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148 http://www.uva.br/trivium/edicao1/artigos/13-vitimas-da-propria-sinceridade.pdf ARTIGOS Vítimas da própria sinceridade Nestor A. Braustein Resumo A sinceridade é uma virtude suspeita que pode encobrir uma atitude sádica para com o outro sob o pretexto e lhe dizer a verdade. É também uma posição masoquista de quem emite proposições supostamente “verdadeiras” que conduzem à exclusão de quem as diz, justificando sua posterior assunção a uma posição de vítima da própria sinceridade. É necessário distinguir na concatenação significante entre a verdade “referencial”, com relação ao que pode objetivar-se, a verdade “conferencial”, ligada à credibilidade que se pretende dar à palavra, e a verdade transferencial, que é a da significação inconsciente e transubjetiva da palavra. Palavras-chave: Sinceridade, mentira, prudência, verdade, franqueza, Nietzsche. Abstract Sincerity is a suspicious virtue that can cover a sadist attitude toward someone under the argument of telling the truth. And also a masochistic position of someone who is suppose telling only “true” propositions that lead to rejection of the person who says them, what justifies a latter “victim” position of their own sincerity. It’s necessary to distinguish, in the concatenation significant, the “referential” truth to what can be objected, the “conferential” (confer) truth which is connected to the credibility given to the word and to “transferencial” truth, the word’s unconscious and “trans subjective” signification. Keywords: Sincerity, lie, prudence, truth, frankness, Nietzsche. Doutor em Medicina e Psicanalista. Argentino, exilado no México desde 1974. Professor na UNAM desde 1975. [email protected]

Vitimas Da Própria Sinceridade

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Nestor Braustein analisa a noção de sinceridade que pode encobrir uma atitude sádica ou, eventualmente, masoquista.

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    ARTIGOS

    Vtimas da prpria sinceridade Nestor A. Braustein

    Resumo A sinceridade uma virtude suspeita que pode encobrir uma atitude sdica para com o outro sob o pretexto e lhe dizer a verdade. tambm uma posio masoquista de quem emite proposies supostamente verdadeiras que conduzem excluso de quem as diz, justificando sua posterior assuno a uma posio de vtima da prpria sinceridade. necessrio distinguir na concatenao significante entre a verdade referencial, com relao ao que pode objetivar-se, a verdade conferencial, ligada credibilidade que se pretende dar palavra, e a verdade transferencial, que a da significao inconsciente e transubjetiva da palavra. Palavras-chave: Sinceridade, mentira, prudncia, verdade, franqueza, Nietzsche. Abstract Sincerity is a suspicious virtue that can cover a sadist attitude toward someone under the argument of telling the truth. And also a masochistic position of someone who is suppose telling only true propositions that lead to rejection of the person who says them, what justifies a latter victim position of their own sincerity. Its necessary to distinguish, in the concatenation significant, the referential truth to what can be objected, the conferential (confer) truth which is connected to the credibility given to the word and to transferencial truth, the words unconscious and trans subjective signification. Keywords: Sincerity, lie, prudence, truth, frankness, Nietzsche.

    Doutor em Medicina e Psicanalista. Argentino, exilado no Mxico desde 1974. Professor na UNAM desde 1975. [email protected]

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    Poucas virtudes recebem to ampla aprovao por parte dos moralistas e de pessoas em geral como a da sinceridade. Algum pode se recordar de uma crtica com o objetivo de desacredit-la? Uma prova adicional deste mrito geral do qual goza a sinceridade provm de que seus opostos recebem a marca da injria: a insinceridade, a mentira, a falsidade, o engano, a fraude, o falso testemunho, a impostura, a simulao, a dissimulao, a fanfarronice, o bluff, a adulao, a calnia etc.

    Vladimir Janklvitch (1), reconhecido filsofo moral, pode dizer:

    a sinceridade sempre formosa, sempre exigvel, e absolutamente boa; a sinceridade no depende de clusuras por meio das quais ela chegaria a ser virtuosa, mas ao contrrio ela que outorga valor a uma conduta que em si mesma carece de valor. (JANKLVITCH, 1986, p.182)

    Agora, vejamos, claro que a sinceridade s um valor do ponto de vista da psicologia

    da conscincia. Sincero no quem diz a verdade sobre algo ou sobre si mesmo, mas quem diz o que verdadeiramente pensa, diz o que acredita ser verdadeiro. assim que verdadeiramente se pode dizer as maiores falsidades. Porm, o sincero, convencido da verdade de seu erro, desconhecendo a participao de sua fantasia ou de sua m informao, se identifica com o objeto de sua convico. No temos que acreditar nele, ainda que tenhamos que acreditar que ele cr na verdade do que diz. E tanto quanto ou mais ainda do que de todos os provrbios, devemos desconfiar quando escutamos um sinceramente lhe digo precedendo qualquer afirmao. O pretendido reforo que traz uma referncia sinceridade do falante mostra a fenda da proposio que vem a seguir.

    A sinceridade se refere, ento, ao acordo da subjetividade do falasser seu prprio dizer. Muitas vezes, funciona como jogada da crueldade. Quem no conhece aqueles que, sob o pretexto da sinceridade, se permitem humilhar o prximo, se vangloriam de sua incontinncia no dizer e espetam e escarram as maiores inconvenincias sem calcular os resultados, e com bela indiferena se fazem desentendidos dos mesmos? Dado o universal reconhecimento da sinceridade como virtude, quem usa de sua franqueza como arma se sente justificado e faz passar o repdio e as funestas consequncias de seu dizer conta do outro, daquele de quem no pode tolerar a produo e o proferir da verdade que ele representa: bem, disse o que pensava... se no agrada aos demais, isso problema deles.

    Partamos do exemplo mais banal: que gorda voc est! Rapidamente distinguimos vrias verdades em jogo. Poderamos falar de uma verdade referencial, objetiva. A amiga, esta que escuta, ganhou quilos, e sua sincera camarada a faz notar. A balana poderia confirmar seu dizer. Basta esta considerao objetiva para entender a frase? Ningum poderia ser to ingnuo, e muito menos quem escuta. H outra verdade que podemos considerar como subjetiva e que se refere conscincia da locutora. A metacomunicao dupla: Observo que voc aumentou de peso. Digo-lhe para que veja que isso se nota e que talvez deva que se cuidar, pois sua imagem me interessa. E, alm disso, no sou aduladora. Digo-lhe a verdade ainda que seja desagradvel. Minha opinio sincera e isso me pe acima daqueles que lhe ocultam o que eu me animo a dizer-lhe. Pode-se dizer que esta verdade conferencial: a opinio dada como uma proposio que pode ser aceita ou recusada; confere-se quela que escuta a possibilidade de julgar sobre a suposta obesidade. E existe outra verdade, uma terceira inadvertida ou racionalizada pela locutora: a da agressividade, a da inteno, muito mais grave, por no ser premeditada em seu desejo de aborrecer. Esta violncia no deixa de ser percebida por quem

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    escuta e que recusar a desqualificao de sua prpria imagem, possivelmente em relao direta com a importncia dada pretensa gordura. Isto no escapa quela que falou e traz a insinuao (innuendo). Existem ressonncias que no podem passar inadvertidas. No Mxico, se usa a expresso coloquial me cais gorda/gordo para referir-se impresso desagradvel que algum nos causa. A insinuao repdio, que cai sobre quem a profere. Em anlise, se comprova que esta busca inconsciente da antipatia fonte de um gozo particular, intimamente vinculado com o masoquismo moral. Esta a verdade no referencial, nem conferencial, mas sim transferencial da afirmao desagradvel, e todo psicanalista est familiarizado com este fenmeno no mbito da sesso, realado porque, com a insinuao o sujeito supe estar cumprindo ao p da letra um signo + a eliminar a regra fundamental, e sabe como dar o necessrio passo ao lado leve interpretao de sentido das insinuaes. Como a sinceridade um ornamento que qualquer um pode reivindicar para si como prenda, a recompensa de gozo narcisista que se espera pela via paradoxal de alcanar no a simpatia, mas a hostilidade do outro compreender a economia de semelhante intercmbio.

    assim, por meio do mais trivial dos exemplos, que podemos seguir o processo pelo qual algum chega a ser vtima de sua prpria sinceridade, desconhecendo o cheiro de gozo que exala de dizer. Em sua forma ingnua, aparece como uma queixa a respeito da incapacidade do outro para tolerar a verdade. Estamos no campo dos efeitos perlocutrios do dizer, esses que mudam as relaes entre os participantes do encontro linguageiro, campo insuficientemente explorado pelos filsofos que deixam de lado o inconsciente freudiano, esse campo dos jogos de linguagem que o segundo Wittgenstein investigou os quais o texto de Freud sobre a Verneinung modelo.

    O sofrimento por ser vtima da sinceridade vale como um sacrifcio no altar da Verdade. Abundam os que se oferecem para recompensar a si mesmo com as palmas do martrio. A incompreenso da qual acusam o Outro lhes serve de passaporte. Temos que reconhecer que a sinceridade uma virtude suspeita, pese o que dizem Confcio, Kant e todos os moralistas. E que, s vezes, muito simplesmente, nefasta. Faramos a apologia de seu contrrio, a apologia da mentira? Ou contraporamos a ela uma virtude clssica, a prudncia?

    Na correspondncia entre Freud e Ferenczi encontramos uma boa indicao sobre a relao entre sinceridade e prudncia. At 1910, o hngaro, 27 anos mais jovem que seu mestre, totalmente identificado no papel de filho, se enamorou de uma mulher casada e se dispunha a fazer sua amada certas confidncias inquietantes sobre seu prprio passado amoroso. Antes se consultou com Freud. Este, apaixonado pela verdade como bem sabemos, lhe respondeu por carta com termos surpreendentes, mais prximos da lio que do conselho:

    voc tem, em certa medida, indubitavelmente razo em sua confisso mulher amada. Que a vida sexual do homem pode ser outra coisa que a da mulher, o b-a-b de nossa concepo do mundo e um sinal de respeito no fazer disso um mistrio diante de uma mulher. Por outro lado, no peca a exigncia de uma absoluta veracidade contra o postulado da eficcia e contra as finalidades do amor? No responderia a essa pergunta com uma simples denegao e aconselharia prudncia. A verdade to s a meta absoluta da cincia, porm o amor uma finalidade da vida, completamente independente daquela e poderamos conceber sem dificuldade os conflitos entre essas duas grandes potncias. Eu no vejo necessidade de subordinar regularmente e por princpio uma a outra. (FREUD & FERENCZI, 1992, p.133).

    Voc tem, em certa medida, indubitavelmente razo. J est a, o estado prtico, a lio

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    de dialtica e o sbio uso da transferncia no jogo da linguagem e do valor das palavras consideradas como peas de xadrez, que dependem da situao das outras peas sobre o tabuleiro, segundo a conhecida metfora de Wittgenstein. Voc tem indubitavelmente razo..., tanta que est totalmente equivocado.

    A sinceridade como inteno e como pretenso de dizer a verdade deve estar advertida de seus perigos. A mulher e o homem, sendo prudentes, subordinam os princpios abstratos situao concreta do encontro com o outro. A verdade no est no que algum pensa, mas na correta avaliao do que o outro pode tolerar daquilo que esse algum cr saber. O falante est movido por uma compulso a confessar (Reik). Se no o faz de maneira desmedida, porque sabe que, do outro lado, o de quem escuta, lhe espera uma massa de juzos e prejuzos. De prejuzos possveis. Todos pedem a verdade, mas quase ningum a aguenta. Nem sequer para consigo mesmo. Bem sabemos que tudo isso contribui a configurar o espao psicanaltico. Freud falava da demanda de uma absoluta sinceridade contra o oferecimento de uma absoluta discrio. Se o psicanalista espera, e at ordena, que se lhe diga tudo porque est em condies de escutar tudo, sem perigo de indiscries, de juzos, de incriminaes para quem fala a partir do que disse. A relao analisante/analista fica como paradigma do que no se pode conseguir em outras relaes humanas. E do lado do analista? No, nunca a sinceridade, mas a reserva, ou seja, a prudncia, a astcia, o silncio e o exlio (Joyce) que aprofundam na confisso do segredo, do desejo e da fantasia em que se encontra preso. O analista sabe que no pode dizer o que pensa sem exercer uma resistncia ao dizer de seu analisante, sem cair no registro da crueldade, sem fazer-se por sua vez vtima de sua sinceridade, ou seja, tudo aquilo que contradiz como dizia Freud a Firenczi, a finalidade do amor. E o analista est advertido: o que ele pode pensar no a verdade do outro, pois a verdade, ele o sabe, algo que no se pode dizer nem de si mesmo. Alm disso, as palavras sempre traem aqueles que pretendem enunci-las.

    A exigncia de sinceridade se dissolve quando se reconhece o inconsciente e sua dependncia do Outro. A veracidade no reside em quem fala, mas na relao dialtica que o une com quem escuta. A verdade se expressa sempre, mesmo quando o verdadeiro for a necessidade de mentir. Um falsificador, um verdadeiro falsificador, entrega moeda falsa. Se entregasse moeda verdadeira seria um falso falsificador. A verdade a de fazer passar o falso como se no o fosse. Ningum pode mentir e, em todo caso, como dizia Lacan referindo-se aos atos falhos, a verdade aprisiona a mentira no erro. O certo que se espera do outro que seja verdadeiro. Porm, esta no uma expectativa inocente, pelo contrrio, ela implica um desconhecimento ativo do inconsciente e da incurvel diviso subjetiva. Nem sequer precisou esperar a Freud para formul-lo com todas as suas letras. No aforismo 277 da Vontade de Poder (NIETZSCHE, 1967) se diz que a pretensa obrigao para com a verdade supe a constncia do ser, como se algum fosse ser o mesmo durante todo o tempo, como se a verdade no estivesse ligada aos momentos e s situaes e supe a possibilidade do prprio falante ter conhecimento daquilo que fala. Tudo isto conduz a uma superestimao da veracidade, da exatido, da preciso no dizer, que pertencem moral do rebanho, a uma generalizao sem fundamento, que ignora a relao de excentricidade, que liga o sujeito com a palavra.

    A nica verdade enuncivel paradoxal. S cabe dizer eu minto. E, sem dvida, o sujeito que no poderia atirar a primeira pedra. Ele se sentiria ofendido, proustianamente ofendido, quando descobrisse que o outro foi to insincero quanto ele. E esse o pecado do qual ningum est livre, o de condenar a mentira alheia, em outros termos, o pecado da hipocrisia.

    A mentira o alicerce da vida social. A vida no seria possvel sem ela, quaisquer que sejam as racionalizaes que se esgrimem para justific-la. A primeira experincia que se tem da

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    dissociao subjetiva passa precisamente pelo descobrimento de que o Outro no se d conta do que se passa com o prprio pensamento e com a fantasia. Pode-se enganar, no existe a transparncia, e, com isso, se perde a inocncia e se ganha o espao para o ser. O eu nasce com a experincia de ocultao e da mentira. Os moralistas se espantam. Janklvitch que a mentira o pecado por excelncia, no obrigatoriamente o mais grave, mas a quintessncia do pecado, pois ningum mente sem querer:

    da a gravidade da primeira mentira em uma criana. O dia desta primeira mentira um dia verdadeiramente solene no qual descobrimos no inocente a inquietante profundidade da conscincia. A primeira mentira , pois a primeira ruga e a primeira prega sobre a frente sem marcas da infncia, a primeira complicao que anuncia a duplicidade, a primeira sombra que vem a escurecer leno imaculado de nossa candura. O grave no a importncia da mentira, mas a inteno mesma de mentir, pois ela manifesta num relmpago nossa virgindade perdida, a inocncia derrotada, o Paraso profanado: o menor engano pe a nu nossos recursos infinitos para o jogo e para o dolo (JANKLVITCH, 1986, p.186).

    De todo modo, o moralista no pode sustentar a exigncia da verdade incondicional, pois sabe que algo pior que o hbito de mentir a inteno de fazer mal, por exemplo, quando se diz uma verdade que mata ou quando a dizemos para matar. Em tal caso, melhor enganar-se de boa f que dizer a verdade com um esprito malevolente. Ou, tambm acontece, de ao falarmos verdadeiramente ou falsamente para induzir ao erro, surgir a mais alta manifestao de perfdia. Com o que chegamos ao clssico chiste de Freud: Me dizes que vais Cracvia para que eu acredite que vais Lemberg. Porm eu sei que vais Cracvia, porque me mentes?

    Porque a mentira e no a verdade? Isso no soa como: porque o ser e no o nada? Talvez as duas perguntas no estejam to distantes uma da outra. Pois o ser surge da alienao originria por meio da fico, por meio da fantasia e da opacidade da fantasia para o Outro. O sujeito se dissolve se o Outro penetra em seu foro ntimo. a verdade do imortal licenciado Vidriera de Cervantes. O delrio a revelao sem vus da verdade. Os vus? Quais? As vestimentas egicas, a manifestao da prpria crena como expresso sincera de um sujeito que se sustenta sobre a devoluo da imagem especular por parte da imagem do outro.

    Tratemos de entender o porqu da mentira desde uma posio alheia ao moralismo convencional, deixando de lado a mentira interesseira, que se diz para obter uma vantagem, a mentira fraudulenta do engano oportunista, essa que oferece pouco ou nenhum incentivo para o pensamento psicanaltico. Desde sempre, reconhecemos que o sujeito mente pelas mesmas razes pelas quais reprime o acesso de certos significantes ao discurso: para proteger a imagem egica. Se o outro descobrisse o que se pretende ocultar-lhe, poderia acreditar que as coisas so como, em verdade, o sujeito pensa ou teme que sejam. E porque precisamos nos proteger da verdade (suposta) que est nas mos e boca do outro? Porque ela poderia revelar o que se quer desconhecer, porque se poderia usar o saber contra algum, transformar-se em juiz, acusador e chantagista, poderia ser indiscreto, poderia retirar o amor e deixar de bem querer, porque diante desse outro preciso mostrar-se forte e sem defeitos e, no caso do dbil e do necessitado, preciso ocultar as imperfeies de um rosto que temos que preservar e maquilar o tempo todo. Mente-se ao outro pela mesma razo pela qual o eu pe em andamento o processo de represso que a mentira interior, quer dizer, se mente por angstia, para proteger a imagem narcisista ameaada por no poder aceitar a castrao.

    Mas a mentira no econmica. Uma vez que a dizemos, mudamos o estatuto psicolgico

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    e jurdico do mentiroso e do enganado. O primeiro deve sustentar sua falsidade e deve evitar ser descoberto. Segundo todos sabem, necessrio que o mentiroso tenha boa memria. Faz-se prisioneiro de sua mentira e deve exacerbar as precaues para no trair-se. Uma mentira exige outras ao redor. Swift, nos conta Nietzsche, (NIETZSCHE, 1967) dizia que o homem que diz uma mentira raramente percebe a pesada carga que pesa sobre si, pois deve inventar vinte mais para que a primeira se sustente. O jogo perigoso, e, por isso mesmo, pode resultar como sempre que se trata de correr risco, extremamente atrativo. A psicologia daquele que mente para obter lucros nos mostra assim como a do jogador e de um modo que vale a pena comparar a dimenso do gozo. preciso levar em conta que o mentir um ato de linguagem e que um performativo muito particular impregnado efeitos perlocutrios: uma vez dita a mentira, os dois participantes no contrato se veem obrigados a jogar seus papis, so os efeitos da palavra. Este performativo da mentira passa comumente em silncio, em uma parte da frase que no se diz: Peo-lhe que acredite que..., e logo o enunciado o motor do automvel que estou lhe vendendo funciona maravilhosamente. O enunciado uma constatao, uma afirmao sobre um objeto da realidade que poderia revelar-se verdadeira ou falsa. Porm, como o vendedor sabe que sua frase enganosa, precisa fazer todo o necessrio para que sua mentira se sustente e no seja descoberto como tal pelo comprador que, por sua vez, se mostra mais ou menos crdulo. Este novo exemplo demonstra que a palavra sempre suspeita, acomodvel, adaptvel ao comrcio dos desejos de um e de Outro. Quem mente pretende aprisionar sua vtima (que muito frequentemente sua cmplice) no crculo da intriga. Porm, o que alcana o duvidoso gozo que sente o carcereiro ao fechar o calabouo. Uma vez que o preso est na sela, preciso cuidar para que no escape, precisa viver multiplicando os controles e os ferrolhos: o guardio perde sua liberdade acreditando tir-la do outro o mantendo em seu poder. Lembremos o conhecido autor de certas meditaes que escreve no comeo da Quarta delas: Ainda que enganar parea ser uma prova de poder ou de inteligncia, sem dvida querer enganar testemunha debilidade ou malcia. (DESCARTES, 1987). Malcia quando se trata de obter uma vantagem pessoal a custa de esconder a verdade e debilidade, como j vimos, nas mentiras que nos interessam como psicanalistas, essas que poderamos chamar de neurticas, que so mobilizadas pelo sinal de angstia e que conduzem represso consigo mesmo e supresso e dissimulao para com o outro. Porm, Descartes no para a: o segredo de muitos embustes pode estar no domnio fantasmtico que se adquire sobre o enganado. Algum pode, sempre pode enganar ou pelo menos tentar enganar e isso permite um gozo particular como prova de poder e inteligncia. O mentiroso supe que consegue e mantm certa superioridade sobre quem acredita em sua maquinao. Sua relao com o enganado de desdm. Goza de saber o que o outro ignora. Talvez tenhamos um exemplo muito claro deste gozo em Jocasta. Ela no tinha como no saber, devido a todos os antecedentes, qual era a verdadeira identidade de seu filho/esposo, porm ela gozava da ignorncia de dipo e realizava assim, duplamente, seu desejo criminoso. Gozava e temia triplamente; a Tirsias, ao pastor e ao desgnio de dipo. Precisava exercer uma vigilncia sobre todos eles e, ao mesmo tempo, controlar a informao que podia chegar a cada um, sustentar o engano do filho de Laio e dela mesma, dipo que acreditava ser filho de Plipo do longnquo Corinto, simular as reaes de seu corpo que delatariam a impostura, desmentir o valor proftico do orculo ao mesmo tempo em que sentia como suplcio do supereu (GOZA!) a verdade da predio do orculo. Quem engana no busca o prazer relaxado, mas, sim, o gozo. Gozo da prpria inteligncia que se coloca por cima do enganado fazendo-o de tonto, como diz a expresso coloquial mexicana. Gozo do poder imaginrio que se vive na fantasia (Ah! Se ela/ele soubesse, se tomasse conhecimento). E o que se deixa enganar mais cmplice do que

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    vtima. dupede seu inconsciente segundo o fecundo equvoco enunciado por Lacan no ttulo de seu Seminrio 21 (Les non dupes errant). O incauto (the fool) prefere seu prprio gozo, repleto de masoquismo, ao propor-se como objeto de gozo do Outro no jogo da linguagem que a mentira.

    A sinceridade a crena no prprio dizer: ela tem pouco a ver com a verdade. Uma e outra fluem de maneira independente; s vezes, coincidem. O sujeito que acredita em si mesmo pode fazer com que os outros acreditem nele. por isso que os embusteiros mais perigosos so os que esto mais convencidos (Humano demasiado humano, aforismo 483: as convices so mais inimigas da verdade do que as mentiras. E no 52: os homens acreditam que algo verdadeiro caso se torne evidente que outros acreditam firmemente neste algo. Esse o ncleo de honestidade do engano. (NIETZSCHE, 1996). O ncleo da convico a verdade material em torno da qual floresce um crculo de enganos. O segredo do delrio, da religio, das convices, das crenas e da conscincia corrente o mesmo. O autoengano necessrio para que o sujeito se acredite e se faa acreditar. Precisamente, a dvida que alimenta a necessidade de dirigir-se ao outro para a confirmao da precariedade da prpria existncia. O significante representa o sujeito para outro significante. A imagem no espelho frgil e faz falta o consentimento do outro, constantemente reiterado para proteger o sujeito de sua prpria fragmentao. Muitas vezes se cola esta demanda no enunciado: Sim? No? Verdade? Viu? Compreende? You know, alm dos gestos e dos olhares de consentimento e de confirmao. Estabelece-se, assim, a fantasia do self, do eu que pretende desmentir a castrao por meio da unificao imaginria que oferece o discurso. A recusa acordo do outro abre uma brecha na identidade que deve ser reparada: preciso fazer crer para poder acreditar-se. Porm, a esta psicologia normal se superpe outra que a das vtimas de sua sinceridade, estes que manifestam verdades chocantes que levam ao ganho secundrio de um reforo da identificao como incompreendidos, quando o outro posto prova at o limite de no poder suportar tais arroubos franqueza e quando sua reao de recusa passa a ser demonstrao de covardia e, indiretamente, de valentia, de valor, de quem mostrou seus punhos plenos de verdades.

    REFERNCIA DESCARTES, R. Meditaciones Metafsicas. Cuarta meditacin. Serie: Clsicos No. 3. Madrid: Edit. Gredos, 1987. FREUD, S. E FERENCZI, S. Correspondance,tomo1. Paris: Calmann-Lvy. 1992. JANKLVITCH, V. Les Vertus et lAmour, 2 vol. Paris: Flammarion, 1986. NIETZSCHE, F. The will to power. New York: Vintage, 1967. ________. Human, all too human. : University of Nebraska Press, 1996. Recebido em: 15 de maio de 2009 Aprovado em: 01 de julho de 2009