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Realização: Apoio: VOL. 3 | nº 3 Abril de 2019 Suplemento Gratuito ISSN 2596-1373

VOL. 3 | nº 3fdr.org.br/static/files/maracaja/Revista-Maracaja-abril.pdf · escritor Milan Kundera: “o romance não tem compromisso com a realidade”. Nesse sentido, outra lenda

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Realização:Apoio:VOL. 3 | nº 3

Abril de 2019

Suplemento Gratuito

ISSN 2596-1373

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ARTIGO

O Sertão de Marica Lessa e Dona Guidinha do Poço

Bruno Paulino

FLORES DE AÇUCENA

O marujo que mexeu na abóbora da Ribinha

Audifax Rios

GENTE ILUSTRADA

Daniel Dias

CHAPULETADAS

Jarid Arraes e as fraturas do cordel

contemporâneo

Gisa Carvalho

Um livro a ser descoberto*

Alfredo Monte (in memoriam)

RADIADORA

Sânzio de Azevedo

Lucirene Façanha

Rejane Nascimento

Cupertino Freitas

Almir Mota

Talles Azigon

Rita Brígido

Raisa Christina

Magna Maricelle

Fabricio Saldanha

Luana Braga

Valdemar Neto Terceiro

José Jackson Coelho Sampaio

Alan Mendonça

CRISTALEIRA

Jáder de Carvalho entre a presença

e a ausência

Sarah Diva Ipiranga

04 06

11

07

1512

FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA

João Dummar Netopresidência

André Avelino de Azevedodireção administrativo-financeira

Raymundo Nettogestão de projetos

Emanuela Fernandesanálise de projetos

MARACAJÁ

Raymundo Nettocuradoria, pesquisa e edição geral

Emanuela Fernandesassistência editorial

Bruno Paulino, Gisa Carvalho, Alfredo Monte, Daniel Dias, Sarah Diva Ipiranga, Alexandre Henrique e Raymundo Netto colaboraram nesta edição com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da seção “Radiadora”)

Audifax Rios (in memoriam)ilustrações

Amaurício Cortezeditor de design

Giselle Fernandes projeto gráfico e editoração eletrônica

Karlson Gracietipografia Maracajá

[email protected]

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução

sem autorização prévia e escrita. Todas as

informações e opiniões são de responsabilidade dos

respectivos autores, não refletindo a opinião deste

suplemento ou de seus editores.

Este suplemento literário mensal é parte integrante

do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência

do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação

Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura

de Fortaleza, sob o nº 05/2018.

ISSN 2596-1373

Fundação Demócrito Rocha

Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora

Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará

Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271

fdr.org.br | [email protected]

Todos os direitos desta edição reservados à:

TIRAGOSTOS

Alexandre Henrique

Raymundo Netto

Artista da capaAudifax Rios (in memoriam)

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Para ler todas as edições da revista Maracajá e assistir a todas as suas videoentrevistas, acesse:

fdr.org.br/maracaja

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Do Alpendre

Maracajá não precisa de vocês

Maracajá, em 7 de abril de 1929

Olhe, menino, você não deve comprar esta

revista. Compre o seu chocolate e vá ao

cinema berrar seu entusiasmo pelo cowboy.

Olhe, menina (sei lá quantos anos você

tem...), você não deve comprar esta revista.

Compre o seu ruge, o seu carmim – faça do

rosto duas papoulas e dos lábios anêmicos –

com que você desperta o coração sangrento

que ri para toda gente fútil da cidade.

Olhe, coronel, você não deve comprar esta

revista. Você não entenderá nada do que

ela contém e ficará arrependido dos níqueis

que arrancou da bolsa. Guarde o seu dinhei-

ro para o champanhe da francesinha.

Olhe, almofadinha, você não deve comprar

esta revista para fingir que sabe ler e que é

rapaz de espírito. Guarde seu dinheiro para

as prestações do alfaiate.

Olhe, garoto, você não apregoe Maracajá.

Água, conselho e Maracajá só devemos dar

a quem chama a gente a um canto e pede

baixinho.

Olhem, vocês todos, fiquem certos que Ma-

racajá é um gato selvagem de boas garras e

basta-lhe o mato para viver.

Antônio Garrido (Demócrito Rocha)

Abril é um mês de comemoração, mas também de saudade.

Foi em abril, num dia 17 (1946), que fez pouso nesse plano o santanense (de

Marco) Audifax Rios. Também em abril, em 25 (2015), a onça caetana o arrastou para

outra morada.

Quem o conheceu e/ou conheceu a sua vasta e múltipla obra (crônicas, roman-

ces, pesquisas, pinturas, gravuras, cenários, almanaques e revistas, ilustrações e DE

UM TUDO mais), sabe o tamanho da lacuna que esse sempre jovem, inquieto e cria-

tivo artista, no vigor dos seus 69 anos, nos deixou.

Pessoa simples, tímido demais, a contrastar de suas camisas berrante-coloridas,

desfilava entre rostos de apáticos a admirados, carregando sua bolsa de couro com

sua marca pirografada imitando ferro de marcar boi, não dispensando uma boa con-

versa, falando baixinho das gaiatices da vida, da literatura de todo mundo – lia que

era um danado – e contando causos e histórias dos bares de Fortaleza, cheio de ideias

e disponibilidades.

É em homenagem a essa saudade inapagável e raramente coletiva desse nosso

“tipo inesquecível”, que a Maracajá de Demócrito nos traz uma edição AUDIFAX

RIOS especial, reverenciando a imortalidade daqueles que não morrem mesmo, pois

que o talento não deixa. Daí, o convidamos para ilustrar essa edição, e ele, como de

costume e sem cangapés, nos disse “Eu faço é na hora!”

Raymundo Netto

Curador e editor de Maracajá

Último cabrito a ser entronizado por Audifax

na Galeria Caprina do Clube do Bode (nº 225),

Ata nº 690, Livro de Atas nº 38, em 11 de abril de 2015.

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Artigo

O Sertão de Marica Lessa e Dona Guidinha do Poço

“O sertão é o homizio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da

estrada a cruz sobre a cova do assassinado não indaga do crime, tira

o chapéu e passa.”

 (Euclides da Cunha, Os Sertões)

uando era criança, meu avô Luís

Paulino foi quem primeiro me

contou sobre “a história da mu-

lher que mandou matar o mari-

do”, como ficaria conhecida no

imaginário dos rincões de Quixeramobim a tragédia greco-

sertaneja ocorrida em 1853, envolvendo a matriarca e eter-

na personagem do sertão Maria Francisca de Paula Lessa, a

Marica Lessa, e seu marido o cel. Victor de Abreu Vasconcelos.

O coronel fora assassinado em seu lar, pelo escravo

Corumbé, supostamente a mando da esposa. O vô Luís trabalhou

muitos anos na fazenda “Canafístula” – palco principal da tra-

gédia – no tempo de Damião Carneiro, o bandeirante do sertão,

como o definiu Armando Falcão em livreto escrito sobre o fazen-

deiro.  Quando o vovô trabalhou por lá, anos 50 do século XX, a

história de Marica Lessa, antiga dona daquelas terras, ainda esta-

va fresca na memória de muita gente que morava por ali. Ele aca-

bou guardando muitas delas, e eu tive a sorte de ouvi-lo contar.

Hoje quase ninguém se lembra dessas histórias na região.

Da casa grande de Marica não resta mais uma parede

sequer em pé, porém, é possível encontrar muitas porcela-

nas nos escombros, o que demonstra quão rica de fato, ela era.

Da velha “Canafístula” resta apenas a capelinha da Sagrada

Família (Jesus, Maria e José), onde ainda se reza missa pelo

menos uma vez no mês.

Uma história que meu avô contava era que quando Marica

Lessa foi presa na fazenda, após preso Corumbé e ele acusá-la

de mandante do crime, vinha ela escoltada para a vila por um

Art

igo

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enorme cortejo de homens e, na altura

de uns seis quilômetros da “Canafístula”,

ela mandou que parassem numa casa e

pediu que o morador, seu agregado, pas-

sasse um café, que logo ela viria, após re-

solver um mal-entendido, para tomarem

esse café juntos. Porém, Marica Lessa

nunca mais voltaria à sua “Canafístula”.

Proprietária de uma imensidão de

terras e de grandes rebanhos de gado,

além de teres e haveres de ouro e prata,

a matriarca sertaneja despertou a inve-

ja de seus inimigos e a cobiça de alguns

membros da Justiça. Ao ser acusada

do crime, Marica, uma mulher rica e

mandona numa sociedade patriarcal

do século XIX, ficou à mercê de seus

desafetos. Aos poucos, foi se desfazendo

dos seus bens, vendidos a preço de

banana para cobrir as despesas com o

processo do qual nunca pôde se livrar.

Depois que o vô Luís me contou a

história da mulher que mandou matar

o marido, fiquei curioso para saber mais

sobre o assunto. Logo passei a pergun-

tar aos adultos sobre aquela história.

Descobri que tinha se escrito um livro

sobre a trama, mas naquela idade não

atinei para ler o afamado romance

Dona Guidinha do Poço, do escritor ce-

arense Oliveira Paiva (1861-1892). Só

depois, já na faculdade é que o li. 

Em 1889, atacado pela crise da tu-

berculose e em busca de um clima que

lhe fosse mais aprazível, Oliveira Paiva

pousou em Quixeramobim. Foi aí que

teve contato com a trágica história de

Marica Lessa, por meio da tradição oral

lembro de o vovô me garantir como

verdade absoluta. 

Outro fato relevante: Marica Lessa

é a madrinha de batismo de Antônio

Vicente Mendes Maciel, o “Antônio

Conselheiro”. Muitos historiadores

sustentam que, quando ela foi presa,

Antônio teria testemunhado todos esses

acontecimentos e que, certamente, aque-

las cenas deram-lhe um entendimento

de como funcionava a Justiça, afinal,

muitos creem que Marica foi vítima de

uma intriga política.  Ismael Pordeus afir-

ma ainda no seu estudo que o “crime” de

Marica Lessa teve como pena 20 anos de

reclusão, mas segundo Gustavo Barroso

ela ficou muito mais tempo presa, resul-

tando morrer na miséria, aos 85 anos, nas

ruas de Fortaleza, como uma “semilouca”,

a bradar reiteradamente: “Deus é teste-

munha que não mandei matar ninguém!”

Bruno Paulino é escritor, professor

e pesquisador, autor de A Menina da

Chuva, Pequenos Assombros, Sertão:

poetas e prosadores, entre outros.

[email protected]

Dona Guidinha do Poço, de

Oliveira Paiva, pode ser encon-

trada facilmente na internet

em editoras diversas e em sebos

virtuais. Não deixe de ler essa

obra. LER TAMBÉM do autor

A Afilhada, publicada original-

mente em folhetim em 1889.

e da consulta dos documentos cartoriais

do caso, e resolveu escrever o romance,

que só veio a ser publicado na íntegra

em 1952, através do esforço da crítica

literária Lúcia Miguel-Pereira, que re-

cebeu um original das mãos do escritor

Américo Facó, que, por sua vez, o havia

recebido de Antônio Sales1. 

O historiador Ismael Pordeus,

natural de Quixeramobim, publicou

em 1961 o festejado estudo  À margem

de Dona Guidinha do Poço: história ro-

manceada, história documentada,  em

que comprova que a ficção de Oliveira

Paiva teria sido inspirada no caso real

de Marica Lessa. Desse modo, os nomes

Marica Lessa e Guidinha do Poço são

hoje indissociáveis na memória social

de Quixeramobim, num entrelaça-

mento perfeito entre ficção e história,

embora não esqueçamos o alerta do

escritor Milan Kundera: “o romance não

tem compromisso com a realidade”.

Nesse sentido, outra lenda que

muito se divulgou e que ainda hoje en-

contra eco foi que Marica Lessa teria

mandado construir – destinando a

maior parte dos seus recursos – o pré-

dio de Câmara e Cadeia, e que teria sido

ela a primeira prisioneira do recinto.

Esse fato é refutado por quase todos

os historiadores que consultei, mas me

1 Nota do Editor: Antônio Sales havia entre-gado uma cópia dos originais para Lopes Fi-lho, seu confrade na Padaria Espiritual, que a perdeu. Outra cópia havia sido entregue a José Veríssimo, que não chegou a publicá-la por conta da falência da Revista Brasileira, ainda nos anos de 1940. Felizmente, mais tarde, Lúcia Miguel-Pereira encontrou essa cópia com Américo Facó.

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Flores de Açucena

O marujo que mexeu na abóbora da Ribinha

Não pergunte pelo louro em Icó e nem fale de muriçoca em Sobral,

se quiser se dar bem. E em Natal, peça tudo para acompanhar a sa-

borosa carne de sol – macaxeira, manteiga da terra, cebola verme-

lha, farinha d’água – menos jerimum.

Maria do Ribamar era de Caiçara do Rio dos Ventos, ali en-

costada à Cachoeira do Sapo, no sertão do Cabogi, no vizinho esta-

do do Rio Grande do Norte. A coisa por lá andava também preta, a

família mudou-se para estas bandas de cá, onde o pai vislumbrava

um meio de vida melhor para sustentá-la. Caiu na construção civil,

a mulher lavava roupa nas mansões da Aldeota e os filhos ficaram

jogados num barraco espremido no vão das dunas mortas do Morro

de Santa Terezinha.

De tanto olhar para o Farol Velho, fascinada por um não sei

o quê, a Ribinha desceu definitivamente e sentou praça no “Sereno

da Madrugada”, um cabaré malafamado, enfestado de marginais e

marujos vindos d’além-mar.

Anos de infortúnio passados, um dia, o farol piscou uma luz ala-

ranjada, como há muito não ousava brilhar. Aportara um cargueiro

da Holanda assim de marujos ruivos, cabelos cor do brilho do farol, a

barba roxa afogueada.

Um deles gamou pela Ribinha e quis demonstrar sua gratidão,

além dos euros, com um presente singular: uma camisa da seleção

do tempo do carrossel holandês, dizia até que era a do Cruyjf.

O marujo arrastava um pouco do português, saldo de inúme-

ras viagens a estes brasís, e, ao dar o presente, fez alusão à cor da

camisa, não laranja, mas, sim, abóbora. Pra quê! A Ribinha ficou

possessa, mandou o Popeye lá socar a camisa no seu baú mais inde-

vassável, que comedor de jerimum era a mãe, e um bocado mais de

desaforos que o gringo fogoió jamais irá traduzir.

Extraído de O Riso, a Fé e a Dor, vol. 1, Edições Livro Técnico,

Fortaleza, Ceará, 2002.

6

7

cordel cearense está mudando. Aliás, todo o uni-

verso do cordel está em transformação constante,

a despeito da vontade de muitos daqueles que in-

sistem em situar a poesia tradicional em um passa-

do supervalorizado e conservador. Mas as mulhe-

res estão enfrentando essas situações e fraturando as definições de cordel situadas

no passado. E Jarid Arraes está na vanguarda desse movimento.

Falar sobre a poesia de Jarid aciona em mim muitos afetos. Demorei a conhe-

cê-la pessoalmente, ainda que os trabalhos de seu pai e de seu avô eu já conhecesse

há cerca de 10 anos, quando comecei a estudar sobre a poesia de cordel. Na segun-

da metade do mestrado, não sei exatamente de que modo, mas tive acesso às suas

produções. Desconfio que tenha sido a partir das redes sociais de seu pai, Hamurabi

Batista, que mediava meus contatos com Abraão – pai de Hamurabi, avô de Jarid –

poeta cujas produções eu estudava na época.

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Jarid Arraes e as fraturas do cordel contemporâneo

Chapuletadas

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Jarid publicou em 2017 um livro

de cordéis, Heroínas Negras Brasileiras

em 15 cordéis, que somou-se aos seus

mais de 60 títulos de folhetos. O livro

Heroínas... conta as histórias de mu-

lheres, que foram escolhidas a partir

de uma série de cordéis sobre heroínas

negras que a autora já produzia. São

narrativas sobre as vidas de Antonieta

de Barros, Aqualtune, Carolina Maria de

Jesus, Dandara dos Palmares, Esperança

Garcia, Eva Maria do Bonsucesso,

Laudelina de Campos, Luísa Mahin,

Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis,

Mariana Crioula, Na Agontimé, Tereza

de Benguela, Tia Ciata e Zacimba Gaba.

A proposta de Jarid é quase que

uma meta-historiografia. Está inserida

em um contexto combativo, militante.

Parte de uma reconstrução das memó-

rias, lançando luz ao que estava deixado

no plano do esquecimento. Salete Maria,

Fanka Santos, Dalinha Catunda, Arlene

Holanda, a recém-conhecida por mim

Auritha Tabajara, Bastinha... todas tam-

bém trazem, aos seus modos, a política,

a resistência, a militância em sua poesia.

A marca poética de Jarid está si-

tuada no feminismo negro. Ela conta

que sempre teve muita dificuldade em

conhecer histórias de mulheres e, prin-

cipalmente, sobre mulheres negras. Por

isso, se dedica a pesquisar e conhecer

essas mulheres de forma a contribuir

com a visibilidade dos trabalhos delas e

de tantas outras que ainda devem estar

escondidas, mas que iremos encontrá-las.

A poesia de Jarid é potente. É resis-

tência, é questionamento. É rompimen-

to. É a saída dos lugares-comuns do que

se pretende – institucionalmente – que a

poesia de cordel seja. Ela é o próprio con-

ceito de tradição, que depende de reno-

vações para que permaneça. Assim, ela

usa redes sociais, recursos digitais e uma

série de elementos contemporâneos

em suas composições. Discussões sobre

gênero, sobre sexualidade, sobre corpo,

peso, cabelos, autoaceitação são trazidas

em seus folhetos de uma forma didática

e lúdica, e isso significa transformação.

O que Jarid traz para o cordel são

quebras de tabus, tanto nas temáticas

quanto na própria definição do “que é

cordel”? Um questionamento cujas res-

postas passam pela forma, pela estrutu-

ra, pelos suportes, pelas temáticas. Cuja

história aponta para uma ampla diver-

sidade de “origens”. Mas essas definições

todas terminam por serem muito mais

excludentes do que agregadoras.

Ser mulher, poeta, cordelista e

falar sobre feminismo e questões ra-

ciais, desafiar a institucionalidade que

tenta definir o cordel a partir do conhe-

cimento de um pequeno grupo de ho-

mens compõem a desestabilização que

Jarid traz a um universo que muitos

pretendem congelar. Mais do que fe-

char um conceito para o cordel, a poe-

sia de Jarid ajuda a pensá-lo em dimen-

sões simbólicas, culturais, históricas e,

sobretudo, política.

A existência do cordel é um ato

político.

Gisa Carvalho

Jornalista e doutora em Comunicação

pela Universidade Federal de Minas

Gerais (UFMG). Pesquisa poesia de cor-

del desde 2009 e tem interesse nas ma-

nifestações e performances contempo-

râneas dessa prática. 

[email protected]

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Um livro a ser descoberto*

esmo não levando em conta o res-

tante da sua prolífica obra, Nilto

Maciel (1945-2014) teria lugar garan-

tido na melhor literatura brasileira

com Os Guerreiros de Monte-Mor.

Transcorrendo na virada do século XVIII para o XIX, até os tu-

multuosos anos da Independência e as décadas do Império, é incrível

como o autor cearense não parece fazer qualquer esforço para apre-

sentar uma narrativa “histórica”. E ainda assim, com seus tipos huma-

nos bizarros, exagerados, Os Guerreiros de Monte-Mor nos transporta

convincentemente para uma época arcaica, ainda marcada pela

“longa duração”: as quatro gerações do clã Cardoso, através dos seus

“varões assinalados”: Antônio, João, Pedro (este, na verdade, destoará

nessa continuidade) e José.

O que os une é a utopia separatista: parcialmente descenden-

tes de um povo indígena (Jenipapo), o sonho é expulsar os portugue-

ses e recriar uma grande nação nativa.  Encantando-se com todos os

movimentos revoltosos (desde a Inconfidência até a Confederação

do Equador), desconfiados do proclamado Império, cada geração se

propõe a efetivar a justa rebelião. Antônio estagnará numa existên-

cia pacata (com seu hobby de idear armas estrambóticas) e Pedro

também optará pela rotina de colono conformado (mais tarde, será

malvisto como um “espião” dentro da família). Já João (cujas peram-

bulações e ziguezagues ideológicos da juventude acompanhamos

com mais detalhe) e o neto José, mais exaltados, se conluiam a certa

Ch

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altura, com o acréscimo de um escudeiro, Chicó, índio velho

da etnia Xocó e Sancho Pança desses quixotes sertanejos, para

mirabolar a estratégia da invasão da Vila de Monte-Mor (na

serra de Baturité, no Ceará) e proclamar a nova nação.

Lastimavelmente, nas suas reuniões conspiratórias, não

chegam a um acordo sobre o nome a adotar do nascedouro

país, nem sequer a hierarquia entre eles, e mesmo de que

forma comunicarão ao mundo essa sacudida geopolítica.

A principal arma na invasão da vila: morcegos adestra-

dos por Chicó, e este aproveita essa circunstância para, num

inesperado golpe de estado, reivindicar a chefia da empreita-

da, justamente quando ela é levada a cabo.

Portanto, o cômico (chegando ao ridículo) e o patético se

unem na caracterização do trio visionário, conforme seu pro-

jeto utópico vai se tornando mais obsessivo.

Mas o que faz de Os guerreiros de Monte-Mor um grande e

inesperado romance, além da maneira sinuosa, mas firme, com

que incorpora os acontecimentos políticos daquelas décadas

em que o país passou de colônia a Império (usando a técnica

do “ouviu dizer”, do que foi contado e aumentado), é o fato de

que os personagens não se limitam a caricaturas. Das relações

familiares tensas até o compartilhamento belicoso da loucura

revolucionária, o trio sempre parece muito verossímil para o

leitor. Inclusive pelas suas contradições: João quer instaurar

uma grande nação indígena, mas seu vocabulário e imaginário

estão repletos do cancioneiro e dos mitos importados (não há

a mais leve alusão a nenhum elemento da cultura pré-homem

europeu): “De conversa  em conversa, compreendeu João a ne-

cessidade de criação de um exército, antes de iniciar a guerra

nativista, a maior guerra desde o começo do mundo. Coisa para

ficar nos livros, nunca ser esquecida.”

E em meio a todas essas extravagâncias e esturdices, daque-

les que foram sendo deixados para trás no processo político na-

cional, uma linguagem de admirável precisão (além de deliciosa).

É um mundo Ariano Suassuna coado no filtro

machadiano. Nada falta, nada sobra.

Alfredo Monte (1964-2018)

Crítico literário e doutor em Teoria Literária e Literatura

Comparada (USP)

(*) Resenha publicada originalmente em A Tribuna, de Santos,

em 6 de maio de 2014.

Para saber mais sobre Nilto Maciel:

Nilto Maciel (perfil biográfico) da Coleção Terra Bárbara,

por Raymundo Netto (EDR)

livrariadummar.com.br

Para adquirir Os Guerreiros de Monte-Mor, de Nilto

Maciel (Armazém da Cultura)

armazemdacultura.com.br

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Daniel Dias

Ilustrador e artista gráfico.

Nasceu em Fortaleza - CE, no

ano de 1976. A maior parte da

sua produção é destinada ao pú-

blico infantil e infantojuvenil.

Seu trabalho tem como base a

pesquisa de materiais e estilos,

envolvendo estudo de técnicas

tradicionais de pintura, dese-

nho, fotografia e colorização di-

gital. Atualmente, trabalha em

projetos editoriais de fomento à

leitura e de acesso ao livro.

A ilustração “A conversa dos jo-

vens com os clássicos” integra o

livro do Programa Círculos de

Leitura: a arte do encontro, do

Instituto Fernand Braudel de

Economia Mundial (2018).

Gente Ilustrada

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Cri

stal

eira

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Jáder de Carvalhoentre a presença e a ausência

“Às vezes fico tanto no passado/ que, vendo o luar na noite, vejo o leite/

correr do peito de uma escrava negra...” (Jáder de Carvalho)

a revista Maracajá, de abril de 1929, encontramos uma

bela e persuasiva carta de Jáder de Carvalho (1901-1985)

a Paschoal Carlos Magno, ator, poeta e teatrólogo que

estava visitando o Ceará a fim de divulgar os ideais do

projeto modernista para o país. Mal sabia Magno que

já éramos modernos antes de o Brasil o ser e que Jáder,

como poucos, tinha a noção da brasilidade assentada em si e na sua luta social: “Você

não avalia o trabalho que nos vem dando o Brasil. É lá brincadeira! Mal a gente acaba

o Acre, já está ouvindo o grito de São Paulo chamando a gente! Olhe: até o Peru pre-

cisou de nós. Dá-se o suor, o braço, o sangue! E depois? Depois... o cearense se volta de

mãos vazias. E, se vem do Amazonas – aquela terra menina, onde mal reportam os

seios – é deste jeito: escapando do impaludismo para morrer de beribéri”.

O Jáder que transparece nessa fala representa sua feição mais engajada, a mesma

que, dois anos antes, em 1927, havia participado de uma publicação, O canto novo da

raça, juntamente com outros três autores, apontada, por Sânzio de Azevedo, como

o marco do Modernismo no Ceará. A filiação ao Grupo dos Modernos, entretanto,

Cristaleira

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Cri

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finda rapidamente, pois Jáder, de caráter irreverente e icono-

clasta, esquivou-se de ‘escolas’ para criar seu rumo nas letras.

Independente, tanto política quanto literariamente,

construiu uma carreira que oscila entre o lirismo, a melan-

colia e o compromisso social. Suas obras mais conhecidas são

aquelas cuja ênfase social é dominante (Classe média, Doutor

Geraldo e Sua majestade, o Juiz,), assim como o regionalismo

(Terra bárbara e Terra de ninguém). No entanto, Jáder tem na

poesia autobiográfica um acento literário especial, em livros

que tratam da sua infância (Menino só), do envelhecimento e

da morte (Cantos da morte, Delírio da solidão e Rua da minha

vida). Há que se fazer menção também que foi ganhador do

prêmio Olavo Bilac de Poesia, da Academia Brasileira de

Letras, pelo conjunto poético de Água da fonte.

De braços com o poetaPara compreender um pouco desse homem de várias faces, olhe-

mos novamente para “Terra bárbara”, poema mais emblemático

da vertente telúrica, lírica e regionalista do poeta e sua feição mais

conhecida e assentada no imaginário local. Nele encontramos as

marcações clássicas do pertencimento e da filiação identitária:

Eu nasci nos tabuleiros mansos do Quixadá

E fui crescer nos canaviais do Cariri,

Entre glebas e caboclos belicosos e ágeis.

Filho da gleba, fruto em sazão ao sol dos trópicos,

Eu sou o índice do meu povo:

Se o homem é bom – eu o respeito.

Se gosta de mim – morro por ele.

Se, porque é forte, entendesse de humilhar-me,

Ai, sertão!

A dramaticidade e a valentia que imprime ao poema

serão marcas que distinguirão o poeta, sobretudo em Terra de

ninguém e Terra bárbara, nos quais guarda no mesmo embor-

nal súplica e revolta, injustiça e regeneração.

A luz solar, que se expande nos versos, em alguns mo-

mentos passa a atormentar o poeta, que busca nos versos mais

íntimos uma sombra para uma outra dor: a da solidão. Daí os

títulos dos livros que seguem: Delírios da solidão e Menino só.

Mais próximo da sua morte, publica Rua da minha vida,

produção amadurecida, em que o poeta retoma o local de ori-

gem, tão presente e cantado em Terra bárbara, mas agora com

um tom de nostalgia e despedida e assume-se como um sujeito

poético melancólico e entristecido. Sai o vaqueiro errante ou

o sertanejo valente e imiscui-se um agricultor de lembranças,

cuja lavra é de poemas adormecidos na saudade e na despedi-

da próxima. Por isso, a ausência, na sua conformação geográ-

fica, emocional ou espiritual, é a dor mais sublinhada, cons-

tituindo-se o centro de irradiação da sua lírica. Se no poema

“Terra bárbara” afirma sua pertença valorosa ao Quixadá, em

“Joaquim”, retorna nostalgicamente ao nascedouro, marcado

agora pelo silêncio e pela falta:

Não me chamaste, Quixadá. Mas eu vou. [...]

Há quantos anos não nos vemos? [...]

Lembras-te, Quixadá, do primeiro arado

Que te rasgou a terra?

O comprometimento de Jáder de Carvalho com os mo-

vimentos sociais e políticos do estado acabou retendo-o em

Fortaleza, o que ocasionou o abandono de uma carreira no sul

do país, como fizeram muitos cearenses em busca de reconhe-

cimento. O fixar-se na terra, entretanto, se conferiu prestígio

local, acabou por causar um leve desgosto no poeta. Por isso, ao

final do poema, após o reencontro bucólico com a terra natal,

muda de tom e rumo e lamenta a escolha que poeticamente

também o afastou de si e da possibilidade de se dedicar a outro

manejo poético, mais confessional e autobiográfico e, ao mesmo

tempo, mais próximo de uma projeção nacional. Assim, a quei-

xa invade o antes bárbaro sertão e deseja outras geografias:

Cri

stal

eira

14

Quixadá, sinto-me desiludido do meu nome.

Nome que não anda. Não deixa o Ceará. Parado.

Dize ao teu vigário

Que desejo rebatizar-me, agora nas águas do Cedro.

O novo nome? Joaquim,

Vamos ver se esse não é como Jáder: gosta de andar...

A solução encontrada, ao final da vida, é singela e, ao

mesmo tempo, dolorida: mudar de nome. O nome sugeri-

do, Joaquim, é o do bisavô que veio de Portugal e representa

o ethos do viajante que Jáder nunca conseguiu incorporar.

Percebe-se, portanto, que, com o envelhecimento, é comum

o desejo do não feito, do deixado para trás, do sofrimento da

ausência e da incompletude. Por isso, busca-se refazer um

caminho já sabido impossível. Dessa forma, a dor duplica-se:

além dela mesma, a impossibilidade da cura. Bem exemplar

dessa feitura é o poema “Outra infância”, que resgata o sen-

timento do irreversível mediado pela proximidade da morte:

Imagino um Deus,

Dono de todos os poderes,

capaz de ver através de olhos cegos, de falar muito alto

de dentro de toda mudez,

para que me devolva a infância:

a infância que perdi

antes do tempo de perdê-la.

O Deus que invoca tem algo de mórbido e vidente, cego

como Tirésias e poderoso como um oráculo:

Repito:

Devolve-me a infância

Ó Deus que enxerga pelos olhos dos cegos,

Escutas o mundo

Pelos ouvidos mortos

E falas, com clareza,

Nas línguas paralíticas.

Assim, no princípio e no fim, as angústias se instalam e

se tocam. Como dar sustentação à velhice e aliviar o futuro,

com a morte à porta? Resta ao poeta, em seu isolamento, físico

e psicológico, reclamar essa falta. Entre presença e ausência, o

ato poético se faz.

Sarah Diva Ipiranga

Professora Adjunta de Literatura Comparada do curso de

Letras da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Pós-doutora

em Literatura Brasileira pelo Centro de Estudos Comparatistas

da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Estudos

AMI (Autobiografia, memória e identidade) e autora do livro O

sol na palavra: a literatura cearense sob o signo solar.

[email protected]

Para conhecer Jáder de Carvalho

Nascido em Quixadá, Ceará (29 de dezembro de

1901) e falecido em Fortaleza (7 de agosto de 1985),

é um dos nomes mais representativos da literatu-

ra produzida no Ceará. Com 16 anos, em Iguatu,

por meio de uma tipografia, iniciou a publicação

de seus escritos, além de sonetos de Olavo Bilac.

Em 1928, fundou o jornal A Esquerda. Mais tarde,

em 1947, o Diário do Povo e, nos anos de 1960, a

convite de Paulo Sarasate, passou a publicar em

O POVO. Entre 1943 e 1945 esteve preso, acusado

de comunista e por criticar o governo de Getúlio

Vargas. Foi membro da Academia Cearense de

Letras e, em 1974, foi eleito Príncipe dos Poetas

Cearenses. Para saber mais sobre o poeta, acesse

o documentário “PERFIL: Jáder de Carvalho”, da

TV Assembleia do Ceará.

15

Radiadora

A Capa de Chuva

Era tempo de chuva. Um rapaz que gostava de festas e tinha

fama de namorador encontrou, num baile de clube suburba-

no, uma jovem que lhe chamou a atenção pela beleza: alva,

loura e de olhar tristonho. Tirou-a para dançar, e tão bem se

entenderam que, naquela noite, nenhum outro rapaz dançou

com ela, nem ele dançou com outra moça.

Tarde da noite, quando ela se despediu, revelando que

prometera à mãe não se demorar muito no baile, pediu-lhe

que não procurasse segui-la.

No momento em que a jovem ia saindo, começou a cho-

ver. O rapaz, por gentileza ou por vontade de revê-la, empres-

tou-lhe sua capa de chuva, ao mesmo tempo em que, rindo,

perguntava como a receberia de volta e qual o seu nome.

— Meu nome é Alzira. Anote meu endereço.

Dois dias depois, numa tarde de céu nublado ameaçando

chuva, foi ele à rua indicada e, chegando à casa cujo número

havia anotado, bateu palmas. Ao ser atendido por uma senhora

de cabelos grisalhos, indagou se ali morava a senhorita Alzira.

A mulher esboçou um gesto de espanto e perguntou

de onde ele a conhecia. Ao saber que jovem havia dançado

naquela mesma semana em um clube do bairro, olhou-o fixa-

mente e disse, a voz trêmula:

— Tive apenas uma filha, e se chamava Alzira... Mas ela

morreu. Morreu há mais de cinco anos. Entre, por favor.

Como ele insistisse na história, com o forte argumento

de que a moça lhe havia dado nome e endereço, a senhora foi

buscar um álbum de retratos e, passando as páginas, pediu que

ele apontasse a moça com a qual havia dançado.

— É esta aqui!

— Impossível. Esta é a Alzira, mas ela morreu, como eu

lhe disse. Vamos ao cemitério, que não fica longe, para que o

senhor se convença de uma vez por todas.

Tomaram um ônibus e já caíam os primeiros pingos de

chuva quando entraram no campo-santo. Com a força do

vento, os ciprestes farfalhavam. Mas antes que a mulher de

cabelos grisalhos mostrasse ao rapaz o jazigo da filha, ele re-

cuou, lívido. Sobre um dos túmulos estava estendida a sua

capa de chuva...

Sânzio de Azevedo

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Rad

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A Conexão

Ao sentar na cama, sonolento, o ar frio eriçando os pelos, olha

com saudade a cidade. As luzes acesas, sem carros ou tran-

seuntes nas ruas. Uma manhã atípica. O termômetro marca

21ºC. O sol poderoso que enche seu quarto todas as manhãs

está descansando. Aguardando, quem sabe, sua movimen-

tação, um truque, talvez? Resoluto enfrenta. A hora chegou.

Reescrever sua história, como um poema: uma linha e outra,

e mais outra.

Essa sensação de força e esperança o acompanha. Optara

pela mudança. Escolha certa após rompimento. As dúvidas o

assaltaram no início. A proposta de trabalho, depois de todas

as etapas do processo seletivo, enriquecera-o, encorajara-o.

No saguão do aeroporto, resgatando-o dos pensamentos

que preenchem sua mente, um menino animado, roliço, de

olhos negros e cabelos abundantes o aborda:

– Por favor, tio, abre esse pacote para mim?

Com o braço distendido mostrava um pacote de chips.

Olhou em volta procurando alguém que acompanhasse aque-

la criança.

– Machuquei o dedo brincando – continua o menino –,

fica difícil pressionar.

Põe a mão no ombro do garoto, recebendo o pacote, en-

quanto isso seus olhos vasculham o ambiente buscando al-

guém que demonstre observá-los. Em vão. Indaga:

– Está com fome? Vai viajar para onde?

– Não é fome. Minha mãe me proibiu de usar o celular ou

outro jogo. Vamos para o Nordeste de férias e você?

– Vou para o Sul a trabalho. – Devolve o pacote já aberto.

– Onde está sua mãe?

Como em resposta, uma mulher alta, bastante magra, de

longos cabelos está ao lado deles, olhando-o curiosa:

– Desculpe, ele está importunando?

A pergunta proferida diverge do olhar de censura e des-

confiança, ao pousar no pacote sendo consumido pelo menino.

– Eu que peço desculpas por ter atendido ao pedido dele sem

consultá-la. Não me importunou de maneira alguma. Boa sorte!

Dirige-se ao garoto já arrastando sua mala para afastar-

se. Observa no painel que seu voo atrasara. Senta-se distante,

onde uma nesga de céu escuro e chuvoso deixa-se ver através

das vidraças. Aquela conexão estava minando o bem-estar

que sentira ao acordar. Fechou os olhos. Ao ouvir o chamado

de seu voo, caminha na outra fila e vê o garoto com a mãe. Um

olhar de desdém o insulta.

Meses depois, totalmente incorporado ao ritmo da nova

empresa e aos ares da cidade que o recebera acolhedoramen-

te, é convocado para um seminário. Encontra diversas pessoas

com as quais travara conhecimento. Caminha entre as cadei-

ras, buscando um lugar central de boa visualização. Ao sentar

é que observa. Ela o olha entre divertida e curiosa:

– Olá, trouxe chips?

Lucirene Façanha

[email protected]

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17

Asas para Rute

Rute, 15 anos, entrou em casa com o olhar diferente e cor inde-

cifrável nas faces salientes. O pai, um rude homem do campo,

não conseguia decifrar o que ali se passava. Nem queria. Na

sua ignorância ruminava como a vaca magra que lá longe cor-

tava o mato: “conheço essa inquietação. Mas se essa menina

está pensando que vai ser como a danada da mãe e a sem-ver-

gonha da irmã... não vai mermo”.

Caminhou decidido até o único cômodo com porta no

casebre quente, mas limpinho, como a mulher tinha ensinado.

Rute sentia saudade da mãe, morena com o rosto sempre

em brasa, como gritava o pai nas horríveis discussões motiva-

das pelo demônio verde – era assim que a vizinha Damiana

tinha explicado o ciúme do seu pai – quando a mãe criou asas

e partiu.

A mãe voara após a surra que lhe deixou marcas pelo

corpo bonito. Rute ainda guardava o calor dos lábios da mãe

ao se despedir dela e da irmã naquela maldita noite. O pai bê-

bado e inerte na cozinha. A mãe juntou seus molambos e se-

guiu a vida. Rute tinha então 10 anos.

Sua irmã, Sula, estava à época com 16. Assumiu a casa,

mas não os carinhos da mãe, nem o colo, nem os cafunés. Sula

partira com um motorista dois anos depois da mãe. Rute ficara

com a casa e o pai – carcereiro e catapulta!

Um pouco de paz Rute só encontrava na casa de

Damiana. E era lá que, dia após dia, entre o feijão no fogo e

as panelas espelhadas ou uma troca de mantimento, que Rute

tecia suas asas para a acalentada liberdade.

– Abra, Rute! – vociferou o homem!

– Está aberta, pai – tratou de responder a menina para

não piorar sua situação.

O pai trazia na mão o açoite e seu olhar escaneou o quarto

e parou na cesta de vime em que repousavam tubos de linhas

coloridas recém-comprados, agulha e tesoura sobre a humil-

de mesa. Ao lado uma camisa do patriarca. Envergonhado, o

homem olhou para a menina, fez que enfiava o tal cinto no cós

da calça e por nada beijou-lhe a testa e saiu.

Recuperada do susto, a menina esticou a mão e retirou de

sob a toalha da dita mesa um papel bem dobrado. Seus olhos

correram ligeiros e alegres as linhas em que se lia: “Ficha de

Inscrição para o EJA Ensino Fundamental” – sorriu. Mais uma

etapa de suas asas estava concluída e as suas não eram de cera.

Rejane Nascimento

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Rad

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Desterrada

Fizeram ouvidos moucos quando os cumprimentou. Num mo-

vimento sincopado, os amigos de décadas simplesmente a igno-

raram, olhando para a mesa ao lado, para a tevê desligada ou

para as telhas. Em seguida baixaram a cabeça, um após o outro,

pegaram objetos de plástico e vidro, e começaram a arrastar

as pontas dos dedos indicadores sobre suas superfícies lisas e

brilhantes. Quem os via, podia afirmar que eram compulsivos

tentando eliminar, em vão, manchas que insistiam em ficar.

Às vezes ficavam a mirar seus objetos sem pestanejar e

abriam sorrisos de canto da boca. Ou então expressavam nojo,

indignação, medo, dó, numa sucessão de emoções que persis-

tiam por segundos, apenas — já que, de pronto, retomavam o

movimento impaciente com os dedos.

Ela ficou ali, bem ali, bem real, esperando o momento

certo de se manifestar. Queria muito expor seus pontos de

vista sobre os últimos acontecimentos. Queria ser ouvida. E

queria ouvir. Podia ser qualquer voz. Nem que fosse esganiça-

da, desagradável e usada unicamente como mecanismo para a

emissão de tolices. Estava disposta a conversar com qualquer

um deles sobre qualquer assunto: o melhor local para comer

sushi, a chacina da noite passada, o Trump, a carreira inter-

nacional da Anitta. Podia até mesmo ser sobre o BBB, que ela

tanto detestava. Mas a realidade não interessava àqueles pou-

cos. Só lhes importava o que era visto em telas. A eles, basta-

va-lhes o movimento repetitivo de dedos para continuarem

imersos no mundo estranho que rodopiava sob superfícies

cristalinas movidas a lítio e metais raros.

Ela não portava o objeto que poderia transportá-la para o

universo onde estavam seus possíveis interlocutores. Por isso

não teria como interagir, embora desejasse tanto. Não que ela

não pudesse conseguir um artefato daqueles. Podia. Mas não

queria possuir algo tão viciante. Restava aguardar. Quem sabe

um par de olhos qualquer iria, em dado momento, cansar de

olhar para baixo e virar em sua direção. Ela esperou paciente-

mente. Até que perdeu a esperança; todos permaneceram sur-

dos, completamente alheios à sua presença. Nem mesmo nota-

ram quando ela, resignada, se levantou e tomou o rumo de casa.

O dia chegou em que ela já não se sentia reconhecida por

ninguém. Estava presente, perto de todos, mas vivia desterra-

da, isolada do mundo, com seu celular de abrir e fechar, mode-

lo antigo, que apenas ligava e atendia chamadas. Foi quando

se deu por vencida e pediu para o cunhado trazer de Miami o

smartphone mais moderno que pudesse encontrar, lindo, com-

pleto, ostensivo. Criou perfil numa rede social, numa segunda,

numa terceira — marcou presença em todas as redes relevan-

tes. Os amigos se regozijaram e disseram “que bom te ver por

aqui”, mas em pouco tempo ficaram entediados e fizeram de

novo ouvidos moucos, pois ela passou a lhes dar bom dia dia-

riamente às sete da manhã com fotos de gatinhos fofos.

Cupertino Freitas

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Mortança em Saboeiro

Aquele galo esperava o amigo gato todas as manhãs. Ele vinha

com seu andar macio pelo muro, até a cerca no fundo do quin-

tal. Trazia as notícias mais recentes da casa. Foi ele que alertou

ao amigo que a galinha Joaninha seria o prato do aniversário

do membro mais novo dos Braga.

Não deu outra, foi muita correria, mas o galo não conseguiu

fazer nada. Agora tem de passar horas agradando as galinhas res-

tantes, dizendo coisas, como “Você está magra, fique tranquila!”

Em Saboeiro uma casa com visitas tem sempre um al-

moço de galinha à cabidela, ou cabrito guisado. E falando na

peste, o cabrito – só berra bobagens – não deu as caras.

O galo procurava saber alguma coisa sobre o próximo a

ir à panela para fazer um trabalho de conscientização no gali-

nheiro. Ele não se importava com o peru, aquele que serviu ao

Natal da família. Achou foi bem feito, que o bicho era metido.

Mas o gato não tinha novidade, só sabia que os bichos

podiam ficar sossegados: “Estão fartos de tantas ceias nesses

dias de fim de ano.”

O galo não acreditava muito nisso. Bastava chegar algum

conhecido ou parente distante para que uma panela fosse ao

fogo e a cozinheira descesse até o quintal com aquela cara de

poucas amizades. “Será que eles não se lembram da igreja, das

coisas que prometem ao seu Deus?” “Que nada!”, miava o gato,

“Você se lembra do padre Geraldo? Era um santo homem, mas

quando estava com fome mandava logo vir buscar umas duas

das suas galinhas”.

– Não me fale naquele homem. Perdi muitas para matar

a fome dele. – lamentou o galo.

– Pois é melhor que venha muita chuva e que tenhamos

muitos peixes, que, aliás, eu gosto muito, senão você vai ficar,

amigo galo, só administrando ovos.

Era janeiro e o galo imaginava que o gato estava certo:

não haveria mortança no galinheiro e logo iriam se lembrar da-

quele bode velho que já estava passando da hora. O gato assim

também pensava, pois o bode não era da família, tinha chegado

há poucos meses, devia ter alguma serventia. “Ainda bem que

este povo não come gato”, imaginava, e ria-se por dentro como

sempre fazia sobre o destino dos outros bichos do quintal, en-

quanto, por fora, ele se condoía todo, achava uma injustiça.

O papo se esticava, já quase sete da amanhã, e o gato

tinha seus afazeres, como acordar as crianças em férias e ga-

nhar torresmo do café da manhã do senhor da casa.

E por falar em bode, vinha ele por ali, mascando capim,

quando os dois amigos diriam, ao mesmo som: “Lá vem aque-

le besta!”

Almir Mota

[email protected]

Rad

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bairro

antes das seis

quando o céu indeciso

não mostra luz nem trevas 

paradas de ônibus enchem-se

de pessoas sonolentas

bocejos e bom dias tímidos

dinheiro trocado para não atrapalhar

o tráfego de pessoas nas catracas

portões de rolar janelas grandes de ferro

deslizam para abrir

cheiro de café cheiro de pão

a vida está assando nos fornos industriais das padarias

a rua não fica limpa num passe de mágica

são senhoras gordas pretas magras brancas

que sacam piaçabas limpam calçadas

enquanto os homens do caminhão do lixo 

rebolam no meio da rua os tambores 

para raiva e resmungo das senhoras

logo tudo parado

se move

carros bicicletas adolescentes raivosos indo pra escola

as principais notícias vencidas de ontem

cruzam nas esquinas de sacolas nas mãos

todo dia é único

Talles Azigon

[email protected]

Mendigos

ACORDASTE!

Debaixo da ponte... sem destino!

ACORDEI!

Sob o teto que dormi, a solidão de menino!

Teu frio de cobertor,

meu frio de amor...

raios solares,

em todas as pontes...

em todos os lares...

ACORDEI!

Contas a pagar, frutas e solidão,

leite e pão...

ACORDASTE!

Lixos fedidos,

sobras de pães dormidos...

Amanhã, quem sabe, tua alegria nas contas a pagar

e na solidão a amar...

Serás bem mais feliz

do que o destino me quis?

Amanhã, meu olhar de ponte sobre os olhos das amantes

... sobre os olhos das mães

e a partilha dos dormidos pães!

Serei bem mais feliz

do que o destino te quis!

ACORDASTE! ACORDEI!

Silêncio... Dorme o companheiro, o mendigo herdeiro

das lágrimas de meu verso rotineiro:

Tu ficaste sem comer

E chamas isto de fome.

Eu fiquei sem amar

e, para isso, não tem nome!!!

Rita Brígido

[email protected]

Rad

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Corpos

Corpos que vão velejar

Corpos caindo do andaime ao luar

Corpos cortando a cana

Corpos consumidos na cama

Corpos frívolos como papelão

Corpos ausentes na locomoção

Corpos enclausurados sendo torturados

Corpos minerando o ar soterrado

Corpos bêbados de alegria banal

Corpos mortos em uma agonia social

Corpos exclusos, sem voz e sem chão

Corpos abandonados no alicerce da nação

Fabricio Saldanha

[email protected]

civil

eu odeio você e teria voltado

quantos anos fossem necessários

para fazer tudo diferente e nunca

pisar o chão do lugar onde escutei

seu nome mas penso que agora

ao erguer com certa desenvoltura

toda uma estrutura óssea que me faz

andar e arriscar mundos

sob risco de me julgarem mal

posso tomar um atalho súbito

e desrespeitar minha conduta

e desconsiderar seu casamento

e beijar sua boca em horário comercial

na calçada de sua agência

com flexibilidade para abrir pernas

mover quadris e sofrer colapsos

Raisa Christina

[email protected]

Ossos

Esgaravatar

com as unhas

as crostas da terra

em busca de restos

para imprimir

na brancura

dos meus ossos

meu último verso

Magna Maricelle

[email protected]

Rad

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Meu Carnaval: independe de fevereiro. É

março, é janeiro. Eu, carnaval: eu sou: ano intei-

ro. E carnaval é em mim: e para mim um desterro.

Carnaval sou eu toda: minhas veias-serpentinas;

minhas hemácias-purpurina; minhas sardinhas: eu-

confete; minha carne, meu cerne. Vem e me dança:

um samba qualquer, uma bossa de deus-quiser. Eu,

carnaval: meu sangue verte um frevo-amarelo-

quente. O ano-todo: malemolência carnavalescente.

Eu só sou um samba-bom que ferve quente.

Luana Braga

[email protected]

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ipumirim soberbo (o poema)

I

mas e agora que o poema silencia?

o que resta além do devaneio feito de passado

e trevas? – o que resta, alencar?

a baunilha que recendia do campo agora é

a fumaça feita de verdes árvores e vermelhos bichos;

a relva que mal roçava o pé hoje é a bruta mata

seca queimada ao relento e embebida de fuligem.

a ará que não canta mais a predestinação da raça

daqueles que partem rasgando sertões sem que voltem

– o poema silencia.

II

sob a jaci nua e o vento cadente do juripari,

corre a caapora torpe do cauim, lançando notas

perdidas na argêntea noite com seu toró melindroso;

a melodia é aquela que devolve o espírito das pessoas

porque onde havia melodia, havia a lenda que o vinho

da jurema guardava em virgindade – mas a lenda virou

um verbo sem volta, virou o avesso da verdade que serviu

de padrão pra cidade dormente sob essa jaci nua prateada,

virou o desatino de quem o passado corre

– grita caapora.

III

era o teu testamento, mel-redondo, por quem foi sem volta

e quem voltou sem ida; o bélico deus latino vindo

de ignota arma tirou-te da terra pra embranquecer osso perto do mar;

tua virgem velada pela canto poente deixou a semente da dor

varar oceanos pela nau daquele pai de sangue na mão e fronte branca;

ficou na língua lusíada o destino do teu povo; e nesta lenda absurda

– tua raça silencia.

Valdemar Neto Terceiro

[email protected]

Rad

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ora

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Gosto Fundamental

fundamental é o imenso prazer de estar vivo

fazer amor com a mulher querida

e embrulhar em cheiros púbicos

o sono lasso

correr a mais de cem

pela manhã recém-lavada

através da chuva fria

da chuva friíssima e criadora

não necessariamente resolver

mas existir

em meio ao fascinante jogo dos conflitos

fundamental é o gosto de mel na boca

por estar vivo

já sei que não serei jamais o grande poeta

que minha adolescência alucinou

mas a melhor parte de mim é a poesia

é esta parte que me nutre de ritmo e de esperança

José Jackson Coelho Sampaio

[email protected]

– se –

e se eu criasse a rua, a calçada, as casas numeradas

com as inverdades tão próprias delas

se os segredos que dividem a porta da frente

e as poeiras das famílias

tudo criado

num ouvi dizer

inventado

e se na rua que liga a igreja ao cemitério houvesse

vidas

e se o padre largasse do capeta e os políticos

das tetas do profano santificado

e se a máquina-mostro parasse de asfaltar as ruas,

as árvores

e os pés e a saudade

morresse esquecida

numa esquina da infância

e se a poesia servisse de alguma coisa...

Alan Mendonça

[email protected]

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Tiragostos

Os FitoManos de Raymundo Netto

Audifax Rios

Audifax nasceu em 17 de abril de

1946. Iniciou-se nas artes com a irmã

e professora de desenho Diana Rios.

Garoto, já era convidado a pintar

panos de lapinhas de Natal. Vindo

morar em Fortaleza, ingressaria na

TV Ceará como cenógrafo e dese-

nhista. Participou e foi premiado em

diversas exposições individuais, cole-

tivas e salões no país e no exterior. É

autor de vários murais, aberturas de

filmes e novelas, ilustrações, capas,

álbuns, crônicas, artigos, ensaios,

cordéis, infanto-juvenis, romances,

entre outros. Faleceu em 25 de abril

de 2015, publicando o almanaque

DE UM TUDO, com livros no prelo

e muita vontade de conquistar o

mundo, como já nos havia conquista-

do “a priscas eras”..

artista da capa

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Chegada de Audifax no Céu de Alexandre Henrique

Publicado originalmente no Almanaque DE UM TUDO