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1 Vitimização fatal de crianças no espaço público em decorrência da violência interpessoal comunitária: um diagnóstico da magnitude e contextos de vulnerabilidade na América Latina 1 Maria Fernanda Tourinho Peres Professora Doutora, Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência, USP Caren Ruotti Doutoranda em Sociologia, Programa de pós-graduação em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência, USP Denise Carvalho Doutoranda em Sociologia, Programa de pós-graduação em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP Fernanda Lopes Regina Mestranda em Ciência Política, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP INTRODUÇÃO Vivemos, desde as últimas décadas do século XX, um processo de mudança na forma de compreender e propor ações de enfrentamento para as situações de violência, segurança e criminalidade. É possível afirmar, sem medo de errar, que uma das principais características desse período é uma certa abertura interdisciplinar/intersetorial: problemas relacionados à violência e à segurança estão gradualmente deixando de ser temas específicos à área da segurança pública e da justiça criminal, passando a ser compreendidos como problemas sociais, em um sentido amplo, com reflexos no campo da saúde, educação, cultura, desenvolvimento e justiça social, dentre outros. Uma outra característica desse período, que pode ser considerada uma consequência da abertura acima destacada, é a emergência no espaço público de problemas que eram tradicionalmente tratados como questões da esfera privada, a exemplo da violência doméstica e familiar, entre as quais incluem-se 1 Paper para discussão no workshop “Prevention of Violence against Children in Latin America”, do 9º Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 28 e 29 de julho de 2015, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.

Vitimização fatal de crianças no espaço público em ... 1em... · nascimento’” (ROSEMBERG E MARIANO, 2010, p.699). Ademais, essa Declaração concebe a infância como o período

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Vitimização fatal de crianças no espaço público em decorrência daviolência interpessoal comunitária: um diagnóstico da magnitude econtextosdevulnerabilidadenaAméricaLatina1MariaFernandaTourinhoPeresProfessora Doutora, Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina daUniversidadedeSãoPaulo(USP)PesquisadoradoNúcleodeEstudosdaViolência,USPCarenRuottiDoutorandaemSociologia,Programadepós-graduaçãoemSociologia,FaculdadedeFilosofia,LetraseCiênciasHumanas,USPPesquisadoradoNúcleodeEstudosdaViolência,USPDeniseCarvalhoDoutorandaemSociologia,Programadepós-graduaçãoemSociologia,FaculdadedeFilosofia,LetraseCiênciasHumanas,USPFernandaLopesReginaMestranda em Ciência Política, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política,FaculdadedeFilosofia,LetraseCiênciasHumanas,USP

INTRODUÇÃO

Vivemos,desdeasúltimasdécadasdoséculoXX,umprocessodemudançana

forma de compreender e propor ações de enfrentamento para as situações de

violência,segurançaecriminalidade.Épossívelafirmar,semmedodeerrar,queuma

das principais características desse período é uma certa abertura

interdisciplinar/intersetorial: problemas relacionados à violência e à segurançaestão

gradualmente deixando de ser temas específicos à área da segurança pública e da

justiça criminal, passando a ser compreendidos como problemas sociais, em um

sentidoamplo,comreflexosnocampodasaúde,educação,cultura,desenvolvimento

e justiça social,dentreoutros.Umaoutracaracterísticadesseperíodo,quepodeser

considerada uma consequência da abertura acima destacada, é a emergência no

espaçopúblicodeproblemasqueeramtradicionalmentetratadoscomoquestõesda

esferaprivada,aexemplodaviolênciadomésticaefamiliar,entreasquaisincluem-se

1Paperparadiscussãonoworkshop“PreventionofViolenceagainstChildren inLatinAmerica”,do9ºEncontroAnualdoFórumBrasileirodeSegurançaPública,28e29dejulhode2015,FundaçãoGetúlioVargas,RiodeJaneiro.

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assituaçõesdeviolênciadegêneroouviolênciaporparceiroíntimo,violênciacontra

idososecrianças.

A violência contra a criança se consolida como um grave problemamundial,

dadas as consequências da vitimização (direta ou indireta) para o desenvolvimento

cognitivo, afetivo e social das crianças, para a sua saúde física emental. Inúmeros

esforços vêm sendo feitos no sentido de estimar a magnitude do problema, com

alguns relatórios globais e outros tantos relatórios e estudos locais que tematizam

especificidadesregionaisimportantes.

Estudoscomparativosglobaissobrehomicídios,aexemplodoWorldReporton

Violenceandhealth(2002)eoGlobalStatusReportonViolencePrevention(2014),da

OMS,a sérieGlobal StudiesonHomicide,daUNODOC,eo recém-lançadoHomicide

Monitor,doInstitutoIgarapé,nospermitemterumaclaravisãosobreaevoluçãono

tempo e a distribuição dasmortes por homicídio nomundo.Não é novidade que a

AméricaLatinadestaca-secomoaregiãocommaioresníveisdeviolência,emespecial

de homicídios. Pouco se sabe, entretanto, sobre a vitimização fatal de crianças na

região em decorrência da violência comunitária. Ainda nos falta um quadro

comparativogeral–mundialeespecíficoparaaAméricaLatina-quenosdigaoquão

frequente e de que forma crianças são assassinadas em decorrência da violência

interpessoalcomunitária,ouseja,nãofamiliar.

O nosso objetivo neste paper é sistematizar as informações existentes,

dispersas em diferentes relatórios, sobre a vitimização fatal de crianças no espaço

público emdecorrência da violência interpessoal comunitária nospaíses daAmérica

Latina. Não é nosso objetivo coletar dados novos mas tão somente identificar, nos

diferentesestudos, as informaçõesexistentes sobreeste tipoespecíficode violência

contra crianças para começar a compor um quadro de forma mais compreensiva,

assim como identificar as lacunas existentes, para um diagnóstico mais preciso do

problema.

Para tantoestruturamosonossopaper em trêsgrandes seções.Naprimeira,

“Limitesetáriose conceituaispara compreensãoda vitimização fatal de criançasem

decorrênciadaviolênciainterpessoalcomunitárianaAméricaLatina”buscamosdefinir

3

os limites utilizados para caraterização da infância e fazemos uma breve discussão

sobre a definição de violência, em especial violência contra crianças e violência

interpessoal comunitária. Nesta seção fazemos ainda uma discussão geral sobre a

importância do tema e de suas consequências para o desenvolvimento social,

cognitivoeparaasaúdedascrianças.NasegundaseçãoonossofocoseráaAmérica

Latinaeosfatoresestruturais/contextuaisquevulnerabilizamascriançasàvitimização

fatalemdecorrênciadaviolênciainterpessoalcomunitárianaRegião.Problemascomo

açãodegruposdeextermínio,gangues,violênciapolicial,crimeorganizado,situação

econômicaesocialdospaíses,migraçãoilegal,cruzamentodefronteiras,entreoutras,

serãobrevementediscutidos.Oobjetivoéapresentarasbases sobreaqualonosso

problema surge e se consolida. Buscamos, na medida do possível, trazer questões

geraisparaaregiãoeespecíficasparaalgunspaíses.Naterceiraseção,“Avitimização

fatal: homicídios de crianças e adolescentes na América Latina”, apresentamos uma

sistematizaçãodosdadosencontradoscomoobjetivodemontarumquadro,mesmo

que parcial, que retrate a magnitude do problema na AL e em seus países. Aqui

lançaremosmãosobretudoderelatórioscomparativos.Porfimapresentamosnossas

consideraçõesfinais.

LIMITESETÁRIOSECONCEITUAISPARACOMPREENSÃODAVITIMIZAÇÃOFATALDECRIANÇAS EM DECORRÊNCIA DA VIOLÊNCIA INTERPESSOAL COMUNITÁRIA NAAMÉRICALATINA

Apesardasdiferençasculturaisnomododeconceberamaturaçãobiológicae

etáriadasnovasgerações,bemcomoseupapelsocial,a“infância”temsidocadavez

mais concebida como um momento diferenciado do processo de desenvolvimento

humano,quenecessitadeproteçõesespeciais.Essaconcepçãoficaexplícitanoâmbito

jurídico,comadefiniçãoeadoçãodeinstrumentosinternacionaisenacionaisafimde

garantirdireitosespecíficos,cujomarco legaldemaiorreferêncianosdiasatuaiséa

Declaração sobre os Direitos das Crianças, de 1989. Como indicam Rosemberg e

Mariano (2010), essa Declaração, quando comparada às declarações internacionais

anteriores, inovou não só por sua extensão,mas por reconhecer à criança todos os

direitos e todas as liberdades inscritas na Declaração dos Direitos Humanos. Isso

4

significa que foram outorgados a crianças e adolescentes direitos de liberdade, até

entãoreservadosaosadultos.Contudo,aDeclaraçãode1989nãodeixadereconhecer

aespecificidaderelacionadaaessemomentoetário,“adotandoconcepçãopróximaà

dopreâmbulodaDeclaraçãodosDireitosdaCriançade1959:‘acriança,emrazãode

sua falta dematuridade física e intelectual, precisa de uma proteção especial e de

cuidadosespeciais,especialmentedeproteção jurídicaapropriadaantesedepoisdo

nascimento’” (ROSEMBERG E MARIANO, 2010, p.699). Ademais, essa Declaração

concebe a infância como o período que vai desde o nascimento até os 18 anos de

idade.

Diferentes estudos também têm seguido essa delimitação etária, inclusive

aqueles voltados a dimensionar a violência contra crianças e propor medidas de

prevenção (ONU,2006;UNICEF,2014a). Entretanto, subdivisõesetárias tambémsão

adotadascomoformadeidentificarastransformaçõesquesesucedemnesseperíodo,

relacionadasa fasesdedesenvolvimento físico,mentale social,que influenciamnas

própriasformasdeviolência.NorelatórioHiddeninplainsight:astatisticalanalysisof

violence against children (UNICEF, 2014a) esse período é subdividido em primeira

infância,infânciadomeio,infânciatardiaeadolescência.Nãoháumadefiniçãoclara,

ou um consenso sobre os limites etários de cada umdessas fasesmas, seguindo as

definições estabelecidas pelo Center for Disease Control2 e pela própria Unicef3 é

possíveldelimitaraprimeirainfânciaaoperíodoquevaidonascimentoatéos5ou6

anos de vida, a infância do meio entre 6/7 e 10/11 anos e a infância tardia e

adolescência ao período que se inicia aos 11/12 anos até os 18/19 anos de idade.

Nessas fasespreponderamdiferentesmanifestaçõesdeviolência,bemcomo fatores

devulnerabilidadeespecíficos.

Assimcomonãoháumconsensosobreadefiniçãode infânciaesuasetapas,

tambémnãoexisteumaúnicaformadedefinirviolência,emgeral,eviolênciacontra

crianças,emparticular.Aviolênciacontraacriançaéumproblemadeescalamundial

quepodeapresentar-sedediferentes formasem funçãode características culturais,

econômicas e sociais da região e dos países em que ocorrem. Considerando o seu2http://www.cdc.gov/ncbddd/childdevelopment/positiveparenting/infants.html3http://www.unicef.org/cwc/cwc_58619.html

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caráter multifacetado, diversos estudos sobre o tema (ONU, 2006; UNICEF, 2006a;

UNICEF,2012),adotamoestabelecidonoartigo19daDeclaraçãosobreosDireitosdas

Crianças,de1989,queacompreende“todasasformasdeviolênciafísicaoumental,

dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente; maus tratos ou exploração,

incluindoaviolênciasexual”quesãopraticadoscontraacriança. Ouseja,emboraa

Declaração não nos apresente uma definição propriamente dita de violência contra

criança,tornaexplícitaaresponsabilidadedosEstadosnaproteçãodascriançascontra

umaamplagamadeatosviolentos.

NoWorld Report on Violence and Health (Krug et al., 2002) a OMS define

violênciacomosendo:“The intentionaluseofphysical forceorpower, threatenedor

actual,againstoneself,anotherperson,oragainstagrouporcommunity,thateither

results in or has a high likelihood of resulting in injury, death, psychological harm,

maldevelopmentordeprivation” (p.5). ParaaOMSaviolênciapodeser classificada,

considerando as características dos perpetradores e vítimas, como autoinflingida,

interpessoaloucoletiva.Aviolênciainterpessoal,porsuavez,subdivide-seemfamiliar

e comunitária, estando a violência contra crianças definida, pela OMS, como um

subtipodeviolênciainterpessoalfamiliar.

No que se refere especificamente à definição de violência contra crianças a

OMS,noGlobalStatusReportonViolencePrevention(WHO,2014),definemaus-tratos

contra crianças como sendo “...the abuse and neglect of children under 18 years of

age. It includes all types of physical and/or emotional maltreatment, sexual abuse,

neglect, negligence and commercial or other exploitation, which results in actual or

potentialharmtothechild’shealth,survival,developmentordignityinthecontextofa

relationshipofresponsibility,trustorpower(p.70)”.Assim,comonoWorldReporton

Violence and Health, que situa a violência contra crianças como um subtipo de

violênciainterpessoalfamiliar,osmaus-tratoscontracriançasestãoaquilimitadosao

contextoderelaçõesdeconfiançaeresponsabilidade.

Asdefiniçõesetentativasdetipificaçãoacimaapresentadastornamevidentes

asdificuldadesexistentesnorecortedoobjetoespecíficodestepaper:aVitimização

fatal de crianças no espaço público em decorrência da violência interpessoal

comunitária.Nãosetrata,portanto,deapresentarumasistematizaçãodasituaçãode

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violênciacontracriançasnaAméricaLatina(enquantoumtipodeviolênciafamiliarou

queocorreespecificamenteemcontextosdeconfiançaecuidado)massimdetrazerà

luzemquemedidaumoutro tipodeviolência (aviolência interpessoal comunitária,

típicadosespaçospúblicos)acometecriançasfatalmentenaRegião.

Aviolênciainterpessoalcomunitáriaédefinida,pelaOMS,comoaviolênciaque

ocorreentreindivíduosquenãopossuemumarelaçãodeparentesco,emborapossam

serconhecidos,equeocorre,geralmente,“foradecasa”ouseja,emespaçospúblicos

eespaçosinstitucionaiscomoescolas,ambientedetrabalho,instituiçõesdecorreçãoe

outras(Krugetal.2002).Asvítimaspreferenciaissãoadultosjovens,emgeralhomens.

Entretanto,adefiniçãodeviolênciacomunitárianãoserestringeaumtipoespecífico

devítima,sejaemfunçãodesuaidadeousexo,massimaolocalondeocorreeotipo

de relação entre vitima e agressor.Dessa forma, seguindo a tipologia proposta pela

OMSaviolênciacontracriançaspodeserfamiliaroucomunitária,emfunçãodotipo

derelaçãoexistenteentrevítimaeagressor,incluindoatosdenaturezafísica,sexual,

psicológicaesobaformadenegligênciaeprivação.

Uma outra forma de abordar a violência contra crianças é considerando os

diferentes espaços onde ocorrem, os quais incluem a casa (compreendendo as

relaçõesfamiliares)aescola,ambientesdetrabalho,asinstituiçõesdejustiçaeoutras

instituiçõesdecustódiaeacomunidade(ONU,2006;UNICEF,2006;2013;Movimento

Mundial pela Infância, 2011; 2012). Não nos cabe, aqui, fazer uma discussão

aprofundada de cada um desses cenários, e nem sobre os tipos e fatores de risco

associadosàviolênciaemcadaumdeles.Emtermosbastantegeraistodosostiposde

violência– física,psicológica, sexualena formadenegligência–podemocorrer,em

maior emenor grau, em cada umdesses espaços. A composição dos perpetradores

também é diversa e inclui os pais, cuidadores, familiares, professores, autoridades

responsáveispelaaplicaçãoda leieatémesmooutrascrianças. Isto,porqueosatos

violentoscometidoscontraascrianças,porvezes,sãolegitimadospeloEstadoepela

sociedade,poisocorremsobosdisfarcesda“tradição”ou“disciplina”.

As consequências para as crianças associam-se à frequência, recorrência,

gravidadedosatosetipoderelaçãocomosagressores.Caberessaltaraindaquenão

sãopoucososestudosqueafirmamqueasexperiênciasdeviolênciasãointerligadase

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cumulativas(UNICEF,2006;2013)equecriançastendemaservitimadeviolênciaem

diferentesespaçosepordiferentesperpetradores.

Para nós interessa, mais uma vez, tentar estabelecer os limites daquilo que

chamamos,aqui,devitimizaçãofataldecriançasnoespaçopúblicoemdecorrênciada

violênciainterpessoalcomunitária.Retomandomaisumavezadefiniçãopropostapela

OMS,aviolência interpessoalcomunitáriaéaviolênciaqueacontece foradacasa,o

que inclui quatro dos cinco cenários acima descritos (a escola, o trabalho, as

instituições de justiça e custódia e a comunidade). É a vitimização fatal infantil

decorrente da violência interpessoal comunitária que se desenvolve no espaço da

comunidade (excluindo os casos de violência entre pares, violência no ambiente

escolarebullying)queinteressamaisdiretamenteaestenossopaper.

Avitimizaçãofataldecriançasporviolência interpessoalcomunitária aindaé

algo pouco explorado. Sabemos pouco sobre o quanto a violência na comunidade

(comoacriminalidadeurbana,açãodegangues,gruposdecriminalidadeorganizadae

outras formas) é responsável pela morte de crianças no mundo: as informações

existentessãoescassasepoucosistematizadas,oquedificultaumadiagnósticoglobal

maisprecisodoproblemaemtermosdemagnitudeedeterminantes.Emsuamaioria,

osestudosquebuscamestimaraprevalênciadevitimizaçãonapopulaçãogeral,são

realizadoscomamostrasdepopulaçõesadultas,sendorarososqueincluemcrianças.

Estalacunaéaindamaiorquandoconsideramososcasosdevitimizaçãofatal.Agrande

maioria dos estudos sobre homicídios de crianças abordam situações ocorridas no

contexto familiarouapresentamdados sobrehomicídios semespecificaro contexto

noqualasmortesocorreram.Amaiorpartedosestudoscomparativosglobaissobre

homicídioslimitam-seàstaxasparaapopulaçãogeral,porsexoouparaafaixaetária

dejovens.UmaexceçãoéorelatóriodaUNICEF(2014a),comdadosparaafaixaetária

entre0e19anos.

Algunsestudos,entretanto,buscamdefinirostiposdeviolênciamaiscomuns

às diferentes faixas de idade4. Na primeira infância, as crianças pequenas sãomais

4Alémda faixaetária,algunsgruposdecriançasapresentammaiorvulnerabilidadeadiferentes tiposviolência,comoéocasodecriançasquepertencemagruposmarginalizados,comocriançasdeficientes,órfãs,indígenas,minoriasétnicas,deslocadoserefugiados,criançasderuaequevivememinstituiçõesdedetenção.Alémdisso,criançasquevivememcomunidadesemqueadesigualdade,odesempregoe

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vulneráveisàviolênciaocorridanoambientedomésticoporpartedeseuscuidadores-

geralmentemães - e demaismembros da família, em função de sua dependência e

limitadasinteraçõessociaisforadocírculodoméstico.Jánoperíodocorrespondenteà

infância do meio (entre 5/6 e 10/11 anos), há um aumento do risco à violência

interpessoalcomunitária,umavezquedeumladoascriançasatravessamperíodosde

crescente independência em suas relações familiares, o que pode criar conflitos e

consequentepunições“disciplinares”,eporoutropassamafrequentarosambientes

escolares, sujeitos a novas formas de vitimização. Na infância tardia e adolescência

(entre11/12e18anos),tambémconhecidocomooperíododapuberdade,ascrianças

passam a explorar sua independência e a frequentar outros espaços que não o seu

ambiente doméstico; nesta fase elas estão mais propensas a desenvolverem

comportamentosderisco,comooconsumodedrogaseálcooleapráticadesexosem

proteção. Além disso, a maior interação social favorece o envolvimento em

movimentos políticos, lutas armadas ou atividades criminosas que atraem

principalmenteascriançasquevivememcontextossocioeconômicosdesfavorecidose

marginalizados,aumentandosobremaneiraosriscosdemorteporhomicídio(UNICEF,

2014a).

Independentedotipodeviolênciaaoqualestãoexpostas,éconsensualquea

vitimização ou a exposição à violência podem impactar na saúde física emental da

criançaemesmoemseuprocessodesocializaçãofuturo.Pesquisasdemonstramque

quando não se tornam vítimas fatais, elas podem apresentar graves lesões

irremediáveis ao longo da vida e/ou abalos psicológicos de longa duração, como

transtornos pós-traumáticos que podem afetar seu desenvolvimento e

consequentemente reduzir sua capacidade de aprendizado, atingindo inclusive seu

campo de relações sociais e afetivas (ONU, 2006; UNICEF, 2014a). Outros estudos

apontamqueascriançasexpostasàviolênciasistemática,comoaquelasquecrescem

em sociedades marcadas pela presença de organizações terroristas ou de outros

apobrezasãoaltamenteconcentrados,oriscoàviolênciaéaindamaior (ONU,2006),comopodeserobservadonocasodospaísesdaAméricaLatina.

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gruposarmados,têmumaltoriscodevitimizaçãointerpessoalemuitasvezestendem

asetornartambémviolentas(UNICEF,2014a).

Avulnerabilidadedascriançascomrelaçãoàviolênciaéperceptívelmesmonos

países que asseguram oficialmente o compromisso com os dispositivos de proteção

dos direitos humanos e de promoção do desenvolvimento infantil (ONU, 2006:

PINHEIRO, 2006) comprovando a extensão da complexidade dos elementos que

estruturam, reiterame legitimamavitimização letaldascriançaseanecessidadede

seremdesenvolvidasferramentaseficazesdemensuraçãodesteproblema(HUNNICUT

& LAFREE, 2008). Há uma série de fatores que, quando combinados, exercem

influência para que a violência ocorra. São eles: as características da vítima, da sua

família,doagressor,ocontextonoqualavítimaestáinseridaeascaracterísticasgerais

dasociedade (ONU,2006:PINHEIRO,2006).Estes fatoresde risco transversaiscriam

uma atmosfera social propícia à violência e, como resultado, contribuem mais

especificamenteparaavulnerabilidadeinfantilcomrelaçãoàviolênciacomdesfecho

letal. Estes fatores de risco compreendem contextos singulares que envolvem a

presença de crianças em fronteiras ou em locais de conflito armado, a custódia de

criançasnosmaisdiversosmeios-sejaeminstituiçõescomooambienteescolar,em

redes de atenção e de cuidados alternativos ou em instituições de detenção – e a

permanência de crianças em locais de trabalho e em situação de rua. Estes são

componentesqueoferecemsituaçõesderiscoquecontribuem,muitasvezes,paraum

desfecho letal.Ospanoramasa seguir representamumaconvergênciadeelementos

quesãopassíveisdecontribuirparaumamaiorvulnerabilidadedecriançasdaAmérica

Latinaàviolênciafatal.

FATORES ESTRUTURAIS/ CONTEXTUAIS QUE VULNERABILIZAM AS CRIANÇAS ÀVITIMIZAÇÃOFATALEMDECORRÊNCIADAVIOLÊNCIAINTERPESSOALCOMUNITÁRIANAAMÉRICALATINA

A América Latina é uma região ampla e plural do ponto de vista cultural e

socioeconômico.CompreendeumaenormeextensãoterritorialcompaísesdaAmérica

CentraleAméricadoSul.Noquadroabaixo,apresentamosospaísesquecompõema

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região,alémdealgunsdadosatravésdosquaisépossívelperceberadiversidadede

cenários, considerando-se o grau de desenvolvimento socioeconômico e os níveis

globaisdeviolência,medidosatravésdataxademortalidadeporhomicídios(TMH)por

100milhabitantes.MesmoconsiderandoagrandedisparidadenasTMH(cujosvalores

variamentre4,6noChilee85,5,eHonduras)éreconhecida,desdemeadosdadécada

de 1980, a gravidade da situação na Região. Com base nos dados doGlobal Status

Report(OMS,2014),observa-seque13entreos20paísesapresentamTMHsuperiora

10por100milhabitantes,sendoqueem9astaxassuperam20por100mil.

País PopulaçãoTotal

ExtensãoTerritorial

(Km)

Densidadepopulacional

PIBpercapita*

Taxademortalidadeporhomicídio(/100,000)

Argentina 41.803.125 2.780.400 15 14,56 6,0***

Belize 339.758 22.970 15 4,510** 39

Bolívia 10.847.664 1.098.580 10 2,83 33

Brasil 202.033.670 8.515.770 24 11,76 24,3

Chile 17.772.871 756.096 24 14,9 4,6***

Colômbia 48.929.706 1.141.748 44 7,78 34

CostaRica 4.937.755 51.100 97 9,75 8,8ElSalvador 6.383.752 21.040 308 3,78 70

Equador 15.982.551 256.370 64 6,04 13,79

Guatemala 15.859.714 108.890 148 3,44 34,2

Guiana 803.677 214.970 4 3,97 17

Honduras 8.260.749 112.490 74 2,19 85,5

México 123.799.215 1.964.380 64 9,98 24

Nicarágua 6.169.269 130.370 51 1,83 12

Panamá 3.926.017 75.420 53 10,97 17

Paraguai 6.917.579 406.752 17 4,15 9,7***

Peru 30.769.077 1.285.220 24 6,41 6,5

Suriname 543.925 163.820 3 9,370** 9,4

Uruguai 3.418.694 176.220 20 16,36 7,9***

Venezuela 30.851.343 912.050 35 12,82 57,6***

FONTE:Dadosreferentesaoanode2014depopulaçãototal,extensãoterritorial,densidadepopulacionaledePIBpercapitaobtidosdoWorldBankGroup(endereço:www.worldbank.org).Taxasdemortalidadeporhomicídio:GlobalStatusReportonViolencePrevention(WHO,2014).*Rendanacionalbruta(convertidaemU$)divididapelapopulaçãonametadedoano.

11

**Emvirtudedaausênciadedadosreferentesa2014foraminseridosnestescampososúltimosdadosdivulgados,emambososcasos,referentesa2013.***Dados extraídos das tabelas apresentadas como anexo estatístico ao Global Status Report onViolence Prevention (WHO, 2014). Todos os demais foram extraídos dos perfis de cada paísapresentadosnomesmorelatório.

Nesta seção buscaremos discutir alguns dos aspectos contextuais,

característicos a alguns países da América Latina, que concorrem para uma maior

vulnerabilidade de crianças à vitimização fatal em decorrência da violência

comunitária. Não é nosso objetivo fazer uma discussão exaustiva dos aspectos

apontados,enemexploraraespecificidadedecadaumdospaíses,oqueestáalémdo

escopodestepaper.

Pinheiro (ONU,2006) afirma que, quando o foco de análise é direcionado

especificamente à violência contra as crianças, é possível observar que os atos

violentosnãorespeitamasfronteirasgeográficas,declasse,raça,religiãoecultura.A

violênciacontraascriançasabrangeosmaisdiversificadoslocais:ambientedoméstico,

escolas, locaisde trabalho,espaçosparaentretenimento,espaçopúblico,centrosde

cuidado e instituições de detenção (ONU, 2006: PINHEIRO, 2006; FINKELHOR &

DZIUBA-LEATHERMAN,1994). Defato,aviolênciacontracriançaséumproblemade

ordem global com proporções epidêmicas que pode alcançar qualquer criança em

qualquer lugar (seja em casa, na escola ou nas ruas) e pode atémesmo atravessar

gerações(UNICEF,2014).

Emboraaviolênciasejaumproblemadeesferaglobalqueatingecriançasem

todo mundo, é notório o fato de que algumas são particularmente vulneráveis em

funçãodesuaidade,gênero,raça,origemétnicaouporalgumtipodeincapacidadeou

status social. Além disso, características contextuais também resultam em distintos

padrões de vulnerabilidade à violência. Em termos mundiais, todos os tipos de

violênciaestãoassociadosa fatores sociais comopobreza,normassociaiseculturais

de gênero, desemprego,mudanças sociais bruscas, desigualdade de gênero e renda

(WHO,UNODOC&UNDP,2014).SegundodadosdaUNICEF (2014)entreascrianças

quesofremviolência,60%estãovivendoemcondiçõesdepobreza.

Conquantonãosejapossívelcomporumcenáriounitário,nocasoespecíficoda

AméricaLatina,osaltosíndicesdeviolênciaapresentamconexãocomadesigualdade,

12

adimensãoculturaldomachismo,aexclusãosocial–expostapeloscontrastesentrea

riquezaeapobrezaextrema-,asoportunidadesdevidadesiguaisenfrentadaspelos

latino-americanos – tanto com relação ao desenvolvimento educacional, quanto ao

mercadodetrabalhoemfunçãodaaltaconcentraçãodejovensnestaregião-,ecoma

débil legitimidade do monopólio estatal da violência resultante da insuficiência do

Estado de Direito e das práticas corruptas difundidas entre a polícia, com um

importante crescimento e consolidação de grupos de criminalidade organizada

(IMBUSCH,MISSE&CARRIÓN,2011;UNICEF,2006).

Violênciainstitucionalpraticadaporautoridadespoliciais

O informe La violencia contra niños, niñas y adolescentes (UNICEF, 2006)

identifica a violência institucional como sendo decorrente de diferentes formas de

violência praticadas pelas instituições do Estado, seus órgãos e agentes. A violência

institucionalocorretantonointeriordasinstituiçõeseórgãosdereclusãodemeninos,

meninas e adolescentes que estão em conflito com a lei penal, quanto no espaço

público, especialmente nas áreas urbanas, durante as rotinas de abordagem de

meninos,meninas e adolescentes considerados “em atitude suspeita” por parte das

autoridades policiais. Este mesmo informe, demonstra que a violência policial

compreende a violência física (exemplificada também pela prática de execução

sumáriaextrajudicialepelafaltadeproteçãodosdireitosdepessoasquesãovítimas

de linchamento), a violência emocional e patrimonial e tambémpode incluir abusos

sexuais. Segundo aUNICEF (2006), oComité de losDerechos delNiño tem recebido

denúnciasdemaustratosebrutalidadepolicialeque,apesardamaioriadospaísesda

AméricaLatinaproibiremapenademorte,aparticipaçãodeautoridadespoliciaisno

assassinatodeadolescentesembairrospobresouquevivemnasruasparecesermais

frequentedoqueinformamosmeiosdecomunicação.Emgrandepartedestescasos,

anaturezadasatividadesdapolíciaéclandestinaenãoenvolvepolíticasinstitucionais,

mas sim a atividade demembros corruptos nas instituições (UNICEF, 2006). Nestes

contextos, as violações são cometidas pormembros de instituições que, a princípio,

deveriamserresponsáveispelaproteçãodascriançaseadolescentes(UNICEF,2014).

13

DadosapresentadospelorelatóriodoMOVIMENTOMUNDIALPELAINFÂNCIA(2012)5

indicam que, em Honduras, uma grande quantidade de agentes policiais atua à

margemdajustiça,emcumplicidadecomseussuperioresealiadosagruposdocrime

organizado,oqueacarretaumapercepçãonegativaacercadapolícia,comoinstituição

perigosa e com funcionários facilmente subornáveis. Ainda de acordo com o

MovimentoMundialpelaInfância(2012),apolíciadeElSalvadorinspiramedo,faltade

respeito e o risco de sofrer medidas repressivas sem motivo aparente e, entre as

percepçõesapreendidasnaCostaRica,asexigências feitaspelapolícianãomerecem

obediência em virtude da falta de exemplo por parte de alguns membros da

corporação. Segundo o relatório Easy targets: Violence against children worldwide

(HUMANRIGHTSWATCH,2001),naGuatemala,ascriançassofrem,deformahabitual

espancamentos, furtoseabusosexualnasmãosdaPolíciaNacionaledeguardasde

segurançaprivada.Osdelitoscostumamocorrernoperíododanoite,quandoémais

difícil identificar pessoas que possam testemunhar as ações, costumeiramente em

áreas desertas, nos becos e nos postos policiais. As crianças que vivem nas ruas da

Guatemala também sofreram execuções sumárias extrajudiciais. De acordo com o

relatórioHomicídiosdeCriançaseJovensnoBrasil:1980-20026(PERESetal.,2006),no

Brasil, a violência policial atinge mais de 50% das vítimas de Graves Violações de

DireitosHumanos(GVDH)comidadeentre0e4anose5a9anos(53,66%e54,14%,

respectivamente)etambémmaisde50%dasvítimascomidadesde10a14e15a19

anos. (52,83%e53,50%, respectivamente). Ainda combasenosdadosdoNEV/USP

(PERESetal., 2006),88%doscasosde linchamentoe68,53%doscasosdeviolência

policialcometidoscontracriançaseadolescentesde0a19anos,noBrasil,ocorreram

nointeriordeumadelegacia(PERESetal.,2006).

5Violenciacontra losniños,niñasyadolescentes:Estadodesituaciónde lospaísesdeCentroamérica,México,Cuba,yRepúblicaDominicanaenrelaciónconlaviolenciacontralosniños,niñasyadolescentesenseguimientoalEstudiodeNacionesUnidassobrelaViolenciacontralosNiños.6 Estes dados foram coletados do Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos doNúcleodeEstudosdaViolênciadaUniversidadedeSãoPaulo (NEV/USP).Estebancoécompostoporcasosdelinchamento,execuçãosumáriaeviolênciapolicialqueforamnoticiadospelaimprensaescritaentrenoperíodode1980a2003eapresentadadossobregravesviolaçõesdedireitoshumanos(GVDH)nosquaisasvítimasdiretas(fataisounão)eindiretas(testemunhas)sãocriançaseadolescentesentre0e19anos.

14

Conforme afirmam Jesus & Jesus Filho (2012), os percentuais dos acórdãos

proferidospelosTribunaisdeJustiçadaregiãosudestedoBrasilemcasosdecrimede

tortura contra crianças e adolescentes totalizam 35,1% do universo, constituindo

25,7% contra crianças e 9,4% contra adolescentes. Contudo, deve ser levado em

consideração o fato de que segundo os autores, a quantidade de casos que

efetivamentesãocomunicadasaosdelegadosdepolíciaouaoutrasinstânciasformais

decontrolenãopareceretrataraquantidaderealdoscasosderelatosdetorturaque

ocorrem.QuadroalarmantequeserepeteemHonduras,onde,entremaiode2002e

marçode2004,umtotalde59criançasejovenscomidadeinferiora23anosdeidade

morreram na prisão, das quais 41, segundo a alegação de ONG´s locais, foram

executadasilegalmenteporagentesdoEstado(ONU,2006).

NoMéxico,verifica-seumcrescimentodaviolêncianosúltimosanos,inclusive

dos homicídios, com consequências diretas para as crianças. Conforme de Human

RightsWatch(2011),apartirde2006,pormeiodeumapolíticanacionalde“guerra”

aonarcotráfico,empreendidaespecialmentepelousode forçasmilitares,várias têm

sido as vítimas de execuções extrajudiciais, desaparecimentos e tortura. Dessa

maneira, a política de segurança adotada não só tem falhado em combater a

criminalidade, mas tem promovido mais violência, ilegalidade e medo em muitas

regiõesdopaís.Assim,como indicaEmmerich (2011),comoresultadodessapolítica,

quase1.000criançaseadolescentesperderamavida.Apartirdedezembrode2006a

outubrode2010,994criançasforamassassinadasnalutacontraocrimeorganizado.

Entre 2000-2006 esse número tinha sido de 503 crianças, o que demonstra o

crescimento desse tipo de violência, em um curto período de tempo. Ademais,

observa-se um aumento acentuado do estigma contra as crianças que morrem em

uma ação militar contra o tráfico de drogas, imediatamente associando-os com a

atividadecriminal,semnenhumaevidênciaouinvestigação.Osdanosdessa“guerra”

sãomaisperversosparaascriançascomescassosrecursosfinanceirosquehabitamas

regiõesfronteiriçascomaltosníveisdeviolência,comoaCiudadJuárezeTijuana.Além

dos assassinatos das próprias crianças, muitas acabam ficando órfãs por conta da

violência.Apesardessa situação,muitopouco tem sido feitopara apuraros casose

responsabilizarosculpados.

15

Ganguesegruposdecriminalidadeorganizada

Aviolênciarelacionadaaousoeaotráficodedrogastemsetornadofrequente,

principalmente nas cidades que crescem rápido, mas que apresentam pouco

investimento em infraestrutura ou no sistema de justiça. Na América Latina, os

adolescentestêmsidoasvítimasmaisfrequentesdestetipodeviolência.Emtermos

gerais, quaseum terçode todosos assassinatosqueocorrempossuem relação com

ganguesouquadrilhas7,envolvidasdealgumaformacomotráficodedrogasououtras

mercadorias ilegais (UNICEF,2014).DeacordocomRodgers (1999),existemgangues

em diversos países da América Latina, como Peru, México Nicarágua, Costa Rica,

Guatemala, Chile, El Salvador, Brasil, Colômbia e Argentina. Também há registros,

embora escassos, acerca da existência de gangues na Venezuela, Panamá, Uruguai,

BelizeeemHonduras(RODGERS,1999).SegundoImbusch,MisseeCarrión,(2011),os

anos 1990 iniciaram um processo de crescimento de amplitude exponencial com

relaçãoàinserçãodemembrosmuitojovensemganguesnaAméricaLatina.Segundo

aUNICEF(2006),esteprocessosedeu,emparte,emvirtudedascondiçõesdepobreza

epelafaltadeopçõesdetrabalhoeestudoentreascriançasejovensqueresidemem

regiõesquenãosãoalcançadaspelasoportunidadesdedesenvolvimento.Condições

comoestascontribuemparaquecriançaseadolescentesenvolvam-seematividades

ilegais, clandestinas e criminosas. Como consequência, tornam-se alvos da

arbitrariedade, da violência policial e, em última instância, das execuções sumárias

extrajudiciais(MOVIMENTOMUNDIALPORINFANCIA,2012).

Éprecisoressaltaroquãodifíciléestimaralgumdadorelacionadoàsgangues,

masénotórioofatodequeonúmerodelasésignificativamentealto.Deacordocomo

relatório Crime and violence in Central America: A Development challenge (BANK

MUNDIAL, 2011), até o ano de 2011, existiam mais de 900 gangues atuando na

AméricaCentral.Aestimativaeradequecercade70.000membroscompunhamestes

gruposconformedemonstraoquadroabaixo(BANCOMUNDIAL,2011,p.15):

7 Para cada um dos países, existe uma denominação específica para as gangues: em El Salvador, naGuatemalaeemHonduras,elassãochamadasdemaras;naColômbiaenoEquador,bandas;noPeru,chimbasoumanchas;noMéxicoenaNicarágua,pandillas;naArgentina,barras;naCostaRica,parchasouchapulinesenoBrasil,quadrilhasougaleras(IMBUSCH,MISSE&CARRIÓN,2011,p.130,grifosdosautores).

16

QUADRODEATUAÇÃODASGANGUESNAAMÉRICACENTRAL

PaísNúmerodemembros

dasganguesNúmerodegangues

Honduras 36.000 112Guatemala 14.000 434ElSalvador 10.500 4Nicarágua 4.500 268CostaRica 2.660 6Panamá 1.385 94Belize 100 2Total 69.145 920Fonte:CentralAmericanandCaribbeanComissionofPoliceChiefs.In:WORLD BANK. Crime and violence in Central America: ADevelopmentchallenge.Washington,DC:WorldBank,SustainableDevelopment andEconomicManagementUnit, LatinAmerica andtheCaribbeanRegion,2011.p.15.

Omesmorelatório (WORDLBANK,2011)demonstraaindaqueaatuaçãodas

ganguesdaAméricaCentralenvolvedesdecrimesdepequenaescalaedelinquência

(comoroubos,assaltoseextorsãodeempresas locaisdeônibuse táxisemtrocade

proteção nos territórios dominados por gangues, conforme evidencia a atuação das

marasemHonduras,ElSalvadorenaGuatemala)atécrimesqueenvolvemviolência

extrema. Em El Salvador, estima-se que gangues foram responsáveis por 8% dos

homicídiosem2003,9,9%em2004,13,4%em2005e10,7%em2006.NaGuatemala,

aparticipaçãodemembrosdeganguesemhomicídiostambémébastanteexpressiva.

Estima-se que, entre julho de 2002 e agosto de 2003,membros ou ex-membros de

gangues estiveram envolvidos em cerca de 1/3 do total de homicídios. Já em

Honduras,estima-sequecercade15%doshomicídiosestejamrelacionadosàatuação

diretadasgangues(WORLDBANK,2011).

Em termos gerais, na América Central, tanto os perpetradores quanto as

vítimas da violência são jovens do sexo masculino. Com relação a este ponto, na

Nicarágua, por exemplo, cerca de metade dos homens que cometem homicídios

possuem idade entre 15 e 25 anos e em El Salvador, a maioria das pessoas que

cometemcrimesviolentossãohomensjovenscomidadeestimadade23anos.Entre

as vítimas de homicídio na América Central, a maior parte são homens, com idade

entre15e34anos(WORLDBANK,2011).

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OBancoMundial(2011)fazusodomodeloecológicoparadelimitarquaissão

osfatoresderiscoquelevamosjovensaseenvolveremcomgangues,revelandoque

os jovens que participam desses grupos pertencem a uma camada vulnerável da

sociedade.Entreosfatoressociaissedestacam:a)Culturadeviolência,queincluium

conjunto de normas, valores e atitudes que legitimam a prática da violência; b)

Pobrezaedesigualdade,queapesardenãoapresentaremumarelaçãocausalcoma

violência, influenciamnoabandonoescolar, queéum fatorde risco; c)Urbanização

rápida e descontrolada, que contribui para a desorganização e para a falta de

planejamentourbano,resultandonoaumentodograudeviolência;d)Desempregoe

escassez de atividades para os jovens, que aumentam a probabilidade de

envolvimento dos jovens em comportamentos de risco; e)Migração, especialmente

entrecriançasejovensqueficamseparadosdeseuspais,comoéocasodascrianças

quemigram sozinhas para os EUA; f) Tráfico de drogas, que geram comportamento

violento, dependência química que ocasiona envolvimento com atividades ilícitas e

estimulaaparticipaçãoemredesdedistribuiçãodedrogasenocrimeorganizado.

Os fatores comunitários envolvem: a) Baixo investimento no sistema escolar,

que geram o risco de envolvimento em atividades “profissionais” criminosas; b)

Violência escolar, ocasionada pela punição corporal provocada pelos professores ou

atosviolentoscometidosentreosprópriosestudantes;c)Acessolivreàcirculaçãodas

armasdefogo.Entreosfatoresdeordem interpessoalourelacional,sãodestacados:

a)Pobrezaemtermosdemoradia,queobrigaospaisaenfrentaremlongas jornadas

detrabalho,deixandoseusfilhosforadesuasupervisão;b)desestruturaçãofamiliar,

comoenfrentamentodeexperiênciasdeviolêncianoambientefamiliar;c)Redesde

amizadecommembrosdegangues.Osfatoresindividuaisincluemoabusodeálcoole

o processo de construção de identidade entre os jovens e sua necessidade de

pertenceremaumgrupo,emumsistemaqueésocialmenteexcludente.

Embora se reconheça a participação, cada vezmais precoce, de crianças em

grupos de criminalidade organizada e gangues, não existem dados que permitam

estimaraextensãodesseproblemaenemoquantosãovitimadasfatalmenteounão,

pelaviolência(UNICEF,2014).

18

Criançasemsituaçãoderua

O risco de ser vítima de violência por parte de autoridades policiais ou por

profissionaisresponsáveispelasegurançaprivadaémaisfrequenteentrecriançasque

estãoemsituaçãoderua.Osatosviolentoscontraascriançasderuacometidospela

políciaenvolvemextorsão,tortura,abusosexualemuitasvezes,amorte.Asmeninas

que vivem na rua correm o risco de serem forçadas a oferecer sexo para que não

sejam presas ou mesmo enquanto estão sob custódia da polícia. Entre os diversos

fatoresqueestãoenvolvidosnessescasos,oquesedestacaéapercepçãodapolícia

dequeascriançasderuasãovagabundasecriminosas,aliadaàcorrupçãoeàcultura

deviolênciaporpartedosagentespoliciais,àinadequaçãoeàfaltadeimplementação

deumsistemalegaldeproteçãoeàimpunidadeentreosoficiaisquecometemdelitos.

Ascriançasderuasãovulneráveisporquesãojovens,muitasvezes,pequenas,

pobres,nãoconhecemosseusdireitosefrequentementenãoestãosobatuteladeum

adulto que seja responsável por elas.Quando detidas pela polícia, algumas crianças

ficam sujeitas a interrogatórios brutais e a métodos de tortura em troca de

informações ou de uma suposta confissão. Como intuito de obter informações, as

autoridades policiais submetem crianças a punições corporais severas, isolamento,

faltadealimentação,insultosecontençãofísica.Apolícia,porvezes,tambémvêestas

crianças como fonte de dinheiro em troca de proteção e da elaboração ilegal de

documentos de custódia (HUMAN RIGHTSWATCH, 2001). Cerca de 230milhões de

criançasnãopossuemidentidadelegale,comoconsequência,nãopossuemqualquer

possibilidadedeacessoàjustiça(UNICEF,2014).Alémdisso,oresultadodepartedos

abusos - que por vezes assumem um caráter sistemático, e, em última instância,

resultamemmortes–sãofrutodafalhadasautoridadesgovernamentaisematuarde

formaefetivaemfavordapuniçãodosperpetradoreseemagircomfirmezadiantede

ameaçasderetaliação(HUMANRIGHTSWATCH,2001).

DeacordocomaHumanRightsWatch (2001),naGuatemala,ascriançasque

vivem nas ruas sofrem práticas sistemáticas que envolvem furto, abuso sexual e

espancamentocometidospelaPolíciaNacionaleporguardasdesegurançaprivada.Os

19

delitosregistradosnorelatóriocostumamocorrernoperíododanoite,quandoémais

difícilapresençadetestemunhasdasaçõesilícitas.Porestemotivo,osatosviolentos

sãocostumeiramenterealizadosemáreasdesertas,nosbecosenointeriordospostos

policiais.Entreosdelitosdeordemmaisgraveocorridosnopaísdestacam-secasosde

execuções sumárias extrajudiciais cometidas contra crianças em situação de rua

(HUMAN RIGHTSWATCH, 2001). No Brasil também existem relatos e denúncias de

violênciacontracriançasemsituaçãoderua,aexemplodachacinaocorridaem1993,

queganhourepercussãocomoo“MassacredaCandelária”,quando8criançasforam

executadas por um grupo de extermínio, também denominado como esquadrão da

mortedoqualparticipavampoliciais(ROSENBLATT,2014).

Criançasemlocaisdeconflitoarmado

Em situações de conflito, as crianças são os alvos mais frequentes de ações

violentas brutais e indiscriminadas. De acordo com o relatório do Human Rights

Watch,(2001)aUNICEFestimaque,nadécadade190,cercade2milhõesdecrianças

morreramdiretamente emdecorrência de conflitos armados, tanto pela atuaçãode

grupos armados, quanto pela atuação das próprias crianças como “soldados” nos

conflitos.Emlocaisdeconflitosarmados,umoutrogrupodecriançasvulneráveissão

asrefugiadas,quecorremoriscodeseremvítimasdaviolêncianoseupaísdeorigem

enas fronteirasondeserefugiam.Alémdavulnerabilidadecomrelaçãoàperdados

pais, aoabuso físico, violênciaeexploração sexual, estas crianças tambémcorremo

risco de sofrerem ataques, de proporções até mesmo letais, nas fronteiras

(URUSQUIETA, 2014;HUMANRIGHTSWATCH, 2001). Asmeninas apresentammaior

vulnerabilidadecomrelaçãoaataquessexuais.

De acordo com relatório da Human Rights Watch (2001), o Exército

guatemaltecoanunciouacapturade32criançascom17anosoumenos,váriasdelas

commenos de 14 anos, sendoque um terço das crianças capturadas eramdo sexo

feminino.Nasguerrilhas,seascriançascapturadasportassemalgumainformaçãodas

forçasde segurança,enfrentariamamorte comopunição. Entreos soldadosmortos

emconflitosarmados,oExércitodeclarouapresençade20crianças.Noperíodode

20

1995a2000,aHumanRightsWatch(2001)documentouorecrutamentodecrianças

como soldados em conflitos armados na Colômbia, colocando suas vidas em risco

extremo.Entreelas,dezenasforammortasoucapturadasapósencontraremtropasdo

governo ou das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). As forças

paramilitarescolombianascomeçavamarecrutarcriançasapartirdos8anosdeidade

e,deacordocomestimativas,maisde50%dasforçasparamilitareseramcompostas

porcrianças.

Criançasrefugiadasemlocaisdefronteira

As crianças em situações de guerra ou conflito são postas em uma grave

situaçãodevulnerabilidade,comoresultadodosriscosletaisprovenientesdaguerrae

desituaçõesqueasobrigamase retiraremdosseuspaíses,àsvezesacompanhadas

porseusfamiliareseoutrassemaproteçãodeseuspais,embuscadeauxílioemum

novo país de exílio (UNICEF, 2014). As razões pelas quais essas crianças partem

sozinhasnasregiõesdefronteirapodemcompreender:abuscaporoportunidadesde

empregooueducação,afugadeumasituaçãocrônicadepobreza;afugadoabusoou

da violência doméstica; a busca por status, pelo acesso a bens de consumo ou por

oportunidades de entretenimento; a busca pela reconstrução de suas vidas, em

respostaaoimpactocausadoporconflitos,porcatástrofesnaturaisoupeloHIVeAIDS;

para escapar de situações de discriminação (REALE, 2008). Estando em situação de

guerra, as meninas refugiadas são mais vulneráveis a estupros e outras formas de

violênciasexual.Em2013,8milhõesdecrianças foramforçadasadeixarseuspaíses

(UNICEF,2014).

De acordo com oAmerican Immigration Council (2014), a grandemaioria de

criançasdesacompanhadasque ingressaram ilegalmentenosEUAeramprovenientes

doMéxico,Honduras,GuatemalaedeElSalvador.Nestemesmorelatórioconstaque

ototalde68.541criançasforamapreendidasdesacompanhadasnafronteirasudoeste

dosEUA8peloDepartamentodeAlfândegaeProteçãodeFronteiras,sendoque27%

dascriançasvieramdeHonduras,25%vieramdaGuatemala,24%deElSalvadore23%

8Entre 1 de Outubro de 2013 e 30 de setembro de 2014.

21

doMéxico (AMERICAN IMMIGRATIONCOUNCIL, 2014).Outro fato apresentadopelo

American Immigration Council (2014) é que este movimento de crianças – sejam

acompanhadasoudesacompanhadas-nãose limitaaosEUA,poisháumtrânsitode

pessoas que, devido às condições de insegurança que enfrentam em El Salvador,

GuatemalaeHonduras,têmpartidodestespaísesembuscaderefúgionoMéxico,na

Nicarágua,noPanamá,naCostaRicaeemBelize.

A VITIMIZAÇÃO FATAL: HOMICÍDIOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA AMÉRICA

LATINA

Homicídio é aqui entendido como a morte ilegal cometida de maneira

intencionalporumapessoa.Suasmotivaçõessãogeralmentemúltiplaseapresentam-

se sobrepostas, incluindo conflitos interpessoais, atividades criminosas, entre outros

(UNODOC, 2013). Numa perspectiva de curso de vida, Christoffel (1984) indica a

possibilidadedecaracterizaroshomicídiosentreascriançaspormeiodetrêssubtipos,

tendo como base mudanças de vulnerabilidades no desenvolvimento das crianças:

infanticídio, abuso infantil e negligência fatal, e homicídio na comunidade.

Classificação que sugere diferentes fatores, ambientes e atores envolvidos nessas

mortes.Oinfanticídioestariarelacionadoàsdificuldadesnocuidadoparentalnoinício

da vida, associadas a fatores de estresse e outras dificuldades emocionais dos

cuidadores que poderiam desembocar na vitimização fatal. Com o crescimento da

criança,oshomicídiosestariam fortementeatreladosàpunição física corporal como

forma de disciplinamento. Já com o crescimento, situações de interação na

comunidadeseriammaisresponsáveisporessetipodeviolência,quepassaasermais

acentuadaentreosmeninos(UNICEF,2014a).

Assim,diferentesestudostêmindicadoqueaocorrênciadehomicídiosentreas

criançasvariadeacordocomaidadedavítima,sendoafaixa-etáriaentre15e17anos

aquela que está emmaior risco. O segundo grupo é o de bebês. O risco demorte

chegaasertrêsvezesmaiorparacriançasmenoresdeumanodeidadedoquepara

aquelescomidadeentre1a4,queporsuavez,enfrentamodobrodoriscodepessoas

comidadesentre5a14(ONU,2006).Alémdisso,quantomaisjovemacriança,maior

a probabilidade de sua morte ser causada por um membro próximo da família. A

22

maioriadosassassinatosdascriançasmenoresdeumanode idadesãoperpetrados

porumouambosospaisdacriança,frequentementeamãe.Enquantoquecercade

50%a75%dosassassinatosdecriançascom idade inferiora10anossãocometidos

por membros da família, essa proporção cai a cerca de 20% dos assassinatos de

criançasde10a14, e5%dosassassinatosde criançasde15a19 (ONU,2006).Por

contraste,avulnerabilidadedeumacriançaàviolêncianacomunidadeaumentacoma

idade,maturidadeeintensificaçãodecontatoscomoutrasesferasdesociabilidade.

Apesar desses padrões gerais, outro aspecto de extrema importância na

vitimização das crianças por homicídios diz respeito aos contextos sociais dos quais

elas fazem parte. Assim, diferentes países apresentam taxas de homicídios muito

diferenciadas. AOrganizaçãoMundial de Saúde estimaque a taxa de homicídios de

crianças,em2002,foiduasvezesmaiorempaísesdebaixarendadoqueempaísesde

alta renda (2,58 contra 1,21 por 100.000 habitantes) (ONU, 2006). Em números

absolutos, para a faixa etária de 0 a 17 anos, 52,904 crianças foram vítimas de

homicídios,aopassoque42%destetotaltinhamidadeentre15e17anos,dosquais

75%erammeninos (ONU,2006).Emboraestasestimativasnãoespecifiquemo local

no qual os homicídios aconteceram, dados de estatísticas policias ou de outros

sistemasdevigilânciasugeremqueamaioriadoscasosnafaixaetáriacompreendida

entre os 15 e 17 anos ocorreu no espaço público. Não obstante poucos estudos

tenhamexaminadoa relaçãoexistenteentreavítimaeoagressor,osqueo fizeram

sugerem que os autores dos homicídiosmuitas vezes são amigos ou conhecidos da

vítima, motivados por desentendimentos ligados a conflitos interpessoais, e muitas

vezes sob influência de álcool ou em razão do consumoou tráfico de drogas (ONU,

2006).

Esse tipo de violência ocorre em todo o mundo, mas é mais frequente em

regiões mais pobres, a exemplo do que ocorre na América Latina, com contextos

caracterizados pela superpopulação, pobreza, altos índices de desemprego, padrões

educacionaisedemoradiabaixoseausênciadeequipamentossociais.Esteambiente

tornaosjovensvulneráveisaoenvolvimentocomatividadescriminosasilegais,sendo

que naqueles locais em que existe o fácil acesso a armas de fogo, as chances de

23

ocorrerhomicídiossãoaindamaiores.Dadosapontamqueocorrememmédia140.000

homicídiosporanonaAméricaLatina,sendosuataxaduasvezesmaiorqueamédia

mundial, o que a torna a segunda regiãomais violenta domundo, atrás apenas da

África Subsaariana (Banco Mundial, 2006). Além disso, estudos demonstram que a

chancedeumjovemdosexomasculinoservítimadeumhomicídionestaregião,é70

vezes maior do que de um jovemmorador do Reino Unido, por exemplo (UNICEF,

2014a).

A Organização Pan-Americana de Saúde considera a violência na região uma

pandemiaquevemcrescendodeformaalarmantedesdeosanosde1970,criandoum

forteobstáculoaoseudesenvolvimento.Aexemplodoqueocorreglobalmente,além

defatorescomoidade,sexoedesenvolvimentosocioeconômico,asmanifestaçõesde

violência são heterogêneas emuito particulares, variando de acordo como grau de

urbanização,entreregiões,cidadeseatémesmodentrodasmesmascidades,(Banco

Mundial,2006;UNICEF,2006.

A seguir, será apresentado um panorama sobre as mortes por homicídio na

Região.Primeiramente,focalizandonastaxasdehomicídiosgeraisedepoisespecíficas

paraascrianças.Paraessasúltimas,afaixa-etáriautilizadaseráde0a19anos,devido

àdisponibilidadedosdados(deacordocomasprincipaisfontesinternacionais).

ConformeaUNODOC,noanode2012,oshomicídiosforamresponsáveispela

morte de quase meio milhão de pessoas (437,000) no mundo, com maior

concentração nas Américas, seguido pela África e Ásia (36%, 31% e 28%,

respectivamente).Emtermosdetaxasdehomicídios,tem-sequeamédiaglobalpara

esse mesmo ano foi de 6,2 por 100.000 habitantes. Entretanto, amplas são as

disparidadesentreassub-regiões:naÁfricadoSuleAméricaCentralastaxasficaram

acima de 24/100.000 habitantes, seguidas pela América do Sul, “Middle África” e

Caribe(comtaxasentre16e23/100.000habitantes).JáaÁsiaOriental,EuropadoSul

eaEuropaOcidentalsãoassub-regiõescomosmaisbaixosníveisdehomicídio.

Dessemodo,quandoseconsideraaAméricaLatinaobserva-sequeessavemse

caracterizando por ser uma região com as maiores níveis de violência, quando

comparada às demais regiões domundo: “Latin America has long been a violence-

24

prone continent. No other region of theworld knows higher homicide rates nor has

suchavarietyofviolence.Politicalviolence,guerillamovementsandcivilwars,bloody

revolutions, brutal dictatorships, domestic violence, criminal violence, and youth

violenceareallwellknownthroughouthistory”(IMBUSCHetal.,2011,p.88).Imbusch

et al. (2011) sugerem que a alta incidência de violência na América Latina, cuja a

ocorrênciadehomicídiosseriaapenasapontadoiceberg,relaciona-se,entreoutros,

com a grande desigualdade social, com processos de exclusão social, com a frágil

legitimidadedomonopólio estatal da violência, déficits no EstadodeDireito e forte

corrupçãopolicial.

Entre2000a20129, conformerelatóriodaUNODOC,grandepartedospaíses

dessa região, além de terem altas taxas durante todo o período, apresentaram

incremento ao longo do tempo, alguns acima de 100% (como no caso de Belize e

México).Quedasforamobservadasemtrêspaíses:Colômbia,EquadoreParaguai.

9CombasenosdadosdaUNODOC,nãohávaloresparatodaasérietemporalparaosseguintespaíses:Brasil,Bolívia,Suriname,Chile,GuianaFrancesaeChile.

25

Gráfico1

Tendocomobaseoanode2012,observa-sequeospaísescommaiorestaxas

de homicídios, na América Latina, foram Honduras, com uma taxa de 90,4/100.000

habitantes, seguido pela Venezuela, Belize, El Salvador, Guatemala e Colômbia,

conforme o gráfico abaixo (para esse ano não há dados para Guiana Francesa e

Argentina).Há,contudo,paísesqueapresentaramtaxasabaixode10/100.000,como

Paraguai,Peru,CostaRica,Uruguai,SurinameeChile.

0.0

10.0

20.0

30.0

40.0

50.0

60.0

70.0

80.0

90.0

100.0

2000 20012002 20032004 200520062007200820092010 20112012

Taxademortalidadeporhomicídio/100.000habitantes,paísesdaAméricaLalna,2000-2012.

Honduras Venezuela Belice ElSalvadorGuatemala Colombia México PanamáGuiana Equador Nicaragua ParaguaiPeru CostaRica Uruguai

IncrementosHondurasVenezuelaBeliceElSalvadorGuatemalaColômbiaMéxicoPanamáGuianaEquadorNicaráguaParaguaiPeruCostaRicaUruguai

77,663,2159,94,854,1-53,7108,775,571,7-15,121,5-47,892,032,823,4

Fonte:UNODOC,2013.

26

Gráfico2

VITIMIZAÇÃO POR HOMICÍDIOS ENTRE CRIANÇAS: NO MUNDO E NA AMÉRICA

LATINA

Umdosestudosrecentesmaisimportantessobreavitimizaçãodecriançaspor

violêncianomundoconsistenorelatório“Hiddeninplainsight:astatisticalanalysisof

violenceagainstchildren”(UNICEF,2014a).Alémdeabrangerdadossobrediferentes

tiposdeviolência,orelatóriocontemplaumaseçãoespecialdedicadaadimensionar

os homicídios contra as crianças (0 a 19 anos), indicando padrões e diferenciações,

conformeregiões,sub-regiões,países,bemcomoporsexoeidadedasvítimas.

De acordo esse relatório, apenas em 2012, quase 95.000 crianças e

adolescentesentre0e19anostinhamsidovítimasdehomicídionomundointeiro(ou

seja, quase uma em cada cinco vítimas de homicídios, nesse ano, pertencia a essa

faixa-etária).Osdadosmostramquecercade30.000dessascriançastinhammenosde

10anosde idade, sendoque19.000estavamcomapenas0a4anosquando foram

assassinadas. Issodemonstraqueoperíododonascimentoatéos4anosde idadeé

umprimeiromomentocríticoparaesse tipodeviolência,que temumacertaqueda

entre as faixas-etárias seguintes, de 5-9 anos e 10 a 14 anos (11.000 para ambas),

apesardasuapermanência.Entretanto,na faixa-etáriade15e19anosasituaçãoé

90.4

53.744.7 41.2 39.9

30.825.2 21.5 17.2 17 12.4 12.1 11.3 9.7 9.6 8.5 7.9 6.1 3.1

Taxademortalidadeporhomicídiopor100.000habitantes,paísesdaAméricaLalna,2012.

Fonte:UNODOC,2013.

27

ainda mais grave, contabilizando 57% do total de mortes por homicídios entre as

criançaseadolescentesde0a19anos.

Gráfico3

Em termos globais, segundo a UNICEF (2014), a maior parte das crianças

vitimasdehomicídios residemem paísescomrendabaixaoumédia, comdestaque

paraaAméricaLatinaeoCaribe.Nessasregiõessãoencontradososmaioresníveisde

homicídio para essa faixa-etária, contabilizando um total de 25.400 mortes por

homicídiosentrecriançaseadolescentesde0a19anos,oqueconstituiumataxade

12homicídiospor100.000habitantes.Ademais,omaiorriscorecaisobreosmeninos,

contabilizando emmédia 70 por cento das vítimas (UNICEF, 2014a). E embora esse

maior risco seja encontrado no mundo inteiro, adquire proporções mais drásticas

nessasduasregiões,ondeosmeninossãoquasesetevezesmaispropensosamorrer

devido aos homicídios do que as meninas. Os dados apontam que no Panamá,

Venezuela,ElSalvador,Brasil,Guatemala,eColômbia,ohomicídioconstituiu-secomo

aprincipalcausademortesentreadolescentesdosexomasculinonafaixaetáriade10

a 19 anos. O relatório ainda aponta que globalmente, os meninos estão mais

propensos a ser assassinados por estranhos, devido a maior probabilidade do

envolvimento em atividades criminosas, gangues ou conflitos interpessoais em

espaços públicos, ao contrário das meninas, onde os principais perpetradores dos

assassinatossãomembrosdafamíliaouparceirosíntimos(UNICEF,2014a).

57%11%

11%

20%

Númerodevílmasentre0e19anos,porgrupodeidade,2012.

15a19anos

10a14anos

5a9anos

0a4anos

Fonte:UNICEF,2014a.

28

QuandoseobservaospaísesdaAméricaLatinaemseparado,identifica-seque

opaíscommaiortaxadehomicídiosparaafaixa-etáriade0a19anos,em2012,foi

Honduras,seguidoporGuatemalaeVenezuela.Todoscomtaxasdemortalidadepor

homicídiosigualouacimade20por100.000habitantes.Contudo,hápaísescomtaxas

muito inferiores, como Chile, Uruguai, Peru (todos com taxas de 2 por 100.000

habitantes)eSuriname(paraoqualataxafoinula).

Gráfico4

Como mencionado acima, há uma discrepância muito grande no risco de

meninasemeninos seremvítimasdesse tipodeviolência, isso tambémseevidencia

para os países da América Latina, o que pode ser visualizado no gráfico 5. Em

Honduras,em2012,porexemplo,verifica-seamaiortaxaentreosmeninos.Enquanto

essesapresentaramumataxademortalidadeporhomicídiode42/100.000habitantes,

entreasmeninasessevalorfoide11/100.000habitantes.Nessecaso,oriscorelativoé

de3,8.Hápaísesondeesseriscoéaindamaior,comonaVenezuela,ondeosmeninos

têm18,5maischancesdeservítimadehomicídiodoqueasmeninas.

2722 20

17 15 13 137 7 7 6 6 6 5 4 3 2 2 2 0

Taxademortalidadeporhomicídiopor100.000habitantes,faixa-etáriade0a19anos,paísesdaAméricaLalna,2012.

Fonte:UNICEF,2014a.

29

Gráfico5

Essas disparidades continuam quando os dados são desagregados. Assim,

quandosãocomparadososmeninosnafaixa-etáriade10a14anoscomosmeninos

de 15 a 19 anos, identifica-se um aumento expressivo no risco de morrer por

homicídios.SituaçãoqueéaindamaisdrásticanospaísesdaAméricaLatinaeCaribe.

SegundodadosdaUNICEF(2014a),considerandooanode2012,cercade4porcento

dasvítimasdehomicídiodomundosãomeninoscomidadesentre15e19anosnesta

região.Nesse sentido, o caso doBrasil é emblemático, tanto no que diz respeito às

disparidades por idade, como por sexo. Nesse país, enquanto a taxa de homicídios

entrecriançasde0a9anosestáabaixode1por100.000habitantes,essevalorsobe

para32por100.000habitantesnafaixa-etáriade10a19anos,comníveismaisque10

vezesmaioresparaosmeninosquandocomparadosàsmeninas (58por100,000e5

por 100,000, respectivamente) (UNICEF, 2014a, p.38). O mesmo é observado na

Venezuela,ondeataxadehomicídiocrescede1,2por100,000milhabitantes,entre

criançascommenosde10anosdeidade,para39por100.000habitantesentre10e

19anos,comdiferençassignificativasentreossexos(74por100,000entreosmeninos

e3por100,000entreasmeninas).

42

31

37

31

2622

1512 12

9 10 108 8 6 5 3 3 2 0

11 12

2 3 4 311

2 2 5 2 1 3 2 2 1 1 1 1 0

Taxademortalidadeporhomicídiopor100.000habitantes,faixa-etáriade0a19anos,porsexo,paísesdaAméricaLalna,2012.

M F

Fonte:UNICEF,2014a.

30

No quadro abaixo é possível observar a distribuição do risco de morte por

homicídioporidade,nafaixaentre0e19anos,noBrasil,esuaevoluçãoentre2000e

2010(Waiselfisz,2012). Chamaatenção inicialmente,como jámencionadoacima,a

taxademortalidadeentrecriançasmenoresde1ano,superioràscriançasentre1e12

anos.AtaxademortalidadenessafaixaetárianoBrasilsuperaaTaxademortalidade

por homicídio na população total de países como Canadá, Bélgica, Croácia, China,

França, Alemanha (WHO, 2014). Um aumento substancial do risco ocorre com a

entradanaadolescência,apartirdos13anos,e,sobretudo,dos14aos19anos.

Evoluçãodastaxasdehomicídio(em100mil)decriançaseadolescentes(<1a19anos)poridadessimples.Brasil,2000-2010.

Idade 2000 2010 Incremento0 2,4 2,7 13,81 0,8 1,2 36,02 0,8 1,0 20,43 0,9 0,8 -9,44 0,7 0,8 7,65 0,7 0,6 -20,16 0,5 0,7 36,27 0,5 0,7 30,18 0,9 0,7 -18,79 0,8 0,8 5,210 1,1 0,9 -11,911 1,4 1,4 0,212 1,5 1,8 15,113 3,3 4,9 46,414 8,7 9,8 13,115 16,7 22,2 32,916 28,9 37,0 28,117 44,2 52,5 18,818 51,8 58,2 12,419 60,4 60,3 -0,10a19 11,9 13,8 15,8Fonte:Waiselfisz,MapadaViolência,2012.

Ainda em relação ao Brasil, vários outros estudos indicam a gravidade da

vitimizaçãoporhomicídiosdecriançaseadolescentes.ConformePeresetal. (2006),

no período de 1980 a 2002, ocorreram 696.056 óbitos por homicídios no país, dos

quais 16% (110.320) foram na faixa-etária de 0 a 19 anos. As maiores vítimas

31

concentram-senogrupode15a19anos,contabilizando96.588mortos(87,6%).Para

os demais grupos de idades tem-se a seguinte distribuição: 0 a 4 anos (3,1%; 3.465

crianças assassinadas); 5 a 9 anos (1,9%; 2.145 crianças assassinadas); 10 a 14 anos

(7,4%; 8.122 crianças e adolescentes assassinados). Esse padrão de alta vitimização

permanece nos períodos subsequentes. Assim, conforme Melo e Cano (2011), que

analisaram as mortes por homicídios entre adolescentes de 12 a 18 anos para os

municípiosbrasileiros commaisde100milhabitantes,oshomicídios representaram

44%dosóbitosentreosadolescentes,noanode2008,enquantoessevalorfoide6%

para a população geral. Essemesmo estudo faz parte de uma série de publicações

(MELOeCANO,2012;MELOeCANO,2014)quevemdedicando-seacalcularo“Índice

dehomicídiosnaAdolescência”(IHA),oqualexpressaonúmeroesperadodevidasde

adolescentesperdidasporcausadoshomicídiosde12a18anos,paracadagrupode

miladolescentesde12anos.Em2008,oÍndicedeHomicídiosnaAdolescênciaparaos

municípios commaisde100milhabitantesnopaís foide2,27adolescentesmortos

paracadagrupodemil indivíduosde12anos.Em2009,esse índicesubiupara2,61;

em2010,para2,98;eem2012,para3,32,oquedemostraumacréscimosignificativo

ao passar dos anos, inclusive devido ao aumento das mortes por homicídios nas

regiõesNordesteeCentro-Oestedopaís.

Ademais, essa série de estudos indica que o risco de adolescentes do sexo

masculinotornarem-sevítimasdehomicídiofoi,em2008,aproximadamentequatorze

vezesmaiorqueoriscoparaosexofeminino.Nosoutrosanos,oriscorelativofoium

poucomenor,contudoapresentandoamesmatendência(11,5,em2010,e11,92,em

2012). Diferenças também são encontradas quando se considera a cor ou raça dos

adolescenteseosmeiosutilizadosnaperpetraçãodoshomicídios.Paraapopulaçãode

todos os municípios com mais de 100 mil habitantes, os adolescentes negros

apresentaram,em2008,umriscoquatrovezesmaiordeseremassassinadosdoqueos

brancos,oqueapontaparaumasignificativadesigualdaderacial(valorquefoide2,78,

em2010,ede2,96,em2012).Jáemrelaçãoaomeioutilizado,em2008,tem-sequeo

riscodeumadolescenteservítimadehomicídioporarmadefogofoiseisvezesmaior

do que por outrosmeios (risco que foi de 5,6, em 2010, e de 4,67, em 2012). Isto

sublinhaopapelcentraldasarmasdefogonaviolêncialetalcontraessegrupoetário.

32

EstaéumarealidadequeperpassaosdiferentespaísesdaAméricaLatina,que

apresentamtaxatotalde17.827mortespor100.000habitantesperpetradasporarma

defogo,superiorem50%emrelaçãoàafricanaetrezevezesmaiorqueaeuropeiae

a asiática. Esse quadro é aindamais alarmante em relação à população jovem, que

aparececomtaxade35,4por100.000,destacando-seaVenezuela(104,7),Colômbia

(80,5)eElSalvador(78,1)(WAISELFISZ,2008)10.

Peres et al. (2006) também fornecem indicações sobre a importância da

violência no âmbito comunitário na vitimização por homicídios de crianças e

adolescentes no Brasil. Isso é feito a partir da apresentação de dados sobre a

ocorrênciadegravesviolaçõesdedireitoshumanosnoBrasil(fataisenãofatais),das

quais criançaseadolescentesentre0e19anos foramvítimas (diretasou indiretas).

Essesdadospermitemmelhorqualificaraocorrênciadospróprioshomicídiosnopaís

(jáquemuitasdessasviolações,quandofatais,podemtersidoregistradasoficialmente

comohomicídios).Essasinformaçõesfazempartedeumbancodedadoscomnotícias

dejornais11,queadespeitodaslimitaçõesmetodológicas,éumaimportantefontede

informação sobre essas violações, que são compostas por execuções sumárias,

linchamentos e violência policial. Entre os anos de 1980 e 2003, os casos de graves

violações de direitos humanos contra crianças e adolescentes ocorridos no Brasil

noticiadospelaimprensaresultaramemumtotalde5.718vítimas,sendoqueamaior

parte(53%)foideexecuçãosumária,totalizando3.033criançaseadolescentes(entre

0 e 19 anos). Em relação à violência policial, têm-se 2.468 vítimas (43%) e de

linchamentos 217 vítimas (representando, 4%). Os dados apontam que, de forma

agregada, a maior parte dos casos de graves violações (52%) ocorreu em locais

públicos/abertos (especialmentenas“ruas”),sendoquenocasodasexecuçõesesse

percentual foiaindamaior,ouseja,de55%.Ademais,entreasprincipaismotivações

identificadasnoscasosdeexecuçãoestãoa“vingançaeacertodecontas”,seguidopor

aquelasenvolvendo“drogas(consumooutráfico)e/oujogodobicho”.

10OautorutilizadadosdobancodedadosdemortalidadedaOrganizaçãoMundialdeSaúdeparaosanosde2004e2005.11BancodeDadossobreGravesViolaçõesdeDireitosHumanosdoNúcleodeEstudosdaViolênciadaUniversidade de São Paulo (NEV/USP). Trata-se de um banco de dados composto por casos delinchamento,execução sumáriae violênciapolicial,noticiadospela imprensaescritanoperíodoentre1980e2003.

33

CONSIDERAÇÕESFINAIS

Éamplamentereconhecidoofatodequeogrupomaisvulnerávelàviolênciaé

constituídoporcrianças,mulherese idosos(WHO,UNODOC&UNDP,2014).Estudos

existentes evidenciam que a infância é altamente vitimada tanto por violências não

fatais como fatais, incluindo os homicídios. A adoção daDeclaração dos Direitos da

Criança levou alguns dos países signatários a criarem legislações próprias a fim de

promovereprotegerosdireitosdacriança,masissonãotemimpedidoquediferentes

formasdeviolênciacontinuemaocorrer.Até2014,adespeitodasrecomendaçõesda

ONU,apenas41paíseshaviamcriadoinstrumentoslegaisqueabrangessemaquestão

(UNICEF, 2014); atrelado a isso, em muitos locais sequer existe um sistema

responsável por receber e investigar este tipo de denúncia, e mesmo quando

existente,osdadosestatísticoslevantadosporeles,quedeveriamcolaborarparaum

melhor reconhecimento do problema e consequente intervenção, acabam por

subestimarasuamagnitude,orapornãoteracessoàquantidadetotaldecasos,uma

vez que nem todos chegam a ser denunciados, ora porque em muitos países a

violência contra crianças ainda é tolerada em respeito à tradição, ou é socialmente

aceitacomoummeiodisciplinador,demodoanãoseconfigurarcomocrime(World

ReportonViolenceAgainstChildren,UNICEF;2006).

Apesardeesforçosrecentesparadimensionaredarvisibilidadeaoproblema,

resultandoem levantamentos, análisese recomendaçõesdediferentesorganizações

internacionais (ONU, 2006; UNICEF, 2014a), esse ainda é um problema de difícil

mensuração. Isso acaba por limitar o acompanhamento do fenômeno ao longo do

temponosdiferentes países.Osdados sobreo impactoda violência comunitária na

vitimizaçãofataldecriançaseadolescentessãoescassos.Nãoépossívelestimar,com

precisão,onúmeroouataxademortalidadedecriançasemdecorrênciadestetipode

violência.Entretanto,ousodearmasdefogoeoenormecrescimentodaTMHcoma

34

entrada na adolescência, constituem-se em indícios importantes dessa relação, no

mundoenaAméricaLatina.

O nosso objetivo neste paper foi sistematizar as informações existentes,

dispersas em diferentes relatórios, sobre a vitimização fatal de crianças no espaço

público emdecorrência da violência interpessoal comunitária nospaíses daAmérica

Latina. Os resultados encontrados, apesar das limitações dos dados existentes,

permitem afirmar que este é um problema grave na região, assim como a

complexidadedosfatoresenvolvidos.Caberessaltaraindaqueoimpactodaviolência

interpessoalcomunitárianainfâncianãoselimitaàmorte.Osdadossobrevitimização

nãofatalsãoaindamaisescassos,assimcomoavitimizaçãoindiretapelaexposiçãoà

situaçõesviolentasnoespaçopúblico,eoenvolvimentocomovitimasouagressores

defamiliares.

Desdeadécadade1990aAméricaLatinaéreconhecidacomoumadasáreas

maisviolentasdomundo.Aviolência,naRegião,éendêmicaeastaxasdemortalidade

porhomicídiossãoextremamenteelevadas.Avitimizaçãodecriançasnãoéexceção.

Como vimos, as TMH na faixa etária de 0 a 19 anos são bastante expressivas,

especialmentenogrupoentre10e19anos.Poucosestudos,entretanto,desagregam

a taxa por faixas etárias menores, dificultando um diagnóstico mais preciso do

problema.Alémdisso,sãopoucososestudosqueapresentamTMHportipodearma,

principalmente se consideramos as fases de primeira infância e infância do meio,

emborasereconheçaaimportânciadasarmasdefogoparaamortalidadeviolenta.

Embora existam, com vimos, diferenças importantes entre os países, um

conjuntodefatorespermiteexplicarosaltosníveisdeviolênciaencontrados.Aforte

presençadocrimeorganizadoegangues,aviolênciapolicial,criançasemsituaçãode

rua,migraçãoeconflitosarmadosemergememumcenáriodepobrezaedesigualdade

que, juntos, tornam as crianças particularmente vulneráveis à violência comunitária

comdesfecholetal.

35

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WORLDBANK.WorldBankPolicyResearchWorkingPaper,4041,2006.

Intentionalhomicidecountandrateper100,000population,bycountry/territory(2000-2012)Países 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Incr.Honduras 50.9 54.8 55.8 61.4 53.8 46.6 44.3 50.0 60.8 70.7 81.8 91.4 90.4 77,6Venezuela 32.9 32.0 38.0 44.0 37.0 37.3 45.1 47.6 51.9 48.9 45.0 47.8 53.7 63,2Belice 17.2 26.1 34.6 25.9 29.8 29.8 33.0 33.9 35.1 32.2 41.8 39.2 44.7 159,9ElSalvador 39.3 36.9 37.0 36.4 45.8 62.2 64.4 57.1 51.7 70.9 64.1 69.9 41.2 4,8Guatemala 25.9 28.1 30.9 35.1 36.4 42.1 45.3 43.4 46.1 46.5 41.6 38.6 39.9 54,1Colombia 66.5 68.6 68.9 53.8 44.8 39.6 36.8 34.7 33.0 33.7 32.3 33.6 30.8 -53,7Brazil 23.5 23.9 23.0 22.2 23.4 25.2 México 10.3 9.8 9.5 9.3 8.5 9.0 9.3 7.8 12.2 17.0 21.8 22.8 21.5 108,7Panamá 9.8 9.8 12.0 10.4 9.3 10.8 10.8 12.7 18.4 22.6 20.6 20.3 17.2 75,5Guiana 9.9 10.6 18.9 27.3 17.3 18.7 20.0 14.9 20.4 15.0 17.8 16.4 17.0 71,7Equador 14.6 13.0 14.6 14.6 17.7 15.4 17.0 15.9 18.0 17.8 17.6 15.4 12.4 -15,1Bolivia 7.0 6.3 8.1 8.6 8.4 10.4 10.0 12.1 Nicaragua 9.3 10.4 10.6 11.9 12.0 13.4 13.1 12.8 13.0 14.0 13.5 12.5 11.3 21,5Paraguai 18.6 24.1 24.6 22.6 20.9 18.2 15.5 12.8 13.4 12.9 11.5 10.0 9.7 -47,8Peru 5.0 4.9 4.2 4.9 5.6 11.0 11.2 10.4 11.6 10.3 9.3 9.6 9.6 92,0CostaRica 6.4 6.4 6.3 7.2 6.6 7.8 8.0 8.3 11.3 11.4 11.3 10.0 8.5 32,8Uruguai 6.4 6.6 6.9 5.9 5.8 5.7 6.1 5.8 6.6 6.7 6.1 5.9 7.9 23,4Suriname 6.1 Chile 3.2 3.5 3.6 3.7 3.5 3.7 3.2 3.7 3.1 GuianaFrancesa

29.8 22.3 20.1 13.1 14.5 13.3

Argentina 7.2 8.2 9.2 7.6 5.9 5.5 5.3 5.3 5.8 5.5 5.5 Fonte:UNODOC,2013.

Taxadehomicídio/100milhab.(2012)–0a19anosPaís M F TotalElSalvador 42 11 27Guatemala 31 12 22Venezuela 37 2 20Brasil 31 3 17Panamá 26 4 15Colômbia 22 3 13Honduras 15 11 13México 12 2 7Paraguai 12 2 7Bolívia 9 5 7Equador 10 2 6Belice 10 1 6Guiana 8 3 6CostaRica 8 2 5Nicarágua 6 2 4Argentina 5 1 3Chile 3 1 2Uruguai 3 1 2Peru 2 1 2Suriname 0 0 0Fonte:UNICEF,2014.