Voltaire - O Ingenuo

Embed Size (px)

Citation preview

O INGNUO (Histria verdadeira, tirada dos manuscritos do padre Quesnel.) Voltaire NDICE APRESENTAO BIOGRAFIA DO AUTOR CAPTULO PRIMEIRO Como a prior de Nossa Senhora da Montanha e a senhorita sua irm encontraram um hu ro. CAPTULO SEGUNDO O huro, chamado o Ingnuo, reconhecido por seus parentes. CAPTULO TERCEIRO O huro, chamado o Ingnuo, convertido. CAPTULO QUARTO O Ingnuo batizado. CAPTULO QUINTO O Ingnuo enamorado. CAPTULO SEXTO O Ingnuo chega casa de sua amada e fica deveras furioso.

CAPTULO STIMO O Ingnuo repele os ingleses. CAPTULO OITAVO O Ingnuo vai Corte. Janta em caminho, com huguenotes. CAPTULO NONO Chegada do Ingnuo a Versalhes. Sua recepo CAPTULO DCIMO O Ingnuo encarcerado na Bastilha com um jansenista CAPTULO DCIMO - PRIMEIRO Como o Ingnuo desenvolve o seu esprito CAPTULO DCIMO - SEGUNDO O que pensa o Ingnuo das peas de teatro. CAPTULO DCIMO - TERCEIRO A bela St. Yves vai a Versalhes. CAPTULO DCIMO - QUARTO Progressos do esprito do Ingnuo. CAPTULO DCIMO - QUINTO A bela St. Yves resiste a propostas delicadas. CAPTULO DCIMO - SEXTO Ela consulta um jesuta CAPTULO DCIMO - STIMO Ela sucumbe por virtude CAPTULO DCIMO - OITAVO Ela liberta o noivo e um jansenista. CAPTULO DCIMO - NONO O Ingnuo, a bela St. Yves e seus parentes se renem CAPTULO VIGSIMO A morte da bela St. Yves suas conseqncias. APRESENTAO "O Ingnuo" se insere na onda de indianismo caracterstica de tantos romances que in undaram a Frana do sculo XVIII. De certa forma, contm uma crtica s idias de J. J. Rousseau sobre o homem natural. Ingnuo um huro honesto e sincero, espantado com as ridculas convenes sociais ; mas o texto conclui o oposto da concepo rousseauniana de volta natureza. A obra revela a peculiar sensibilidade crtica de Voltaire. Ataca o clero catlico, principalmente os

jesutas, em relao aos quais nunca escondeu sua ojeriza. O Papa tampouco passa inclum e. Nem deixa de ironizar os que se submetiam s normas da Igreja por simples temor ou pelo inte resse de obter vantagens. H uma diferena na forma de desenvolver as idias. Voltaire, geralmente, expressou su as concepes atravs de um humor mordaz, custico e irreverente. No deixou de fazer isso, mas com parcimnia, dando nfase a um estilo dramtico em que se mesclam dor e melancolia. A respeito da morte da amada de Ingnuo, assim se expressa o autor: "O terrvel silncio do Ingnuo, seus olhos sombrios, seus lbios trementes, os frmitos de seu corpo, incutiam, na alma de todos aqueles que o contemplavam, essa mescla de compaixo e terror que encadeia a alma, que impede a palavra e s se manifesta por f rases entrecortadas. A dona da casa e sua famlia haviam acorrido; tremiam de seu desesp ero, guardavam-no vista, observavam-lhe todos os movimentos. J o corpo gelado da bela St. Yves fora carregado para longe dos olhos do Ingnuo, que ainda parecia procur-la, e mbora no estivesse em condies de distinguir o que quer que fosse." Igualmente dramtica a concluso a que chega Ingnuo, aps ler sobre a Histria: "Leu livros de Histria, que o entristeceram. O mundo lhe pareceu demasiado mau e demasiado miservel. A Histria, com efeito, no mais que o quadro dos crimes e das desgraas. A multido de homens inocentes e pacficos sempre se apaga nesse vasto cenri o. Os principais papis esto com os ambiciosos e os perversos." Sem mudar o conhecido estilo, no perde a irreverncia de certas crticas. Sobre o cle ro menciona, por exemplo, o seguinte: "O prior, j um tanto avanado em idade, era um excelente eclesistico, muito amado pelos seus paroquianos, depois de o ter sido outrora pelas suas paroquianas." A crtica a certos costumes tambm no deixa de ser incisiva: "O Ingnuo, segundo o seu costume, acordou com o sol, ao cantar do galo, que chamado na Inglaterra e na Hurnia a trombeta do dia. No era como a gente da alta, que enlanguesce num preguioso leito, at que o sol haja feito metade do seu curso, que no pode nem dormir nem levantar-se, que perde tantas horas preciosas nesse estado intermedirio entre a vida e a morte, e ainda se queixa de que a vida demasiado cu rta." Sobre o conhecimento adquirido atravs de estudos, a ironia arrasadora, coloca nos lbios do velho Gordon a afirmao: "Consumi cinqenta anos em instruir-me - dizia ele consigo - e teimo no poder ating ir o natural bom senso deste menino quase selvagem! Parece-me que apenas consegui for talecer laboriosamente os preconceitos, ao passo que ele s escuta a simples natureza"

Com maiores ou menores mudanas no estilo, o mesmo Voltaire, o pensador genial qu e nos leva a meditar sobre nossos hbitos, costumes, religies e, no raro, a rir deles. BIOGRAFIA DO AUTOR FRANOIS-MARIE AROUET, filho de um notrio do Chtelet, nasceu em Paris, em 21 de novembro de 1694. Depois de um curso brilhante num colgio de jesutas, pretendendo dedicar-se magistratura, ps-se ao servio de um procurador. Mais tarde, patrocinado pela socie dade do Templo e em particular por Chaulieu e pelo marqus de la Fare, publicou seus primeiros vers os. Em 1717, acusado de ser o autor de um panfleto poltico, foi preso e encarcerado na Bastilha, de on de saiu seis meses depois, com a Henriade quase terminada e com o esboo do OEdipe. Foi por essa ocas io que ele resolveu adotar o nome de Voltaire. Sua tragdia OEdipe foi representada em 1719 c om grande xito; nos anos seguintes, vieram: Artemise (1720), Marianne (1725) e o Indiscret (1725 ). Em 1726, em conseqncia de um incidente com o cavaleiro de Rohan, foi novamente rec olhido Bastilha, de onde s pode sair sob a condio de deixar a Frana. Foi ento para a Inglate rra e a se dedicou ao estudo da lngua e da literatura inglesas. Trs anos mais tarde, regresso u e publicou Brutus (1730), Eriphyle (1732), Zare (1732), La Mort de Csar (1733) e Adlade Duguesclin (17 34). Datam da mesma poca suas Lettres Philosophiques ou Lettres Anglaises, que provocaram grand e escndalo e obrigaram a refugiar-se em Lorena, no castelo de Madame du Chtelet, em cuja compa nhia viveu at 1749. A se entregou ao estudo das cincias e escreveu os Elments de le Philosophie d e Newton (1738), alm de Alzire, L'Enfant Prodigue, Mahomet, Mrope, Discours sur l'Homme, etc. Em 1749, aps a morte de Madame du Chtelet, voltou a Paris, j ento cheio de glria e co nhecido em toda a Europa, e foi para Berlim, onde j estivera alguns anos antes como diplo mata. Frederico II conferiu-lhe honras excepcionais e deu-lhe uma penso de 20.000 francos, acrescend o-lhe assim a fortuna j considervel. Essa amizade, porm, no durou muito: as intrigas e os cimes em torno dos escritos de Voltaire obrigaram-no a deixar Berlim em 1753. Sem poder fixar-se em parte alguma, esteve sucessivamente em Estrasburgo, Colmar , Lyon, Genebra, Nantua; em 1758, adquiriu o domnio de Ferney, na provncia de Gex e a passou, ento, a residir em companhia de sua sobrinha Madame Denis. Foi durante os vinte anos que assim vive u, cheio de glria e de amigos, que redigiu Candide, Histoire de la Russie sous Pierre le Grand, Hist oire du Parlement de Paris, etc., sem contar numerosas peas teatrais. Em 1778, em sua viagem a Paris, foi entusiasticamente recebido. Morreu no dia 30 de maro desse mesmo ano, aos 84 anos de idade. CAPTULO PRIMEIRO Como a prior de Nossa Senhora da Montanha e a senhorita sua irm encontraram um huro.

Um dia S. Dunstan, irlands de nacionalidade e santo de profisso, partiu da Irland a a bordo de uma pequena montanha que navegou para as costas da Frana, indo arribar baia de SaintMalo. Depois do que, deu ele a bno sua montanha, a qual lhe fez profundas reverncias e voltou para a Irlanda pelo mesmo caminho por onde tinha vindo. Dunstan fundou ali um pequeno priorado, dando-lhe o nome de priorado da Montanha , denominao que ainda hoje conserva, como todos sabem. Ora, na tarde de 15 de julho de 1689, o abade de Kerkabon, prior de Nossa Senhor a da Montanha, passeava beira-mar com a senhorita de Kerkabon, sua irm, para tomar a fresca. O p rior, j um tanto avanado em idade, era um excelente eclesistico, muito amado pelos seus paroquianos , depois de o ter sido outrora pelas suas paroquianas. O que lhe valera sobretudo grande considerao que era o nico clrigo da provncia que no precisava ser carregado para o leito depois de cear com o s seus confrades. Sabia muito corretamente a sua teologia e, quando cansado de ler Santo Agostinho , divertia-se com Rabelais: de modo que todos diziam bem dele. A senhorita de Kerkabon que jamais havia casado, embora vontade no lhe faltasse, ainda no perdera o frescor aos quarenta e cinco anos; boa e sensvel de gnio, gostava de divertiment os e era devota. Dizia o prior irm, olhando o mar: - Ah! foi aqui que embarcou o nosso pobre irmo, com a nossa querida cunhada, a se nhora de Kerkabon, sua esposa, na fragata Hirondelle, em 1669, para ir servir no Canad. Se no o tivessem matado, poderamos ter a esperana de tornar a v-lo. - Acreditas - dizia a senhorita de Kerkabon - que a nossa cunhada tenha sido dev orada pelos iroqueses, como nos disseram? certo que, se no a tivessem comido, teria voltado s ua terra. Hei de chor-la toda a vida: era uma mulher encantadora; e nosso irmo, que era bastante in teligente, teria feito uma bela fortuna. Enquanto assim se comoviam a tais lembranas, viram entrar na baa de Rance uma pequ ena embarcao que chegava com a mar: eram ingleses que vinham vender alguns gneros de seu pas. Saltaram em terra, sem preocupar-se com o senhor prior nem com a senhorita sua i rm, que ficou muito chocada com a desateno. No sucedeu o mesmo com um jovem de excelente compleio que, saltando por cima da cab ea de seus companheiros, veio cair de p em frente senhorita. Cumprimentou-a com a cabea, pois, pelos modos, no aprendera a fazer reverncia. Seu aspecto e sua indumentria atraram os olha res do irmo e da irm. Tinha a cabea descoberta, as pernas nuas, longas tranas, pequenas sandlias, e um gibo que lhe modelava o talhe esbelto; e um ar ao mesmo tempo viril e bondoso. Trazia num a das mos uma pequena garrafa de gua de Barbados, e na outra uma espcie de bolsa na qual havia u ma caneca e

bolachas. Falava francs de um modo bastante inteligvel. Ofereceu gua de Barbados se nhorita de Kerkabon e ao senhor seu irmo; bebeu com ambos; f-los beber de novo; e tudo isso c om um ar to simples e natural que o irmo e a irm ficaram encantados. Ofereceram-lhe seus prstim os,

perguntando-lhe quem era e aonde ia. O jovem lhes respondeu. que no sabia ao cert o, pois era um simples curioso que quisera saber como eram as costas de Frana e que, como ali ch egara, logo se retiraria. Julgando, pelo seu acento, que ele no era ingls, tomou o prior a liberdade de lhe perguntar qual o seu pas de origem. - Eu sou huro - respondeu-lhe o jovem. A senhorita de Kerkabon, espantada e encantada de ver um huro que a cumulara de a tenes convidou o jovem para jantar; este no se fez de rogado e dirigiram-se os trs para o priorado de Nossa Senhora da Montanha. A mida e rechonchuda senhorita no tirava dele os seus olhinhos e dizia de vez em q uando ao prior: - Esse rapago tem uma pele de lrio e rosas! Que bela tez para um huro! - Tens razo, minha irm - dizia o prior. Ela fazia cem perguntas seguidas, a que o viajante sempre respondia com toda a j usteza. Logo se espalhou o rumor de que havia um huro no priorado. A alta sociedade do ca nto apressou-se em comparecer. O padre de St. Yves veio acompanhado da senhorita sua irm, jovem b aixa-bret, muito bonita e muito bem educada. O bailio, o recebedor de impostos e suas respectivas mulheres no faltaram ceia. Colocaram o estrangeiro entre a senhorita de Kerkabon e a senhorita de St. Yves. Todos o olhavam com admirao, todos lhe falavam e interrogavam ao mesmo tempo; o huro no perd ia a compostura. Parecia haver tomado por divisa a de milorde Bolingbroke: nihil admi rari. Afinal, cansado de tanto barulho, disse-lhes suavemente, mas com firmeza: - Senhores, na minha terra fala um depois do outro; como querem que lhes respond a, se me impedem de ouvi-los? A razo sempre faz com que os homens se compenetrem por alguns momentos. Estabelec eu-se um grande silncio. O senhor bailio, que sempre se apoderava dos estranhos em qualque r parte onde se achasse, e que era o maior perguntador da provncia, indagou, abrindo uma boca de palmo e meio: - Como se chama o senhor? - Sempre me chamaram o Ingnuo, nome este que me foi con firmado na Inglaterra, porque eu sempre digo singelamente o que penso e fao tudo o que quero . - Mas como, tendo nascido huro, foi o senhor parar na Inglaterra? - que me levaram para l. Em combate, fui feito prisioneiro pelos ingleses, depois de me haver defendido o mais que pude. E os ingleses, que apreciam a bravura, porque so bravo s e to direitos como os hures, propuseram-me devolver-me a meus pas ou levar-me para a Inglaterra. Acei tei a ltima oferta, pois gosto imenso de ver terras novas.

- Mas - disse o bailio com o seu tom imponente - como pde o senhor abandonar ass im o seu pai e a sua me? - que nunca conheci nem pai nem me - respondeu o estrangeiro. No houve quem no se comovesse, e todos repetiam: Nem pai nem me! - Ns lhe serviremos de pai e me - disse a dona da casa ao prior. - Como interessan te esse senhor huro! O Ingnuo agradeceu-lhe com uma nobre e altiva cordialidade, e deu-lhe a entender que no tinha necessidade de coisa alguma. - Vejo, senhor Ingnuo - disse o grave bailio, - que o seu francs excelente para um huro. - Um francs - disse ele que os hures haviam aprisionado quando eu era pequenino, e a quem dediquei grande amizade, ensinou-me a sua lngua; aprendo muito depressa o que que ro aprender. Ao chegar em Plymouth, encontrei um desses refugiados franceses a que chamam huguen otes, no sei por qu; fiz com ele alguns progressos no conhecimento de vossa lngua e, logo que me pu de exprimir inteligivelmente, vim visitar o vosso pas, pois aprecio bastante os franceses qua ndo eles no fazem muitas perguntas. O abade de St. Yves, apesar dessa pequena advertncia, perguntou-lhe qual das trs ln guas preferia: o huro, o ingls, ou o francs. - O huro, sem dvida nenhuma. - Ser possvel? - exclamou a senhorita de Kerkabon. - Eu sempre julguei que o francs fosse a mais bela de todas as lnguas, depois do baixo-breto. Choveram ento as perguntas. Como se dizia fumo em huro? Taya, respondia o Ingnuo. C omo se dizia comer? Essenter, respondia ele. A senhorita de Kerkabon fez absoluta questo de saber como se dizia amar; ele respondeu que isso era trovander, e sustentou, no sem razo, que ta is palavras nada ficavam a dever s suas correspondentes em francs e ingls. Trovander pareceu muito b onito a todos os convivas. O prior, que tinha na biblioteca uma gramtica da lngua huronesa, que lhe dera de p resente o reverendo padre Srgard-Thodat, recoleto e famoso missionrio, retirou-se da mesa um momento, para ir consult-la. Voltou arquejante de enternecimento e alegria. Reconheceu o Ingnuo como um verdadeiro huro. Discutiram um pouco sobre a multiplicidade das lnguas e chegaram concluso de que, se no fora a aventura da torre de Babel, a terra inteira estaria falando fra ncs. O interrogador bailio, que at ento desconfiara um pouco do personagem, comeou a con sider-lo com profundo respeito; falou-lhe com mais civilidade que antes, coisa de que o I ngnuo no se apercebeu.

A senhorita de St. Yves estava muito curiosa por saber como se amava na terra d os hures. - Praticando belas aes - respondeu ele - para agradar s pessoas que se parecem com a senhorita. Todos os convivas aplaudiram com admirao. A senhorita de St. Yves enrubesceu, e se ntiu-se muito bem. A senhorita de Kerkabon igualmente enrubesceu, mas no se sentiu to bem, um po uco melindrada de que a galanteria no se dirigisse a ela, mas tinha to bom corao que isso em nada d iminuiu o seu afeto pelo visitante. Perguntou-lhe amavelmente quantas namoradas tivera ele na Hurnia. - S tive uma - respondeu o Ingnuo. - Era Abacaba, a boa amiga de minha querida ama ; os juncos no eram mais retos, o arminho mais branco, as ovelhas menos macias, as guias menos altivas, e nem os cervos mais rpidos do que Abacaba. Ela perseguia um dia uma lebre pelas vizinhanas , a cerca de cinqenta lguas da nossa casa. Um algonquino mal educado, que habitava cem lguas alm, veto arrebatar-lhe a sua lebre; mal o soube, acorri, derrubei o algonquino com um gol pe de maa, amarrei-o e fui dep-lo aos ps de Abacaba. Os pais de Abacaba queriam com-lo; mas nunca me agrad ei dessa espcie de festins; restitui-lhe a liberdade e fiz dele um amigo. Abacaba ficou to impressionada com a minha ao, que me preferiu a todos os seus pretendentes. E ainda me amaria, se no ti vesse sido devorada por um urso. Castiguei o urso, usei durante muito tempo a sua pele, mas isso no me consolou. A senhorita de St. Yves sentia um secreto prazer ao ouvir que o Ingnuo s tivera um a bem-amada e que Abacaba no mais existia; mas no discernia a causa de seu prazer. Todos fixavam os olhos no Ingnuo; louvavam-no muito por no haver permitido que os seus camaradas comessem um algonquino. O implacvel bailio, incapaz de reprimir o seu furor inquisitivo, levou a curiosid ade ao ponto de se informar qual era a religio do senhor huro; se havia escolhido a religio anglicana, ou a galicana, ou a huguenote. Eu sou da minha religio - disse ele - como o senhor da sua. - Ah! - exclamou a Kerkabon - bem se v que esses engraados ingleses nem ao menos p ensaram em batiz-lo- Meu Deus! - dizia a senhorita de St. Yves - como possvel que os hures no sejam ca tlicos? Ser que os RR.PP jesutas no os converteram a todos? O Ingnuo assegurou que na sua terra no se convertia ningum; que nunca um verdadeiro huro mudara de idias, e que na sua lngua nem sequer havia um termo que significasse inc onstncia. Estas ltimas palavras agradaram extremamente senhorita de St. Yves. - Ns o batizaremos, ns o batizaremos - dizia a Kerkabon ao prior; - h de caber-te e ssa honra, meu caro irmo; fao questo de ser sua madrinha; o senhor de St. Yves o levar pia; ser uma brilhante cerimnia, de que se falar em toda a Baixa Bretanha, o que nos trar grandes honras. Toda a companhia

secundou a dona da casa; todos os convivas gritavam: - Ns o batizaremos!

O Ingnuo respondeu que na Inglaterra deixavam a gente viver como bem quisesse. D eu a entender que a proposta no lhe agradava absolutamente, e que a lei dos hures valia pelo men os a lei dos baixo-bretes; enfim, disse que iria embora no dia seguinte. Acabaram de esvaziar a sua garrafa de gua de Barbados e foram deitar-se. Depois que o Ingnuo se recolheu ao quarto, a senhorita de Kerkabon e sua amiga a senhorita de St. Yves no puderam deixar de espiar pelo buraco da fechadura, para ver como dormia u m huro. Viram que havia estendido a roupa do leito no soalho e que repousava na mais bela atit ude do mundo. CAPTULO SEGUNDO O huro, chamado o Ingnuo, reconhecido por seus parentes. O Ingnuo, segundo o seu costume, acordou com o sol, ao cantar do galo, que chamad o na Inglaterra e na Hurnia a trombeta do dia. No era como a gente da alta., que enlang uesce num preguioso leito, at que o sol haja feito metade do seu curso, que no pode nem dormi r nem levantar-se, que perde tantas horas preciosas nesse estado intermedirio entre a vida e a morte , e ainda se queixa de que a vida demasiado curta. J fizera duas ou trs lguas, tendo abatido, a funda, umas trinta peas de caa, quando, ao regressar, encontrou o prior de Nossa Senhora da Montanha e sua discreta irm, que passeavam de touca de dormir pelo seu pequeno jardim. Apresentou-lhes a sua caa e, tirando da camisa uma espcie de talism que trazia sempre ao pescoo, pediu-lhes que o aceitassem como agradecimento pela sua boa recepo. - o que eu tenho de mais precioso - lhes disse ele. Asseguraram-me que eu seria sempre feliz enquanto o usasse. E assim lhes fao este presente, para que sejam sempre felizes. O prior e sua irm sorriram comovidos ante a simplicidade do Ingnuo. O referido pre sente consistia em dois pequenos retratos muito mal feitos, unidos por uma correia bastante sebe nta A senhorita de Kerkabon perguntou-lhe se havia pintores na Hurnia. - No - disse o Ingnuo, - esta raridade me veio de parte de minha ama; o seu marido a adquirira por conquista, despojando alguns franceses do Canad que haviam travado batalha conosc o. s o que eu sei. O prior examinava atentamente aqueles retratos; mudou de cor, emocionou-se, as mo s tremeram-lhe. - Por Nossa Senhora da Montanha - exclamou ele, - creio que o meu irmo capito e su a mulher. A senhorita, depois de os haver examinado com igual emoo, tambm achou o mesmo. Esta vam ambos transidos de espanto e de uma alegria mesclada de sofrimento; ambos se ent erneciam; ambos choravam; palpitava-lhes o corao; soltavam gritos; arrancavam um ao outro os retra tos; cada qual os tomava e devolvia vinte vezes por segundo devoravam com os olhos os retratos e o huro;

perguntavam-lhe um aps outro, e os dois ao mesmo tempo, em que lugar, em que temp o, de que modo, tinham aquelas miniaturas ido parar s mos da sua ama; comparavam as datas; lembrav am-se de ter tido notcias do capito at a sua chegada terra dos hures; poca em que mais nada souberam a seu respeito. Dissera-lhes o Ingnuo que no conhecera nem pai nem me. O prior, que era bom observa dor, notou que o Ingnuo tinha um pouco de barba e sabia que os hures no a tm. "Seu queixo tem b arba; o Ingnuo deve ser, portanto, filho de um europeu. Meu irmo e a minha cunhada no mais apareceram depois da expedio contra os hures em 1669; meu sobrinho devia ser ento criana de peit o; a ama huronesa lhe salvou a vida e serviu-lhe de me". Enfim, depois de cem perguntas e cem respostas, o prior e sua irm concluram que o huro era o seu prprio sobrinho. Beijavam-no a chorar; e o Ingnuo ria, sem poder imaginar como que um huro poderia ser sobrinho de um prior da Baixa Bre tanha. Acorreram todos; o senhor de St. Yves, que era grande fisionomista, comparou os dois retratos com o rosto do Ingnuo; notou habilmente que ele tinha os olhos da me, a testa e o nariz do falecido capito de Kerkabon, e as faces de ambos. A senhorita de St. Yves, que jamais vira o pai ne m a me, assegurou que o Ingnuo se lhes assemelhava perfeitamente. Admiravam todos a Providncia e o encad eamento dos sucessos deste mundo. Estavam enfim to persuadidos, to convictos da origem do Ingnu o, que ele prprio assentiu em ser sobrinho do senhor prior, dizendo que gostaria tanto de o ter por tio como a qualquer outro. Foram agradecer a Deus na igreja de Nossa Senhora da Montanha, enquanto o huro, c om um ar indiferente, divertia-se em beber em casa. Os ingleses que o tinham trazido, e que estavam prestes a zarpar, vieram dizer-l he que era tempo de partir. - Pelo que vejo - lhes disse o huro, - vocs no encontraram os seus tios: eu fico po r aqui; voltem para Plymouth; dou-lhes de presente todos os meus trapos; no tenho necessidade de mais nada no mundo, pois sou sobrinho de um prior. Os ingleses velejaram, pouco se lhes dando que o huro tivesse ou no parentes na Ba ixa Bretanha. Depois que o tio, a tia e todas as visitas cantaram o Te Deum; depois que o bail io encheu o Ingnuo de novas perguntas; depois que esgotaram tudo o que o espanto, a alegria e a ter nura podem fazer dizer, o prior da Montanha e o padre de St. Yves resolveram batiz-lo o mais depressa possve l Mas um huro adulto de vinte e dois anos no estava no mesmo caso de uma criana, a quem se regen era sem que esta fique sabendo coisa alguma. Era preciso doutrin-lo, e isso parecia difcil; pois o abade de St. Yves supunha que um homem que no nascera na Frana no podia ter senso comum. O prior observou companhia que, se de fato o Ingnuo, seu sobrinho, no tivera a ven

tura de nascer na Baixa Bretanha, nem por isso deixava de ter esprito, o que se poderia avaliar por todas as suas respostas, e que sem dvida a natureza muito o favorecera, tanto do lado paterno c omo do materno. Perguntaram-lhe primeiro se ele j tinha lido algum livro. Respondeu que lera Rabe lais traduzido em ingls e alguns trechos de Shakespeare que sabia de cor; que tinha encontrado esse s livros com o capito

do navio que o trouxera da Amrica para Plymouth, e que muito lhe haviam agradado. O bailio no deixou de interrog-lo sobre os referidos livros. - Confesso - disse o Ingnuo - que julguei adivinhar qualquer coisa, e no entendi o resto. A estas palavras, o padre de St. Yves refletiu que era assim que ele prprio sempr e havia lido, e que a maioria dos homens no lia de outro modo. - Com certeza j leu a Bblia, no? - perguntou ele ao Ingnuo. - Absolutamente, senhor padre; no estava entre os livros do meu capito, nem nunca ouvi falar nisso. - Eis como so esses malditos ingleses - gritava a senhorita Kerkabon. - Faro mais caso de uma pea de Shakespeare, de um plumpunding e de uma garrafa de rum do que do Pentateuco. por isso que jamais converteram ningum na Amrica. Certamente so amaldioados de Deus; e dentro em pouco ns lhes tomaremos a Jamaica e a Virgnia. Como quer que fosse, mandaram buscar o mais hbil alfaiate de Saint-Malo para vestir o Ingnuo dos ps cabea. O grupo separou-se; o bailio foi faze r suas perguntas noutra parte. A senhorita de St. Yves, ao partir, voltou-se vrias vezes, a fim de olhar para o Ingnuo; e fez-lhe reverncias mais profundas do que nunca as fizera a ningum em toda a vida. Antes de partir, o bailio apresentou senhorita de St. Yves um paspalho de filho q ue acabava de sair do colgio; ela, porm, mal lhe dirigiu o olhar, to preocupada estava com o huro. CAPTULO TERCEIRO O huro, chamado o Ingnuo, convertido. O senhor prior, vendo que envelhecia e que Deus lhe enviava um sobrinho para seu consolo, considerou que poderia resignar-lhe o priorado se conseguisse batiz-lo e faz-lo to mar hbito. O Ingnuo tinha excelente memria. A firmeza dos rgos breto., fortificada pelo clima do Canad, tornara-lhe a cabea to vigorosa que, quando batiam nela, mal o sentia; e, tudo que lhe gravavam dentro, nunca se apagava; jamais esquecera coisa alguma. E tanto mais viva e ntida era a sua concepo, porquanto a sua infncia no fora sobrecarregada com as inutilidades e tolices que a cabrunham a nossa, de modo que as coisas penetravam num crebro sem nuvens. O prior resolveu enfim fa z-lo ler o Novo Testamento. O Ingnuo devorou-o com grande prazer, mas, no sabendo em que tempo nem em que local haviam acontecido as aventuras ali referidas, no duvidou que o teatro dos a contecimentos fosse a Baixa Bretanha, e jurou que cortaria o nariz e as orelhas a Caifs e a Pilatos, se algum dia encontrasse esses marotos. O tio, encantado com essas boas disposies, o esclareceu em pouco tempo; louvou o s eu zelo, mas fez-lhe ver que esse zelo era intil, visto que tais pessoas haviam morrido h cerca de mil seiscentos e noventa anos. Em breve o Ingnuo sabia quase todo o livro de cor. Apresentava algu mas vezes objees que deixavam o prior em grandes dificuldades, obrigando-o a ir consultar o padre de St. Yves, o qual,

no sabendo o que responder, mandou chamar um jesuta breto para completar a converso do Ingnuo. Enfim a graa operou; o Ingnuo prometeu fazer-se cristo; e no teve a menor dvida de qu e deveria comear por ser circuncidado. - Pois - dizia ele - no vejo no livro que me deram a ler um nico personagem que no o tenha sido; , pois, evidente que devo fazer o sacrifcio do meu prepcio: e quanto mais cedo, melh or. No vacilou. Mandou chamar o cirurgio da aldeia e pediu-lhe que lhe fizesse a operao, esperando alegrar infinitamente a senhorita de Kerkabon e a toda a companhia, depois que o fato estivesse consumado. O cirurgio, que nunca fizera a operao referida, avisou a famlia, que brad ou aos cus. A boa Kerkabon temeu que seu sobrinho, que parecia resoluto e expedito, fizesse em si mesmo a operao com desastrada impercia, e disso resultassem tristes conseqncias pelas quais as dam as sempre se interessam por bondade de corao. O prior retificou as idias do huro; fez-lhe ver que a circunciso no estava mais em m oda, que o batismo era muito mais suave e salutar, que a lei da graa no era como a lei da aus teridade. O Ingnuo, que tinha bastante bom-senso e retido, discutiu, mas afinal reconheceu o seu erro , coisa muito rara na Europa em gente que discute; prometeu enfim submeter-se ao batismo quando bem qu isessem. Antes era preciso confessar-se, e ai estava a maior dificuldade. O Ingnuo, que se mpre trazia no bolso o livro que o tio lhe dera, no via ali nenhum apstolo que se houvesse jamais confe ssado, e isso o tornava bastante rebelde. O prior fechou-lhe a boca, mostrando-lhe, na epstola de S. Jaques o Moo, estas palavras que causam tanta espcie aos herticos: Confessei-vos uns aos outros. O huro no objetou mais nada e confessou-se a um recoleto. Terminada a confisso, tirou o frade do co nfessionrio, e, segurando vigorosamente o seu homem, obrigou-o a pr-se de joelhos, dizendo-lhe: - Vamos, meu amigo. Est escrito: Confessai-vos uns aos outros. Eu te contei os me us pecados; no sair daqui sem que me hajas contado os teus. Assim falando, apoiava o joelho contra o peito da parte adversria. O padre comea a soltar gritos que fazem reboar a igreja. Acodem ao barulho, vem o catecmeno a esmurrar o monge em no me de S. Jaques o Moo. Mas era to grande a alegria de batizar um baixo-breto huro e ingls, que passaram por alto essas singularidades. Houve at muitos telogos que pensaram no ser necessria a c onfisso, visto que o batismo servia para tudo. Combinaram a data com o bispo de Saint-Malo, que lisonjeado, como era de esperar -se, por batizar um huro, chegou em pomposa equipagem, acompanhado da sua clerezia. A senhorita de St. Yves, bendizendo a Deus, ps o seu mais belo vestido e mandou chamar uma cabeleireira de St. Malo, para brilhar na cerimnia. O inquiridor bailio acorreu com toda a provncia. A igreja est ava magnificamente

paramentada; mas, quando chegou a hora de levar o huro para a pia batismal, nada de huro. O tio e a tia o procuraram por toda parte. Julgaram que estivesse a caar, segundo o seu costume. Todos os convidados percorreram os matos e aldeias vizinhas: nem traos do huro. Comeava-se a temer que tivesse ele voltado para a Inglaterra. Lembravam-se de t-lo ouvido dizer

que gostava muito desse pas. O prior e a sua irm achavam-se persuadidos de que ali no batizavam ningum, e tremiam pela alma do sobrinho. O bispo estava confuso e prestes a regre ssar; o prior e o padre de St. Yves desesperavam-se. A senhorita de Kerkabon chorava; a senhorita de St. Yves no chorava, mas lanava profundos suspiros que pareciam testemunhar o seu gosto pelos sacramentos. Passeavam elas tristemente ao longo dos salgueiros e canios que marginam o ribeir o de Rance, quando avistaram no meio da corrente um grande vulto branco com as mos cruzadas no peito . Soltaram um grito e desviaram-se. Mas a curiosidade venceu logo qualquer outra considerao: pus eram-se ambas a avanar cautelosamente entre os canios e, quando se asseguraram de que no eram vista s, resolveram certificar-se do que se tratava. CAPTULO QUARTO O Ingnuo batizado. O prior e o abade, tendo acorrido, perguntaram ao Ingnuo o que estava fazendo ali . - Ora essa! Espero o batismo. Faz uma hora que estou dentro d'gua. E no nada direi to me deixarem aqui a gelar. - Meu querido sobrinho - disse-lhe carinhosamente o prior, - no assim que se faze m batizados na Baixa Bretanha; veste a tua roupa e vem conosco. Ouvindo tais palavras, a senhorita de St. Yves disse baixinho companheira: - Ser que ele j vai vestir-se? O huro, no entanto, retrucou ao prior: - Agora o senhor no me convencer como da outra vez; desde ento tenho estudado basta nte e estou certo de que no se batiza de outra maneira. O eunuco da rainha Candace foi batiza do num rio: desafio o senhor a que me mostre no livro que me deu se alguma vez se batizou a no ser assi m. Ou no serei batizado, ou serei batizado no rio. No adiantou alegar que haviam mudado os costumes. O Ingnuo era cabeudo, pois era br eto e huro. Voltava sempre ao eunuco da rainha Candace. E, embora a senhorita sua tia e a senhorita de St. Yves, que o tinham observado dentre os salgueiros, estivessem no direito de dize r-lhe que no lhe competia citar semelhante homem, abstiveram-se de qualquer interferncia, tamanha era a sua discrio. O prprio bispo veio falar-lhe, o que j era muito; mas no adiantou: o huro discutiu c om o bispo. - Mostre-me - lhe disse ele - no livro que o tio me deu, um nico homem que no se h aja batizado no rio, e eu farei tudo o que o senhor quiser. A tia, desesperada, havia notado que o sobrinho fizera uma reverncia mais profund a senhorita de St. Yves do que s outras pessoas, e que nem ao senhor bispo saudara com aquele re speito mesclado de

cordialidade que testemunhara formosa moa. A senhorita de Kerkabon tomou o partid o de dirigir-se a esta naquele grande embarao; pediu-lhe que usasse da sua influncia para induzir o huro a batizar-se maneira dos bretes, no acreditando que o seu sobrinho jamais pudesse ser cristo se teimasse em ser batizado na gua corrente. A senhorita de St. Yves enrubesceu com o secreto prazer que sentia em ser encarr egada de to importante misso. Aproximou-se modestamente do Ingnuo e, apertando-lhe a mo com um nobre gesto, disse-lhe: - Ser que no far nada por mim? E, assim falando, baixava os olhos e erguia-os com enternecedora graa. - Ah! farei tudo o que a senhorita quiser, tudo o que me ordenar: batismo de gua, batismo de fogo, batismo de sangue; no h nada que eu possa recusar-lhe. A senhorita de St. Yves teve a glria de conseguir com duas palavras o que no havia m conseguido nem as solicitaes do prior, nem as sucessivas interrogaes do bailio, nem as razes do senhor arcebispo. Ela sentiu o seu triunfo; mas no lhe avaliava ainda toda a extenso. O batismo foi administrado e recebido com toda a decncia, toda a pompa, toda a di stino possvel. O tio e a tia cederam ao senhor padre de St. Yves e sua irm a honra de servir de padrinhos ao Ingnuo. A senhorita de St. Yves radiava de alegria de se ver madrinha. No sabia ao que a sujeitava esse grande ttulo; aceitou a honra sem lhe conhecer as fatais conseqncias. Como nunca houve cerimnia que no fosse seguida de um brdio, sentaram-se mesa ao sai r do batismo. Os espirituosos da Baixa Bretanha objetaram que o vinho no deveria ser b atizado. O senhor prior dizia que o vinho, segundo Salomo, alegra o corao do homem. O senhor bispo ac rescentava que o patriarca Juda amarrava o seu jumento vinha e mergulhava o manto no sangue da uva e que era uma triste coisa no ser possvel fazer o mesmo na Baixa Bretanha, a que Deus negara as vinhas. Cada qual porfiava em dizer um gracejo sobre o batismo do Ingnuo e dirigir galanteios madri nha. O bailio, sempre interrogante, perguntava ao huro se este seria fiel s suas promessas. - Como quer que eu falte s minhas promessas - disse o huro, - quando as fiz entre as mos da senhorita de St. Yves? O huro entusiasmou-se; bebeu grande pela sade da madrinha. - Se eu tivesse sido batizado por suas mos - disse ele, - a gua fria que recebi so bre a nuca me teria queimado. O bailio achou a frase muito potica; ignorava o quanto a alegoria corriqueira no Canad. A madrinha, essa, sentiu-se extremamente satisfeita. - O Ingnuo recebera na pia batismal o nome de Hrcules. O bispo no cessava de pergun tar quem era esse padroeiro de quem nunca ouvira falar. O jesuta, que era muito erudito, respo ndeu-lhe que se tratava

de um santo que, fizera doze milagres. Havia, na verdade, um dcimo-terceiro que v alia os outros doze, mas no ficava bem a um jesuta referi-lo: era o de haver transformado cinqenta donze las em mulheres, numa nica noite. Um engraado ps-se a gabar entusiasticamente o referido milagre. To das as damas baixaram os olhos; e julgaram, pelo aspecto do Ingnuo, que era este digno do sant o de que trazia o nome. CAPTULO QUINTO O Ingnuo enamorado. Cumpre confessar que, depois daquele batizado e daquele banquete, a senhorita de St. Yves comeou a desejar ardentemente que o senhor bispo ainda a fizesse participante de algum belo sacramento com o senhor Hrcules Ingnuo. No entanto, como era bem educada e muito recatada, no ousava confessar a si mesma os seus ternos sentimentos; mas, se lhe escapava um olhar, uma palavra, um gesto, um pensamento, envolvia tudo isso num vu de pudor infinitamente amvel Era terna, pres surosa, mas comedida. Logo que o senhor bispo partiu, o Ingnuo e a senhorita de St. Yves se encontraram sem dar tento que se procuravam. Falaram-se, sem imaginar o que diriam. O Ingnuo lhe disse primeiro que a amava de todo o corao, e que a bela Abacaba, por quem estivera louco na sua terra, no lhe ch egava aos ps. Respondeu-lhe a senhorita, com o seu ordinrio recato, que era preciso o quanto an tes falar nisso ao senhor prior seu tio e senhorita sua tia, e que, da sua parte, ela iria dizer du as palavras ao seu caro irmo, o padre de St. Yves, e que esperava um consentimento geral. O Ingnuo respondeu-lhe que no tinha necessidade do consentimento de ningum; que lhe parecia extremamente ridculo ir perguntar a outros o que deviam fazer; que, quando dois e sto de acordo, no h necessidade de um terceiro para acomod-los. - No consulto ningum - alegou ele - quando tenho vontade de comer, de caar, ou de d ormir. Bem sei que, em, amor, bom ter o consentimento da pessoa a quem se deseja: mas, como no nem do meu tio nem da minha tia que estou enamorado, no a eles que me devo dirigir neste ass unto; e, quanto , senhorita, poder muito bem dispensar o senhor padre de St. Yves. A bela bret, como de imaginar, deve ter empregado toda a delicadeza de seu esprito para limitar o huro ao terreno do decoro. Chegou at a agastar-se e logo se apaziguou. E no se sabe como teria terminado tal conversao se, ao anoitecer, o senhor abade no houvesse levado a irm pa ra a sua abadia. O Ingnuo deixou que os tios se fossem deitar, pois estavam fatigados da cerimnia e do longo banquete, e passou parte da noite a fazer versos para a sua bem amada, em huro: pois sabido que no h pas no mundo em que o amor no torne poetas os namorados. No dia seguinte, aps o almoo, assim lhe falou o tio, em presena da senhorita Kerkab on, que se achava toda comovida:

- Louvado seja Deus, meu querido sobrinho, por teres a honra de ser cristo e breto ! Mas isso no

basta; j estou ficando velho; meu irmo apenas deixou um cantinho de terra que pouc o vale; tenho um bom priorado: se quiseres ao menos fazer-te subdicono, como o espero, resignarei meu priorado em teu favor, e vivers folgadamente, depois de ter sido o consolo da minha velhice. - Meu tio - respondeu-lhe o Ingnuo, - que bom proveito lhe faa! Viva quanto puder. Quanto a mim, no sei o que subdicono, nem o que quer dizer resignar; mas tudo me ficar bem, desde que tenha a senhorita de St. Yves minha disposio. - Meu Deus, meu sobrinho! Que me dizes? Amas ento loucamente a essa linda senhori ta? - Sim, meu tio. - Ai, meu sobrinho! impossvel casares com ela. - Nada mais possvel, meu tio; pois ela, ao partir, no s me apertou a mo significativ amente, como prometeu que me pediria em casamento; e sem dvida nenhuma a desposarei. -.Impossvel, te digo eu; ela tua madrinha; e um terrvel pecado para uma madrinha a pertar assim a mo do afilhado; no permitido casar com a prpria madrinha; a isto se opem as leis div inas e as leis humanas. - Hom'essa, meu tio! Deixe de brincadeira: por que h de ser proibido casar com a madrinha, quando ela moa e bonita? No vi no livro que o senhor me deu que no ficasse bem desposar as moas que ajudam a gente a ser batizado. Todos os dias descubro que fazem aqui uma infinid ade de coisas que no esto no seu livro, e que nada fazem de tudo o que ele diz. Confesso-lhe que isso me espanta e aborrece. Se me privarem da bela St. Yves, sob pretexto de batismo, fique o senhor avisado de que a tiro de casa e me desbatiso. O prior ficou confuso; a irm ps-se a chorar. - Meu caro irmo - disse ela, - o nosso sobrinho no deve perder a alma; o nosso San to Padre lhe poder conceder dispensa, e ento ele poder ser cristmente feliz com aquela a quem ama . O Ingnuo beijou a tia. - Quem esse amvel homem - disse ele ,- que favorece to bondosamente os amores dos jovens? Quero ir falar-lhe imediatamente. Explicaram-lhe o que era o Papa, e o Ingnuo ficou ainda mais espantado do que ant es: - No h uma palavra de tudo isso no seu livro, meu estimado tio; tenho viajado, con heo o mar; estamos na costa do Oceano; e eu vou deixar a senhorita de St. Yves para ir pedi r permisso de am-la a um homem que mora alm do Mediterrneo, a quatrocentas lguas daqui, e cuja lngua desco nheo?! Palavra, isso de um ridculo incompreensvel. Vou falar imediatamente com o padre de St. Yves, que mora apenas a uma lgua, e garanto-lhe que desposarei hoje mesmo aquela a quem amo .

Estava ainda a falar quando entrou o bailio, o qual, segundo o seu costume, lhe perguntou aonde ia. - Vou casar-me - disse o Ingnuo, a correr. E dali a um quarto de hora se achava e le em casa da sua bela e querida bret, que ainda estava dormindo. - Ah, meu irmo - dizia a senhorita de Kerkabon ao prior, - jamais fars um subdicono do nosso sobrinho. O bailio ficou descontentssimo com tal viagem, pois pretendia casar o seu filho c om a St. Yves; e esse filho era ainda mais tolo e insuportvel que o pai. CAPTULO SEXTO O Ingnuo chega casa de sua amada e fica deveras furioso. Logo que chegou, perguntara o Ingnuo a uma criada velha onde era o quarto da sua querida, e, sem perda de tempo, empurrara fortemente a porta mal fechada, correndo para o leito. Acordando-se em sobressalto, exclamara a senhorita: - Como?! s tu? Pra, pra! Que que ests fazendo? Estou casando contigo - respondera el e. E com efeito a desposaria se ela no se houvesse debatido com toda a honestidade de uma pessoa que recebeu educao. O Ingnuo no queria saber de brincadeira; achava todas aquelas gatimnias muito fora de propsito: - No era assim que fazia a senhorita Abacaba, a minha primeira namorada; no tens n enhuma seriedade; prometeste-me casamento e no queres casar: ests infringindo as leis mai s elementares da honra; hei de ensinar-te a manteres a tua palavra, e te porei no caminho da virt ude. O Ingnuo possua uma virtude varonil e intrpida, digna do seu padroeiro Hrcules, cujo nome recebera na pia; ia exerc-la em toda a sua extenso quando, aos lancinantes gritos da senhorita, mais discretamente virtuosa, acudiu o honrado padre de St. Yves, com a sua governante , um velho criado devoto e um padre da parquia. - Meu Deus, meu caro vizinho - lhe disse o abade, - que vem a ser isso? - o meu dever - replicou o jovem. - Estou simplesmente cumprindo a minha promess a, que sagrada. A senhorita de St. Yves recomps-se, enrubescendo. Levaram o Ingnuo para outro quar to. O abade censurou-lhe a monstruosidade do seu procedimento. O Ingnuo defendeu-se, alegando os privilgios da lei natural, que conhecia perfeitamente. O abade ps-se a provar que a lei positiv a devia ter precedncia e que, se no fossem as convenes estabelecidas entre os homens, a lei da natureza seri a quase sempre uma violao natural.

-.Fazem-se mister - disse ele - notrios, padres, testemunhas, contratos, dispens as. - Respondeu-lhe o Ingnuo com a reflexo que sempre fizeram os selvagens: - Muito desonestos devem ser vocs, visto que necessrio tomar tantas precaues. Bastante trabalho teve o sacerdote em resolver tal dificuldade. - Confesso - disse ele - que h muitos inconstantes e velhacos entre ns, como haver ia entre os hures, se estes estivessem reunidos em uma grande cidade; mas tambm h homens sbios, honest os, esclarecidos, e foram estes que fizeram as leis. Quanto mais honrado um homem, m ais deve submeter-se a elas; assim se d exemplo aos viciosos, que respeitam um freio que a virtude se imps a si mesma. Tal resposta impressionou o Ingnuo. J ficou dito que tinha ele um esprito justo. Ac almaram-no com lisonjas; encheram-no de esperanas: ciladas em que sempre caem os homens dos dois hemisfrios; trouxeram at, sua presena, a senhorita de St Yves, depois que esta fez conveniente mente a sua toilette. Tudo se passou no maior decoro. Mas, apesar de toda essa decncia, os ol hos flamejantes do Ingnuo Hrcules faziam baixar os da sua amada e tremer a assistncia. Tiveram imenso trabalho para o reconduzir a seus parentes. Ainda desta vez foi p reciso recorrer influncia da bela St. Yves; quanto mais sentia esta o seu poder sobre ele, mais o amava. Obrigou-o a partir, com o que ficou sinceramente aflita. Afinal, depois que ele se foi, o ab ade que, alm de irmo mais velho da senhorita de St. Yves, era tambm seu tutor, tomou o partido de subt rair sua pupila s solicitudes daquele terrvel namorado. Foi aconselhar-se com o bailio, que, tendo sempre em vista o casamento de seu filho com a irm do abade, alvitrou que se mandasse a pobre moa pa ra um convento. Foi um golpe terrvel: uma indiferente que fosse metida num convento haveria de prse aos gritos; quanto mais uma enamorada, e to apaixonada quanto honesta; era mesmo de desespera r. O Ingnuo, de volta ao priorado, contou tudo, o que acontecera com a sua costumeir a simplicidade. Recebeu as mesmas censuras, que lhe produziram algum efeito no esprito e nenhum n os seus sentidos. Mas, no dia seguinte, quando pretendeu voltar casa de sua amada, para discutir c om ela sobre a lei natural e a lei convencional, disse-lhe o senhor bailio, com insultuosa alegria, que a senhorita de St. Yves se achava num convento. - Pois bem - disse ele, - irei discutir com ela nesse convento. - Impossvel - disse o bailio. E longamente lhe explicou que coisa era um convento ; esclareceu que tal palavra vinha do latim conventus, que significa assemblia; e o huro no atinava por que no poderia ser admitido numa assemblia. Ao saber que essa assemblia era uma espcie de priso onde ma ntinham encerradas as moas - coisa horrvel, desconhecida entre os hures e os ingleses, - fi cou to furioso como o seu padroeiro Hrcules quando Eurites, rei da Eclia, no menos cruel que o padre de St. Yves, lhe

recusou a linda Iola sua filha, no menos linda que a irm do padre. Queria incendia r o convento, roubar a namorada, ou morrer com ela em meio s chamas.

A senhorita de Kerkabon, desesperada, renunciava mais do que nunca a todas as e speranas de ver o seu sobrinho subdicono, e dizia, a chorar, que ele tinha o diabo no corpo depois que fora batizado. CAPTULO STIMO O Ingnuo repele os ingleses. O Ingnuo, mergulhado em negra e profunda melancolia, foi passear beira mar, de fu zil s costas e faco cinta, atirando de tempos em tempos nalguns pssaros, e muita vez tentando ati rar em si mesmo; mas amava ainda a vida, por causa da senhorita de St. Yves. Ora amaldioava o tio, a tia, e toda a Baixa Bretanha, e o seu batismo; ora os abenoava, pois lhe haviam feito conhecer aquela a quem amava. Tomava a resoluo de ir incendiar o convento, e subitamente desistia, por medo de q ueimar a sua amada. As ondas da Mancha no so mais agitadas pelos ventos de leste a oeste do que o era o seu corao por tantos movimentos contrrios. Marchava a grandes passadas, sem saber por onde, quando ouviu um rufar de tambor es. Viu ao longe uma multido que corria metade para a margem e metade fugia para o interior. Mil gritos se elevavam de toda parte; a curiosidade e a coragem fazem-no precipi tar-se incontinenti para o local de onde partiam aqueles clamores; em quatro saltos se aproxima. O comandante da milcia, que ceara em casa do prior, logo o reconheceu; corre a el e de braos abertos: "Ah! o Ingnuo. ele combater por ns". E as milcias, que morriam de medo, tranqilizaram-se e gritaram tambm: o Ingnuo! o Ingnuo!" - Senhores, de que se trata? Por que se acham todos to desnorteados? Meteram as s uas noivas no convento? Ento cem vozes confusas exclamam: - No vs os ingleses que abordam? - Bem - disse o Ingnuo, - so boa gente; nunca pensaram em fazer-me subdicono, nem m e roubaram a noiva. O comandante deu-lhe a entender que os ingleses vinham pilhar a abadia da Montan ha, beber o vinho de seu tio e talvez raptar a senhorita de St. Yves; que o pequeno barco em que e le, Ingnuo, aportara na Bretanha, viera apenas para fazer um reconhecimento; que os ingleses praticavam atos de hostilidade sem haver declarado guerra ao rei de Frana, e que a provncia se achava exposta. - Ah! se assim, eles violam a lei natural; deixem a coisa comigo; morei muito te mpo com os ingleses, conheo-lhes a lngua e vou falar com eles; no creio que possam ter to ms int enes. Durante essa conversao, a esquadra inglesa aproximava-se; o nosso huro toma um barc o, vai a seu

encontro, sobe nau capitnia, e pergunta se era verdade que eles vinham assolar o pas sem uma honesta declarao de guerra. O almirante e toda a sua gente puseram-se a rir, serviram-lhe ponche e mandaram-no de volta. O Ingnuo, espicaado, s pensou em bater-se s direitas contra os seus velhos amigos, p or seus compatriotas e pelo senhor prior. Os gentis-homens da vizinhana acorriam de toda parte; o Ingnuo junta-se a eles; dispunham de alguns canhes; ele os carrega, os aponta, os dispar a um aps outro. Os ingleses desembarcam; o Ingnuo os acomete, mata uns trs e fere o almirante que zom bara dele. Sua coragem anima toda a milcia, os ingleses reembarcam, toda a costa reboava com os gritos de vitria: "Viva o Rei' Viva o Ingnuo!" Todos o abraam, todos se apressam em estancar-lhe o s angue de alguns ferimentos leves que recebera. "Ah! - dizia ele, se a senhorita de St. Yves esti vesse aqui, me poria uma compressa". O bailio, que se escondera na sua adega durante o combate, veio cumpriment-lo com o os outros. Mas muito se surpreendeu ao ouvir o Ingnuo dizer a uma dzia de homens de boa vontade q ue o cercavam: "Meus amigos, no basta ter livrado a Abadia da Montanha; preciso libertar uma mul her". Toda aquela vibrante mocidade prendeu fogo, a essas simples palavras. J o seguiam em multido, j corriam para o convento. Se o bailio no tivesse logo avisado o comandante, se no tivessem corrido emps do alegre bando, estava tudo consumado. Trouxeram o Ingnuo para a casa dos tios, que o inun daram de lgrimas de ternura. - Bem vejo que nunca sers nem subdicono nem prior - lhe disse o tio. - Sers um ofic ial ainda mais bravo do que o meu irmo, e provavelmente to necessitado quanto ele. E a senhorita de Kerkabon continuava a abra-lo, a chorar e a dizer: - Ele vai expor-se morte como o meu irmo; antes fosse subdicono! O Ingnuo, durante o combate, apanhara uma gorda bolsa cheia de guinus que decerto o almirante deixara cair. E no tinha a menor dvida de que, com aquela bolsa, poderia comprar t oda a Bretanha, e sobretudo fazer da senhorita de St. Yves uma grande dama. Todos o exortaram a ir a Versalhes receber o prmio de seus servios. O comandante e os primeiros oficiais encheram-no de certifi cados. O tio e a tia aprovaram a viagem do sobrinho. Ele devia ser, sem dificuldade, apresentado - ao rei: s isso lhe daria uma prodigiosa importncia na provncia. As duas excelentes criaturas acrescentaram bolsa inglesa um considervel presente tirado das suas economias, O Ingnuo dizia consigo: "Quando vi r o Rei, vou pedir-lhe a senhorita de St. Yves em casamento, e ele no mo negar". Partiu, pois, sob as aclamaes de todo o canto, afogado de abraos, banhado pelas lgrim as da tia, abenoado pelo tio, e recomendando-se bela St. Yves. CAPTULO OITAVO O Ingnuo vai Corte. Janta em caminho, com huguenotes.

O Ingnuo seguiu de coche pela estrada de Saumur, porque no havia ento outra comodid ade.

Chegado a esta cidade, espantou-se de encontr-la quase deserta e de ver vrias famli as que se mudavam. Disseram-lhe que Saumur, seis anos antes, continha mais de quinze mil a lmas, e que agora no contava mais de seis mil. No deixou de falar nisso, mesa da hospedaria. Vrios pr otestantes ali se achavam; Uns queixavam-se amargamente, outros fremiam de clera, outros choravam, dizendo: Nos dulcia linquimus arva, nos patriam fugimus. O Ingnuo, que no sabia latim, pediu ex plicao de tais palavras, que significam: Abandonamos as nossas suaves campanhas, fugimos da nos sa ptria. - E por que fogem de sua ptria, senhores? - porque querem que reconheamos o Papa. - E por que no o reconhecem? No tm, ento, madrinhas com quem desejam casar? Pois me disseram que o Papa que d licena para isso. - Ah! esse Papa diz que senhor do domnio dos reis. - Mas qual a profisso dos senhores? - Somos, na maioria, teceles e fabricantes. - Se o Papa alega que senhor dos tecidos e das fbricas, fazem muito bem em no reco nhec-lo; mas, quanto aos reis, isso com eles; por que se metem os senhores em tais assunt os? Um homenzinho de preto tomou ento a palavra e exps habilmente as queixas da compan hia. Referiu-se com tanta energia revogao do dito de Nantes, deplorou de modo to pattico a sorte de cinqenta mil famlias fugitivas e de cinqenta mil outras convertidas pelos drages, qu e o Ingnuo por sua vez desatou em pranto. - Como se explica ento - dizia ele - que to grande rei, cuja glria se estende at os hures, se prive de tantos coraes que poderiam am-lo e de tantos braos que poderiam servi-lo? - que o enganaram, como aos outros grandes reis. Convenceram-no de que, logo que dissesse uma palavra, todos os homens pensariam como ele, e que nos faria mudar de religio com o o seu msico Lulli muda em um instante os cenrios de suas peras. No s perde ele quinhentos a seiscentos mil sditos muito teis, como os faz inimigos seus; e o rei Guilherme, que atualmente senhor d a Inglaterra, constituiu vrios regimentos desses mesmos franceses que poderiam combater por seu monarca. Tanto mais espantoso esse desastre, porquanto o Papa reinante, a quem Lus XIV sacrifica parte do povo, seu inimigo declarado. Vm ambos mantendo, h nove anos, uma querela violenta, a qua l atingiu a tais extremos, que a Frana pensou ver enfim quebrar-se o jugo que h tantos sculos a subm ete a esse estrangeiro, e que, principalmente no lhe mandaria mais dinheiro, o que o primeir o mvel dos assuntos deste mundo. Parece, pois, evidente que enganaram a esse grande rei no tocante aos seus interesses e extenso de seu poder, frustrando-lhe tambm a magnanimidade do corao. O Ingnuo, cada vez mais impressionado, perguntou quais eram os franceses que assi m enganavam um monarca to caro aos hures.

- So os jesutas - responderam-lhe - e principalmente o padre de La Chaise, confes sor de Sua Majestade. Esperemos que Deus os castigue um dia e que sejam caados como agora no s caam. Haver desgraa igual nossa? De toda parte, Mons. de Louvois nos envia jesutas e drages. - Pois bem, senhores - replicou o Ingnuo, que no mais podia conter-se, - eu vou a Versalhes receber a devida recompensa a meus servios; falarei a esse Mons. de Louvois; - disseram-m e que ele que dirige a guerra, de seu gabinete. Vou falar com o Rei e dar-lhe a conhecer a ver dade; no h quem no termine por se render a essa evidncia. Em breve estarei de volta para desposar a senhorita de St. Yves, e convido-os a todos para o casamento. Aquela boa gente o tomou ento por um gro-senhor que viajava incgnito. Alguns pensav am que fosse o bobo do Rei. Havia entre os convivas um jesuta disfarado que servia de espio ao reverendo padre de La Chaise. Trazia-o a par de tudo, e o padre de La Chaise remetia as informaes a Monsenhor de Louvois. O espio escreveu. O Ingnuo e a carta chegaram quase ao mesmo tempo em Versalhes. CAPTULO NONO Chegada do Ingnuo a Versalhes. Sua recepo. O Ingnuo desceu no ptio das cozinhas reais. Pergunta aos portadores da liteira a q ue horas pode falar com o Rei. Os portadores riem-lhe na cara, como o fizera o almirante ingls. Ingnuo revidou como a este ltimo; bateu-lhes. Quiseram dar-lhe o troco. E ia haver uma cena de sangue , quando passou um guarda do corpo, gentil-homem breto, que dispersou a canalha. - O senhor me parece um homem s direitas - lhe disse Ingnuo. - Sou sobrinho do pri or de Nossa Senhora da Montanha; matei ingleses, venho falar ao rei. O guarda, encantado de encontrar um bravo da sua provncia que no parecia a par dos usos da Corte, disse-lhe que no era assim que se falava com o rei, e que era preciso ser apresen tado a monsenhor de Louvois. - Pois bem, leve-me ento a esse monsenhor de Louvois, que sem dvida me conduzir a s ua Majestade. - ainda mais difcil - replicou o guarda - falar a monsenhor de Louvois do que a S ua Majestade. Mas vou conduzi-lo ao senhor Alexandre, primeiro oficial: como falar ao ministro. Vo pois a esse senhor Alexandre, e no podem ser admitidos; estava ele em conferncia com uma dama da corte e dera ordens para que no deixassem entrar ningum. - Bem - disse o guarda, - ainda h remdio. Vamos ao primeiro oficial do senhor Alex andre: como falar ao prprio senhor Alexandre.

O huro, espantado, o acompanha; permanecem meia hora numa pequena sala de espera . - Que quer dizer isso? - exclamou o Ingnuo. - Ser que todos so invisveis aqui? mais fcil lutar na Bretanha contra ingleses do que encontrar em Versalhes as pessoas com quem se precisa falar. Distraiu-se contando seus amores ao companheiro. Mas o guarda teve de ir a seus deveres. Prometeram encontrar-se no dia seguinte; e o Ingnuo ficou ainda outra meia hora n a sala-de-espera, pensando na senhorita de St. Yves e na dificuldade de falar aos reis e aos ofici ais. Afinal o oficial apareceu. - Senhor - disse-lhe o Ingnuo, - se eu tivesse esperado, para expulsar os inglese s, tanto tempo quanto me fez esperar por minha audincia, eles agora estariam assolando vontade toda a B retanha. Tais palavras impressionaram o alto funcionrio, que disse afinal ao breto: - Que. quer o senhor? - Recompensa - respondeu o outro. - Eis aqui as minhas credenciais. E mostrou-lhe todos os certificados, O funcionrio os leu e disse que provavelment e lhe concederiam permisso para comprar um posto de lugar-tenente. - Como! Que eu d dinheiro por haver rechaado os ingleses?! Que eu pague o direito de expor a vida pelo senhor, enquanto o amigo d tranqilamente as suas audincias?! Deixe-se de grace jos. Quero uma companhia de cavalaria gratuitamente. Quero que o Rei faa sair a senhorita de St. Yves do convento e me conceda a sua mo. Quero falar ao rei em favor de cinqenta mil famlias que preten do devolver-lhe. Numa palavra, quero ser til: que me empreguem e me promovam. - E como se chama o senhor, que assim fala to alto? - Oh! Oh! - tornou o Ingnuo. - No leu ento os meus certificados? assim que tratam a gente? Chamo-me Hrcules de Kerkabon; sou batizado, paro no Quadrante Azul, e me queixare i do senhor a Sua Majestade. O funcionrio concluiu, como o pessoal de Saumur, que o Ingnuo no ia muito bem da ca bea, e no lhe deu maior ateno. Naquele mesmo dia, o reverendo padre La Chaise, confessor de Lus XIV, recebera a carta de seu espio que acusava Kerkabon de simpatizar com os huguenote s e ser contrrio orientao dos jesutas. O senhor de Louvois, por seu lado, recebera uma carta do inte rrogativo bailio, na qual o Ingnuo era apresentado como um valdevinos que queria incendiar conventos e raptar donzelas. Este, depois de passear pelos jardins de Versalhes, onde se aborreceu, depois de haver jantado como um huro e como breto, deitara-se na doce esperana de ver ao Rei no dia seguinte, de conseguir a mo da senhorita de St. Yves, de obter ao menos uma companhia de cavalaria e fazer c essar a perseguio contra os huguenotes. Embalava-se nesses fagueiros pensamentos, quando a polcia l he penetrou no

quarto. Apoderaram-se primeiro do seu fuzil de dois tiros e do seu grande sabre. Fizeram um inventrio do seu dinheiro de bolso, e levaram-no para o castelo que o rei Carlos V, filho de Joo II, mandou construir nas proximidades da rua de Santo Antnio, porta das Tournelles. Qual no foi o espanto do Ingnuo, coisa que deixo vossa imaginao. Julgou, a princpio, que se tratava apenas de um sonho. E permaneceu em uma espcie de modorra. Depois, de sbit o, acometido de um furor que lhe duplicava as foras, pega pela garganta dois de seus condutores q ue estavam com ele no carro, lana-os pela portinhola, atira-se por sua vez, arrastando o terceiro, que o queria deter. Tomba com o esforo, amarram-no fortemente, levam-no de novo para o veculo. "Eis - pensava el e - o que se ganha em expulsar os ingleses! Que no dirias tu, minha bela St. Yves, se me visses em t al estado?!" Chegam enfim ao local de seu destino. Levam-no em silncio para a cela onde devia ser encerrado, como um morto que carregam para o cemitrio. A cela estava j ocupada por um velho s olitrio de Port-Royal, chamado Gordon, que h dois anos ali definhava. "Olhe! - disse a este o chefe dos esbirros. Trago-lhe aqui um companheiro". E imediatamente baixaram os enormes ferrolhos da porta macia, revestida de largas barras. Os cativos ficaram separados do universo inteiro. CAPTULO DCIMO O Ingnuo encarcerado na Bastilha com um jansenista. Gordon era um velhote bem conservado e sereno, que sabia duas grandes coisas: su portar a adversidade e consolar os infelizes. Avanou com fisionomia aberta e compassiva pa ra o seu companheiro, e disse-lhe, abraando-o: - Quem quer que sejas tu que vens partilhar do meu tmulo, fica certo de que sempr e esquecerei a mim mesmo, para suavizar os teus tormentos no abismo infernal em que estamos mer gulhados. Adoremos a Providncia que para aqui nos trouxe, soframos em paz e esperemos. Tais palavras causaram na alma do Ingnuo o efeito das Gotas da Inglaterra, que ch amam um moribundo vida e o fazem entreabrir os olhos espantados. Aps os primeiros cumprimentos, Gordon, sem o apressar a dizer-lhe a causa da sua desgraa, inspirou-lhe, pela brandura de suas palavras e esse interesse que tm um pelo outr o dois infelizes, o desejo de abrir o corao e aliviar-se do fardo que o oprimia. Mas o Ingnuo no podia a divinhar o motivo da sua priso: aquilo lhe parecia um efeito sem causa, e Gordon achava-se to espantado quanto ele. - fora de dvida - disse o jansenista ao huro, que Deus deve ter grandes desgnios a teu respeito, pois te conduziu do lago Ontrio Inglaterra e Frana, fez-te batizar na Bretanha, en cerrando-te depois aqui, para salvao de tua alma. - Palavra - retrucou o Ingnuo, - creio que foi apenas o diabo que se meteu no meu destino. Meus compatriotas da Amrica jamais me tratariam com esta selvageria; eles no tm a mnima i dia disto.

Chamava-lhes selvagens; so, de fato, criaturas bastante grosseiras, ao passo que os homens daqui so uns refinados patifes. Sinto-me, na verdade, muito surpreso de ter vindo do outr o mundo para ser trancafiado neste, em companhia de um padre; mas penso no prodigioso nmero de hom ens que partem de um hemisfrio para serem mortos no outro, ou que naufragam em caminho e so devor ados pelos peixes: no atino quais sejam os graciosos desgnios de Deus a respeito de toda essa gente. - Alcanaram-lhes comida por um postigo. A conversao versou sobre a Providncia, as ca rtas de prego, e sobre a arte de no sucumbir s desgraas a que todo homem se v exposto neste mundo. - H dois anos que estou aqui - disse o velho, - sem outra consolao a no ser eu prprio e alguns livros; e at agora no tive um s momento de mau humor. - Ah! o senhor no ama a sua madrinha, ento' - exclamou o Ingnuo. - Mas se conhecess e, como eu, a senhorita de St. Yves, estaria no maior desespero. A estas palavras, no pode conter as lgrimas, e sentiu-se ento um pouco menos opress o. - Mas por que ser que as lgrimas aliviam? - observou ele. - Quer-me parecer que de veriam produzir efeito contrrio. - Meu filho, tudo em ns de natureza fsica - disse o bom do velho. - Toda secreo faz bem ao corpo, e tudo o que o alivia alivia a alma; ns somos as mquinas da Providncia. O Ingnuo que, como vrias vezes o dissemos, tinha grande profundeza de esprito, refl etiu muito sobre essa idia, cuja semente dir-se-ia jazer-lhe na alma. Perguntou depois ao co mpanheiro por que a sua mquina se achava h dois anos aprisionada. - devido graa eficaz - respondeu Gordon. - Passo por jansenista: conheci Arnauld e Nicole; os jesutas nos perseguiram. Ns cremos que o Papa no mais que um vigrio como qualquer ou tro, e foi por isso que o padre de La Chaise obteve do rei, seu penitente, a ordem de me ar rebatarem, sem nenhuma formalidade legal, o mais precioso bem dos homens, a liberdade. - Eis uma coisa bastante estranha - ponderou o Ingnuo; - todos os infelizes que t enho encontrado s o so por causa do Papa. E, quanto sua graa eficaz, confesso que nada entendo; mas co nsidero uma grande graa que Deus me tenha feito encontrar, na minha desventura, um homem como o senhor, que lana em minh'alma consolao de que eu me julgava incapaz. Cada dia a conversao se tornava mais interessante e instrutiva. As almas dos dois cativos ligavam-se uma outra. O velho sabia muito, e o jovem muito desejava aprender. De ntro em um ms, estava estudando geometria: devorava-a. Gordon lhe deu a ler a Fsica de Rohault, que ainda estava em moda, e ele teve o bom senso de ali s encontrar incertezas. Leu depois o primeiro volume da Pesquisa da Verdade. Essa nova luz esclareceu-lh e multa coisa. "Como! - dizia ele. - A tal ponto nos enganam os nossos sentidos e a nossa imagi nao!? Ento os objetos no formam as nossas idias e nem ns prprios as podemos arquitetar!?" Depois d

e ler o segundo volume, j no ficou to satisfeito e concluiu que era mais fcil destruir que e dificar.

O padre, espantado de que um jovem ignorante fizesse uma reflexo to prpria de alma s experientes, teve em grande considerao o seu esprito e mais se afeioou ao companheiro. - Este seu Malebranche - disse-lhe um dia o Ingnuo - me parece ter escrito a meta de do livro com a razo, e a outra com a sua imaginao e os seus preconceitos. Alguns dias depois, perguntou-lhe Gordon: - Que pensas ento da alma, da maneira como recebemos as nossas idias, da nossa von tade, da graa, do livre arbtrio? - Nada - respondeu o Ingnuo. - Se alguma cousa penso que estamos sob o poder do S er Eterno, como os astros e os elementos, que Ele faz tudo em ns, pequenas engrenagens que s omos na imensa mquina de que Ele a alma; que Ele exerce a sua ao por leis gerais e no com objetivos particulares; s isto me parece inteligvel, o resto para mim um abismo de trevas. - Mas, meu filho, isso seria fazer de Deus autor do pecado. - No entanto, meu padre, a sua graa eficaz tambm faria de Deus autor do pecado: po is certo que todos aqueles a quem a sua graa seria recusada pecariam; e quem nos abandona ao m al no autor do nosso mal? Tal simplicidade embaraava o bom do velho; ele prprio sentia os seus vos esforos par a safar-se do atoleiro e acumulava tantas palavras que pareciam ter sentido e no o tinham (n o gnero da premonio fsica, por exemplo) que o Ingnuo chegava a sentir piedade. Tal questo eviden temente se ligava origem do bem e do mal; e o pobre Gordon punha-se ento a passar em revista o cofre de Pandora, o ovo de Orosmade furado por Arimnio, a inimizade entre Tfon e Osiris, e enfim o pecado original; e ambos corriam nessa noite profunda, sem jamais se encontrarem um ao outro. Mas afinal aquele romance da alma lhes desviava o esprito da contemplao da sua prpria misria; e, por um estranho encantamento, a multido das calamidades esparsas no universo diminua a se nsao das suas penas: no ousavam queixar-se quando tudo sofria. Mas, no descanso da noite, a imagem da bela St. Yves apagava no esprito de seu en amorado todas as idias de metafsica e de moral. Ele acordava com os olhos midos de lgrimas. E o velho jansenista esquecia a sua graa eficaz e o abade de Saint Cyran e Jansenius, para consolar um jovem a quem supunha em pecado mortal. Depois de lerem, de discutirem, tornavam a falar de suas aventuras; e depois de terem falado inutilmente sobre elas, punham-se a ler juntos ou separadamente. Cada vez mais s e fortalecia o esprito do jovem. E iria muito longe em matemtica, se no fossem as distraes que lhe causava a senhorita de St Yves. Leu livros de Histria, que o entristeceram. O mundo lhe pareceu demasiado mau e d emasiado miservel. A Histria, com efeito, no mais que o quadro dos crimes e das desgraas. A m ultido de homens inocentes e pacficos sempre se apaga nesse vasto cenrio. Os principais papis

esto com os

ambiciosos e os perversos. Parece que a Histria .s agrada como nos agrada a tragdia , que aborrece quando no animada pelas paixes, os crimes, e os grandes infortnios. E preciso armar a Clio de um punhal, como Melpmene. Embora seja a histria da Frana to cheia de horrores como todas as outras, pareceu-l he, no entanto, to enfadonha no princpio, to seca no meio, to pequena enfim, mesmo no tempo de Henri que IV, to desprovida sempre de grandes momentos, to estranha a essas belas descobertas que ilustraram outras naes, que se via obrigado a lutar contra o tdio para ler todos aqueles detalhes de obscuras calamidades delimitadas num canto do mundo. Gordon pensava como ele. Riam ambos de piedade ante aqueles soberanos de Fezensa c, de Fezensaguet e de Astarac. Tal estudo, enfim, s aproveitaria aos herdeiros destes, se os tivessem. Os belos sculos da repblica romana deixaram-no por algum tempo indiferente ao resto d a terra. O espetculo da Roma vitoriosa e legisladora das naes ocupava-lhe a alma inteira. Arre batava-se ao contemplar aquele povo que foi governado setecentos anos pelo entusiasmo da libe rdade e da glria. Assim se passavam os dias, as semanas, os meses; e ele at se julgaria feliz na mo rada do desespero, se no amasse. Sua bondosa alma enternecia-se lembrana do prior e da sensvel Kerkabon. "Que pensa ro eles repetia seguidamente, - sem notcias minhas? Ho de julgar-me um ingrato". Esse pens amento atormentava-o; lamentava aqueles que o amavam, muito mais do que a si mesmo. CAPTULO DCIMO - PRIMEIRO Como o Ingnuo desenvolve o seu esprito. A leitura eleva a alma, e um amigo esclarecido a consola. O nosso cativo gozava dessas duas vantagens que antes no havia suspeitado. "Sinto-me tentado - disse ele - a crer n as metamorfoses, pois fui transformado de bruto em homem". Formou uma biblioteca escolhida, com parte de seu dinheiro de que lhe permitiam dispor. O amigo o induziu a deitar por escrito as suas reflexes . Eis o que escreveu sobre a histria antiga: "Imagino que as naes foram por muito tempo como eu: s se instruram muito tarde e, du rante sculos, s se ocuparam do momento presente, muito pouco do passado, e jamais do fut uro. Percorri quinhentas ou seiscentas lguas do Canad, sem encontrar um nico monumento; ningum, po r l, sabe o que fez seu bisav. No ser esse o estado natural do homem? A espcie que habita este c ontinente parece-me superior do outro. H sculos vem ela ampliando o seu esprito, por intermdio das artes e dos conhecimentos. Ser porque tm eles barba no queixo e Deus a recusou aos america nos? No o creio, pois vejo que os chineses quase no tm barba e cultivam as artes h mais de cinco mil anos. E, se possuem quarenta sculos de anais,- foroso que a nao j estivesse unida e florescente h cinqenta

mil anos. O que principalmente me impressiona na histria antiga da China, que tudo nela ver ossmil e

natural. O que mais me admira que nada tenha de maravilhoso. Por que ser que todas as naes se atriburam origens fabulosas? Os antigos cronistas d a histria de Frana, que no so antigos, fazem provir os franceses de um Francus, filho de Heitor. Diziam-se os romanos descendentes de um frgio, embora no houvesse na sua lngua uma nica palavra q ue tivesse a mais remota. relao com a lngua frgia. Os deuses haviam habitado dez mil anos no Egit o e os diabos na Ctia, onde haviam engendrado os hures. Antes de Tucidides, no vejo seno romanos s emelhantes aos Amadis, e muito menos divertidos. So, por toda parte, aparies, orculos, prodgios, sortilgios, metamorfoses, sonhos interpretados, e que ditam o destino dos maiores Imprios e d os menores Estados: aqui animais que falam, ali animais que so adorados, deuses transformados em home ns e homens transformados em deuses. Ah! se necessrio que haja fbulas, que estas pelo menos se jam o emblema da verdade Amo as fbulas dos filsofos, rio com as das crianas, odeio a dos impostor es". Veio-lhe um dia s mos uma histria do imperador Justiniano. Lia-se ali que os apedeu tas de Constantinopla haviam baixado, em pssimo grego, um dito contra o maior capito do scu lo, porque este heri pronunciara as seguintes palavras, no calor da discusso: A verdade brilh a com a sua prpria luz, e no se alumiam os espritos com as chamas das fogueiras. Asseveraram os apede utas que tal proposio era hertica, ou cheirava a heresia, e que o axioma contrrio era catlico, uni versal e grego: S se alumiam os espritos com a chama das fogueiras, e a verdade no pode brilhar com luz prpria. Assim, condenaram os referidos linstolos vrias frases do capito, e baixaram um dito. - Como! - exclamou o Ingnuo. - Essa gente a baixar ditos?! - No eram ditos - replicou Gordon, - eram contraditos, de que todo o mundo ria em Constantinopla, a comear pelo imperador: era este um sbio prncipe que soubera reduz ir os apedeutas linstolos a mo fazerem seno o bem. Sabia que esses senhores e vrios outros pastforos haviam esgotado a pacincia de seus predecessores, fora de contraditos, em matria mais grave . - Fez muito bem - disse o Ingnuo. - Cumpre apoiar os pastforon e cont-los. Ps por escrito muitas - outras reflexes que espantaram o velho Gordon. "Consumi ci nqenta anos em instruir-me - dizia ele consigo - e teimo no poder atingir o natural bom senso deste menino quase selvagem! Parece-me que apenas consegui fortalecer laboriosamente os preconceito s, ao passo que ele s escuta a simples natureza". Tinha ele alguns desses opsculos de crtica, dessas brochuras peridicas onde homens incapazes de produzir o quer que seja denigrem as produes dos outros, onde os Vis insultam os Ra cine, e os Faydit os Fnelon. O Ingnuo percorreu alguns desses livrecos. "Comparo-os - dizia ele - a certas moscas que vo desovar no traseiro dos mais belos cavalos: isso no os impede de correrem". Os dois filsofos mal

se dignaram a lanar os olhos sobre esses excrementos da literatura. Leram juntos os elementos da astronomia; o Ingnuo mandou buscar esferas: aquele g rande espetculo o transportava. Como duro - dizia ele - s comear a conhecer o cu depois qu e me arrebataram o direito de o contemplar! Jpiter e Saturno rolam nesses espaos imenso s; milhes de sois iluminam mirades de mundos; e, na poro de terra onde fui lanado, existem seres que m e privam, a mim, ser vidente e pensante, de todos esses mundos que a minha vista poderia ati ngir, e daquele onde

Deus me fez nascer! A luz feita para todo o universo est perdida para mim. No ma o cultavam no horizonte setentrional onde passei a infncia e a juventude. Sem ti, meu querido G ordon, eu estaria aqui no vcuo. CAPTULO DCIMO - SEGUNDO O que pensa o Ingnuo das peas de teatro. Assemelhava-se o Ingnuo a uma dessas rvores vigorosas que, nascidas num solo ingra to, distendem em pouco tempo az razes e os ramos quando transportadas para terreno favorvel; e e ra bastante estranho que esse terreno fosse uma priso. Entre os livros que ocupavam os lazeres dos dois cativos, havia poesias, tradues d e tragdias gregas, e algumas peas do teatro francs. Os versos que falavam de amor encheram, a o mesmo tempo, a alma do Ingnuo, de prazer e sofrimento. Todos lhe falavam da sua querida St. Yves. fbula dos Dois Pombos cortou-lhe o cor ao: bem longe estava ele de poder regressar a seu pombal. Moliere encantou-o. Fazia-lhe conhecer os costumes de Paris e do gnero humano. - Qual das suas comdias preferes? - O Tartufo, sem dvida alguma. - Penso o mesmo - disse Gordon. - Foi um tartufo quem me meteu neste calabouo e t alvez sejam uns tartufos os que te desgraaram. - E que achas dessas tragdias gregas? - Boas para os gregos - respondeu o Ingnuo. Mas quando leu a Ifignia moderna, Pedra, Andrmaca, Atalia, ficou num verdadeiro xta se, suspirou, chorou, decorava-as sem querer. - L Rodogune - recomendou-lhe Gordon. - Dizem que a obra-prima do teatro; as outr as peas, que tanto prazer te causaram, nada so comparadas com ela. O jovem, logo . primeira pgina, lhe disse: - Isto no do mesmo autor. - Como o descobriste?

- Ainda no sei. Mas estes versos no me tocam nem o ouvido nem o corao. - Oh! os versos no importam - observou Gordon. - Para que ento faz-los? - retrucou o Ingnuo. Depois de ter lido atentamente a pea, sem outro fim que o de sentir prazer, fitav a o amigo com os olhos secos e espantados, sem saber o que dissesse. Mas, instado a dizer o que e xperimentara, assim respondeu: - Do comeo, nada entendo; o meio deixou-me revoltado; a ltima cena comoveu-me, emb ora me parecesse pouco verossmil; no me interessei por ningum e no retive nem vinte versos, eu que os retenho todos, quando me agradam. E no entanto, esta pea considerada a melhor que ns possumos. - Se assim - replicou ele, - talvez seja como muitas pessoas que no merecem o seu lugar. Afinal de contas, uma questo de gosto; com certeza o meu ainda no est formado; pode ser que m e engane; mas bem sabes que costumo dizer o que penso, ou antes, o que sinto. Nos juzos dos hom ens, h muito de iluso, de moda, ou de capricho, creio eu. Falei segundo a natureza: pode ser que em mim a natureza se mostre muito imperfeita; mas tambm pode ser que ela seja s vezes pouco consultada pela maioria dos homens. Ps-se ento a recitar versos de Ifignia e, embora no declamasse bem, emprestou-lhe ta nta verdade e uno, que fez chorar o velho jansenista. Em seguida leu Cinna: no chorou, mas admi rou. CAPTULO DCIMO - TERCEIRO A bela St. Yves vai a Versalhes. Enquanto o nosso desgraado mais se esclarecia do que se consolava; enquanto o seu gnio, por tanto tempo abafado, se desenvolvia com tamanha rapidez e fora; enquanto a natureza, qu e nele se aperfeioava, o vingava dos ultrajes da fortuna, que faziam o senhor prior e a sua boa irm, e a bela reclusa St. Yves? No primeiro ms, inquietaram-se, e no terceiro estavam mergulhad os no desespero: alarmavam-nos falsas conjeturas e rumores sem fundamento; ao cabo de seis meses, estavam convencidos da morte do Ingnuo. Afinal, por uma velha carta de um guarda real, o senhor e a senhorita de Kerkabon vieram a saber que um jovem parecido com o Ingnuo chegara uma tarde a Versalhes, mas fora detido noite, e desde ento ningum mais ouvira falar nele. - Ai! - suspirou a senhorita Kerkabon, - vai ver que o nosso sobrinho fez alguma tolice e est pagando por isso! jovem, breto, no pode saber como se comportar na. Corte. Meu querido irmo , no conheo Versalhes nem Paris; eis uma bela ocasio, e talvez encontremos o nosso pobr e sobrinho; filho do nosso irmo, e o nosso dever socorr-lo. Quem sabe se no poderemos afinal faz-lo su bdicono, depois que se houver apaziguado o ardor da juventude? Tinha bastante inclinao para as cincias. No

te lembras como ele discorria sobre o Velho e o Novo Testamento? Somos responsvei s por sua alma; fomos ns que o batizamos; e a sua querida St. Yves passa o dia a chor-lo. Na verda de, temos de ir a Paris. Se ele est escondido nalguma dessas casas alegres de que tanto me falaram, de l o tiraremos. O prior comoveu-se com as palavras da irm. Foi falar com o bispo de Saint-Malo, q ue batizara o huro, e pediu-lhe proteo e conselho. O prelado aprovou a viagem. Deu-lhe cartas de recomendao para o padre de La Chaise, confessor do rei, que era a mais alta dignidade do re ino, para o arcebispo de Paris, Harlay, e para o bispo de Meaux, Bossuet. Afinal os dois irmos partiram; mas, chegados em Paris, viram-se perdidos como num vasto labirinto. Suas posses eram medocres; todos os dias necessitavam de carros para sair descobe rta, e no descobriam coisa alguma. O prior foi apresentar-se ao reverendo padre de La Chaise: achava-se este com a senhorita Du Thron, e no podia dar audincia a priores. Foi bater porta do arcebispo; achava-se este en cerrado com a bela senhora le Lesdiguires, tratando de assuntos da Igreja. Correu casa de campo do b ispo de Meaux: este examinava, com a senhorita de Maulon, o amor mstico da senhora Guyon. No entanto, chegou a fazer-se ouvir pelos dois ltimos prelados, que lhe declarara m nada poderem fazer pelo seu sobrinho, visto no ser este subdicono. At que conseguiu avistar-se com o jesuta: este o recebeu de braos abertos, protesta ndo que sempre lhe dedicara particular estima, embora jamais o tivesse visto. Jurou que a Socie dade dos Jesutas sempre fora muito ligada aos bretes. - Mas - acrescentou ele, - ser. que o seu sobrinho no tem a desgraa de ser huguenot e? - Certamente que no, Reverendo Padre. - E no ser jansenista? - Posso assegurar a Vossa Reverendssima que cristo recente. Faz uns onze meses que o batizamos. - Muito bem, muito bem, ns nos ocuparemos dele. E os seus honorrios, senhor prior, so considerveis? - Oh, pouca coisa! E o meu sobrinho me sai muito caro. - E h alguns jansenistas pela vizinhana? Tome cuidado, meu caro prior, eles so mais perigosos que os huguenotes e os ateus. - No h nenhum, Reverendo. Nem se sabe o que jansenismo em Nossa Senhora da Montanh a. - Tanto melhor; pode ir, e esteja certo de que no h nada que eu no faa pelo senhor. Despediu afetuosamente o prior e no pensou mais no caso.

Corria o tempo, e o prior e a boa irm se desesperavam. Entrementes, o maldito bailio apressava o casamento do palerma do filho com a be la St. Yves, que tinham feito sair expressamente do convento. Continuava a amar o seu afilhado ta nto quanto detestava o marido que lhe ofereciam. A afronta de ter sido recolhida a um convento aumentav a a sua paixo, que a ordem de desposar o filho do bailio elevava ao cmulo. O pesar, a ternura e o horr or lhe abalavam a alma, O amor, como se sabe, muito mais engenhoso e ousado em uma donzela do que a amizade em um velho prior e uma tia passante dos quarenta e cinco. De resto, formara o espri to no convento, com os romances que lera s escondidas. A bela St. Yves lembrava-se da carta que um guarda escrevera para a Baixa-Bretan ha e da qual muito se havia falado. Resolveu ir pessoalmente obter informaes em Versalhes, lanar-se ao s ps dos ministros se o Ingnuo estivesse preso, como lhe diziam, e alcanar justia para ele, No sei que secreto sentimento a advertia de que na Corte no se recusa nada a uma bela moa. No sabia, p orm, o que isso custava. Tomada essa resoluo, ela se mostra conformada, tranqiliza-se, no mais evita o lorpa do noivo; acolhe o detestvel sogro, acaricia o irmo, espalha alegria pela casa; depois, no d ia destinado cerimnia, parte secretamente s quatro da madrugada com os seus presentes de npcias e tudo o que pode juntar. To bem tomara as suas providncias, que estava j a dez lguas quando entr aram no seu quarto, por volta do meio dia. Imagine-se qual no foi a surpresa e consternao! O in terrogativo bailio fez naquele dia mais perguntas do que em toda a semana; o noivo ficou mais tolo do que nunca. O abade de St. Yves, encolerizado, tomou a resoluo de partir em busca da irm. O bailio e o filho decidiram acompanh-lo. Destarte conduzia o Destino a Paris quase todo aquele canto da Bretan ha. Bem desconfiava a bela St. Yves de que a estavam seguindo; informava-se discreta mente com os correios se no haviam encontrado um gordo abade, um enorme. bailio e um jovem pal erma, a caminho de Paris Tendo sabido, no terceiro dia, que estes no se achavam longe, tomou um c aminho diferente, tendo a habilidade e a sorte de chegar em Versalhes enquanto a procuravam inutil mente em Paris. Mas como conduzir-se em Versalhes? Jovem, bela, sem conselho, sem apoio, desconh ecida, exposta a tudo, como atrever-se a procurar um guarda do rei? Pensou em dirigir-se a um jes uta de baixa categoria; havia-os para todas as condies da vida, tal como Deus, diziam eles, dera diferente s alimentos s diversas espcies de animais. Dera ao rei o seu confessor, a quem todos os solicit adores de benefcios chamavam o chefe da igreja galicana; em seguida vinham os confessores das prince sas; os ministros no os tinham: no eram tolos para isso. Havia os jesutas do vulgo, e principalmente os jesutas das criadas

de quarto, pelas quais se sabiam os segredos das patroas, e que no era pequeno ca rgo. A bela St. Yves dirigiu-se a um destes ltimos, que se chamava o padre Tout--tous. Confessou-se a e le, exps-lhe suas aventuras, seu estado, seu perigo, conjurando-o a aloj-la em casa de alguma boa d evota, que a pusesse a abrigo das tentaes. O padre Tout--tous a acomodou na casa da mulher de um oficial da copa, uma das su as mais fiis penitentes. Logo de chegada, apressou-se em ganhar a confiana e amizade dessa mul her; informou-se acerca do guarda breto, a quem mandou chamar. Tendo sabido por ele que o seu amad o fora preso depois de falar com um primeiro secretrio, dirigiu-se casa deste: a vista de uma bela mulher o

abrandou, pois cumpre confessar que Deus s criou as mulheres para domesticarem os homens. O funcionrio, enternecido, confessou-lhe tudo. - O seu enamorado est na Bastilha h cerca de um ano, e, se no fosse a senhorita, el e talvez ficasse por l toda a vida. A sensvel St. Yves desmaiou. Quando voltou a si, disse-lhe o funcionrio: - No tenho atribuies para fazer o bem. Todo o meu poder se limita a fazer o mal alg umas vezes. V ter com o senhor de Saint Pouange, que faz o bem e o mal, e primo e favorito de monsenhor de Louvois. Esse ministro tem duas almas: o senhor de St. Pouange uma delas; a senh ora Du Beloy, a outra; mas esta no se acha agora em Versalhes; s lhe resta o protetor que lhe indi co. A bela St. Yves, dividida entre um pouco de alegria e pesares extremos, entre al gumas esperanas e tristes receios, perseguida pelo irmo, sempre adorando o seu amado, enxugando as lgrimas e vertendo-as de novo, trmula, desencorajada e dali a pouco cheia de nimo, assim cor reu a falar com o senhor de St. Pouange. CAPTULO DCIMO - QUARTO Progressos do esprito do Ingnuo. O Ingnuo fazia rpidos progressos nas cincias, e sobretudo na cincia do homem. Esse rp ido desenvolvimento de seu esprito era devido quase tanto sua educao selvagem como tmper a de sua alma. Pois, nada tendo aprendido na infncia, no aprendera preconceitos. E seu ente ndimento, no tendo sido curvado pelo erro, permanecera em toda a sua retido. Via as coisas como so, a o passo que as idias que nos inculcam na infncia fazem com que as vejamos, durante toda a vida, c omo no so. - Teus perseguidores so abominveis - dizia ele a seu amigo Gordon. - Lamento que t e oprimam, mas tambm lamento que sejas jansenista. Toda seita me parece uma condio de erro. H, por acaso, seitas em geometria? - No, meu filho - disse-lhe, suspirando, o bom Gordon; - todos os homens esto de a cordo sobre a verdade quando ela demonstrada, mas acham-se muito divididos quanto s verdades ob scuras. Seria melhor dizer "as falsidades obscuras" Se houvesse uma nica verdade oculta n esse monto de argumentos que se repisam h tantos sculos, sem dvida a teriam descoberto; e, ao men os nesse ponto, o universo estaria de acordo. Se essa verdade fosse necessria como o sol o terra, s eria brilhante como ele. um absurdo, um ultraje ao gnero humano, um atentado contra o Ser Infinito e Supremo dizer: "H uma verdade essencial ao homem, e Deus a ocultou". Tudo o que dizia o jovem ig norante, instrudo pela natureza, causava profunda impresso no esprito do velho sbio infortunado. Ser mesmo verdade - exclamou ele - que eu me haja desgraado por causa de quimeras? Tenho

muito mais certeza do meu infortnio do que da graa eficaz. Consumi meus dias a rac iocinar sobre a liberdade de Deus e do gnero humano, e perdi a minha; nem Santo Agostinho nem S. Prspero me tiraro do abismo onde estou. O Ingnuo, entregue a seu gnio, disse enfim: -.Queres que eu te fale com ousada confiana? Os que se deixam perseguir por essas vis disputas escolsticas me parecem pouco sensatos; os que os perseguem me parecem monstros. Os cativos estavam ambos de acordo sobre a injustia de seu cativeiro. -.Sou mil vezes mais digno de lstima - dizia o Ingnuo. - Nasci livre como o ar; ti nha duas vidas, a liberdade e o objeto do meu amor: e ambas me so tiradas. Eis-nos os dois a ferros , sem saber o motivo e sem poder pergunt-lo. Vinte anos vivi como os hures; dizem que so brbaros porque se vinguem de seus inimigos mas jamais oprimiram os seus amigos. Mal pus os ps em Frana, verti m eu sangue por ela; salvei talvez uma provncia e, como recompensa, fui metido neste tmulo de vivo s, onde teria morrido de desespero, se no fosses tu. Ento no h leis neste pas?! Condenam os homens sem ouvi-los?! Na Inglaterra no assim. Ah! no era contra os ingleses que eu deveria ba ter-me! Assim a nascente filosofia era incapaz de dominar a natureza ultrajada no primei ro dos seus direitos, deixando livre curso sua justa clera. Seu companheiro no o contradisse. A ausncia sempre aumenta o amor que no satisfeito , e a filosofia no o diminui. Seguidamente falava ele da sua querida St. Yves, tanto qu anto de moral e metafsica. Quanto mais se depuravam seus sentimentos, mais ele amava. Leu alguns novos romances; poucos achou que lhe pintassem o seu estado d'alma. Sentia que o seu corao ia semp re alm do que lia. "Ah! - dizia ele. - Quase todos esses autores apenas tm esprito e arte." E o bom do padre jansenista insensivelmente se ia tornando confidente do seu amo r. Antes, s conhecia o amor como um pecado de que a gente se acusa em confisso. Aprendeu a co nhec-lo como um sentimento to nobre quo delicado, que pode elevar a alma tanto quanto enlangues c-la e que, algumas vezes, at produz virtudes. Enfim, para derradeiro prodgio, um huro convertia um jansenista. CAPTULO DCIMO - QUINTO A bela St. Yves resiste a propostas delicadas. A bela St. Yves, mais apaixonada ainda que o seu namorado, foi ter com o senhor de St. Pouange, em companhia da amiga que a hospedava, ambas ocultas nos seus chales. A primeira pe ssoa que viu porta foi o abade de St. Yves, seu irmo, que se retirava. Assustou-se, mas a devota ami ga tranqilizou-a. - Exatamente porque falaram contra ti que preciso que fales. Fica certa de que n este pas os

acusadores tm sempre razo se a gente no se apressa em confundi-los.