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que som PROJETO EXPERIMENTAL EM JORNAL PUCRS - 2011/1 - MANHÃ

Você Ouve Que Som

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Realização da Disciplina de Projeto Experimental em Jornal (Manhã) Famecos/PUCRS - 2011/1 Professor Responsável: Alexandre Elmi Editores: Marcelo Fontoura, Ana Luiza Bitencourt, Tiago Rech, Andressa Canto, Joana Weit, Luiz Antonio Barbará. Reportagem: Roberto Stone, Bruna Scirea, Júlia Otero, Douglas Fortes, Fernanda Wenzel, Gabriela Cantergi, Gustavo Schwetz, Mariana de Ávila, Roberta Cabreira, Melissa Maciel. Fotografia: Karen Vidaleti, Juliana Arias. Diagramação: Augusto Brusch, Mariano Jacques. Planejamento Gráfico: Renan Sampaio

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que som

Projeto exPerimental em jornalPucrs - 2011/1 - manhã

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Índice

Editorial 05A cidade que não se escuta 06

O som que aos poucos desaparece 18Efeitos dos sons na mente 24

Minutos de silêncio 28O som onde se faz o som 39

Nascidos com o tom 50

As primeiras palavras

Sinos, fala contida ou estridente?

O barulho que envolve o trabalho

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O movimento constante das pessoas impede que elas reparem nos sons do centro de Porto Alegre

CENTRO

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Karen Vidaleti

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editorial

Você ouve que som? A pergunta pode ser respondida de muitas formas. Afinal, o som é simplesmente a propa-gação de uma frente de compressão mecânica ou onda mecânica, de forma circuncêntrica, em meios materiais. Você, que escuta som, o que escuta? Ruídos da natureza, barulhos da cidade, música, música alta, chata, irritante, relaxante, animada, eletrizante, fala, conversas, gritaria, pensamentos inces-santes, silêncio. Tudo é som, tudo está entre nós dia após dia.

O objetivo desta publicação é este: descobrir, ou melhor, investigar que sons são estes que você escuta. Que sons passam por todos nós. Uma exploração pelos vários âmbitos do mundo sonoro, que, afinal de contas, é o mundo cotidiano mesmo. Como as ondas sonoras, que vagam sem con-trole e sem limite de características e intenções, também não impusemos fronteiras para o que seria abordado aqui. As reportagens sugeridas, feitas e editadas pela equipe, tinham de cum-prir apenas um requisito: envolver a relação humana com o som.

A matéria A cidade que não se escuta, por exemplo, é um relato com-pleto e bem estruturado sobre a surdez

das autoridades para os altos níveis de ruído que Porto Alegre gera. Pontuando a reportagem, os relatos de moradores e de um deficiente visual, que tem uma relação diferente com o barulho urbano, uma vez que necessita dele para ter referências e se locomover.

Já a reportagem O som que aos poucos desaparece trata de um grupo de sons mais ancestral para a condição humana: a linguagem. Muito além de possibilitar a comunicação e o entendi-mento, os idiomas carregam consigo a cultura e a história dos povos. Assim, a matéria detalha a trajetória de três línguas: o Ídiche, o Hunsrückisch e o Es-peranto, que têm em comum a contínua perda de falantes.

Mas falar de som é abordar tam-bém a ausência dele. É o que faz o relato Minutos de silêncio. O repórter visitou um centro de meditação budista, em meio ao caos urbano da cidade. Um oásis que aqueles envoltos em barulho procuram para poder ter calma e re-flexão.

Apesar de silenciosas por definição, estas páginas carregam mui-tos sons. Abra-as e escute-as. Elas têm muito a dizer. Depois, tente responder: que som você ouve?

Para todos escutaremexPediente

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

Faculdade de Comunicação Social (Famecos)

ReitorJoaquim Clotet

Vice-reitorEvilázio Teixeira

Diretora da FamecosMágda Cunha

Coord. do curso de JornalismoVitor Necchi

Realização da Disciplina de Projeto Experimental em Jornal (Manhã)

Professor ResponsávelAlexandre Elmi

EditoresMarcelo FontouraAna Luiza Bitencourt

Tiago RechAndressa CantoJoana WeitLuiz Antonio Barbará

ReportagemRoberto StoneBruna ScireaJúlia OteroDouglas FortesFernanda WenzelGabriela CantergiGustavo SchwetzMariana de ÁvilaRoberta CabreiraMelissa Maciel

FotografiaKaren VidaletiJuliana Arias

DiagramaçãoAugusto BruschMariano Jacques

Planejamento GráficoRenan Sampaio

Avenida Ipiranga, 6681 - Prédio 7Porto AlegreRS/Brasil

www.pucrs.br/famecos

2011/1

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Foto de capa: Juliana Arias

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texto Bruna Scirea e Júlia otero fotoS Bruna Scirea, Júlia otero e Juliana ariaS

afalda trata de assuntos profissionais quando é interrompida pelo toque do telefone. 90dB. Daniel passeia pelo centro da cidade em que mora quando tem a atenção desviada pelo apito. 102dB. Mafalda Locuno é chefe da equipe de sete pessoas responsáveis pelo controle da expressão sonora de 1,4 milhão de habitantes da Capital. Daniel Cardoso é deficiente visual. Mafalda mede a rotina de trabalho por queixas de moradores cansados de escutar. Daniel calcula os passos pelo que ouve. “Se me perguntares, eu não sei dizer qual o lugar mais barulhento da cidade”, sentencia Mafalda. Calado, Daniel perde-se, às 9h de uma quinta-feira, nas vozes de um protesto em frente à prefeitura de Porto Alegre.

Ana Touguinha mora há 25 anos na Cidade Baixa, bairro da capital gaúcha reconhecido pelas noites agitadas. Na última década, tem dormido menos. Principalmente nos finais de semana, todo o som acumulado na esquina da Rua da República com a Lima e Silva não pede licença. Sem convite, invade as janelas do sexto andar do edifício em que mora. “Eu já questionei a Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (Smic) sobre o número de alvarás para casas noturnas distribuído no bairro. Mas nunca obtive resposta”, lamenta. A Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam), órgão sobre o qual recai a maior parte das notificações referentes à poluição sonora da cidade, afirma poder atuar

somente em três esferas. O barulho que tira o sono, no entanto, não vem de uma atividade comercial, industrial ou prestadora de serviço. Mas da orquestra descompassada que rege a vida noturna.

A solução encontrada pela funcionária pública foi gastar mais de R$ 5 mil em vidros com proteção acústica, que não resolveram todo o problema. Rodrigo dos Santos, capitão do Comando de Policiamento Ambiental da Brigada Militar, resume como funciona a fiscalização do som: “Não existe poluição sonora sem que alguém se sinta incomodado”. Ana ergueu a voz. Reclamou. Mas Porto Alegre parece ter tapado os ouvidos para o barulho que produz.

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A cidade que não se escuta

Porto Alegre desconhece o ruído que produz. Neste caos, reclamar nem sempre adianta. É tolerar ou sofrer.

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A cidade que não se escuta

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A cidade vibra e não sabe como. Em 2006, com o objetivo de identificar os pontos críticos de ruído, a Smam deu início a um mapeamento sonoro de Porto Alegre. Em mãos, o levanta-mento aprimoraria o código de edifi-cações e respaldaria decisões referen-tes ao crescimento urbano. O estudo concluído viabilizaria até uma nova distribuição de alvarás. Hoje, segundo o site da Smic, existem quatro esta-belecimentos registrados como casas noturnas e dez cadastrados como ba-res em toda a Cidade Baixa. Porém, ao caminhar por apenas duas quadras da Rua João Alfredo durante a noite, pode-se encontrar aproximadamen-

te 30 portas convidando para entrar. Talvez, se a pesquisa estivesse pronta, os órgãos públicos saberiam que Ana, fisiologicamente, não suporta o resul-tado de tantas fontes de barulho. Paz não seria um privilégio. O software foi adquirido em 2010 e, até então, mais de 400 pontos foram medidos. Para implantação do projeto, é preciso tem-po e pessoas, requisitos que a secreta-ria afirma não ter. “Somos em quatro na equipe técnica e quatro estagiários para atender toda Porto Alegre. Somos responsáveis por emitir licenciamento ambiental, vistoriamos nos três turnos e ainda temos de fazer o mapeamento de ruído. Somos poucos e a demanda é

Convidamos Daniel Cardoso, deficiente visual, a nos contar como percebe a cidade por meio dos sons. Com ajuda de um decibelímetro, medidor de ruído, passeamos por pontos característicos de Porto Alegre. Acompanhe nosso trajeto:

Passeio sonoro

“Sei que estou perto da rodoviária quando passo pelo som abafado do túnel da Conceição. O barulho do trânsito é muito alto”.

85dB

8hRodoviária

“Parece um shopping. A diferença é o som do trânsito. Tem um colega meu do outro lado da rua”. (nota um outro cego pelo barulho da bengala)

75dB

8h30Voluntários da Pátria

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muito grande”, justifica Mafalda. No mundo das intenções, o projeto tinha um prazo de conclusão: 2012. Mas parece que o sossego vai ter de esperar.

A barulhenta metrópole transtorna e desorienta quem depende do som para sa-ber onde está. Na quinta-feira, 28 de abril de

2011, Daniel saiu de casa com um objetivo: testar como a agitação desordenada, como o barulho não documentado de uma cidade pode interferir no cotidiano da população. Aos oito anos, sofreu um descolamento de retina. Aos 35, entende o mundo através das vozes, dos passos e da sonoridade que o cer-ca: “O som é a base de tudo, através dele eu reconheço um ambiente. É 80% da minha sensibilidade”. Às 8 horas, sem notar a dife-rença de luz ou cor, sabia onde estava quan-do percebeu o trânsito abafado pelo Túnel da Conceição. Na primeira parada do trajeto, Daniel mergulhava nos 85dB da rodoviária. Apesar do intenso ruído, ainda tinha certeza de onde estava: “Nossa tendência natural é a todo o momento tentar se localizar”.

Som e ruído poderiam ser definições absolutas, não fosse a subjetividade do julga-mento humano. “É muito relativo dizer o que é um som agradável e o que é um barulho, porque envolvemos sempre um gosto pesso-al”, explica o físico Cássio Moura. O encanto, então, não é o mesmo para todos. Até uma escala de números fixos, como os decibéis que medem o volume do som, depende da sensibilidade do ouvinte. O limite da audição humana é 120dB. A lei, porém, não estipula um valor máximo de ruído permitido. O som ambiente é caracterizado pelo som habitual do local. Já o som perturbador seria aquele adicional. Como se, de um dia para o outro, uma nova danceteria fosse aberta ao lado da sua casa.

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“Um ambiente amplo. O som se dissipa e fica mais leve. Estou no Mercado Público. Escuto as facas sendo afiadas e os murmurinhos vindos das bancas”.

68dB

9hMercado Público

“Aqui tem um barulho característico. E não são os pássaros, mas o som do ar condicionado do Banrisul”.

64dB

9h40Praça da Alfândega

“Estamos em um lugar tranqüilo. Um parque, com árvores, espaçoso. Não escuto o barulho do Guaíba, mas sei que esta-mos no Gasômetro”.

50dB

10h30Usina do Gasômetro“Tentei prestar aten-

ção no protesto e me dispersei do caminho. Perdi a orientação”.(Daniel perde as refe-rências com o som de um apito de 102dB)

80dB

9h30Prefeitura

“Pelo silêncio, sei que estamos em um local de estudos, talvez uma biblioteca. É grande, ouço o eco”.

58dB

10hCasa de Cultura Mário Quintana

Se me perguntares, eu não sei dizer qual o lugar mais barulhento da cidade

Mafalda locuno, chefe de MapeaMento Sonoro da capital

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A lei considera poluição sonora quando, dentro da propriedade incomodada, o baru-lho perturbador provoca a adição de 5dB ao som ambiente. Se as suas noites de paz ti-nham 60dB, um ruído acima de 65dB já seria caracterizado como poluição sonora. Digna, portanto, de reclamação formal.

O problema é definir o que é som am-biente. A Cidade Baixa, por exemplo, tinha um ruído de fundo menos elevado dez anos atrás. Hoje, as casas que tornam o bairro um destino certo nas noites porto-alegrenses elevaram esse som tido como normal. Se Ana dormia ao silêncio de 50dB, hoje cochila ao ruído de 70dB. Mas isso não é poluição sono-ra – ao menos não oficialmente. Para poder

reivindicar pelo sossego, seria necessário que uma fonte fixa, ao lado da casa dela, com nome, dono e alvará acrescentasse ínfimos 5dB de transtorno. No entanto, a reclamação

de Ana é do próprio ruído de fundo: da movi-mentação das ruas, do trânsito e do barulho produzido por todos os estabelecimentos comerciais abertos nas madrugadas de sexta e sábado. No caso de Ana, 5dB já não fazem diferença.

Para que um novo estabelecimento não interfira na vida dos moradores, a Smic exige uma série de requisitos ao empreendedor. Entre eles, a licença ambiental cedida pela Smam. “É uma ação preventiva. Nós estipula-mos as condições para que não haja incômo-do em relação ao volume Se funcionar depois das 22 horas, por exemplo, ele tem de ter um sistema de proteção acústica”, esclarece Ma-rília Barum, supervisora de Meio Ambiente. Mas a determinação não foi rigorosa para os bares vizinhos de Kety Mattana, proprietá-ria de um apartamento na João Alfredo. Há seis anos, dois bares sem isolamento acús-tico instalaram-se logo abaixo do berço de sua filha, então recém-nascida. Juntamente com sua vizinha de porta Luísa Schuch, Kety prestou queixa na Smic. O bar foi interditado por não ter isolamento acústico, o que, para Marília Barum, era um pré-requisito.

Os bares no andar de baixo de Kety ade-quaram-se. Funcionam até meia-noite, não têm mais música ao vivo e possuem prote-ção acústica. “O maior problema hoje é que os bares distribuem copos plásticos para o pessoal beber na rua. Então, acaba que o barulho não vem de um bar específico, mas das pessoas que ficam bebendo fora dele”, lamenta. E quando consegue pegar no sono, é acordada mais uma vez: “Às 5 horas da ma

O som é a base de tudo. Através dele eu reconheço um ambiente

daniel cardoSo, deficiente ViSual

Barulho da rua na noite é queixa recorrente dos moradores da Cidade Baixa

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nhã, quando parece que tudo acabou, passa o DMLU com seus carrinhos de me-tal”. A rua não dorme. Os moradores também não.

O controle do ruído da vida, o som da comunidade nas ruas, é responsabilidade do Comando Ambiental da Brigada Militar. “Muitas das nossas ações não configuram como crime de poluição sonora, mas como perturbação do sossego público. Para que seja um crime ambiental, deve ser compro-vado o dano que o ruído efetivamente cau-sou à saúde humana”, expõe o capitão Ro-drigo dos Santos. Os malefícios podem não ser visíveis, instantâneos ou espontanea-mente declarados, mas a reportagem ouviu mais de um relato de uso de tranqüilizantes para dormir. Um dos moradores da Cidade Baixa afirmou, inclusive, a dependência de medicamentos de tarja preta. Os remédios deixaram de ser apenas um alívio imediato. Talvez, sem que a Brigada se desse conta, o ruído noturno tenha se tornado um crime à saúde pública. Mas o barulho foi banalizado. “Os brigadianos não vêm mais aqui quan-do chamamos. Só se aparecer alguma coisa anormal, tipo um carro de som ou uma briga de rua. Um barulho muito alto”, relata.

“Quando o som é muito alto, confunde. É muita coisa para se pensar ao mesmo tem-po”, explica Daniel. Por outro lado, se a vida fosse muda, o deficiente visual não daria um passo. Nas ruas, através do que ouve, reco-nhece um caminho tracejado mentalmente.

Mas, quando soa o apito de 102dB em um protesto, na quinta-feira, em frente à

Jovens bebem não apenas em bares, mas também nas ruas do bairro

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truído se apaga. Um mapa de cheiros e sons que conduzia Daniel entre as lojas da Voluntários da Pátria, onde confirmava a presença de outro cego pelo toque da ben-gala no chão, é destruído. Ele precisa do en-contro dos sons. É a partir dessa base sonora que sabe que chegou em um cruzamento, onde o trânsito, munido de motor, buzina e potência sonora, determina o momento em que o pedestre pode avançar.

A fiscalização do nível de emissão de ruído produzido por veículos compete aos órgãos de trânsito municipais, assim define o Código de Trânsito Brasileiro. A Empresa Pública de Transporte e Circulação, EPTC, interpreta a lei apenas no que diz respeito à emissão sonora de cada veículo individu-almente. A empresa fiscaliza se o veículo abordado emite algum ruído fora do comum, como problemas de escapamento e música alta. O som agravado pelo conjunto de car-ros que passam normalmente pelas vias não é medido. Para a EPTC, é responsabilidade da Smam a inspeção da poluição sonora ge-rada pelo tráfego. “Essa vistoria é feita nas estações de medições que a própria Smam tem na cidade”, afirma Carlos Pires, gerente de fiscalização da EPTC. A Smam devolve a cobrança. “Veículos é com a EPTC”, rebate Marília Barum.

Longe dos carros, bares e da movimen-tação que enlouquece Ana, Kety e Luísa, Da-niel chega aos reconfortantes 50dB da Usina do Gasômetro. No fim da manhã em que se dispôs a percorrer a cidade dos sons, ele en-contra o sossego. O direito de uma ausência.

Uma lacuna sem som. Daniel sequer ouve as águas do Guaíba, mas sabe que está ali. As-sim como Kety entende que a hora de dor-mir sempre virá acompanhada do som da rua. Quando a noite fica insustentável, levan-ta da cama, enfrenta as escadas e conversa com o dono do bar. Ela já desistiu de recor-rer aos órgãos públicos. Após o passeio de três horas por tempestades sonoras, Daniel também se cansou. Como um mérito, reflete como é bom escutar o quase nada. Sensação que Ana, na própria casa, acostumou-se a não ter. Um sofrimento não calculado. Uma necessidade de paz. Mesmo quando o abu-so sonoro é considerado um mal necessário ao desenvolvimento caótico e ensurdecedor das cidades.

Som dBVozTrabalhoRuasAspirador de póDiscotecaBanda de RockBuzina de CarroMotocicletaDecolagem de aviãoTiro de revólver

50-6060-65 70-8090100110110120150150

Na CCMQ, o silêncio permite que Daniel reconheça o espaçoso ambiente

Na tabela, veja a quantos decibéis (unidades que medem a intensidade do som) o seu ouvido está sujeito:

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O volume das ruas

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É durante a gestação que o bebê inicia o contato com sons

As primeiras palavras

obó. Esta foi a primeira palavra que Caio Graffitti falou, aos dez meses. A avó, Ma-ria Gleci Fernandes Graffitti, ficou toda orgulhosa. Mas a mãe, Danuza Graffitti, sabe que o trabalho foi longo até que Caio chamasse pela vovó.

Desde o início da gravidez, Danuza conversou com o filho. Quando, ainda no útero, o menino estava agitado, a mãe o tranquilizava, pedindo para que dormisse. Depois que nasceu, a cada va-cina que Caio precisava tomar, explicava que a dor passaria rápido.

A fonoaudióloga Nina Paim Kloss explica que a comunicação entre os pais e o bebê inicia ainda na gestação. “A mãe grávida já conversa com seu fi-lho e o coloca dentro de um mundo de linguagem”, diz. Desde que é gerada, a criança absorve todos os estímulos re-cebidos. Conforme cresce, aplica no seu

desenvolvimento tudo o que recebeu desde o início.

Durante a gravidez, o som é funda-mental para estabelecer o vínculo entre o bebê e seus pais. “Como ele nunca viu o pai e a mãe, precisa de alguma forma saber quem são as pessoas que convi-veram com ele durante toda a gestação. Essa forma é a audição”, conta o médico ultrassonografista Raul Moreira Neto.

O feto já tem seu aparelho auditivo formado depois de 12 semanas dentro do ventre materno. Porém, ainda não escuta, porque o sistema nervoso aliado à fala só se desenvolve na 24ª semana. Durante toda a gestação, o ouvido está programado para captar ruídos mais graves. Os barulhos do ambiente e a fala das pessoas mais próximas são os sons mais ouvidos pela criança. “O nenê co-meça a reagir conforme o que ele escu-

ta”, afirma Moreira Neto.Nesta etapa, é muito importante

que o pai se comunique com o filho, conversando com a barriga. Isto porque o recém nascido é distanciado da mãe no momento seguinte ao parto, quando é encaminhado pelo pediatra para os exames médicos. O pai é quem acom-panha a criança e, se conversar com ela, conseguirá acalmá-la.

Foi neste momento que Nelson Riet descobriu que tudo o que disse na gravidez da esposa foi ouvido pela menina. Quando o pai de Valentina Riet, quatro anos, ficou sozinho com a recém-nascida, viu que a filha o reco-nheceu. “Ela ficou tranquila, parou de chorar”, diz. É importante que, na ges-tação, os pais escutem músicas calmas. Depois do nascimento, o nenê reconhe-ce e se sossega com o som.

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texto GaBriela canterGi fotoS Karen Vidaleti

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O contato entre os dois o acalma. Isso não tem ciência que explique

“As músicas clássicas, da época do Barroco, de quatro tempos, são ideais porque simu-lam exatamente os batimentos cardíacos”, conta Moreira Neto. O mesmo acontece com a leitura de histórias.

O choro é a primeira forma de comu-nicação do recém-nascido com o mundo. Quando posto no colo da mãe, o bebê para de chorar por dois motivos: um, devido à semelhança de cheiro e gosto entre o líqui-do amniótico e o primeiro leite materno; o segundo, pela relação mãe-bebê. “O contato entre os dois o acalma. Isso não tem ciência que explique”, fala o médico.

A psicóloga Regina de Faria Resmini ex-plica que, aos poucos, a mãe vai dando sig-nificado ao choro do filho. “O choro só pode ser avaliado conhecendo quem chora, com que freqüência chora e com qual intensida-de o faz”, diz Resmini. Nina complementa afirmando que é pelo choro que a criança tem suas conquistas e suas necessidades supridas: “ela vai perceber que quem chora, mama”.

O desenvolvimento do nenê deve ser incentivado, após o nascimento, através do som, da voz, da amamentação, dos cuidados e do olhar. O filho precisa se sentir olhado pelos pais. Se, no mínimo, uma destas neces-sidades não for suprida, em algum momento a criança demonstrará.

No percurso de descoberta da comuni-cação com o mundo, o primeiro passo depois do choro é o sorriso. O bebê com desenvolvi-mento normal começa a sorrir aos dois me-ses. Inicialmente, é somente um movimento muscular reflexo.

O elo do filho com a mãe é muito forte. É nele que a criança

encontra conforto e segurança

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raul Moreira neto, Médico

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em Porto Alegre, recomenda o aprendizado de outro idioma desde cedo. “Não queremos que eles só aprendam inglês, mas que apren-dam a gostar dessa segunda língua”, diz.

Aos dois anos, as crianças agregam um vocabulário com em torno de 200 palavras e formam frases de pequenos elementos. Aos três anos, conseguem relatar histórias pe-quenas. Cláudia Amorim, mãe de Ana Clara Amorim, três anos, conta que a menina se comunica muito bem e fala todas as palavras esperadas para a idade: “até palavras que eu não explico o significado, quando vejo ela está falando”.

Para os profissionais da saúde, conver-sar com o filho desde o início da gravidez, oferecer os estímulos de acordo com a idade da criança, aceitar o tempo do desenvolvi-mento de cada um e estimular o brinquedo é o principal para um crescimento saudável. “Brincar é o que permeia toda e qualquer aprendizagem que a criança pode ter na vida”, conclui Nina.

Conforme a criança percebe que seu es-pasmo deixa os pais felizes, o ato se transfor-ma em um movimento voluntário de agrado. O colo e o carinho são importantes demons-trativos de satisfação por parte dos genito-res.

Aos cinco meses, a criança inicia as brincadeiras com os sons. A conversa en-tre a mãe e o filho com repetição de síla-bas, frequência mais aguda e diminutivos é muito importante para o desenvolvimento da criança. Esta forma de comunicação, de-nominada pelos especialistas de “manhês”, capta mais a atenção do pequeno.

A partir dos oito meses, o bebê brinca com os sons, repetindo sílabas como ‘ma’ e ‘pa’. As pessoas que o ouvem é que darão sig-nificado às palavras, entendendo que o ‘pa’ é uma representação de ‘papai’. É preciso que alguém venha e faça uma marca disso que ele produziu.

É nesta fase que Matheus Maiocchi, nove meses, está. O menino, acostumado desde pequeno a escutar músicas e a ouvir as historinhas contadas pela mãe, Elenice Maioicchi, tem repetido as sílabas “ma-ma” com freqüência. “Parece que ele quer falar. Foi emocionante quando ele me chamou a primeira vez, na praia. Até já gravei”, confes-sa a mãe.

O filho vê que recebe um agrado dos pais conforme se inicia no mundo das pala-vras. Isso faz com que se arrisque cada vez mais na repetição das sílabas. A partir de um ano e meio, já está apto, inclusive, para o estudo de inglês. Fernanda Audi, pedagoga de uma escola de Educação Infantil Bilíngue

Com oito meses, o bebê começa a balbuciar sílabas, associando

sons a objetos ou pessoas

O feto ouve a partir da 24ª semana de gestação

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O som que aos poucos

m um universo de mais de 6 mil lín-guas e 7 mil dialetos, os fonemas nascem, reverberam, reformulam-se e chegam à extinção. A organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) aponta que mais da metade dos sons existen-tes estão ameaçados de desaparecer, por pressão das línguas dominantes, como o inglês e os idiomas oficiais dos países, e repressão social e política.

No Rio Grande do Sul, exem-plo brasileiro de caldeirão cultural, ainda é possível encontrar pessoas que cultuam as raízes dos povos co-lonizadores, reproduzindo a seus filhos o bê-a-bá dos ancestrais mis-turado às gírias e modos de falar atuais. Na Serra, em Bento Gonçal-ves e Caxias do Sul, a versão sul-bra-sileira do italiano, talin, prepondera.

A língua minoritária que é uma fusão do alemão com o holan-dês, dinamarquês e polonês, o plat-tdüütsch, chega aos gaúchos como o pomerano, falado na região das

Missões. Em cada canto do Interior, e às vezes em uma mesma cidade, escutamos o polaco, o lituano e o árabe. Já na fronteira do Estado, o Pampa une os brasileiros aos her-manos, e um castelhano portunhol é pronunciado na divisa geográfica.

Na Capital, entrevistamos fa-lantes remanescentes de idiomas em desuso que lutam contra o es-quecimento das falas. O advogado Ghedale Saitovitch celebra cada abraço fraterno no Bom Fim em ídiche, variante do hebraico. O pro-fessor Gerson Neumann batalha, ao som do hunsrückisch, pelo re-conhecimento do idioma dos co-lonos de ascendência germânica.

Já o professor Marcelo Stoduto acredita que a paz universal é uma questão de comunicação, que pode ser feita por meio do esperanto, lín-gua sem vínculo nacional, portanto, universal. A seguir, veja como estes praticantes de derivações linguísticas comunicam um legado em extinção.

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texto e fotoS Mariana de ÁVila

Desuso e preconceito ameaçam línguas, dialetos e variantes que expressam a história de gerações

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Não tenho com quem falar ídiche. Só com os velhos, como eudesaparece

O esperanto, projetado para ser universal, está fadado a páginas amareladas

Ghedale SaitoVitch, adVoGado

Karen V

idaleti

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Marcelo Stoduto, 28 anos, é professor concursado de Língua Portuguesa em Sapu-caia do Sul e presidente por dois mandatos consecutivos da Associação Gaúcha de Espe-ranto. Aos 12 anos, já falava esperanto e, aos 14 anos, dava aulas para grupos de 30 pes-soas: donas de casas, autônomos e engenhei-ros que frequentavam a mesma associação espírita que o garoto. “Hoje eu posso dizer que o esperanto faz parte da minha vida, ele me tocou profundamente como ideal de paz, o princípio está dentro de mim”. A língua ar-tificial, ou seja, estruturada independente de uma comunidade de falantes, foi iniciada e codificada em 1887 por Ludwik Lejzer Za-menhof, um polonês que buscava a comu-nicação plena entre os falantes dos mais de 20 dialetos na região onde morava, a cida-de de Białystok, no antigo Império russo.

O idioma traz a idéia de neutralida-de e independência em relação às demais línguas, razão pela qual em 1985 a Unesco solicitou que os países membros da organi-zação aderissem a ela. “Não cabe a questão em que país o esperanto nasceu. O esperanto deve ser adotado independente da cultura”, defende Stoduto. Tal variação lingüística também carrega o ideal de fraternidade, o que fez com que muitas religiões adotassem o esperanto para disseminar suas crenças.

Atualmente, calcula-se que há cerca de dois milhões de falantes no mundo e 10 milhões de simpatizantes. O ápice do mo-vimento esperantista no Rio Grande do Sul ocorreu na década de 70, com grande nú-mero de adeptos em congressos nacionais e regionais. A própria sede da Associação

Gaúcha, localizada no centro de Porto Ale-gre, já chegou a ter núcleos de estudo nos cinco dias da semana em turnos e níveis va-riados, com integrantes que pagavam uma taxa mensal de R$ 5 a R$ 10 para a manu-tenção do local e o material. Com o interes-se pelo idioma se diluindo e o número de membros diminuindo, hoje, os cursos são pela internet, em salas de bate-papo onde o aluno pode ouvir a sua pronúncia e com-parar com o computador. Para o professor Stoduto, as pessoas tiveram de se ocupar tanto com os afazeres do dia a dia que per-deram aquele momento de se encontrar, de se unir para simplesmente falar o idioma: “Eu mesmo reservava três, quatro vezes por semana para ensinar o esperanto, mas tive que me dedicar a algo que gerasse renda”.

Praticantes como Stoduto se reúnem na Associação

Gaúcha de Esperanto

O esperanto pelo mundo

O esperanto foi projetado a partir das principais raízes dos idiomas internacio-nais: 60% de línguas latinas, 30% anglo--germânicas e 10% eslavas. São 16 regras gramaticais que retratam a formação, derivação e composição das palavras. O meio lingüístico trata o esperanto como língua artificial ou construída por não ter se estruturado a partir de uma comunidade de falantes. É taxado como

idioma internacional auxiliar, não sendo considerada língua oficial de país algum. Entretanto, os povos que praticam o idioma desenvolveram música, literatura, manifestações culturais próprias e univer-salizadas a partir dos ideais do esperanto. Cerca de 180 países possuem Ligas Na-cionais de Esperanto — tais como China, Japão, Brasil, Irã, Madagascar, Bulgária e Cuba— estrutura hierárquica nacional que responde à Academia Mundial de Esperanto.

O idioma artificial

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Desde criança, Gerson Neumann, 39 anos, fala hunsrückisch, variante da língua alemã utilizada por cerca de 200 mil pesso-as no Brasil. Natural de Estrela, Neumann é professor de alemão na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O hunsrückisch é praticado principalmente em locais de colonização germânica no Rio Grande do Sul, originária da cidade alemã Koblenz. Quando chegou a idade escolar, os professores pediram para que Neumann pa-rasse de falar “essa coisa de colono”. Como estava aprendendo o português e o alemão “correto”, a variante poderia atrapalhá--lo nos estudos. “Na própria universidade, muitos colegas, por ignorância, desres-peitavam o hunsrückisch, consideravam um jeito errado de falar”. Muitas vezes, a variante é usada para situações cômicas, ou para ridicularizar o outro, já que é con-siderada inculta até mesmo pelos falantes.

Com a colonização alemã no país, em 1824, a variante se espalhou pelo Rio Gran-de do Sul, Rondônia, Santa Catarina, Para-ná, sempre com a adaptação das culturas locais. Desde 2006, em um projeto pionei-ro interdisciplinar na UFRGS, Neumann, a professora Karen Spinassé, sua esposa, e o professor Cléo Altenhofen tentam recupe-rar a cultura construída com o hunsrückisch nos âmbitos da literatura, da educação e da formalização de uma gramática. O filho de

dois meses do casal já escuta diariamente a variante, e ainda é a língua que Neumann se comunica com os pais. Em pesquisa re-alizada com falantes da região de Lajeado, muitos acreditam que a modalidade tende a desaparecer, pois não acham mais utilidade para a mesma. “Acho que eu ainda vou vi-ver bastante, enquanto isso o hunsrückisch também vai”, brinca. O pesquisador reflete que esta atitude de negação por parte da população ocorre, principalmente, por um problema de identidade. “Muitas vezes, os brasileiros conservam a Oktoberfest, a co-mida típica, tudo com fim de lucrar em cima disso, mas só aceitam falar o português”.

A colonização da voz

As variantes do alemão

O hunsrückisch é uma das variantes da língua alemã praticada e projetadas no sul do Brasil, assim como o riograndense deutsch, huns-püklish, platt, pomerano e westphalia-no. O próprio alemão oficial, chamado de hochdeutsch, também pode ser considerado como idioma projetado. Ele é formado por diversos dialetos, um processo iniciado com os verbetes falados nos principados e reinos da região na Idade Média. Essa colcha de retalhos, que padronizou a língua man-tendo os diferentes sotaques, ajudou a criar uma identidade linguística e cultural para esses povos.

Neumann busca preser-var o hunsrückisch com projeto na UFRGS

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O advogado carioca Ghedale Saitovi-tch, 70 anos, morador do Bom Fim há mais de 54, é judeu de origem romena e lituana. Seus pais e avós fugiram na década de 1930 para o Brasil e, com eles, trouxeram a língua materna: “Eu aprendi ídiche porque sou do século passado. Meu pai nunca quis me en-sinar russo, apesar de ser o idioma natural dele. Ele me dizia que se um dia eu tivesse que fugir do Brasil só porque sou judeu, eu não ensinaria português aos meus filhos”. Antes do holocausto, o ídiche era uma língua tão disseminada na Europa Oriental que che-gou a ser mais falada que o próprio hebraico, que é o idioma oficial da população judia. Com a criação de Israel, em 1948, o ídiche foi perdendo sua força e o hebraico retomado, pela necessidade de comunicação entre os diferentes povos que se uniram – judeus se-faraditas (de origem árabe e espanhola que falavam ladino), poloneses, alemães entre outros.

Os ensinos Fundamental e Médio de Sai-tovitch foram feitos no colégio de período in-tegral Talmud Torah, que realizava o estudo da torá, no Rio de Janeiro. Durante o turno da manhã, os quase 2 mil alunos liam o livro sagrado judeu e recitavam para os colegas trechos em ídiche, obrigados pelo professor. Atualmente, mais de 90% da literatura escri-ta na língua desapareceu, sendo o último no-

tório escritor, Sholem Asch, falecido na déca-da de 1950. “Eu creio que, no período de um ano, eu falo 10 minutos de ídiche. Quando me encontro na rua com algum velho como eu, a gente troca algumas palavras, mas de gozação, brincadeira, cumprimento. Pratica-mente não tem com quem falar mais.” O de-suso e o cultivo do idioma oficial da religião, o hebraico, único nas sinagogas, faz com que cerca de 3 milhões de judeus, dentro de um universo de 15 milhões de fieis, falem ídiche no mundo: “Meus próprios filhos não falam ídiche”.

A língua da religião

Os filhos de Saitovitch não falam ídiche, apesar

da história do pai

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Histórico do ídiche

O ídiche utiliza os caracteres he-braicos para a escrita, mas os fonemas tendem ao alemão, por sua origem indo-européia e subgrupo germânico. Deve ser lido da direita para a esquer-da, escrita sinistrosa. É considerada como língua operacional, moldável aos idiomas nacionais. “Finger”, por exem-plo, é dedo em inglês, alemão e também em ídiche. Apenas em 1700, o idioma chegou ao formato falado atualmente. A população asquenazita, criadores do ídiche, eram judeus de origem nórdica e eslava, habitantes da região da atual Alemanha.

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O horizonte tem a capacidade de trazer respostas às inquietações da vida

PÔR-DO-SOL

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Karen Vidaleti

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Efeitos dos sons na mente

A reação ao ruído alterna de acordo com a sensibilidade de cada pessoa ao barulho

texto douGlaS forteS

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ação ecarta

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música foi fundamental na carreira do nadador russo Alexander Popov. Antes de cada prova de natação, o russo es-cutava heavy metal para manter a con-centração. O comportamento do cam-peão olímpico comprova que mesmo a sonoridade pesada é capaz de diminuir as tensões e favorecer o relaxamento. Não é uma contradição. Os diferentes ritmos musicais resultam em efeitos distintos na mente humana. Isso de-monstra porque as pessoas gostam de determinados tipos de música e não de outros e, porque, certos sons são agra-dáveis e outros não.

Há pesquisas científicas que ex-plicam a aparente contradição de-monstrada por Popov. O rock é a músi-ca que provoca os efeitos mais diversos no corpo, em função de suas muitas variáveis e da alternância num volume extremamente alto. Pesquisas da Aca-demia Internacional de Medicina Pre-ventiva dos Estados Unidos revelaram que o rock é a forma mais prejudicial de poluição sonora na população nor-te-americana.

Por outro lado, não é estranho se acalmar ouvindo rock, como algumas pessoas chegam a acreditar. ”Isso é folclore. Se tu partes do princípio de que todo o indivíduo é diferente, então musicalmente vão ser diferentes. O que pra ti pode ser um agito, pra mim pode ser um tranquilizante para dirigir”, ex-plica a musicoterapeuta Cássia Vascon-cellos, da Escola de música Talenthos de Porto Alegre.

a

A música serve de terapia para jovens com autismo, como Pablo

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A reação aos sons pode ter variações através das questões regionais. E também do costume de cada povo no seu ambiente. Segundo o psiquiatra Jeferson Barcellos, a reação das pessoas também depende do lo-cal onde elas moram, como o fato de alguém gostar de sons como o da música nativista e de animais. “Tudo é uma questão de onde foi criado, o local em que a pessoa vive”, afirma o psiquiatra.

André Brandalise, especialista e mem-bro da diretoria da Associação Gaúcha de

Musicoterapia, fala que todo ser humano tem uma sensibilidade diferenciada para cada tipo de som ou ruído. Ele cita como exemplo o arrastar de uma cadeira, que pode passar despercebido para uma pessoa e irritar ou-tra. A lista de sons que podem ser desagra-dáveis é extensa: a fricção de talheres nos pratos, o risco de um giz no quadro negro, o arrastar da sola do tênis em uma quadra.

Esta diversidade de reações tem uma explicação fisiológica. De acordo com o otor-rinolaringologista Luiz Cesar Veiga da Silva, tudo depende da frequência e da repetição.

“Estes barulhos podem prejudicar os ouvi-dos. Isto acontece pela frequência com que os agudos atingem o ouvido e a repetição deste som”, esclarece o médico. O especia-lista também lembra que a repetição de um som pode levar à perda parcial auditiva.

A musicoterapia ajuda a entender a re-lação entre música e comportamento huma-no. O tratamento musicoterápico usa ritmos, melodias e harmonias como um instrumento para produzir efeitos sobre as pessoas. O tra-balho pode ser realizado individualmente ou em grupos. De uma forma geral, a música fa-cilita a comunicação e o relacionamento, e é desta capacidade que a musicoterapia retira o seu potencial terapêutico. Música desper-ta sensações, ajuda a aprimorar a escuta e a convivência.

Segundo a literatura, a técnica surgiu na década de 40, na Segunda Guerra Mundial, para a cura de traumas em soldados. Orques-tras executavam músicas para os combaten-tes na linha de frente. O barulho das metra-lhadoras era diminuído pelos instrumentos e a pausa ajudava a sanar as mentes.

Efeitos musicais também aparecem na relação entre gestantes e fetos. Quando as mães ouvem música durante a gravidez, seus filhos reagem, o que pode ser comprovado em sessões de musicoterapia. De acordo com Cassia, é uma experiência de descober-ta: “É bom relembrar a experiência que teve na musicoterapia no período de gestação e resgatá-la na hora do parto para poder ter mais força e um significado”.

É diagnosticado que o gênero mais adequado para se ouvir durante a gravidez é a música clássica. Exemplos são algumas

Na Escola de música Talenthos, a sessão de musicoterapia dura 45 minutos e é realizada uma vez por semana. A reportagem acompanhou uma sessão de Cassia Vasconcellos com o autista Pablo Sotello. Cassia explica que é o paciente que escolhe o instrumento a ser usado. “A gente começa com o violão e, aos poucos, vai trocando os instrumentos. Se eu vejo que demora muito e ficamos, por exemplo, só no violão, tomo a iniciativa e partimos para outro momento no teclado ou tambor”.

No dia em que a sessão foi acom-panhada, Pablo cantava, no ritmo da música, as cores das roupas que estava usando e Cassia acompanhava-o com violão. Depois, no teclado, repetiam o mesmo procedimento, mas usando outras letras de música. No encer-ramento da sessão, Cassia e Pablo sentaram-se no chão e tocaram tambor de acordo com o que o paciente falava. A musicoterapeuta coordenava todos os movimentos de Pablo.

Música que ajuda

Repetição de um som constante pode levar à perda parcial auditiva

luiz da SilVa, Médico

sinfonias do músico Antônio Lucio Vivaldi (1678-1741) e do austríaco Wolfgang Ama-deus Mozart (1756-1791). Elas ajudariam a grávida a relaxar, provocando também um efeito indireto de conforto no bebê.

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Um mundo de variedades, cores e cheiros, combinado com o

tradição centenária

MERCADO

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Juliana ariaS

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s

texto GuStaVo Schwetz fotoS Karen Vidaleti

ons de cidade grande. Carros buzinan-do, pessoas falando ao telefone ou entre si, motores dando partida, músicas dos mais variados estilos. Sons de um Cen-tro de Meditação. Inspiração, expiração, batidas do coração, sangue correndo pelas veias e, ao mesmo tempo, silêncio, o grande motivo para que todos estes sons sejam escutados.

Qual foi a última vez que você es-cutou as sonoridades citadas no pri-meiro parágrafo? Cinco minutos atrás? Talvez um pouco mais. E aquelas vindas do nosso corpo? Eu nunca havia parado para escutar. A rotina me impede. O dia a dia também deve lhe impedir.

Com o objetivo de compreender a importância dos momentos de silêncio na vida de um ser humano, visi- tei um centro budista, local em que a medita-ção e o sossego são constantes. A partir das experiências vivenciadas durante a minha passagem por aquele lugar, pro-curei entender os benefícios que mi-nutos de meditação silenciosa podem provocar em uma pessoa que passa o dia inteiro escutando os mais variados sons.

Há muito tempo ouço falar em bu-dismo, em práticas de meditação, mas

nunca tinha sentido atração por suas crenças e práticas. Entretanto, a rotina barulhenta e as inúmeras pendências para um único dia fizeram com que a possibilidade de silêncio me atraísse mais do que qualquer outra coisa.

Entrei em contato com o Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB) e decidi que, pelo menos por alguns instantes, ficaria em silêncio. Ana Lu-cia Pizzato, instrutora de meditação do CEBB, explicou-me, em algumas pala-vras, os principais objetivos do Centro: “Mais conhecido como Caminho do Meio, o CEBB é um sítio voltado para as atividades de estudo, da prática de meditação, de retiros e, sobretudo, da compreensão da espiritualidade e da cultura de paz como caminho para o desenvolvimento de boas relações com o meio ambiente”.

Um dia inteiro de estudos, trabalho e poluição sonora ainda me separava do local em que, finalmente, eu poderia es-

quecer um pouco toda a rotina estres-sante do cotidiano.

Após o trabalho, às 19 horas, eu estava pronto para ingressar na tran-quilidade.

Cinco pessoas completamente distintas com um objetivo em comum: meditar. O garoto com cabelos longos e vestes escuras, o homem careca com roupas claras, a senhora buscando en-contrar a paz nos ensinamentos do Lama Samten, a mulher com problemas para caminhar – especialista na reli-gião budista – e a instrutora que, aos 40 anos, transmitia energia a todos.

Sentei primeiramente no chão. Quando descobri que a meditação po-deria ser feita, também, em uma cadei-ra, as dores na coluna não me deixaram pensar duas vezes.

Posição confortável, polígrafo em mãos para pequenas rezas budistas, fundamentadas, principalmente, no agradecimento.

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Minutos de silêncioRepórter visitou um Centro Budista para entender as sensações da ausência do som

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Após alguns minutos, a instrutora explicou que a meditação estaria dividi-da em três momentos, que durariam 15 minutos cada: Shamata (permanecer calmo) Impura, Shamata Pura e Meta-bhavana (desenvolvimento).

É a famosa, talvez nem tanto, Me-ditação Tibetana. “Um estilo de medi-tação puramente tibetana, em que o si-lêncio é absoluto e a respiração é muito importante”, como explica o Lama Sa-mten, líder religioso do Centro, no site do CEBB.

Imóvel, atento apenas à minha res-piração, tentei focar minhas atenções aos pequenos desenhos de um extenso tape-te da sala. Como o CEBB está localizado em meio ao movimento urbano, o silên-cio não era completo. Mesmo assim, ha-via tanta paz na sala que os sons eram ignorados por todos.

Pessoas diferentes se reúnem com objetivo comum de meditar

O Centro de Estudos Budistas Bodisatva,

mais conhecido como “Caminho do

Meio”, trabalha com meditação tibetana

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A importância do silêncio, da parada, da meditação é para termos mais liberdade

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A mente, acostumada a pensamentos constantes, torturantes ou não, está desacos-tumada a simplesmente não pensar. Pude ouvir as primeiras batidas do coração, além do som constante da respiração.

As outras pessoas da sala meditavam de diferentes maneiras. O rapaz de preto parecia um pouco perturbado, até por estar entre os novatos da turma. Já o homem de branco esta-va imóvel, em alguma outra dimensão que não aquela, do Centro de Meditação. A instrutora, em uma posição um pouco mais complexa, de joelhos, também estava estática. Enquanto isso, sentadas nas cadeiras, a mulher com di-ficuldade de locomoção e a senhora estavam igualmente concentradas.

Inspiração, expiração, problemas. Ins-piração, expiração, romances. Inspiração, expiração, trabalho. A mente demora para se acostumar a não ter nada para fazer. En-tretanto, com o passar dos minutos, há um sentimento diferente, que eu nunca havia vivenciado antes. A concentração aumenta, a imobilidade do corpo já não incomoda mais. A meditação começa a fazer efeito, pratica-mente anulando o cotidiano da minha men-te. Surge a sensação de que nada mais tem tanta importância quanto aquele momento,

a função de ficar estático, em silêncio, obser-vando o tapete.

O Lama Samten, novamente no site do CEBB, procura explicar a importância de momentos de silêncio em nossas vidas: “Em silêncio, ouvir o que está ao redor, olhar o que surge internamente, os pen-samentos e contemplar a transitoriedade deles... Sem ser arrastado por esses pensa-mentos... Ficar no presente, usando o cor-po como âncora”.

Com o passar do tempo, o silêncio dei-xa de ser um estranho na sala de meditação. Torna-se algo natural, como se os altos níveis de som com os quais estamos acostumados não fossem costume.

Pensamentos futurísticos, como o que farei amanhã ou no mês que vem, abando-nam a mente. O presente é o que importa. Viver o agora. Durante o dia, dificilmente pensamos no agora.

A meditação chega ao fim. Pessoas com-pletamente diferentes, praticamente desco-nhecidas, partilharam do mesmo momento, de formas diversas. No começo, me pergun-tei o que cada um daqueles personagens fazia quando não estava no Centro. Quando o silêncio cessou, aquilo simplesmente não

tinha mais importância. Cada um buscava o seu objetivo e, involuntariamente, contri-buía para que o outro atingisse o seu. O meu era simples: entender que sensações, alguns minutos imóvel, sem falar ou pensar, com-pletamente em silêncio, podem provocar em um ser humano acostumado a ouvir milha-res de sons diariamente.

“A importância do silêncio, da parada, da meditação é para termos mais liberdade. Liberdade para escolher o que sentir, o que pensar e como agir... Essa liberdade vem através do silêncio interno, vem da prática de estarmos verdadeiramente no presente”, sintetiza Ana Lucia.

Quarenta e cinco minutos e um univer-so inteiro para ser pensado. O movimento retilíneo, uniforme – ou uniformemente variado –, faz parte da vida do ser humano. Ele nasce, cresce, desenvolve-se e, dificil-mente, para. O som acompanha todo o pro-cesso. Constante, incisivo ou coadjuvante.

Ele está tão presente que, muitas vezes, quando nos deparamos com o silêncio, pare-ce que alguma coisa está errada. Não. Nós es-tamos errados, por não sabermos aproveitar as maravilhas proporcionadas por minutos de silêncio.

ana lucia pizzato, inStrutora

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Um local para ouvir as batidas do coração, além do som

constante da respiração

Você sabia que meditantes regulares suportam melhor a dor, já que o método treina o cérebro para focar no presente? Assim, a pessoa não perde tempo em antecipar eventos negativos e sensações desagradáveis. É o que revela um estudo divulgado pela Universidade de Manchester, na Grã-Bretanha. “A meditação se tornou um caminho complementar no tratamento de dor crônica”, especifica Christopher Brown, pesquisador que conduziu o trabalho.

Ãh?

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No intervalo de segundos entre dois ônibus, a sensação de alívio sonoro é tranquilizante

ÔNIBUS

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Karen Vidaleti

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Um recanto em meio ao barulho, em que as pessoas podem passear

e esquecer suas preocupações

REDENÇÃO

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Karen Vidaleti

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REDENÇÃO Sinos, fala contida ou estridente?

O som de sinos e relógios das igrejas torna-se para alguns um tormento. Para outros, é a própria voz de Deus

texto MeliSSa Macielfoto Juliana ariaS

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Os primeiros sons das torres tocam às 6h30min da manhã

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o alto do Morro da Pedra Redonda, em Porto Alegre, o som dos quatro sinos do Santuário Nossa Senhora Mãe de Deus ressoam, harmoniosamente, entre o descampado da região, chegando a al-cançar as comunidades de Belém Velho, Vila Nova e Teresópolis.

Acionados automaticamente, os si-nos do Santuário convidam os Católicos para as celebrações e marcam ainda o “Angelus”, rito de oração que ocorre ao meio-dia e às 18h.

A dona de casa Carmem Margarida dos Santos, 55 anos, moradora de Be-lém Velho, diz ter se acostumado com o som das badaladas e afirma que a melo-dia dos sinos chega a se confundir com a natureza.

“Quando a igreja foi inaugurada em 2000 cheguei a me preocupar, achando que seria mais um barulho. Mas não, o som vai chegando de mansinho. Sinto--me bem com a música dos sinos”, afir-ma.

Há quem não tenha conseguido conviver tão bem com a sonoridade das torres das igrejas. Em Cruz Alta, região noroeste do Estado, em 2007, morado-res vizinhos da Paróquia Nossa Senho-ra de Fátima organizaram um abaixo--assinado e também entraram com uma reclamatória junto ao Ministério Público pela perturbação causada com a instalação do relógio no alto da torre da igreja.

O aposentado José Antônio Bren-ner Scarpellini, 70 anos, diz ter se inco-modado muito com o fato de encabeçar

a reclamação pelo desconcerto causado pelas badaladas das 6h da manhã. Mes-mo concordando que o relógio funcio-naria entre 9h e 21h, diz ter se tornado o vilão da cidade.

“Desde criança, moro nessa casa. E antes não tinha barulho. O relógio foi colocado em 2003. E de lá pra cá, não dá para ficar dentro de casa com o barulho entrando na cabeça da gente o dia intei-ro. Tu iria aguentar?”, questiona.

O padre Magnus Camargo que fala atualmente pela paróquia de Cruz Alta e responde pelo processo que impede o funcionamento do relógio da igreja, aguarda a decisão judicial que está pre-vista ainda para 2011, após recorrer na 3ª Vara Cível.

“O relógio está de acordo com o Plano Diretor e com o Código de Pos-turas do Município, que orienta que a região por ser semicomercial poderá emitir até 70 decibéis, e a igreja emite 65”, explica.

Em dezembro de 2010, o vizinho da Igreja de Cruz Alta entrou com uma nova reclamatória pedindo que cessas-sem também as badaladas que marca-vam as meias-horas.

“O acionamento do relógio é ele-trônico. Podemos programar para não bater às 6h, mas é impossível não bater nas meias-horas. Em função disso, o re-lógio está completamente calado”, expli-ca Pe. Camargo.

No início de abril, também a cidade de Nova Petrópolis teve seu sino cessa-do após décadas de badaladas no alto

da torre da Igreja Evangélica de Confis-são Luterana. O despertar às 6h30min pelos sinos e relógios parece não mais ser tolerado pela vizinhança.

Na Capital, prédios residenciais de até 10 andares foram erguidos mui-to próximos das torres da Catedral Me tropolitana. Mas não foi sempre assim, o pároco Gustavo Hass acredita que as cidades têm se aproximado das torres das igrejas de forma desordenada.

“Em torno da Catedral havia muito espaço, prédios históricos compunham a paisagem, mas na década de 60, pré-dios residenciais foram construídos muito próximos das torres. Para a con-vivência, a tendência das igrejas serão calar os sinos que tocam no início da manhã”, diz o pároco.

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Você sabia que sinos funcionam como jornais em algumas cidades, anunciando conquistas pessoais? Na radioterapia do Hospital Bruno Born, em Lajeado, no Vale do Taquari, pacientes badalam três vezes um sino de metal dourado para marcar o fim de uma das etapas no tratamento contra o câncer. É o som da vitória.

Ãh?

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A aposentada Maria do Carmo Ferreira Terra, 58 anos, vive com a família no edifício Vista Alegre, prédio ao lado da Catedral, es-quina da Duque de Caxias com a rua Espírito Santo, 8º andar, que fica na altura da casa dos sinos da torre direita. Maria do Carmo mora no apartamento desde os nove anos de ida-de e, na adolescência, da mesma janela em que hoje aprecia a Praça da Matriz, foi teste-munha da transformação da torre em QG do Exército, no período da Legalidade.

“A torre não tinha a grade de proteção que guarda os sinos como hoje, era um espa-ço vazio e estratégico, por isso foi utilizado pelo Exército com armamento pesado”, conta Maria do Carmo.

Morar tão próximo dos sinos da Catedral não é decisão tão fácil e quem pensa que os imóveis podem se desvalorizar pelo barulho dos sinos, se engana. Paulo Ubiratan Terra, 61 anos, marido de Maria do Carmo, afirma não pensar em vender o apartamento, ava-liado em torno de R$ 400 mil.

“Sentado na sala, numa conversa ao telefone, quando os sinos tocam, você tem que parar de falar. É impossível prosseguir. Brinco com as pessoas: aproveitem alguns minutos desse espetáculo. E todos elogiam. Ser vizinho dos sinos chega se tornar exóti-

co, embora não deixa de ser um incômodo”, esclarece.

A boa notícia aos vizinhos da Catedral é a que a torre vizinha ao edifício deixará de tocar, passando para a torre esquerda, ao lado do Palácio do Governo, marcar as bada-ladas.

No 9º andar do mesmo edifício, o fun-cionário público Franciscus Maria Cornelis Saedt, 54 anos, analisou a vizinhança ao de-cidir comprar o apartamento há 5 meses.

“Já morava na redondeza e sempre convivi bem com os sinos. Quando decidi comprar esse apartamento e ter os sinos da Catedral como vizinho, avaliei se iria con-

seguir conviver com as badaladas”, explica.Saedt ao tentar explicar o que o som dos

sinos representava para si, emociona-se. “Diante da grandiosidade do som dos si-

nos, sinto quão pequena criatura sou diante do Criador”.

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A catedral tocará apenas os sinos da torre esquerda

para amenizar o barulho

Sob olhares e ouvidos, o casal está acostumado com o toque das badaladas

Brinco com as pessoas: aproveitem alguns minutos desse espetáculo

paulo terra, Vizinho doS SinoS

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As badaladas da igrejaNo ano de 1921, com a criação da Arqui-

diocese de Porto Alegre, iniciou-se a constru-ção da Catedral, cujo projeto é do arquiteto italiano João Batista Giovenale. Na década de 50, Dom Vicente Scherer planejou a aquisição dos sinos para as torres da igreja.

“Os sinos existentes no Brasil naquela época não representavam a qualidade que se buscava. Na cidade de Bochum, Alemanha, no ano de 1955, foi encontrado o carrilhão ideal – jogo com nove sinos de distintos tamanhos e acordes”, explica Pe. Gustavo.

Porém encontravam-se muitas dificul-dades para a importação dos sinos para o

país. Foi quando Vicentina Marques Goulart, mãe do então Presidente da República, João Goulart, interveio a favor do projeto para a importação dos sinos. A inauguração da Catedral se deu no ano de 1986, após 65 anos de obras.

Dos noves sinos, seis encontram-se nas duas torres da Catedral, e outros três estão no Santuário Mãe de Deus, no alto do morro da Pedra Redonda. Dos sinos da Catedral, o maior deles, com 3,8 mil quilos, seria o maior e mais pesado do Brasil. Tem como caracte-rística cada um conter identificação e notas musicais, dedicados a santos ou a bispos.

As duas torres da Catedral Metropolitana abrigam distintos sons e acordes

Nº 1: Mater Dei + Ora Pro Nobis (Mãe de Deus, roga por nós) – Nota Sol, dedicado à Nossa Senhora, com o peso de 3,8 mil quilos.

Nº 2: Portae Inferi Non Praevalebunt (As portas do inferno não prevalecerão) – Si bemol, dedicado a São Pedro, padroeiro do RS, com 2,5 mil quilos.

Nº 3: Adoremus Sanctissimum Sacramentum (Adoremos o Santíssimo Sacramento) – Dó, dedicado ao Santíssimo Sacramento, com 1,75 mil quilo.

Nº 4: Pascam In Judicio (Apascentarei com justiça) – Mi bemol, dedicado a Dom João Becker, com 1,08 mil quilos.

Nº 5: Evangelizare Misit Me (Enviou-me para evangelizar) – Fá, dedicado a Dom Vicente Scherer, com 750 quilos.

Nº 6: Veni Sancte Spiritus (Vem, Espírito Santo) – Sol, dedicado ao Espírito Santo, com o peso de 450 quilos.

Como tocamAs badaladas das igrejas da Capital possuem sons e pesos diferentes.

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Instrumentos musicais que, em conjunto, produzem as mais diversas sensações no ser humano

ORQUESTRA

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Karen Vidaleti

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Na rádio, é o barulho que faz a engrenagem girar, o tempo todo

O som onde se faz o som

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texto fernanda wenzel fotoS líVia StuMpf e Karen Vidaleti

squina da Avenida Ipiranga com a Érico Ve-ríssimo, em Porto Alegre. Sob uma imensa placa em que se lê Zero Hora, está o prédio onde é produzida e levada ao ar a progra-mação da Rádio Gaúcha. No terceiro andar, a equipe de produtores, redatores, repórte-res e suas respectivas chefias trabalham sete dias por semana, 24 horas por dia.

Dentro do carro. Trânsito parado, em qualquer avenida movimentada de Por-to Alegre. O rádio está sintonizado na Rá-dio Gaúcha. Soa o bip que indica que são exatamente 17h. O motorista aumenta o som. Dali a pouco, vai começar o Chamada Geral Segunda Edição. O barulho das buzi-nas fica abafado do lado de fora.

Dentro do estúdio da Rádio Gaúcha existe um mostrador luminoso onde está escrito: NO AR. Quando ele se acende, tudo o que for dito nos microfones é transmitido para os milhares de rádios sintonizados no AM 600 ou no FM 93.7. Mas existem sons em uma redação que não são captados pelos mi-crofones. É o som onde se faz o som. É o som que o ouvinte não ouve. É o som que faz a rádio funcionar.

Tec, tec, tec, tec. Dedos agitados sobre os teclados. Sons de passos apressados pe-los corredores. Repórteres de ouvidos gru-dados nos seus gravadores, tentando sepa-rar o melhor trecho da entrevista para usar na matéria. Outros aguardam impacientes, ao telefone, a informação essencial para a sua reportagem. Enquanto isso, o telefone do colega toca justamente quando ele está

e

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Page 41: Você Ouve Que Som

A conversa entre produtor e repórter é interrompida pela trilha de abertura do programa

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O Chamada Geral Segunda Edição é o principal noticiário da tarde da Rádio Gaúcha

no deadline para escrever a matéria.Está começando o principal programa

de notícias da tarde na Rádio Gaúcha. É hora de brigar por um espacinho no Chamada Ge-ral Segunda Edição. É hora de incomodar o produtor do programa, Nélio Castaman. É o que faz o repórter Eduardo Matos, na espe-rança de emplacar uma reportagem no prin-cipal noticiário da tarde.

Eduardo Matos – Nélio, vai rolar aquele boletim?

Nélio Castaman – Olha irmão, acho que sim. Vamos ver.

A conversa entre produtor e repór-ter é interrompida pela trilha de abertu-ra do programa. A voz do apresentador Rafael Colling toma conta dos corredores do prédio e chega ao rádio do motorista com uma empolgação que contrasta com a madorra do congestionamento.

“Cinco horas, seis minutos. 24 graus é a temperatura. No ar, o Chamada Geral Segunda Edição. O dia 6 de abril em uma hora no seu rádio. Chamada Geral para a re-portagem da Rádio Gaúcha.

CPI engavetada. Coleta de assinatu-ras para instalação da CPI dos Pardais na Assembleia é suspensa por 45 dias. Chama-da para Álvaro Andrade.”

Enquanto o ouvinte escuta os primei-ros destaques do programa, na Rádio Gaú-cha poucos prestam atenção àquilo que está indo ao ar. A preocupação é sempre com a matéria seguinte. No momento em que um repórter lê seu texto, o outro já está a postos

na porta do estúdio. É o que faz Cid Martins, enquanto aguarda Rafael Colling chamar seu nome.

“A lista negra dos criminosos. Polícia descobre grupo de extermínio comandado por presos da penitenciária de Charqueadas. Chamada para Cid Martins.”

Ao acompanhar um programa de no-tícias, o ouvinte tem a impressão de que os únicos que trabalham em uma emissora de rádio são o apresentador e os repórteres. Uma peça chave de qualquer programa jor-nalístico passa despercebida: o produtor. Os mais pessimistas costumam dizer que o produtor é aquele “que trabalha para fazer os outros brilharem”. Não deixa de ser. O produtor é quem pensa o programa. Quem monta o roteiro. Muitas vezes, é ele quem decide o que deve ou não ir ao ar. Se quiser, o apresentador pode simplesmente chegar na rádio, pegar o roteiro e ir para o estúdio bri-lhar. Enquanto isso, o produtor corre de um lado para o outro para garantir que tudo saia dentro do planejado. O produtor do Chama-da Geral Segunda Edição é o Nélio Castaman. É ele que conversa com todos os repórteres antes de eles entrarem no ar. É o elo de li-gação entre o repórter, o apresentador e, é claro, o ouvinte. O Nélio que garante que a voz da repórter Évelin Argenta vá ao ar as-sim que ela ligar o microfone:

Nélio Castaman – Évelin, vamos testar a linha?

Évelin Argenta – Vamos lá. Um, dois, fa-lando pra teste, falando pra teste.

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Nélio Castaman – Beleza, vamos lá. Ele já tá te chamando.

“Outras informações do trânsito em Por-to Alegre. Da Central de Monitoramento da EPTC fala a repórter Évelin Argenta.”

Além do produtor, toda a emissora de rádio conta com uma equipe de técnicos de áudio. Sem eles, nenhum programa iria ao ar. Um destes técnicos é responsável pela mesa. É ele que abre os microfones e os canais de áudio enquanto o programa está no ar. Além

disso, é o responsável por rodar as trilhas no momento certo. É um trabalho que exige mui-ta atenção. Menos para o Glademir Menezes. O Gaiola, ou Vô, para os íntimos, põe os pro-gramas no ar com a displicência aparente de quem está jogando videogame. E o desgraça-do nunca erra. É dono de um mau humor tão exasperado que chega a ser cativante. Quando o apresentador resolve inventar moda, cho-vem os xingamentos do Glademir:

“Mas esse filho da ... não consegue seguir

o roteiro!”Volta-se a ouvir a voz de Rafael Colling: “Nova Ponte do Guaíba ficará pronta só

depois da Copa de 2014. De Brasília, o repór-ter Léo Saballa Júnior.”

Tu, tu, tu. Ao invés da voz do repórter da sucursal

em Brasília, o que vai ao ar é o som constran-gedor da ligação que caiu. Rafael explica:

“Perdemos o contato, com o Léo. O Cha-mada Geral vai a um rápido intervalo, volta-

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mos a seguir.”O telefone é o maior inimigo do produ-

tor. É com ele que a maioria dos repórteres que está na rua entra no ar. Bateria no fim, falta de sinal ou puro azar. Tudo isso pode deixar o produtor com cara de tacho na fren-te do apresentador. E de todos os ouvintes.

“Estamos de volta com o Chamada Ge-ral. Nova Ponte do Guaíba ficará pronta só depois da Copa de 2014. De Brasília, o repór-ter Léo Saballa Júnior.”

“Temos informação do trânsito. Repór-ter Felipe Daroit.”

“E fica por aqui o Chamada Geral! Tchau.”

A trilha de encerramento do programa soa no carro que agora já está chegando em casa. O motorista desliga o rádio. O som emu-dece. Na esquina da Avenida Ipiranga com a Érico Veríssimo, um breve momento de re-laxamento. Mas não por muito tempo. Em poucos minutos vai começar tudo de novo.

Tec, tec, tec. Os microfones não conseguem captar todos os sons existentes na rádio

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Você sabia que a Era de Ouro do rádio brasileiro aconteceu entre as décadas de 1930 a 1950? A televisão ainda não havia tomado conta dos lares da população, e o rádio assumiu como o principal meio de divulgação de informações, artistas e talentos. A decisão do governo Vargas, em 1932, de autorizar a veiculação de publicidade no rádio foi um dos fatores determinantes para o protagonismo que este veículo

assumiu no país. No mesmo ano, o governo começou a distribuir concessões de canais a pessoas e empresas privadas. Foi neste período que surgiram emissoras importantes como a Rádio Mayrink Veiga, a Rádio Jornal do Brasil, a Rádio Tupi e a Rádio Nacional. Nesta época, a programação radiofônica foi marcada pelas radionovelas e pelo mais famoso noticiário da história do rádio brasileiro: o Repórter Esso.

Ãh?

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43 44

Observe a nuvem de palavras abaixo e identifique os diferentes tipos de sons...

Sonorize!

vaca - água - espirro - acidente - silêncio - sono - rangido - brilho - lata - choro - raiva - sino - relógio - queda - tosse - buzina

... agora encontre os correspondentes: riso - batida - pato - palmas - galinha - grito - nojo - alarme - gato

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Barulho no trabalhoA Perda Auditiva Induzida por Ruído é a segunda doença ocupacional mais frequente no mundo

texto roBerta caBreira fotoS Juliana ariaS e Karen Vidaleti

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Barulho no trabalho

uzinas. O freio de caminhão, o ronco do carro arrancando. Um estalo cortante de microfonia. A turbina de um avião. Considere que todos estes sons, quan-do escutados uma vez, já causam algu-ma reação. Agora, imagine trabalhar diariamente com eles.

Milhões de brasileiros são expos-tos ao ruído e a todo o perigo ocasiona-do por esta exposição nos seus locais de trabalho. Segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 15% dos trabalhadores de países desenvolvidos ficam expostos a ruídos prejudiciais à

audição. A Perda de Audição Induzida por Ruído, mais conhecida como Pair, é uma das doenças ocupacionais mais prevalentes em todo o mundo.

“É supertranquilo, eu uso prote-tor e não escuto nada”, afirma Odone Bizz, 48 anos, encarregado do tráfego de aviões do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Há três anos coor-denando uma equipe de dez pessoas, as principais atividades realizadas in-cluem ajudar os pilotos a manobrar os aviões na pista e fiscalizar a chegada e a partida das aeronaves. São como “fla-

nelinhas de aeroporto”, posicionados destemidamente em frente aos aviões, que além de noções concretas de ma-nobras para estacionar, precisam de um bom protetor de orelhas.

“Se vem pro pátio, tem que saber que a turbina vai estar do lado da cabe-ça o tempo todo. Mas nós temos os pro-tetores, então pouco se ouve.” Pouco ou nada. A conversa é impossível quan-do o avião está com o motor ligado. Dessa forma, os funcionários só po-dem falar entre si com o rádio que car-regam pendurado junto ao uniforme.

b

O posto de pedágio de Gravataí registra

média de 78,6dB

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Bizz considera que competir com a tur-bina do avião é uma batalha perdida, por isso “a única forma de comunicação é pelo rádio mesmo, senão ficam os dois berrando e ninguém se escutando”.

A perita do Ministério Público do Tra-balho e Emprego Jane Escobar afirma que existem normas regulamentadoras de ru-ídos para todas as empresas que possuem trabalhadores com carteira assinada. Em qualquer ambiente, a tolerância é de, no má-ximo, 85db em oito horas. Acima desse pata-mar devem ser tomadas medidas preventi-vas, como exame admissional, audiometria e fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPI´s).

A Infraero fornece todos os EPI´s neces-sários. O mais importante, o protetor auricu-lar, retém até 85db do som da turbina de um avião, que pode chegar a até cerca de 140 decibéis. Para comparar, um sussurro pode chegar a 20db. Além da proteção de silico-ne que fica encaixada na orelha, chamada de plug, há também os protetores em formato de concha, que tampam o ouvido e fazem com que o ruído não incomode tanto os tra-balhadores.

Jane acredita que o aeroporto é o am-biente de trabalho com mais ruídos. “Já fi-zemos muitas avaliações em aeroportos e, inclusive, recomendamos sempre que os funcionários usem os dois protetores ao mesmo tempo, tanto o plug, quanto o de concha”, avalia. Além dos protetores forneci-dos pela Infraero, Bizz conta com avaliações anuais de audiometria para evitar possíveis danos à saúde.

O fiscal de tráfego trabalhava com a inspeção de bagagens, até se qualificar e conquistar a posição na pista. Antes de tra-balhar no aeroporto, era comerciante. “O ba-rulho do trânsito que eu escutava da minha loja incomodava muito mais que a turbina do avião”.

Daniela Aparecida de Souza, 28 anos, pensa o contrário. Trabalhando há um ano e dez meses numa cabine da praça de pedágio de Gravataí, pondera: “trabalhar no aeropor-

to deve ser muito mais ensurdecedor. Com o barulho dos carros estou acostumada, a gente consegue conversar normalmente, mesmo com o protetor auricular”.

De acordo com a última dosimetria feita na praça de pedágio de Gravataí, a intensidade de ruídos no local ficou em 78,6dB. Daniela é mais uma trabalhadora que leva a crer que profissões barulhentas não passam de uma questão de costume. Não foi a poluição sonora que a in-

Daniela não se incomoda com os ruídos dos carros

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comodou nos primeiros dias na cabine. “Barulho tem em casa. Criança, ca-chorro. O difícil foi me adaptar ao protetor auricular”, revela.

Ela faz parte do grupo majoritário de mulheres em praças de pedágio. Segundo a assessora de comunicação da Concepa, Cín-tia Miguel, as mulheres somam 75% do qua-dro de funcionários da empresa.

A preferência em contratar pesso-as do sexo feminino é evidente. Segundo a assessora, elas são mais ágeis e gentis. Nas situações em que o barulho desagradável não vem do cano de descarga do carro, outra

vantagem feminina é saber lidar melhor com motoristas insatisfeitos. “Nós somos o único contato entre o usuário e o pedágio. Eles não querem nem saber da ouvidoria, reclamam de buraco ou das filas. Tudo pra gente mes-mo”, desabafa.

No trânsito, o nível dos sons pode ul-trapassar os 100db. No entanto, para alguns profissionais como o motoboy Gilnei Lacer-da, 43 anos, esta pode ser a sinfonia perfeita para mais um dia na labuta. “Eu sou assim, se não tem barulho, eu não consigo traba-lhar direito. Adoro o centro de Porto Alegre, aquela agitação, movimento. Gosto de ver as

pessoas”. Mesmo não se importando com a barulheira, o motoboy garante que não con-tribui para que ela aumente. “Odeio buzina”, afirma.

Lacerda é dono de uma empresa de tele--entregas e fica exposto a ruídos intensos do trânsito durante todo o dia. Depois de uma consulta com um médico no início do ano, foi constatada uma leve perda da audição em seu ouvido direito, algo que ele considera “coisa mínima”.

Os médicos afirmam que a exposição contínua ao ruído pode ser prejudicial para a saúde de trabalhadores. Segundo o dr.

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O proprietário da discoteca não usa proteção auricular

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Décio Castro, do Centro de Audiometria do Hospital Moinhos de Vento, o efeito mais conhecido dessa exposição é a perda de audição. De acordo com ele, a perda auditi-va produzida pelo ruído é frequentemente acompanhada do “tinitus” e também pode apresentar “sintomas de hiperacusia”.

O tinitus – palavra correspondente a zumbido, em inglês – é uma sensação sub-jetiva de ruído, podendo ser de frequências graves ou agudas e que pode imitar chiado, apito, etc. Este pode ser o primeiro sinal de que a audição está sendo afetada por um ru-ído. Já a hiperacusia é “a acuidade auditiva exagerada”. Seria o mesmo que a sensação auditiva tornar-se tão intensa para o ouvido a ponto de ficar dolorosa. No entanto, quem faz exames periódicos e usa protetores está livre do risco de sofrer com problemas au-ditivos.

De acordo com o dr. Castro, os exemplos mais comuns são os de trabalhadores em indústrias com alto nível de ruído sem pro-tetores auditivos e os dos frequentadores de ambientes com música em alto volume.

Há 13 anos como dono da casa noturna Garagem Hermética, Fernando Nazer opera

o som três vezes por semana e afirma não usar nenhuma proteção, muito menos vai ao médico. “Nunca fui de ir ao médico, mas fui esses tempos e estava tudo certo”, assegura. Na verdade, Nazer sofre mais com o barulho externo do que com o interno.

A reclamação dos vizinhos resultou numa maratona de reformas, já que em 2002, a Secretaria de Meio Ambiente (Smam) indi-cou excesso de poluição sonora no local. “Só a porta de entrada custou R$3 mil. O que eu já gastei nesta casa dava tranquilamente para comprá-la três vezes”, queixa-se.

Para organizar a acústica do ambiente, todo o som grave é direcionado para baixo, atravessa o piso de madeira e não causa vi-bração nas residências vizinhas. Quando o som rebate e volta para cima, torna-se bem menos intenso, “porque aí a casa está cheia na hora que o som volta do chão, bate nas pessoas e fica bem mais abafado. Quando es-tou operando o som, parece que está muito alto, mas depois fica bom”, explica Fernando.

Até chegar a esse conhecimento de físi-ca pura e acústica perfeita, Nazer teve muito chão percorrido. “Opero som desde o pri-meiro dia que comprei o Garagem e demo-rou para chegarmos ao padrão que temos hoje. Eu aprendi na marra a operar som, já errei muito. E o vizinho não sente a batida na parede, quem passa ali na frente, na calçada, não diz que tem uma banda de rock’n’roll to-cando no volume máximo”. Quer dizer, volu-me máximo permitido pela prefeitura. Após às 22h, o limite é de 50db. “Mesmo que eu use a potência máxima em todos os ampli-ficadores, o som está configurado para não passar do permitido”, explica.

O barulho não incomoda a todos os pro-fissionais, evidenciando algo de comum en-tre eles: a adaptação a uma realidade perme-ada pelo barulho. O que falta é a adequação das normas técnicas. A perita do MPT afirma que a regulamentação deve ser revista anu-almente, mas isso não ocorre no Brasil. As normas técnicas que tratam de ruídos em ambiente de trabalho datam de 1978, ou seja, não acompanharam os avanços da tec-nologia das máquinas de fábricas, o que as tornam defasadas.

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Você sabia que pessoas que trabalham em locais barulhentos há pelo menos um ano e meio têm de duas a três vezes mais probabilidade de sofrer um grave problema cardíaco – como angina, hipertensão e infarto – do que quem trabalha em ambientes silenciosos? A infomação é de um estudo realizado e divulgado em 2010 pela Universidade de Colúmbia Britânica, do Canadá.

Eu sou assim, se não tem barulho, eu não consigo trabalhar direito

Gilnei caMarGo, MotoBoy

Ãh?

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49 50

Wolfgang AmadeusMozart podia transcrever música diretamente ao ouví-la

reprod

ução

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Nascidos com o tom

s

texto Beto Stone

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Muitos queriam tê-lo, mas poucos sabem o que significa ter um ouvido absoluto

ua primeira composição foi aos cinco anos. Hoje em dia coleciona mais de 600 obras consideradas de alto grau de complexidade. Ainda muito jovem, se apresentava para pessoas do alto escalão da sociedade. Sua habilidade diferenciada começou a ser notada de fato na adolescência, quando foi assistir a uma peça religiosa e nela era tocada uma música muito difícil e longa, a Mi-serere de Gregorio Allegri. Esta obra era exclusiva e a partitura secreta, guarda-da com afinco. Quem se arriscasse a to-car naquelas páginas poderia arcar com a pena de excomunhão. Esse rapaz, che-gando em casa, transcreveu toda a mú-sica: isso incluía notas e vozes, idênti-cas às que ouvira no teatro. Este jovem era Wolfgangus Amadeus Mozart com o seu ouvido absoluto.

Ainda sem grandes estudos con-clusivos sobre o tema, sabe-se que um número muito pequeno de pessoas pos-sui essa característica. Possivelmente ela venha com o nascimento, mas com muito estudo, pode ser adquirida. É

o que acontece na maioria dos casos. Esta, seria a habilidade de mentalizar, formando uma imagem sonora dos tons musicais que são emitidos de alguma fonte exterior e, depois, reproduzi-las. Na tentativa de explicar o caso, alguns estudiosos procuram definir melhor o fato, como o músico Richard Parncutt e o psicólogo cognitivo Daniel Levitin. Para eles, existem três tipos de ouvido absoluto: o passivo, da pessoa que iden-tifica, mas não reproduz; o ativo, que identifica e reproduz; e o “muito fino”, que apenas pelo nome da nota é capaz de reproduzi-la.

O maestro na Orquestra Filarmô-nica da PUCRS, Marcio Buzatto, diz que desde cedo passou a perceber que pos-suía uma grande capacidade auditiva, levando-o a crer que possuía um ouvido absoluto. “Eu acho que eu sempre tive, mas a partir do momento que eu come-cei a me preocupar mais com a afinação essa ideia do tom absoluto, da exatidão, começou a se perder”, lembra Buzatto, que dos oito aos 15 anos, possuía um ouvido praticamente infalível.

Algumas pessoas defendem que a característica teria mais vantagens quando adquirida pela pessoa, porque o estudo permite abalizar o ouvido e trabalhar ritmo. “Eu acho que é mais in-teressante tu desenvolver esse ouvido absoluto através do estudo, nas aulas de percepção, solfejo, ritmo, teoria. Isso se cria através dos anos de estudo e daí muitas vezes a pessoa tem mais empe-nho na percepção, consegue sensibili-zar mais”, afirma José Prediger, profes-sor formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Essa ideia do tom absoluto, da exatidão, começou a se perder

Marcio Buzatto, MaeStro

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Mesmo que o termo ouvido absoluto traga a ideia de um ouvido perfeito, esse é um entendimento equivocado. Essa qualidade se caracteriza pela possibilidade de se uti-lizar de uma sensibilidade aguçada, porém, isso não cria parâmetros quando se trata do talento de um músico. Me-lhor dizendo, um músico não é melhor ou pior por possuir esta qualidade. O músico-terapeuta Bernardo Moraes diz que, em alguns casos, pode não ser tão bom assim. “Te-oricamente, uma pessoa assim não se sente confortável ouvindo uma orquestra, porque os sons de instrumentos como o violino não são absolutamente, matematicamente, afinados como o som de um instrumento eletrônico como o teclado, por exemplo”, adverte.

Para Buzatto existem complicações não apenas ao es-cutar, mas, também, ao executar uma obra. “Um problema para quem tem ouvido absoluto é de transpor o som. Se uma determinada música está num tom de LÁ e eu faço ela meio tom acima, ou meio tom abaixo, muda toda a re-ferência e eu tenho que ler uma coisa e executar outra”, pondera.

Felizmente, o cotidiano de quem possui a habilidade não é afetado em praticamente nada. Ainda assim, alguns sons fazem com que o ouvido trabalhe para identificar as notas. “Às vezes, incomoda um pouco as buzinas, por terem tom definido e, se combinadas várias buzinas, fica uma desafinação só. Mas nada de mais”, explica Buzatto.

Outro tipo de característica, semelhante à do ouvido absoluto, é o ouvido relativo. Esta, sim, é uma habilidade positiva para a audição musical, permitindo que a partir de uma nota você consiga distinguir todas as outras. “É o ouvido que a gente usa na orquestra ou em qualquer gru-po musical”, afirma Buzatto. O maestro ainda completa: “O lá tem 440 vibrações. Hoje em dia, qualquer orquestra está usando a afinação em 441. Nesse caso, o melhor é o ouvido relativo”.

O melhor seria haver um equilíbrio entre as duas ca-racterísticas. Ainda assim, é bom saber que esta habilida-de em nada interfere na destreza ou na possibilidade de alguém seguir na carreira musical.

Maestro Márcio Buzatto teve sensibilidade auditiva praticamente

infalível dos oito aos 15 anos

GilSo

n oliVeira/aSco

M/pucrS

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Árvore na água, recanto do silêncio, um cenário impressionista para a

contemplação urbana

ESPELHO

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Karen Vidaleti

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ESPELHO

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Congelado no bronze, o canto da cidade se funde à paisagem

A VOZ

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Karen Vidaleti

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você ouve