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7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira
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ETNOLOGI BR SILEIR
Eduardo Viveiros de Castro
IDEOlOGI
::h
ETNOlOGI BR SilEIR
O objetivo do projeto As Cincias Sociais no Brasil: Ten-
dncias e Perspectivas no uma avdiao institucional das
cincias sociais brasileiras, e sim um balano terico.
o enqua-
Jrar a discusso em termos de etnologia (institucionalmente)
brasileira, porm, ele suscita
por
fora questes referentes s
particularidades da disciplina tal como praticada
no
pas, sua
dependncia de paradigmas formulados
no
exterior e outros
assuntos conexos, que exigem um tratamento diferente de um
simples estado da arte .
O que se entende p r
etnologia
brasileira ? Esta pergunta no se
~ f r aqui ao recorte emprico convencionado, mas define o
objeto mesmo do presente artigo, que a idia de uma etnologia
brasileira. Para responder a ela, ser necessrio tecer algumas
consideraes sobre a natuz:eza e a qualidade da
produo
etnolgica nacional; no se trata, contudo, de apreciar substanti-
vamente a contribuio dos estudos sobre os povos indgenas no
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110
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
Brasil (ou mais precisamente, na Amrica do Sul teoria antro
po1gica1. No se trata, tampouco, de uma sociologia
do
campo
intelectual,
ou
de uma antropologia
da
antropologia. Esses
mo-
dos de anlise exigem talentos e gostos) que
me
faltam, e caberi
am melhor a partes menos interessadas que eu. A embocadura
escolhida de o u t ~ ordem, algo como uma 'epistemologia pol
tica' da etnologia feita no pas, pois a idia de uma en:.ologia
brasileira est na origem de
uma
ideologia da etnologia brasileira
- uma ideologia brasileira da etnologia - cujas origens c implica
es merecem uma discusso.
Estarei aproveitando esta ocasio, portanto, para
tomar
par
te e partido em um debate que polarizou grandes extenses
do
meio etnolgico nos ltimos trinta anos. A despeito de ter perdi
do algo de sua pertinncia objetiva (ou talvez justamente por
isso), esse debate no parece prximo de perder sua candncia
poltica na academia nativa, ao contrrio do que eu acreditava e,
no sem otimismo, previra (Viveiros de Castro, 1992, 1995, 1996a).
Com efeito,
um
recente ataque etnologia americanista contem
pornea (Oliveira
P ,
1998), em que se prope, entre outras teses,
uma viagem de volta aos anos dourados da antropologia brasild
ra - as dcadas de 50 e 60
-
levou-me a concluir que,
se;
o
debate sobre a ethnology Brazilian style (Ramos, 1990a) pode
no oferecer mais muito interesse, continua entretanto a revelar
certos interesses.
A
GRANDE DIFERENA
O debate a que estou me referindo ope duas concepes do
o b j e ~ o
da etnologia. Ele foi recentemente qualificado de ciso
que evitamos abordar, na verdade um divisor de guas entre dois
1. Algo que
fh:, para aspectos especficos da produo na rea, em publica
es anteriores; Viveiros de C : ~ s t r o 1992, t993a, 1993b, 1995, 1996a.
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ETNOLOGIA BRASILEIRA
111
modos
distintc.;
de
construir o conhecimento sobre
as
sociedades
indgenas e o desenvolvimento social
A.
Lima, 1998: 263). Tal
dso ou divisor distinguiria duas grandes vertentes dos estudos
antropolgicos sobre populaes indgenas, sempre mencionadas
pelos comentadores e classificadores da
produo
intelectual, e s
vezes rotuladas de
etnologia clssica
e etnologia
do cont lto
lntertnico.
Elas so assim caracterizadas pelo
autor foc.
cit.):
Uma
fa
etnologia d:ssica] dept1rada
de
compromissos com a admi
nistrao pblica, voltada puramente para o desvendamento das 'dimen
ses internas' da vida dos povos indgenas; outra
fa
escola do contato
intcrtnicoJ 'descendente' direta de preocupaes administrativas, via Darcy
Ribeiro, Eduardo Galvo e Roberto Cardoso de Oliveira, em suas passa
gens pelo
SI'I,
na presena em instlincias como o
CNPI,
voltada somente
para o escudo das interaes com a 'sociedade nacional' etc.
Lima hesita
entre
ver tal dicotomizao do
campo como
e..
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112
EDUARDO VIVEIROS
E
CASTRO
intertnico' tornou tal distino especialmente sensvel, e mesmo
mais acentuada, com o correr dos anos.
Em
beneficio dos improvveis leitores no-etnlogos (ou
distrados) deste artigo, esclareo que sou uma das encarnaes
atuais da 'etnologia clssica' naquela instituio, e que
por
'vari
ante fundamentaliSta' da outra tradio refiro-me ao trabalho de
]. Pacheco de Oliveira P e seus discpulos
3
. Estou ciente de que
essa variante no
se
identifica mais com as teorias da s i t u a ~ o
colonial' ou da 'frico intertnica', das quais, entretanto, reco
nheceu-se recentemente caudatria (Oliveira F
0 ,
1998: 56). Ela
privilegia agora conceitos como 'etnicidade', 'inveno da tradi
o', 'territorializao' etc., e reivindica auto-definies mais va-
gas e ambiciosas, como 'antropologia histrica' op. cit.: 69). Mas
como a tal ttulo no faltam pretendentes de outras e muito di
versas origens tericas, a maioria delas perfeitamente clssica,
continuarei a me referir s variantes atuais daquela tradio pelas
expresses genricas 'teoria
do
contato' ou 'escola contatualista'.
Seria certamente bairrismo pretender que a ciso que evita
mos abordar possua a mesma pregnncia ou salincia em escala
nacional. Isto posto, o fato de
ela
se manifestar com mais vigor em
certos contextos e perodos no a reduz a uma oposio puramen
te local e conjuntural; e o fato de ser ideolgica no a torna uma
oposio ilusria. Resta saber o que a dicotomia exprime efetiva
mente, e quais
as
lies gerais que
se
podem extrair dela.
Note-se a grande diferena que existe no estudo de grupos
indgenas quando se os concebe como situados no Brasil, ou quando
se os compreende como p rte do Brasil. Esta observao de
Mariza Peirano (1992:
73
no indica apenas uma grande diferen
a entre
as
muitas presentes em nossa disciplina; ela revda, a
meu juzo, grande diferena ]Ue atravessa e organiza o campo
3.
qual se
filia
(mas com uma agenda prpria)
A C.
Souza Lima, o autor
ora comentado.
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ETNOLOGIA
BRASil.EIRA
3
de estudos indgenas, cortando, por assim dizer, a prpria noo
de etnologia brasileira' pelo meio: h os que ficam
com
o subs
tanth:o, e
h
os
que
ficam
com
o adjetivo.
A frmula de Peirano remete a seus fundamentos
um
dualismo
que
outros
comentadores (e a prpria autora,
em outros momen-
tos) exprimiram de
modo
menos feliz, associando-o a polaridades
classficatrias duvidosas: foco 11as 'dimenses internas' das socie
dades indgenas
ver;u r
foco nos processos de contato intertnico',
pesquisadores ''estrangeiros' vs 'nacionais', 'etnologia clssica'
v r
'etnolop;i::. engafada' e outras oposies semelhantes. Durante boa
IJarte do perodo
em
exame, a grande diferena identificada por Peirano
foi ativamente projetada sobre (e
portanto
ocultada por) essas
po-
laridades, no interesse da fabricao de uma imagem normativa da
'etnologia brasileira': politizada,
comprometida
com a luta indge
na, preocupada
com
a
construo
da sociedade nacional, a'lticolo
nialista, processualista, materialista, histrica, dialtica e outras tantas
virtudes.
Do
outro lado
estaria
uma
certa antropologia metropoli
tana e seus agentes nativos, mentalmente colonizados e
portanto
colonialistas, es
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EDUARDO VIVEIROS DE. CASTRO
a altemativa formulada
por
Peirano, fica mais claro o que est
realmente em jogo.
ROT O
DE
PERSPECTIV
A grande diferena , disse eu acima, remete a uma estrutura
de longa durao
no
campo etnolgico. Com efeito, ela havia
sido claramente percebida, mais de quarenta anos atrs, por um
dos fundadores da etnologia clssica no Brasil
e
que foi tam
bm um dos inspiradores da etnologia
o
contato ). Florestan
Fernandes, em um clebre artigo crtico, evocava as explic:aes
histrico-culturais ento em voga sobre a colonizao e indicava
uma alternativa de grande importncia para a trajetria ulterior
da disciplina:
A hiptese fde Gilberto Freyre] de que os fatores dinmicos do pro
cesso de colonizao e, por consequncia, do de destribalizao, se inscre
viam
na
rbita de influncia e de ao dos brancos, seria a nica etnografi
camente relevante? No seria necessrio estabelecer uma rotao de pers
pectiva, que permitisse encarar os mesmos processos do ngulo dos fato
res dinmicos que operavam a partir das instituies e organizaes sociais
indgenas? ([1956-57) 1975: 128).
A p.:rtinncn dessas perguntas vai alm do desafio histri
co que Florestan identificava: comp:eender a dinmica de im
plantao do sistema colonial nos sculos iniciais da invaso eq
ropia - mesmo porque tais processos no esto esgotados e, sob
alguns aspectos
a
destribalizao ), no parecem caminhar na
direo ento vista como inexorveL
Vai
tambm alm
o
desa
fio
intelectual com que Florestan se identificava: construir uma
etnologia universitria relativamente autnoma frente s expecta
tivas ideolgicas das camadas dirigentes - mesmo porque tal
autonomia ser sempre, e
por
vezes muito, relativa. As perguntas
so pertinentes porque elas indicam um dilema aparentemente
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ETr.;OLOGIA BRASILEIRA
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consubstanciai a uma disciplina cuja condio de possibilidade
o fato da articulao histrica entre ndios e brancos.
Ou
bem a
etnologia, consciente de que tal articulao um processo de
dominao colonial, define seu objeto como constitudo histrica,
poltica e teoricamente pela dominao, e
portanto
sua tarefa
como sendo a de cartografar criticamente tal constituio (com
os olhos em uma futura reconstituio menos desfavorvel aos
ndios); ou oem, buscando a perspectiva das instituies e orga
nizaes sociais indgenas , ela conclui que, longe de estarem
unilateralmente englobadas pela situao colonial, essas estrutu
ras tomam tal situao como um contextu de ifetuao entre outros,
e assim a extrapolam de mltiplas formas, que cabe etnologia
compreender
(de
modo
a valorizar
as
possibilidades indgenas de
'colonizao do colonialismo').
Mas trata-se realmente de um dilema etnolgico? Ou ele
no
est,
na
verdade, iudicando a grande diferena
entre
o pon
to de vista da antropologia e uma abordagem alheia ao manda
t
epistemolgico dessa disciplina? Pois a escolha, em ltima
anlise,
entre uma perspectiva centrada
no
p o
colonial, uma
soCiologia do rasil indgena
(Cardoso de Oliveira, 1978) que toma
os ndios como parte
do
Brasil, e uma perspectiva centrada no
plo nativo, voltada para a construo de
uma
verdadeira
socio-
lo gia
i11dgmct
isto , uma antropologia dos ndios situados no
Brasil. A alternativa clara: ou se tomam os
povos
indgenas
como criaturas do olhar objetivante do Estado nacional, dupli
cand?-se
na teoria a assimetria poltica entre
os
dois plos;
ou
se
buo ca
determinar a atividade propriamente criadora desses
povos na constituio do mundo dos brancos' como um dos
componentes de seu
prprio mundo
vivido, isto ,
como
mat
ria-prima histrica para a 'cultura cultura.nte' dos coletivos ind
genas. A segunda opo parece-me a nica opo - se o que se
desej.l fazer antropologia indgena.
bvio que se podem
estudar os ndios sob outras perspectivas; a antropologia no
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EDUARDO VJVlllROS Dll. CASTRO
tem direitos de exclusividade sobre essa ou qualquer outra fra
o da humanidade. O problema s comea quando se pretende
substituir globalmente a abordagem distintiva e a agenda varia
da da etnologia por uma doutrina monoltica que toma o 'conta
co
intertnico'
como
pedra filosofa da disciplina.
RE E FRICO INTERETNlOGIC
A alternativa clara para mim; mas essa no , com certeza,
a opinio dominante.
Ao
contrrio, estima-se que a principal
caracterstica da antropologia brasileira , justamente, sua preo
cupao com a sociedade nacional" (Crpeau, 1995: 142-143,
que avaliza a observao com uma longa lista de autoridades).
No caso dos estudos indgenas, isso significa que nossa antropo
logia teria se distinguido por no dissociar a investigao dos
grupos tribais do contexto nacional em que esto inseridos" (Car
doso de Oliveira, 1988: 154, em Crpeau
op r:it :
143). Estamos
falando, claro, da teoria
do
contato intertnico, que
j
se disse
ser "che trademark of Brazilian ethnology" (Ramos, 1990a: 21),
e mesmo "a contribuio terica mais original trazida at hoje
pela antropologia brasileira" (Zarur, 1976:
;
ver tambm Peirano,
1998: 118-119).
Mas, entre ser a principal caracterstica e ser a contribuio
terica mais original,
vai
uma certa distncia. O que 'caracteris
ticamente' brasileiro na antropologia brasileira pode no ser o
que antropologicamente mais original, ou sequer mais caracte
risticamente antropolgico. A frase de
Crpeau, sobre a antropo
logia brasileira em geral, neutra quanto a isso;
j
a de Cardoso
quer nitidamente marcar um ponto a favor de nossa etnologia.
Note-se, entretanto, a exata formulao da segunda: os 'grupos
tribais' esto inseridos no contexto nacional Isto , eles so parte
do
contexto
da sociedade nacional, 'inseridos' ('encapsulados', di-
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ETNOLOGIA
BRASILEIRA
117
ro outros)
como
esto em um contexto que os engloba e expli
ca.
Em
troca, para a etnologia que concebe os ndios como situa
dos
no
Brasil, se algo
parte de alguma coisa, s pode ser o
Brasil que parte das sociedades indgenas: parte, justamente,
do
contexto
delas
isto
,
de
sua
situao histrica .
Quando
se
estuda uma sociedade indgena, com efeito, preciso no se dei
xar impressionar pelas evidncias da presena da sociedade colo
nizadora, mas apreend-la a
parr
do contexto indgena em que
ela est inserida e que a determina como tal.
A concepo que, no justo dizer de Peirano,
compreende
os
ndios como parte parte, ela prpria, antes de uma sociologia
poltica (no limite, administrativa) do Brasil que da antropologia
indgena. A extensa linha de investigao derivada dessa concep
o trouxe; aportes preciosos para o entendimento dos processos
de sujeio das sociedades indgenas pela sociedade invasora - o
que aumentou, em particular, nossa compreenso desta ltima,
enriquecendo a historiografia e a sociologia nacionais. Por outro
lado, suas contribuies ao conhecimento antropolgico das so
ciedades indgenas situadas
no
pas estiveram e esto, a
meu
juzo, algo aqum do que sua importncia ideolgica na acade
mia nacional permitiria esperar. Isso especialmente problemti
co em vista da aspirao dessa etnologia caracterstica , manifes
tada
por
algurs de seus representantes atuais, a se constituir em
abordagem exc;lusva e excludente, a nica epistemolgica e poli
ticamente orreta, chegada para desqualificar uma viso suposta
mente traaidonalista, cega
realidade avassaladora da
construo
do
objeto
ndio pelo dispositivo colonial e, por seu brao acad
mico, a etnologia clssica)
5
5. Gostaria de advertir que no estou incluindo Roberto Cardoso de Oliveira
na lista dos 9ue vem a etnologia do contato como a nic abordagem
admissvel para a etnologia brasileira.
Ao
contrrio, Cardoso sempre mos
trou l : ~ r g u e 7 : t de vistas e curiosidade terica. Alm disso, embora eu tenha
discordncias de fundo com o modo pelo qual tanto Darcy Ribeiro
de
que
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8
Estamos,
ao 9ue parece, diante de uma
contradio
irredutvel' entre duas concepes
do
o j e t ~ da etnologia, to
irredutvel quanto
as
contradies intertnicas famosamente ana
lisadas
por
Roberto Cardoso.
Como
nestas, h o lado
dos
ndios
e h o lado dos brancos, entenda-se: o ponto de vista dos
povos
indgenas e o ponto de vista do
Estado
nacional Esses so os dois
atratores conceituais que polarizam a idia de etnologia brasilei
ra. (Um
ponto
de vista, advirta-se, no uma 'opinio', e muito
menos uma 'representao' parcial de uma
realidade-
intertnica,
no
caso - da qual apenas o observador cientfico teria uma
viso
globaiY
Entre
os dois pontos de vista no h mediao possvel,
pois se trata aqui de uma oposio hierrquica, para falarmos
como Dumont,
onde o que est em disputa o lugar de valor
conceitual dominante. (No que no haja uma 'viso global',
portanto; que h duas: cada ponto de vista perfeitamente
global.) A questo a de decidir o que o contexto de que, e,
reciprocamente, quem est 'inserido
no
contexto
de quem.
Esse
dualismo
no
, portanto, o resultado perverso de uma
postura dualista e reducionista'.
intil dizer gue os estudos de
contato intertnico levam em conta (espera-se ) a 'viso indgena'
- pois o gue est em jogo a visada do etnlogo, a partir da qual
a viso indgena pode dar a ver coisas muito diversas. No adian-
falarei adiante) como Roberto Cardoso viam ou vem o objeto da etnologia,
no
m.::
passaria peJa cabea minimizar suas contribuies decisivas a nossa
disciplina e causa indgena no Brasil. Darcy foi o principal responsvel
por uma maior conscientizao das camadas urbanas e das elites dirigen
tes) do pas quanto situao indgena; 'Cardoso,
por
sua vez, no s
modernizou amplos setores da prtica e da reflexo etnolgicas, difundin
do um ideal de trabalho cientfico na rea, como foi o fundador da ps
graduao em antropologia social no pas. Meu 'problema' com a captura
hegemonizante que seus sucessores e discpulos realizaram da idia
de
u m ~ etnologia brasileira, inventando uma 'boa' tradio - que,
paradox111
mente, pretende-se 'no-tradicional', em oposio ao 'tradicioM.lismo' da
tradio alheia.
6. Sobre a 'viso global', ver Oliveira
F ,
1988:
59
n.33.
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1
ta
tamcm argumentar que o contato intertnico gera
uma
'estru
tura u n i f i c ~ d a (ou, quem sabe, um 'campo situaciona1') em que
as instituies coloniais so parte do mecanismo de reproduo
das instituies nativas.
Se
no h dualismo, ento por que se fala
em
'instituies coloniais' e 'instituies nativas' (Oliveira F
0
,
1988: 10)? Se h contato intertnico, preciso que haja algo em
contato: e nada mais substancialista e naturalizante que a fsica
ingnua do contato e da 'frico', que no melhora tanto assim
quando se a substitui pela metfora igualmente fisica do 'cam
po'7. Mas se,
como
penso, no existe esse objeto chamado contato
interitnico ,
porque no h
outro modo
de contar a histria seno
do
ponto
de vista de uma das partes.
No
existe o
ponto
de vista
de Sirius: r1 h 'situao histrica' fora da atividade situante
dos agentes. O problema, portanto, com a 'grande vertente' da
etnologia contatualista no
,
como Lima supe que se supe,
que ela esteja voltada somente para as interaes com a 'socie
dade nacional ' (cf. supra), mas sim que ela est voltada para
as
sociedades indgenas partir
do
Estado nacional, pois nesse
plo que ela fixou a perspectiva.
No
limite, alis, poder-se-iam
dispensar as sociedades indgenas e suas 'interaes' com a socie
dade nacional, ficando s com esta ltima e suas 'construes'
das sociedades indgenas.
igualmente equivocada uma outra alegao usual contra a
etnologia no-contatualista: a de que
ela
operaria com uma dis
tino entre aspectos internos e externos, privilegiando
as
'di
menses internas' dos coletivos indgenas devido a uma paixo
pr-cientfica pela
inferioridade
(Oliveira
P
1988: 27). Aqui talvez
valha a pena explicar que a preocupao da etnologia no
contatualista
contempornea-
melhor cham-la apenas de antro
pologia indgena- no com as 'dimenses internas' da vida dos
7 Os crticos do modelo narurali7.:;tdo de socied1de' no se privam de meti
for:.s naruralistns -
ns
mais em moda atualmente siio hidrulicas: fluxos,
correntes etc.
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12
EDt.;ARDO VIVI'.IROS DE CASTRO
povos indgenas. Em primeiro lugar porque, ao contrrio do que
parecem crer Oliveira ou Lima, seus praticantes no consideram
que
as
dimenses
externas,
tal como so determinadas pelos di
versos regimes sociocosmolgicos indgenas, sejam a
mesm:l coi
sa que a sociedade nacional - isso seria muita presuno
etnocntrica.
Em
segundo lugar porque, uma vez fixada a pers
pectiva no plo indgena, tudo
interno
a l inclusive a 'socieda
de envolvente'. Todas as
relaes so internas, pois uma socieda
de no existe antes e fora das relaes que a constituem, o que
inclui suas relaes com o 'exterior'.
Mas
essas relaes que
a
constituem s podem ser as relaes que ela constitui 0 contato
intertnico , disse um desses autores,
{ ..] um fato constitHiivo,
que preside prpria organizao interna e ao estabelecimento
da identidade de um grupo tnico (oft. cit.:
58;
grifas originais).
O problema saber qtte JJ o o n s t i t u ~ pois no h fatos sem algum
que os faa. Fatos constitutivos so fatos constitudos
8
Dizer que
o fato intertrco
preside
prpria organizao interna - mas
ento
h
um 'interno'? - de um coletivo humano tom-lo come
um fato transcendente, como princpio causal superior e exterior a
uma organizao que ele explica mas que no o explica
e
muito
menos o 'compreende'). O ponto de vista que o constitui, portan
to, est situado fora da 'organizao interna' do grupo: o fato
constitutivo da organizao indgena no constitudo
por
ela.
A crtica suposta nfase clssica nas dimenses internas
das sociedades indgenas deriva assim de uma concepo que
converte o fato da dominao poltica em princpio de governo
ontolgico. O interior 'presidido' pelo exterior- e este ltimo
visto como autocon.rtitudo. Enquanto a antropologia indgena toma
o 'exterior' e o 'interior' como dimenses simultaneamente cons-
8.
Como diria Bachelard,
/es
faits
.ronlfail.r
at mesmo os 'fatos constitutivos'.
E eles no so feitos s pelo analista,
mas
tambm pelos agentes que eles
'fa?.em'.
Ou
ser que os partidrios da abordagem processualista do conta
to acreditam em fatos sem fazedores e
n
processos sem sujeito?
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I . T ~ O L O G I A
IIRASILP.IR,\
121
ritudas por um processo indgena de constituio que no tem
nem dentro nem fora - anterior como ele a essa distino a
que
ele
preside e, portanto, exterior a si mesmo
-
a sociologia
poliricista do contato intertnico, ao tomar
ambos
como dimen
ses de um dispositivo colonial que engloba
do
exterior a reali
dade indgena, v-se forada a contra-reificar
no
plano conceitual
uma dimenso subordinada do interno .
(S
acredita em dimen
ses internas quem no
as
leva a srio, portanto; ou vice-versa.)
Finalmente, pode bem ser que o fato intertnico presida
orga
nizao de um grupo tnico ; mas nem toda sociedade indgena
um grupo tnico, nem todo grupo tnico o tempo todo um
grupo
tnico, e nenhum
grupo
tnico
apenas um grupo tnico.
A reduo dos multiformes
e
multi-situados coletivos indgenas
situao uniforme
de
grupo tnico , tornada
norma do
objeto
etnolgico,
uma das conseqncias de se tomar esse fato constitu
tivo particular, que
o fato intertnico, como sendo
o
fato cons
titutivo geral: a razo, em todos os sentidos da palavra, da exis
tncia social de. tais coletivos. E o contato intertnico acaba as
sim
~ i r a n d o ,
para usarmos Jma expresso cara
escola
contatualista, um obstculo epistemolgico .
Ao criticar a etnologia
c l ~ s i c a
po "
privilegiar o interior
dos coletivos indgenas, Oliveira
F
e Lima parecem,
em
suma,
fazer uma confuso entre uma
metqfl.rica
da inferioridade e uma
O Jtologia
das relaes i11tema.r. Esta ltima caracteriza vrias aborda
gens antropolgicas anti-empiristas, no devendo nada, diga-se
de passagem,
dualidade sociedade indgena/sociedade algena
9
9. Ver,
por
exemplo, o comentrio de A. Gell (1995) sobre Thtgendtr j thtgift
(Sttathern, 1988), um dos livros de maior impacto sobre a antropologia
contemporna. Essa ontologia das relaes internas pode ser classificada
e idealista em oposio concepo empirista das relaes externas,
como fa?. Gell; mas o marxismo tambm j
foi
assim eloquentemente
interpretado (OIIman 1976,
cap. 3:
The philos0phy
of
internai relations ).
Para um bom desenvolvimento filosfico desta posio, ver
G.
Simondon
(1964).
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122
omo
essa filosofia das relaes internas no
se
confunde, justa
mente, com nenhuma fantasmtica substancialista da interioridade,
pode-se tanto dizer que tudo interno
sociedade indgena estu
dada, inclusive a sociedade colonial, como dizer que
tudo lhe F
externo
inclusive
as-
fontes nativas
de
instituio cosmolgica do
socius
10
Na
verdade, tal imaginrio da interioridade autctone pa
rece persistir principalmente
no
seio da teoria do contato, onde
ele
faz as
vezes de espantalho que
se
precisa exorcizar como
preldio a uma anexao discursiva das sociedades nativas
pdas
dimenses, agora sim,
internas
da sociedade nacional: pois apenas
esta, na medida em que
se
encontra unificada e representada
por
um Estado, exige e estabelece uma verdadeira interioridade me
tafsica (Deleuze Guattari, 1980: 445). E
por
falar em mitos de
interioridade, recorde-se que no foram propriamente os etnlogos
clssicos que inventaram essa contradio em termos, a noo de
co/o11ialis11to iutento ,
nem que a aplicaram aos estudos de frico
intertnica.
INVENO D TR DI O
Mas retomemos a representao dualista da etnologia bra
sileira a partir de uma verso ao mesmo tempo mais explcita e
menos polemizante. Alcida Ramos, ern um artigo significativa-
1
O
Ver,
por
exemplo,
as
consideraes de Viveiros de Castro (1986) sobre os
Arawct com
7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira
15/115
123
mente intitulado
Ethnology
Brazilian style ,
apresenta
a uma
audincia norte-americana as contribuies brasileiras
etnologia,
destacando
duas perspectivas
(1990a: 14) influentes
em
nos-
sa academia. importante registrar que A. Ramos no
v
as
duas
perspectivas
como
opostas,
mas apenas
como
distintas;
e
de
fato, a prpria autora deu contribuies importantes para
ambas as linhas
A primeira perspectiva representa, groJso modo o que vamos
aqui chamando
de
'etnologia clssica'. Ainda que
devendo
algo
aos trabalhos pioneiros de
Nimuendaju
ou Baldus, diz Alcida
Ramos, ela derivaria diretamente dos estudos
sobre
os povos
J,
realizados
no
mbito
do
Harvard-Central Brazil Project,
coorde-
nado
por
D. Maybury-Lewis, que reuniu quatro etngrafos ame
ric:mos Lave,]. Bamberger, T. Turner e J C Crocker) e dois
brasileiros (R. DaMatta
e]. C
Melatti). A autora v nas pesquisas
desse grupo, cujo pico de atividade se deu
no
final dos anos 60
12
,
a origem de uma temtica depois desenvolvida
por
pesquisado
res como
M.
Carneiro
da
Cunha,
A
Seeger e E. Viveiros
de
Castro
sobre
as
concepes
de
pessoa e
de
corporalidade
pr-
prias s sociocosmologias indgenas. Ela indica brevemente a co
nexo dessa linha
de
investigao com algumas questes tericas
da
poca, notadamente
com
o consenso estabelecido no
Con-
gresso de Americanistas de 1976 (Overing Kaplan, org., 1977)
11. Como foi o caso de muitos antroplogos de sua coorte geracional, influen
ciados pelo modelo cardosiano
da
frico mas que tiveram uma formao
'clssica' no exterior (Aicida Ramc s R. DaMatta) ou que simplesmente
eram bons etngrafos. O artigo
de
Alcicla Ramos no pretende exaurir a
produo etnolgica, e seu uso ilustrativo das duas linhas de pesquisa
apia um certo nmero de teses substantivas de que trataremos mais adi
ante. Cito o artigo na paginao da edio brasileira (em ingls) aparecida
na 'Srie Antropologia'
da
UnB; no tenho comigo a verso publicada na
CHII rttl 1 z t h m p o l ~ f J ' , no mesmo ano.
12. A publicao cof)junta dos resultados do Harvard-Cemral Brazil Project
d e u ~ e
apenas em 1979 (Maybury-Lewis, org., 1979).
7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira
16/115
124
EOlJ RDO VIVIiiROS OE C STRO
sobre a necessidade de se buscar uma nova linguagem para des
crever
as
sociologias amaznicas. Alcida Ramos evoca,
por
fim,
os numerosos desdobramentos contemporneos dessa perspecti
va em plena expanso, da arte ao ritual,
do
parentesco ao caniba
lismo, do corpo
c.osmologia (Ramos, 1990a: 14-16).
A segunda perspectiva ilustrada exclusivamente por nomes
nacionais, e recebe maior ateno da autora: trata-se da tradio
contarualista op. cit.: 16-22).
A
Ramos comea por sublinhar a
preocupao desde cedo manifestada pela etnologia brasileira em
documentar os mecanismos de dominao tnica e a tran'sforma
o das sociedades indgenas "from self-sufficient units to help ess
appendages
of
the national powers". A autora mostra como essa
preocupao nacional (que ela contrasta com a 'etnografia do
rescaldo' prpria da antropologia indgena norte-americana)
j
se
percebia nas pesquisas sobre aculturao iniciadas nas dcadas de
40-50 em So Paulo. A abordagem aculn1rativa seria reformulada
pelas figuras-chave da etnologia brasileira das duas dcadas se
guintes, Darcy Ribeiro e R Cardoso de Oliveira, ambos egressos
do meio acadmico paulistano, mas que iro transferir para o
io
de Janeiro o centro de gravidade da disciplina. Alcida Ramos suge
re que a "markedly nationalist phase of Brazilian history'' em que
se deu a formao desses autores influenciou os rumos que eles
imprimiram
etnologia. Assim, Darcy Ribeiro teria vindo p o l i t i : z ~ r
em vrios sentidos, a problemtica formalista da aculturao, de
nunciando o etnocdio que se escondia sob esse rtulo neutro,
inserindo-o no guadro da expanso diferencial da fronteira econ
mica nacional e prevendo a extino sociocultural dos povos ind
genas, em um livro de enorme impacto
Os ndios e civilizao).
Acrescente-se a isso um engajamento ativo no Servio de Proteo
aos ndios, onde Darcy Ribeiro iria se definir como continuador da
obra de Rondon e formular uma teoria governamentalista do
'indigenismo', de grande influncia sobre a problemtica latino
americana de mesmo nome. Roberto Cardoso, por sua vez, viria a
7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira
17/115
125
romper com o paradigma aculturativo ainda subscrito por Darcy
Ribeiro Gunto a quem trabalhou no SPI). Inspirado na noo de
'situao colonia:l , extrada da sociologia africanista de Balandier,
Cardoso de Oliveira deslocou o foco analtico da cultura para as
relaes sociais, ao
propor
o conceito de frico intertnica.
Se
Darcy Ribeito poltizou a aculturao, Cardoso
de
Oliveira a
sociologizou, lanando mo de uma paleta ecltica de referncias,
do marxismo
etnocincia, do estruturalismo
fenomenologia.
Mais tarde, ele iria migrar da problemtica da 'frico' para a da
'identidade', e depois para a da 'etnicidade' - ern um percurso
repetido por vrios de seus discpulos-, sem abandonar a questo
geral do contato intertnico
13
Como bem diz Alcida Ramos, Cardoso de Oliveira's
influence on Brazilian anthropology cannot be overemphasized"
(p.
22). Embora tenha tido, como seu antecessor, uma expressiva
participao no campo do indigenismo latino-americano, toman
do assento em organismos internacionais e escrevendo textos
programticos sobre a 'questo indgena', a influncia de Cardo
so de Oliveira sobre a antropologia deu-se essencialmente no
plano universitrio. Fundador c condutor de instituies, refern
cia intelectual central
e pelo menos duas geraes de antroplo
gos, foi graas sua atividade que o
cem2.
do contato intertnico
was-definitely established
as
a tradernark of Brazilian ethnology. For
the e ~ r part o f three decades, rnany students o f indigenous societies h ave
been stimulated by Cardoso de Oliveira and have taken to the field one or
another version
of
his rnodel
of
interethnic friction (pp.
21-22 .
O estilo brasileiro de etnologia
de
que fala o artigo ,
portanto, associado pela autora a essa segunda perspectiva: trinta
13.
Em sua produo
mais
recente sobre as 'antrorJo ogias perifricas', Cardo
so de Oliveira continua de certo ~ o o tematizando a 9uesto do 'contato',
s
CJUC
agora no
mais
no plano dos ndios, e
sim
dos antroplogos.
7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira
18/115
126
anos de contato intertnico tornaram o tema a 'nossa' marca
registrada. Que marcou, alis, mais que a etnologia propria
mente dita: como mostra Akida Ramos, a questo do contato
logo se articulou questo da 'fronteira' e do 'campesinato',
estando na origem da linha de estudos rurais desenvolvida
no
Museu Nacional e alhures. Com efeito, acrescento, assim como
a sociologia do contato buscara instrumentos
de
compreenso
e de explicao da realidade tribal, vista no mais m
si
mas em
relao
sociedade envolvente (Cardoso de Oliveira, 1967:
187), a sociologia do Brasil rural a ela associada iria criticar, em
termos muito semelhantes, as abo.r;dagens 'culturalistas' dos es
tudos de comunidade produzidos nas dcadas anteriores: estes
desdenhariam a histria, no veriam a realidade como 'proces
so', isolariam a comunidade
do
contexto ou sistema
poltico-
econmico mais amplo etc.
14
Comentemos a apresentao das duas perspectivas por
Alcida Ramos. Observe-se, de sada, o carte:: notavelmente
desequilibrado dos respectivos temrios: de um lado, o contato
intertnico; de outro, a pessoa e a corporalidade, mas tambm o
parentesco, a organizao sociopoltica, o xamanismo, a mitolo
gia, o ritual ... - e, acrescente-se, o contato intertnico. Na ver
dade, o discurso terico sobre o contato, nos termos em que ele
foi articulado pela escola que vamos chamando por esse nome,
no chegou a contribuir significativamente para a compreenso
dos fenmenos e dimenses estudados pela 'outra' etnologia
15
.
14. Mas, assim como algumas das monografias etnogrficas resultantes da en
to nova perspectiva friccionista e situacional se desatualizaram mais rapi
damente gue os estudos inspirados nas abordagens 'clssicas', assim tam
bm os estudos de comunidade das dcadas de 40 e 50, com todos os seus
defeitos, continuam a valer a pena ser lidos.
15 Como di7. Ortnet' dos anlogos estrangeiros do contatualismo: The accounts
procluccd from such a pcrspective are oiten l]Uitc unsatisfactory
in
terms
o
tradtional anthropological concerns: the actual
o r g a n i ~ a t i o n
and culture
of
the society
n
lJUCstion
(1984: 143).
7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira
19/115
127
Esta, em troca, veio a incorporar o tema do contato em sua
agenda, aprofundando uma orientao de que
j
se podiam ver
sinais desde o incio dos anos
70
Note-se tambm que o esquema de A Ramos, ao projetar
tematcamente a
dso
que evitamos abordar', procede a uma
reduo de um esquema tripartite tradicionalmente utilizado nos
sobrevos da etnologia brasileira. Refiro-me classificao, pro
posta por Florestan Fernandes e seguida por vrios comentadores,
que indexava
as
pesquisas etnlogicas sob
as
rubricas: 'organiza
o social e poltica'; 'religio e mitologia'; e 'mudana cultural'
ou s o ~ i a i
d e p o i ~
'frico intertnica e e.-nicidade')
16
No
arranjo
de Alcida Ramos, os dois primeiros temas esto contidos dentro
da primeira perspectiva. Isso corresponde, a meu ver, a algo real:
a dcada de
70
viu ruir a barreira entre 'sociedade' e 'cultura',
'instituio' e 'representao', que justificava a diferenciao en
tre aqueles temas (O vering Kaplan, 1977; Viveiros de Castro,
1986; Riviere, 1993). O
fim
dessas distines tradicionais, que
podem ser lidas em sentido tanto funcionalista quanto marxista,
deve-se
influncia fundamental de uma figura que o texto de
A
Ramos s menciona de modo muito alusivo. Estou-me referindo,
naturalmente, a Lvi-Strauss, cuja antropologia tinha como trao
distintivo the eradication of the Durkheimian discinccion between
the social 'base-' and the cultural 'reflecdon' of it (Ortner, 1984:
137). A presena do estruturalismo
na
etnol.Jgia americanista ser
comentada adiante.
De
seu lado, a escola
do
contato ensaiou alguns passos
no sentido de articular os temas da organizao social e da
mudana. Mas ela o fez ao preo de uma exacerbao daquela
16 Fernandes [1956-1957) 1975: 144ss.; Baldus 1968: 21; Schaden,
1976:
8-9;
Melatti,
1983:
35-45. Outros comentrios modificaram ligeiramente o es
q u m ~ tripartite, introdu:ndo os tcrr.as das 'rebc:s com
J
ambiente' e os
estudos
de
arte e tecnologia material (Seeger Viveiros
de
Castro, 1977;
Melatt, 1982).
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20/115
128
EDUARDO VIVEIROS DI\ CASTRO
distino entre o 'social' e o
cultural -
no interesse, claro, do
primeiro conceito - que j havia sido erradicada pelo estrutura
lismo. Ela revelava com isso sua dependncia de um estrato
mais arcaico do campo terico, no qual se defrontavam o
'culturalismo' norte-americano e os vrios 'funcionalismos' bri
tnicos. A sociologa do contato contempornea permanece presa
a essa dicotomia, e sua dileo
por
autores como Gluckman e
Barth remonta cruzada anticulturalista
(e
pr-estruturalista)
das dcadas de 50 e 60, a 'poca de ouro de 'nossa' etnologia.
Confrontados
mais tarde
com
a
ecloso
de
um vigoroso
culturalismo poltico indgena,
os
contatualistas se vero obri
gados a readmitir a detestada noo de cultura - residual mas
irredutvel, advertira Carneiro da Cunha (1979) - pela porta
dos fundos, isto , disfarada de 'etnicidade', e
tambm
a
reinvidicar alguns ps-tudlogos
afterologists,
diria Sahlins) egres
sos da tradio norte-americana
17
Do
lado da 'etnologia clssica',
reunio dos dois primeiros
temas da tripartio tradicional, ocorrida na dcada de 70, se
guiu-se, na dcada de 80, a incorporao do tema da 'mudana'.
A inspirao para esse movimento veio de Marshall Sahlins, que
em um opsculo publicado
ep1
1981 reformulou de um golpe a
questo das relaes entre estruturas socioculturais e transforma
o histrica, oferecendo finalmente ao tema do 'contato intert
nico' uma possibilidade de
interpreta
antropolgica. O exem-
17.
No
caso especfico de Roberto Cardoso,' observe-se que seu trabalho
foi
mostrando uma influncia crescente das abordagens hermenuticas, o. que
sugere um retorno quela problemtica da 'cultura' que ele havia contribudo
para afastar do horizonte da sociologia do contato. Esse deslocamento
posterior
fase
propriamente 'indgena' do :tutor; mas
ele j
estava prefigurado
na passagem
da
teoria da 'frico' ao fenmeno da 'identidade tnica' defini
do como relevando do domnio do ideolW,co (Cardoso de Oliveira,
1976:
xi-ss.). Foi assim que a cultura comeou a reingressar na teoria
do
contato:
como ideologia (nada de tipicamente brasileiro nisso; ver Ottner, 1984: 140).
A etnicidade
foi
o retorno
da
cultura como metarrepresentao.
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ETI OLOGJA llRASILEIRA
129
pio de Sahlins
veJO
desestabilizar de vez a polaridade, j ento
precria, entre as etnologias da tradio e da mudana. Tal
desestabilizai?.o se reflete nos pargrafos finais do artigo de Alei da,
em que a autora registra muito rapidamente o surgimento
do
que
seria uma terceira perspectiva na etnologia brasileira, a saber, o
interesse crescente pela etna-histria
op. cit.:
25). significativo
que, dos poucos autores que ela cita aqui, a maioria pertena ao
contexto acadmico paulista; interessante tambm observar que
esta maioria
-e
isso ficaria ainda mais claro na abundante produ
o sobre histria indgena, contempornea ou posterior data
do artigo
-
esteja teoricamente identificada antes com paradig
mas da etnologia clssica que
com
o contatualismo
18
A implan
tao paulista dessa terceira perspectiva parece-me significativa
por
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22/115
130
EDC,\RDO VIVHIROS D iCASTRO
brasilidade, confiando em que esta seria antes a conseqncia
que a causa de seu fazer etnolgico.
Os comentrios de Alcida Ramos sobre a carreira e obra de
Darcy Ribeiro e Cardoso de Oliveira pedem adendos. A politizao
do tema da aculturao efetuada
por
Darcy Ribeiro estava associa
da a dois componentes de sua personalidade terica: de um lado, a
fascinao pelos esquemas grandiosos do neo-evolucionismo ame
ricano (apimentado, diz a autora, por uma certa "marxian
indinaton"), o qual se constituiu em ruptura com o paradigma
boasiano dominante nos estudos de aculturao; de outro, a deci
so de inserir a problemtica indgena assim redefinida no quadro
das
'teorias do Brasil' formuladas na dcada de
30.
Isso o levou
:a
escrever uma srie de amplos panoramas histrico-culturais de pouca
repercusso acadmica (mas ver, infra
A
marca nacional'). Darcy
Ribeiro props-se,
na
verdade, a ser um Gilberto Freyre indgenista
e de esquerda, que iria recontar a formao
d:
nacionalidade a
partir do duo europeu-indgena
(e no do europeu-africano). Sua
preocupao ltima era com 'o ndio' como ingrediente-chave da
mistura sociocultural brasileira, e sua visada poltica era o naciona
lismo de Estado, corno o mostra sua identificao com Rondon
nos tempos do SPI e sua carreira pblica posterior.
A ruptura de Roberto Cardoso com a tradio da aculturao
seguiu caminhos diversos, mas no inteiramente. O conceito de
frico intertnica deve tanto a Balandier quanto ao modelo das
relaes raciais de Florestan Fernandes, professor de Roberto Car
doso. Como observa Matiza Peirano, a etnologia de
R.
Cardoso
marcada
por
um dilogo terico com os estudos sobre relaes
raciais e no com os
Tupinamb
";
as
monografias indgenas de
Florestan Fernandes no podiam assim "servir de inspirao para
a
abordagem
que caracterizou a antropologia indgena no Brasil (1992:
73-74; grifo meu)
20
Se Darcy Ribeiro foi o Gilberto Freyre
20.
Se
Florestan Fernandes antecipou a tese da grantlt tliftrm;a entre os 'ndios
situados no Brasil' e os 'ndios parte do Brasil', no possvel identificar
7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira
23/115
ETNOJ.OGIA llRASll.li Ri\
131
indigenista, Roberto Cardoso, de certa maneira, tambm ps o
ndio no lugar do
negro-
s que nos termos 'classistas'
de
Florestan
Femandes, no nos racialistas do sodlogo pernambucano. A etnia
foi
vista como um anlogo da classe social: a frico intertnica era
o
equivalente lgico
...
do
que os socilogos chamam de 'luta de
classes"' (Cardoso de Oliveira, 1978: 85). Esse enquadramento
dos povos indgenas no esquema das relaes raciais e da luta de
classes, em que pese sua bem-vinda radicalidade interpretativa,
enraizou ainda mais firmemente a etnologia em uma 'teoria do
Brasi1'
A outra matriz terica direta da sociologia indigenista
de
Roberto Cardoso foi,
como
se sabe, a 'tecria
da
dependncia' de
Gunder
Frank, Stavenhagen e outros menos votados, que utiliza
va
o n;J,esmo modelo da luta de classes para pensar
as
relaes
irternacionais. A escola do contato iria se articular diretamente
com as discusses da poca sobre a troca desigual, o colonialis-
simplesmente suas monografias tupinamb primeira concepo. Como
observa
Mari?.a
Peirano, os ndios de Florestan Fernandes eram, digamos
assim, anteriores a
tal
distino: "os Tupinamb no foram construidos
como objeto em termos de um grupo distinto lit do em territrio brasilei
ro, eles tr mo Brasil de 1500" (Peirano, 1992: 74). Mas h de se convir que
entre ser metaforicamente todo
o Bmsil,
como neste
caso, e s-lo
metonimicamente, como no caso da viso contatualista,
vai
sempre uma
grande diferena.
21. A formatao da 'questo indgena' nas linhas
da
'questo racial' talve7.
posu
tambm ser interpretada como uma estratgia de enobrecimento
poltico da primeira, dando-lhe uma visibilidade e u m ~ pungncia de que
ela no
.-.l::sfrutava.
Observe-se que o papel paradigmtico desempenhado
pelas r e l ~ i k s raciais (entenda-se, negros/brancos) dentro
do
imaginrio
terico da etnologia
do
contato
foi
herdado por sua prognie, s que agora
o circulo est-se fechando: a sociologia indgena derivada do esquema das
relaes raciais comea a servir de modelo para se pensar os 'remanescen
tes-emergentes' de quilombos, e a 'etnicidade' que vem sobredeterminar
as relaes de classe (Arruti, 1997 . .Jo sei se antropolcgia das 'popula
es' afro-brasileiras precisa mesmo desse aporte enviezado,
ou
se ela
j
no est bem mais adiante, como atestam alguns trabalhos admirveis
(Ma1celin,
1996 .
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24/115
132
EDU RDO VIVEIROS
DH
C STRO
mo
'interno',
as famigeradas 'formas
de
transio' ao capitalismo
etc.
22
.
Negros,
ca:nponeses,
o
'Brasil':
tais
foram
as
fontes
analgicas utilizadas pela escola
do
contato
para
pensar
a "reali
dade tribal"; para pens-la, isto
, no
mais em
si,
mas em rela
o sociedade envolvente", como disse
Cardoso
de Oliveira.
Essa
oposio entre tomar a 'realidade tribal' em si ou em
relao
sociedade envolvente reveladora: aquela realidade 'em si'
aparece como substncia, e no como complexo imediata e intrin
secamente relaciona ; e o 'em
rdao'
-
em
relao sociedade
envolvente, note-se, no
com
a sociedade
envolvente-
significa: na
qualidade de parte ontologicamente subordinada. A relao de que
se fala
uma
relao entre parte e todo, e o 'em relao' indica
gual o ponto de vista global se est assumindo. A sociedade indi
gena no vista
como relaonal,
mas como relativa
-
relativa a
um
absoluto gue a sociedade envolvente, a qual ocupa o trono
do
em
si que se recusou 'realidade tribal'.
Contra
essa alternativa entre
tomar seu objeto m1
si
ou em outro, a antropologia indgena esco
lheu tom-lo co;11o constituindo desde o incio
um para
si; isto ,
como um sistema auto-intencional de relaes. O
'em
si' e o
'em
relao' so, nesse caso, sinnimos,
no
antnimos.
Por fim, cabe observar que a
oposio
entre
uma
'etnologia
clssica' ou 'tradicional' e a etnologia
da
'marca registrada' no
um acidente peculiar ao contexto acadmico nativo; se o rebati
menta ideolgico sobre a 'brasilidade'
brasileiro, sua codifica
o terica traz marcas estrangeiras. Pois tal polarizao
muito
semelhante quelas que marcaram outras tradies nacionais,
como
o
cabo-de-guerra
entre 'materialistas'e 'idealistas' que dividiu a
antropologia norte-americana dos anos 50 aos 80, ou a polmica
dos antroplogos 'marxistas' contra os 'estruturalistas'
na
Frana
ps-68.
Um mesmo
ar de famlia perpassa as trs. O debate
22.
Nesses termos, seria descabido ver
ndio
e o
111111 do
doJ
/ rnnoJ
(Cardo
so de Oliveira, 1
964)
como o eco indgena e setentrional do CapitaliJmo e
ucraiJido 11 mJilmmdional
E
H. Cardoso, 1962).
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25/115
En :OI OGIA UR,\SII.EIRA
133
amerit:oL1) teve menos eco no pas, devido pequena popularida
de do n a t ~ r i a l i s m o cultural' (ou 'ecologia cultural') em nossas
plagas; mas 11o se deve esquecer que Darcy e seus associados
mais diretos eram adeptos entusiasmados dessa corrente, e que
ela se opunha, em sua traduo brasileira, ao mesmo 'tipo de
gente' - os malditos idealistas - anatematizado pelos descenden
tes da escola da frico, que importaram da Frana o ant2.gonis
mo
entre Baiandier
(e
demais africanistas de persuaso 'marxis
ta') e Lvi-Strauss (e demais americanistas de persuaso 'estrutu
ralista') e o utiliz3,ram como chave de classificao
23
importan
te pr em continuidade essas trs polarizaes, pois isso permite
ver que a ruptura cosmolgica entre a 'fase Darcy Ribeiro' e a
'fase Roberto Cardoso' da etnologia
do contato foi menos pro
funda do que se pode pensar. Assim, o esquema de tipo 'teoria
da dependncia' adotado pela etnologia contatuaHsta, que veio a
fazer sucesso mundial na antropologia dos anos 70 sob o nome
genrico de 'Political economy school', tem pelo menos um pon
to em comum com o materialismo ecolgico-cultural, como ob
servou perspicazmente
S.
Ortn:::r
(1984)
24
As pesquisas inspira
das
no
paradigma antropolgico da 'economia poltica', diz Ortner,
Have shifted the focus
to
large-scale regional political/economic:
~ ; s t e m s
[ ] Insofar as thcy have attempted to combine this focus with
tradicional fieldwork in specific communiries or micro-regions, their research
23. Para um exame do debate entre africanistas e americanistas na Frana, ver
Taylor, 1984 (comentada em Viveiros de Castro,
1992)
e Albert, 1995
(comentado em Lima, 1998).
24. O artigo de Shcrry Ortncr uma discusso brilhante dos rumos da teoria
antropolgica
d ~ s
anos
60
aos meados da dc-dda
de
80. Entre suas
Guali
dades est a de relarivi?.ar as virtudes teologais de certas nfases ento, e
ainda, em moda no pais e alhures. Sua leitura instrutiva tambm por
permitir uma s t r i t ~ correlao entre a : ~ n t r o p o l o g a feita no Brasil e a
teoria internacional. Ui como c,, alis, o paradij,>rna da 'Political economy
schc.::>l' (tambm conhecida como 'teoria do sistema mundial' etc.), overlaps
wit c
the burgeoning 'erhnicity' industry
op.
cit :
142).
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26/115
134
EDU RDO VIVEIROS DE C STRO
has generally taken the form o f studying the effects o f capitalist penetration
upon thosc
communities f
]
The
emphasis
on thc impact of
externai
forces, and on the ways in which societies change or evolve largely in adaptacion
to such impact, tics the political
economy
school in certain ways
to
the
cultural ecology of rhe sixties, and indeed many of its current pracritioners
were trained in that school [ .. ]
But
whereas for sixties cultural ecology,
often
studying relativdy 'primitive' societies,
the important
externai forces
were
those of
the natural environment, for the sevenries polirical economists,
gencrally studying 'pcasants', thc importam externai forces are those of
the state
and
the capitalist world system
(op. dt : 141-142 .
Com
efeito,
entre
a natureza (americana) e a histria (euro
pia), desaparece a sociedade (indgena). Atirados
de um
lado
para o
outro
pela necessidade natural e pelas necessidades
do
capital, os povos indgenas so vistos
como
registros contingen
tes de realidades mais eminentes. O capitalismo ou o Estado
colonial disputam assim com a
ordem
natural o papel sobrenatu
ral de Grande Objetivador. Longe de estare ' situados no Brasil,
os
ndios,
segundo ambas
essas
concepes,
so
situados
pelo
Bra
sil: ora pelo Brasil ecolgico, ora pelo Brasil poltico. (Quando,
mais tarde, o ecolgico se tornou uma manifestao privilegiada
do poltico, as coisas se complicaram para os dois lados.)
Aqui talvez valha a pena dirimir uma ambigilidade entre a
referncia puramente cartogrfica da 'situao
no
Brasil'
de
que
fala Peirano e o uso conceitualmente motivado
da
palavra 'situa
o' pela escola contatualsta, em que ela costuma aparecer adjetivada
como
situao 'histrica'
25
A ambigidade possvel porque
em
ambos os casos a noo de 'situao' tomada
no
sentido substan
tivo de 'condio', isto , como facticidade: uma 'situao histri
ca' uma 'condio' temporalmente circunscrita. Os ndios de gue
falamos esto situados geograficamente
no
pas, sem dvida; e o
25. A ascendncia terica deste conceito de 'situao' remonta s 'anlises
s i t ~ a c i o n a i s da Escola de Manchcstcr (Gluckman, principalmente) e ao
transacionalismo de f. Barth - duas verses do paradigma que Kuper 1992:
5)
chamou de 'malinowskiano'. Ver tambm Ortner,
1984:
144-145 n.
14.
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27/115
HTt>:OLOGJA BRASJLF IRA
135
Brasil , certamente, um elemento de sua situao histrica, nes
sa acepo passiva. Mas, na frmula de Peirano, a situao visa
indicar um carter circunstancial; Jara a escola do contato, ao con
trrio,
ela
designa uma propriedade condicionante dos coletivos
indgenas:
a
situao
define
o
situado.
A noo de situao histrica
funciona como anlogo do conceito de ambiente ecolgico de um
organismo, mas sob uma perspectiva adaptacionista que v a uni
dade situada ou ambientada como sendo o resultado de presses
externas objetivas que a penetram e constituem; o ambientado
parte e produto do ambiente
26
Contra semelhante entendimento, a
antropologia indgena contempornea toma a noo de situao
no
mesmo sentido
em
que a biologia fenomenolgica toma o par
orgar
7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira
28/115
136
EDU RDO VIVEIROS
Dli
C STRO
TR DIO D INVENO
digno de nota que a ordem de exposio adotada
por
Alcida inverta a sequncia temporal das duas perspectivas apre
sentadas, e que no se preocupe em comentar
as
origens
tericas da primeira delas, evocada apenas no marco etnogrfico
do
Harvard-Cenrral Brazil Project. Ofereamos aqui uma outra
narrativa
28
Os ltimos trinra anos, ao mesmo tempo em que assistiram
a um enorme avano quantitativo c qualitativo nos estudos ind
genas, viram tambm uma diferenciao da linguagem at ento
comum aos etnlogos e aos ourros cientistas sociais
do
pas.
Ainda que sendo, em
boa medida, uma conseqncia da institu
cionalizao da ps-graduao, da acumulao de conhecimentos
e da expanso da populao de pesquisadores, fatores que con
duzem especializao, esse afastamento
foi
sobretudo o resulta
do de uma mudana de horizonte na etnologia brasileira.
pro
poro que se comeou a dedicar uma ateno mais aprofundada
s
instituies e organizaes sociais indgenas, que se passaram
a adotar protocolos mais rigorosos de pesquisa, com o aprendi
zado das lnguas nativas e estadas mais prolongadas no campo, e
que o intercmbio setorizado com especialistas de outras partes
do mundo se intensificou, os marcos de inscrio
do
objeto se
deslocaram. As relaes entre as sociedades indgenas brasileiras
e outras sociedades morfologicamente semelhantes de outras partes
do mundo, bem como
as
conexes histrico-estruturais entre
as
diversas formaes sociais indgenas do continente, passaram a
ocupar um lugar de destaque na reflexo etnolgica, reduzindo
(sem chegar a inverter) a hegemonia de uma abordagem que via
os ndios essencialmente como um captulo - findo ou menor -
da histria e sociologia
do Brasil, isto
como populaes cujo
28. ma \ erso mais completa se encontra
em
Viveiros de Castro, 1992 e
1996a.
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29/115
ETI OI.OGIA I RAS UiiRA
137
interesse antropolgico se resumia s suas contribuies cultu
ra nacional ou a seu papel de smbolo- passado ou perene- dos
processos de sujeio poltico-econmica que se exprimiriam de
modo mais
'moderno'
na dinmica da luta
de
classes de nosso
capitalismo autoritrio.
e o deslocamento acima mencionado, que comeou timi
damente no final dos anos 60, desembocou em um modo de
investigao distante das preocupaes caractersticas da ideolo
gi
do nation building e com isso afastou parte da etnologia das
demais cincias sociais, quase sempre entretidas com temas bra
sileiros - , contribuiu tambm para um divrcio entre duas linhas
de pesquisa presentes na etnologia universitria das dcadas an
teriores e que at ento haviam convivido sem problemas, prati
cadas sucessiva ou simultaneamente pelos mesmos pesquisado
res (nacionais e estrangeiros): a linha dos estudos preocupados
em descrever etnograficamente s formas soc:iocultu.:ais nativas,
mais tarde identificada como 'etnologia clssica'; e a linha dos
estudos de :.dilturao
ou
mudana social, mais tarde associada
noo-emblema de 'contato ntertnico' e seus derivados. Essa
fratura, que chegou, entre 1975 e 1985 aproximadamente, a defi
nir algo como linhagens antagonistas - os etnlogos dos 'ndios
puros ou isolados' versus os dos 'ndios aculturados ou campone
ses' - , continua, como vimos, em vigor em alguns centros do
pas, embora com sua significao terica bastante esvaziada, em
vista das mudanas ocorridas a partir dos anos 80, tanto na prti
ca antropolgica como na presena poltica dos povos indgenas
nos cenrios nacional e internacional, que dissolveram a oposi
o evolucionista entre 'tradio' e 'mudana', 'ndios puros' e
'ndios aculturados'.
Mas essa dissoluo no
tomou
a direo que se poderia
imaginar - porque o que se dissolveu era, justamente, imaginrio.
Assim, depois de anos de polmicas acerbas, em que os partid
rios da etnologia do contato martelavam que a
condio
camponesa
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1 38
liDU.\RDO VIVHJROS OH CASTRO
(com opo de 'proletarizao') era o devir histrico inexorvel
das sociedades indgenas, e que a descrio dessas sociedades
como entidades socioculturais autnomas supunha um 'modelo
naturalizado' e a-histrico, eis que de repente os ndios comeam
a reivindicar e terminam
por
obter
o reconhecimento constituci
onal de um estatuto diferenciado permanente dentro da chamada
comunho nacional'; eis que eles implementam ambiciosos pro
jetos de retradicionalizao marcados por um autonomismo
'culturalista' que, por instrumentalista e etnicizante, no menos
primordialista nem menos naturalizante; eis, por fim, que algu
mas comunidades rurais situadas nas reas mais arquetipicamente
'camponesas'
do
pas pem-se a reassumir sua condio indge
na, em um processo de
transfigurao
tnica que o exato inverso
daquele anunciado por Darcy Ribeiro (1970) em profecia acredi
tada,
com
um retoque
ou
outro, pelas geraes subseqentes de
tericos do contato. Estes agora descobrem que o gue estudavam
como
se fossem 'comunidades rurais que apresentavam a parti
cularidade de ser indgenas' eram, na verdade, 'comunidades ind
genas que tinham a particularidade de ser camponesas'
29
Redistri
buio das qualidades primrias e secundrias,
do
necessrio e
do
acessrio?
Em
face das preocupaes 'metafsicas, caractersticas
da escola contatualista, com a ltalureza ti tinJa de seu objeto (natu
reza que ela s vezes chama,
por
curiosa antfrase,
de
'construo'),
tal reviravolta deve estar sendo difcil de administrar
30
A partir do incio dos anos 70, a etnologia sul-americana
iniciou um
amplo
c
concertado
salto
.adiante
na
cobertura
etnogrfica
do mundo
indgena; ao mesmo tempo, ela procedeu a
uma completa atualizao terica dessa fronteira fssil da an-
29.
P:ua(taseio
aqui
Atruti
(1997:
13), que
fa;o:
o contraste para o caso dos
estudos sobre comunidades negrns. O indio 'genrico' revelou-se um cam
pons realmente muito particular, sobretudo agora que alguns 'campone
ses' genricos esto virando ndios muito particulares.
30. Sobre a nature?.a ltima dos grupos tnicos , ver Oliveira
P ,
1998: 61.
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31/115
ETNOI OGit\ BRASII.HIRA
139
tropologia que era o americanismo tropical at ento (Taylor,
1984). No caso brasileiro, isso significou uma deciso de se res
tabelecer o equilbrio entre a sociologia do contato, que havia
progredido muito nos anos anteriores (desdobrando-se em com
plicadas discusses sobre o campesinato e os modos de produ
o ~ , e a antropologia indgena, que permanecia notavelmente
pobre dos pontos de vista descritivo e conceituaP
1
A conscincia
desse descompasso entre a proliferao de estudos intertnicos e
o pouco que efetivamente se sabia sobre os sistemas nativos
tornava necessrio estender o avano realizado pelo grupo de
Maybury-Lewis e outros especialistas no Brasil central at outras
reas culturais, em especial at a Amaznia brasileira, criando
uma interlocuo com pesquisadores como
P. Rivire eJ Overing,
que haviam comeado uma reflexo rigorosa sobre as sociologi
as
nativas do escudo da Guiana. Esse movimento, como eu disse
acima, teve como um de seus objetivos a elaborao de paradig
ma
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140
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
preciso os sistemas sociocosmolgicos indgenas - a questo
do
contato intertnico foi tratada, ao menos de incio, algo perfunc
toriamente. De seu lado, os captulos dedicados aos 'elementos
de organizao social' das monografias produzidas pelos tericos
do
contato
m o s t r v ~ m
que estes continuavam prisioneiros da su
perficialidade etnogrfica e da linguagem tipolgica de que nos
queramos 1ivrar
33
,
As dcadas de 70 e 80 assistiram a um renascimento da
etnologia americanista em escala mundial O primeiro resultado
foi a proliferao de etnografias tecnicamente modernas, nas quais
as
influncias europias superavam
as
norte-americanas, mais fortes
nas dcadas anteriores
34
Logo em seguida, snteses comparativas
regionais, temticas ou conceituais, foram construindo um cam
po problemtico comum, em um trabalho que prossegue
35
A
vcl conexo entre esse 'africanismo' conceitual e Rtjuela projeo
do
mode
lo das 'relaes raciais' sobre as 'relaes intertnicas'.
33. Traditional studies often presented us with a thin chapter
on
'historical
background' at the bcginning and
an
inadequate chaptcr on 'social change'
at the end. The political economy study inverts this relationship,
but
only
to create the inverse problem (Ortner, 1984: 143).
De
fato, os estudos
tpicos da escola do contato intertnico espremiam um captulo, geralmen
te
inadequado, sobre 'organi7.ao social' entre longas partes dedicadas ao
'historical background' (mas entendido apenas como histria do contato) e
'social change'
e
a questo de saber o t:]Ue, exatamente, estava a passar
por tal processo permanecia algo misteriosa).
34. Maybury-Lewis, 1967; Riviere, 1969; Basso, i973; DaMatta, 1976; Overing
Kaplan, 1975; Melatti, 1978; Carneiro da Cunha, 1978; C. Hugh-Jones,
1979;
S.
Hugh-Jones, 1979; Seeger, 1981; Chaumeil, 1983; Albert, 1985;
Crocker, 1985; Viveiros de Castro, 1986; Lea, 1986; Descola, 1986; Townsley,
1988; McCallum, 1989; Ramos, 1990b; Gow, 1991.
35. Ver Overing
K : ~ p l a n
org., 1977; Seeger
t a/.
1979; Turner, 1979; Overing,
1981; Butt Colson Heinen, orgs., 1983-1983; Kensinger, org., 1984;
Riviere, 1984; Turner, 1984; Menget, org., 1985; Hornborg, 1988; Viveiros
de Castro Carneiro da Cunha, orgs., 1993; Descola Taylor, orgs., 1993;
Viveiros de Castro, org., 1995; Henley, 1996a. Em Viveiros de Castro,
1996a, encontra-se um mapeamento das diferenas internas ao campo te
rico do novo americanismo.
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I ~ T I : O I . O G J A JlRASli.EJR,\
141
contribuio da etnologia feita
no
Brasil a esse renascimento
foi
decisiva, como atestam
as
referncias a uma "escola de pensa
mento europia-brasileira" (em oposio a uma escola norte-ame
ricana) ou a uma "teoria brasileira do parentesco"
36
. Alguns tex
tos da dcada de 70 escritos
por
pesquisadores brasileiros, alis,
anteciparam questes s levantadas bem mais tarde pela antropo
logia, como os artigos seminais de DaMatta (1970) e Carneiro da
Cunha (1973) sobre as relaes entre mito, ritual e histria, ou o
artigo de Seeger
t
ai. (1979) sobre a corporalidade, que prefigu
rava a temtica do 'e l1bodi Jient' hoje to em voga e que teve, no
obstantr.: sua difuso restrita, um certo impacto na discplina
37
Essa expanso da antropologia indgena nas duas dcadas
passadas levou muitos etnlogos, cuja carreira se iniciou
no
co
meo dos anos 80, a reverter certas pr-escolhas tericas, passan
do da sociologia do contato
antropologia indgena. Vanessa
Lea (1986) e Peter Gow (1991), por exemplo, que saram a estu-
36.
Ver,
p.
ex., Rivire, 1993; Whitehead, 1995: 70; Henley, 1996a, b, gue assim
se referem ao trabalho de etnlogos 'clssicos' em atividade no pais, no
'ethnology
Bra7.ilian
style'.
37. Comentando mudana de rumos da etnolcga americanista iniciada na
segunda metade dos anos 70, Rivire escreveu recentemente: It was the
publication of A construo da pessoa nas sociedades indgenas brasilei
ras'
(Sec.g_,.
et
ai.,
1979) that proved decisively influential. These authors
rejected .vl1at they labelled as the African mode . .. and went to make some
positive proposals. They argued that, in Lowland South America, societies
are structurcd in terms of the symbolic idioms n : ~ . m e s , essences etc.) that
relate
to
the construction
of
the person
: ~ . n d
the
f a b r i c : ~ . t i o n
of
the body.
This set of ideas have been very ir.fluential, although one suspects that its
full
impact has beco lost because not only that work but much of the
resulting litemture has been published
onlr
in Portuguese" (1993: 509).
Esse balano de Rhire d uma boa idh do peso contemporneo da
etnologia feita no Brasil: um tero de suas referncias composto de
trabalhos escritos por brasileiros (naturais, culturais ou institucionais). Uma
consulta s outras bibliografias coletnea em gue ele apareceu refora
esta impresso (Descola Taylor, orgs., 1993), gue pode ser confirmada
em trabalhos mais recentes (Hirt7.el, 1998, Surrals, 1999).
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142
EDUARDO VJVHIROS DH C,\STRO
dar os Kayap c os Pro munidos do iderio da escola do conta
to, visando documentar os processos de penetrao do capitalis
mo e do colonialismo na vida indgena, terminaram escrevendo
estudos detalhados justamente sobre o parentesco - esse emble
ma da antropologia
~ l s s i c
- ,
ao perceber que essa era a dimen
so que os ndios lhe colocavam
frentelB.
Trocaram, assim, a
sociologia da questo indgena por uma antropologia das
ques-
tes indgenar tornadas teoricamente acessveis a partir dos anos
70: rotao de perspectiva.
Mas,
nesse momento, comeava tambm a ser possvel uma
retomada do tema do contato e da histria em novas bases. Isso
foi
realizado, entre outros,
por
Gow, que em sua monografia
sobre os Piro da Amaznia peruana adotou uma estratgia que
demoliu a distino entre os ndios puros e seus etnlogos pu
ristas , de um lado, e os ndios misturados e seus etnlogos
radicais , de outro. Escrevendo sobre um grupo indgena que
parecia tipificar um estado avanado de aculturao, acampone
samento e sujeio aos poderes nacionais,
Gow
mostrou como
s se poderia atingir uma compreenso adequada
do
mundo vivi
do piro atravs de sua insero no panorama construdo pela
etnologia dos ndios puros . Rejeitando explicitamente a pers
pectiva da sociologia do contato e da etnicidade (1991: 11-15), o
autor lanou mo dos trabalhos de Overing e de Viveiros de
Castro sobre as filosofias sociais amaznicas
op.
dt.: 275-281,
290 ss. para argumentar que o estado aculturado dos Piro era
uma transformao histrica e estrutural dos regimes nativos tra
dicionais e, mais que isso, que a transformao era um processo
inerente ao funcionamento desses
regimes-
regimes que semp,re
38. Compare-se esse movimento com aquele realizado
por
etnlogos que co
mearam seu trabalho alguns anos antes. Assim, Oliveira
F (1988: 11:-12)
conta como abandonou seu projeto inicial
de
estudar a ideologia de paren
tesco dos Ticuna
par2
mergulhar
em
uma anlise do campo indigenista
local.
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ETNOI.OGJ,\ 3RASII.HIRA
143
tiveram a 'aculturao' por origem e fundamento da 'cultura', e a
exterioridade social
por plo
em
perptuo movimento
de
interorizao
39
Gow mostraria, alm disso e sobretudo- contra
esteretipos ainda hoje em vigor -;que a obra americanista de
Lvi-Strauss oferecia instrumentos muito mais ricos para se en
tender a inscrio temporal do mundo vivido dos Piro que
as
teorias metacolonialistas do contato e da sujeio
40
A dita 'etnologia clssica', assim, incorporou a questo do
contato intertnico, valendo-se dos conhecimentos que viera acu
mulando desde as dcadas anteriores. O tema da transformao
foi dissociado da teoria do 'acamponesamento' (que parece ter
sido, alis, sepultada sem muita pompa p;)r seus antigos
fiis
e
de outras objetivaes igualmente redutoras, passando a se ins
crever no plano mesmo dos pressupostos sociocosmolgicos dos
regimes nativos. Recusando-se a tomar o mundo indgena como
simples cenrio de manifestao de uma estrutura de dominao
algena, como
um
arbitrrio cultural (Oliveira P 1988: 14 com
valor meramente particularizador de uma dinmica geral de su
jeio - arbitrrio de medocre rendimento analtico, dada a pres
so inexorvel exercida pelos "processos homogeneizadores" pr
prios da situao colonial - a etnologia 'clssica' estendeu sua
prpria visada terica de um modo que lhe permitiu redefinir os
brancos, o Estado ou o capitalismo como outros tantos daqueles
arbitrrios
histricos
com que sempre se houveram e havero os
sistemas nativos (Albert, 1988, 1993; Ga los, 1993; Gow,
op cit ;
S.
Hugh-Jones, 1988; Turner, 1991, 1993; Vilaa, 1996a). Para
39. '"Accult .lration'
is
only possible here if 'acculturation'
is
a traditional feature
o f indigenous Amazonian societies" (Gow, 1999: 2). Essa idia foi esboada
em minha tese sobre os Arawet (1986; ver tambm Carneiro da Cunha
Viveilos Castro, 1985), e mais tarde desenvolvida em um trabalho sobre
a representao jesutica dos Tupinamb (Viveiros de Castro, 1993c),
no
qual a influncia reciproca do t r b ~ l h o de Gow
j se
fa7. presente.
40. Este tema de uma histria 'lvi-straussiana' da /.ma7.nia indgena o foco
de um livro em preparao de
Gow
(1998).
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144
EDUARDO VIVEIROS DI; C\STRO
isso foi-lhe indiscutivelmente necessrio
abrir
esses sistemas, aban
donando
as
imagens conceituais de 'sociedade' e de 'cultura'
legadas pelo funcionalismo britnico
ou
pelo culturalismo ameri
cano. Embora inspirada na crtica estruturalista
s
concepes
totalizantes
do
objeto vigentes nos paradigmas anteriores, seme
lhante abertura foi cima de tudo o resultado - e este um
detalhe absolutamente fundamental -
de
uma anlise mais fina
das premissas socioculturais nativas, no de um
priori
objetivista
que
reivindicasse um maior naturalismo (Barth, 1992) para
este
ou
aquele modelo analtico geral que o pesquisador, criador
c criatura
de
seu prprio arbitrrio terico, imagina ser a perfeita
traduo da realidade. A nova
sociologia
indgCIIa
que emergiu dos
anos 70 teve
como instrumento
e objetivo,
portanto
uma
indigenizao
da
sociologia
-
e
oi
isso que lhe deu seu carter pro
priamente antropolgico.
Para gue essa incorporao da histria e do 'contato' acon
tecesse, entretanto,
foi
preciso primeiro liberar a perspectiva es
trutural da interpretao excessivamente britnica que ela sofrera
por
parte dos etnlogos do Harvard-Central Brazil Project. Ori
entado pelas leituras que Needham e Leach haviam feito de Lvi
Strauss, o grupo de Maybury-Lewis, como outros etngrafos da
Amaznia de ento, dedicou-se a aplicar os princpios da anlise
estrun.:ral a sociedades e cosmologias particulares, expurgando
assim o estruturalismo de alguns de seus aspectos mais radicais
(Ortner, 1984: 137), e evitando a questo da relao entre
as
estruturas indgenas locais e o fundo histrico-cultural pan-ame
ricano. A referncia principal do
grupo
eram
as
obras da primeira
e mais 'durkheimiana' fase de Lvi-Strauss, notadamente
s es-
tmtura r
elemmtares do parentesco
e os artigos sobre o Brasil central,
em
que
o
antroplogo
francs
retomava
a
etnografia
de
Nimuendaju; e seu tema por excelncia
foi
a 'organizao dualista',
particularmente pregnante
no
caso das sociedades
e Bororo.
Alm disso, se Lvi-Strauss era a inspirao terica (ou sobretu-
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I ~ T ' ; C l i . O G J A
BR,\SJI.IiJR,\
145
do temtica) principal desses estudos ernogrficos, sua orienta
o metodolgica devia mais s monografias fundonalistas da
tradio britnica. Seu objetivo era descrever cada sociedade es
tudada como
um sistema total, ou 'holista', para em seguida inse
ri-lo em uma srie comparativa composta de outcos sistemas do
mesmo tipo (Gow, 1999), o que n.io corresponde nem noo de
comparao de Lvi-Strauss, nem sua idia do que conta como
'unidade' comparativa.
Abra-se um parntese. Que muitas das mais influentes
etnografias sul-americanas das dcadas de 70 e 80 tenham sido
cortads pelo molde das monografias clssicas inglesas, no
h
como contestar.
Que
elas devam ao estruturalismo antes uma
agenda temtica e alguns princpios tericos limitados que uma
orientao sistemtica, tambm verdade
41
Que elas e aqui no
me refiro apenas s do grupo de Maybury-Lewis) tenham dedica
do
pouca ateno
histria, adotando um certo holismo
apriorstico e um certo descontinusmo, como notam
ow op.
cit.
ou Albert (1988),
eis
outro fato. Mas tais limitaes no
podem de forma alguma servir pata desqualificar
in
limine a con
tribuio dessas monografias
etnologia do continente - uma
contribuio incomparavelmente maior gue a trazida pelos estu
dos aculturativos ou friccionistas das dcadas anteriores e poste
riores. Ao contrrio,
ow
apoiou-se justamente nelas, argumen
tando que os princpios gue os etnlogos identificaram como
constitutivos do fechamento holista dos sistemas indgenas eram
os mesmos acionados pelos Piro para situarem o sistema intert
nico em que estavam 'situados' - c assim fez desaparecer a dis-
41. Ver Viveitos de Castro; 1992. Taylor, em um acesso de fundamentalismo
(este estruturalista), mostra-se surpreendentemente dura com o grupo do
Harvard-Central Bra:dl Project: "aux
U.S.A.
par ailleurs, l'influence re le
Je
Lvi-Strauss a t en grande partie touffe au profit d'une sorte de
morphologisme pseudo-structuraliste diffus notamment par Maybury-Lewis
et
ses disciples.
.
"
1984:
217).
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146
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
tino entre sociedades 'puras' tradicionais e part-societies campo
nesas, porque as primeiras se mostraram muito mais abertas e as
segundas muito mais indgenas
do
que se imaginava. Albert,
por
sua vez, partiu de sua esplndida anlise estrutural da cosmologia
yanomami (1985) para produzir uma reflexo no menos inova
dora sobre a 'etnicizao'
do
discurso xamnico-poltico indgena
i (1993). De minha parte, utilizei um enquadramento aparente
mente 'holista' para questionar precisamente a imagem autocontida
dos sistemas amaznicos e a representao totalizante
de
'socie
dade', tendo
como
contraponto retrico a etnografia centro-brasi
leira (Viveiros de Castro, 1986). Alguns autores da escola
contatualista, ao
contrrio, parecem ter tomado
as
limitaes da
quelas monografias pioneiras como pretexto para ignorar sua exis
tncia - e a de toda a etnologia amaznica que se seguiu- dando
prova de estreiteza terica e de desinteresse etnogrfico. Os gru
pos que os contatualistas estudam (ou 'constrem') so tanto mais
parte
do
Brasil quanto menos situados esto na Amrica indgena,
parecendo flutuar em um vcuo histrico-cultural. No so sequer
parte de
si
mesmos, como
s
vezes se constata em certas obras
dessa escola, em que a frao alm-fronteira de um povo indgena
transnaconal
objeto de um profundo silncio descritivo
:
e mes
mo cartogrfico (Oliveira F ,
1988:
8). Feche-se o parntese.
As prximas levas
de
etnlogos influenciados pelo estrutu
ralismo42 iriam
partir
da tetralogia
Mitolgica ,
que deram ao
americanismo um instrumento de alcance continental (Lvi-Sttauss,
1964-1971). A publicao de seu primeiro volume (O t r o
cozido) df.sempenhou o mesmo papel paradigmtico que O ndio
o
mundo dos brancos, aparecido no mesmo ano (Cardoso
de
Olivei
ra 1964), teve para a escola do contato. Sendo, primeira vista,
um estudo puramente formal dedicado' s mitologias amerndias,
42. P ex.,
B
Albert,
M
Carneiro da Cunha, Ph. Descola, Ph. Erikson, P Gow,
C
Hugh-Jones, S Hugh-Jones,
T
Lima, A Seeger,A.-C. Taylor, G. Townsley,
e E. Viveiros de Castro.
7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira
39/115
I ~ T N O U G I A
IIRASJI.HIRA
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as Mitolgicas revelavam algo que os etnlogos que iniciavam seu
trabalho na Amaznia no demoraram a perceber: que os mate
riais simblicos de que as sociedades sul-americanas lanam mo
para se c0nstituir, e assim
as
estruturas construveis pelo analista,
eram refratrios s categorias tradicionais da antropologia. Prin
cpios cosmolgicos embutidos em oposies de qualidades sen
sveis, uma economia simblica da alteridade inscrita no corpo e
nos fluxos materiais, um modo de articulao com a natureza
sue
pressupunha uma socialidade universal - eram esses os ma
teriais e processos que pareciam tomar o lugar dos idiomas
juralistas e economicstas com qu