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VOCARE 2012 Revista do Programa Vocacional 1 2° EDIÇÃO/2012 VOCARE Revista do Programa Vocacional AÇÃO CULTURAL PROCESSOS CRIATIVOS EMANCIPATÓRIOS

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VOCARE 2012 Revista do Programa Vocacional 1

2° ed

ição/

2012

VOCARERevista do Programa Vocacional

AçãO CultuRAl

PROCEssOs CRiAtiVOs EmAnCiPAtóRiOs

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Uma publicação doPrograma Vocacional

Projeto da Secretaria Municipal de Cultura em parceira com a Secretaria Municipal de Educação

Ano 2 - número 2São Paulo, Novembro de 2012

Tiragem 3 mil

ImpressãoEsta revista foi impressa no papel Off Set 90gnas fontes Akzidenz-Grotesk e Times Formato 25 cm x 33 cm96 páginas

Rettec Artes Gráficas – Impressões

Programa VocacionalAv. São João, 473 - 6ºandar01035-000 - São Paulo - SPTel. 11 33970166 / 11 33970167programavocacional.smcsp@gmail.comwww.cultura.prefeitura.sp.gov.br

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Prefeitura de São PauloGilberto Kassab

Secretaria Municipal de CulturaSecretárioCarlos Augusto Calil

Secretário AdjuntoJosé Roberto Sadek

Chefe de GabinetePaulo Rodrigues

Assessoria JurídicaMaurício Tonin

Assessoria de ComunicaçãoGiovanna Longo

Departamento de Expansão CulturalDiretorRodrigo Marx Matias Cardoso

Assistência TécnicaBranca López RuizMaria Rosa Coentro

Assistência JurídicaSilvia Gomes da Rocha di Blasi

Divisão AdministrativaDiretorMarcelo Rugério Bianchi

VOCARERevista do Programa Vocacional

Núcleo de Contratação de Natureza ArtísticaGiovanna de Oliveira Gobbo

ContabilidadeCláudio da Silva Martins

ComprasFabio Eneas Magri

Departamento PessoalLuiz Peres

Divisão de FormaçãoAmilcar Ferraz FarinaLuciana SchwindenIlton Yogi

Divisão de ProduçãoSulla Andreato

Divisão de ProgramaçãoRodrigoh Bueno

Programa VocacionalCoordenador GeralAmilcar Ferraz Farina

Coordenador AdministrativoIlton Toshiaki Hanashiro Yogi

EquipeGilmar China Kane Bueno de Souza LeiteMercedes Cristina Rocha SandovalBeatriz Salles Lima

Secretaria Municipal de EducaçãoSecretáriaCélia Regina Guidon Falótico

Assessora EspecialMargareth Alves Tamburu

Assistente Técnico de EducaçãoDaniela do Nascimento Rodrigues

Comissão EditorialIvan DelmantoSuzana SchmidtWilson Julião

Design GráficoCarimbo Edições

Curadoria de ImagensWilson Julião

RevisãoSuzanna Ferreira

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ÍndiceEditorial1.

2.

3.

4.

Apresentação do Departamento de Expansão Cultural da Secretaria Municipal de Cultura (DEC-SMC)

Os Programas da Divisão de Formação: Vocacional e PIÁ

Ação Cultural

Suzana Schmidt e Wilson Julião 07

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Apresentação do Secretário Municipal de Cultura

Apresentação da Diretora do Centro Cultural da Penha

Poética Vocacional Amilcar Ferraz Farina: Coordenador Geral do Programa Vocacional

O que me instiga é o pega-pega: Um pouco sobre a poética do PIÁ Celso Amâncio, Isabelle Bernard, Karin Giglio e Roger Muniz: Coordenadores Regionais do PIÁ

Cartografias de uma memória acumulada: O Programa Vocacional como uma política cultural de resistência Carmem Soares: Vocacional Teatro

Sobre processos criativos emancipatórios: Ensaio em Processo Marko Concá: PIÁ

Ação cultural x ação artística: Qual é a minha? Sidmar Silveira Gomes: PIÁ

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5.

6.

7.

Processos criativos emancipatórios

Imagens

Programas Artísticos da Divisão de Formação Equipe 2012

GEOGRAFiA nORtE

GEOGRAFiA sul

GEOGRAFiA lEstE

GEOGRAFiA OEstE

GEOGRAFiA CEntRO

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Esboço de aforismos para serem recortados Ivan Delmanto: coordenador pedagógico do Programa Vocacional

Construção Musical: Diversos olhares de formas e conteúdos nas práticas artísticas e pedagógicas Cíntia Campolina (organizadora), Cintia Sauer, Claudia Polastre, Egelson Lira, Miranda de Amaralina e Tiago Gati: Vocacional Música

Vaga música, faz-se canção: Recursos poéticos na criação musical Claudia Polastre: Vocacional Música

A ideia de que o homem não sabe desejar Alexandre Dal Farra: Vocacional Encenação

Desamadurecendo práticas: Arte com crianças Sidmar Silveira Gomes: PIÁ

Solo de Palavras: Repertório, forma e conteúdo (desde o gestual ao gosto musical) Erry-G: Vocacional Música

Depoimentos de poéticas cotidianas em dança: Pequeno caos fragmentado e escavações Cristina Ávila: Vocacional Dança

Terei eu a coragem de compartilhar meus rascunhos Luiz Claudio Cândido: Vocacional Teatro

Mapeamento e ensaioLuciano Gentile: Vocacional Teatro

Instaurando processos - Instaurando conflitos Rogerio da Col: Vocacional Dança

O teatro como experiência - um diálogo com o texto “O Narrador” de Walter Benjamin Cíntia Wartusch: Vocacional Teatro

Ensaio #1 : Sobre a escuta Carolina Minozzi: Vocacional Dança

Forma e conteúdo: Reflexões Mayki Fabiani: Vocacional Música

A dramaturgia do encontro no território do acontecimento artístico Melissa Panzutti: Vocacional Teatro

Ação Cultural Vocacional Dança: desvelando a dança Irani Cippiciani, Miriam Dascal, Tatiana Guimarães: Vocacional Dança

Segundas impressões Verônica Mello: Vocacional Teatro

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Editorial

Foto: Roger Muniz

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É com grande prazer que apresentamos a segunda edição da Revista Vocare, agora em 2012. Procuramos aqui, criar um espaço de reflexão e debate acerca dos processos viven-ciados pela equipe do Programa Vocacional. Neste ano, a revista convida também o Programa de Iniciação Artística (PIÁ), ampliando a discussão sobre arte, pedagogia e ação cultural a partir dos programas de política municipal de cul-tura da cidade de São Paulo.A proposta de construção de artigos e ensaios que trouxessem estes debates ao espaço público corresponde ao desejo de colaborar com a fixação de um pequeno, mas contundente, universo de relações e construções, que se reergue a cada início de edição do Programa Vocacional e também do PIÁ. São vários anos e inúmeras edições que nos formam, interessam-nos e têm nos lançado cidade adentro, em trânsito convicto.E são nesses inúmeros deslocamentos, desta cidade maior que o mapa, que encontramos as mais variadas formas e maneiras de organização de produção de materialidades expressivas, em linguagens artísticas específicas ou no diálogo e hibridizações entre elas. Percorremos, assim, os caminhos trilhados por artistas-orientadores e seus compa- nheiros de jogo: jovens, adultos, crianças, aprendizes que são também criadores, fruidores, investigadores, inventadores, interventores. Em parceria com a coordenação dos equipamentos públicos de educação e cultura que nos acolhem, iniciamos a cada nova edição dos dois programas o confronto com a pos-sibilidade de nos singularizarmos, enquanto criadores de universos potenciais, internos e externos. Encontros esses que se dão na composição, fruição e discussão das nossas

formas artísticas, na nossa relação com o espaço públi-co, com nossas angústias palpáveis ou sutis. Desafiamo-nos a transformá-los em poéticas, em criação e recriação desses nossos universos. Tarefa difícil, muitas vezes ape-nas tateada pelo assombro que nos causa o seu vislumbre.Terei eu a coragem de compartilhar os meus rascunhos? Inicia assim seu ensaio, um de nossos autores. Teremos, da mesma maneira, a coragem de desejar de fato, de desa-madurecer práticas, de cartografar memórias, de desvelar a dança, de fazer-se canção, de criar resistências? Esses são alguns desafios que nos apresentam nossos colegas, artistas e ensaístas, em seus textos, nesta edição da revista. Que a fruição da sua leitura seja profícua e nos desperte lugares a serem inventados, no confronto, na construção e na apreciação da nossa própria prática enquanto artistas e coordenadores de processos criativos.Propomos a leitura organizando-a em geografias que nos levem por esse trânsito pela cidade de São Paulo. Focali-zamos a discussão em duas seções: acerca do pensamento sobre a AÇÃO CULTURAL e sobre os PROCESSOS CRIATIVOS EMANCIPATÓRIOS. Além disso, convida-mos o leitor ao desfrute de uma terceira seção, dedicada às escrituras em outras plataformas, de extensões vari-adas e congestionada de fotos, imagens e fragmentos de processos artísticos.Esperamos assim que o impulso de ação que nos afeta, ao nos colocarmos em processo artístico-pedagógico, repli-que-se a partir da fruição dos textos e imagens. E que esse grande mapa (sempre) atualizável – e que nos contém - contribua para que nossa experiência seja efetiva e dotada de sentido.

Suzana Schmidt e Wilson Julião

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Apresentação

Foto: Aira Bonfim

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Formação cultural Carlos Augusto CalilSecretário Municipal de Cultura

Investir em formação artística de crianças, jovens e adultos é vocação da Secretaria Municipal de Cultura. Oferecer-lhes a oportunidade de se tornarem produtores, além de meros espectadores, é uma das vertentes mais democráticas de uma política que se quer pública.O Programa Vocacional, criado em 2001 com a formação em Teatro, vem sendo gradativamente expandido para outras áreas de atuação e hoje inclui Dança (desde 2007), Música (2008), Aldeias indígenas (2008), Artes visuais (2010), Interlinguagens (2010) e promove, desde 2006, o Projeto Vocacional Apresenta. A expansão não se deu apenas no campo artístico. Ofereci-do inicialmente em 25 pontos, hoje 69 equipamentos entre bibliotecas, teatros e centros culturais realizam atividades do Vocacional. Por meio de duas parcerias estratégicas com as secretarias da Educação e das Subprefeituras, o projeto chega também aos CEUs e às casas de cultura, respectiva-mente. Cerca de 4 mil pessoas, em média, são atendidas durante os 8 meses de duração do programa. Em 2012, foram investidos R$ 3,3 milhões.

Criado nesta gestão, o Programa de Iniciação Artística (Piá) estendeu a metodologia vitoriosa da EMIA – Escola Municipal de Iniciação Artística a 11 CEUs e 6 bibliote-cas, oferecendo formação nas áreas de música, teatro, dança e artes visuais para aproximadamente cerca de 1.200 crianças com idade entre 5 e 14 anos. Nesse programa, a Prefeitura investiu R$ 1,4 milhão. Até o final do ano, a formação artística ganhará reforços expressivos em regiões carentes. A abertura do Centro Cultural da Penha, já em curso, trará imediatamente ao bair-ro orientação artística nas áreas de música, teatro e dança. Em seguida, ainda neste ano, será inaugurado o Centro de Formação Cultural de Cidade Tiradentes que contará, como convém, teatro, salão de exposições, cinema, biblioteca e centro de memória. No entanto, sua especialidade será a formação profissional no vasto campo da cultura. Cursos modulares em cenografia, figurino, iluminação, design etc. poderão ampliar a perspectiva de jovens criativos de vo-calizar os seus talentos e a sua própria cultura.O Vocacional abraça a cidade.

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Caminhos nômades, linhas de fuga e continuidade...Luciana SchwindenArtista Vocacionada, Ex-Diretora da Divisão de Formação e atual Diretora do Centro Cultural da Penha

O Vocacional resiste ao longo desses anos porque enfrenta e combate os processos de alienação constantes em nosso tempo. A prática e conhecimento artístico impulsionam o processo de emancipação. O trabalho criativo é descoberto a cada encontro, no cotidiano dos vocacionados e orientado-res, as orientações artísticas estão relacionadas aos proces-sos de alteridade, de escuta, de contínua experimentação.A realidade dura das longas distâncias, da formação das turmas, das idas e vindas no desenvolvimento dos projetos da Divisão, não impede que os artistas e suas criações que-brem barreiras. Isto só acontece com o apoio de todos os gestores e diretores envolvidos diretamente naquilo que é a vocação do Departamento de Expansão Cultural: expandir e fomentar a Cultura na cidade de São Paulo. Trabalhar no Vocacional é estar em constante pesquisa, em constante aprendizado. A composição da equipe é formada por artistas inquietos, que se arriscam e tem espaço para isso em seus processos artísticos - políticos - pedagógicos. A deriva, o movimento, a fuga da inércia e das convenções. Estes projetos buscam a produção de novos territórios, ter-renos livres para a imaginação; a possibilidade da organi-zação de grupos de artistas que propagam suas vozes pela cidade, o aprendizado e reconhecimento das funções que compõem a estrutura de um coletivo de artistas; o conheci-mento da arte para aguçar um olhar expandido, um olhar que vê possibilidades de caminhos que serão percorridos por passos nômades e curiosos. Em tempos de sufocamento dos horizontes - cada vez mais é necessário imaginar, para ampliá-los.Projetos como estes resgatam o direito do acesso à Cultura, e a descoberta de outras referências que não aquelas vi-ciadas pelo impacto da indústria cultural e de to dos seus produtos culturais embalados. Os Vocacionados gritam e desejam ser visíveis.Tantos seres múltiplos nas suas contradições, antes corpos sozinhos, hoje se encontram e estão nômades, percor-rendo os equipamentos públicos da cidade, vivenciando as Mostras dos processos criativos, exercitando processos de cidadania e promovendo encontros artísticos entre olhares e vozes. Os vocacionados também são agentes culturais.Apreciar é princípio pedagógico, e é verbo diferente de

julgar, pois cada integrante do Vocacional seja ele voca-cionado, orientador, coordenador, tem a possibilidade de ser singular, fortalecendo assim, o pleno respeito pelas diferenças.A busca do ser autônomo em primeira instância abre espaço para a emancipação de coletivos de artistas agregadores. Grupos formados pelo Vocacional, também se lançam em voos na profissionalização, e muitos destes grupos foram contemplados pelas políticas públicas de cultura como o Programa VAI e o Fomento ao Teatro - outros programas da Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo que merecem total atenção, pois são políticas públicas de referência no cenário da cultura nacional.As ocupações dos espaços públicos e a ação cultural, tam-bém se apresentam como princípios pedagógicos funda-mentais e são engrenagens que movimentam os processos culturais vivenciados pelas equipes nos dois programas da Divisão de Formação.Que o Vocacional continue sendo o lugar da experiência, do risco, do novo, da estranheza. E que o Programa de Iniciação Artística tenha uma trajetória tão relevante quanto o caminho já percorrido.Cenários complexos sempre trazem o receio de um possível cessar destes projetos. É bom lembrar, que gestores públi-cos, firmam compromissos de responsabilidade pública ao apoiar programas como o Vocacional e o Programa de Iniciação Artística.Convido a todos que conheçam os percursos dos progra-mas, leiam seus números, tão relevantes, apreciem os seus resultados e ouçam as vozes vocacionadas que estão por toda a cidade... Continuem essa história.É o que desejo, vida longa Vocacional e PIÁ!Agradeço a todos por participar destes caminhos, por con-hecer tantos artistas incríveis e ouvir tantas falas inspirado-ras, por aprender tanto e por me lançar em novos terrenos de pesquisa. Peço licença para deixar aqui meu depoimento, preciso dizer que fazer parte da equipe do Vocacional por tanto tem-po me deu coragem de partir, de sair pela cidade, de viven-ciar outras regiões e ser nômade, dentro de um propósito claro – o caminho da gestão cultural. Obrigada! Evoé!

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ProgramasVocacional e PiÁ

Foto: Gabriela Flores

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Poética Vocacional

Amilcar Ferraz Farina Coordenador Geral do Programa Vocacional

A questão ética sempre me pareceu nodal nos debates que permeiam as ações artísticas do Programa Vocacio-nal. Estes debates acontecem continuamente nas diversas arenas em que se desenvolvem os processos artísticos em questão. Nos últimos anos, com os esforços da equipe de artistas do Programa na consolidação de sua proposta artístico-pedagógica, este tema ressurgiu também de diferentes formas. Consideramos que a inquietação filo-sófica que mobiliza o homem mantendo sua inteligência e senso crítico vivo tem outra amplitude quando tomada de intencionalidades derivadas de uma perspectiva ética.Sabe-se que um primeiro grande problema ético é definir o primeiro grande problema. A atitude ética implica em vasculhar as situações dadas e as ações empreendidas, superando a superficialidade dos fatos e buscando encontrar os valores mais profundos que as animam. No contexto do Vocacional a atitude ética é assumida como o compromisso de sustentar um projeto artístico eman-cipador entre vocacionados. Isto se dá na busca contínua das relações existentes entre os princípios do Vocacional, apresentados na sua proposta artístico-pedagógica – o Material Norteador, e as ações planejadas pelas equipes de artistas que compõe o Programa. Os seguintes princí-pios dados numa perspectiva relacional, “o artista como mestre ignorante”; “as relações entre forma e conteúdo”; “nomadismo no espaço público”; “memória e registros dos processos artísticos”; “apreciação/reflexão/contem-plação” e a “ação cultural”, buscam apresentar um campo conceitual, entendido como práxis - contornando suas ações artísticas sem abandonar seus desafios e virtualidades e, procurando reapresentar os seus problemas com clareza. Enquanto mestre ignorante, o artista-orientador entende-se também como um vocacionado formador de si mesmo. Em seu sentido mais profundo, esta atitude é uma escolha e não uma pré-determinação. É algo que viria legitimado pelo uso crítico, livre e público da razão e não de uma ordem impessoal. Historicamente, esta visão de autodeterminação dada no Iluminismo, viria responder às exigências de har-monizar as relações desequilibradas entre os privilégios de

uma nobreza e o servilismo dos camponeses e seria revista no pós-guerra ao se verificar a deturpação no plano da sub-jetividade, ocorrida a partir da mercantilização dos conteú-dos desta promessa de formação cultural emancipadora – o progresso material não redundaria num progresso moral. O moralismo desfilaria aí sua tentativa frustrante de con-trole e de ordem onde justamente a ética falhou. Num outro sentido, o Vocacional busca criar um espaço para a atitude ética que nasce da experiência artística.De certa forma, o ser ético propõe um trato, um jogo em seu modo de ser e conviver e, portanto, de consumo racional. Como alguém que decide ser poeta e que sai de um estado de conformismo ou de entorpecimento cultural, invertendo assim, a tendência moderna de encolhimento da esfera pú-blica em favorecimento da determinação egocêntrica. Neste jogo, ao criar sentido para um mundo sem sentido o homem experimenta sua vivência mais libertária. Intentamos que o artista vocacionado ao impregnar-se dos processos criativos, estetizando outros mundos possíveis materializados provisoriamente na sua produção artística, compreenda o devir poético da produção de si mesmo. O homem genuinamente ético é um artista. Isto porque a arte o impulsiona para uma vida plena de sentidos que afeta a si e o outro, ambos tomados por uma intensidade renova-dora e que não admite estados mórbidos. Num outro senti-do, a experiência ética leva o indivíduo a alguma realização artística – a uma poética. Esta mesma arte que, situada no mundo contemporâneo de um tempo fragmentado e ime-diatista, trava perpétua resistência com a redução da feli-cidade ao bem-estar individualista e ao ser obsessivamente aspirado e consumido - aquele correspondente à tríade do individualismo hedonista, narcisista e consumista. Retornando à sua origem grega, o termo ethos significa modo de ser, caráter. Diante disso, o Programa Vocacional propõe a superação de nossa inquietação inicial exposta neste ensaio ao modo de um artista - para cada problema que o mundo lhe impõe o artista retorna com outros dois. Criando um duplo, em forma e conteúdo.

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o que me instiga é o pega-pega: Um pouco sobre a poética do PiÁ

Celso AmâncioIsabelle BenardKarin GilgioRoger Muniz(Equipe de coordenadores regionais do Programa de Iniciação Artística - PIÁ)

Na tradição filosófica materialista inaugurada por Epicuro e Lucrécio, os átomos caem paralelamente no vazio, seguindo uma leve inclinação. Se um desses átomos se desvia do curso, ele provoca uma colisão (encontro fortuito) com o átomo vizinho e de colisão em colisão um engavetamento e o nascimento de um mundo.(Nicolas Bourriaud)

O que me instiga é o pega-pega. (Tião Bazotti, artista educador, BB Monteiro Lobato)

Estas duas imagens nos intrigam: será que os átomos não desviam intencionalmente com a intenção de dar um en-contrão no vizinho e uma nova forma de vida nasce deste encontro? Os átomos brincam de pega-pega assim como as crianças? Essas imagens remetem aos encontros no PIÁ. São destes encontros, casuais e paradoxalmente inten-cionais, que nascem as formas artísticas criadas dentro o programa.Qual seria então a questão central da iniciação artística, con-siderando que é difícil definirmos neste momento se isso significa educar através da arte, com a arte, pela arte, sobre arte, para a arte? Percebemos que tal questão gira em torno da arte do encontro, e como esta se delineia entre a criança e o adulto educador. E para tal desenvolvimento há de se ter a generosa vontade, habilidade de dar tempo ao tempo. Ou, atentar-se a criar um outro tempo onde o conter-se dialoga intimamente com o atrever-se. Desta forma, a presença do artista-educador se faz a partir de um ritmo criado por um tempo do experimentar que é individual, subjetivo e por vezes, além do cotidiano. Mas quem é este adulto-artista--educador? Quais suas intervenções, interações e intenções quanto às crianças? E quem são estas crianças? De qual in-fância estamos falando?

A CRiAnçA E umA nOçãO dE inFânCiA

O PIÁ se propõe a investigar a dimensão poética da criança em contato com a arte, suas relações, o ato de conhecer, a afetividade, a dimensão do sensível na singular experiência do sentir e relacionar-se com o outro.Segundo Lameirão (2007) em seu livro “Criança Brincan-do – Quem educa?”, a primeira característica observável na atividade de uma criança é o movimento. Ao movimentar--se no espaço por um determinado período de tempo, a criança cria e exercita um tempo que se estende como que se derramasse no espaço. O constante impulso para agir é o que leva a criança a conhecer o mundo. Para a criança ainda não existe a noção do EU e o MUNDO, estando ela (corpo) mergulhada no mundo (outro) nada se dissocia.Em seus movimentos a criança, inconscientemente, desco-bre e toma posse do seu corpo, experimenta e cria seus con-tornos, percebe e apreende o que seria o primeiro mundo exterior que lhe é apresentado. A criança dorme para dentro do seu próprio corpo.Observamos então que a dimensão, e a capacidade da imaginação da criança, dependem das diversas experiências de vida perceptiva que ela desenvolveu e desenvolve, entre a sua possibilidade e liberdade de movimentação. Se tais propriedades não forem garantidas, a imaginação estará comprometida.A partir do que diz Lameirão (2007): ”A intenção direciona a ação da criança entre cinco e sete anos de idade. E para pôr intenção na brincadeira, é peciso recordar, acordar em si, representar internamente a cena. A imagem torna-se cada vez mais insuficiente para a criança; ela deseja apreender o mundo com maior precisão, trazendo objetividade à sua vida imaginativa”. E através da brincadeira, uma ativida-de essencialmente espontânea, a criança aprende o que provavelmente ninguém pode ensinar.

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A noção de criança performer, desenvolvida por Marina Marcondes Machado, comunga com a ideia de Patrice Pavis (2003) onde “o performer realiza a encenação do seu próprio eu”. As crianças também agem por motivações intrínsecas, suas intenções e expressões são criativas e re-presentativas por si mesmas nas experiências de relação com o mundo. Sarmento (2004) propõe uma metodologia para entendermos a criança também sob o viés de portador de novidade e tal metodologia se estrutura em quatro eixos determinantes: a interatividade, a ludicidade, a fantasia do real e a reiteração.Tal consideração nas palavras de Marina Machado pode esclarecer e relacionar com alguns princípios pedagógicos do PIÁ: “No eixo da interatividade convergem as ativida-des e rotinas, valores e preocupações que a criança produz, por meio da interação com seus pares e com os adultos; no eixo da ludicidade, o brincar – seja com os outros, seja com os objetos; no eixo da fantasia do real (modo próprio de Sarmento nomear o faz de conta) revela-se a saga da criança desordenada, sua maneira fantasista (sic) de pensar; e no eixo da reiteração, está a intenção de começar tudo de novo, a não linearidade temporal vivenciada pela criança. Sarmento (1997) propõe que estes âmbitos sejam conhe-cidos pelo adulto, através de um “conjunto de orientações metodológicas congruentes”.

sObRE um AdultO-EduCAdOR-PERFORmER

Poderia dizer que fatores como a disposição, envolvimen-to e concentração de alguém que responsavelmente atua na entrega e equilíbrio entre estar e não parecer deveriam dirigir-se às convergências das muitas subjetividades de desejos e tempos. Talvez uma condição: a consciência e o reconhecimento de um universo, de uma infância, sua contemporaneidade e as necessidades inerentes às diversas fases em que vivem as crianças. Talvez, a partir disto deva--se nortear a criação de propostas artísticas que se integrem naturalmente a estes momentos.

A visão de infância que o adulto carrega, muitas vezes, emoldura o seu modo de conviver com elas. Desta forma, se faz necessário observar as crianças, seus cotidianos, manifestações e constatar como fenômenos genuínos de uma vida infantil interagem e se desenrolam com os aspectos de uma noção de infância imposta e intelectualiza-da pela vida adulta. Percebê-las para saber o que elas estão expressando de si mesmas, e refletir como e o que pode fazer o adulto para garantir e potencializar a construção do desenvolvimento e aprendizado por elas próprias.Uma possibilidade: investigar a relação e o momento da troca, pois o verdadeiro encontro com o outro pressupõe o encontro consigo mesmo; buscar partir do resgate de uma memória corporificada que a ideia de continuidade reaproxima as experiências diversas entre o artista-orien-tador e a criança. Uma infância vivida é datada cronolo-gicamente, mas permanece, em essência, conectada a experiências sensoriais e a outra temporalidade. Para Blake, a passagem da infância para a fase adulta consiste na pas-sagem da inocência para a experiência. Portanto, o intuito é redescobrir um modo de ser e de estar perante a atividade lúdica das crianças, na criação de uma ação estética e poé-tica para a brincadeira, considerando e delineando o espaço do sonho e fantasia.As crianças vão misturar-se, transformar-se em pequenos e grandes atos de brincar, sob as conduções, planos e desejos do adulto e seus conceitos sobre o iniciar artisticamente. Mas o que é brincar?

O quE é O bRinCAR PROPOstO PElO PiÁ?

Segundo o enunciado da carta de princípios do PIÁ, elabo-rada pela equipe de 2010 sobre ludicidade: “A brincadeira como uma forma legítima de se relacionar, de ser e estar no mundo, na sua espontaneidade e significação. Reconhecer a bagunça, alegria, o jogo e a fantasia como aspectos deste princípio”. Entendemos o brincar como a linguagem universal das crianças, origem de todas as atividades culturais dos adul-tos. Lugar sem fronteiras, sem idades, sem definição lógica e prevista do tempo. Lugar dos possíveis, das liberdades, mas também do provável exercício e apreensão das regras, dos limites, do convívio e olhar para o outro. Uma vivência intrínseca da ideia de processo, de criação, do diálogo que independe da linguagem. O brincar torna-se o espaço de conexão e alimento entre os diferentes imaginários, resgate de uma memória talvez ancestral, mítica, inata, orgânica. A brincadeira é o território espontâneo de experiências simbólicas e poéticas, onde a criança se mostra envolvida, vigorosa e intensamente presente em sua ação que transbor-da de sentido.Talvez esta atividade seja o grande exercício do que signi-fica o trabalho para a vida adulta, e nesta ação o objetivo estaria em fazer perdurar todas as características inerentes

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à atividade própria da criança, fazendo-as permanecer nas atividades de uma fase adulta. Como bem diz Lameirão: “O trabalho para o ser humano começa com o brincar. A criança brincando transforma o próprio corpo para que este seja base de sua autonomia. Por que temos tanta dificuldade em aceitar o brincar como trabalho?”.Portanto, devemos pensar em restabelecer na ação-fala en-tre adulto e criança apenas discursos poéticos e simbólicos, que criem elos de sentidos para o universo infantil. A partir disto, o PIÁ propõe em suas atividades a dimensão poética do conhecer, a arte como experiência significativa e singular de relação com o mundo através da expressão do sensível.Já Marina Marcondes (2012) traz a seguinte problematiza-ção da questão do brincar como “área de conhecimento” conduzida pelo adulto-educador “especialista em brincar”:

O brincar espontâneo e criativo parece estar em bai-xa desde que os pedagogos se filiaram a um pensamen-to extremamente racionalista, banhado pelo sócio-in-teracionismo. A maioria dos livros, hoje, quer discorrer sobre como é importante brincar e como o adulto educador tem que propor planejar, avaliar e dar conti-nuidade a situações “lúdicas”. Muitos autores discorrem sobre isso depois de ler uma porção de textos já consagra-dos, e nada de novo surge no front do pensamento acerca do brincar. O brincar é princípio dos modos de vida da primeira infância…Mas este brincar não é o do brincar com brinquedos prontos nem o brincar nos jogos dirigi-dos pelo adulto. Mesmo que a criança tenha todo o prazer do mundo, ainda será um modo de ser e estar proposto e propiciado pelo adulto, e em situação emoldurada, seja na escola, no clube, na ‘atividade extracurricular’ ou no projeto ‘social’ do sabão OMO.

Segundo este pensamento, no que diz respeito ao brincar não “reinventaremos a roda” em nossas pesquisas, estudos e proposições lúdico-artísticas, enquanto esta atividade não estiver entrelaçada às ações de vida do cotidiano das crianças e do nosso. A questão que nos circunda é: onde se encontra o brincar nosso na vida adulta, no nosso modo de existir hoje?Para Freud, apenas aparentemente o adulto abdica do prazer que obtinha em suas brincadeiras de infância, mas como enfatiza o psicanalista: “quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade nunca re-nunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra”. Assim, o adulto dá continuidade à ludicidade em seus de-vaneios e em suas expressões poéticas e criativas, fazendo das linguagens artísticas o território no qual cultiva sua fan-tasia. O adulto criativo, em especial aquele que desenvolve trabalhos artísticos, investe uma quantidade de emoção e seriedade similar às crianças em seu ato de brincar. Assim, podemos dizer que o artista educador encontra na brinca-deira infantil um ponto de convergência com sua prática, um ambiente comum e vital para comungar o prazer que

vivencia em suas experiências estéticas, justamente por se tratarem, em essência, da mesma experiência transposta para outros âmbitos.Para Machado (2012): “Enfim, o assim chamado e já famigerado espírito lúdico é, no meu ponto de vista, algo que nos move e que nos diverte, que nos torna “ nós mes-mos “, que nos dá a chance de nos comunicar com o cerne do self de maneira que, mesmo quietos, temos algo a dizer para o outro e ao mundo.” E talvez seja por este viés que o encontro no PIÁ aconteça: a criação de um espaço-tempo dilatado que envolva criança e adulto vigorosos, presentes e inteiros neste entre-lugar de partilha, prazer e criação.A brincadeira é um caminho. É por onde tudo começa e onde se termina para recomeçar, ao brincar inventamos o mundo. Brincar é coisa séria e de suma importância, pois não se brinca de qualquer maneira. Uma brincadeira instaura um ambiente de fantasia. Nela entramos no reino da imaginação e quase tudo pode ser e acontecer. Quando brincamos tudo pode, sem que seja qualquer coisa, pois é fácil desmanchar uma brincadeira e nem tão fácil começar. No brincar há uma lógica interna que conduz o faz de conta. Tem noite, tem dia. Tem o que funciona e o que não faz sentido. Tem o que a gente quer e o que a gente não quer. Temos acordos e combinados, alguns papéis definidos, ou-tros mutantes. Brincadeira não tem fim. Acaba para logo em seguida recomeçar um pouco diferente. Toda descober-ta, toda novidade, toda experiência, toda vida tem sabor de brincadeira. Toda palavra tem rima, tem verso e reverso. E o universo é tão grande que nele cabem todas as brincadeiras.

Quando as crianças brincamE eu as oiço brincar,Qualquer coisa em minha almaComeça a se alegrarE toda aquela infânciaQue não tive me vem,Em uma onda de alegriaQue não foi de ninguém.Se quem fui é enigma,E quem serei, visão.Quem sou ao menos sintaIsto no coração.

Fernando Pessoa

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional.LAMEIRÃO, Luiza Helena Tannuri. Criança brincando – Quem a educa?. Ed. João de Barro, SP, 2007.MACHADO, Marina Marcondes. Criança é Performer. Artigo aprovado pela USP em março de 2010.MACHADO, Marina Marcondes. Brincar é um modo de existir.

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Cartografias de uma memória acumulada: o Programa Vocacional como uma política cultural de resistência

Carmen Soares Vocacional Teatro

Quando penso no Programa Vocacional penso nos CEUS, penso no tempo em que eles foram construídos e em uma época em que havia parcos equipamentos de cultura pró-ximos aos bairros mais afastados de cada zona da cidade. Penso que não existiam tantas ONGS assim (e isso é mui-to importante pensar). Penso nas torres gêmeas do World Trade Center que estavam em vias de serem derrubadas para depois, em tempo real, terem suas imagens reproduzi-das e reproduzidas, instaurando assim um novo trauma em nossa sociedade e radicalizando ainda mais o que o filósofo Guy Debord havia chamado de sociedade do espetáculo em finais dos anos 60. Penso que não havia tantos celulares, nem tantas máquinas que serviam para fotografar e filmar. Penso em uma época de uma ideologia em que havia uma política cultural para a cidade de São Paulo e daí lembro que o Vocacional não estava sozinho, havia outros projetos que o fortalecia e que ele ajudava a fortalecer, formando uma grande rede, e que tudo isso junto fazia muito sentido. Quando penso no Vocacional, penso em resistência, penso no grupo que oriento hoje e que se encontra no mesmo CEU onde me encontrava com meus parceiros de criação daquela época, e penso, penso... Não havia tanta resistência e soli-dão, e tanta reafirmação do que deveria ser um processo natural, simbiótico entre um projeto de ocupação feito para acontecer no espaço público.

Quem não compreende precisa, primeiro, ter a sensação de que é compreendido. Quem deve ouvir precisa, primei-ro, ter a sensação de que é ouvido. (Bertolt Brecht)

A cidade de São Paulo hoje carece de uma política cultu-ral mais conectada à realidade dos buracos que a indústria cultural assustadoramente e avassaladoramente deixam em nossa subjetividade. Nossos equipamentos de cultura se in-flam de projetos que pouco se relacionam com um pensar artístico e cultural, que nos garanta um nível de desenvol-vimento voltado para um pensar crítico, criativo, inquieto e rigorosamente curioso como tanto desejou Paulo Freire. Ao contrário, nossos equipamentos públicos de cultura se

firmam como espaços desafetados, ou seja, desconsagrados do ideal de origem que lhe foram conferidos, quando cria-dos. Nesses anos de naufrágios, nessa odisseia, remando contra uma maré, que insiste em nos engolir, um navegar quase sem bússola na difícil relação entre o Programa Vocacional e alguns espaços onde ele acontece que não é (ao menos não deveria ser) um relacionamento entre coisas, e sim entre profissionais da gestão pública, representantes do povo. Penso que o projeto deve ser pensado com uma forma de resistência. Uma resistência ao sucateamento da cultura, resistência diante a sociedade que cresce a passos galopantes, resistência às formas hegemônicas ditadas e subsidiadas pelas leis do mercado, resistência a uma educa-ção compartimentada e a um modelo de ensino (de teatro ou não) tecnicista, modelador e reducionista, que ao invés de preparar o indivíduo para a reflexão e para a desalienação através do contato com sua própria história, com o outro, com a cultura, com a filosofia e com a arte, o estimula para a competividade, para o mercado, e consequentemente para as máquinas da reprodução que há muito tempo nos tiram a capacidade de agir e nos conscientizar da forma como conduzimos nossas vidas em sociedade.Bússola : Usando as fórmulas do Sr. Keuner para ser ouvido e compreendido, sigamos compreendendo e ouvindo, e que o trabalho artístico seja a mediação em tempos em que a comunicação soa débil.Retomar para aprofundar continuar solidificar

REsistiR - mARCAR tERRitóRiO

Orientar a orientar. Como?Antes de qualquer coisa, orien-tando-me e desorientando-me – não se esquecer de usar sempre uma rosa dos ventos, um grande mapa dos desejos, uma ferramenta de desbravador para abrir os caminhos, o eixo norteador com os pressupostos artísticos pedagógicos do Programa e uma clareza para assegurar sua filosofia e sua história que nada contra uma maré despolitizante da cultura.Pela origem etimológica, a palavra orientar, significa indi-

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car o rumo do oriente. Na rosa dos ventos, o lado oriente é também chamado por nascente ou levante, ficando ao leste, e, quando encontrado, torna-se possível saber onde estão os outros caminhos, os outros pontos cardeais. No oriente, o leste é o ponto cardeal que indica a direção na qual a terra gira em torno do seu eixo, que é onde o sol nasce.

O eixo a ser encontrado, solidificado nessa retomada de resistência têm sido os meios e os modos de produção do grupo Carnes de Segunda. O oriente a perseguir será a pes-quisa artística do grupo, que ora poderá ir para o norte, ora para o sul ou para o oeste, mas sempre com um olhar para o leste, para a nascente do sol. Importante saber que o sol não nasce todos os dias no mesmo lugar no oriente.O grupo Carnes de Segunda é formado por pessoas da mi--nha idade, outras mais velhas que eu e outras que eram bem pequenas quando o (então na época) Projeto Voca-cional havia sido implantado. Penso que apresentar esse processo histórico pelo qual passou e passa o Vocacional, e construir outros processos às bases e em contradição com esses novos tempos de tempestades, seja uma boa maneira de resistir. Fiz questão de voltar para o mesmo equipamento que atuei ano passado, o CEU Cidade Dutra, para continuar orientando o grupo Carnes de Segunda, que começou co-migo ano passado (em 2010) nas aventuras e caminhos em direção a um pôr do sol, em busca de um espaço erguido e sustentado pelo teatro, pela arte, pela escuta e respeito ao outro. Um espaço capaz de proporcionar novas manei-ras de relacionar-se com o outro e com o espaço público, criando novas subjetividades, entendendo o espaço artístico e coletivo como uma ponte para o atravessamento de novas formas de ser, pensar, criar, imaginar, de estar junto e atuar no mundo a nossa volta. Além do mais importante que é a possibilidade de apro-fundar algumas questões artísticas com as turmas e grupos, considero o retorno ao equipamento uma forma de resistên-cia, de pertencimento, de ocupação, de reafirmação. Mesmo com alguns terrenos áridos que por ventura possamos vir a encontrar, o que mais deve estimular nossas ações cultu-rais como artistas orientadores é garantir, através de nossa presença e representatividade, que o Programa com toda a magnitude de sua proposta artístico pedagógica possa ser colocado em prática e em partilha com os artistas vocacio-nados que o procura. Diferente da maioria dos projetos que se tem hoje, em termos de política cultural, o Programa Vocacional possui uma proposta artística pedagógica que se preocupa com a formação do indivíduo e não com a fomentação de eventos descolados de qualquer preocupação com a aderência de um pensar crítico. O Programa Vocacional continua sua jor-nada que já dura mais de10 anos e é um dos poucos projetos que sobrevivem a uma longa tempestade que varre tudo que não esteja associado a uma maneira espetaculosa e eventual de se fazer arte. Vale lembrar que o seu retorno, continui-dade e permanência, aconteceu pelas vias da resistência, e consequentemente de um desejo genuíno, de uma cons- ciência política e de uma apropriação aos bens simbólicos por parte dos cidadãos. Foram os grupos que formados nos seus primeiros anos o reivindicaram de volta às suas comu-nidades. Por isso vale mesmo a pena retornar e continuar orientando-se rumo ao levante.

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Sobre processos criativos emancipatórios: ensaio em processo

Marko ConcáPIÁ

PREFÁCiO RECORtE

Nesse espaço farei uma reflexão sobre a construção de meu próprio percurso de criação em recortes de tempo nos quais atravesso, e sou atravessado, pelos encontros gera-dos durante a função de artista orientador dos Programas Vocacional e PIÁ. Os gomos de texto chamados recortes e lapsos de tempo podem ser lidos em ordem aleatória Inclui-rei também nestes escritos, os desdobramentos empíricos que só se deram por conta da participação que tive nestes programas da Secretaria Municipal de Cultura.

instRumEntO AndARilhO: RECORtE 2010 - AldEiAs Ytú E PYAú/ZOnA nOROEstE (VOCACiOnAl)

O território é a condição para o caminhar. Sem território não há caminho e sem caminho não se sabe do sentido. Trata-se do Sagrado que se revela primeiro e invade o ser humano como uma totalidade para reordenar o sentido do caminhar. 3

Recebi o convite do então coordenador geral do Vocacional Expedito Araújo para atuar nas Aldeias Ytú e Pyaú. Pre-cisei de uma semana pra conhecer um pouco do contexto Guarani na base do Pico do Jaraguá. Aceitei o desafio. O fator decisivo de minha escolha deu-se pelo fato da cultura Guarani: visão cósmica, dança canto e música serem in-dissociáveis, além de estarem diretamente relacionados ao Sagrado, dentro dos rituais que acontecem na Opy, ou Casa de Reza, e no seu modo de ser (nhandé reko). Vivi um va-zio no início desse percurso limiar entre culturas. Vazio no sentido de um esforço em busca de comunicação mas que não tem eco. Vale ressaltar que a língua-mãe dessa etnia é o guarani-mbya. Farei adiante um recorte memória orgânica que foi o divisor de águas em terras guaranis. Após uma longa conversa com Tupã Evandro, uma liderança da Tekoa Pyaú, reforcei o sentido de minhas visitas frequentes à al-deia, no âmbito de um diálogo intercultural através do fazer inventivo, com respeito e valorização às diferenças . Então, ele se volta a mim e o diálogo se deu mais ou menos assim:– A gente podia fazer um teatro com as crianças, disse Tupã.– Mas que história iremos contar? Retruquei.

– O Sabiá é o grande cantor da floresta. Diferente dele, as outras aves não sabem cantar. O urubu decide ensinar mú-sica para as aves da floresta e monta uma escola de música. Mesmo frequentando a escola, as aves não aprendem a can-tar e ainda assim ganham diplomas. O Sabiá se recusa a ir à escola, concluiu Tupã.Como se não bastasse ele vira-se e diz:– E você poderia ser o Urubu!– Isso seria o óbvio, comentei num rebote. Que tal inver-termos os papéis pra ver como fica? Suspirei como quem acaba de receber uma flecha no peito. A partir de então, iniciei os encontros com as crianças da aldeia na Opy com o intuito de encenar essa história e de-senvolvi um procedimento que desdobrou-se em uma ação performática que chamei de Escala de Mixirica. Todo esse processo de criação com as crianças teve a participação do Alcides Kuaray, que registrou grande parte do processo de criação em vídeo (http://vimeo.com/37957741).

CidAdãO Em PROCEssO: lAPsO 1 Minha primeira aprovação no edital Vocacional despertou em mim uma sensação de pertencimento à cidade, pertenci-mento inédito até então, pois eu nunca havia sido aprovado em nenhum edital de prestação de serviço público. No meu modo de leitura, pra ser aprovado em quaisquer desses edi-tais eu deveria ser conhecido de “fulano” e ter um extenso currículo acadêmico. Engano meu. Cruzar essa porteira permitiu que eu circulasse pelos quatro cantos da cidade e descobrisse um Brasil Paulistano que a escola não ensina: o Brasil Guarani. Debruço-me agora sobre meu rastro marca-do no espaço paulistano, no tempo além do relógio e em mi-nha memória viva, fruto das escolhas que fiz e das relações que estabeleci. Na qualidade de ser que escolhe seu próprio caminho, tal como o leitor (non ducor duco, do brasão pau-listano- “não sou conduzido, conduzo”), é destacada aqui a importância das relações estabelecidas com outras pessoas para minha evolução e com as imagens que me saltaram aos olhos, ao longo dos diversos cenários aparentemente desconexos entre si, pra marcar a minha versão, ou meu verso, nessa história. Quero aqui tratar do meu percurso

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de relações estabelecidas, através do Piá e do Vocacional no dado período de tempo, como meu processo de criação emancipatória. Meu corpo como instrumento andarilho, performático criador de memórias mapeadas e encontros de olhares musicais, sem fronteiras de linguagens, em limiares imateriais não demarcados nos mapas.

limiAREs imAtERiAis: RECORtE 2012 - bibliOtECA nARbAl FOntEs/ZOnA nORtE (PiÁ)

Perguntamo-nos então se a arte contemporânea, educan-do para a contínua ruptura dos modelos e dos esquemas – escolhendo para modelo e esquema a efemeridade dos modelos e dos esquemas e a necessidade de seu reveza-mento, não somente de obra para obra, mas dentro de uma mesma obra – não poderia representar um instrumento pedagógico com funções libertadoras; e nesse caso seu discurso iria além do nível do gosto e das estruturas esté-ticas, para inserir-se num contexto mais amplo, e indicar ao homem moderno uma possibilidade de recuperação e autonomia. 5

Pra fechar este ensaio optei por citar a Obra Aberta, pois estou revendo as formas artísticas com as quais venho buscando expressar meu modo de ver o mundo e me co-municar com ele. Parece necessário, neste momento, certa deseducação, um desfazer de modos de pensar e hábitos que aprisionam.Compartilho meu palpite de atentar às relações além das formas, o ser além do estar, star além das estrelas. Vejo o PIÁ como uma possível obra aberta, que permite tratar onde eu posso intervir de fato nas estruturas flexíveis

como as articulações dos corpos infantis, em oposição às rígidas articulações burocráticas. Refiro-me ao esforço de transformar a mim mesmo a partir da relação com as pes-soas, vibrando e agindo no dia a dia para o bem comum. O fazer criativo diretamente com as crianças, dissolve as fronteiras entre linguagens e a hierarquia mestre-aprendiz, também é um modo de fazer a política real, ainda que lenta, a política do possível.

OlhAREs musiCAis: RECORtE 2009 - bibliOtECA CAssiAnO RiCARdO/ZOnA lEstE (VOCACiOnAl)

Na situação de ensino-aprendizado, cada um aprende que dar e receber são a mesma coisa. As demarcações que ha-via traçado entre seus papeis, suas mentes, seus corpos, suas necessidades, seus interesses e todas as diferenças que pensavam separá-los um do outro, desvanecem-se, tornam-se indistintas e desaparecem. 1

Ao exercer a continuidade de meu rastro vocacional, bons ventos apontaram para o leste: mais pontualmente para a biblioteca Cassiano Ricardo, temática em música. Locali-zada em uma praça, limiar entre prédios de classe média e a extensa Avenida Celso Garcia. Neste recorte tratarei do momento que pude me apropriar do sentido da função de artista orientador, como acalentador do espaço de criação para o incentivo e a produção de olhares. Nem tanto como mestre, mas sim como parceiro de criação dos artistas vo-cacionados. Optei por abrir dois horários semanais voltados para a criação musical partindo de páginas matinais2.

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Um procedimento tomou nota, logo ao acordar, com um jorro de texto quase que inconsciente, que não breca o lápis no papel e não filtra ideias. Independente” de minha escolha certeira enquanto artista orientador, penso que meu avanço no ofício de orientação artística deu-se no sentido qualita-tivo, deveras significativo, pois reforça a relação entre cria-dores, ambos os mestres aprendizes, em um mesmo hori-zonte, com uma meta comum. Uma espécie de democracia criativa em um projeto público, que ainda não é lei, mas tem um posicionamento político e pedagógico intrínseco.

COstuRAs dO dEViR: lAPsO 2

Importante paralelo que costuro aqui é a relação do “Per-formancear o Morir” com o Vocacional Aldeias, no senti-do do diálogo intercultural com etnias indígenas Guarani Rarámuri respectivamente, fundamentado na alteridade, através do fazer artístico. Se eu não tivesse cruzado a por-teira Vocacional Música, eu não teria sido atravessado pe-las Aldeias, se eu não tivesse trabalhado com crianças nas aldeias eu não teria ido brincar no PIÁ. Numa nar-rativa paralela:se eu não tivesse integrado a equipe do Vocacional Música eu não teria conhecido o parceiro e amigo Vanderlei Lucentini, que me convidou a integrar a associa-ção Brasil Performance, a partir da qual eu conheci o mestre e performer espanhol Valentin Torrens, que me apresentou ao performer mexicano Gustavo Alvarez (organizador do “Festival Performancear o Morir”) que me convidou a per-formar no México o trabalho criado no processo que vivi com Alcides Kuaray,Tupã e as crianças, na Aldeia Pyau, conforme vídeo disponível no Youtube: www.youtube.com/watch?v=NbF8sZNkS_E&feature=youtu.beUm processo de criação é feito de escolhas. Este lapso se presta apenas a trazer à superfície deste ensaio, o simples fato de que uma escolha leva à outra, que leva à outra e três pontos mais, como uma reação em cadeia.

FROntEiRAs dE linGuAGEns: RECORtE 2011 - CEu GuARAPiRAnGA/ZOnA sul (PiÁ)

“Se deseja saber que causas foram feitas no passado, observe os resultados que se manifestam no presente. E se deseja saber que resultados serão manifestados no futuro, observe as causas que estão sendo feitas no presente”4

A responsabilidade é uma condição humana dentro da Lei de Causa e Efeito, e essa condição destaca-se como um outdoor ao lidar com crianças. Minha coragem pra aceitar esse desafio no Programa de Iniciação Artística tem como desejo propulsor a ação artística de interlinguagens. Essa migração do Vocacional para o PIÁ ilumina meu percurso, trazendo consciência ao meu rastro de criação, oriundo da música, navegando rumo às águas da performance, lingua-gem esta sem fronteiras e sem definições categóricas pela natureza a que esta se propõe.

mEmóRiAs mAPEAdAs: RECORtE 2008 - tEndAl dA lAPA/ZOnA OEstE (VOCACiOnAl)

Há duas categorias de memórias: as mecânicas e as orgâ-nicas. As mecânicas são frias, como o aço de engrenagens do hábito prático. São importantes, embora mantenham o céu acinzentado como um dia atrás do outro. Já as memó-rias orgânicas são habitadas por um calor multifocal que transforma as mais profundas lembranças, abrindo espaço no disco rígido interno para que memórias futuras se tor-nem presentes. Quando ocorrem, há o risco de um lapso de tempo. Neste mapeamento curto e expresso, trago a tona uma memória orgânica do velho oeste de São Paulo. Com o início das ações, minha missão era descobrir quais grupos musicais estavam em atividade pelos arredores da Lapa para então propor minha parceria e orientação aos quais fizesse sentido. Meu local de trabalho era o Tendal da Lapa, antigo abatedouro de carnes da cidade, que é hoje celeiro de ações culturais e artísticas, amadoras e profissionais, mas ao que me parece, permanece às sombras, mal divulgado, apesar do espaço incrível que é. Destaco aqui uma memória Polaroid com 130 anos de existência, fotografada no percurso andarilho de mape-ar: a Corporação Musical Operária da Lapa, fundada por músicos que trabalhavam na estrada de ferro SP Railway, que tem estrutura musical de banda militar com percussão, clarinete, sousafone e outros mais. Como num “Ensaio de orquestra”, do Fellini à brasileira, lá bem próximo ao termi-nal da Lapa. Meus passos seguiam a música onírica ao fun-do que crescia em volume conforme eu compassava. O som de clarinetes meio afinados e de uma discussão em altos brados numa sexta-feira cinza, convidava-me a adentrar as portas abertas da sala de ensaio. Entrei e me sentei ao lado de um outro vira-lata pra assistir, com todos ouvidos, uma versão viva do gênero de som típico dos coretos do Brasil afora. Entre dobrados, choros e marchas, minha memória vagava por espaços sem nome nas cercanias do meu ser-tão de dentro, o Brasil à palma da mão. Tanto o patrimônio material quanto o imaterial do país, ainda são descartados como garrafas plásticas. Faço meu esforço aqui pra reciclar nosso patrimônio vivo e inventar o Brasil que eu quero.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS:1. SCHUCMAN, Helen. Um Curso em Milagres. Segunda edição.São Paulo, Editora Abalone, 2011.2. CAMERON, Julia.Guia Prático para a criatividade. Tradução: Outras Palavras.Rio de Janeiro:Ediouro, 1996. (Procedimento extraído)3. CADOGAN, León e Meliá, Bartolomeu.Ayvu Rapyta.Fundación León Cardogan, 1992.4. NITIREN, Buda. Passagem do sutra Shinjikan.5. ECO, Umberto. Obra Aberta.Perspectiva,São Paulo, 1976.

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Ação cultural x Ação artística: Qual é a minha?

Sidmar Silveira GomesPIÁ

Cultura é a regra; arte, a exceção.(Godard)

Tratava-se de uma manhã corriqueira no CÉU Quinta do Sol, na periferia da zona leste da cidade de São Paulo. A proposta era a de que as crianças do PIÁ, Programa de Iniciação Artística da Secretaria de Cultura da Cidade de São Paulo, juntamente com os seus convidados e o resto da comunidade interessada, pintassem coletivamente uma escadaria do bairro.Afinados, crianças e adultos passaram a percorrer o trajeto até a escadaria, como em um alegre cortejo carnavalesco. Cantavam uma música criada pelas crianças - uma criativa paródia da cantiga popular “Se Essa Rua Fosse Minha”, que trazia em sua letra características do bairro e da escadaria em questão -, despertando a atenção e a curiosidade dos demais passantes e moradores do bairro. Quando o cortejo chegou ao seu destino, um dos artistas educadores deu a permissão para que todos pintassem os degraus, lembrando-se do trabalho feito a priori a partir das reflexões sobre os trajetos de cada um. Ainda que sua instrução tenha se configurado enquanto compreensível apenas para uma pequena parcela do grupo, crianças e adultos se colocaram a desenhar corações, caminhos, árvores, estrelas, circunferências, mãos, pés, dentre outras figuras e formas geométricas. Opondo-se à ideia antropológica segundo a qual cultura é tudo - todo o complexo que compreende o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e outras capacidades ou atitudes adquiridas pelo homem enquan-to membro da sociedade -, o teórico em política cultural Teixeira Coelho apresenta em sua obra A Cultura e Seu Contrário (2008), aquilo que se oporia ou seria a parte negativa da cultura, objetivando legitimar e reforçar o conceito de cultura na pós-modernidade. Segundo o autor, quando tudo é cultura, nada é cultura.A noção de cultura como ação é apresentada por Coelho como: “cultura aberta ao poder ser no sentido de experi-mentar ser uma coisa e outra, livre de toda restrição ou im-posição” (COELHO: 2008,pág. 22). No oposto de cultura em ação, o autor nos apresenta a cultura em estado: estag-nada, reiterativa, alienante. Assim, para Coelho, o objetivo de toda Ação Cultural deve ser a criação das condições para que as pessoas inventem seus próprios fins. Inventar seus

próprios fins em si já é o estado de ser da criança. O menino quando brinca transforma tudo o que cai em suas mãos em brinquedo, ainda que seja uma escadaria cinza.Coelho recorre ao sociólogo francês Pierre Bourdieu e sua noção de habitus como a capacidade de uma determinada estrutura social ser incorporada por seus agentes a partir de disposições para sentir, pensar e agir. Esse conceito serve aos interesses de Coelho para a justificativa por ele apre-sentada à necessidade de ações ditas culturais/artísticas. O autor relaciona o conceito de habitus, de Bourdieu, ao pensamento do filósofo iluminista Montesquieu de que a primeira obrigação de cada um de nós para consigo próprio é a ampliação da esfera da presença de seu ser.

Se for preciso pensar sempre de outro modo – e é preci-so fazê-lo, ainda que para um segundo momento retornar ao modo anterior (mas, depois de pensar alguma coisa sob outro ângulo nunca se retorna exatamente ao mesmo ângulo anterior sob o qual essa coisa era vista...) - o há-bito cultural, o habitus, torna- se sempre mais irrelevante e impertinente(Teixeira Coelho)

Dessa forma, desancorados, somos tomados pela mudan-ça das fontes de nossas sensações. Passamos a operar a compreensão do mundo por sentidos agora despertos, não em situação de perseverar no ser, mas sim em situação de ampliação da esfera de presença do ser. Ao longo de suas reflexões Coelho introduz o tema da arte, sempre em oposição à ideia de cultura. Como um dos pri-meiros argumentos, em que o autor afirma que a cultura não pode favorecer o desenvolvimento da exceção, uma vez que a cultura é na verdade apenas a repetição da regra. Coelho edifica seu pensamento a partir da noção de que as diferenças entre arte e cultura hoje são mais significativas que suas semelhanças. Ou seja, a ideia “arte também é cultura” antes confunde o quadro do que esclarece as coisas. Para Coelho, uma obra de cultura é coletiva, e em seu pro-cesso o nós é mais determinante que o eu, enquanto que uma obra de arte é determinada em sua última instância por um indivíduo. O teórico esquenta a reflexão quando questiona a necessidade da arte, negando-a em favor da necessidade da

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cultura. Sendo a cultura necessária, e a arte algo relacionado a uma pulsão arrebatadora (desejo), Coelho questiona o direito à arte a partir de sua constatação de que não há dever diante da arte. Segundo o autor, temos o dever de gerar cultura, mas não o dever de gerar arte. Gerar arte dentro de nossa sociedade seria apenas um plus na vida corrente.A cultura é utilitária, responde a necessidades específicas. A arte não é útil como arte, transcen-de todo e qualquer fim que se lhe possa propor. É intrínseca à sua própria experiência, como a brincadeira infantil.Enquanto a cultura comunica, a arte expressa. O significado da cultura circula pela sociedade. A arte expressa um universo. A cultura é do campo do diretivo, a arte do interpretativo. Com a finalidade de reconfortar, uma obra de cultura tranquiliza, traz identidade. Por sua vez, a arte é risco, insegurança, tanto para quem faz quanto para quem recebe. Seria descabido dizer que a criança habita uma zona de risco, caracte-rizada pela desestabilização da realidade a partir de sua fusão à ficção? A obra de arte desintegra, incomoda. O programa para a arte é incerto, plural, divergente, aberto em leque e apontando para múltiplas possibilidades, como o polimor-fismo característico da criança. Para a esfera cultural o programa é convergente, aponta para uma única direção. A cultura quer descobrir uma verdade, prende-se à tradição, à repetição. A arte por sua vez inventa. Para inventar deve-se antes desconstruir alguma coisa existente. Sendo desconstrução, a arte é uma interrupção de algum processo anterior. O artista precisa desaprender como se faz arte, por meio da experimentação, para descobrir o seu modo de fazê-la. A criança, em seus processos de reiteração, reconstrói seus modos de ser e es-tar, cria novas regras para o jogo já conhecido, descobrindo e afinando suas possibilidades de exploração do mundo. Em relação à temporalidade, a cultura implica continuidade, é duradoura. Já a arte é efêmera e interrompe o fluxo da vida corrente. Distanciada do tempo do relógio, a obra de arte aproxima-se então do presente eterno característico da poesia e da brincadeira infantil. Algumas características que segundo Coelho qualificam a noção de arte podem ser vinculadas aos modos de ser e estar da criança. Isso nos per-mite abrir uma discussão que aproxima a forma de a criança se colocar perante o mundo de uma forma essencialmente artística. Feita a devida licença poética, podemos apresentar a noção de

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criança como uma espécie de gerúndio do verbo criar. O conceito de Ação Cultural foi defendido pelo próprio Teixeira Coelho em contextos específicos da década de oitenta do século passado. Contudo, ainda que influencie os pensamentos e práticas de diversas ações a se estruturarem no campo das artes, entre elas as ações do PIÁ, pela atual reflexão do autor somos levados a problematizar a noção de Ação Cultural em função, digamos, de sua atualização pela noção de Ação Artística. Em momento algum Coelho nos define o que seria Ação Artística. Porém, na obscurida-de de seus pensamentos, somos instigados e permitidos ao desafio de definirmos as bases estruturantes desse conceito.O que poderia ser uma discussão meramente conceitual, desnecessária e vazia, adquire com os argumentos afiados de Coelho um estatuto de fundamentação a um programa público que, tendo como premissa seriedade e responsabili-dade social, alia arte a infância.Retomando a ação relatada ao início dessa reflexão, o que se questiona é: a ação coletiva da pintura de uma escadaria numa dada comunidade se caracteriza como Ação Artística ou Ação Cultural? É fato que a percepção de mundo dos a-tuantes da ação e dos demais moradores da comunidade que foram afetados por ela se transformou. Operou-se a transformação de suas fontes de sensação. Até que a per-cepção dos degraus da nova escada caia na anestesia do cotidiano, eles causarão em seus passantes insights sobre suas responsabilidades perante a cidade que habitam, além de como pequenas atitudes podem transformar o contexto urbano tornando a existência em uma metrópole mais agra-dável e sustentável aos sentidos. A ação realizada proporcionou a ampliação de esfera de presença de seus integrantes por meio da construção de seus próprios fins? Analisando a ação por essa perspectiva, podemos identificar que mesmo que as crianças estivessem instruídas a desenha-rem os ranços dos trajetos discutidos ao longo do processo artístico desenvolvido anteriormente dentro da sala do PIÁ, pouco deles se reflete na pintura final. Talvez isso se deva ao fato de grande parte dos integrantes da pintura serem estranhos ao processo anteriormente instaurado. Dessa for-ma, prevalece a proposta de um grande e coletivo desenho livre que pretende decorar uma escadaria em função de sua descaracterização cotidiana. Perseverando no ser, a reitera-ção de formas conhecidas (flores, estrelas, bolinhas, den-tre outros) foi à resolução encontrada predominantemente para a pintura coletiva. É como se um pequeno “empurrão” faltasse para deslocar a ação definitivamente do campo da cultura para o campo da arte, animando as capacidades do desejo, da expressão, do risco eminente, desestabilizador,

inventivo, questionador, efêmero, múltiplo em sentidos e formas de ser, de seus atuantes.Múltiplas também se apresentam as formas de como esse “empurrão” acontecer. Como olhar externo responsável pela percepção, alimentação e emersão dos possíveis pro-cessos artísticos latentes ao grupo de crianças configurado, por exemplo, os artistas educadores responsáveis pelo equi-pamento poderiam, antes da saída do cortejo, ter proposto alguma ação, em que a partir do corpo/sensações em jogo dos participantes os caminhos artísticos percorridos ante-riormente fossem explorados. O encontro de sentidos, fun-damental a apropriação plena dos elementos da pesquisa e criação pelos atuantes de um processo artístico, demanda nesse caso a contextualização de sensibilidades anterior ao próprio ato de pintura dos degraus.O que está em jogo, assim como nas reflexões de Coelho, não é o desmerecimento do conceito de cultura em função do conceito de arte. O que se discute é a pertinência de ações coerentes às especificidades da arte, e não da cultura. O mesmo vale para a ação do cortejo de pintura da esca-daria. Enquanto ação de integração entre pessoas, trabalho coletivo, comunicação de ideias, práticas, entretenimento e exemplo de intervenção sociocultural em uma determinada comunidade, ou seja, enquanto Ação Cultural, esse exem-plo mais do que cumpre com os seus objetivos. Contudo, para que se configure enquanto Ação Artística um “empur-rão”, como o acima apresentado, é requisito fundamental à prática relatada. Faz-se necessário discutirmos a pertinência de Ações Artísticas ao invés de Ações Culturais, tendo em vista a superação de contextos que coloquem em risco a riqueza e a clareza das propostas de um Programa de Iniciação Artística para crianças que tem como caminho o brincar. Pela superação da noção de Ação Cultural em função da noção de Ação Artística, nos aproximamos dos modos de ser e estar criativos da criança e nos distanciamos do perigo de visualizarmos e entendermos um programa de iniciação artística pelo viés do brincar pelo brincar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:COELHO, Teixeira. A Cultura e Seu Contrário. São Paulo: Editora Iluminuras, 2008.O que é Ação Cultural?. São Paulo: Brasiliense, 1989.SARMENTO, Manuel; GOUVEA, Maria Cristina Soares de. (Org.). Estudos da Infância: Educação e Práticas Sociais. Petropolis, RJ: Vozes, 2009.

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Processos Criativos Emancipatórios

Foto: Wilson Julião

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esboço de aforismos para serem recortados:Provocações acerca do “ensaio como forma” no Vocacional

Ivan Delmanto Coordenador Pedagógico do Programa Vocacional

O artista, depois de haver “finalmente encontrado sua forma”, acha que agora pode continuar a produzir suas obras em paz. Infelizmente, ele costuma não reparar que, a partir desse momento (de “paz”), logo, logo, começa a perder a forma que havia finalmente encontrado.(Kandinsky)

A seguir, manuscrito – de autoria desconhecida – encon-trado em uma garrafa. Há quem diga tratar-se apenas de pedaços espúrios de um texto ensaístico do filósofo alemão Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno, chamado O ensaio como forma . Alguns, por outro lado, identificamno texto um feixe mal disfarçado de citações requentadas de outro alemão, Walter Benjamin. De nossa parte, consideramos difícil que um náufrago tivesse à mão tal bibliografia.Os fragmentos do manuscrito encontram-se grudados com uma cola estranha e inútil, provavelmente feita de saliva, folhas diversas e de água do mar; materiais disponíveis a um náufrago:

i ARtE COmO FORmA

Escreve ensaísticamente quem compõem experimentando, quem vira e revira o seu objeto, quem o questiona e o apal-pa quem o prova e o submete à reflexão, quem o ataca de diversos lados e reúne no olhar de seu texto aquilo que vê, pondo em palavras o que o objeto esconde e permite vis-lumbrar. O ensaio é uma forma artística porque relaciona a forma do seu texto aos conteúdos que extrai do seu objeto. Nesse sentido artístico, o autor do ensaio procura conferir a uma experiência individual um caráter universal, e tem a utopia jamais alcançável de esculpir em um grão de arroz toda a história da humanidade.

ii luZ dE dEntRO

O caráter do ensaio não é vago ou rarefeito como o do sentimento ou da impressão, pois é delimitado por seu

objeto, pela exposição detalhada desse objeto e por sua análise, em forma de autópsia e de reflexão. Entendemos reflexão aqui em seu sentido etimológico, como retomar o já vivido, como percorrer de novo e novamente o mesmo caminho esburacado. O ensaio não segue as regras do jogo da ciência e da teoria organizadas, mas pretende iluminar seus objetos de pesquisa desde dentro, como se investigasse um cadáver aberto.

(aqui o manuscrito permanece ilegível) Ao ensaio é essencial o conceito de mediação. É preciso que o ensaio capte as transições e movimentos que cons-tituem cada objeto, transformando-o e relacionando-o em constelação, a outros universos para além de si mesmo. No caso do famoso Programa Vocacional, por exemplo, a me-diação entre um artista-orientador e um artista-vocacionado é estabelecida pelo material artístico criado coletivamente. É por meio do material artístico que a relação entre vozes diversas se estabelece, é ao olharem-se no espelho do mate-rial artístico produzido diariamente que os artistas reconhe-cem-se ou desconhecem-se, decidindo em conjunto sobre o destino de sua criação. A esse processo de mediação, João Guimarães Rosa chamou de “Terceira margem do rio”, em um conto em que pai e filho conseguem se relacionar e se reconhecer utilizando-se de um barco - e do percurso infi-nito de um rio - como mediação. Quanto a nós, podemos chamar esse processo de emancipatório.

iii FEliCidAdE dO jOGO E dO dEsPROPósitO

O ensaio considera as obras de arte como enigmas que ao exigirem solução, remetem para uma espécie de teor de ver-dade, só acessível mediante reflexão. Este mundo próprio e enigmático, criado pelos objetos artísticos, seria capaz de exprimir o que de outra forma não poderia ser dito sobre a realidade e, nesta expressão mediatizada, encontraríamos o seu teor de verdade. No entanto, o ensaio não precisa che-gar a uma conclusão. O pensamento no ensaio é profundo

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por aprofundar-se em seu objeto e não por conter um núme-ro elevado de informações ou citações. Felicidade, périplo sem rumo prévio e jogo são essenciais ao ensaio. Ele não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que dese-ja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer: ocupa desse modo, um lugar entre os despropósitos, relacionan-do de forma imprevisível e contraditória, arte e sociedade, forma estética e tecido social histórico.2

iV EsPÍRitO dE PORCO

O ensaio é sempre uma forma de crítica. Mas nesse caso, quem critica precisa experimentar, precisa criar condições sob as quais um objeto pode tornar-se visível, de um modo diferente do que sempre fora pensado, e, sobretudo, é preci-so por à prova e experimentar os pontos fracos desse mesmo objeto, tateando-o por todos os lados, girando-o e criando uma órbita que o sujeite, pouco a pouco e em seu movi-mento circular, à luz do olhar negativo. Tal olhar implacável não teme voltar-se, também negativamente, contra o próprio ensaísta, destruindo-o, assassinando-o, recriando-o.

V A ilhA dO tEsOuRO

O ensaio reflete sobre a experiência pessoal sob um olhar crítico. O ensaio não apenas negligencia a certeza indubi-tável, como renuncia também ao ideal dessa certeza. Torna-se verdadeiro pela marcha de seu pensamento, que o leva para além de si mesmo, e não pela obsessão em buscar seus fundamentos na teoria tradicional como se fossem tesouros enterrados. O ensaísta é um ignorante porque o mapa de questões que o guia está escrito em uma linguagem total-mente desconhecida e ilegível, à espera de tradução. O ensaísta é como o escritor polonês Witold Gombrowicz que, em viagem à Argentina em 1937, foi surpreendido pela eclosão da Segunda Grande Guerra. Impedido de voltar ao seu país invadido, preso à miséria em um país desconhecido e habitado por um idioma ainda mais estranho e ignorado, para sobreviver Gombrowicz - apoiado por um grupo de alunos que estudavam o polonês - traduziu para o espanhol, sem conhecer a língua, seu romance Fyerdydurke. Este ato de traduzir o próprio romance para um idioma desconhe-cido é similar à escrita do ensaio.

Vi imAnênCiA tEnsA

A relação do ensaio com a teoria é marcada pelo prima-do do objeto de pesquisa. A teoria surge em auxílio dessa experimentação do objeto e não como conclusão prévia ao processo de pesquisa. O ensaio não expõe seu objeto

para provar determinada teoria, mas faz com que a teoria emerja da exposição desse objeto, de suas diversas tensões e contradições. A esse processo, o filósofo Theodor Adorno batizou de crítica imanente. Podemos chamá-lo de interro-gatório (o objeto de pesquisa surge e se revela apenas quan-do perguntado) ou de autópsia.

Vii A lóGiCA diAlétiCA dAs EstRElAs

O ensaio não é desprovido de lógica; obedece a critérios lógicos na medida em que o conjunto de suas frases tem de ser composto coerentemente. Só que o ensaio desenvolve os pensamentos de um modo diferente da lógica discursiva. Não os deriva de um princípio, nem os subordina a uma se-quência coerente de observações organizadas em um passo a passo. O ensaio coordena os elementos em uma constela-ção, em vez de subordiná-los a uma tese.

Solilóquio do EnsaístaPoema rabiscado às margens do manuscrito:

Quando eu estiver velho e não puder mais escrever,Gostaria de ter no corredor da minha casaUm mapa imenso da cidadeCom uma legendaPontos azuis designariam as ruas onde moreiPontos amarelos, os lugares onde moravam minhas namoradas.Triângulos marrons, os túmulos.Nos cemitérios de São Paulo onde jazem os que foram próximos a mimE linhas pretas redesenhariam os caminhosNo zoológico ou nas praças redondasQue percorri conversandoE flechas de todas as cores apontariam os lugares nos arredoresOnde deliberava sobre os dias de tédio, transformando-os em flores súbitas E muitos quadrados vermelhos marcariam os aposentos

Viii A CEGuEiRA quE EnxERGA

O ensaio tem a ver com os pontos cegos de seus objetos. Ele quer desencavar, com os conceitos que inventa aqui-lo que não cabe em conceitos já determinados. O ensaio exige a interação recíproca de seus conceitos e perguntas, em um processo de exposição do pensamento que abarca idas e vindas, aventura e perigo. O ensaio toma seu obje-to não como manifestação artística viva e sim exatamente como arte morta. O ensaio assume a morte do seu objeto: cria precisamente por meio das ruínas e dos órgãos falidos deste material, sem procurar a todo custo revivê-lo, mas, pelo contrário, identificando na sua ausência de vida con-tradições que podem levar à redescoberta de um sentido irremediavelmente perdido.

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ix RACiOCÍniO intEnsO sObRE si

O raciocínio do ensaísta obriga-o a uma intensidade maior que a do pensamento discursivo tradicional porque o ensaio não procede cego e automaticamente como este, mas sim precisa a todo instante refletir sobre si mesmo. O pensa-mento no ensaio não avança em um sentido único; em vez disso, os vários momentos se entrelaçam como num tapete ou como se as células da pele de um morto pudessem tecer órbitas tortas e desesperadas.

x sEm nOmE

A lei formal mais profunda do ensaio é a heresia, inclusive e principalmente contra si próprio.

EPÍlOGO – umA AlEGORiA um tAntO quAntO EniGmÁtiCA

Diálogo entre o Náufrago e o seu psicanalista, o Dr. Real:

NÁUFRAGO – Sonhei que eu era duplo. DR. REAL – E como era ser duplo?

NÁUFRAGO – Eu era um modesto trabalhador e sem nenhum parente, mudava de casa a cada três ou quatro se-manas. Eu pensava muito sobre onde me hospedar naquela noite de fim de ano. Assim, escolho um hotel e depois das nove começo um banquete solitário, sempre com a espe-rança de que soe a campainha e seja alguém vindo me vi-sitar, desejando me fazer companhia. Mas minha esperança acabara. Pouco antes das duas, decido caminhar. Talvez eu não caminhasse, apenas sonhava caminhar. Avanço então através de um beco apertado. Uma lâmpada fraca atrai a minha atenção. Eu me aproximo e vejo que há um letreiro sobre uma porta: CIDADEPANORAMA. Decido passar ao largo, mas um papel velho, como que pregado à lua, faz-

-me deter: “Hoje, atração especial: VIAGEM AO ANO VELHO”. FICO SURPRESO, ABRO TIMIDAMENTE A PORTA E NÃO VENDO NINGUÉM PARA ME COBRAR A ENTRADA, então ENTRO. Ali estava o PANORAMA. Havia 32 pequenas cadeiras dispostas em círculo, era um carrossel. Eu me sento. E aqui conhecia alguém curioso: o meu OUTRO EU, também sentado. O carrossel começa a girar e começa a viagem pelo ano velho. São projetadas 12 imagens, e em cada uma delas uma inscrição pequena, e com cada uma delas uma luz especial acendendo uma tela no centro do carrossel, no piso do brinquedo. As imagens eram: o caminho que quiseste tomar/ a carta que quiseste escrever/ o homem que quiseste salvar/ a paisagem que quiseste visitar/ a mulher a que quiseste seguir/ a palavra que quiseste ouvir / a porta que quiseste abrir/ a roupa que quiseste vestir/ a pergunta que quiseste fazer / a habitação de hotel que quisesse ter/ o livro que quiseste ler / a opor-tunidade que quiseste aproveitar/ todas as perguntas, ditas e não ditas, formuladas e não formuladas/ perguntas. Em umas imagens aparecia o meu segundo EU, em outras so-mente as situações em que o meu primeiro EU quis estar. As imagens se sucederam depois de uma campainha, que marcava o fim de uma imagem e o início de outra. A última campainha se fundiu ao estrondo dos fogos de artifício do Ano Novo. E eu acordava depois desperto em uma das ca-deiras do carrossel com as mãos vazias.

DR. REAL – Quer arriscar uma interpretação?

NÁUFRAGO– O que significa?

DR. REAL– Diga-me você: o que significa o sonho?

NÁUFRAGO – O processo de escrita de um ensaio?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: Notas de literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 15-47.2. A construção das frases de um ensaio é comparável à planta de uma grande cidade.

Foto: Berenice Farina

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Construção musical:diversos olhares de formas e conteúdos nas práticas artísticas e pedagógicas

Organização: Cintia CampolinaClaudia Polastre, Cintia Sauer, Egelson Lira, Miranda de Amaralina e Tiago GatiVocacional Música

A equipe do projeto Música Vocacional, que atua na zona norte da cidade de São Paulo é composta por artistas orien-tadores como Miranda de Amaralina; que está presente no projeto desde 2009, Claudia Polastre; participa atu-ante desde sua implantação, também como coordenadora pedagógica, Tiago Gati e Egelson Lira; ambos participantes desde 2010, e Cintia Sauer; artista selecionada em 2012. A maioria da equipe é composta por artistas orientadores que já participaram do projeto em outras edições, em trabalhos de 2012. Por esse motivo, as discussões são focadas nas inúmeras possibilidades de formas e conteúdos presentes nas orien-tações, além de aspectos discutidos através de materiais teóricos e práticos, que norteiam o Programa Vocacional. Percebemos que cada artista orientador trabalha tais ques-tões de acordo com inúmeros fatores. As constatações são

diversas, desde aspectos estruturais (localização dos equi-pamentos na região, público atendido, ações externas) até aspectos cognitivos e afetivos.Acerca dessas discussões, cada artista orientador da equipe relatou seu processo diante de diversos pontos de vista, além de compartilhar dificuldades e sucessos de suas traje-tórias com as turmas e grupos. Claudia Polastre investigou processos musicais aliados à poesia; Miranda de Amaralina relatou a realização de processos de inclusão social através do resgate da memória; Tiago Gati explanou como o espaço físico pode influenciar em processos musicais; Cintia Sauer compartilhou processos de educação não formal para atin-gir objetivos com turmas iniciantes em música e Egelson Lira provocou discussões sobre a influência da mídia nos processos musicais vivenciados pelos jovens vocacionados como veremos a seguir.

GEOGRAFiA nORtE

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POssibilidAdEs FORmAis E AbORdAGEns dOs COntEúdOs nO PROCEssO dE iniCiAçãO musiCAl Artista orientadora Cíntia sauer – CEu jardim Paulistano

A orientação em música no Projeto Vocacional equilibra-se em torno de alguns fatores condicionantes. As questões de forma e conteúdo perpassam por todos os cantos. Por um lado há um lugar -um tanto inédito- de en-sino e aprendizagem bem distante dos tradicionais modelos de conservatório. Nos conservatórios privilegia-se o ensino técnico de música, centrado nas habilidades de execução e reprodução de repertório estabelecido. Por outro lado, o projeto recebe um público constituído em grande parte por pessoas formadas pela indústria cultural de massa, cujo in-teresse inicial se encontra, em sua maioria, na vontade de aprender a reproduzir as suas músicas preferidas, dissemi-nadas através dessa mesma indústria. Outro condicionante digno de nota é a ausência total de recursos musicais, para que o desenvolvimento dos alunos e grupos não fique restri-to aos instrumentos e músicas já conhecidas e trabalhadas. Dentro desse panorama e a partir da peculiaridade dos jovens vocacionados do CEU Jardim Paulistano, o de-senvolvimento estético trabalhado inicia-se a partir do repertório trazido pelos alunos. Contudo, aos poucos, esse referencial passa a ser desconstruído com a introdução de um panorama musical mais abrangente. Por não estarem em um conservatório, há possibilidades que surgem para que as habilidades individuais e coletivas referente à cria-ção, invenção e expressão artística possam ser trabalhadas, através de jogos, desafios e propostas de estímulo à compo-sição. Por isso ocorrer antes mesmo do desenvolvimento técnico e instrumental, há uma ampliação de referências,

desconstrução dos modelos da indústria cultural e do re-gime conservador. Assim, é possível introduzir conteúdos musicais de modo mais criativo e dialógico.

O COntEúdO POétiCO sOb A FORmA musiCAl Artista-orientadora Claudia Polastre CCj Centro Cultural da juventude, Vila nova Cachoeirinha

O poema apresentado neste artigo é de autoria de Cecília Meireles, em seu livro Flor de Poema, da série Vaga Mú-sica. Os poemas de Meireles que discorrem sobre música, podem despertar a criação artística daqueles vocacionados que se conheceram durante esse ano, na ocasião do projeto. Em uma orientação, o aluno João Florença, trouxe alguns acordes sobre os quais gostaria que se tornasse uma música. Esses acordes resultaram na cadência harmônica: Bm Fm D Em7 D F Dm C e o conteúdo da letra foi o poema “Can-ção excêntrica”, eleito por todos para se tornar uma canção musical.Das reflexões sobre os motivos de cantar o poema e sobre quais sentimentos e sensações a poesia remetia, trouxe à luz algumas lembranças e vontades de cada participante daquela construção artística. Procurei provocar, ampliar e encantar o olhar sobre a letra e o que a canção significava em relação à vida deles. O resultado dessa conversa está abaixo registrado:

Ando a procura de espaçoPara o desenho da vida.

A liberdade de poder construir a própria vida, responsabi-lidade, correr atrás dos sonhos, quem sabe escrever uma

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história da sua vida (Rafael, artista de música do CCJ)

Em números me embaraçoE perco sempre a medida.

Isso me lembra Milan Kundera no seu livro Insustentá--vel leveza do ser quando ele escreve o que é a vida, se o próprio rascunho da vida e a própria vida (João, artista vocacionado de música do CCJ)

Se volto sobre o meu passo,É distancia perdida,Meu coração, coisa de aço,Começa a achar um cansaço Está na hora de ir criando uma outra coisa na vida não voltar atrás nas decisões. Achar outros caminhos. A frase que li: Pior mal do ser humano é ficar se remoendo pelos erros do passado – do livro Admirável mundo novo. (Igor, artista vocacionado de música do CCJ) Esta procura de espaçoPara o desenho da vida.Já por exausta e descrida.Não me animo a um breve traço:- saudosa do que não faço,- do que faço, arrependida.

As coisas da vida a gente enfrenta tudo, ter um momen-to pra gente. É o prazer que a gente tem de fazer aqui o que gosta. (Raquel)

Prazer em fazer para si. (João)

Apresentamos a canção em uma mostra na Casa de Cultura Salvador Ligabue no mês de julho de 2012, e ao término a estudante Raquel, que cantou a música acompanhada pelos violões de Igor e João, me falou muito feliz: “O fato de você ter feito aquilo com a gente num encontro, de ques-tionar o poema, o que era fazer música e pedir para a gente externizar o sentimento da música dentro da gente fez com que eu sentisse a música, mudou minha postura de cantá-la, e fez toda a diferença para mim”.

A FORmA dE inCluiR E O COntEúdO dA mEmóRiA nA ExPERiênCiA musiCAl Artista-orientador miranda de Amaralina CEu Pera marmelo, jaraguá

A memória apoia-se sobre um passado vivido, sobre as ex-periências que cada um vivenciou. Rememorar estas lem-branças é retomar as histórias individuais, daí surge a im-portância dos nossos encontros e das trocas de saberes com

o grupo do coral, demanda atendida no CEU Pera Marmelo desde 2011. Através de conversas sobre as histórias de vida, das trocas sobre o que gostam de ouvir e cantar, além de lembranças da infância e a cultura do lugar de onde vieram, vivencio o grupo e traço um caminho para o nosso trabalho. Propus cantigas de versos para roda e percebi que ficavam à vontade para brincar, como se tivesse aberto o baú das lembranças, onde cada um contribuía com um versinho ou com uma brincadeira de sua infância. Outro aspecto importante é a maneira como o grupo se relaciona, a solidariedade que existe entre eles. Neste mo-mento temos duas pessoas especiais que apresentaram di-ficuldade de compreensão para acompanhar determinadas atividades em alguns momentos. Em diversas situações observei a paciência do grupo para incluí-las nas atividades. Percebo que o trabalho do coral contribui para a inclusão destas pessoas no grupo. Mesmo diante das suas limitações é muito marcante a alegria e a dedicação delas e do grupo. Cito como exemplo um depoimento realizado por uma das participantes do projeto na ação compartilhada entre músi-ca, dança e teatro, relatando o quanto era importante para ela estar ali, fazendo o que mais gosta: cantar, dançar e ter amigos.

A inFORmAçãO dA mÍdiA nOs COntEúdOs dAs ORiEntAçõEs – um OlhAR sObRE A CultuRA dA inFânCiA Artista-orientador Egelson lira, Casa salvador ligabue, Freguesia do ó

As músicas que os vocacionados trazem para trabalharmos nos encontros são totalmente influenciadas pelos meios de comunicação em massa, os mais diversos tipos de mídias eletrônicas ao alcance de todos, criando um abismo grande na formação cultural das novas gerações. Percebi por meio de rodas de conversas e pelo repertório musical que trazem para trabalho nas orientações, que os vocacionados têm toda uma parte de sua formação cultural esquecidas e carregam muito pouco da cultura da infância - jogos, brincadeiras, cantigas, poemas infantis. Propus uma mostra de processos artísticos no mês de julho em nosso equipamento e os vocacionados apresentaram ar-ranjos diversos para canções já existentes. Nas orientações posteriores, instiguei que a maioria dos grupos de convida-dos para a mostra (de outros equipamentos) apresentaram composições de autoria deles e questionei o que os jovens achavam daquilo que tinham visto e ouvido. A partir daí, muitos questionamentos e proposições surgiram, até que se sentiram desafiados a compor. Entendo que a mostra den-tro do projeto não cumpre apenas seu papel de amostragem para o público dos processos que estão sendo trabalhados nas orientações, mas neste caso, serviu para deflagar um proces-so de composição autoral, conteúdo que trabalho atualmente.

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A intERFERênCiA dO EsPAçO FÍsiCO nAs APliCAçõEs dE FORmA E COntEúdO musiCAis Artista-orientador tiago Gati biblioteca Álvares de Azevedo, Vila maria

Forma e conteúdo trabalham em conjunto no desenrolar de uma atividade artística e como parte do que se pode entender por forma, está o próprio espaço em que tal ativi-dade se desvelará indissociável na medida em que o que se propõe inicialmente (ideia presente no conteúdo) se relacio-na com o espaço que o “conforma”: quem frequenta esse lo-cal, ou seja, o “público” ou passantes. Relaciona-se a isso a acústica, no sentido de como a maneira de externar os sons e gestos precisa se adaptar à realidade acústica daquele lo-cal. Pensar e experimentar o espaço torna-se parte essencial para a realização de uma forma que se queira apreensível. A consideração de como os sons produzidos por uma ati-vidade artística – pedagógica ou não – ocupam o espaço, permite observar inclusive a maneira como grupos orienta-dos se comportam em situações de apresentação. Espaços pequenos ou amplos que sejam fechados refletem compor-tamentos distintos na caracterização sonora de um grupo em relação a outro, que desenvolve suas atividades em es-paços abertos, especialmente de ampla circulação. A dinâ-

mica de ocupação durante as orientações também influi na caracterização sonora de um grupo e em sua versatilidade para ocupar diferentes espaços: se as orientações ocorrem sempre em círculo, por exemplo, os integrantes podem ter maiores dificuldades na projeção sonora em direção a um público frontal e mesmo para ouvir uns aos outros na dis-posição de palco lateral (especialmente quando se trata de participantes com menor experiência). Outro ponto importante que concerne mais especificamente o cotidiano do Programa Vocacional é perceber a versa-tilidade necessária de ocupação do espaço em função da variedade e fluxo frequente de pessoas e instrumentos, que tornam do ponto de vista prático, essencial o exercício de ouvir a si mesmo e ao outro; as oscilações de pessoas e instrumentos em um espaço de orientação exigem o exer-cício constante da escuta, de modo a abarcar as diferen-ças de quem participa no grupo e de como participa. Esta versatilidade precisa ser estendida também ao espaço: não raro vemos experiências que partem exclusivamente de um conteúdo pré-determinado, que pouco se adapta ao local onde acontecem, seja por conta dos próprios sons que já habitam ali e entram em conflito com o que é trazido pelo grupo, ou mesmo pelo frágil “acolhimento” que este con-teúdo terá no desenrolar da atividade da maneira como é feita, ou seja, no que poderá ser apreendido em forma.

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Vaga música, faz-se canção: Recursos poéticos na criação musical

Claudia Polastre Vocacional Música

Canção Excêntrica

Ando a procura de espaçoPara o desenho da vida.Em números me embaraçoE perco sempre a medida.Se penso encontrar saída.Em vez de abrir um compasso,Projeto-me num abraçoE gero uma despedida

Se volto sobre o meu passo,É distância perdida,

Meu coração, coisa de aço,Começa a achar um cansaçoEsta procura de espaçoPara o desenho da vida.Já por exausta e descrida.Não me animo a um breve traço:- saudosa do que não faço,- do que faço, arrependida.

O trecho acima é de autoria de Cecilia Meireles e se en-contra em seu livro Flor de Poemas, na seção Vaga Música. O poema foi o primeiro de uma série eleita pelos vocacio-nados, com os quais me encontro todas as semanas pela manhã no CCJ - Centro Cultural da Juventude, para uma criação musical coletiva. A ideia de utilizar poesia como meio de produção nas minhas orientações iniciou, sobretudo com a minha leitu-ra de alguns poemas de Manoel de Barros, em específico “Uma didática da invenção” - do seu livro “O Livro das Ignorãças” ( Barros, 2009). Poema excepcional, traz vá-rios versos que ecoam sentidos e sensações em quem os lê, e, em mim, um verso em especial ecoou algumas se-manas durante minhas primeiras orientações desse ano, o qual diz: Repetir repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo. Nesse contexto, encontrei o livro de Cecilia Meireles “Flor de poemas” (ou melhor, o que restou dele), em meio aos meus materiais, e não por acaso, creio eu, a seção Vaga Música não tinha sido o alvo da voracidade das pragas. Levei-o para minhas orientações para lermos, re-petirmos a leitura, falarmos sobre prosódia e realizarmos

vários ensaios sobre a escrita rítmica musical. Três poemas de Meireles foram eleitos para o trabalho: Canção Excên-trica, Canção do Caminho e Canção a Caminho do Céu. Fazer uma analogia entre a rítmica da poesia com a rítmica da linha melódica foi a primeira estratégia para despertar e ampliar o olhar do vocacionado sobre o fazer musical. O texto poético foi a forma que utilizei para despertar a criação artística daqueles vocacionados que se conheceram nesse ano no projeto. Desta estratégia, algumas criações coletivas simples surgiram em compassos quaternários. A literatura de Schoenberg sobre composição musical foi fundamental nessa linha de trabalho que trilhei, e que no momento continuo a trilhar, por me sustentar em relação aos requisitos essenciais necessários para a criação de uma forma musical. Para ele, a forma musical tem que ser orga-nizada, ou seja, para que ela possa ser compreendida tem que haver lógica e coerência, uma “apresentação”, no caso, transpondo-o ao meu trabalho seria ler o poema/ prosódia; um “desenvolvimento” – pensar em estruturas harmônicas; e uma “interconexão de ideias” – associar o poema à har-monia. Segundo o autor essas “ideias devem ser diferencia-das de acordo com sua importância e função”. (Schoenberg, 1991). Do primeiro contato com os poemas, e da minha provoca-ção sobre quem teria e traria ideias para musicá-los, foi o vocacionado João Florença, que toca violão, quem trouxe alguns acordes os quais gostaria que se tornasse uma mú-sica. Escrevi num flip-chart os acordes propostos e durante algumas orientações, num processo de tentativas, erros, acertos e de experimentos, uma escuta musical atenta com a participação de vários vocacionados, resultou a cadên-cia harmônica Bm - Fm - D - Em7 - D - F - Dm - C. O poema “Canção excêntrica” foi eleito para ser o conteúdo da música. A partir dessa materialidade artística, uma semana antes de apresentarem-na numa mostra, fizemos uma roda de con-versa na qual procurei questionar sobre o que significava cantar aquele poema, sobre quais sentimentos e sensações a poesia remetia. E ao repetir novamente a poesia percebi que trouxe à luz algumas lembranças e vontades de cada parti-cipante daquela construção artística. Dessa vez, a repetição teve uma intenção diferente. Tentei provocar, ampliar e en-cantar o olhar sobre a letra que repetíamos várias vezes nos ensaios, e o que essa canção poderia representar para eles. Li o poema pausadamente. A cada dois ou quatro versos eu

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questionava o significado daquelas palavras e da música na vida de cada um. Desse mapeamento de sentidos, registrei o seu conteúdo abaixo:

Ando a procura de espaçoPara o desenho da vida.

A liberdade de poder construir a própria vida, responsabilidade, correr atrás dos sonhos, quem sabe escrever uma história da sua vida. (Rafael)

Em números me embaraçoE perco sempre a medida.

Isso me lembra Milan Kundera no seu livro “Insustentável Leveza do Ser” quando ele escreve o que é a vida se o próprio rascunho da vida é a própria vida. (João)

Se penso encontrar saída.Em vez de abrir um compasso

Fuga....abrir outras possibilidades. (Raquel)

Projeto-me num abraçoE gero uma despedida

A simplicidade da vida. (Rafael)

A procura de um lugar no mundo. (Raquel)

Se volto sobre o meu passo,É distância perdida,Meu coração, coisa de aço,Começa a achar um cansaço

Está na hora de criar outra coisa na vida, não voltar atrás nas decisões. Achar outros caminhos. A frase que li: O pior mal do ser humano é ficar se remoendo pelos erros do passado – do livro Admirável mundo novo.(Igor)

Esta procura de espaçoPara o desenho da vida.Já por exausta e descrida.Não me animo a um breve traço:-saudosa do que não faço,- do que faço, arrependida.

As coisas da vida a gente enfrenta tudo, ter um mo-mento pra gente. É o prazer que a gente tem de fazer aqui o que gosta. (Raquel)

Ter uma força maior que motiva você - motiva a gen-te- para a rotina de gostar de música, despertar outro lado , sensações, emoções (Raquel)

Prazer em fazer para si. (João)

Encontrar um sentido direto pra trazer paz. (Raquel)

Na semana seguinte dessa conversa participamos da mostra da equipe de música na Casa de Cultura Salvador Ligabue, e ao término, Raquel, que cantou a música acompanhada pelos violões de Igor e João, me disse feliz, com uma since-ridade que me constrangeu:

O fato de você ter feito aquilo com a gente num encontro, de questionar o poema, o que era fazer música, e pedir para a gente externalizar o sentimento da música dentro da gente fez com que eu sentisse a música...fato que mu-dou minha postura de cantá-la...e fez toda a diferença.

Volto-me à voz do poeta:

Repetir, repetir até ficar diferente.

Na vida de cada um, para cada um.

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A ideia de que o homem não sabe desejar

Alexandre Dal Farra Vocacional Encenação

A ideia de que o homem não sabe desejar, e de que, ao con-trário do que se poderia pensar, o ser humano não “vem pronto”, que os seus desejos não são meramente reprimidos pela sociedade; a ideia de que, ao contrário da explicação corrente, mais fácil e comum, não se trata somente de bus-car uma libertação dos desejos reprimidos do homem, dos anseios mais profundos que a sociedade atual reprime e coloca de lado. A ideia de que é preciso aprender a desejar, essa ideia está em diversos autores, dentre eles, Lacan, e foi formulada de maneira clara e direta por Slavoj Zizek, ao falar sobre cinema, no filme “The pervert`s guide to cinema”. É neste filme que o filósofo diz que o cinema não dá o que você deseja. O cinema ensina como desejar. O cinema é, assim, para Zizek, uma das instâncias formadoras do sujeito, instâncias estas que “ensinam” a desejar. O de-sejo puro, em seu estado bruto, simplesmente não sabe por onde sair: é uma espécie de massa amorfa, que se espalha por todos os lados. O desejo precisa de um código por meio do qual ele se realiza, e esse código é dado socialmente. Não existe, assim, para esses teóricos, algo como um dese-jo anterior, livre de repressão, pronto para ser acessado em uma sociedade mais libertária, ou em contextos emancipa-tórios. O que há, são formas e formas de desejar, de fazer com que o desejo se realize, e há diversas instâncias sociais que se prestam ao ensino dessas formas, desses códigos. O cinema é um deles, assim como, é claro, a televisão. É aí que a indústria cultural mostra o seu caráter efetivamente ideológico, como instância produtora de códigos que in-fluenciam e formam, de fato, as subjetividades das pessoas. No Vocacional Encenação de 2012 do CEU Jaçanã houve um problema de comunicação no início do ano, por isso, naquele equipamento, o projeto foi divulgado como Voca-cional Teatro. Por conta disso, todos os vocacionados que vieram aos encontros, desde o início do ano, pertencem ao perfil dos vocacionados de teatro – perfil este com o qual eu ainda não havia tido contato, pois fui da música em 2010 e a da encenação em 2011. Ao me deparar com os oito vo-cacionados de teatro de cada uma das minhas turmas (esse número tem se mantido, embora não sejam sempre os mes-mos, com certa rotatividade), me perguntei o que eu, com as minhas características, com a minha história pessoal e no próprio Programa, o que eu, dramaturgo e diretor, há cerca de 12 anos fazendo teatro, formado em música-embora não exerça profissionalmente esta linguagem-, escritor, pres-

tes a lançar o meu primeiro livro, o que eu poderia propor àquelas pessoas?Sem que eu tenha tido muito tempo para pensar, surgiu um vocacionado, o Robson (nome fictício), e disse, ao fim do primeiro encontro:Robson – Com a voz afetada, incontida, como se fosse algo que ele estivesse querendo falar já há três horas.Então, gente! Bom, eu acho que, agora... Acho que cada um tem que falar, assim, sabe? Do que quer fazer sabe? Do personagem que quer fazer, assim, cada um tem que falar de um personagem que a pessoa quer fazer, quer muito fazer...Eu– Uma personagem?Robson– É. Acho que cada um tem que dizer qual é a per-sonagem que quer fazer, assim, na peça...Rafael (outro vocacionado) – O que você quer fazer?Robson– rindoEu- ?Rafael – É, comigo é assim. Eu gosto de ser direto. O que você quer fazer? Começa você.Robson– Eu começo?... Tá. Eu quero, assim... Eu quero fazer uma personagem, assim, do sexo oposto, né? Uma mulher. Eu quero fazer uma mulher. E eu queria, assim, fazer uma cigana.Eu– Uma cigana?Robson – É. Uma cigana.Eu – Tá. Então na semana que vem você faz uma cigana. Quem mais?Na semana seguinte, Robson veio vestido de cigana. Ele colocou uma música no rádio, uma música americana, e dançou, durante a música inteira, na frente de todos os vo-cacionados, vestido de cigana, com uma saia de um tecido muito fino, maquiagem carregada no rosto, uma faixa com moedas em volta da cabeça e um sutiã cheio de lantejou-las. Tanto a saia, quanto a faixa da cabeça e o sutiã, escor-regavam e de quando em quando caíam durante a dança. Robson rebolava e movia os braços, e se posicionava frente ao público como quem já olhou muitas vezes no espelho a dança que está fazendo, e procura mostrar uma parte do seu corpo que considera a mais bonita, o que considera o seu melhor ângulo. Ele levantava as partes da roupa que caí-am e colocava de volta no lugar. A certa altura ele chegou ao ápice que ele aparentemente havia planejado, quando ajoelhava no chão e não tinha mais como erguer as par-tes da roupa, e por isso a faixa com as moedas escorregou

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completamente para o pescoço, tornando-se um colar – no entanto, Robson mantinha o mesmo olhar de antes. Mas o olhar de Robson não era só o olhar sensual que ele trei--nara no espelho. Não era só aquele olhar que ele tinha visto em muitos lugares, que ele tinha ensaiado exaustivamen-te, e que naquele momento ele procurava fazer para nós, sem que, no entanto, pudesse se ver ao mesmo tempo no espelho, o que o deixava um tanto quanto confuso, por não saber se ele aparecia da forma tinha se imaginado, e planejado. Não. O olhar de Robson também tinha algo de violento. Como se pode perceber, se tratava de uma luta. Havia muitas coisas em jogo.Robson estava em luta, era um olhar de luta. A luta não era contra nós, especificamente. A luta não era contra a ciga-na. A luta não era contra ele. A luta era contra um terceiro elemento que estava na sala. Um terceiro elemento invisível que assistia à dança.Esse terceiro elemento era a própria instância simbólica que estrutura o desejo, o próprio código que organiza a expressão. A luta era para poder inserir o desejo dele, ou melhor, inserir-se, colocar-se dentro do discurso, dentro daquela instância formadora do -desejo. A luta era para que o desejo de Robson pudesse entrar, pudesse fazer parte do discurso que formara a ele próprio, que dera forma ao seu próprio desejo. A luta era para incluir o seu desejo na trama simbólica. Disfarçar-se de cigana era a sua maneira de se

inserir na própria instância que ensina a desejar. O meio que Robson tinha, o único meio, para dar vazão ao seu desejo, era o meio que lhe fora dado por essa instância, e a luta de Robson era para incluir-se nisso própria instância, por sentir-se contemplado nela.Os momentos mais fortes do programa (se é que se pode usar este termo nesse contexto) que Robson realizou sem saber foram, evidentemente, os momentos que as coisas da-vam errado. Era ali que aparecia a urgência e a necessidade de Robson, sua batalha por inserir-se na ordem discursiva que o formou enquanto sujeito desejante. Que se tratem de estereótipos, que a cigana não seja uma expressão sincera e direta ao seu desejo, parece não ser aqui o que importa, já que o desejo livre, puro, não existe, ou é somente força, concretude, vida cega e disforme. O que importa não é que a cigana não seja dele, pois que, desse ponto de vista, nada é de ninguém. O que importa é perceber que ele não pode estar na cigana. A luta é para que o desejo de Robson caiba na cigana, se adeque a ela, ganhe a forma dela, funda-se a ela, aos seus figurinos. E a beleza da performance que Robson realizou é justamente o que não cabe, o que resta, o que sobra que é Robson. Ao que me consta, é desse nível de complexidade que falamos. É disso que se trata. Lidemos com isso, na medida do possível com a delicadeza e o tato que isso pede.

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desamadurecendo práticas: Arte com crianças

Sidmar Silveira GomesPIÁ

A presente reflexão problematiza o conceito de arte para crianças em função da ideia de arte com crianças. O con-ceito de arte para crianças, amplamente presente em livros do ensino da arte e demais discussões pedagógicas acerca desse tema, pressupõe uma ideia pasteurizada, produzida e acabada acerca do ensino da arte e da prática artística. Como um produto a ser utilizado por consumidores pré--estabelecidos, fabricado na medida certa para os primeiros anos da vida, a arte para crianças considera o adulto edu-cador como transmissor de formas artísticas, e não como o desencadeador e fomentador do processo criativo da crian-ça. Por meio de um processo dinâmico de interação entre a criança e o adulto, que tem como terreno o fazer artístico, parece-me mais pertinente o conceito de arte com crianças. Sendo a infância o acontecimento que impede a repetição do mesmo mundo, recorro a Walter Kohan:

Há mundo novo, criação, transformação porque há infân-cia, porque é possível frutificar o acontecimento que leva consigo cada nascimento. A infância é o reino do “como se”, do “faz de conta”, do “e se as coisas fossem de outro modo...?”, a forma única e, a uma só vez, múltipla de todo acontecimento; é impedir que cada nascimento se acabe em si mesmo; é tornar múltipla, diversa, a novidade de todo nascimento; é estender o nascer à vida toda e não apenas ao acontecimento biológico do parto.(Kohan)

Dessa forma, a arte com crianças reconhece a premissa fun-damental ao fazer artístico relacionado às múltiplas possibi-lidades: da interação entre a criança e o adulto dois modos de ser e estar são colocados em fricção em função de novas leituras acerca do mundo. O filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962) nos apre-senta por meio de seus devaneios voltados à infância que há um princípio de vida profunda dentro do Homem que se aproxima dos modos de ser e estar da criança.A memória devaneada é aquela relatada e transformada pela imaginação daquele que hoje biologicamente é um adulto, mas que carrega consigo o menino que outrora foi/é. É como se o menino desse ao Homem a possibilidade de sonhar de olhos abertos, devanear sobre sua existência, tornando-se poeta sujeito e objeto de sua poesia. Assim, memória e ima-ginação conferem a vida seu constante caráter de novidade.

É como se sempre fôssemos estranhos dentro de nossos próprios e familiares mundos. Por meio do jogo entre memória e imaginação é feito o convite para que visitemos o menino que há no Homem. Nessa visita o Homem se desancora de referências conheci-das dotando sua existência de múltiplas possibilidades que não foram, mas poderiam ter sido. A memória da infância tem sempre a função de territorialização, localização num tempo espaço da história pessoal. Entretanto, uma memória devaneada, imaginada, desterritorializa nossas lembranças: uma criança coexiste conosco, numa zona de vizinhança, numa linha de desterritorialização que nos arrasta a ponto de identificarmos o estado de infância, mas de questionar-mos nossa própria infância. Segundo Bachelard quando o poeta está imerso em seu processo criativo, seus modos de ser e estar aproximam-se aos modos da criança. Por meio da análise de poemas iden-tificamos dizeres que revelam relações com o tempo e o es-paço descaracterizadas de suas referências convencionais, além de estado de onirismo, tom nonsense, predominância do sensível, imagens poéticas justapostas, jogos de palavras e lacunas. Ampliando a noção de Bachelard às demais lin-guagens artísticas, percebemos que o artista adulto quando imerso em seu processo criativo também mergulha por bra-çadas largas nos estados acima apresentados. A questão que surge, portanto, é: seria o fazer artístico ter-ritório marcadamente potencial ao encontro da criança com o adulto?O Programa de Iniciação Artística (PIÁ), da Secretaria Mu-nicipal de Cultura da Cidade de São Paulo, tem por objetivo iniciar artisticamente crianças e jovens nas linguagens do teatro, da dança, das artes visuais e da música. Logo, a inte-ração entre as linguagens artísticas entre adultos e crianças molda as estruturas do programa. O PIÁ revela-se enquanto espaço para a experimentação de possíveis respostas a essa questão.A equipe de arte educadores do PIÁ da Biblioteca Narbal Fontes, zona norte da cidade de São Paulo, decidiu, em julho de 2011 que o tema gerador do trabalho com as crianças seria Casa Tempo. Nossos sentidos, memórias e imaginações foram tomados pela arquitetura da casa, uma construção do século passado, com, entre outros atrativos, um sótão. Dessa forma, a proposta foi a de que estruturás-

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semos os processos criativos a serem desenvolvidos pela interação entre artistas educadores e crianças partindo dos estímulos que a casa pudesse nos proporcionar em termos de história (tempo) e arquitetura (espaço). O tempo dos devaneios de Bachelard nos remete a um tem-po não cronológico, desapegado da noção de tempo do re-lógio, talvez algo próximo do presente eterno característico da poesia. Já o espaço desses devaneios, é um espaço ja-mais localizado dentro da noção de geografia física, talvez um espaço não concreto, sem limites, colorido por cores e formado de matérias vindas de nossa própria memória e imaginação. O tema Casa Tempo, portanto, propõe exata-mente a exploração artística das dimensões do tempo e do espaço colocadas por Bachelard.No primeiro semestre do ano de 2012, uma nova edição do projeto se iniciou. Nós, artistas educadores da Biblioteca Narbal Fontes, refletimos sobre os percursos do semestre passado e tivemos a sensação de que a noção de tempo ficou esquecida ao longo dos processos anteriores. Elege-mos como tema gerador desse semestre o TEMPO em suas possibilidades de distanciamento do relógio. TEMPO e DESEJO em nossas percepções sensíveis do mundo são indissociáveis. Qual seria o TEMPO do DESEJO? Naquela época do ano (abril) as jabuticabeiras, amoreiras, ameixeiras, pitangueiras e goiabeiras do jardim da Biblio-teca Narbal Fontes estavam sem flores e sem frutos. Cada artista educador levou um punhado de diferentes frutas. Espalhadas pelos cantos da biblioteca, as crianças foram convidadas a encontrarem as frutas, uma a uma. Em luga-res inusitados, as frutas logo despertaram a curiosidade das crianças. Feito o trajeto de apresentação dos ambientes da biblioteca, partimos para o sótão. Para Bachelard (1993) o sótão é o lugar onde ocorreram as birras de infância, a contemplação, as leituras intermináveis, o disfarce com as roupas dos nos-sos avós e a descoberta de imensas velharias que se ligam para sempre à alma da criança. Explorando a proposição de Bachelard, propusemos às crianças, lá no sótão, a leitura de uma história chamada O Pai da Filha e a Filha do Pai, da escritora carioca Adriana Jorgge. Resumidamente, nessa narrativa Adriana nos conta a história de um pai e de uma filha separados por um imenso abismo. Ninguém sabe como nem porque o abismo se formou. Fica evidente o DESEJO do pai e da filha de se reencontrarem. Ao longo dos acontecimentos, pai e filha superam seus medos e pulam no abismo tendo em vista esse desejado encontro. Lá no fundo, superam suas distâncias e começam uma nova história. As crianças foram convidadas, então, a escreverem ou desenharem, ao sabor do pai e da filha, seus desejos em um pedaço de papel. Pela interatividade característica das crianças ficamos sabendo que algumas desejavam ser ricas, outras comprar uma mansão, mas também havia aquelas que desejavam namorar, que seus cachorros não morres-sem, além do desejo por serem pessoas melhores!

As frutas outrora encontradas mostraram-se férteis ao lugar de habitação de nossos desejos. As frutas, assim, tornaram--se metáfora do interior capaz de acolher os desejos profun-dos de cada um. Mas e as árvores do jardim, que desejos tinham? Desejavam terem frutas. Partimos para a decora-ção das árvores pendurando as frutas com nossos desejos. Na semana seguinte, as frutas revelaram que o tempo havia passado. Esse processo se agravou a cada semana que pas-sava. Todos os dias, antes da sessão de trabalho, visitávamos o jardim para observarmos as transformações das árvores. As frutas penduradas pareciam não ter mais o mesmo vigor. Certo dia, ao caminhar pelo jardim com uma turma de cinco a sete anos, perguntamos às crianças o que estava aconte-cendo com as frutas. Foi então que Cezar, de seis anos, nos respondeu: as frutas estão desamadurecendo. Oh quanto riso, quanta alegria! Sobre o desamadurecer nos apresenta o mesmo Bachelard:

Quando se está na idade de imaginar, não se sabe di--zer como e por que se imagina. Quando se pode dizer

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como se imagina, já não se imagina. Seria preciso então, desamadurecer. (Bachelard)

Enquanto adultos, a questão é simples. As frutas estão apo-drecendo. Entretanto, há um abismo imenso entre o apodre-cer e o desamadurecer. No centro desse abismo encontra-se a abordagem de outro tempo que não o cronológico. Como se fosse um tempo às avessas. Como pode algo desama-durecer? A abordagem convencional do tempo é clara: os seres nascem, crescem, amadurecem, apodrecem e morrem. Mas pela perspectiva do garoto Cezar, na contra mão desse tempo, há outro tempo, que anuncia não um fim, mas um presente eterno sempre a recomeçar. Como na poesia. A imagem do desamadurecimento trazida por Bachelard e apresentada pelo garoto Cezar por meio de seus modos e ser e estar revela a chave de relação entre o adulto e a criança: desamadurecido, o adulto encontra outras relações temporais e espaciais, responsáveis por jogos de palavras, imagens justapostas, onirismo e tom nonsense. Essas carac-

terísticas são típicas dos modos de ser e estar das crianças, mas são típicas também do fazer artístico em seus estados de criação e fruição. Falando em criação artística, e a arte dentro de tudo isso? Além da sensibilidade aguçada das crianças ao longo desse processo, identificamos que as transformações das frutas em suas características de cores, volumes, texturas, tama-nhos, cheiros, sabores, velocidades e movimentos de desa-madurecimento, dialogam com os suportes sensíveis à ex-pressão artística. Por onde um artista se expressa senão pela exploração de cores, volumes, texturas, tamanhos, cheiros, sabores, movimentos e velocidades de corpos? Sensibilizadas por esse trajeto inicial, prontas à emersão de seus próprios interesses e DESEJOS dentro do programa, as crianças deram aos seus artistas educadores pistas para a proposição de processos de trabalho. Assim, surge o processo integrado entre teatro e música de exploração do que é ritmo por meio de improvisos de mo-vimentos corporais e vocais, ao sabor do Rip Rop, com uma turma de adolescentes de onze a quatorze anos. Com crianças de cinco a sete anos, atuantes de uma ofi-cina de integração entre teatro e artes visuais, surge o interesse pelo improviso de narrativas construídas a partir de seres imaginários que habitam o sótão. Entre esses seres, as crianças nos apresentaram o Mago das Cores, a Sereia de Rabo Rosa e a Aranha Dorminhoca. Da integração en-tre esses personagens surgem narrativas treatralizadas que criam parênteses nos tempos existenciais dos atuantes do processo, como se o relógio parasse ao longo improviso. O Programa de Iniciação Artística elege como caminho de iniciação da criança nas artes a via do brincar. Torna-se fundamental que esse brincar entre crianças e adultos não seja vislumbrado pela perspectiva do brincar pelo brincar, muito menos na caracterização de um espaço de permis-sividade irrestrita, mas sim a partir da consolidação de um ambiente que se dê por visões de mundo das crianças reconhecidas e valorizadas. Em interstício às visões da crian-ça temos as visões do adulto educador, na chave dos deva-neios voltados à infância de Bachelard, ou seja, desamadure-cidas. O que margeia o brincar pela arte, dessa forma, são as necessidades expressivas e criativas identificadas pela rela-ção estabelecida entre a criança e o adulto educador. Ao sa-bor das ideais do filósofo francês Jacques Rancière (2010), o que nos chama a atenção nesse processo de interação é a capacidade de emancipação inerente ao contato com os conhecimentos que o outro apresenta sobre mundo, tenha esse outro a idade que tiver.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBACHELARD, Gaston. A Póetica do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.KOHAN, O. Walter. Infância, Estrangei ridade e Ignorância. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

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GEOGRAFiA sul

Solo de palavrasRepertório, forma e conteúdo (desde o gestual ao gosto musical)

Erry-g (Rogério Dias)

Vocacional Música

Solo de piano,Me toque um longo solo,Solo de piano,Tocado apenas pelas teclas pretas,Ao meio tom,Me toque este solo,Para que eu possa viajar,Ao solo de piano,Enquanto me expresso,Em mais este solo de palavras.

Por se tratar de um texto para uma publicação será que comecei bem? Bom, também não sei, mas vamos seguir, assim poderemos descobrir juntos...Para iniciar um texto deste tipo é válido pensar no leitor, principalmente naqueles que acham não compreender a música e as suas vertentes. É um tanto preocupante, e não pretendo tentar responder esta pergunta a você leitor, mas explicar-lhe que:− Sim você entende de música!− Você sabe definir um repertório, é simples constatar isso!

Basta você notar a receptividade e o relacionamento dos seus sentidos com a música quando encontra-se escutando uma determinada canção: você sente a batida e a energia pulsando em seu corpo, como uma transmissão de sinais. Seu coração sente cada batida do groove à melodia. Talvez não conheça os termos técnicos e as gírias usadas no uni-verso musical, mas percebe que em determinado momento precisa escutar algo que lhe dê mais adrenalina, que lhe dê paz espiritual, ou desejo. Não importa os sentimentos que estejam aguçados em ti, mas quando você escolha determi-nada música para escutar em determinado momento e são estes valores e sentidos que emergem.A música é algo universal e, mesmo antes de pensar em dinheiro, comércio, profissionalização, instrumentos, gra-vadoras, selos, entre outros elementos técnicos, a música já existia. Para constatar estas informações não precisamos fazer um doutorado em antropologia e mergulhar tão a fundo neste oceano, basta perceber que os indígenas, assim como os negros escravos se comunicavam e se comunicam até hoje com seus Deuses; se expressam a cada sentimen-to, seja a alegria da vida, a tristeza da morte, a perda ou o ganho, e na atividade dos seus rituais sempre tiveram como parceiro fiel a música. E foi a partir desta energia que as coisas se espalharam para o mundo.

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Você percebe uma boa música quando ela mexe com os seus valores e sentimentos. Basta pensar em um jantar romântico a luz de velas, em frente a uma lareira e ao lado de uma boa companhia, não se dispensa uma boa música romântica como prato principal, e, inclusive, de certa forma a música dá força para que as palavras e olhares saiam de sua zona tímida e bloqueada. O mesmo exemplo pode ser usado para um sábado iluminado, no fim da noite, junto a pessoas ama-das e próximas dispostas à esticar o dia em uma balada. O que se espera da seleção do DJ como música para a trilha sonora desta festa? Uma boa música que lhe faça dançar, curtir, dar risadas dos amigos sem ritmo, que, dancem sem pensar se estão no andamento certo ou não. A mesma teoria serve também para uma única pessoa emancipada em sua casa, em um fim de semana sem compromissos com ho-rários ou trânsitos em horário de pico: a proposta é relaxar na companhia da música; o repertório muda sem sombra de dúvida! A pegada é relaxar, interpretar o artista, cantar junto (mesmo que se erre a letra). O fato de estar desafinado é o que menos importa: você escolheu seu repertório, e o objetivo está sendo realizado. Portanto, mesmo sendo uma pessoa leiga no assunto, você tem oportunidades e condi-ções de fazer uma bela escolha de sua trilha sonora.

Solo de piano,Me toque um longo solo,Solo de piano,Tocado apenas pelas teclas pretas,Ao meio tom,Me toque este solo,Para que eu possa viajar,Ao solo de piano, Trilha sonora escolhida,Mesmo que eu venho substituir,Me toque este solo

Pensar em repertório para mim é como pensar na vida, nos contextos diversos que nos deparamos, por exemplo, neste exato momento me encontro no trânsito escrevendo o ras-cunho deste ensaio em um pedaço velho de papel.Aqui no Largo de Pinheiros está tudo parado por conta das obras, e fui obrigado a achar um desvio. Ao meu lado di-reito está um cara “por favor abaixa o som, para que eu possa escutar”, seguindo, ele há outro homem, em um Fiat Unosimples sem nada de luxo, escutando uma música cujo refrão é mais ou menos assim “balança a rede, balança, vem balançar...”. Ele dirige e espera para seguir o fluxo, está com um pan-deiro acompanhando a música que toca em seu rádio e pelo que escuto, ele domina aquilo que faz, deve ser músico e está perdido nesta babilônia da metrópole São Paulo. A música é algo com o estilo de cultura popular e o swing detecta isso, mas o que me chamou atenção foi a sua totali-dade. Está claro que se pudesse escolher, certamente estaria em outro lugar. Parece claro que a preferência seria fazendo música e tocando seu pandeiro, sem intervalos entre o seu

instrumento, o câmbio e o volante do carro, sem esquecer os pés manuseando a embreagem, freio e acelerador, trans-ferindo a reflexão ao piano, instrumento que não dispensa a coordenação motora ao tocar as suas teclas e o pedal, dando passagem ao som contínuo das notas tocadas, preen-chendo os intervalos entre uma e outra nota, pois é preciso decorar toda partitura e os seus detalhes dispensados na prática musical.

Por favor, aumente o solo novamente,Preciso escutar,Solo de piano,Continue tocando,Um longo solo,Solo de piano,Para voltar a viajar,Mas agora toque também as teclas brancas,As naturais,Me toque este solo,Para que eu posso viajar.

Considerando a indústria fonográfica que proporciona todo este modismo de músicas para o fácil mercado, que em sua maioria não se soma em nada, como pensar em repertório partindo dos vocacionados e também de suas realidades locais? O que cada um traz, a partir de seus desejos, pouca ou muita experiência? Podemos falar que estamos tratando de uma construção de repertório, gestual ou estilo próprio, e ao pensar no tema faz com que fiquemos presos somente no que cada um de nós traz, mas os gestos e características também nos ajudam a entender esta questão de repertório. A missão acaba sendo muito grande e árdua quando chega-mos nessa etapa do projeto: trabalhar com os vocacionados, entre seus gostos e estilos. Em uma boa parte das pessoas percebemos que seu repertório vem de um lugar particular ou de uma convivência cultural, até mesmo do universo no qual estes indivíduos se encontram. Partindo desta visão será que poderíamos propor e apresentar outras formas e estilos de se fazer música? Na maioria das vezes encontramos todas estas relações em uma zona de conforto que deve ser mantida, ou devemos quebrá-la, apresentando novas perspectivas e conteúdos artísticos? Fica mais uma reflexão para nos provocar em até que ponto estamos oferecendo ao outro algo que acredita-mos fielmente, e consequentemente acabamos por “forçar” um novo olhar para as suas sensibilidades. O tempo é o mestre, mas até que ponto esse tempo, a pressa e as bada-ladas do relógio nos prejudica, com a certeza que na hora que está ficando agradável é a hora de parar ou quando ainda não consegui concluir o raciocínio devo fechar pois o meu tempo se esgotou. Através dessa viagem de reflexões a sensibilidade poética acaba sendo prejudicada devido a es-cassez de tempo. A forma que vivemos a cada momento em nossas vidas as coisas precisam ter resultados ou impacto rápido, imediatos, pois estamos na era dos 140 caracteres, internet, televisão, redes sociais, e os repertórios partem

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dessas realidades. Nos cabe ter essa sacada para que haja a sintonia e a troca em seu coletivo, e nisso a sensibilidade é fundamental até mesmo para que possamos dar continui-dade, acreditando e realizando o fazer artístico com um olhar crítico e poético dentro dos trabalhos que realizamos.Penso se um coordenador de equipe pode se considerar um artista, e até que ponto se permite a isso. De que forma se nota que a sua intervenção artística está sendo influenciada em uma equipe ou em um resultado de trabalho. O momento da construção de um repertório é tão simples como a teoria nos diz. Isso tudo nos remete a perceber, sentir ou notar que será como em um coletivo de vocacionados, sem vícios do saber, do professor ao educador, do mestre ao ignorante, aquele que em algum momento de sua formação estudou Paulo Freire e todas as teorias e suas práticas pedagógicas, ou Mozart e Beethoven que traz concepções eruditas e con-servadoras, ou Pablo Picasso e Leonardo da Vinci com suas pinceladas carregadas de cores e histórias. Mas será que está tudo perdido se pensarmos no popular e tendo como refe--rência “que até no lixão nasce flor, mesmo que seja da ponte prá cá” de Racionais Mc’s, mesmo que “não existe amor em SP” de Criolo. Assim fica claro que o “rap é compromisso não é viagem” do grande Sabotagem, ainda seguindo este raciocínio e partindo deste compromisso, posso citar as re--presentatividades dos saraus espalhados por todas as peri- ferias desta metrópole, como a Cooperifa que nos diverte nas noites de quartas–feiras diretamente do extremo sul de São Paulo que com “povo lindo, povo inteligente”, o “sarau do Binho vive” com as segundas-feiras que mobilizam a quebrada do Campo Limpo e região. assim como Sarau da Brasa ou sarau Com Elas. Ainda quero pensar nos traços dos sprays e pinceis dos escritores de grafite como, Tota, Os Gêmeos, Emol e Bonga que semeiam beleza e expressões nas cores de seus paineis e ousadamente utilizam as ruas como galerias e muros como suas telas pra esparramar seus sentimentos, e sequer pedem licença para invadir nossos olhares ao percorrer pelas ruas e avenidas desta cidade.

O que todas estas citações têm a ver com a música ou com arte educação, ou com valores de um projeto? Pois bem, quando as destaco em meu texto, remeto a reflexão de que o criar artístico pede que eu conheça outras linguagens, pes-soas e coletivos, ou me tranca em um laboratório de forma que seja suficiente para eu criar algo com identidade. Todo artista em um determinado momento tem suas fases e uma delas é a do conflito interno. A era do momento é tratar tudo isso como contemporâneo. Infelizmente a impressão que tenho é que daqui a alguns anos não teremos mais a cultura de raízes e de resistência, as memórias, vivências e muito menos a cultura musical conjugada através das suas can-ções e letras, as ideologias casadas com as harmonias e os recortes de temas importantes e válidos para nossas vidas e valores. Parto do seguinte ponto que venho a concordar com o Prof. Jorge de Albuquerque Vieira “Devemos amar o que fazemos, e desta forma realizando com amor o mesmo será refletido em todas as nossas criações artísticas”. Sem poder continuar a viajar nesta estrada longa e divertida de-nominada arte, só me resta mais um pedido, portanto me façam mais um favor:

Me toque um solo,Me toque um longo solo,Solo de piano,Tocado apenas pelas teclas desejadas,Tom, semi tom, acordes,Ritmos ou Grooves,Em batidas ou melodias,Não importa! sinta-se livre,Me toque mais este solo,Para que eu possa parar, Ao solo de piano,Enquanto deixo de viajar,Em mais este solo de ensaio,Que vou terminar

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depoimentos de poéticas cotidianas em dança: Pequeno caos fragmentado e escavações

Cristina ÁvilaVocacional Dança

PRólOGO

Sábado, final de encontro. Carol, uma artista vocacionada, sugere trazer um vídeo de dança que ela tem.Combinamos computador e pen drive para a próxima se-mana, para que a turma assista junto às propostas de ambas. No encontro seguinte, em meio a muitos vídeos curtos, comentários, atenções e dispersões, chegamos ao solo da última cena de “A Sagração da Primavera”, versão de Pina Bausch. Fran: “Sabe, vendo esse vídeo eu fico pensando em uma coisa. Que não parece que a bailarina está seguindo a mú-sica. Parece que a música é que está seguindo a bailarina.”.Eu tive vontade de ficar em silêncio por muito tempo ao saber que o movimento, aos olhos dela, foi quem compôs a música gigante de Stravinsky.

PRimEiRA CEnA

Reconhecer uma turma é trabalho sem prazo definido. E sem regras, também. Quais corpos são estes que se encon-tram com o propósito de dançar, e vindos de contextos tão diversos quanto suas idades e seus pontos de vista sobre o que, afinal, significa dançar? Quando nos referimos à dança, a primeira imagem é o trabalho poético-físico. Inúmeras possibilidades podem compor essa expressão artística, mas é pelo corpo que ela se manifesta primordialmente. Que trabalho pode ser este quando os corpos são tão distintos?Qual, ou quais processos criativos surgirão deste encon-tro? O que estas pessoas podem querer dizer juntas? O não saber sobre a que ponto chegaremos - sempre provisório - desenha em todos um mergulho no desconhecido, desde o primeiro dia, e o risco permanente do estranhamento e frustração, também. Não foi diferente o contato com as turmas do CEU Alvarenga neste ano. Um equipamento que já abraça o Programa Vocacional há muito tempo, com histórico de parceria e aprofundamento nas relações, nas criações, nas composições de turmas e grupos de dança e teatro.

Particularmente, meu contato com este equipamento tam-bém já havia acontecido dentro e fora do projeto, mas nun-ca como artista orientador, de forma que estar lá, desta vez, era de fato um recomeço. E como acontece na maior parte das vezes, meu encontro deu-se com turmas absolutamente heterogêneas.Pequeno caos fragmentado. São retalhos do que há de ser estruturado. Ossos dos esqueletos por construir. Talvez eles tenham três braços, duas cabeças, uma costela, cinco per-nas. Talvez seja apenas um cotovelo. Quem sabe a escápula criando asas por baixo dos pés.O percurso-cidade é um tanto familiar. Assim como o por-tão, as cores, escadas, imagens. Mas o ângulo é dife-rente. Todo espaço se reconstrói a partir das ações. São papéis, funções, e, neste lugar, dessa forma, é a primeira vez.Tempo de reconhecimento. Artistorientar essas vontades ainda não definidas. Em princípio, estarmos, para fazer. Corpo que ganha nova matéria, cativar daqui pra lá, e de lá pra cá. Ronda nossos encontros a subjetividade em proces-so de compreensão. O que é isto, afinal?Rondam as possibilidades do corpo. Os sentidos destas possibilidades. Os sentidos das sensações e os sentidos da racionalidade. Como se encontram? Como escapar da lin-guagem de repetição de nós mesmos? E, como não temê-la, também?

? E

Permanecem as interrogações: técnica + criação + idades + vontades + escutar + escutar + escutar + escolher por onde ir. Divertir-se é um dos tons.Passar do movimento para o sentido. O que me lembra? O que sinto? O que parece? Como nomeio isso que nós fize-mos e que te deixou com tontura? E se você tentasse causar essa mesma sensação em quem assiste, então? Suane: “Eu entendo o que pode ser essa ideia, mas não sei como fazer para isso.”O como fazer é o lance. A gente experimenta. E o

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máximo que vai acontecer é encontrar ou não encontrar, imediatamente.

sEGundA CEnA

No percurso vocacional, permeado por muitos braços, instâncias e funções, destaco dois contextos dos quais estou mais aproximada: as orientações a cada turma, e as reuniões artístico-pedagógicas semanais. Embora ambas estejam em trânsito e fluxo permanente, e cria-se assim o sentido de sua existência, cada um desses espaços tem lá as suas particularidades – mas que se provo-quem esta é a potência. No encontro semanal com a equipe Sul 1, um dos primeiros materiais sugeridos pela coordenadora artístico pedagógica foi o texto “La Loba”, de Clarissa Pinkola Estés: de modo sintético, uma velha que vaga por espaços indefinidos. Por esses lugares, ela recolhe ossos, e monta-os em formato de esqueletos, que se encorpam até transformarem-se em lobos. Entoa uma canção que faz com que ganhem vida e corram, até transformarem-se em mulheres. Este material tornou-se uma pista do trabalho que seria desenvolvido em equipe: recolher os ossos / formar o esqueleto/ entoar o can-to / correr. Tais momentos foram escolhidos como subtemas para os territórios planejados ao longo do ano. São ações onde todos os vocacionados da equipe, artistas orientado-res, e coordenação, reúnem-se para. Assim mesmo, frase incompleta. Nesta equipe, os territórios (que já haviam se tornado ação importante desde o ano anterior) estão num momento fundamental de revisitação, para não tornarem-se esvaziados de sentido. Que esqueletos artísticos montam-se nestes encontros, de fato? E como podem os artistas voca-cionados começar a tomar as rédeas de sua estruturação?

tERCEiRA CEnA

Primeiro ou segundo sábado de encontro. Turma nova. Quase três horas de experimentações práticas. Mas, isso é dança? Quando se dança? Quando começa? E quando é cena? Em roda, a cada pergunta desdobrada de outra de arriscam as opiniões de quem concorda, diverge, silencia se ausenta. A vontade é a de criar um espaço acolhedor o sufi-ciente para receber este risco que parece ser a fala, muitas vezes tão guardada.Semana seguinte: E o que é coreografia, então? Alexandro: “É quando tem movimentos nos tempos, por exemplo, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8.” E só isso, e sempre assim? Silêncio. Do ou-tro lado da roda, Henrique: “É a arte de criar movimentos”. Em seguida, Fran: “Neste encontro a gente estava fazendo coreografia o tempo inteiro.”O que parecia ser uma síntese expande as possibilidades. Não haverá só uma conclusão - esta é a ideia.Tento armar as primeiras articulações. Um tanto de poesia,

fios de diversão, olhares de percepção.Disponibilidade para a troca e o encontro. Ainda é uma conquista. Ao longo das manhãs de sábado, a materialida-de revela-se líquida. Algo que não se mantém. As pessoas não se mantêm, toda experiência toca tão de leve no que se busca como coletivo, que mal é possível perceber seu rosto. No entanto, despontam individualidades que surpreendem; são imersões em percepções profundas. Reconhecer-se no próprio corpo, aí, mostra-se tarefa de passos que pisam uma gota por vez.

EntRECEnA

Ao longo destes anos no Programa Vocacional, muito já conversamos sobre pedagogia, e pedagogias. Eixos e ma-teriais norteadores, princípios, procedimentos, projeto ar-tístico, processo pedagógico, projeto pedagógico, infinitos processos artísticos. Pedagogia da escuta. Do encontro. Da afetividade. Da estética. Da percepção. Da técnica. Da fusão. Da sensibilidade. Pedagogia do cutucar: arte como descoberta e provocação. E o tamanho, dimensão, alcance que isso terá é tão imprevisto quanto seus desdobramentos.Dar sentido ao que se cria. Descobrir o corpo. Furar possibilidades. Vazar. São saltos, mergulhos e rastejamen-tos reais e metafóricos. Passos em todas as direções, muito lentos às vezes, em um campo que propicia rasteiras conti-nuamente, em todos os envolvidos: artistas orientadores e vocacionados.

quARtA CEnA

Ação em equipe. Territórios para colheita de ossos mistura-dos no tempo, no espaço, vindos de pontos diferentes, dessa cidade nada desértica. Jogo de misturar todo o mundo num caldeirão em movimento, recolher o que é essência, e re-criar um universo sensível. E a partir daí? O que queremos em torno dos grandes encontros-ações? E como aprofundar no corpo?

tERRitóRiOs

A turma da noite do CEU Alvarenga estrutura uma recep-ção com uma criação realizada na plateia, enquanto o públi-co assiste do palco. Parte previamente testada da pesquisa que a turma desenvolve nos encontros semanais, mas que por vontade deles deveria terminar com todos os presentes, de todos os equipamentos, envolvidos nesta ocupação do espaço, e em movimento.Bruno: Acho que na recepção do Territórios, quando a gen-te abriu o jogo para a plateia, teve gente que não foi ime-diatamente porque pensou: “aqui (palco-plateia) é o nosso espaço, e ali (plateia-palco) é o de vocês. Depois eles perceberam que poderiam se espalhar, e tinha

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gente em todo lugar. Vivido o espaço “ao contrário”, a equipe propôs um open space prático: os vocacionados sugerem procedimentos que experimentam nos equipamentos, para que eles próprios coordenem. As propostas, individuais ou em dupla, foram organizadas em grupos e em rodízio pelos diversos espaços do teatro. Essa ação detonou um estado intenso de concentração, par-ticipação e apropriação visíveis e extremamente potentes, inclusive duvidosas: esta prática neste espaço? Esta prática com esta música? Se não couber? Se algumas pessoas não conseguirem fazer deste jeito? E foram, eles mesmos, resol-vendo modos pelos quais poderiam recriar. Ou não, quando de fato isso não fosse possível, porque às vezes não tem como adaptar e a vontade é fazer conforme o planejado. Não ceder em alguns casos também precisa ser uma escolha legítima, artística, política. O esqueleto final foi a proposta de uma Jam que detonou encontros e cenas permeadas de percepção o tempo inteiro.Severino: “Quando ia começar aquela roda, me deu um nó na garganta, uma vontade de entrar”. Entrou, e dançou sozinho por um bom tempo, ao som da música. Este texto foi pronunciado por outro artista vocacionado ao microfo-ne, a uma média de 60 olhos atentos e visivelmente emocio-nados pela imagem cênica tão intensa produzida ali. Parecia condensar as experiências de todos, até ganhar uma par-ceira e transformar o centro da roda em cena de dança que era escuta pura. Era significação sem obviedade. Não sei se era tão consciente assim, mas era arte no maior sentido da palavra.

quintA CEnA

Pista de uma pedagogia que se desenvolve pelo processo artístico.De práticas simples de reconhecimento corporal, como alongamento, sucessão da coluna, ocupação do espaço, peso e contrapeso, surgem impressões da turma, nesse coletivo que abriga muita presença heterogênea. Por exemplo, uma prática em dupla deflagrou percepções sobre as diferenças entre experimentar com uma ou outra pessoa: olhar, peso, energia, temperatura. Estas diferenças percebidas desde cedo eram por si só contraditórias - ou não - com a har-monia presente nos momentos de criação. Tal característica detonou uma pesquisa ao mesmo tempo corporal, temáti-ca, estética: oposições no movimento (rápido/lento, alto/baixo, focado/difuso), no espaço (perto/longe, ocupado/vazio), nas emoções (tranquilidade/nervosismo, felicidade/tristeza, extroversão/introversão), nas ações (aproximar/separar, revelar/esconder). Um dia, outra oposição/inversão tornou-se clara: cena na plateia. Público no palco. Estava descoberta a pesquisa. Criar sentidos para a ocupação deste espaço funde-se com a fisicalidade trabalhada. Tornam-se uma coisa só. Certas procuras parecem revelar-se quase à mão. Durante as noites, o tempo passa como um susto, e já foi: deixa se-manalmente a vontade de expandi-lo, e muito. Basta olhar, soprar com um pouco mais de intensidade, e as descobertas revelam-se grandes, muito grandes. Grandezas em sentidos múltiplos: em pluralidade de formas. Em entendimentos de sentidos. Em emoção vista nas lágrimas de quem se assiste, e de quem faz. Na percepção de que a potência do próprio

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corpo e do corpo do outro são construtoras de significados sempre além. No encontro entre diferenças tão grandes, ainda em aceitação. As contradições e oposições já norteavam esta pesquisa e caracterizam a própria formação paradoxal da turma, tão heterogênea quanto harmônica. Do movimento para a temática e da temática para o movi-mento, a relação entre alto e baixo; - rápido e lento; intenso e suave; sofrer e sorrir; querer e não querer; foco e difuso; novo e velho, entre outras histórias, levavam a improvisos diários em busca de reconhecimentos. –Em um daqueles acidentes de mudança de espaço, quando uma sala está suja, e vamos ver se há outro espaço livre. Quem sabe no teatro, e sim, ele está disponível essa noite, e então vai ser ali o nosso encontro, e então ali começou a continuar. A ex-periência deste dia era um corpo-água x corpo-estruturado. Vieram outros nomes, de dentro para fora, depois do fazer: calmo e bruto / leve e pesado / derretido e tenso. Corpo com mente e corpo sem mente, e o que significa isso, afinal? E a oposição espacial: estes corpos escorrem pela plateia, a princípio como a chave que faltava para a recepção do Territórios - e que contagiou imediatamente as escolhas de continuidade da pesquisa da turma. Daqui por diante, então, o terreno de cadeiras vermelhas passa a ser escavado em busca de poéticas. A plateia torna-se palco, definitivamente.De frente para este espaço da plateia, preenchido de caminhos ainda vazio de corpos, lança-se a pergunta: que imagens têm ali? A lista é extensa e poderia não terminar: calabouço, labirinto, refúgio, cela, espera, mar, magia, con-fusão, fogo, surpresa, alegria, infinito, cores, pensamento, cabeças, falta, fragmento, perfeição, macabro, vazio, confi-namento, gente. Os corpos se lançam a este espaço a partir de metáforas diferentes: duplas, e é só ação - separar e/ou

aproximar. Criam-se tantas relações quanto aquelas que não estavam pré-estabelecidas. Quanto menos personagens, mais histórias. A ação diz: é verbo que conta tudo.Ou solos, experimentados a partir dessa visualidade pro-posta pelo espaço.Sentidos e formas começam a se fundir nas leituras de quem vê e de quem faz.As questões que se estabelecem daqui por diante são em torno daquilo que o corpo desenha neste espaço, o que o espaço e movimento tem a dizer, quais relações de com-posição são possíveis e quantos – e quais – baús se abrem nesse universo que se mostrou provocador.

EPÍlOGO

Este é um relato de encantos e desesperos. O Programa propõe um recomeço a cada novo encontro, porque seus objetivos são móveis ao mesmo tempo em que tem, nesta mobilidade, seu eixo fundamental e comum a todo projeto. Algo em torno de viés artístico, prazer, ética e sensibilidade. A partir daí, são muitos desdobramentos em busca de expe-rimentos e critérios descobertos em cada contexto.Escrevo sobre algum vir-a-ser, ao mesmo tempo que sobre o que já construímos em outros percursos. Eles também estão impressos neste como qualquer história passada está em seu presente. O que fomos-somos-seremos, no corpo. E tudo que o envolve, por dentro, por fora, ao redor, através.

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Terei eu a coragem de compartilhar meus rascunhos?

Luiz Claudio Cândido Vocacional Teatro

Terei eu a coragem de compartilhar meus rascunhos, ina-cabados, frágeis, inconclusos, cheios de brechas, lacunas, hiatos ou soçobrarei sobre o peso da escrita bem feita, eficaz e altiva, limpa e certeira? Eu quero correr o risco de uma escrita de múltiplas entradas, que compartilha as intensida-des do meu processo de mapear e (me) convidar/convocar ao movimento ininterrupto de reinvenção, de atribuição de sentidos não definitivos, absolutos, mas necessários e indissociáveis às singularidades de um tempo-espaço. Lançar-me-ei.

mOVimEntO 4: PREFÁCiO EntRE PARêntEsEs

A coordenação geral do Programa Vocacional/2012 lan-çou a todos os artistas orientadores e coordenadores que o compõe, uma provocação/desafio: a realização de ensaios individuais, bimestrais, que tivessem os contornos de um rascunho e cuja temática do primeiro fosse “mapeamento”. Sendo assim, durante as atividades de 2012 do Programa Vocacional, serão produzidos por cada um, quatro ensaios/rascunhos.

Este presente ensaio é meu mapeamento inicial, o primeiro. O processo de criação dele foi constituído por três movi-mentos, que se relacionavam e atribuíam um ao outro um sentido temporário, transitório, e que foram fundamentais na sua consolidação formal e de conteúdo. Além dos três movimentos iniciais, teve outro, este quarto, que foi acres-cido, a posteriori, e é consequência de uma revisitação for-temente desencadeada pelo email abaixo:“Caro Luiz: Para ser aprovado para publicação na revis-ta Vocare 2012, seu texto deverá ser reescrito segundo as orientações do nosso parecer. O prazo de reescrita é de dez dias (até 25 de agosto), para então ser avaliado em parecer final. Selecionamos o seu primeiro ensaio para a publicação. Acreditamos que seu texto deve ser sintetizado em quatro a cinco páginas (limite da revista). Sugerimos que você con-textualize brevemente - para um leitor que não conhece o Programa - quem faz parte da sua equipe, onde e quando vocês trabalham juntos, qual a sua função no Programa, enfim, alguns dados que possam orientar um leitor externo e que emoldurem brevemente a pesquisa apresentada no texto. Muito obrigado. Comissão da publicação da Revista Vocare”.

GEOGRAFiA lEstE

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Eis minha tentativa de atender os pareceres da comis-são da publicação ou de realizar um Mapeamento/ contextualização inicial aos leitores: Sou coordenador da Equipe Leste 3/Vocacional Teatro. Esta equipe é composta por mim, na função de coordenador artístico-pedagógico, e por cinco artistas-orientadores responsáveis pela instau-ração de processos criativos emancipatórios às turmas e grupos formados nos seguintes Equipamentos culturais: Casa de Cultura Raul Seixas, CEU Água Azul, CEU Inácio Monteiro, CEU Jambeiro e CEU Lajeado. Semanalmente, juntos refletimos as práticas artístico-pedagógicas a par-tir das orientações em andamento, tendo como suporte o Material Norteador, em nossas reuniões de pesquisa-ação. São nelas que buscamos traçar estratégias, planejamentos, contaminações recíprocas na tentativa de instauração de processos criativos que sejam emancipatórios. Mapeado por quem eu sou dentro do Programa Vocacional, aproveitarei a revisitação ao primeiro ensaio para compar-tilhar com todos uma breve citação de um filósofo ensaísta, Vilém Flusser, que no momento dos primeiros movimentos deste ensaio, não estava dialogando comigo. Suas palavras conseguiram ampliar a percepção que eu tinha do meu en-saio e, ao mesmo tempo, tornaram-se quase um espelha-mento de meus pensamentos: ”O ensaio não é a articulação de um pensamento apenas, mas de um pensamento como ponta de lança de uma existência empenhada”. O ensaio vibra com a tensão daquela luta entre pensamen-to e vida, e entre vida e morte que Unamuno chamava de agonia. Por isso, o ensaio não resolve como o faz tratado, o seu assunto. Não explica o seu assunto, e neste sentido não informa aos seus leitores. Pelo contrário, transforma o seu assunto em enigma. Implica-se no assunto, e implica nele seus leitores. Este é o seu atrativo ”. Atualmente, é esse o sentido que atribuo aos ensaios escritos por mim – e a este, portanto.Deixarei este quarto movimento entre parênteses. Ele deve ser lido como um prefácio soprado, como uma breve gene-alogia, como um aparte, um cochicho, uma rubrica.

mOVimEntO 3: PistAs, VEstÍGiOs, mAtERiAliZAçõEs

O terceiro movimento do primeiro ensaio tinha como uma de suas características restringir-se ao compartilhamento somente com os demais artistas da Equipe do Programa Vocacional, edição 2012. Este movimento surgiu como desdobramento dos movimentos anteriores - que foram de-vorados por ele e, com este ato de comilança antropofágica, assumiu esta forma-corpo-palavra-imagem. Os movimen-tos deglutidos, o primeiro e o segundo, seguem abaixo e deixam pistas, vestígios do caminho percorrido entre eles até a materialização do terceiro. A partir do momento que se materializou o terceiro movimento forma-corpo-palavra--imagem o primeiro passou a assumir os contornos de um disparo inicial, de um resumo/abstract, de uma primeira tentativa de materialização de uma pulsão, de um prólogo

que contrariando a lógica racional, não ocupa no texto seu topos habitual e surge no meio, entre o movimento 3 e o 2. Já o segundo, que durante um período seria a única parte a vir a público, sendo compartilhada e, portanto, degustada por todos, deixou de lado essa hierarquia excludente, que aprisionava o primeiro movimento na solidão dos escritos que ficam na gaveta/desktop. Apesar da perda da sobera-nia, ele assumiu para si, as feições da parte mais polpuda do ensaio. Então, esse ensaio, - contrariando a ordem das sequências numéricas 1, 2 e 3, sendo 1 começo, 2 meio e 3 fim - apresenta outra lógica que seria 3, 1 e 2 e lê-se assim: 3 que se desdobrou de 1 e 2 e lhes atribuiu um novo sentido a partir da relação entre eles; 1 que se desdobrou de 3, embora, paradoxalmente, possa ser considerado o ponto inicial de toda reflexão do ensaio e aquele que ocasionou o desdobramento de 2; 2 aquele que desdobrou de 1 (e logo em seguida o soterrou) e fomentou o desdobramento de 3. Graficamente não teríamos uma ordem linear de 1 para 2 e de 2 para 3, numa reta evolutiva e progressiva.

1 > 2 > 3 > ∞,

Mas, de desdobramentos – para isso usarei a imagem de 3 massinhas de modelar, uma de cada cor. No primeiro mo-vimento eu pego uma massinha da cor amarela e faço uma bolinha; no segundo movimento eu pego uma massinha cor azul e misturo na bolinha amarela. Desta junção surgem na bolinha passagens amarelas outras azuis, em outras uma mistura entre amarelo e azul, já em outras surgem na cor verde (com inúmeras tonalidades). Esta bolinha fica rodan-do nas mãos várias vezes, então tem uma singularidade bem grande de cores e tonalidades. No movimento 3 eu pego a massinha vermelha e misturo na bolinha. Agora temos passagens amarelas, outras azuis, outras vermelhas, ou-tras da junção entre amarelo e azul, outras entre amarelo e vermelho e azul e vermelho. Surgem as cores laranja e roxo e uma infinidade de tonalidades destas (e há também outras cores que não sabemos dizer o nome).

mOVimEntO 1: POntO dE PARtidA

Pretendo abordar no meu ensaio:1) Os fluxos de deslocamentos invisíveis de artistas voca-cionados pelos Equipamentos da Leste 3;2) O imaginário dos artistas vocacionados da região leste 3 e a sua concretização cênica: a fragmentação “excessiva”, os temas urbanos e a mistura de referências (aqui dialogarei com a obra pós-produção, como a arte reprograma o mundo contemporâneo, de Nicolas Bourriaud).Há outra questão que pretendo abordar, caso fique mais clara para mim, a saber: a percepção das regras do jogo propostas pelos artistas vocacionados em suas criações. Durante um jogo de improvisação os artistas vocacionados abandonavam as propostas lançadas pelos seus parceiros de cena, num ritmo bastante acelerado. Aparentemente, este

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abandono parecia ‘desconhecimento das regras do jogo de improvisação, não aceitação/desenvolvimento da proposta do outro, etc. Porém, no momento da apreciação, uma artis-ta vocacionada lançou outro olhar sobre este fenômeno ao dizer que este ”abandono veloz” era uma estratégia/escolha de jogo com o intuito de surpreender o público consstan-temente e, assim, capturar sua atenção. Vieram-me os se-guintes questionamentos, dentre outros: Abandono meus conhecimentos sobre improvisação e percebo que, talvez, novas regras estejam surgindo? E se estas novas regras só forem consequências de uma produção de subjetividade ca-pitalística? O que há de potente neste jogo de improviso, no qual o abandono é uma regra?”

mOVimEntO 2

Quais sentidos atribuímos ao mapeamento? Quais as rela-ções que podemos estabelecer entre ele e a nossa prática artistico-pedadógica? Como fazer com que este material não sucumba às necessidades meramente burocráticas de levantamento de dados? Como fazer com que nosso corpo se potencialize que seja nele atiçado o fogo da sensibili-dade e da inteligência, a partir do seu encontro com o ma-peamento? A partir destes questionamentos iniciais, dentre outros, lancei-me na aventura de tecer alguma escritura so-bre esta temática: mapeamento. Neste primeiro mês de atividades do Programa Vocacional, o mapeamento surge para mim como uma possibilidade de unir duas instâncias que, em geral, são postas separadas e que guardam, muitas vezes, um olhar estereotipado em am-bas e na relação entre ambas: inteligência e sensibilidade. Proponho que para fazer um levantamento tenhamos que esquecer um paradigma Descartes (e sua ladainha inter-minável “penso, logo existo”) e reinventar o nosso olhar, torna-lo um olhar de estrategista atento, de artista que faz uso de uma inteligência sensível ou/e de uma sensibilida-de inteligente (será que teríamos um “Penso, sinto, logo existo”, como propõe Antônio Damásio?).Agenciarei esta passagem com um texto de Rubem Alves, A complicada arte de ver. Neste, o autor traça uma dife-rença nas maneiras como vemos o mundo: “A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os

olhos estão na caixa de ferramentas eles são apenas ferra-mentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas – e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas quando os olhos estão na caixa dos brinquedos eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que veem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo. Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adul-tos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos são os olhos das crianças”. Mapear não com o intuito de fixar, de nomear, de ”trazer a luz”, tirar da clandestinidade, mas de enxergar os fluxos, os movimentos, os deslocamentos presentes em um tempo--espaço singular. Não se trata de mapear para nomear e paralisar/domar o movimento, ordená-lo e torná-lo domes-ticado, disciplinado, sob controle. Quero mapear para ver a potência das fugas, dos desvios, daquilo que nos esca-pa. O que nos escapa? Mapear fluxos de potencialidades presentes nos burburinhos, conversas paralelas, inauditas, inalcançáveis, desobedientes.

hEtEROGEnEidAdE

Em geral, percebi que os coletivos sob a orientação do Pro-grama Vocacional na Leste 3/Vocacional Teatro têm como traço constitutivo a heterogeneidade. São inúmeros desejos que se encontram no mesmo espaço de orientação. Os ar-tistas vocacionados estão ali presentes por múltiplas moti-vações: encontrar com amigos, ampliar o convívio social, iniciar-se nas artes cênicas, perder a timidez, etc. Alguns nem sabem ao certo porque ali estão. Entretanto, esta falta de consciência do por que objetivo e preciso não os impede de ali estar e se disponibilizarem as experiências de criação de cada encontro. Este sentido, não mais absoluto, mas em trânsito, vai sendo tracejado ao longo do encontro. Esta heterogeneidade poderia tornar-se um inibidor das poten-cialidades inventivas ou de agregação, porém, numa espécie de Babel contemporânea reinventada, o que pude observar é que se instaura uma coletividade que consegue encontrar um modo de organização e produção, que gera-se nas diferenças e que tece acordos temporários e flexíveis, acordos líquidos.

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mEiOs E mOdOs dE PROduçãO

Em cada coletivo encontrei meios e modos de produção singulares que atendiam as necessidades expressivas dos artistas vocacionados. Não havia um modo de produção universal. Entretanto, havia uma tensão entre a singularida-de dos coletivos e os procedimentos “universais” adotados nos encontros. Por um lado, temos os artistas vocacionados num fluxo intenso de disponibilidade inventivo-criativa. Por outro, há uma tentativa dos artistas orientadores, de canalizar esta intensidade com procedimentos universais, que nem sempre conseguem abarcar a pulsão criativa dos artistas vocacionados. Nestes casos, no qual o caos criativo não consegue se materializar em uma forma cênico-artísti-ca, o artista orientador acaba por assumir para si a função de conter os artistas vocacionados e/ou manter a ordem do encontro.Pergunto-me: diante dos corpos dos artistas vocacionados em um processo criativo, há como o artista orientador se manter em outro estado, se não o criativo?

dEslOCAmEntOs

Há um deslocamento dos artistas vocacionados pelos Equipamentos da Leste 3. Eles frequentam os coletivos, e se infiltram nos encontros de outros Equipamentos. Esta “visita” não é anunciada, os artistas vocacionados não se colocam como estrangeiros em terras desconhecidas, mas como recém-chegados, participantes “comuns” e assim vivenciam outro modo de produção, singular, daquele co-letivo. Ao retornarem ao coletivo de origem, ali, quase im-perceptivelmente, por meio de pequenas frases/falas soltas entre outras, escapam os relatos dos artistas vocacionados sobre a experiência do encontro com o outro, e instaura-se um processo de alteridade: lançam-se olhares sobre as dife--renças que constituem cada coletivo, os meios e os modos de produção. O encontro com o outro vai para além dos limites da valoração – se isso não acontecesse poderíamos cair na tentação de transformar a singularidade em xenofo-bia, ortodoxia? O encontro com o outro não impede o artista vocacionado de ter um olhar distanciado sobre a experiência vivida no coletivo visitado e fomenta um novo olhar sobre o seu coletivo. Não são poucos os casos de deslocamentos não anunciados de artistas vocacionados do CEU Lajeado para o CEU Jambeiro, do CEU Inácio Monteiro para o CEU Água Azul, por exemplo. Estes deslocamentos escapam dos contornos das ações processos, que tem como finalidade a troca de processos criativos entre os coletivos orientados. Eles se dão na esfera do micro, da (quase) invisibilidade, e não do macro, da visibilidade.Estes deslocamentos ”invisíveis” provocam a formação de uma rede, uma troca entre os artistas vocacionados que se mantém inacessível e desconhecida pelos AOs, muitas vezes.

As mAtERiAlidAdEs dOs ARtistAs VOCACiOnAdOs

A originalidade não ocupa papel de destaque nas criações realizadas pelos artistas vocacionados da região Leste 3/Vocacional Teatro. Ao contrário, as referências, oriundas das mais diversas fontes são mixadas no momento da ela-boração e apresentação dos materiais. Embora possa haver uma predileção inicial pelas referências que circulam nas grandes mídias, ao serem estas postas em diálogo com ou--tras referências, elas deixam de gozar de um teor hierár-quico e passam a funcionar como possíveis estímulos criati-vos. Assim, temos nas materialidades algumas mixagens de referências, às vezes tidas como não usuais, por exemplo, a música do grupo de heavy metal Iron Maiden e o texto da escritora Martha Medeiros, além de imagens das esculturas de Rodin e anime japonês.

tOlOs quEstiOnAmEntOs

Fico me perguntando: será que a grande dificuldade que enfrentamos nas orientações não seria o fato de nos depa-rarmos com formas estéticas, geradas pelos artistas voca-cionados, que não têm a menor preocupação em se tornar um produto a ser consumido? Explico-me: como artistas profissionais que somos, vivemos as tensões entre arte e consumo e estas interferem em nossas experimentações estéticas que sofrem forte pressão dos modismos estéticos, das formas e modos de produção legitimados pelo campo artístico, etc. Será que há em nós disponibilidade para uma experiência de não reprodução destes modelos engendrados pelo campo artístico? Será que conseguimos suportar a ex-periência de meios e modos de produção e formas estéticas que não atendam, por ventura, as regras do mercado (seja do teatro do mainstream ou do teatro de pesquisa) ou do perfil dos editais de fomento ao teatro?

Fico me perguntando: Embora utilizemos os nomes artista orientador e artista vocacionado, será que não estabelecemos uma relação valorativa e hierárquica entre estes dois artistas? Será que olhamos os artistas voca-cionados como artistas? Será que olhamos suas mate-rialidades como incompletas, não potentes, inferiores, tendo como parâmetro desta escala valorativa as obras do teatro profissional dos artistas da classe teatral? O que é que entendemos por artista?

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAFLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 96.

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Mapeamento e ensaioLuciano GentileVocacional Teatro

quERênCiA

O que se pretende aqui é apenas apontar para uma possível relação entre duas ideias: MAPEAMENTO e ENSAIO. Para tanto, serão descritas algumas cenas do início do filme Tokyo Ga, do diretor alemão Wim Wenders, especificamen-te imagens dos primeiros trinta e cinco minutos. Esse filme é uma espécie de “investigação artística da obra do cineasta japonês Yasujirô Ozu (1903 – 1963)”, segundo o crítico Marcos Strecker. A escolha desse material cinematográfico para este rascunho foi devida à possibilidade que esse tra-balho artístico ofereceu para se observar a interação entre as duas ideias citadas; ou melhor, a relação de retroalimen-tação entre ambas.

POssÍVEis dEFiniçõEs

Para iniciarmos, e justamente atentarmos para uma possível relação de interação, ou de retroalimentação, entre mapea-mento e ensaio fazem-se necessárias algumas definições; correndo sempre o risco de reduzir a amplitude que essas ideias abarcam em outros contextos.Segundo o Moderno Dicionário da Língua Portuguesa Michaelis, o verbo mapear pode ser definido como o “ato de relacionar ou de ligar um conjunto de dados a outro”. O interessante dessa definição é que ela abre uma perspectiva para a palavra mapeamento que vai muito além da mera catalogação de dados. Ela estimula uma atitude de justapor e/ou aglutinar conjuntos de dados. O que por certo ponto de vista pode significar promover o encontro entre dois ou mais conjuntos de dados, entre duas ou mais realidades dadas. Nesse sentido, é esse o aspecto que nos interessa: o mapeamento como encontro.

imAGEns dE tóquiO i: O EnCOntRO AltERA A PERCEPçãO / O mAPEAmEntO AltERA O EnsAiO

O filme Tóquio Ga foi lançado em 1985, embora Wim Wenders tenha captado as imagens que compuseram o filme em uma viagem que fez ao Japão em 1983, dois anos antes. Essa viagem, esse encontro com Tóquio, aconteceu durante as gravações de Paris, Texas (1984), filme este que projetou mundialmente o diretor alemão. Alguns críticos de cinema dizem que Wenders expôs sua poética em Tóquio Ga. Para

este rascunho, mais importante que a exposição de uma po-ética acabada é considerarmos nesse filme os encontros e as percepções em constante diálogo, em constante construção de uma possível poética.Tóquio Ga é uma sequência de imagens da capital japonesa, com narração do próprio diretor. A palavra Ga, em japonês, significa imagem. Apesar de o título em português ter saído como “Viagem a Tóquio”, uma melhor tradução seria “Ima-gens de Tóquio”.Se levarmos em consideração que as imagens foram feitas dois anos antes da narração, é possível dizer que a maneira como o filme Tokyo Ga foi feito acaba por ser um proce-dimento artístico-pedagógico. Conta-nos Win Wenders que esteve em Tóquio na primavera de 1983 com uma câmera. Naquele momento captou imagens: ele não se lembra de nada e completa que agora essas imagens são suas me-mórias. Ele reencontra as imagens registradas, assim, a narração é um encontro que altera sua percepção sobre o que deve ter acontecido. Primeiro filmou a cidade, depois assistiu sua filmagem e, por último, narrou.“Eu não tenho memória de nada, simplesmente não me lembro mais. Eu sei que estive em Tóquio, sei que foi na primavera de 1983. Eu sei. Eu estava com a câmera e fiz imagens. Essas imagens agora existem e se tornaram a minha memória. (...) Tóquio foi como um sonho. E, hoje, minhas próprias imagens parecem ter sido inventadas, como quando, após muito tempo, você encontra um pedaço de pa-pel no qual você transcreveu um sonho na primeira hora da manhã. Você lê com assombro e não reconhece nada como se tivesse sido o sonho de outra pessoa”. Temos aqui dois encontros e duas percepções distintas. Uma de quem foi a Tóquio e registrou imagens áudio visuais, e outra de quem vê o próprio registro algum tempo depois e discerne sobre sua experiência naquela cidade; transformando esse discernimento em uma experiência do ato de narrar. Nesse sentido, essa experiência é um proce-dimento artístico-pedagógico. As perguntas possíveis são: qual era a percepção sobre a cidade de Tóquio quando se esteve lá pessoalmente? Qual é a percepção da cidade de Tóquio quando se vê as imagens que você mesmo filmou? O que é encontrar a mesma cidade por dois percursos com-pletamente distintos? Os encontros alteraram a percepção primeira.

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Japão: um garoto no metrô. Para o próximo encontro, é preciso mergulhar no filme, no momento em que Wenders esteve próximo a um garotinho no metrô que não mais que-ria permanecer em pé. A mãe do menino insiste para que ambos continuem a andar, mas a criança se entrega ao chão. Nesse momento, a narração do diretor não mais estranha as imagens e relata sua percepção no ato daquele encontro ao vivo. A lembrança é nítida e ouvimos de Wenders o que lhe moveu para aquela viagem, sua inquietação. Parece que quando o mote está claro a fronteira entre mapear e ensaiar se dilui, apontando dessa forma uma nova possibilidade de interação entre mapeamento e ensaio.“Foi só ao ver um garotinho no metrô, um menino que sim-plesmente não queria mais andar, que eu percebi porque minhas imagens de Tóquio pareciam as de um sonâmbulo. Nenhuma outra cidade, junto com seu povo me parecia tão familiar e tão intima muito antes de eu conseguir visitá-la graças aos filmes de Ozu. Eu queria redescobrir essa fa-miliaridade e era essa intimidade que minhas imagens de Tóquio buscavam. Nesse garotinho do metrô eu reconheci muito das crianças rebeldes dos filmes de Ozu. Ou talvez eu apenas quisesse reconhecer. Talvez eu estivesse procurando algo que não existia mais.”O tempo para esse garotinho é dilatado. A inquietação que moveu a ida a Tóquio pode ser verbalizada por causa da-quele encontro. Mais difícil é mapear o que nos percorre a pele, o que nos faz ir a campo. E fora, com o olhar para fora, quão trabalhoso é ser poroso para reconhecer e verbalizar o que já estava contido em todos nossos gestos. O encontro/mapeamento pode ajudar a verbalizar o mote de um movi-mento, pode viabilizar as percepções sobre si mesmo, como se você fosse testemunha de si mesmo. E, nessa condição, afinal olhasse sua fragilidade como apenas uma etapa de um aprendizado sobre si mesmo.“Se em nosso século ainda houvesse coisas sagradas, se houvesse algo como um tesouro sagrado do cinema, então, para mim, ele seria o trabalho do diretor japonês Yasujiro Ozu (...)De qualquer forma, o trabalho de Ozu não precisa dos meus elogios e tal tesouro sagrado do cinema só poderia existir no domínio da imaginação. Assim, a minha viagem a Tóquio não foi uma peregrinação. Eu tinha a curiosidade de saber se ainda encontraria algo daquela época, se havia restado algo de seu trabalho, imagens, talvez, ou até mesmo pessoas. Ou, se tantas coisas haviam mudado em Tóquio em 20 anos desde a morte de Ozu que não haveria nada a encontrar”.

Wim WEndERs FAlA sObRE A FunçãO E O PROPósitO dO CinEmA:

“... apresentar uma imagem do homem do nosso século, uma imagem conveniente, verdadeira e válida na qual ele não só se reconheça, mas na qual, acima de tudo, ele possa

aprender sobre si mesmo”.Os encontros alteram diferentes camadas de percepção.

imAGEns dE tóquiO ii: A PERCEPçãO AltERA O EnCOntRO / O EnsAiO AltERA O mAPEAmEntO

No caminho para o Japão, dentro do avião, o narrador fala que um filme é exibido, ao que parece algum blockbuster. Ele comenta que pensa em não assistir, mas como sempre faz, acaba por assisti-lo. Diz que as imagens são falsas e necessitam nos falar sobre algo. Ele percebe a constante necessidade em nosso sistema de produção de sermos obri-gados a nos posicionar frente a tudo, não para nos com-preendermos como seres humanos, mas para provarmos o que somos e o que pensamos. Daí talvez venha a constante prática de fazer da arte um veiculo de transmissão, como se o teatro fosse um celular que passasse mensagens, por exemplo. Essa é uma percepção sobre um modo de vida.

AindA dEntRO dO AViãO, O nARRAdOR Vê A jAnElA

“Senti prazer em apenas olhar pela janela. Se fosse possível filmar assim, pensei... como quando você abre os olhos às vezes para apenas observar sem querer provar nada”.A percepção sobre algo alterou o encontro. O que era ape-nas uma janela se transformou em uma imagem potente que dá materialidade a um raciocínio. As perguntas possíveis são: quando minha percepção sobre algo ganha dimensão estética ou se transforma em uma experiência estética? E novamente, quanto se dilui o que é encontro e o que é per-cepção? O que é mapeamento e o que é ensaio? Não por acaso, as cenas seguintes são de uma câmera parada.O tempo nas casas de Pachinko. Já em solo japonês, Wenders visita casas de Pachinko. Essas casas foram cria-das após a guerra, no momento em que o Japão precisava esquecer algo. Nessas casas, há máquinas com bolinhas de metal que descem constantemente entre pinos, e você permanece ali olhando, apertando alguns botões para dire-cionar algumas dessas bolas. Ao final, trocam-se as bolas adquiridas por brindes em geral. É uma casa de jogos de azar, como muitas espalhadas pelo mundo. É isso que se percebe naquele espaço. Mas, nova-mente, como na janela do avião, o que se percebe como um jogo de azar redimensiona o encontro com aquelas máquinas. Agora o encontro com aquelas máquinas são as tentativas de esquecer horrores de uma guerra.

“... a máquina faz o tempo passar...”

Em seguida, a câmera do diretor permanece filmando as bolinhas de metal, em silêncio.Depois, o silêncio é quebrado dentro de um táxi que tem uma televisão ligada para os passageiros, de volta ao hotel

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em que está hospedado. Na televisão, a publicidade japone-sa está em uma profusão de imagens.“Quanto mais a realidade de Tóquio me parecesse uma tor-rente de imagens impessoais, cruéis, ameaçadoras e sim, quase desumanas, mais poderosas se tornavam, em minha mente, as imagens do mundo amoroso e ordenado da cidade mítica de Tóquio, que eu conhecia dos filmes de Yasujiro Ozu. Talvez isso fosse o que não existia mais, uma visão que ainda alcançava a ordem num mundo sem ordem. Uma visão que ainda mostrava o mundo transparente. Talvez tal visão não seja mais possível hoje. Nem mesmo se Ozu ain-da estivesse vivo. Talvez a frenética crescente inflação de imagens já tenha destruído demais, talvez imagens em har-monia com o mundo já estejam perdidas para sempre. (...) Onde eu estou agora é o centro do mundo. Todo aparelho de TV é o centro do mundo”.Quase imperceptivelmente, sem tirar o foco da câmera para a tela da tevê, já não mais se está dentro do taxi, mas sim dentro do quarto de hotel, com a tevê ligada. Perceber a televisão como o centro do mundo tira a necessidade de um encontro com uma tevê específica. A partir dessa percepção o encontro pode ser com qualquer televisão.

PARA Além dO túmulO dE OZu, PARA Além dO mu: EstÍmulO PARA PRóximAs inVEstiGAçõEs

A relação de retroalimentação entre mapeamento e ensaio, tendo em vista as opções por assumi-las como, respectiva-mente, encontro e percepção, mostrou-se limitada. O que se conclui parcialmente é que essas duas ideias coexistem em um ato: perceber é um encontro com algo, assim como encontrar é uma percepção.Em determinado momento de Tokyo Ga, Wenders encontra--se em frente ao túmulo onde está enterrado Ozu. É um en-contro, mas também uma percepção. Na lápide do túmulo do diretor japonês não há nada escrito, apenas o ideograma MU. Tal ideograma significa vazio, nada.“Eu pensei sobre o símbolo ao voltar no trem. O nada. Quando criança, eu sempre tentava imaginar o nada. A ideia me enchia de medo. NADA simplesmente não pode existir, eu pensava... apenas o que é verdade pode existir: a realidade.A realidade. Pouquíssimas ideias são mais vazias e inúteis quando aplicadas ao cinema. Cada um sabe, sozinho, o que significa a percepção da realidade. Cada pessoa vê a sua realidade com seus próprios olhos. Ela vê os outros e, acima de tudo, as pessoas que ama... ela vê os objetos que a cer-cam... vê as cidades e os campos onde mora... mas também vê a morte... a mortalidade do homem e a transitoriedade dos objetos. Ela vê e experimenta o amor, a solidão, a feli-cidade, a tristeza, o medo.Em resumo, cada pessoa vê sozinha a vida, e cada pessoa sabe por si só o grande abismo que existe entre as experiên-cias pessoais e a representação dessas experiências na tela.

Nós aprendemos a aceitar que a grande distância separando o cinema da vida é tão perfeitamente natural que ficamos assombrados quando subitamente descobrimos algo verda-deiro ou real num filme. (...) onde pessoas ou objetos se mostram como realmente são.”Essa narração acontece enquanto vemos imagens de dentro de um trem: o diretor alemão está dentro de um trem, em trânsito. O mesmo trânsito entre mapear e ensaiar. O filme depois do MU será outro.

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instaurando processos - instaurando conflitosRogerio da ColVocacional Dança

No primeiro contato que tive com as turmas do Vocacional Dança 2012 no CEU Azul da Cor do Mar, durante um jogo de apresentação procurei saber dos Vocacionados qual a ex-periência de dança que eles tinham. Se já haviam feito algu-ma oficina de dança, se costumavam sair para dançar, onde dançavam, e quais estilos de dança. As referências tiveram um ponto em comum e muitas responderam: Quando eu era jovem dancei muito, mas agora só estou dançando na cozi-nha. Achei engraçado e triste ao mesmo tempo. Seria Cômico se não fosse trágico: Um apaixonado pode cair no cômico tão bem como no trágico, porque, em ambos os casos, está nas mãos do gênio da espécie, que o domina ao ponto de o arrancar de si próprio; os seus atos não estão em proporção com o seu caráter (Schopenhauer-Dores do Mundo). Algumas responderam que dançam nas festas da família, outras nem nas festas de família. Poucas foram em alguma balada, isto é, sair especialmente para dançar. Então resolvi escrever o meu ensaio mapeando: Que espaço a dança tem na minha vida?Quando eu danço, onde eu danço, como eu danço, com quem eu danço, que tipo de música eu danço, porque eu danço, que espaço a dança tem na minha vida, porque há a necessidade da dança. A dança é uma válvula de escape onde eu extravaso as minhas angústias e saio cheio de alegrias, ou será que dancei no mau sentido da palavra? Aliás, por que a dança ganhou este significado pejorativo? Dancei virou sinônimo de alguém que se deu mal, quebrou a cara, se ferrou...Fiquei imaginando como é uma dança na cozinha? A ideia me remeteu aos tempos da escravidão. Tracei um paralelo entre a cozinha e a senzala. Um estado de servidão em pleno século XXI. Quem é o meu feitor? Como tirar esta dança da cozinha e levar para outros espaços. Como mostrar para os familiares dos Vocacionados que além de mãe, irmã, cunhada, vó, sogra, existe a Ione, a Lourdes, a Maria. Seres humanos com o an-seio de expressar suas angústias, seus fracassos, suas derrotas e todas as experiências vividas que receberam ao longo da vida e que com certeza deixaram marcas nestes corpos.Na tentativa de tirar esta dança da cozinha postei no Youtube uma vivência que apliquei em um dos encontros e na qual elas se sentiram felizes com o resultado, mas os familiares não acharam o mesmo. O neto da Maria Firmina ao ver o vídeo do Youtube com a vó dançando disse: “Pra minha Vó uma nota Zeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeero bem grande!” fazendo um gesto arredondando de cima para baixo com os dois bra-ços.É impiedosamente irônica a maneira como um ser humano faz o outro chafurdar na lama, neste ácido mordaz em que se transforma o nosso cotidiano. Não é de se surpreender o

fato de como o acúmulo de ressentimentos e frustrações pode despertar uma agressividade que precisa extravasar de alguma forma. Temos muitos desafios no vocacional. Como usar a dança como veículo de expressão e tirar esse nó da garganta? Outros vocacionados entraram e deram novos rumos ao pro-cesso. Arlessandra, é isso mesmo, não digitei errado não, en-trou no Vocacional como parte dos objetivos da sua vida: uma mudança em todos os sentidos em 12 meses. Mas eu pensei, vai com calma porque mais importante do que a velocidade é a direção.Como instaurar um processo criativo, como fomentar nos vo-cacionados o desejo de continuar a pesquisa, de se aprofundar em cima de um mesmo tema quando a vivemos no mundo do descartável, do superficial, das relações líquidas. Fazer como Sherazade que todo dia deixava o rei com vontade de escu-tar a continuação das suas histórias postergando assim, o seu trágico destino. Moral da história de Sherazade: a liberdade se conquista com a criatividade. Mas como se libertar dos pa-drões já tão estabelecidos e fortemente arraigados no conceito das pessoas do que é dançar?O vocacional é um espaço permanente de conflitos. Paulo Freire já faleceu há mais de onze anos e sua pedagogia ainda é tão revolucionária quanto incompreendida. Quando trabalho em círculo estou colocando todos na mesma posição e os vo-cacionados são obrigados a pensar, olhar para o companheiro que está ao seu lado. Falo: não olhem para mim! Olhe para o colega que está ao seu lado. Harmonize-se com ele e todo o círculo estará harmonizado. Sempre digo que o Vocacional é um espaço para se compartilhar saberes. Que com a arte vamos agregar valores, mas que acreditamos que os vocacio-nados também tem valores para agregar e estes valores com certeza vão aflorar ao longo do processo.Um dia, quando eu ainda trabalhava em outro equipamento, um vocacionado descobriu que eu dava aulas de dança de sa-lão na Vitrine da Dança. Ficamos tão expostos naquele espaço que é impossível passar incógnito. Ele me interpelou: Porque você não ensina o que você sabe? Refleti, respirei fundo e lá vou eu novamente explicar que o vocacional não é aula de dança, que não carregamos o título de “professor” e nem eles de alunos, que o vocacional é um espaço de pesquisa, de cria-ção, mas parece que eles não conseguem compreender ou não aceitam. Por vezes penso que alguns estão com a autoestima tão baixa que não conseguem perceber a capacidade criativa, os valores que eles têm e de como valores podem acrescentar muito no decorrer do processo. Acredito que nós como artistas orientadores temos esta função; fazer com que estes potenciais aflorem, venham à tona. Recebemos vários elogios quando

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participamos da Festa Junina do CEU, justamente pelos fi-gurinos que eles mesmos construíram inspirado nos festejos juninos e nos quadros do pintor Volpi e do qual reclamavam: Professor, a gente vai dançar com estes farrapos? Mas quando ouviram os elogios sobre a criatividade dos figurinos ficaram encantados, e, cheios de orgulho, falaram: Fomos nós mesmos que fizemos! Aos poucos através da opinião dos outros eles vão perceber a capacidade criativa que em princípio os assusta para logo depois encantá-los. Em outra ocasião coloquei um vocacionado à frente do encon-tro. Ele estava preparado, tinha condições e vontade de apre-sentar um procedimento, mas houve resistência. Uma voca-cionada falou: é ele que tem que ensinar e não você. Outro me disse: sua aula eu faço, a dele não. Como já disse o vocacional é um espaço para se compartilhar saberes, mas ainda existe muita resistência com relação a este pensamento.Em outro encontro um vocacionado me interpelou: Qual é a sua praia? Querendo dizer, qual era o meu estilo de dança. O Fulano de Tal ensinou uns passinhos de Waacking (um estilo das danças urbanas) como que me questionando: Que passinhos você vai ensinar pra gente? E eu de imediato pensei na frase celebre do Klauss Vianna: “Não decore passos, apren-da o caminho”!Por falar em caminho fomos convidados pra Bienal do Livro e criamos uma performance inspirada no poema de Carlos Drummond de Andrade: “No meio do caminho”. Comparo esse caminho ao nosso processo de criação e percebo mui-tas pedras no meio do caminho. Dizem que o rio alcança os seus objetivos porque consegue contornar obstáculos. E nós artista orientadores também precisamos descobrir isto, como contornar resistências, como dissolvê-las ou talvez agregá-las. Muitas seriam as possibilidades.Segundo o artista plástico Carlos Fajardo “Arte não se ensi-na”. Ele acredita que o que se pode é criar um ambiente de aprendizado, mas que a arte parte do pressuposto da criação. Pode se estimular o raciocínio de como eu posso extravasar o meu discurso poético. Quando a gente começa a criar não sabe como vai terminar e ainda mais num ambiente coletivo. Depois de instaurado o processo você não tem mais o controle sobre ele. Para Fajardo a arte é um lugar na divergência. É algo que você produz, mas que não estava lá antes, é fruto da igno-rância. Porque ao contrário é reprodução. “Déjà vu” Já visto. Já no século XVIII Jean Georges Noverre queria transformar o Ballet, que antes era visto como uma forma de entreteni-mento, numa ação dramática. Seus bailarinos eram instruídos a observar o gestual do povo, (os ballets da época utilizavam o gestual dos nobres) ideia que mais tarde seria retomada por Laban. Mas até hoje as pessoas enxergam a dança como for-ma de entretenimento. E o vocacional vem séculos depois de Noverre retomar a ideia da dança como veículo para o seu discurso poético. Talvez seja por isso que por dois anos con-secutivos em equipamentos diferentes vários vocacionados chegaram com a informação de que eu iria trabalhar com dança contemporânea. E eu disse: Não, eu não sou da dança contemporânea. Mas o vocacional é uma forma contemporâ-

nea de abordar a arte em suas diversas linguagens. Uma abor-dagem onde o percurso é tão importante quanto a chegada. Neste sentido o vocacional me faz lembrar as metáforas de Zygmunt Bauman sobre o peregrino e o turista. Ambos via-jam. O pe-regrino escolhe o seu destino em razão da busca, a viagem tem um sentido existencial, enquanto que para o turis-ta a viagem é um intervalo na vida. Para o peregrino a viagem é um ato de fé, de busca da identidade, enquanto que para o turista é um ato de consumo. O peregrino tem medo de ser decepcionado por ele mesmo enquanto que o turista tem medo de se decepcionar com o outro. E finalmente, para o peregri-no o percurso é tão importante quanto a chegada. Pensando neste aspecto, como os vocacionados estão se colocando em relação ao projeto? Estão dispostos a peregrinar por caminhos nunca antes percorridos? Como despertar esse interesse, essa curiosidade pelo inesperado? Como não se contentar com a primeira leitura? Como controlar a ansiedade na expectativa de resultados?Descobri que tenho um vocacionado que é radialista de uma Rádio comunitária -a RC Itaquera 85,6 FM- que pode ser acessada num raio de três quilômetros. Será que sou eu através das minhas práticas artistas que vou emancipá-lo ou será que vai acontecer o contrário? Lembrei-me do desenho de Escher: Quem desenha? Quem é desenhado? Quem ensina? Quem aprende? uem emancipa? Quem é emancipado? Um dos objetivos do vocacional é justamente a emancipa-ção do coletivo. Mas quando vou trabalhar com turmas é diferente. Para emancipar um coletivo é preciso que este coletivo exista. Lógico, as pessoas se inscreveram em um projeto de dança porque tem um objetivo em comum que é dançar. Mas talvez antes de se pensar em criação, em pesqui-sa, seja preciso pensar em trabalhar o vínculo do grupo. Os vocacionados do equipamento em que eu trabalho aparecerem na Mostra de Processos com camisetas, como numa torcida organizada com o nome do Projeto na frente e o meu nome nas costas como Orientador. Muito mais do que a demonstração de carinho, que me deixou extremamente emocionado, foi perce-ber que ali começava a se formar um coletivo. Eles tomaram uma atitude por conta própria e se articularam pra organizar tudo sozinhos. Pensei, agora posso começar a trabalhar dinâ-micas criativas emancipatórias. Estamos na contra mão, no contra fluxo, subindo a corrente-za, mas acredito que como Koi, Carpa do Sucesso, que após lutar contra a correnteza e subir o rio, transformava-se em um dragão por sua força e determinação em superar obstáculos, nos transformaremos num símbolo de resistência e determi-nação também porque o desejo de criação do artista nunca se esgota. Falei pra Maria Firmina (a que levou nota zero do neto), que só pelo fato dela, uma mulher aos 60 anos se inscrever num projeto de dança, independente das suas dificuldades, de ser desengonçada ou não, de ter talento ou não, mas de ter cora-gem, eu dou um “dez” muito maior do que o zero que o neto havia lhe dado.

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o teatro como experiência - um diálogo com o texto “o Narrador” de Walter Benjamin

Cintia Wartusch Vocacional Teatro

“Um pequeno ambiente: de um lado máquinas, do outro – máquinas. No centro desse retangular de paredes opacas, onde máquinas vibram um estreito corredor. Alguma pas-sagem. Uma quase inumanidade lá pulsa o barulho, baru-lho das esferas platinadas que se chocam, acaba por fazer estrondo, e ninguém parece incomodado. Sim, há pessoas na sala, cada uma em frente a uma máquina. Não se olham. Não se falam. Não se tocam. No entanto, algo as conecta: respiram o mesmo ar, e hipnotizadas jogam, seguem sem um piscar de olhos o caminho das artificiais luzes piscan-tes, por onde percorrem as esferas platinadas”. Essa des-crição é uma leitura pessoal de uma cena do filme de Win Wenders, Tokyo-Ga, apreciado em uma reunião de pesqui-sa/ação da equipe. Imagem ambivalente: verdadeira e falsa - de olhares mortos conferindo vida às máquinas, falam-me sobre o mundo, o nosso mundo de pessoas compartimen-tadas em seus quadrados, alienadas em seus trabalhos, en-torpecidas por máquinas, televisões, ou qualquer sem vida de tecnologia. Sobrecarregadas de informações, saturadas de imagens, comerciais, de uma experiência atrofiada – eis minha inquietação.Volto meu olhar aos conceitos “benjaminianos” sobre a experiência. Walter Benjamin deflagra em seu pensamento o empobrecimento da experiência Erfahrung, no mundo moderno, capitalista. A Erfahrung em sua visão está ligada a uma experiência coletiva, ampla, que se acumula, sedimen-ta-se no tempo, e é o verdadeiro conhecimento. Hoje, temos a vivência de outro conceito, a Erlebnis, essa experiência empobrecida, do indivíduo isolado e desgraçado (no sen-tido de não possuir a graça), em um tempo de informação. Entretanto, Benjamin vai além da crítica, segundo Jeanne Marie ele “esboça, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a necessidade de reconstrução” desse indivíduo empobre-cido, “para garantir uma memória e uma palavra comuns, malgrado à desagregação e o esfacelamento do social”.Movimento-me agora em outro recinto, um lugar den-tro deste lugar-mundo, a sala de encontro com os artistas integrantes do programa, e questiono-me se nesta sala de negras paredes conseguiremos resgatar um pouco de vida, da graça. Se o teatro é um lugar de experiência, onde a Erfahrung, que concentra não só uma força social, mas vital, terá solo fecundo para desenvolver-se. Se a arte

pode oferecer cores, expressão, meios para a reconstru-ção desse indivíduo empobrecido. Percebo essas questões intimamente entrelaçadas com a intenção da instauração dos processos criativos emancipatórios, criadores, inven-tivos e, portanto, fecundos de formação. Tendo em vista que formação é sempre uma auto formação, pois ninguém é dado formar ninguém, que seria uma formatação, sempre contraditória e distante do ideal de emancipação. Neste chão é preciso cultivar processos de abertura para a experiência. Afinal, o que forma, e pode “reconstruir” esse indivíduo é o amplo da experiência, que se dá permeando interioridade e exterioridade, na relação com o outro e com o objeto, e consequentemente consigo próprio.Benjamin talvez aponte um caminho: um caminho que me supõe a arte, quando estabelece uma relação do empobreci-mento da experiência com o fim da arte de contar. Quando não se tem experiência não se tem a matéria, o conteúdo, não se tem uma história para narrar. A ideia de Benjamin, diz Jeanne Marie, é “de que uma reconstrução da Erfahrung deveria ser acompanhada de uma nova forma de narrativi-dade, de experiência e narratividade espontâneas (...)”.... E o que encontro no grupo que estou a orientar, de suges-tivo nome “Despertar”, são jovens que vem de um processo da montagem de peça homônima, um tanto condicionados e ainda sem uma história para contar. O que desejam é e--xatamente a figura de um diretor, que ensaie uma peça, que já esteja escrita, ou seja, alguém que lhes dirija o caminho, ou melhor, quase que diretamente a um fim: a apresenta-ção de uma nova peça. A preocupação maior e constante no grupo não é o que se falar, mas a descoberta desta narrativa em comum: suas questões ou inquietações consigo, com o outro, ou com o mundo. Tampouco orbitam o criar, o como irão expressar. A agitação é que não demore tanto quanto aos dois anos de trabalho que desprenderam na última mon-tagem. Logo, trouxeram-me textos pesquisados na internet, e estamos a ler os que eles acharam interessante mediante a informação contida em fragmentos de sinopses. Mas o importante é que a escolha não demore!Relevante aqui é a reflexão de um campo instaurado que poderia impossibilitar a experiência – um campo do ime-diato, do resultado. Se a experiência sedimenta-se no tem-po, o que necessitamos, portanto, é alcançar um desapego

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de um mar cósmico: o som e os corpos moveram-se a dar forma a essa flor explodida em um vaso humano, onde depois os homens entrelaçavam os braços, que dançavam, e por alguma humanidade perdida tornaram-se o peso do mundo – um corpo de braços abertos sofria e curvava-se ao carregar outros corpos, mortos, sobre seu ombro. Arte. Um acontecimento. Uma experiência? Os olhos se olharam, as vozes entraram em uníssono e os corpos se tocaram. Neste primeiro momento dos encontros foi preciso deixar o tempo entrar, acolhê-lo, para se preencher de alguma forma nossa verdade, e não de ansiedade que aniquila a experi-ência. As vivências iniciaram-se sempre com exercícios de relaxamento, respiração, na tentativa de conexão com uma pulsação própria, calma e serenidade na busca da presenti-ficação. Por outro lado, buscou-se o coletivo como troca, ou seja, o toque nos exercícios de massagem e reconhecimento dos corpos, do encontro consigo e com o outro nos exercí-cios de movimentação corporal. O tempo, esse abstrato que também somos nós – uma existência, que nasce, vive e morre... Foi algo explorado em nossos encontros: como se materializa essa passagem do tempo em nossos corpos? Outras formas de percepção e vivência do tempo lento, rápido, e suas qualidades foram experimentadas pela movimentação dos corpos no espa-ço. Trabalhamos muito o imaginário. Fechamos os olhos e lentamente vimos o sol nascer, o arco que desenha no céu, sua plenitude, centro, ao meio do dia, seu desvanecer no horizonte. E o tempo segue, passa pela materialidade da lua, do escuro que se instaura: o tempo é movimento. Indagamo-nos de que outras maneiras sabemos sobre o tempo? Pelas histórias, passado, vivências, experiências, presente, futuro... Campos esses que tentamos vivenciar, para melhor lhe dar, se dar.Outro enfoque dos encontros deu-se com trabalhos de sen-sibilização. A pergunta norteadora foi: Como percebo, sinto e conheço o mundo? Afinal, é preciso conhecê-lo para, en-tão, dizê-lo. Ver, ouvir, tocar, cheirar, conhecer para poder contar. Nosso instrumental para a percepção do mundo são os sentidos. A orientação focou-se no perceber, ou seja, atentar para esses sentidos no cotidiano, e descrever suas sensações, criando uma narrativa dessas percepções: um narrar não só da voz, mas buscando a totalidade do cor-po. Exercícios entre imaginação e sentidos também fo-ram propostas trabalhadas. E nossos sentidos percorreram outros escritos além do cotidiano . Algumas dramaturgias grosseiras, outras poéticas, conflitos, histórias que nada nos diziam, e histórias que tinham algo a nos dizer. Dentro da vivência proporcionada por esses textos pareceu despontar no grupo o interesse por um mundo fantástico e por histó-rias românticas.Reconheceu-se nos exercícios de improvisação a di-ficuldade de beber da narrativa o que ela traz consigo, a característica de ser uma obra aberta, sempre com uma su--gestão de continuidade, “esse não acabamento essencial” (BENJAMIN) é uma proposta para fazer junto, com a pos-

para com a ansiedade, a presença no presente, a abertura de vivenciar um processo, e não os olhos sugados por um determinado e determinante futuro. Diz Benjamim: a narrativa necessita de condições para subsistir, condições estas que não encontramos no mundo moderno e que seria a base para a experiência narrativa, são elas: a comunidade de vida e de discurso da experiência que é transmitida deve ser comum ao narrador e ao ouvin-te. Esse caráter de comunidade entre vida e palavra está intimamente ligado ao trabalho, mas um trabalho artesanal, que permite por seu ritmo lento e orgânico uma totalidade, “uma sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora” (GAGNEBIN).É preciso, pois, abranger o lento, conquistar o tempo, constituir a comunidade entre vida e palavra, uma busca de uma verdadeira (como autêntica) narrativa. E temos não temos o amálgama do princípio: uma comunidade, um gru-po de pessoas, que mesmo não possuindo um “discurso”, detém um campo em comum de uma palavra unificadora: o teatro – que por sua essência é não só um trabalho artesanal, mas tem como material o próprio humano: é uma totalida-de e pressupõe esse todo orgânico. Tento aqui fiar linhas que liguem o teatro a esse narrar, mas inerente ao teatro é essa investigação de contar ou expressar algo, que sabemos: não precisa ser uma história, nem tampouco uma história linear, mas algo que ao menos nos toque, que de alguma forma nos pertença.É perceptível que a palavra “comunidade” permeia as condições de uma experiência, e de uma experiência nar-rativa. A narrativa carrega certa função de ligadura dessa comunidade, desse sentimento que é comum, que por isso é comunicável e de fato se comunica. Benjamin vislumbra na narrativa o elo social entre as pessoas, e também afirma que a narrativa os atava à sua própria história, ao seu passado, a suas raízes, a sua tradição. A arte de narrar, diz Benjamim, é agregadora, unificadora e está ligada ao coletivo, ao traba-lho e um tempo partilhados – eis a experiência.Ao fazer essa ponte entre o teatro e o narrar, podemos con-jecturar na arte teatral esse potencial de comunidade, de co-municação, e expressão, um elo perdido, de possibilidade de ligadura humana, eco: o material de trabalho do teatro é o humano. Não que o criar tente isso, mas uma arte como o teatro prescinde do outro, além de ser por excelência uma arte coletiva que necessita do público, e é a este fio que de alguma forma os liga, que estou a chamar de comunicação.Um lugar, portanto, de possibilidade de legítima experiên-cia, pois é como nenhuma outra, uma arte viva, pulsante, sua essência é a presença; uma troca viva.E essa arte de cores de bela expressão humana já habitou nosso lugar dentro deste mundo, num simples exercício de montar quadros humanos, onde as tintas eram os próprios corpos, e depois dar passagem de um quadro a outro com o som de suas vozes e movimento de ressonância dos cor-pos. Os artistas vocacionados construíram intuitivamente uma flor de lótus feita de carne. Parecia ela desabrochar

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sibilidade de abertura de espaço para a imaginação, que não atrofia, instiga a ir além. Houve exercícios de improvisação de cada texto apreciado, que intentavam o entendimento, além da penetração e a troca pela materialização das his-tórias a partir das cenas propostas pelos artistas vocaciona-dos. Instaurou-se, para esse ir além, jogos de exploração de outros sentidos que os textos poderiam provocar: Qual a cor dessa história? Se fosse um objeto qual seria? E um símbo-lo? Um movimento? Um animal? Qual a possibilidade de outros acontecimentos? De outros desenlaces? Etc. E então, a improvisação ia de encontro a abranger esses elementos, buscando por essa via um desprendimento com o dado, com o imediato. Além de propiciar a experiência, as histórias contadas podem fornecer elementos de verdade, o passado é carre-gado de possibilidades que não aconteceram. O passado sempre tem algo a dizer, “Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” (BENJAMIN). O fio da história nos mostra que o romance tomou o lu-gar da narrativa, a oralidade - essa troca viva-, portanto, confinou-se ao isolamento que se encerra em um livro. O sentido que não se indagava, era tautologia da própria vida, e com a individualização que se diferencia e se aparta da comunidade, iniciou sua inscrição no romance da “pro-funda perplexidade de quem a vive” (BENJAMIN), e se estabeleceu a busca do sentido. Com o tempo, que perdeu o tempo, a informação tomou o lugar do romance, que foi um aterramento para a faculdade da imaginação. A imaginação, que só se alimenta de informação e de fatos, abreviou-se, pois não existem mais as viagens dos relatos miraculosos. Aspira hoje somente a uma verificação imediata. O que de certo acarreta um atrofiamento da capacidade de vivenciar. Interessante é observar que intuitivamente essa imaginação tem sede de exploração e de expansão. O que instigou aos artistas vocacionados de algum modo, mesmo que incons-ciente, foi essa outra possibilidade de mundo. Formulações de mundos outros, fantásticos (ou não). Certa liberdade inventiva, de desprendimento do real, um voo que abre as asas e rompe com a realidade produzida, essa que cerceia, acorrenta, atrofia a imaginação e de certo o corpo. Recordo-me agora do inicio de nosso convívio. Ao per-guntar para alguns vocacionados o que vieram buscar no teatro, alguns me responderam: liberdade. No entanto, esse desprender-se, essa conquista de liberdade, que certamente não só o teatro, mas as artes abarcam, não é fácil de alçar. O corpo, o sentimento, o pensamento estão mergulhados nes-sa cultura de informação, de imediatez. Será precisamente aí que se encontra um potencial da abertura das portas para a experimentação, um libertar da espontaneidade, pois de--sencadeia as possibilidades da subjetividade? Serão esses desejos indícios, e uma procura ainda que não consciente de experiência? Essa que se encontra estagna-

da, mas como nos coloca Hegel, é o movimento da própria consciência, o que forja o homem, e o que lhe dará, trará e construirá o sentido. “O tédio é o pássaro de sonho que choca a experiência – atividades intimamente associadas ao tédio não existem nas cidades” (BENJAMIN). E sem essa distinção propiciada

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pelo tédio, não existe tempo, o tempo para contar histórias, intercambiar experiências, num tempo vivo de experiência. Ler. Ler é de certo um momento de distensão, povoado pela imaginação e cravado no tempo do tédio. Nossos momen-tos de leitura não puderam ser extensos. Sob uma pressão não imposta, mas posta pela inquietude inerente a juventu-

de, logo escolheram um texto para sua próxima montagem, Sonhos de uma noite de verão, de Shakespeare. Entretan-to, um encontro com outros coletivos em uma vivência realmente especial detonou uma crise. Crise - esse nega-tivo, essa estação que parece não ser experiência, é o que Hegel salienta ser o momento de experiência, onde se nega uma “verdade” já conhecida, por outra mais ampla, mais profunda. E foi o que despertou neles um alargamento de horizontes, assim deixemos Shakespeare de lado, levando conosco o encantamento do líquido das flores, que nosso amado Puck pingava nos olhos dos adormecidos para acor-darem enamorados. Enamoramo-nos da ideia de falar sobre o amor, um tema essência, que desabrochou da experiência com os textos. Deu-se, portanto a busca - explorar a partir de nós o amor. Estamos a dar corpo, voz e voo ao nosso amor. Presentes estamos a explorar as formas de amor, e do passado colhemos os ensinamentos gregos, que com-preendiam o amor em três formas, eros o desejo, philia a amizade, e ágape como o amor fraternal. Nossas questões permeiam, “O que parece amor, se mistura com o amor, e não é amor?”, ou “Será também isso amor?” Estamos a habitar nossos corpos em espaços como o sonho, o ideal e o real, onde as ideias e o sentimento de amor também habitam - “Como são as histórias imortais sobre o amor?” em contrapartida, “Como ele acontece no nosso cotidiano?”Benjamin conclui, com a extinção da narrativa acontece o cerceamento dos sentidos, o homem fixa-se no fato, no dado, no imediato, é incapaz de voar, de ir além. O dom de ouvir também desaparece, juntamente com essa forma artesanal de comunicação, que tanto abria espaço às nossas necessidades, às nossas faculdades. Hoje, nos diz Kafka, o maior “narrador” moderno pelas palavras de Benjamin, “não temos nenhuma mensagem definitiva para transmitir, que não exista mais uma totalidade de sentidos, mas somen-te trechos de histórias e de sonhos. Fragmentos esparsos que falam do fim da identidade do sujeito e da univocidade da palavra, indubitavelmente uma ameaça de destruição, mas também, e ao mesmo tempo, esperança e possibilidade de novas significações” (GAGNEBIN).Estamos, pois, significando. O jogo da arte nos converte em criadores de um mundo e assim torna manifesto em ex-pressão artística sonhos, desejos, receios, dúvidas, críticas, escolhas, abismos e sentidos, tanto pessoais como sociais, onde sem coerções podemos decidir o que almejamos vir a ser. Eis uma crise? Uma possibilidade de experiência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBENJAMIN, W. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2011.GAGNEBIN, Jean Marie. Prefácio – Walter Benjamin ou a história aberta. In. BENJAMIN, W. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2011.

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ensaio #1: Sobre a escuta

Carolina MinozziVocacional Dança

O que tenho escutado:Entrega; Comunicação; Olhar; Tempo; Consciência; Potência; Corpo; Confiança; Sorriso; Continuação; Liberação; Prazer; Troca; Percepção; Leveza; Inspiração; Sensibilidade.

Falar, fazer, me torna mais, me torna presente.(Girlene)

Todos nós somos um só corpo quando dançamos(Vera)

A dança, a gente cria ou ela sempre existiu?(Maria)

O que é a dança pra mim? Se eu estou em casa e bate um vento eu danço esse vento(Margarete)

Sempre tive dificuldade de olhar nos olhos das outras pessoas. Nessa semana reparei que as pessoas na rua possuem um olhar triste(Thalia)

Observar um ao outro, no corpo, no olhar(Vera)

Através do olhar entramos no outro(Girlene)

Antes de vir pra cá pensei: Ah eu já sei como vai ser, já participei de tantosvocacionais. Mas não, cada ano é diferente.(Vera)

Estou me desafiando a conhecer novas possibilidade(Maria)

“O ponto de partida desse primeiro ensaio está na escuta, es-tou começando no Programa Vocacional e escutando como seus princípios norteadores tomam vida na prática. O prin-cípio da ação cultural tem se apresentado bastante central em minhas reflexões, pesquisas e práticas de uma ação cul-tural entendida assim como aponta o material norteador do programa: ações capazes de interromper, de desviar o fluxo cotidiano dos hábitos e valores aprisionados pela indústria cultural, permitindo que linhas de fuga nômades possam expressar suas vozes dissonantes.”A instauração de processos criativos parece em si uma pro-posta de ação cultural, por buscar reconhecer a noção de cul-tura em cada um ao mesmo tempo em que gera espaço para ampliar essas noções. Esse movimento de reconhecimentos e transformações possibilita diversificar a maneira como nos relacionamos conosco e com o mundo.Se o processo criativo é entendido como ação cultural, cada encontro também pode ser entendido dessa maneira, princi-palmente por ser um momento em que os vocacionados po-dem liberar, por para fora seus pensamentos, movimentos, sensações e sentimentos.

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Mas como criar um ambiente propicio para essa entrega? Como gerar estados de corpos dispostos a experimentar, criar e compartilhar movimentos?Parece necessário uma escuta atenta e criativa de fendas que podem ser abertas a cada encontro, para que em uma con-versa, os assuntos sobre a semana que se passou, sobre um exercício, um programa de televisão ou sobre dança, possam ser reconhecidos por todas as pistas para o percurso da tur-ma dentro do programa.Uma escuta sensível para que a linguagem dos procedimen-tos se comunique com a linguagem dos vocacionados e vi-ce-versa. Uma escuta flexível para as mudanças de rumo no encontro, dadas pela construção coletiva. E principalmente, uma escuta atenta que dê espaço para os desejos, para que os desejos de todos permaneçam e/ou se tornem vivos.Portanto uma primeira percepção é de que o Artista Orienta-dor tem como função ser cartógrafo:

Para os geógrafos, a cartografia - diferentemente do mapa, representação de um todo estático - é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem.A prática de um cartógrafo diz respeito, fundamentalmen-te, às estratégias das formações do desejo no campo social.O que ele (cartógrafo) quer é participar, embarcar na constituição de territórios existenciais, constituição de re-alidade. Implicitamente, é óbvio que, pelo menos em seus momentos mais felizes, ele não teme o movimento. 1

Nossa equipe leu e conversou sobre esse texto durante a reu-nião de Pesquisa-Ação, logo relacionei a ideia de cartógrafo com as experiências que tive nesses primeiros encontros com os vocacionados. A formação do desejo tambémtem a ver com despertar o interesse dos vocacionados a se envolverem num processo criativo coletivo, ou até antes disso, apresentar a possibilidade de ter desejos, de entrarem em contato com suas vontades, reconhecer e dar importân-

cia ao que nos move. Uma estratégia para essa formação do desejo e também para a constituição de territórios existen-ciais tem sido os momentos de apreciação, em que o pensa-mento é elaborado a partir das experiências do encontro ou em uma ação fora dele. Assim, caminhos para o processo são reconhecidos, repensados, apontados, animados. Des-se modo cria-se um território de palavras comuns, como as apresentadas no início desse ensaio, que permitem a construção de sentidos para o processo da turma. É um exercício de escuta dos movimentos inerentes ao processo criativo.Quando pensamos em constituir um território existencial, relacionado a processos de criação, pensamos em conti-nuidade, a cada encontro novos acontecimentos e novos sentidos são traçados, o que vai construindo o percurso do processo. Porém as turmas levam como característica a instabilidade. Por não se formar uma turma ou por se formar uma turma e dar inicio ao processo, mas ainda ter pessoas flutuantes, que não vão a todos os encontros.Parece-me que esse preencher e esvaziar dos encontros fa-zem parte do primeiro exercício da escuta.É um desafio de como lidar com a situação presente, ao mes-mo tempo em que se dá continuidade no histórico do proces-so, ou então, no caso de uma turma que está se formando, o desafio é de conseguir dialogar com as expectativas de uma pessoa que acaba de conhecer, escutar suas vontades e noção de dança.A escuta do artista orientador pede movimento, criação, ação, aceitação, presença, corpo vibrante, vida. Assim como é dito no texto de Suely Rolnik, o cartógrafo vai a campo com algumas preocupações e aberto para inventarestratégias para que seu trabalho seja vivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental, transformações contemporâneas do Desejo. Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989.

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Forma e conteúdo: Reflexões Mayki FabianiVocacional Música

A forma é observada e perpetuada em cânones que refletem épocas, estilos e sociedades de diversos costumes . O seu con-teúdo se desenvolve através do fazer e do apreciar. A natureza artística é por muitas vezes sustentada através dos alicerces oferecidos pela forma e pelo conteúdo, e assim a arte perpetua-se, transforma-se e adquire novos conceitos.Theodor Adorno, que foi aluno de composição de Alban Berg, observou algo interessante em suas composições: “Sua músi-ca poderia nos ensinar agora não aquilo com o que é preciso compor – estilo ou princípio –, mas a maneira pela qual é pre-ciso compor, o material emancipado que hoje pressupõe toda a música”.1 Todo o conteúdo de uma geração é transmitido à outra geração, que por sua vez é reelaborado como fez Berg, que mesmo com laços fortes com o pós-romantismo deu novas formas ao conteúdo musical. Portanto, a forma e o conteúdo são elementos de reflexão prática do plano da matéria sonora.A estética que foi fundada e nomeada em 1750, pelo filóso-fo alemão Alexander Baumgarten, primeiramente concebida como “teoria da percepção, da faculdade inferior do conheci-mento e como complemento da lógica”2, oferece processos re-flexivos acerca da forma e do conteúdo. “A estética de uma arte é a das outras; só o material é diferente” afirma Schumann3. A arte está se apropriando para seu próprio ser, o conteúdo sonoro é temporal e age no seu tempo. A música se forma ao mesmo tempo em que se esvai, ao ganhar forma é que se desfaz.A forma e o conteúdo observados do plano de vista da estética são elementos que transitam no belo e que se transfiguram no gosto e, portanto não são imprecisos: “Na realidade imperfeita que vivemos os juízos de valor muitas vezes não coincidem, e não há normas segundo as quais se atestaria sua exatidão ou falsidade, como se demonstra um teorema matemático”.4 A estética de uma arte é a de outra, mas, a forma que cada arte em seu observador é distinta, a forma que cada uma se eterniza no tempo e no espaço é também de ampla singularidade, to-davia uma sinfonia de Beethoven não surtirá a mesma inércia que um quadro de Picasso, e mesmo assim elas compactuam de uma mesma gênese, há nelas um sentido que excede sua própria representação. O conteúdo da arte é um mesmo conteúdo que tenta se reu-tilizar e ganhar novos significados e valores. Assim fez Wagner ao alcançar a máxima estrutura de valores com seus ciclos de óperas. Após isso só restava a desconstru-ção de toda a estrutura tonal levando Schoenberg a figurar o atonalismo.Ainda assim, qual seria o conteúdo da música? Com essa frase começa o capítulo VII do livro de Eduard Hanslick “do belo musical”, que ele expõe da seguinte maneira:

Tem a música um conteúdo?Tal é a sua questão mais candente, desde que existe o há-bito de refletir sobre nossa arte. Foi decidida pró e contra. Vozes importantes afirmam a ausência de conteúdo da música, vozes que, na sua quase totalidade, correspondem a filósofos: Rousseau, Kant, Hegel, Herbart, Kahlert, etc. São incompa--ravelmente mais numerosos os lutadores que defendem o conteúdo da música; são os genuínos músicos entre os escri-tores e são secundados pelo grosso da convicção geral.

A questão do conteúdo em música foi amplamente discutida, tamanha a imaterialidade que tem a música, mas como dito aci-ma, muitos são a favor do reconhecimento do conteúdo e como afirma Adorno “em arte, tudo depende do produto do qual o artista é instrumento”6, o juízo do conteúdo estaria fadado a ser sempre do observador da obra mais do que do autor. A avaliação do conteúdo é refeita época após época e com dife--rentes olhares e com diferentes valores.O conteúdo da música não é sentimento - expõe Hanslick- “o conteúdo de uma obra de arte poética ou plástica pode expres-sar-se com palavras e reduzir-se a conceitos”, na música, “os sons e a sua combinação artística seriam, pois, unicamente o material, o meio de expressão, com que o compositor represen-ta o amor, a coragem, a devoção, o arrebatamento”, “o único e exclusivo conteúdo e objeto da música são formas sonoras em movimento”. A matéria prima da música é o som, todas as artes são capazes de representar sentimentos através da matéria prima de cada uma.De modo análogo, os materiais elementares da música – tona-lidades, acordes e timbres – já são caracteres. Temos também uma arte de interpretação demasiado diligente para o signifi-cado dos elementos musicais; à sua maneira. A simbólica das tonalidades de Schubert proporciona o equivalente da interpre-tação das cores levadas a cabo por Goethe. A forma e o conteúdo estão atrelados a valores significantes e complementares dentro dos diversos juízos críticos de cada arte e se fazem presentes na crítica do valor da obra. A emancipação do sentimento propiciado e muitas vezes mal compreendido do fazer artístico se deve ao desenvolvimento tanto da forma quanto do conteúdo e da ressignificação de cada um deles.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS1. ADORNO, Theodor W. Berg: o mestre da transição mínima. São Paulo: Editora UNESP, 2010.2. DALHAUS, Carl. Estética musical. Lisboa: Edições 70, 2003.3. HANSLICK, Eduard. Do belo musical: um contributo para a revisão da Estética da Arte dos Sons. Lisboa: Edições 70, 2002.4. ROSENFIELD, Kathrin H. Estética. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

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A dramaturgia do encontro no território do acontecimento artístico

Melissa PanzuttiVocacional Teatro

intROduçãO

Neste artigo procuro enfatizar a potência na criação de ter-ritórios férteis, desenvolvidos a partir de uma metodologia do encontro de artistas, além de refletir sobre as dramatur-gias desses encontros, as quais são produzidas no âmbito das reuniões de pesquisa de ação da Equipe Noroeste do Programa Vocacional Teatro da Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo (SMC). Trago uma metáfora do universo para contextualizar o sis-tema em que o Programa e os artistas serão olhados a partir de agora. No sistema solar temos os corpos planetários em suas respectivas órbitas ao redor de um centro. Aqui o sol centro é o Artístico, o acontecimento artístico, ordenados pelos criadores desse ato, vocacionados, orientadores e coordenadores. A forma como esse complexo universo opera em sua es-trutura criativa será chamado aqui de metodologia do en-contro. O espaço criado para eclodir o processo de criação será olhado como o espaço tempo do encontro: territórios férteis. E por fim, o que emerge desses territórios, a par-tir das relações imbricadas entre os corpos planetários, será nomeado de dramaturgia do encontro. Desse modo,

relevam-se as três dimensões reflexivas que estão em jogo nas experiências de encontro nesse complexo universo em questão: orientadores, vocacionados, coordenadores em torno do acontecimento artístico.O princípio que norteia essa perspectiva é que no foro da experiência não há uma separação rigorosamente delineada entre o processo de fruição estética e a reflexão teórica. O corporal e o mental atravessam um ao outro ampliando o olhar do que é campo pedagógico e o que é artístico. Assim inclino-me sobre as dramaturgias desses encontros como um ato reflexivo em si, no sentido de ir além das questões propriamente ditas desse programa e compartilhar esse acontecimento artístico como um aprofundamento ativo da reflexão. Busca-se olhar para o espaço tempo como um lugar para o acontecimento artístico eclodir nos territórios, e a partir de como os corpos desses artistas envolvidos nessa convergên-cia criam um ato artístico, um corpo reflexivo, afetado pela experiência estética dos encontros, atuando na emergência de uma dramaturgia do agora.

GEOGRAFiA OEstE

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Os tERRitóRiOs dE EnCOntRO

Os diálogos e reações entre essas órbitas e sua relação direta com o núcleo é o que interessa, pois elas acontecem em ter-ritórios de encontro, criados e co-habitados pelas relações que se estabelecem entre esses artistas. Como criamos um território fértil para que as materialidades cênicas emerjam? Olhemos para a arte contemporânea como um lugar de encontro, como Nicolas Bourriaud1 destaca em estética relacional a esse território de encontro como um espaço para diferentes diálogos. O artista contemporâneo coloca-se como articulador e disparador inicial de um diálogo. Assim, destaco dois territórios de encontro sobre o qual me debru-ço: O encontro da reunião de pesquisa ação, que fomenta e questiona; e o encontro com os vocacionados que abarca a heterogeneidade e polifonia dos indivíduos. Se tomarmos que esses encontros são territórios férteis para o aconteci-mento artístico emergir e o “locus” onde se estabelecem relações e diálogos; redimensionam-se, aprofundam-se e refletem sobre as experiências desses corpos afetados no lugar de convívio. Seria esta experiência da metodologia do encontro uma maneira de se encontrar novas formas de se estar juntos? Se sim, quais seriam esses modos de estar juntos? Os corpos dos vocacionados e orientadores precisam estar disponíveis e porosos para poderem afetar e serem afetados, como um performer que instaura no espaço de convívio sua presença; o espaço como uma instalação artística onde as subjetivida-des podem conversar e dialogar; e que possa a partir desse convívio se olhar conscientemente para o trabalho criativo realizado. Esse seria o jogo relacional instituído nesses territórios de encontro, onde as dimensões pedagógicas e artísticas se imbricam: ora o território necessita de uma harmonia ora precisa ser provocador, em decorrência da potência criativa emergente. Nesse sentido faz-se necessário um recorte sobre os diálogos possíveis nesse lugar de encontro. Qual a quali-dade desses diálogos que potencializa o ir e vir das ações artísticas em relação ao núcleo central sol (acontecimento artístico)? Pode-se escolher trocar qualquer coisa, as difi-culdades, problemáticas pessoais, questões com o espaço público; mas o que escolhemos como recorte de potência criativa? Escolher o que dialogar e assim construir a for-ma dessa metodologia do encontro direciona o olhar para o modo como se está criando cada território de encontro; onde as bordas das órbitas se tocam se imbricam se “bor-ram”, confluem ou se opõem. Como esses atravessamentos se criam? Está provocando trocas e compartilhamentos? É através de perguntas inves-tigativas que influenciam as respostas em ação e a cons-cientização dos lugares instaurados. Perguntas essas que sugerem ações e traçam novas perguntas, novos rumos e o desenvolvimento particular de cada trajetória. Para evidenciar os pontos de convergência desses diálogos da metodologia do encontro, apontam-se os seguintes focos

para observação junto às ações artísticas: o momento é de perceber a poética e o estado de poesia? É o momento de potencializar a leitura estética dos vocacionados? Ou mes-mo, é a conscientização de como esses estados de poesia se dão? Qual foi a forma estética escolhida, existem outras formas, existe necessidade de comunicação? Destaca-se nesse momento o que já está conscientizado? O que eu não estou conseguindo ler? Cada pergunta instaura um diálogo distinto. A partir do diálogo escolhido pontua-se a importância de disparar re-ferências que sublinhem as potencialidades das criações, ou que coloquem suas certezas em xeque, buscando desse modo, uma maior variedade de suportes estéticos que am-pliam o campo da experiência. O processo de criação na reunião de pesquisa de ação co-meça a emergir como força criativa, uma experiência esté-tica em um ato de subjetivação, quando a resposta da ação dessas perguntas no encontro arte orientador/vocacionados é revelada, ao trazer para o território de encontro da reunião um objeto simbólico que sintetize a unidade de convivên-cia, ou um texto e uma imagem que reverberem o agora presenciado nos encontros, ou ainda, que se produza um ví-deo documento a partir das perguntas, diálogos encontros. A metodologia do encontro que exponho aqui, chama os corpos desses artistas para a construção poética, reflexiva e dinâmica desses novos territórios, ora para questionar os procedimentos do outro, ora para questionar seus próprios objetivos, ou mesmo o seu olhar sobre as materialidades produzidas, para que estas sejam construídas a cada instante pelo atravessamento das percepções dos participantes desse encontro, com a integração de suas formas de existir e suas reais inquietações. Destaca-se que existe um início e um fim determinado, es-tabelecido a partir do encontro relacional, mas o meio, a trajetória que se dará em ato, será constituída a partir do envolvimento de cada corpo presente como coautor desse encontro criativo. O quanto que as experiências do encontro pedagógico fo-mentam o planejamento dos encontros vivenciados com os vocacionados? E em que medida isso promove o surgimen-to de novas dramaturgias do encontro?

EmERGE A dRAmAtuRGiA dO EnCOntRO

A dramaturgia vista como escritura cênica determinada por elementos mirados pelo olhar do contemporâneo onde, texto, luz, imagem, musicalidade e atores são colocados em um universo não hierárquico. A dramaturgia que é composta de uma estrutura aberta para reverberação e o improviso justificado pela presença da poética, intrínseca ao espaço simbólico que emerge daquele instante único da experiência estética. Planejadas a partir dos territórios de encontro que afloram em sua efêmera subjetividade, o controle é solto por parte dos autores, ou mesmo de uma

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estrutura rígida e fechada. Escolho uma base de conceitos do contemporâneo, mais especificamente nos elementos da escritura cênica evidenciados no Teatro pós dramático de Lehmann2 como justificativa para elucidar a composição desse espaço heterogêneo.Assim arrisco a criar um espaço relacional, como uma ação acontecimento, uma experiência, um jogo. Aqui artistas orientadores como espectadores/participantes são também autores produtores dessa experiência.Imbuída dos signos do pós-dramático é que escolho trabalhar com diversos suportes estéticos que se relacionam entre si, ou não; que corroborem para a criação coletiva e heterogenia desse encontro de pesquisa, no qual, vários su-portes estéticos ofertam novas percepções. Assim provoco uma experiência de troca onde o espectador, artista orienta-dor no caso, escolhe seu caminho de apreciação, interven-ção estética, e experimentação poética.Foi estabelecendo paralelos com os signos do pós-dramático que elaboramos em equipe, no contexto da reunião pedagógica, a ação acontecimento denominada “vídeo documento” com o intuito de ampliar o suporte de nossas materialidades para além dos ensaios3 escritos. Assim o enunciado de produzir dois minutos de imagens e roteiros nos “vídeos documentos” que buscassem resigni-ficar e atravessar a relação estabelecida entre o ensaio pro-duzido, os encontros com os vocacionados e as discussões e aprofundamentos dos encontros de pesquisa pedagógica, assim como a sua posterior apreciação, que revela a potên-cia do “vídeo documento”. Reside nisto a provocação para que o artista e o participante da experiência faça a parte realista do jogo um questiona-mento sobre a estabilidade com que ele mesmo vive seu próprio momento; e ainda, expõe uma abundância de signos que parece refletir o caos da experiência real cotidiana, onde a polifonia de referências estéticas podem se encontrar e conversar. Esse campo referencial pode aflorar da experimentação de outros suportes estéticos junto aos vocacionados (vídeo, objetos simbólicos, espacialidade) e ainda, promove uma apreciação que alimenta e verticaliza o referencial do outro, sobre cada processo criativo revelado em diferentes ampa-ros estéticos. Essas foram estratégias para potencializar um recorte e reflexão das pesquisas de forma que cada participante e artista orientador pudessem estabelecer um campo rela-cional particular que estabelecesse semelhanças, conste-lações e correspondências. O espaço afetivo que pudesse acolher a exposição verdadeira desses artistas se deu no questionamento direto sobre os desdobramentos da própria percepção diante do acontecimento na diversidade de su-portes estéticos.Numa outra ação acontecimento que chamamos de Roda Viva, o jogo é pré-enunciado. Todos ficaram de trazer citações no intuito de colocar suas referências para conver-sar. Os comentários críticos do vídeo documento é o material

de recorte e ainda a própria pergunta de pesquisa do artista.A ação Roda Viva começa com as cartas sendo colocadas na mesa. Cada um tem 20 minutos para falar da sua pesqui-sa, usar suas citações e nos minutos finais, os participantes da roda, fazem perguntas, provocações, e dessa forma enri-quecem m a pesquisa do parceiro. Ao colocar em jogo as intervenções afetivas, poéticas e provocativas dos participantes, evidencio o teatro que é afirmado pelo processo e não só pelo resultado acabado. A produção em curso é colocada em foco, mais que o produto, sem uma estruturação de início, meio e fim já que o início se dá pelo primeiro encontro e terminada quando o último instante desse encontro termina. , Embora exista um roteiro aberto, mas, sem ser enuncia-do, existe assim, um espaço onde os assuntos e objetos de pesquisa convergem, constelando sem uma ordem pré-estabelecida. É com uma lógica própria daquele instan-te-encontro, que toca o agora desses artistas, atravessados por esse encontro. Elucida, portanto, um território onde não existe uma hierarquia explícita de imagens, texto, palavras e o discurso construído, que acolhe até as abstrações que se aproximam de uma estrutura do sonho.

COnVERsAs COm O EsPECtAdOR EmAnCiPAdO

A materialização de nossas investigações é apostar na ex-periência estética como suporte para poética da cena. Seria isso então a configuração de uma nova forma de convívio da comunidade estabelecida nos encontros, com os vocaciona-dos ou na reunião de pesquisa-ação. A intenção será apontar se essa experiência estética pode ofertar uma possibilidade, não da emancipação individual, mas de uma emancipação da comunidade do encontro. Espera-se também que o artista orientador como um me-diador de subjetividades, possa estabelecer no território de encontro com os vocacionados uma experiência única do teatro do agora: construído a cada encontro, no mesmo sen-tido que a experiência da reunião de pesquisa. Se no teatro da contemporaneidade se constrói uma drama-turgia onde o espectador está ativo e não mais passivo, en-tre coautor e colaborador para esse encontro estético, então seria possível pensarmos no encontro do artista orientador com os vocacionados como um encontro de experiência coautoral e colaborativa. O espectador estaria compondo e agindo consequentemente nas escolhas, na participação, na intervenção ativa da dramaturgia desse aqui agora instau-rado a partir dessa experiência estética, desse encontro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009. 2. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 20073. A cada dois meses os artistas envolvidos escrevem sobre as pesquisas desenvolvidas no programa. Este vem substituir um relatório e dá margem para uma escrita poética e reflexiva.

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Ação cultural vocacional dança: desvelando a dança

Almas inquietas que dançam a vida Miriam Dascal Vocacional Dança

O processo criativo é palco de uma relação entre artistas e os meios por ele selecionados, que envolve resistência, flexibilidade e domínio. Isso significa uma troca recíproca de influências. (Cecília Salles)

Realizamos no dia 18 de junho de 2012, uma ação cultural “Desvelando a Dança” que reuniu todos os coordenadores e suas respectivas equipes de artistas orientadores da Dança. Foi uma oportunidade inédita, um encontro extraordinário com Angel Vianna e Lola Brikman, a primeira vinha do Rio de Janeiro e a segunda de Buenos Aires. Esse encontro de uma intensidade rara, fez pulsar nossos corpos, vibrar nos-sas emoções e possibilitou uma reflexão ampla sobre nosso trabalho no Vocacional. Realmente a vibração que havia naquela sala de Biblioteca Monteiro Lobato em plena segunda-feira de ma-nhã, foi algo fora do comum, todos nós -e éramos por volta de 60 artistas orientadores- leste, oeste, norte, sul, centro, estávamos reunidos em harmonia na atenção e na alegria, com a consciência que para todos aqueles seria um grande acontecimento, e foi mesmo!Estas duas mulheres artistas, bailarinas, autoras das mais refinadas pesquisas sobre o corpo, o movimento e a dança na America Latina, demonstraram que a idade avançada não é documento para estagnação, para acomodação, e, ao contrário, vislumbra-se em ambas que a inquietação sempre foi o que moveu e move suas vidas, marcadas por uma lon-ga experiência e por um verdadeiro amor à arte.A terapeuta Angel Vianna, linda figura, uma persona de uma modéstia incrível, com sua fina sensibilidade e inteligência, inquieta neste eterno aprendizado e, nesse encontro logo de primeira, ela se debruça, antes de qualquer depoimento pes-soal sobre sua longa trajetória na dança, para saber do que se trata o programa vocacional, demonstrando uma abertura de fato para um diálogo com seus ouvintes. Nesse momento, se estabelece uma interlocução, pois não éramos apenas admiradores passivos, espectadores do en-contro, e, como se estivéssemos num ensaio aberto, foi-se desfiando depoimentos coletivos dos mais variados, am-pliando essa costura do pensamento, da ação que nos mobi-liza no Programa Vocacional, e para minha surpresa, desta

colcha de retalhos, pude constatar uma rede coesa entre nós, uma compreensão filosófica, pedagógica que rever-berava e nos complementavam uns aos outros. Foi muito emocionante e gratificante viver este momento com todos os coordenadores do Vocacional Dança, um encontro de almas inquietas que dançam a vida!Um silêncio se instaurou na sala e Angel com seus oitenta anos nos parabenizou por este trabalho pioneiro e inovador em São Paulo e talvez no Brasil, nos incentivando a conti-nuar este caminho inédito e tão necessário no mundo das artes e da educação.O encontro com Angel Vianna e Lola Brikman, - figuras marcantes do mundo da dança e das artes-, nos fez con-firmar que este caminho tão claramente delineado no Pro-grama Vocacional, em que a pesquisa na arte e o processo criativo emancipatório norteadores do programa tem suas raízes e uma identificação comum com estas pioneiras.As artistas sem referência buscaram e investigaram novas possibilidades de trabalho com o corpo e com o movimen-to, e romperam com velhos paradigmas, criando uma in-tegração na dança, com uma diversidade e diferença de corpos e idades, valorizando a dança como expressão de um povo, de uma comunidade, e busca diferentes influên-cias para o enriquecimento das pesquisas e dos caminhos criativos, de forma peculiar às singularidades e ao mesmo tempo em um formato universal de linguagem do movi-mento, que nos alinhou e revigorou nossos propósitos. Saímos alimentados!Este encontro entre Angel, Lola Brikman e Vocacional Dança, rompeu barreiras de gerações. Foi uma lição viva da história da dança, que reafirmou a importância do trabalho que desenvolvemos no programa e a responsabilidade desta continuidade de fazeres que já faz parte do cotidiano de cada um de nós como artistas orientadores, mergulhados neste aprendizado constante e envolvidos profundamente na dança da vida.

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ensaio sobre a inquietude Irani Cippiciani Vocacional Dança

Andar é escolher o que se ver

Caminhar é a prerrogativa maior da existência humana. Estamos fadados inexoravelmente à mudança ainda que contra nossa vontade. Na arte essa afirmação se torna ainda mais contundente. Um artista que não caminha, que não aceita a mudança como a base do seu processo de criação e investigação cênicas, fica estagnado. Preso a modelos e estéticas que não se transformam e não dialogam com seu tempo e espaço.Assim, a maior virtude a ser cultivada por um artista deve ser a da inquietude: a capacidade de colocar-se em perpé-tuo movimento investigativo contra a constante tendência da acomodação na famigerada “zona de conforto”.A inquietude, não é, portanto, um defeito, mas uma virtude das mais desejadas. Quem está em movimento, mantém-se desperto e alerta. Não se contenta com o já alcançado e continua procurando por novos problemas e não por no-vas soluções. A arte nasce do conflito e da necessidade de encará-los, não de solucioná-los, necessariamente. Dessa forma, acompanhar a trajetória de artistas inquietos é a melhor forma de inspirar-se e ganhar coragem para assumir esse compromisso e essa responsabilidade, com a mudança e a transformação em nossas próprias trajetórias artísticas e pedagógicas.O Vocacional pode ser um espaço de inquietude? Em que medida essa inquietude está presente em nossas ações e palavras? O quanto nos permitimos ousar e caminhar por lugares ainda pouco explorados e habitados?Ver uma figura incrível como Angel Vianna narrando sua trajetória nos permite avançar muito nessa reflexão. O quanto é necessário avançar sempre, mesmo quando já se tem muito. Uma arte viva não pode estagnar no conforto do “reconhecimento profissional” ou ela morre. Isso Angel e Klauss sempre fizeram. Vê-la ali falando me fez pensar em quanto ouso ou em quanto me arrisco nos processos com os vocacionados e o quanto fico na zona de conforto do já construído, do já identificado.Foi, sem dúvida, um sopro de inspiração e ânimo.No primeiro ensaio, eu falava sobre o “olhar inquieto”. Hoje falo sobre o “artista inquieto”. Cada vez mais me cer-tifico de que sem essa qualidade fundamental de mover-se e questionar-se sempre, não há crescimento possível.

Angel Vianna e a gênese de uma dança democrática

Tatiana Guimarães Vocacional Dança

A experiência de escutar a Angel falar sobre seu trajeto pro-fissional e artístico foi comovente e enriquecedor em diver-sos aspectos. No entanto, o que mais me chama a atenção é a instauração de uma linguagem de corpo democrática no Brasil, especialmente no momento em que promovo uma relação mais imediata com o Programa Vocacional.Ouvi-la falar deste assunto é como acompanhar a gênese de uma dança que deixa de ser elitizada, para poucos, e passa a ser para todos. Obviamente, neste movimento, o próprio sentido do dançar se modifica e só a partir daí um projeto como o Dança Vocacional se torna possível. Saí-mos, então, do âmbito puramente da beleza e da técnica e ingressamos na dança enquanto descoberta e comunicação de uma individualidade seja ela qual for. Se nesse processo a dança passa a ser igualmente bela, é porque é única e de cada um. Hoje em dia toda essa discussão pode se tornar clichê e vazia de significado, mas, contemplar a descrição do momento em que surge e da revolução que deu-se a par-tir dele, acima de tudo vinda da voz de sua precursora, é uma injeção de vida na prática desenvolvida no dia a dia de trabalho em sala. Esta dança democrática desencadeia outros temas altamen-te presentes em nossa atuação dentro do Vocacional, assim como novas problemáticas. Por exemplo, quando Angel Vianna descreve o ingresso de uma aluna com epilepsia na sua sala e a mecânica que ela instaura para recebê-la, onde todos da turma se tornam igualmente “responsáveis” por essa opção – lida com um processo de grupo emancipató-rio, possivelmente, antes mesmo que esse tema se tornasse estabelecido como um fundamento da prática pedagógica. Além disso, novos conflitos se formam, como o estado de movimento constante no qual nós, artistas-orientadores, devemos nos manter para lidarmos com a heterogeneidade presente nesta tal prática democrática. Neste sentido, como diz o grande parceiro de Angel Klauss Vianna, “Era sempre um conflito e com o conflito surge o movimento”1.Novas possibilidades, caminhos e transposições se criam, tornando mais rico e abrangente, o processo pedagógico e suas dinâmicas em sala.A dança Vocacional é fruto direto da atuação das revoluções que Angel e Klauss Vianna desencadearam, não só na dan-ça, mas em todas as linguagens artísticas em que o corpo é fonte de experimentação. Este corpo, - não mais aquele

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corpo de medidas fascistas, que permitia que um professor pudesse falar para um pai “seu filho gosta da dança, mas, a dança não gosta do seu filho”, hoje têm suas particularida-des e promove uma dança única e individual. O encontro com Angel vem pra dizer que essa ideia não deve ser es-vaziada, porque foi conquistada a base de muita coragem, suor e generosidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. VIANNA, Klauss. A Dança, página 92.

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Segundas impressões Verônica MelloVocacional Teatro

Só dez por cento é mentira. O resto é invenção(Manoel de Barros)

dE COmO Os nós FORAm PARAR nA lAPA. Ou A busCA dE umA nARRAtiVA CêniCA

Ela veio chegando com passos seguros. Um olhar em volta a fazia relembrar a transformação daquele lugar. mas era, ainda assim, reconfortante estar ali mais uma vez. Eles vinham de muitos lugares. Alguns já havia estado ali e sentiam-se como ela: em casa. Outros pisavam pela pri-meira vez naquelas terras nunca antes visitadas. Assim se deu o primeiro encontro. Outros encontros se sucederam. O que os unia? O que os trazia para aquele lugar todas as se-manas? E aqueles que desistiam? O que tinha desamarrado o nó? Ou este ainda não existia?Ela se questionou diversas vezes. Não sabia responder. Muitas vezes era assim. Mas será que precisava? Continuou pensando. Passando. Pisando. Ando. Andando. Será que ela notava os desejos deles? Ela continuava mesmo assim. Aquele terreno parecia muito fértil. Tinha desejos de passar por lugares que ainda não tinha passado. Buscando prazer em orientar caminhos. E caminhou por ali procurando manter os nós.No início, apenas um jogo. Depois, uma ideia de pesquisa, uma indicação. Ela percebia que eles ainda eram um, outro, mais um. O nós ainda não tinha aparecido nessa história. Mas ela queria tentar reunir cada um, para juntos quem sabe... Os NÓS. Amarra, prende, não solta com facilidade, pode virar laço. Cada um teria o seu. E a ideia seria essa: partir de cada um.E assim foram trazendo nós. Desses nós surgiu um desejo de uma. Trouxe a vontade de interferir na rotina de outros. Mudar pontos de vista com uma flor. Seria possível trans-formar o olhar deles que vivem na máquina do dia a dia? Uma pergunta deveria estar dentro da flor causando curio-sidade e provocando quem a recebesse. Todos aceitaram

como se deles fosse aquele nó. Mas como fariam? Qual seria a pergunta de cada um? Seria isso uma ação artística?Eles então se lembraram dos próprios nós: poderiam se unir e talvez... NÓS? Criaram partindo disso e foram pra rua. Lá, os outros que ali passavam, tiveram diversas reações. Aqueles estranhos distribuindo dúvidas modificava algo? Muitas vezes eles pareciam invisíveis. A invisibilidade provocou o desejo de ampliar o jogo, criar brigas, cenas... As brigas foram bem vistas. Olhares disfarçavam a curio-sidade. Mas olhavam. E a flor? Outro que passava não quis receber: a briga tirou-o do jogo. E uma cena se configurou: ele solitário tentando entregar uma flor e ninguém... Ele era invisível de novo.Outro percebeu a cena e esperou sua vez de receber. Um novo outro comentou com outra que aquilo podia ser teatro. Mais outros passavam e não viam...Eles pareciam não perceber o que os outros estavam fazen-do. Até eles tinham se esquecido de suas flores? A ansie-dade ameaçava afrouxar os nós. Não se ouviam. Ou viam? Queriam fazer, fazer, fazer. Quase no final ouviram: isso é a Lapa mesmo! Referiam-se a uma quase briga encenada por um de nós... Já seríamos NÓS?Uma pergunta de nós surgiu retumbante: o que seria a Lapa mesmo?E aquele som continuou tocando os ouvidos: isso é a Lapa isss é La La messsss isss lapa pa momesmo? ahñ?E lá se foram. Um a um, juntando os nós de cada um. Tinham uma questão a resolver. Um foco. Um desejo de descobrir. De inventar verdades e mentir um pouco como Manoel. Haveria de ser um encontro bem rico: os nós chegariam à Lapa!Teriam encontrado o fio da narrativa para formar o NÓS?

GEOGRAFiA CEntRO

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imagens

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Fotos: Berenice Farina

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Fotos: Berenice Farina

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Foto: Gabriela Flores

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Fotos: Gabriela Flores

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Fotos: Sulla Andreato

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Fotos: Sebastião Bazotti

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Fotos: Wilson Julião

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Fotos: Juliana Calligaris

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Fotos: Berenice Farina

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Fotos: Berenice Farina

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Fotos: Talita Caselato

Foto: Roger Muniz

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Foto: Kauany Vitória Albuquerque Silva

Quadrinho: Isabelle Benard

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Depoimento: Girlene Bonifácio dos Santos

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Programas Artísticos da divisão de Formação Equipe 2012

Foto: Sulla Andreato

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Divisão de Formação

DiretorAmilcar Ferraz Farina

Programa Vocacional

Coordenador GeralAmilcar Ferraz Farina

Coordenador AdministrativoIlton Toshiaki Hanashiro Yogi

EquipeGilmar China Kane Bueno de Souza LeiteMercedes Cristina Rocha SandovalBeatriz Salles LimaMelca Medeiros

Coordenadores Artístico-PedagógicosAdriana Macul Lemos da SilvaAdriano de Carvalho BatistaAna Flavia ChrispinianoBerenice Farina da RosaCintia Campolina de OnofreClaudia Palma da FonsecaDouglas Clemente de SouzaEliana Claudina MonteiroGabriela Flores NunesIpojucan Pereira da SilvaIrlainy Regina MadazzioIsabela Fernandes de SantanaIvan Delmanto Franklin de MatosJosé da Silva RomeroJosé Leonel Gonçalves DiasLuciana BortolettoLuciano GentileLuiz Claudio CandidoMara Heleno FernandesMarcelo Francisco do NascimentoMarco Antonio Ramos Borneo de AbreuMelissa Migueles PanzuttiMiriam DascalOdino Fineo de Andrade PizzingrilliPatricia de Almeida ZuppiPaula Francisco SallesPaulo Sergio Fabiano de OliveiraRoberto Tadashi KonoRobson AlfieriRobson Batista FerrazRogerio Dias da SilvaSuzana Schmidt ViganóVanderlei Baeza LucentiniVânia de OliveiraWilson Julião da Silva JuniorYaskara Donizeti ManziniZina Filler

Artistas OrientadoresAdriana Augusta ThomazAdriana CognolatoAdriana GerizaniAishá Lourenço Francisco

Alan Albert ScherkAlcides RibeiroAlda Maria Soares Abreu AlvesAlejandro Javier López JericóAlexandre Andreas Achcar TripicianoAlexandre Costa BleinatAlexandre Ferreira Dal Farra MartinsAline de Oliveira FerrazAmanda de Oliveira DoriaAna Maria de AndradeAna Patricia Vasconcellos SharpAnabel AndresAndre Luiz Madureira Ferreira FilhoAndre Ricardo de OliveiraAngélica Reny Guimarães RovidaAntonio Cassio CastelanAntonio de Mattos CabralBruna Rodella SoaresBruno Alexander Pereira de MacedoCamila Andrade de SouzaCarla Casado SilvaCarlos Eduardo Campos SerejoCarlos Humberto Mendes BiaggioliCarmen Pinheiro da SilvaCarolina Nicolino MinozziCarolina Nóbrega SilvaCibele Francisca BissoliCintia Harumi Sauer MatsudaCintia WartuschClaudia Aparecida PolastreClaudinei Gomes FernandesCleber de Carvalho LimaCleber Wilhans SpolleCristina D’avila Mello KehdyDaniel DiasDaniela SchitiniDanilo Caputo DortaEdilson Castanheira de SouzaEduardo Pereira dos SantosEgelson Jose da SilvaElenita Borges de Queiróz BernardiEnoque dos Santos SobrinhoErica Barcelos TessaroloFabiana Maria SilvaFabio VillardiFabiola Camargo Figueiredo SilvaFernanda Carla Machado de OliveiraFilipe Brancalião Alves de MoraesFlavio da Costa CamargoFloriana Danesi BreyerFrancisca da Penha SantosGabriela Villaboim de Carvalho HessGeraldine QuagliaGianni Maria Filippo PuzzoGiselle Loiacono Ramos de AzevedoGuilherme Coelho de Araujo Goes

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Hercules Zacharias Lima de MoraisIeltxu Martinez OrtuetaIrani da Cruz CippicianiIsabelle BernardIvo Thadeu Batista de AlcantaraJean-Jacques Armand VidalJefferson Paulo MoreiraJoão Batista Ferreira JuniorJosé Guilherme Carlos de AlmeidaJosefa Pereira da SilvaJudson Forlan Gonzaga CabralJuliana Pablos CalligarisJunior Cleiton GonçalvesKleber Luiz de PaulaLara Pinheiro VieiraLarissa Salgado de OliveiraLarissa Verbisck Alcântara BonfimLeandro Garcia e Garcia Hoehne Peres PolatoLenilson Pereira RodriguesLeonardo da Cunha BarrosLeonardo Oliveira MoreiraLiana Zakia Martins FedericiLigia Helena de AlmeidaLigia Rodrigues BotelhoLina Paola Gomez AriasLindberg Fernandes Silva JúniorLourival MirandaLucas Keese dos SantosLuciana Abel ArcuriLucimeire dos Santos MonteiroLuis Fernando Cerveira ReysMaira Daniel Vaz ValenteMarçal Henrique da CostaMarcelo de Andrade MeloMarcelo de OliveiraMarcio Dantas SilvaMarcio Luiz PimentelMarco Alexandre Bernardes PereiraMargareth Maiello MendesMaria Emilia FaganelloMaria Regina dos SantosMaria Silvia AltieriMaria Tatiana do Monte OliveiraMariana Vaz de CamargoMarilene Aparecida Martins GramaMarilia Adamy Cezar RaspantiMauricio Augusto Perussi de SouzaMauro Jose dos Prazeres JuniorMayki Fabiani OlmedoMichelle Farias de LimaMonica Augusto da SilvaMonica RodriguesMorgana Silva de SousaMurilo de Paula SouzaNaloana de Lima CostaNatalia Augusto SilvaNathalia Biavaschi GlitzNathalia Catharina Alves OliveiraOdair Roberto PradoOsmar Tadeu FariaPatricia GiffordPaula Maria Garulo y KleinPedro Eduardo da Silva

Pedro Felicio de OliveiraPéricles Martins da SilvaPriscila Luz Gontijo SoaresRafael Tadeu MirandaRaimunda Maria Moura da SilvaRaoni Felippe GarciaRaquel Anastásia SimoniRenato Fagundes VasconcelosRicardo de Almeida ValverdeRoberta Cristina NininRoberto Carlos MorettoRodrigo Batista de OliveiraRodrigo Campos de OliveiraRogerio Luiz PereiraRubia Crislaine Maura BragaSebastião BazottiSoraya AguilleraStella Maris SperaTatiana Leme GuimarãesTatiana Melitello WashiyaTelmo Rodrigues RochaThaís Caroline Póvoa BalatonThais Ponzoni dos SantosThiago Arruda LeiteTiago Cavalheiro Mantovani GatiValéria Ramos LauandValter Nunes de Sant AnnaVanise Susane CarneiroVeronica Pereira PintoWilma de Souza

PIÁ

Coordenadores RegionaisCelso Amâncio de Melo FilhoIsabelle BenardKarin Virginia Rodrigues GiglioRoger Muniz

Coordenadores Artístico PedagógicosAntonio Francisco da Silva JuniorBarbara Alves Gondim de FreitasBeatriz Aranha CoelhoBruno César Tomaz LopesEdicléia Plácido SoaresFabiana Kleufer Adamo PradoFábio Amadeu PupoJanete Menezes RodriguesJoão Batista Ferreira JúniorJulia Barrera SalgueiroLiliana Elisabete OlivanMaria Rita Amaral da SilvaPriscilla Vilas BoasRobson Batista FerrazSimone Laiz de Morais LimaZina Filler

Artistas EducadoresAdriana Amaral dos SantosAdriana Freires AragãoAdriano Gregorio Castelo Branco AlvesAila de Barros Rodrigues

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Alexandre Mandu da SilvaAna Maria Dubraz da Costa AndréAndré Ricardo de OliveiraAndrea Lucia RochaAndressa Carolini FrancelinoBeatriz Campos FariaBruna Rodella SoaresCarlos Rogerio Eustachio da Silva Cupertino AmorimCarmen Pinheiro da SilvaCatarina Gomes São MartinhoCintia Harumi Sauer MatsudaCristiane Madeira MottaDaniel FreitasEduardo Henrique BartolomeuElenita Borges de Queiroz BernardiHenrique Ramos ÁvillaIldo Rogério Alves da SilvaJônatas Dias BarbosaJosé Guilherme Carlos de AlmeidaJuliana Rosa de SousaJúlio César Lopes MachadoKarime NivoloniLarissa Verbisck Alcântara BonfimLaura Marques de Souza SalvatoreLeonardo da Cunha BarrosLindberg Fernandes Silva JúniorLuis Vitor MaiaMárcio Soares Beltrão de LimaMaria Fátima de MirandaMarilia Barreira FurmanMarko Aurélio WegnerMorgana Silva de SousaRicardo Alessandro Dutra GarciaSamara Aparecida CostaSebastião BazottiSuzana Schmidt ViganóTalita CaselatoTelmo Rodrigues RochaThais Hangai UshirobiraValéria Berti ContessaValéria Ramos LauandVanessa Biffon LopesVerônica Silva Pereira

Pontos de AtuaçãoAldeia KrukutuAldeia Tenondé-PorãAldeia Tekoa YtuAldeia Tekoa PyauBiblioteca Afonso SchmidtBiblioteca Alceu Amoroso LimaBiblioteca Álvares de AzevedoBiblioteca BelmonteBiblioteca Cassiano RicardoBiblioteca Cora CoralinaBiblioteca Hans Christian AndersenBiblioteca Marcos ReyBiblioteca Monteiro LobatoBiblioteca Narbal FontesBiblioteca Nuto Sant’AnnaBiblioteca Paulo SetubalCasa de Cultura Butantã

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VOCARE 2012 Revista do Programa Vocacional96

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