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XIV Colóquio Ibérico de Geografia/ XIV Coloquio Ibérico de Geografía 11-14 novembro de 2014/ 11-14 Noviembre de 2014 Departamento de Geografia, Universidade do Minho Visualidade e Representação: notas sobre o espetáculo de dança “Mapa Movediço” P. C. de Moraes a e V. Cazetta b (a) Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, [email protected] (b) Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, [email protected] Resumo Neste texto consideramos o espetáculo-obra Mapa Movediço para pensar a dança como arte que pode alargar metáforas, como a ideia de mapa e espaço. Discutir a representação e a visualidade do espetáculo em questão parece possibilitar uma reflexão sobre o estado da arte e suas relações com a produção de conhecimento na pós-modernidade. O emprego do conceito mapa seguido de um adjetivo, traz a força da metáfora proposta pelo espetáculo, pois aquele espaço não seria um mapa se não fosse pela representação de algo, no entanto, é preciso entender que, nos mapas, assim como nos espetáculos, a representação só tem força pelo que não é. A ênfase na ação e na repetição dada ao espetáculo, ritualiza-o, direcionando o espectador para o que está ali e não para o que poderia ser. Assim, este espetáculo-espaço-político recontextualiza ideias pré-concebidas do olhar. Palavras-chave: arte, dança, cultura visual, representação, mapa. 1. Lantejoulas cartográficas De uma sonoridade líquida. E não estamos aqui a fazer nenhuma menção ao livro Modernidade Líquida, do sociólogo polonês Zygmunt Bayman. Usamos esse adjetivo, porque não encontramos nenhum outro para descrever as sensações/acontecimentos oriundas do espetáculo de dança Mapa Movediço (2012), estreado na capital paulista (Estado de São Paulo/Brasil) pelo grupo Ana Catarina Vieira e Ângelo Madureira. Sentimo-nos com os olhos vendados ao revisitar o espetáculo, transformado em linguagem audiovisual (http://vimeo.com/63591546). O espetáculo foi um acontecimento. A partir da sua transformação em linguagem audiovisual, tornou-se um acontecimento outro, uma experiência outra. Nesse texto, nos remeteremos ao vídeo do espetáculo. Cabe, antes, um parênteses acerca da noção de acontecimento, concebida por alguns autores e, dentre eles, Peter Pál Pelbart (2013), como a experiência direta que temos com “algum ponto da vida que seja o mais próximo do invivível” (p.207). Pelbart (2013, p.207-208), na esteira de Michel Foucault, concebe a experiência “não a vida vivida, mas o invivível da vida. Não a experiência possível, mas a experiência impossível. Não a experiência cotidiana, mas a experiência-limite”. É a esta que nos referimos aqui. A durabilidade cronológica do espetáculo é de oitenta minutos, mas o tempo da intensidade oriunda da experiência audiovisual de Mapa Movediço difere bastante desse tempo compassado da cronologia.

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XIV Colóquio Ibérico de Geografia/ XIV Coloquio Ibérico de Geografía 11-14 novembro de 2014/ 11-14 Noviembre de 2014

Departamento de Geografia, Universidade do Minho

Visualidade e Representação: notas sobre o espetáculo de dança “Mapa

Movediço”

P. C. de Moraesa e V. Cazetta

b

(a) Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, [email protected] (b) Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, [email protected]

Resumo

Neste texto consideramos o espetáculo-obra Mapa Movediço para pensar a dança como arte que pode

alargar metáforas, como a ideia de mapa e espaço. Discutir a representação e a visualidade do

espetáculo em questão parece possibilitar uma reflexão sobre o estado da arte e suas relações com a

produção de conhecimento na pós-modernidade. O emprego do conceito mapa seguido de um

adjetivo, traz a força da metáfora proposta pelo espetáculo, pois aquele espaço não seria um mapa se

não fosse pela representação de algo, no entanto, é preciso entender que, nos mapas, assim como nos

espetáculos, a representação só tem força pelo que não é. A ênfase na ação e na repetição dada ao

espetáculo, ritualiza-o, direcionando o espectador para o que está ali e não para o que poderia ser. Assim, este espetáculo-espaço-político recontextualiza ideias pré-concebidas do olhar.

Palavras-chave: arte, dança, cultura visual, representação, mapa.

1. Lantejoulas cartográficas

De uma sonoridade líquida. E não estamos aqui a fazer nenhuma menção ao livro Modernidade Líquida,

do sociólogo polonês Zygmunt Bayman. Usamos esse adjetivo, porque não encontramos nenhum outro

para descrever as sensações/acontecimentos oriundas do espetáculo de dança Mapa Movediço (2012),

estreado na capital paulista (Estado de São Paulo/Brasil) pelo grupo Ana Catarina Vieira e Ângelo

Madureira. Sentimo-nos com os olhos vendados ao revisitar o espetáculo, transformado em linguagem

audiovisual (http://vimeo.com/63591546).

O espetáculo foi um acontecimento. A partir da sua transformação em linguagem audiovisual, tornou-se

um acontecimento outro, uma experiência outra. Nesse texto, nos remeteremos ao vídeo do espetáculo.

Cabe, antes, um parênteses acerca da noção de acontecimento, concebida por alguns autores e, dentre eles,

Peter Pál Pelbart (2013), como a experiência direta que temos com “algum ponto da vida que seja o mais

próximo do invivível” (p.207). Pelbart (2013, p.207-208), na esteira de Michel Foucault, concebe a

experiência “não a vida vivida, mas o invivível da vida. Não a experiência possível, mas a experiência

impossível. Não a experiência cotidiana, mas a experiência-limite”. É a esta que nos referimos aqui.

A durabilidade cronológica do espetáculo é de oitenta minutos, mas o tempo da intensidade oriunda da

experiência audiovisual de Mapa Movediço difere bastante desse tempo compassado da cronologia.

Vivendo a experiência de um outro tempo na metrópole paulistana, é interessante percebermos quando

algo nos acontece de modo a desacostumar aquela experiência da vida vivida cotidianamente. O mapa de

Mapa Movediço acionou em nós linhas de ruptura para com as ideias de mapa e de espaço, inspirando-nos

a pensá-las mais como ações, do que codificações de um campo do saber específico. É sobre isso que nos

deteremos daqui por diante, partindo do referido espetáculo.

Breu. Vendaram nossos olhos por meio da escuridão logo no início do espetáculo. Difícil estar com a

visualidade ausente. Estamos acostumados a ver por meio da visualidade, e nossa sensação de realidade se

dá muito em função disso. Quando se subtrai o colorido “natural” do mundo restam-nos as memórias

(visuais e olfativas), o tato e os sons. Mapa movediço começa assim, nos tirando das linhas molares.

Precipita no palco imaginações de uma chuva, chuva sonora que encharca o solo/palco alternando

simultaneamente para sons de algo que está sendo pisoteado, quando vemos seis pequenos amontoados de

lantejoulas coloridas brilharem no escuro. E como não nos lembrarmos das edições de imagens orbitais da

Terra, obtidas à noite e, depois, compiladas, para nos dar a sensação de inteireza via um planisfério

imagético? Um mundo de escuridão, mas também de muita luz (http://www.publico.pt/ciencia/noticia/a-

terra-vista-a-noite-do-espaco-e-um-mundo-de-luz-e-escuridao-1576406#/0). Foi como se tivéssemos em

uma foguete espacial imageando e, ao mesmo tempo, imaginando os seis continentes da Terra iluminados,

em toda sua (im)possível inteireza noturna, por meio de postes de eletricidade, etc. Lantejoulas-coloridas-

cartográficas. Descobrimos depois que foram utilizados duzentos quilos delas (Figura 1).

Figura 1: Lantejoulas-coloridas-cartográficas

2. Dos corpos e lantejoulas: grafias de trajetórias

O movimento de amassar lantejoulas, início do espetáculo, desenvolve e intensifica-se a partir do

deslocamento dos dançarinos no palco, que transformam o amassar em espalhar as lantejoulas

cartográficas. Neste ato de espalhar, os montes de lantejoulas, que inicialmente definiam uma linha

imaginária de separação entre os bailarinos, começam a se encontrar, a se unir. É como se os personagens-

montes de lantejoulas se tornassem personagem único, e isso, metaforicamente, para o espectador, pode

também incitar um encontro entre os próprios bailarinos, como se eles fossem um único corpo a dançar.

“A interação da imensidão do global com o intimamente pequeno” (MASSEY, 2008, p.29) se metaforiza

na figura da lantejoula, fazendo com que possamos perceber a união dos corpos dos bailarinos por meio de

suas células – a proposta de pensar o intimamente pequeno evidencia-se em algumas ações do espetáculo

como: separar lantejoulas, colar lantejoulas no corpo ou mesmo contemplá-las. Formam-se linhas

moleculares, onde se cruzam fluxos de intensidades.

É importante perceber que o ato de espalhar é depois transformado, mas a mudança das características do

movimento rápido para uma ação mais lenta e balançada faz com que as lantejoulas sejam deslocadas

verticalmente, cavando o chão, criando caminhos pelo espaço, marcas das trajetórias humanas. As

lantejoulas registram as trajetórias humanas pelo espaço (Figura 2). Esse registro é móvel e único, pois

não se dá de forma igual em outra apresentação. O espaço se torna produto das inter-relações entre os

bailarinos e as lantejoulas. Este espaço se dá sempre em construção, sempre em processo, “arranjos-em-

relação-um-com-o-outro” (MASSEY,2008,p.166).

Figura 2: Trajetórias humanas e não humanas

As lantejoulas não são objetos de cena a serem colocadas sobre a superfície lisa do palco, mas constituem

a própria cenografia daquele espaço. O que se apresenta como uma grande invasão, primeiramente da

lantejoula no espaço da cena e depois dos dançarinos-coreógrafos, pisando o chão-móvel-de-lantejoulas,

desloca outras sensibilidades para se pensar o alargamento da ideia de mapa. Este também pode ser

compreendido como aquilo que se move em decorrência das trajetórias humanas e não-humanas. Os

dançarinos-coreógrafos emprestaram das lantejoulas coloridas sua força para criar formas, dilatando a

ação da dança como acontecimento daquilo outrora não experimentado pelos sentidos, misturando

dimensões do espaço que vão além de sua materialidade. Os corpos desenham um lugar (imaginado)

atravessado pela potência criativa que cria em nós. As linhas fronteiriças desaparecem, formam-se linhas,

formas e volumes imaginários: e quem nunca quis esmaecer a possibilidade única que uma vida permite?

O emprego do conceito mapa seguido de um adjetivo, movediço, traz a força da metáfora proposta pelo

espetáculo, pois aquele espaço não seria um mapa se não fosse pela representação de algo, no entanto, é

preciso entender que, nos mapas, assim como nos espetáculos, a representação só tem força pelo que não é

(MASSEY, 2008). Este olhar sobre a representação é um olhar pós-moderno, que afasta a representação

da imitação e aproxima-a da releitura. A ascensão do material na arte, e sua relação com a percepção, que

para Selligmam-Silva (2003) se dá a partir do romantismo, permite a retomada do papel ritual do

espetáculo. Para o autor, a arte vai surgir como espaço marginal: “De apagamento/traçamento das

margens, onde tanto aquilo que é posto ‘de lado’, ‘para baixo’ na sociedade voltada para a produtividade,

pode se manifestar ‘livremente’, como também, ao fazê-lo, volta-se contra esse recalque que sustenta a

vida cotidiana. Daí a relação íntima entre apresentação e não mais re-presentação”. (p.33) O artista

dessimboliza a arte para que o espectador possa re-simbolizá-la ou apenas, e não menos importante, vivê-

la. Nos rituais, assim como nas artes performativas, não se expressam ideias, mas estas são incorporadas

pelos artistas.

Para Schechner (2012, p.58) “os rituais são pensamentos em/como ação” e sua recepção é marcada pelo

voyeurismo e pela relação pré-simbólica (SELLIGMAM-SILVA, 2003). A queda da aura da obra de arte,

o uso da repetição e da movimentação cotidiana faz com que essa recepção seja marcada pelo que está ali

e não pelo que poderia ser. Mesmo a ideia de movimentação cotidiana pode ser deixada de lado, pois não

se representa o cotidiano, afinal esse termo (movimentação cotidiana) precisa ser entendido como as

movimentações congruentes aos seres humanos em suas relações naturais e culturais, e não como

representação da vida cotidiana. O uso da repetição, muito enfatizado pelo espetáculo e característico do

ritual, gera também, uma metamensagem ao espectador (SCHECHNER,2012). O ato se refere a si mesmo,

como se o espetáculo pulsasse a partir da afirmação: “Olha, eu estou agindo, eu estou dançando”. Isso

porque o ritual não se afirma a partir da organização remetente-mensagem-destinatário. A mensagem só

pode ser criada e lida pelo remetente/destinatário que são a mesma pessoa. Num ritual, ou se está, ou não

se está. A repetição, a redundância e o exagero, buscam gerar no espectador uma energia que pulsa, pulsa

criação/reprodução/apropriação. É impossível gostar do espetáculo sem dançar na cadeira.

Massey, em seu livro Pelo Espaço (2008), propõe ao leitor, entender o espaço como trajetórias de estórias

até agora. Buscando ampliar a discussão do espetáculo Mapa Movediço, parodiamos o texto dela: as

lantejoulas (personagem) continuam sua história enquanto os dançarinos-coreógrafos passam e pisam

sobre elas. Podemos dizer que o ápice do espetáculo acontece com o solo-chão das lantejoulas, que se dá

após os primeiros dezessete minutos do espetáculo. Neste momento, elas afirmam seu protagonismo

(Figura 3).

Figura 3: Solo-chão das lantejoulas

No livro Lógica da Sensação (2007), Gilles Deleuze afirma que o pintor irlândes Francis Bacon se

aproxima da arte egípcia, porque a forma e o fundo de sua pintura estão relacionados um ao outro pelo

contorno, situando-se no mesmo plano de visão próxima háptica – função esta que pode ser atualizada a

partir da violência e da insubordinação manuais. Estas duas funções (háptica e manual), alcançadas pelas

97 pinturas de Bacon e apresentadas por Deleuze no referido livro, nos interessam aqui como inspiração

para pensar o espetáculo. Posso olhar o pé, a mão ou o corpo movimentado a lantejoula ou posso olhar o

movimento da lantejoula provocada pelo pé, pela mão ou pelo corpo. Aparentemente, as inversões não

geram tantas mudanças, mas só aparentemente: tirar o olhar do homem-máquina e voltar o olhar para a

coisa-natureza é ressignificar o olhar, é inverter figura e fundo. É também, dar ao espaço uma grande

potência. O que Deleuze chama de lógica da sensação e Racìere chama de regime estético da arte, é, como

descrito pelo próprio Ranciere, “um teatro da desfiguração, em que as figuras são arrancadas do espaço da

representação e reconfiguradas em outro espaço” (2012, p.87).

O espetáculo Mapa Movediço não se trata de um espetáculo-corpo-político, mas, sim, de um espetáculo-

espaço-político por meio do qual o espacial é pensado de forma específica, perturbando, quiça, a maneira

com que certas questões políticas são configuradas (MASSEY, 2008). Estas escolhas mobilizam ações que

recontextualizam condições pré-estabelecidas (SENTENTA, 2008), de modo que se modifica o olhar do

espectador ou, ao menos, possibilita um olhar dialético: o homem transformando o espaço e/ou o espaço

transformando o homem. A invasão das lantejoulas no corpo-homem. Nesses encontros e desencontros, a

grande estrela do evento é a lantejoula – nada melhor do que seu brilho para fazer jus a posição de

primeiro bailarino – tornando-se claramente, personagem principal, e quebrando o padrão estabelecido

que coloca o homem como centro da arte espetacular.

O final do espetáculo nos surpreende com a incapacidade humana de dar conta da sua própria criação, ou

seja, o espaço. O desejo de amontoar as lantejoulas novamente, voltar ao início do espetáculo, é

insatisfatoriamente cumprido pelo fato do espaço-lantejoula ser movediço, escorregar pelos braços. Mas

será mesmo uma surpresa homens e mulheres não darem conta do espaço?

Vivendo em uma época histórica especifica, onde as imagens são aquilo que esteticamente se vê, onde a

figura e o fundo não possuem mais subordinações e onde as experiências são consequências do invivido,

torna-se emergencial refletir, através de linhas transgressivas e poéticas, sobre relações humano-espacio-

temporais como mapacorpografias movediças.

3. Bibliografia

Deleuze, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Trad. Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

Massey, Doreen. Pelo espaço. Uma nova política da espacialidade. Trad. De Hilda Pareto Maciel e Rogério

Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

Pelbart, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1 Edições, 2013.

Ranciere, Jacques. O destino das imagens. Trad. Monica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

Schechner, Richard. Performance e Antropologia de Richard Schechner. Seleção de ensaios organizada por Zeca

Ligiero. Trad. Augusto Rodrigues da Silva Junior et al. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

Seligmann-silva, Márcio. Arte, dor e Kátharsis ou variações sobre a arte de pintar o grito. Alea, Rio de Janeiro ,

v. 5, n. 1, July 2003 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-

106X2003000100003&lng=en&nrm=iso>. access on 25 Aug. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-

106X2003000100003.