a atenção. Observou a cortina que se abria, apresentando os atores. Com trajes coloridos, em atitude briosa, agitavam-se na tentativa de reproduzir, para a imaginação do público, muitos dos personagens da ópera que não estavam ali presentes. As roupas improvisadas farfalhavam a cada movimento desordenado. (PIÑON, 1997, p.376)

No teatro é o vestuário o meio mais convencional de exteriorizar ou definir o ser

humano. Além de marcar sexo, idade, classe social, profissão, etc, pode também significar a

situação material da personagem. Seu poder semiológico não se limita a definir aquele que o

veste, pode também ser signo do clima ou de uma época histórica. No entanto, convém

ressaltar que os signos do traje, como os da mímica, do penteado ou da maquilagem podem

funcionar ao avesso; a vestimenta pode servir para esconder o sexo, a posição social ou a

profissão. Aí se apoia, de certa forma, a questão do travestimento.

g) O acessório - “Caetana eclipsara-se no camarim. Enquanto discutiam, ela

levara consigo as roupas e as joias falsas.” (PIÑON, 1997, p.392) Acessórios que, de certa

maneira, aproximam o vestuário do cenário. Qualquer elemento do vestuário pode ser

considerado acessório desde que tenha algum papel na cena. Como por exemplo, as joias ou o

leque, elementos necessários para compor o visual de uma mulher que na ópera era

considerada mundana, a Violeta. Inúmeros objetos podem ser acessórios de uma peça teatral:

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Visto dali, o palco, com os móveis improvisados e os cenários de Venieris, ganhara beleza. Sobretudo por causa dos arranjos de flores trazidos da fazenda Suspiro, dispostos sobre a mesa em torno da qual iria borboletear a leviana Violeta em seu salão de Paris. (PIÑON, 1997, p.373)

Os móveis, o cenário e as flores são objetos encontrados no cotidiano, entretanto, são

signos artificiais que reportam a uma situação especial. É o caso das flores trazidas da fazenda

Suspiro, propriedade de D. Dodô, que para homenagear sua rival, confere ao acessório, um

valor semiológico ainda maior. Assim, um significado desencadeia-se no outro.

h) O cenário – dispositivo cênico, decoração ou cenografia são também

denominações dadas ao elemento cenário. Além desses, pode ser ainda, a marcação de uma

época histórica, das estações do ano ou outras variações que podem determinar uma ação no

espaço e no tempo. No cenário teatral, o campo semiológico pode ser equiparado ao das artes

plásticas: pintura, escultura, arquitetura, arte decorativa, etc. Os meios utilizados pelo

cenógrafo são vários:

- A partir de hoje você vai pintar um cenário com um teatro de tamanho natural. Vários painéis gigantescos que criem a ilusão de que existe um teatro de verdade em Trindade. Um teatro com porta de entrada opulenta. É por essa porta que vamos passar, tão logo os painéis sejam fixados à frente do velho Íris, que está fechado. (PIÑON, 1997, p.208)

Com essas palavras Polidoro acabava de encomendar a Venieris um teatro de mentira.

Ao grego caberia escolher os meios através dos quais executaria sua missão. E Venieris,

embora ainda sem entender exatamente o que queria Polidoro, precisava se enfronhar sobre os

detalhes daquele pedido esdrúxulo. Afinal era o artista, e como tal, tinha que estar a par do

desejo do amigo para satisfazê-lo a contento. Um cenário precisa de signos que identifiquem

uma época, ou mesmo o gosto pessoal de quem o encomenda. Para Kowzan: “O valor

semiológico do cenário não se esgota nos signos implicados em seus elementos. O movimento

dos cenários, a maneira de colocá-los ou de mudá-los podem trazer valores complementares

ou autônomos.” (KOWZAN, 2006, p.112) E para Polidoro, o grego teria como função dar aos

moradores de Trindade a ilusão de que assistiriam a um espetáculo num teatro verdadeiro;

cabia, pois, a Venieris, através de sua arte, fazer a transformação daquele espaço.

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i) A iluminação – a iluminação teatral foi introduzida na França a partir do século

XVII com o objetivo de valorizar os meios de expressão. Dado aos progressos das aplicações

da eletricidade e aos aperfeiçoamentos e mecanismos tecnológicos, esse artifício, do ponto de

vista semiológico, tem encontrado emprego cada vez mais amplo, tanto em espaços fechados,

como nos acontecimentos ao ar livre:

Virgílio sentiu-se magnânimo naquele sábado. Ao contrário do poeta Homero, cujo nome associava-se sempre ao seu e que dependia de uma lamparina acesa para divisar algumas sombras, ele estava encarregado das luzes do teatro Íris. [...] O jogo de luz e sombra obtido nesta noite transtornou-lhe a imaginação. [...] ... poderia agora realçar os olhos, a boca aflita, os seios opulentos de Caetana. Ou mesmo a pequena jarra de cristal, parte do cenário. (PIÑON, 1997, p.365)

A iluminação, nesse caso, pode tanto delimitar um lugar material, a pequena jarra,

como projetar, colocando em relevo, as características físicas do ator. Ela vai atribuir aos

signos: olhos, boca e seios da atriz, importância absoluta. A luz do projetor pode também

modelar determinadas características de acordo com a vontade da personagem: “– Para uma

artista como Caetana, basta iluminar a metade do rosto, orientou-o Príncipe Danilo, relutante

em tornar-se também vítima das transformações provocadas pelos jatos luminosos.” (PIÑON,

1997, p.365)

Assim, a imagem definida pela iluminação pode se manifestar também como papel

semiológico. Além disso, uma iluminação bem dirigida merece lugar especial na projeção do

mundo da fantasia: “Sem a luz correta no palco, não há fantasia, ninguém nos enxerga.

Tornamo-nos meros fantasmas.” (PIÑON, 1997, p.370)

j) A música – especialmente no que concerne à nossa pesquisa, a música é um

dos grandes domínios da arte, ela tem a função semiológica de valor indubitável, tornando-se

o ponto de partida do espetáculo e da fantasia que tio Vespasiano alimentou na sobrinha:

O desvelo amoroso da sobrinha me deu alento. Havia que agradecer um sentimento tão bem guardado e que veio à tona na hora da doença. Assim, emprestei-lhe a vitrola, de uso exclusivo para nossas apresentações. Queria que ouvisse sozinha suas árias favoritas no quarto, ou debaixo das estrelas sempre que acampávamos entre duas vilas, para não pagarmos pensão. (PIÑON, 1997, p.166)

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Esse empréstimo do objeto tão valioso tinha a conotação de prêmio pela felicidade que

a menina lhe proporcionava: “É minha herança, não se esqueça. Não tenho outra coisa para

deixar. Toda minha vida está nas músicas que nela ouvi.” (PIÑON, 1997, p.265)

Acrescentada ao espetáculo, a música em si vai sublinhar, ampliar e desenvolver as outras

nuanças não só da performance, como também dos mais íntimos aspectos da vida daquela

família circense. Na Traviata de Caetana a música, através dos discos e da velha vitrola, vai

substituir ou desmentir outros signos como, a orquestra, os músicos e os instrumentos. Soma-

se a esse fato, o de que a escolha da vitrola como instrumento, apresenta valor semiológico

que sugere o meio social e o ambiente em que vivem os componentes da troupe de Caetana.

Um grupo mambembe, por si só, já apontaria para a situação financeira de seus componentes,

a escassez de recursos materiais para a manutenção de uma orquestra, então, é óbvia. Dentre

as diversas funções da música, pensemos no tema da ópera La Traviata que acompanha a

entrada das personagens à cena, tornando-se o signo de cada uma delas. Há de se reservar um

lugar especial à música vocal, cujos signos estão ligados aos da palavra e da dicção. Afinal, é

através da voz de Maria Callas que Caetana planeja realizar seu grande sonho: “Tudo o que

sei é que a arte é uma bruxa que se instala na boca de um cantor ou de uma atriz, disse

Caetana afinal. [...] Às vezes penso se não vale a pena se trancar num convento no dia em que

a Callas parar de cantar.” (PIÑON, 1997, p.282) Portanto, para a atriz o canto é responsável

por tamanho encanto na vida, que chega a se confundir com a bruxaria e, assim como sua

existência não tem o menor significado sem ele, o espetáculo também perderia a razão de

existir sem a música.

k) O ruído – falando da categoria de efeitos sonoros num espetáculo teatral, não

poderíamos deixar de lado o ruído, que não pertence nem à palavra nem à música, mas que se

trata de um signo natural, já que numa cena teatral há todo um domínio dos ruídos - de passos,

rangidos de portas, sussurro do farfalhar das vestimentas, etc, os quais não se pode evitar. O

campo semiológico do ruído é, assim, muito vasto. Entretanto, neste estudo, cabe-nos apenas

chamar a atenção para os meios empregados com a intenção de se obter o ruído da voz

humana que vai permitir uma imitação. Comecemos pelo disco, veículo da obra verdadeira. O

ruído ou o som dele originário, ao ser imitado vai permitir o registro e a reconstituição do

trabalho real do criador, visando construir os signos no limite da música e da palavra. O texto

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da ópera de Verdi, La Traviata, registrado no disco e reproduzido pela vitrola de tio

Vespasiano em outro palco, pode ser assim, considerado uma espécie de balbucio,

caracterizado num estágio de ruído.

Concluímos, pois, após termos relacionado esses sistemas de signos que, o primeiro e

o segundo, a palavra e o tom, reportam-se ao texto pronunciado; a mímica facial, o gesto e o

movimento cênico do ator, podem ser classificados como expressão corporal; a maquilagem,

o penteado e o vestuário são mais direcionados à aparência exterior do ator; os acessórios, o

cenário e a iluminação, ao aspecto do espaço cênico e, finalmente, a música e o ruído, são

responsáveis pelos efeitos sonoros não articulados. Daí, observamos que a maioria dos grupos

sígnicos diz respeito ao ator.

Poderíamos também classificar esses grupos entre signos auditivos e visuais;

classificação essa que pode ser relacionada com o tempo e o espaço: os sinais auditivos com o

tempo e os visuais com o espaço, ressaltando, porém, que a mímica, o gesto, o movimento e a

iluminação podem funcionar no tempo e no espaço. Há ainda outro meio de se classificar os

signos segundo a percepção sensorial: os signos auditivos emitidos pelo ator, os visuais (no

ator) e os signos visuais e auditivos (fora do ator).

Não poderíamos encerrar o estudo dos signos teatrais sem nos referirmos ao sujeito da

volição, isto é, aquele que cria o signo por sua vontade, a partir do princípio de que todo signo

artificial se remete a uma criação voluntária. E nessa abordagem, incluir Caetana como

senhora toda-poderosa do espetáculo, criando ou suprimindo signos, fazendo modificações ou

acréscimos a seu bel prazer – na mímica, no gesto, nos movimentos cênicos, interferindo no

vestuário, na iluminação, etc. Enfim, criando signos da música e da interpretação das

personagens.

5.7 Entre a verdade e a mentira

Seguindo, pois, o percurso dos mundos possíveis, onde se encontram os opostos,

chegaremos aos mundos da verdade e da mentira. Aí temos as personagens de Lygia

Fagundes Telles e Nélida Piñon, nos romances escolhidos para estudo. Porém, o que nos

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chama a atenção nessas obras não são propriamente, as personagens, o que nos causa

inquietação é o modo pitoresco como nas criações dessas escritoras, a verdade e a mentira

convivem harmoniosamente, levando seus leitores pelos meandros de seus respectivos textos.

Em Lygia Fagundes Telles, por exemplo, que um gato fale, que um homem se

transforme em cavalo, é normal. Mas, que uma pessoa de inteligência mediana, com deveres

sociais, políticos e religiosos, se deixe convencer por isso, deveria ser preocupante.

Em Nélida Piñon também, pode ser considerado normal o fato de uma ópera de Verdi

ser encenada por artistas do circo mambembe, mas acreditar que essa ópera possa ser

totalmente representada por mímica, que a música, mola mestra do espetáculo, será

transmitida apenas por uma velha vitrola, e, ainda assim, que esse espetáculo fará sucesso,

extrapola a lógica. Mas, Piñon sabe que a palavra, às vezes, pode ser insuficiente para dar

conta da realidade, assim, se vale da malícia para mascarar essa palavra, revelando sua trama,

através da mentira, assegurando o poder da narrativa.

Através das palavras de Danilo, a mentira vai garantir a Caetana o prestígio que,

segundo ele, ela é merecedora:

- O diretor enfeitou o camarim de Caetana com tantas flores que ela começou a espirrar. [...] ... levou as flores para o saguão de entrada do teatro a fim de serem entregues às senhoras que entravam de trajes longos, o pescoço ligeiramente inclinado sob o peso de colares e brincos de safiras, esmeraldas e brilhantes. (PIÑON, 1997, p.127)

Mas isso só é possível porque a linguagem, por natureza, é enganadora. Visto que as

palavras são enganadoras, Nélida Piñon recorre a elas, enfatizando com excessos verbais o

discurso de Danilo para deixar transparecer uma história tão fantástica, que mesmo mascarada

pelos recursos linguísticos, poderia servir para garantir à amiga, as honras e glórias que ela

viera buscar em Trindade.

Semelhante procedimento é adotado por Lygia Fagundes Telles: “Outra boa pergunta,

dizem os políticos hipócritas que não fazem outra coisa do que mentir nas respostas, odeio

mentirosos. E minto mesmo sem proveito, só não minto mais porque a mentira exige piruetas

e estou exausta. Esvaída, Acho que me cansava menos quando representava.” (TELLES,

1999, p.107)

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Os discursos mentem, ou às vezes não dizem o suficiente. Prova disso é o que Rosa

acaba de dizer, odeia os mentirosos, mas mente, mesmo sabendo que sua mentira é percebida

por todos que a rodeiam. E sabe que mente tanto dentro quanto fora do palco. Telles vale-se

de uma linguagem artificiosa, enganadora que certamente, induzirá seu leitor a acreditar na

personagem: “Empolgantes as infiltrações sentimentalóides nos discursos.” (TELLES, 1999,

p.98)

Encontramos ao longo do romance As horas nuas, a oposição entre a verdade e a

mentira. Rosa Ambrósio, em grande parte da narrativa, ou está alcoolizada ou está deprimida,

raramente se mostra lúcida e livre dessas características. Em todas as instâncias do enunciado

está se desculpando pelo modo como se comporta ou se comportou pela vida a fora, e mesmo

quando assume a verdade é para dar alguma prova de sua instabilidade emocional: “... quero o

escuro [...] eu queria ficar assim quietinha com a minha garrafa, ô! delícia beber sem

testemunhas, algodoada no chão feito o astronauta no espaço, a nave desligada, tudo

desligado. Invisível. [...] A atriz Rosa Ambrósio é carregada para fora do avião

completamente embriagada.” (TELLES, 1999, p.9) Ou fala com propósito de mentir, para

esconder seu fracasso ou pede desculpas por não ter sido capaz de se comportar como devia:

“Onde é que eu falhei, meu Pai! [...] Mea culpa. Mea culpa.” (TELLES, 1999, p.51-52) E

assim, Lygia Fagundes Telles celebra a força da palavra através da sua narrativa.

É interessante observar que dentro das peculiaridades do gênero verdade-mentira,

tanto Telles quanto Piñon apresenta considerável pluralidade de estilos e variedades de vozes,

admitindo a fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico. As vozes, as linguagens e os

estilos que transitam pelos romances As horas nuas e A doce canção de Caetana, compõem

um sistema literário que orquestram as intenções das autoras. Cada uma delas legando a seus

textos um sentido especial, uma história, uma representação que permite a presença do

fenômeno da intertextualidade. Observa-se ainda que, através da linguagem cultural, desde as

oscilações dos registros linguísticos até as referências musicais e teatrais, as escritoras tornam

seus textos objetos dessa intertextualidade. Valores de época, problematizações políticas e

sociais, diversão, teatro e ópera, são entretecidos nesses romances com originalidade.

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6 CONCLUSÃO

Neste trabalho, pretendeu-se, primeiramente, mostrar aspectos significativos por nós

percebidos quando da leitura do universo ficcional de Lygia Fagundes Telles, em As horas

nuas e de Nélida Piñon, em A doce canção de Caetana. Também, retomar aspectos já

desenvolvidos por outros estudiosos, mas que ainda assim, permaneceram instigantes e

abertos a outras possibilidades de interpretação.

Desse modo pensamos ter trazido para discussão, elementos que, de maneiras

variadas, possam contribuir para ampliar nossa visão sobre as mesmas. Acreditamos ter

demonstrado como a contribuição dessas escritoras à literatura traduz-se, principalmente, pela

habilidade com que suas escritas lidam com as palavras, fazendo de cada um de seus textos,

uma nova presença no mundo de seus leitores.

Para tanto, foi realizada no primeiro capítulo, uma breve exposição dos percursos das

autoras, num estudo das suas biografias e biobibliografias.

Observa-se, pois, no caso das duas escritoras, Lygia Fagundes Telles em seu Porão e

sobrado e Nélida Piñon em Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, que um escritor não precisa,

necessariamente, nascer pronto – sua literatura pode amadurecer com ele ao longo de sua

existência. Entretanto, o autor pode se considerar pronto quando concebe uma obra e a ela

dedica sua vida. Assim, Lygia e Nélida podem, certamente, se inserir nessa categoria, pois, de

grandes personagens da literatura, são também, grandes criadoras de personagens. Ambas

reiteram sempre, em periódicos, conferências ou entrevistas a grande paixão que sentem pela

literatura e que invenção e memória têm limites tão tênues que acabam por se constituir em

uma só coisa. Para Lygia: “...estou convencida de que memória é invenção.” (TELLES, 1998,

p.30), para Nélida: “Não há invenção sem memória. E graças à memória ingressa-se no

domínio da invenção.” (PIÑON, 1997, p.89)

Outro fato notável da obra das duas escritoras é que o foco de análise mais profundo e

intenso está sempre nas personagens femininas. As personagens masculinas criadas pelas

autoras em questão são, geralmente, representantes simbólicos de funções sociais ou de poder,

riqueza ou status, não possuindo contornos tão marcantes como as femininas.

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Resta-nos, pois, como leitores agradecê-las pela generosidade de expor a nós seus

admiráveis textos, e, através de suas obras, possibilitarem-nos um novo mundo de

significações enriquecido pela grandeza de sua criatividade.

No segundo momento, ocupamo-nos do estudo da memória e do tempo: da memória,

pelo desejo de buscar o que já se perdeu pela lembrança; do tempo, pela constatação de que a

memória precisa de datas. Segundo Alfredo Bosi: “Datas são pontos de luz sem os quais a

densidade acumulada dos eventos pelos séculos dos séculos causaria um tal negrume que seria

impossível sequer vislumbrar no opaco dos tempos os vultos das personagens e as órbitas

desenhadas pelas suas ações.” (BOSI, 1992, p.19)

No terceiro capítulo, demos continuidade ao nosso trabalho, traçando um panorama

sobre o espetáculo da ilusão: falamos sobre o papel das ilusões na gênese das opiniões e das

crenças das personagens de que seria possível refazer a própria história, assim como, a da

humanidade. É imprescindível tomarmos consciência de que a ilusão, nos romances aqui

estudados, envolve suas personagens desde a infância até a morte. De que elas sempre

viveram desejando a ilusão do amor, da glória e da juventude, no sonho de que isso

aformosearia a estrada de seus destinos na condição humana.

No quarto capítulo debruçamo-nos, finalmente, sobre o estudo dos mundos possíveis:

aqueles objetivamente presentes, quando as personagens conseguem lidar com a realidade, e,

dos mundos transformados, quando lidam com a imaginação, os sonhos e a ilusão, incluindo

nesse último, o mundo performático do espaço teatral.

Para chegarmos às conclusões apresentadas neste estudo, foi fundamental

estabelecermos conexões entre nossa leitura analítica e pessoal do texto e as reflexões

suscitadas pelas consultas aos diversos autores citados ao longo do mesmo.

Naturalmente existem muitos aprimoramentos a serem desenvolvidos em estudos

futuros. Gostaríamos, assim, que esta tese também pudesse se transformar em fonte de

informações, finalizando com as palavras de Paulo Leminski:

Toda fonte é uma moça bonita que foi amada por um deus, que disse não a um rio, que fugiu de um sátiro, nada é real, nada é apenas isso, tudo é transformação, todo traçado de constelação é o pedaço de um esboço de um drama terrestre, tudo vibra de tanto significar. (LEMINSKI, 1994, p.21)

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Logo, que o significado deste trabalho possa trazer vibrações positivas para o universo

dos que, possivelmente, poderão nos seguir na busca incansável do saber.

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ANEXOS

ANEXO A

ENTREVISTA COM NÉLIDA PIÑON – ÀS 16:00 HS. DO DIA 06/05/2010

NO PETIT TRIANON – ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

RIO DE JANEIRO

1ª- M Inês: Em que época da sua vida você descobriu que queria ser escritora e o que mais a

influenciou?

Nélida: Você sabe que eu explico isso muito no “Coração andarilho”. Você leu. Eu acho,

evidentemente, por mais que eu puxe uma precisão, eu acumulo pressões, reflexos que a

minha memória vai percebendo. A sensação que eu tenho é que desde muito cedo, sei lá, sete

ou oito anos, eu queria ser escritora porque eu era apaixonada pela literatura. Pelos livros. Eu

imaginava que o livro fosse um produto da imaginação humana, da imaginação daquele

escritor que vivera cada face após escrever. Então, eu queria, evidentemente, viver as

aventuras.

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Até hoje eu acho que o que mais me perturba na vida é ser uma aventureira. Uma vez, me

perguntaram numa entrevista para um jornal, essas brincadeirinhas, “O que você gostaria de

ser e em que período viver?” Eu respondi: Por exemplo, de ter sido uma aventureira capaz de

ter feito uma peregrinação até Jerusalém. Mas não com fins teológicos, religiosos, apenas para

poder viver as aventuras a cada instante. Eu tenho um lado de aventureira. É o que eu

gostaria. De ser aventureira. E imaginava que a literatura me daria essa abertura

extraordinária. Tanto que, me lembro bem, eu achava que devia ser a maior maravilha do

mundo poder jamais dormir uma segunda noite no mesmo lugar. É uma frase que eu digo

muito. É uma verdade que eu sempre repito. Eu era muito feliz em casa. Eu não tinha um lar

desfeito, tinha pais suaves e carinhosos, mas é que eu gostava da vida lá fora. Eu nunca me

deixei prender a nada profundamente. Tem um certo limite, é claro. Mas a regras

institucionais, normativas, nunca quis. Eu não poderia corresponder, dado a esse afã da

aventura que a literatura de criação esteve associada, a essa inclinação, a esse desejo de

peregrinar pelo mundo. A literatura para mim é isso, uma grande peregrinação também, pela

geografia, pelas almas, pelos mistérios pelos quais nós nos comandamos, sem jamais dar-nos

uma solução. É difícil que nós nos esclareçamos, o mistério é talvez o que mais nos define.

Somos criadores de mistérios e herdeiros dos mistérios que os demais criaram.

2ª- M. Inês: É difícil ser escritora no Brasil?

Nélida: Dificílimo. É muito fácil se você tem sonhos ou se você confunde seus sonhos com as

vaidades. Aí, eu acho perigosíssimo. Porque você nunca vai receber o que você pensa

merecer. Há mágoas, ressentimentos que também se misturam à criação. Também, é como se

maculasse a própria criação. Eu acho que é muito difícil, mas sempre desejei ser escritora,

jurei que persistiria. E não desisti, nunca desisti. Foi a melhor coisa que fiz na minha vida.

Porque eu acho que a literatura é sorte. A literatura para mim foi um prêmio. Eu digo sempre

que a literatura me deu tudo, ela não me deve nada.

3ª- M. Inês: Como você tem se relacionado com a crítica brasileira?

Nélida: Olha, a crítica oscila muito. Ora, há críticas que são sérias, muito justiceiras, no

melhor sentido, ora, há críticas que parece que desejam lhe devorar, desejam cancelar sua

existência. Eu sofri críticas, sobretudo no início da minha carreira, tremendas, quase que

implacáveis. Não querendo atingir a minha obra, mas o que eu representava como escritora.

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Mas eu resisti muito bem, já respondi. Nunca polemizei. Porque eu achava, primeiro, que tudo

passa, o que você leu hoje não vai ler amanhã, já passou o texto. Depois, o que vale é a obra.

O que vale é a sua persistência, a sua coragem de sobreviver, a sua dignidade. Se querem

macular você, se querem detonar você, paciência. O importante é que você não se detone.

4ª – M. Inês: Você acha que a crítica constrói?

Nélida: Algumas podem ser construtivas, mas como eu sofri também com esses valores, me

habituei a ficar com o que ela pode oferecer de melhor para mim. Entretanto, eu acho que a

maior crítica que eu tenho sou eu. Eu acho. Eu é que sou a mais severa. Ninguém é tão severo

comigo.

5ª – M. Inês: Você é uma mulher de sucesso. Já foi laureada várias vezes. Até que ponto isso

interfere na sua vida pessoal?

Nélida: Interfere no sentido de que meu tempo é muito menor, é reduzido. Hoje em dia sou

uma mulher que tem, realmente, uma vida profissional proposta intensíssima, tenho duas

secretárias, e uma série de coisas que não tinha antes. Então, tudo isso interfere no seu

cotidiano, mas não interfere na minha paixão pela literatura, na minha disponibilidade

humana. Eu sinto, sinceramente, que esses eventuais elementos benfazejos não afetaram meu

espírito, minha maneira de ser, absolutamente. Eu sempre fui, não só vigilante, como minha

mãe era uma mulher que vigiava muito. Tenho a impressão que se eu tivesse um gesto que ela

interpretasse como certa vaidade, certa arrogância, ela me decepava. Ela cortava o gesto.

Você entendeu? Eu tenho uma inclinação de me comunicar com todo mundo. Ontem, por

exemplo, só para lhe dar uma idéia, fui ao apartamento de uma grande amiga que faleceu, Só

fui lá três vezes depois da morte dela. Sempre vou com uma ex-funcionária dela, coisa que eu

adoro. Olha, ela é uma mulher simples, adoro conversar com ela, uma mulher fantástica.

Gosto mais de conversar com pessoas assim, que têm experiência de idade, do que com

aqueles que esbanjam erudição, mas que não alimentam meu espírito, o meu humanismo, o

meu interesse pelo outro, pelo que o outro tem de mais profundo. A casca não interessa.

Então, tenho me preservado bem. E acho que a essa altura da minha vida, não vou mudar. Se

eu consegui passar incólume por tudo isso, não é agora que vou mudar, Graças a Deus,

imagina!

6ª – M. Inês: Você tem algum projeto em vista de realização? Alguma coisa iniciada?

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Nélida: Tenho. Eu tenho quatro livros iniciados e bem adiantados. E tenho projetos, mas é

engraçado, eu não estimulo muito esses projetos. Pelo seguinte: eu estou num momento da

minha vida, que de repente, eu posso ir embora. Mas não quer dizer que eu estou pensando

em morrer, nem estou pensando, nem desejando. Mas, não tenho mais, há muitos anos, isso

de: vou fazer isso, vou fazer aquilo. Eu acho que a vida é tão inesperada, ela me surpreende

tanto! De repente você toma um rumo contrário ao que você pensava tomar há três anos atrás.

A minha vida é muito surpreendente em termo de pessoas, de amores, de tudo. Então, essa

disponibilidade para a vida é enriquecedora para mim. Agora, o que eu sei, sim, é que nada na

minha vida é mais importante do que a literatura. E quando eu digo isso, alguém pode dizer:

“E os seres humanos?” É que os seres humanos estão na literatura. Ela não alija nada nem a

ninguém. A literatura para mim é uma benção. Ela me ensinou tanto, sabe? Eu cresço na

medida em que escrevo. Cresço como ser humano. A literatura é o meu território profano e

sagrado.

7ª – M. Inês: Em qual modalidade literária você se sente mais à vontade: romance, contos,

crônicas?

Nélida: Engraçado, eu sempre tive paixão pelo mundo narrativo. É, realmente, a minha

grande tentação. Mas, cada vez mais, eu gosto de pensar. Eu sou uma pensadora. Gosto de

pensar. Não com a ideia de fazer uma obra filosófica, mas, na ideia de como eu consiga

pensar. Para mim, escrever sobre o meu pensamento, ou pensar é estar presente. É como você

descascar pele por pele, camadas e camadas, onde você vai visitar a primeira cidade de Tróia,

das sete ou oito camadas, até, então, àquela que estava soterrada. Eu acho absolutamente

fascinante. Eu adoro pensar. Por exemplo: Aprendiz de Homero é um livro de pensamento,

Até amanhã outra vez e O pão de cada dia, também. Eu estou fazendo um livro, está

praticamente pronto, só estou vendo as formas, as sequências. Tem mais de trezentas páginas.

É só de pensamentos. Eu gosto da narrativa, das histórias, do que relata, o que é a história do

homem ao longo dos séculos. Por isso eu gosto muito da “HISTÓRIA” com “H”. E também, a

arte de pensar, o que provém da arte de pensar. Às vezes, nas minhas palestras, nas que dou

de improviso, eu começo a falar assim: “Estou pensando, pensando”. Os meus amigos

detestam que eu fale o que vem em minha boca, ocasionalmente. Mas acho que falo como se

já estivesse tudo pronto. Engraçado. Há anos que venho pensando. Talvez minha mãe seja a

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responsável. Eu era muito pequenininha (eu contei isso no Coração andarilho), um dia, ela

chegou para mim e disse:

- Você é muito inteligente. (Eu fiquei toda orgulhosa).

- Mas... (Quando ela disse: “mas”... pensei: pronto, alguma coisa não está bem).

- Mas... você fala mal. (Eu fiquei tão chocada, porque eu não sabia o que era falar mal).

- Que é minha mãe?

- Falar bem é deixar que os outros vejam que o que você falou é o que você pensou.

Para mim, isso foi um dos maiores acertos da minha vida. Era possível alguém falar bem Não

para expor uma vaidade, mas para expressar o que, eventualmente, teria que dizer. Aí estava

toda minha proteção, minha guarda, mas eu privava os demais do que eu estava pensando.

Não que tenha medo de me arriscar. Eu até acho que quando falo para o público, sou muito

mais sincera do que quando falo com os amigos. Não que não esteja sendo sincera. É que com

os amigos não tenho tanto interesse de me explicar. (Risos). Os amigos têm que saber como

que eu sou. Já para o público, eu me sinto tão à vontade. Sou capaz de fazer confidências

perigosas. (Risos). Aliás, os amigos, eu não gosto que me façam perguntas, tenho horror, não

gosto. Sou uma mulher muito reservada. Sempre fui assim. Era uma característica da minha

família. Uma família galega e todos muito cerimoniosos.

8ª – M. Inês: Você acha que existe preconceito no Brasil com relação ao memorialismo? Ou

que o memorialismo pode ser visto como literatura menor?

Nélida: Não sei... Bom, não temos é tradição. Isso não temos. Há países que, por exemplo,

têm a vocação para o memorialismo, outros para a biografia. Os ingleses são grandes

biógrafos. Os franceses têm agora, a história das mentalidades. Há países que estão voltados

para a poesia, outros são mais narrativos. Não penso que tenhamos uma grande trajetória

memorialística, mas, não penso que tenhamos, vamos dizer, preconceito. Não saberia lhe

dizer. Quanto ao memorialismo como literatura menor, eu não pensaria nisso também não.

Mas, talvez, depois dessa sua informação, pode ser que eu reflita melhor sobre isso. O que eu

acho, sim, é que aqui tem preconceito contra a mulher. Contra o trabalho feito pela mulher.

(Você acha?) Ah tem!!! Os homens têm, e fingem ter, e acentuam esse preconceito para não

aceitar a sua existência, porque, se eles começam a ver você, eles são obrigados a aceitar e se

confrontam com o seu talento. E também, não têm o menor interesse pelo mundo das

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mulheres. Como se a literatura de mulher só abrangesse temas confinados, só mulher, não

fosse um painel social como o de qualquer narrador.

9ª – M. Inês: Você se perturba quando sabe que um livro que acabou de lançar estará

vulnerável a críticas?

Nélida: Não. O livro estando na praça, eu tendo entregado, ele não me pertence mais. É muito

interessante, eu nunca fiz análise. Pode alguém achar que todo mundo necessite. Eu nunca

tive uma premência disso, uma necessidade de fazer. Alguém pode dizer: faltou. Não importa.

Porque a literatura é revelação e me faz um bem imenso.

10ª – M. Inês: Nélida, como surgiu a ideia para a criação de A doce canção de Caetana? A

ilusão é o fio condutor desse romance. A velhice é um fator que necessita da ilusão? Fale-me

um pouco desse romance.

Nélida: Olha, o tema surgiu mais da questão da ilusão e da arte. Você começa a ver os

pintores, por exemplo, de repente, vê os ilusionistas, não é? Botavam uma pêra, uma fruta no

quadro, e de repente, atraiam até os pássaros. Coisas extraordinárias. Eu tenho longos

trabalhos sobre isso. Você sente que a arte rouba da ilusão. Sem a ilusão não se consegue

captar, atrair quem seja, porque a realidade não é o capítulo primeiro da arte. A arte transgride

a realidade. A suposição de uma realidade é que ela seja única; quando, na verdade, a arte

trabalha com mil realidades ao mesmo tempo. Para que o artista, no caso o escritor, consiga

convencer que o seu texto é real na medida da criação, tanto, não é realista, ele precisa

convencer ao leitor de que, o que ocorre no romance é irremediável, é a realidade com a qual

ele vai conviver, o que ele vai acreditar. Não é um leitor só, são vários leitores. Como é que se

consegue fazer um enlace de todos os leitores. Por exemplo, Dom Quixote; como se explica

que quem leu Dom Quixote se apaixonou. Todos eles. Então, é como se Cervantes

conseguisse uma linguagem para cada leitor. Na verdade, a realidade que ele transcreve, é a

realidade que convence todos a acreditar no que ele está contando. Não é só o peso da

linguagem, uma visão poética, porque acha uma poética do texto, é porque a ilusão faz com

que o leitor passe a acreditar, é fazer com que o leitor acredite. Foi essa a ideia. Eu queria,

além do mais, que o romance tivesse um teor crítico de algum modo, também, porque eu

escolho personagens peregrinos e artistas, não é? Gente de circo, que são transportadores de

ilusões, gente da ilusão. A arte é ilusão. Cênica, tudo é ilusão. Eles, então, são muito pobres, o

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que me parece uma homenagem ao grande teatro medieval, aos autos, a tudo aquilo. A

Caetana cobra do Polidoro que dê a ela a oportunidade de ser Maria Callas. Portanto, de ser

uma mentira. Que, na verdade, não é uma mentira, é uma ilusão, para convencer a quem quer

que seja que possa ouvi-la no disco, de que ela é Maria Callas. O Brasil que ali está, que se

esposa, é uma ilusão. É o momento em que, inclusive, as pessoas se esquecem de que no

tempo do general Médici houve uma ilusão coletiva. Que todo mundo estava satisfeito, as

pessoas trocavam a consciência por geladeira, por eletro-doméstico. A copa do mundo foi a

primeira mentira. Evidentemente há o problema da idade, do envelhecimento do amor ou

como o amor se dá em etapas diferentes, e também, a disposição das personagens. Eu queria

personagens diferentes, não exóticas; é que cada ser é um capítulo a parte. Então, encontram-

se ali seres muito originais. Eu teria que reler esse livro, mas a ilusão é o forte.

11ª – M. Inês: Quem foi que a motivou na criação da personagem Caetana?

Nélida: Eu não vou poder dar o nome, qualquer dia eu dou, bem, de algum modo eu posso.

Primeiro eu tenho que lhe dizer que eu sempre fui alguém que sempre frequentou ópera.

Desde menininha, fui uma frequentadora de ópera e de ballet. Foram assim, essas artes de

palco que formaram a minha consciência, o meu gosto, a minha paixão, a minha estética.

Aprendi o sentido comigo mesma, sentido do melodrama que é muito desprezado pelo

intelectual, mas eu acho extraordinário. Tudo isso me forjou um gosto, gosto que eu apurei.

Então, sei qual é o limite exato até onde posso transitar para compor essa mulher, essa

Caetana. Mas, eu me lembro que conheci há muitos anos, uma mulher excepcional,

extraordinária, era a poeta Natália Correa, (olha, eu estou falando nisso pela primeira vez).

Ela foi tida como mulher de grande beleza. Diziam os portugueses, os poetas, os escritores

famosos, que ela tinha um belo colo, era voluntariosa, temperamental, um gosto brigão. Uma

mulher interessantíssima. Eu sabia do histórico dela de poeta, grande conhecedora de

cantigas, uma mulher muito culta. Quando eu a conheci, eu caí para trás. Ela tinha um tipo,

um jeito de cantora de ópera e um jeito talvez, de uma mulher que ia para os cabarés, alguma

coisa assim. Ela fumava uma piteira, tinha cabelos negros, ainda mantinha os decotes, eu

sabia que ela gostava e que ela tinha a fama de temperamental. Eu sou cuidadosa, mas com

ela era mais cuidadosa ainda. Porque sabia ser essa mulher, uma mulher de temperamento

difícil.

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- Como vai Natália Correa?

- Como vai Nélida Piñon? Tu és uma princesa celta. Mas... (igual a minha mãe: “- Você é tão

inteligente, mas...”).

- Obrigado.

- Mas... (outra vez o “mas” de minha mãe, vai ver que ela desiste há tempo).

- Mas, teus olhos são um capricho étnico.

Uma maravilha. Porque ela insinua que alguma coisa de diferente ocorrera na minha família,

porque com esses olhos assim, eu não podia ser ibérica. Alguém na família fez alguma

transgressão. Ela me impressionou muito. E fizemos amizade. No Brasil ela me chamava “a

dama de Elche”, que é uma figura, uma estátua feita antes de Cristo, uma peça deslumbrante.

É uma preciosidade na Espanha, uma das coisas mais belas. E ela achava que eu era a “dama

de Elche”. Foi uma amizade que quando eu ia a Portugal, eu a procurava, saíamos,

jantávamos. Ela era encantadora. E ela me inspirou. As outras figuras a gente vai

estruturando, que eu, na verdade, acho que o grande personagem é arquétipo. Ele é construído

com todos os aspectos, com todos os sexos, com todos os corpos.

12ª – M. Inês: Na sua mitologia pessoal, o que representa o gato, tão presente nessa obra?

Nélida: Nada relevante, até porque não sou muito amante de gatos. Não tenho intimidade

nenhuma com gatos. Até parece que sou uma apaixonada por gatos, mas não sou. Eu gosto é

de cachorro. O gato vem de Richelieu, o cardeal, o que está muito ligado à minha infância,

porque eu sempre fui apaixonada por Alexandre Dumas, eu li toda a obra dele. O gato vem

daí. De certo modo era o processo, os mosqueteiros, os peregrinos.

13ª – M. Inês: Como você define a mulher brasileira?

Nélida: Eu acho que as mulheres e os homens se repetem de alguma forma, eles têm traços

como qualquer outro. Mas eles, evidentemente, são afetados por uma antropologia, por uma

história, uma religião; a religião modela muito o caráter, o comportamento das pessoas, cria

marcas dramáticas. Eu penso que tanto a mulher quanto o homem é um produto de tudo isso.

Naquelas culturas onde os pecados são horrorosos, implacáveis, intolerantes, nós somos

reflexos disso. Mas eu penso que tanto a mulher como o homem cada qual com sua distância,

de gênero e de comportamento são interessantes. Há uma maneira cordial, embora as pessoas,

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às vezes, sejam violentas, é verdade. Mas, ainda assim, com toda violência, eu acho que há

uma cordialidade. É de bom tom a cordialidade, é de mal tom o mau humor na sociedade

brasileira. Já em outras sociedades, ser grosseiro é natural. Grosseiro não na grosseria

escatológica, no sentido da rispidez, mas na nossa sociedade não é assim. Não, o europeu tem

um mau humor que faz parte do comportamento, não tem formas claras, uma forma de

polidez especial, que talvez nos falte, mas nós temos naturalidade, há uma espontaneidade no

nosso convívio social, temos a tendência a queimar etapas, aceleramos mais e é muito

agradável. Eu acho que o convívio social aqui é muito bom. Mas, ao mesmo tempo, como

tenho um temperamento muito especial, me dou bem em qualquer lugar. Eu chego e num

instante, mesmo com pessoas, assim, complicadas, me entroso bem, vou trabalhando o

indivíduo, no melhor sentido, com todo respeito, e procuro chegar bem à sua alma. É uma

maneira de ser. É uma espécie de tática. É como se eu desejasse entender melhor os

obstáculos e as harmonias do convívio humano, é uma atração. Todo mundo pergunta como é

que eu sou. Quando eu não quero responder, quando eu não quero me expor, eu me recolho,

também gosto da solidão. Mas, quando eu vou, por exemplo, a algum lugar, aí eu me dou, eu

acredito na delicadeza, mas sem deixar de ter o controle.

14ª – M. Inês: Nélida, muita gente coloca um divisor entre a escrita feminina e a escrita

masculina. Como você vê a questão da literatura feita por mulheres?

Nélida: Ah! O preconceito. Não existe escrita masculina. Aliás, ninguém menciona escrita

masculina, repara só. Só existe escrita feminina. Como se o homem estivesse acima de

qualquer gênero, então, ele tem a polifonia dos gêneros, é capaz de abraçar todos os gêneros,

ele é um ser sagrado. E as mulheres, coitadinhas, continuam dentro do gueto. Você analisa

Dom Casmurro, não é, ele, o Bentinho, a história que nós estamos lendo não é do Bentinho, e

sim, do Dom Casmurro. As pessoas se esquecem disso. É um livro dentro de um livro. Então,

o livro, além da extraordinária habilidade de Machado, ele só ousa ser Dom Casmurro,

portanto, dar início ao relato que nós estamos lendo, depois que todos morrem; ela e o filho

morreram. Mesmo assim, o autor tem escrúpulo. O narrador tem essa noção, eu quero dizer

com isso o seguinte: as mulheres caem nessa armadilha. Eu não aceito em hipótese alguma

essa divisória. Eu estou usando uma língua diferente? O que quer dizer escrita feminina? Eu

não sou tão inteligente quanto você? Eu acho que o grande escritor é aquele ser protéico que

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consegue ter todas as formas. Ele tem que entrar no corpo do homem, no corpo da mulher, na

pedra, no vegetal. Ele tem que ser capaz de abarcar todas as instâncias, não tem esse negócio

de diferença de gênero. Claro que ele vai ter uma afinidade especialíssima, como é o caso da

mulher. Até porque não interessa psicologicamente, politicamente, ideologicamente. Aliás,

todo mundo diz que eu sou boa em personagens masculinos. Dizem que meus personagens

masculinos são redondos. Mas é isso. Então, com isso, se você professa essa ideia, todas as

personagens femininas passam a desaparecer para os homens. Então, vai ser uma contratação.

Flauber disse: “Emma c’est moi”. Ficou cinco anos escrevendo isso e só teve quatro ou cinco

relações sexuais. (Muitos risos).

15ª – M. Inês: Qual é o seu maior sonho atualmente?

Nélida: Estar viva. Ter tempo de organizar um pouco minha vida. Cuidar do Gravetinho, sim.

Esse bichinho está me ensinando, está destronando a minha condição humana. É verdade. Eu

estou completamente apaixonada por ele. Ele está me ensinando que a espécie animal é

extraordinária, a percepção dos animais é excepcional, não existe esse negócio do leão “rei

dos animais”, do homem ser o rei. Não, o homem não é o rei. Nós todos estamos aqui nesse

planeta e somos iguais, tem homens e bichos extraordinários. Mas eu não tenho sonhos não.

Eu tenho é preocupação (risos). Eu tenho ainda inquietações, sabe? O que mais me atrai

mesmo é o conhecimento. É ter ou descobrir alguma coisa. É o conhecimento. É olhar

alguma coisa, por exemplo, e de repente, por milagre, fazer analogias. Uma coisa me leva a

outra, me leva a outra, eu falo disparado, sou igual a uma máquina: pa, pa, pa, pa... Tudo me

enseja a pensar, me enseja a estabelecer analogias quase impossíveis. Isso, sim, me dá um

prazer imenso.

16ª – M. Inês: Existe algum escritor ou escritora por quem você tenha grande afinidade?

Nélida: Não tenho grande afinidade com ninguém. Eu admiro grandes escritoras e admiro

grandes escritores. Acho que, talvez, a afinidade que o escritor tem é que todos nós

pertencemos a essa confraria da criação. Agora, se eu for falar de escritor, é Machado de

Assis. Eu amo Machado de Assis. Fico absolutamente deslumbrada diante do gênio de

Machado. Mas entendo o que você quer dizer. Eu tenho afinidade com o talento de muita

gente; não diria que tenho afinidades com as mulheres, tenho afinidade com o talento

humano: homens e mulheres, mulheres e homens. A obra.

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17ª – M. Inês: Qual foi a maior alegria que você teve pelo fato de escrever?

Nélida: (Pensou longo tempo).

Quando me avisaram que eu tinha ganhado o prêmio Príncipe de Astúrias, que é o segundo do

mundo, eu fiquei contente, mas não posso dizer que tenha sido minha maior alegria. Outros

grandes prêmios que recebi, também não. Sabe, eu não me lembro. Talvez quando me

chamaram para ver o meu primeiro livro – Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo. Antes de vê-lo, me

avisaram que eu ia vê-lo, eu acho que senti uma grande emoção. Tanto que parei, eu estava

num carrinho que tinha, meu pai já tinha morrido, então, parei na orla da lagoa, eu estava indo

para o Humaitá, onde morávamos. Estava tão emocionada, isso eu me lembro bem. Parei e

pensei: Nélida, você não pode chegar assim tão emocionada, vai ficar muito vulnerável. Eu

tinha a sensação de que era a literatura que ia ser maravilhosa. Eu tinha que estar preparada.

Entrei, dei um tempo para organizar minhas emoções, e me lembro que fiz uma coisa

impressionante, olhei o livro, vi a lombada, e disse: Engraçado essa lombada! (imagina essa

crítica), bonitinha essa lombada. O que tinha a lombada? (risos). Depois disso, as emoções

vão se repetindo, mas eu tenho a impressão que as minhas são mais associadas a minha

carreira. Aí, eu precisei me defender, tive que criar uma pele, uma casca para aguentar o

rojão.

18ª – M. Inês: Nélida Piñon por Nélida Piñon.

Nélida: Vamos ver: eu tenho gosto de viver, acho que eu tenho certa simpatia pelas coisas,

pela vida, me interesso muito. Tentei, ao longo da minha vida, me aprimorar, melhorar meus

valores, tive grandes paixões, arrufos. Eu fico impressionada como eu consegui, de algum

modo, me preservar, para chegar onde eu estou, e também, ter respeitado minha família.

Sempre tive grande paixão pela minha família, pelo meu pai, pela minha mãe, entendeu? E,

como sou uma grande aventureira, mas é meu estilo, hoje com mais cuidado, logicamente,

tento, como pessoa, ser alguém significativa para mim, acho que sou alguém que demonstrou

e vem demonstrando uma intensa liberdade de criar, não me afastar dela. E, finalmente, acho

que na minha história não há nada que desmereça a escritora que eu quero ser.